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O Que Biden Vê

O Que Biden Vê

Pedro de Souza

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Desde que foi eleito, o Presidente Biden deve ter concluído que a sua missão não era unir o povo americano, dividido por um personagem da televisão, um tal de Trump, mas unir o povo do mundo. O que isto significa? Significa fazer o homem acreditar na democracia representativa, nos direitos humanos. Até há bem pouco tempo isso era óbvio: não só a direita, os empresários, as entidades patronais lutavam pelos seus interesses dentro do quadro legal estabelecido desde o século XVIII, mesmo se usando, por vezes, métodos pouco católicos, mas também o povo, os militantes de esquerda queriam pelo menos impor os instrumentos da democracia representativa para oferecer ao povo as vantagens de que a burguesia gozava.

Tinha se criado o consenso de que sem a democracia representativa não havia futuro. Primeiro porque os governos de esquerda que não respeitavam os direitos humanos, a liberdade de expressão etc., eram isolados, boicotados, como aconteceu com Cuba ou a Venezuela. E também porque os governos de direita não conseguiam se sustentar, acabavam fomentando revoltas, como no Chile ou em Portugal ou mesmo no Brasil, porque desprezando o princípio que estabelece que quem detém o poder é o povo, esses regimes careciam de legitimidade. Era óbvio que quem detinha o poder era o povo e seus representantes e não o clube dos padeiros, ou qualquer outra agremiação de interesses particulares.

É verdade que as coisas não eram assim tão límpidas: havia regimes de esquerda em que os representantes careciam de real legitimidade, ou porque roubavam nas urnas, ou porque não havia liberdade de expressão, etc., e havia regimes de direita que faziam o mesmo, não respeitavam os direitos humanos, nem obedeciam aos resultados das eleições. Mas todos apregoavam os mesmos princípios, por menos que os praticassem, e a convivência entre esses diversos regimes ou alianças era mais ou menos pacífica desde a Segunda Guerra Mundial (excluindo conflitos como os da Coreia, Vietnã etc.) A grande exceção eram os regimes muçulmanos integristas que não aceitavam esses princípios, nem fingiam, mas pagavam a sua sobrevivência com as armas que compravam com o dinheiro do petróleo, gás, e no fundo não incomodavam muito, salvo Israel. Até a Guerra Fria não era tão gelada, graças ao Gorbatchov e à superioridade da tecnologia americana.

Por várias razões que seria muito longo expor aqui, mas que certamente têm a ver com o progresso econômico da China, a invasão americana do Iraque e as redes sociais, que espalhavam informação falsa e verdadeira por todos os meridianos do planeta, esse clima de relativa concórdia foi apodrecendo. Biden ao chegar, tal como Trump fizera, elegeu a China como o grande competidor dos EUA. Porém um terceiro parceiro, que durante anos tinha sido deixado meio de lado, como se já não contasse, foi acumulando armas sofisticadas e rancor: a Federação Russa. Ou antes a Rússia mesmo, porque a maioria dos povos que compõem a Federação ignora esses problemas, em nome da sobrevivência.

Então Biden viu que as coisas não eram bem assim. Primeiro Trump tinha interesses na Rússia, depois não reconheceu a vitória de Biden nas urnas, e incentivou a tomada de poder no Capitólio por mé-

