Revista Fale! Edição 01

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nunca. Em um ano eu endoidei e vim embora. Minha mulher, a Sílvia, é daqui. Ela foi para o Rio e a gente se encontrou por lá. Quando eu pensei em voltar para cá, eu conheço muito a minha terra e pensei: ‘eu tenho que voltar para o Ceará de uma forma que meu dinheiro seja ganho no Brasil, que venha para minha conta todo mês, me dê condições de eu votar em quem eu quiser, para que eu possa ter a opinião que eu quiser sobre qualquer coisa em minha terra, e que possa contribuir para a comunidade com essa liberdade. Porque de outro modo eu fico preso. Eu nunca me senti em uma situação de não poder ter uma opinião crítica, nas duas atividades que eu exerço. Não falo isso com arrogância e até compreendo como essas coisas funcionam. Isso não quer dizer que alguém não possa se encontrar em uma situação em que a cadeia dos acontecimentos e dos poderes definam o seu cotidiano em um período da tua vida. O Brecht foi escrever porcaria em Hollywood para sobreviver, quando saiu da Alemanha. O problema não é esse. Eu estou querendo dizer que se você pode orientar sua vida, é bem melhor assim. Fale! — Qual o “Cearense do Século

XX”? FAUSTO NILO — Acho que o Alberto Nepo-

muceno. Dizem que ele não é porque nasceu no século anterior. Também acho a Raquel de Queiroz bacana, mas não gosto do que ela diz hoje. Mas a obra dela é legal. Fale! — Qual o “Brasileiro do Século XX”? FAUSTO NILO — Tom Jobim. Eu vejo isso de uma maneira cristalina. Cada dia mais. Poderia ser também Oscar Niemeyer. Fale! — Você conviveu com Tom Jobim? FAUSTO NILO — Rapidamente. Eu tenho uma história com o Tom Jobim absurdamente louca. Eu sempre tive medo dele porque ele era um sujeito irônico e o típico gozador carioca. Lá no Rio tem uma turma que eu freqüento — na Cobal do Leblon, um bar onde a gente sempre encontra os amigos. O Macalé, o Antônio Pedro, o Abel... Um dia de sábado o Abel me liga, dizendo: ‘eu

estou morrendo de ciúmes de você. Estou puto com você. Eu passei o dia com o maestro, passei o dia com ele, fomos ao Plataforma, ele se embebedou e não parava de cantar ‘Quem é rico mora na praia’... Eu dizia que o autor era meu amigo e ele dizia ‘quero conhecer esse cara, essa música é linda’. O Abel me ligou cedo. Achei que fosse trote do Tom Jobim e do Abel. Fiquei na minha. Um dia, afinal, fui levado pelo Abel ao encontro do maestro. Nesse dia estavam numa mesa o João Ubaldo Ribeiro, José Lewgoy, Abel, Tom Jobim e o Dico, um amigo dos artistas no Rio de Janeiro. Já morreu, infelizmente. Quando eu cheguei, o Abel: ‘tá aqui um grande letrista’. O Tom Jobim pegou uma cadeira para mim e disse: ‘pô, esse cara vive me enchendo o saco, sabe que eu gosto da música. Que letra linda! É sua e de quem? Do Dominguinhos? Às vezes eu fico ouvindo ali, a novela, é linda essa letra. Para você saber que eu gostei mesmo eu vou cantar’. E cantou toda. Quando terminou de cantar, disse ‘Fausto, você é do Ceará?’. Sou, respondi. E ele: ‘Meu parente. Sou de Aracati’. Na verdade, o avô dele é de Aracati. Eu disse que havia comprado um apartamento na Gávea que era de sua tia. E ele: ‘Nós temos muita coisa em comum e tal’. Eu não conseguia me conter no meio daquela história com uma pessoa que eu tanto admiro. O José Lewgoy disse assim: ‘Estou com ciúmes desse cearense, Tom. Você não está dando nem bola prá mim.’ O Tom Jobim, depois disse, ‘Fausto, se você não se incomodar, eu fiz uma paródia. Eu inverti. É assim: ‘quem é pobre mora na praia e quem é rico não tem onde morar’. Na parte da letra que fala ‘quem não chora morre com fome, mas quem tem nome joga prata no ar’. Ele inverteu e disse o rico é quem passa fome, por causa da dieta e assim por diante. A segunda parte ficou super engraçada. Quando terminou cantou de novo. Infelizmente, o grande maestro morreu um mês depois desse encontro. Fale! — Você tem medo de morrer? FAUSTO NILO — Com 57 anos você toma mais conhecimento de casos de colegas que se foram, gente na família, e vê que morre mesmo, o médico alerta... Eu não sou obsessivo com essa coisa. Eu tenho medo de morrer. Eu tenho um sentido de autopreservação, mas até agora preside tudo num vetor maior que é essa coisa de me ver todo dia. Tenho momentos de angústia que são sempre ligados a impasses nas minhas atividades. Eu só fico mal se um

projeto de trabalho sofrer. Fale! — Como é sua relação com o meio artístico e arquitetônico? FAUSTO NILO — Minha vida não foi uma vida de grandes dificuldades, intransponíveis. Sempre eu fui muito querido e tive grandes amigos. Me dei conta disso muito recentemente. Eu sou uma pessoa muito querida. Eu não tenho inimigos declarados. Isso a gente sabe, por meio de linguagens sofisticadas, que é natural do ser humano, que todas pessoas não ficam totalmente satisfeitas com o sucesso dos outros. Mas nunca para mim ganhou uma escala paranóica, ao ponto de atrapalhar minha vida. Fale! — Como é que acontece para alguém gravar uma música sua? As pessoas ligam, pedem música? FAUSTO NILO — Ligam, a minha editora, Sony Music, e os produtores. Poucas vezes mandei eu próprio as músicas para intérpretes e só faço isso quando sou solicitado. Fale! — Como você avalia esse estágio de reconhecimento hoje? FAUSTO NILO — Isso vem a a partir de algumas conquistas. Depois você vai estabilizando os patamares de conquistas no trabalho, que é muito importante. Digo trabalhar no sentido de produzir. Não é nem no sentido formal. É estar envolvido com problemas que você resolve. Tem produtos que você compartilha. Quando você passa a ter isso sempre, de maneira renovada e acontecendo, você tem de ter mais capacidade para não se tocar demais com isso também. Claro, tem hora que você se irrita. O cara chega e diz que estava não sei onde e alguém disse que o Dragão do Mar é uma merda, que não sei o quê. Por mais que você tenha uma autocrítica, é um sentimento ruim. Mas eu me habituei, ainda mais porque trabalho em coisas que dependem da publicação — a arquitetura é uma arte pública por natureza e como tal o cidadão tem total direito de opinar. Mesmo sendo privada. É um artifício por excelência. Eu sou um profissional do artifício sobre a natureza. Eu tenho que aliar minhas éticas ecológicas, minhas éticas culturais, tudo, com um registro muito bom. Por isso é que é uma profissão difícil. Não estou valorizando, não. Mas é muito difícil. Você passar pela vida para ser lembrado como um grande arquiteto — coisa que eu não pretendo e não espero — , mas como alguém que num edifício beneficiou uma Fale! !

SETEMBRO 2001


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