todos violentos, por parte de uma tropa de auditório de televisão, ou seja, pondo em causa, no seu templo, a democracia representativa. Além disso, ficou claro que a OTAN estava se desfazendo, como o próprio Macron apontou, e com isso vários países da Europa, e mesmo da União Europeia, a Polônia, a Hungria, estavam aderindo à Rússia, ou seja, desprezando os direitos humanos, enquanto outros e não dos menores, como a Alemanha e a Itália, dependiam quase que totalmente da Rússia para obter energia. Outros, como o Reino Unido, elegeram governos usando métodos escusos, baseados na manipulação de dados fornecidos por empresas de tratamento de dados obtidos junto às redes sociais. Nomeadamente ao Facebook. Logo mais Macron se retirou da África, onde combatia os extremistas muçulmanos, cansado de uma guerra cara e inglória, onde foram substituídos por uma organização de mercenários russos que já tinha atuado na Síria, depois da retirada dos americanos, e na Líbia, usando métodos mais que contestáveis a serviço de regimes ditatoriais ou chefetes de facções guerreiras. Ou seja, começou a ficar claro que a Rússia não aceitava um papel de segundo plano na política mundial, em nome de uma ideologia soviética mais que gasta, inspirada na sua incontestável vitória na Segunda Guerra Mundial, como se fosse possível voltar 75 anos atrás. E que a Rússia não só não respeitava a democracia representativa e os direitos humanos, como inspirava e apoiava financeiramente políticos, sobretudo europeus (como a Madame Le Pen, e, dizem, os separatistas catalães, alguns adeptos do Brexit, como Orban, o Primeiro-ministro da Hungria), para que seguissem a sua cartilha, isto é, que se subordinassem aos interesses da Rússia, numa unidade política que abrangesse desde Vladivostok até onde fosse possível, reabilitando a antiga União Soviética, ou a Rússia Tzarista, mas sobretudo desagregando a União Europeia, cujos interesses e ideologia são incompatíveis com os seus. Depois Biden observou que vários governos de grandes países do mundo, como a China e a Índia, se recusavam a se afastar da Rússia, apoiando-a, e continuando a negociar com ela. Quando Putin invadiu a Ucrânia ficou claro que não se tratava de especulação, mas que era para valer: Putin não suportava que um país satélite da Rússia, tão próximo do seu sob todos os aspectos, aderisse à ideologia ocidental, da representatividade e dos direitos humanos, que eventualmente aderisse à Nato e marcasse a presença americana no mar Negro, para onde os americanos avançavam sorrateiramente, como se constata no desempenho do exército ucraniano largamente financiado e materialmente apoiado pelos EUA.

Putin estava mal informado. Na realidade, a influência ocidental na Ucrânia era já muito mais profunda do que ele calculava, tanto do ponto de vista militar quanto em relação às aspirações da população, e o desempenho do exército russo também não era o que ele acreditava. A guerra de propaganda aumentou e Putin ameaçou por duas vezes empregar as armas atômicas (até 14/04) caso continuasse enterrado na lama deste começo de degelo primaveril, ou a Suécia e Finlândia entrassem para a OTAN.

É claro que se ele cumprir as ameaças de ataques atômicos isso representa o começo de uma guerra mundial. Entra-se, então, numa outra lógica, pois o Presidente dos EUA não lhe deixará a iniciativa de começar essa guerra. Se não houver negociações com alguma chance de sucesso e ficar claro que a opção de Putin são as armas atômicas, não tenhamos dúvidas que os EUA saberão destruir uma boa parte do armamento russo antes que Putin

o use. A capacidade dos EUA de localizar antecipadamente de onde partirão os ataques russos é insofismável.

De qualquer forma, será uma desgraça para a humanidade, e é para a humanidade que os verdadeiros democratas devem olhar. A solução da atual crise não pode ser apenas militar. A verdade é que a abstenção que se tem verificado nas eleições nos países democráticos, sobretudo da parte dos jovens, mostra que os direitos humanos e sua faceta política não respondem mais às aspirações das sociedades contemporâneas. Nomeadamente a problemáticas como a das alterações climáticas, e informatização. Seria necessário, portanto, alargar essas negociações não para substituir os princípios em que baseiam os regimes democráticos, nomeadamente os direitos humanos, mas para que ganhem maior abrangência, profundidade e modernidade, e respondam igualmente aos desafios das sociedades tolhidas por preconceitos ultrapassados e a necessidades atentatórias à dignidade humana, que os países ocidentais ignoram quando não exploram em seu benefício.

Pedro de Souza é editor, pesquisador e ex-Superintendente Executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.