RE.1 - Revista Espaço n.1

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ALI ONDE VEJO DANÇA · MARCELA LEVI E LUCÍA RUSSO · NOTAÇÕES E PROCESSOS · ACERVO DIGITAL · CARTA A DELEUZE E GUATTARI · A BANALIDADE DO MAL QUE INSISTE · DESDOBRAR A CITAÇÃO · MANIFESTO HASHTAG


Editor chefe : Felipe Ribeiro · Conselho editorial :

Clarissa Diniz, Daniela Amorim, Joelson Gusson, Lídia Larangeira e Yuri Firmeza · Estudantes redatores: Jaqueline Maria e Rogério Gonçalves · Redatora e pesquisadora associada: Laura Vainer · Diagramação: Felipe Ribeiro · Foto de capa: Organic Masks, de Victor Oliveira · Preparação de imagens: Maurício Borges · Trechos do caderno de aula: Alárìnjó Oliveira Isa · Coordenação LabCritica: Sérgio Andrade · Esta

revista é um projeto de extensão dos cursos de dança da UFRJ e conta com verba do PROFAEX/ UFRJ · Uma realização: Traço – Núcleo de Performatividades da Imagem · Informações e cartas para a redação: espacializar@gmail.com · Participe da Revista Espaço!

Precisamos de voluntários ou alunos extensionistas dos cursos de dança, letras, desenho industrial e comunicação social.

UFRJ / EEFD - Departamento de Arte Corporal Av. Carlos Chagas Filho, 540 - Cidade Universitária Rio de Janeiro - RJ, 21 940-901


#1 APRESENTAÇÃO Esta é a primeira edição da Revista Espaço, uma publicação anual que tem o intuito de contribuir com o campo da teoria em dança. A teoria é uma prática e requer treino! As páginas a seguir se iniciam com uma revisão das trajetórias artísticas de Marcela Levi e Lucía Russo. A Espaço organizou um seminário de encontros semanais onde os participantes tiveram acesso ao corpo da obra da dupla que foi recontextualizado à luz de algumas leituras complementares. A revista se compõe também de outras seções: em uma, a descrição de uma imagem cria uma dança que talvez só seja possível no suporte do texto; em outra, deliberadamente confundimos anotações de aula com notações coreográficas. Contamos ainda com proposições bastante afetivas e mobilizadas pelo momento político atual. A Revista Espaço propõe ser um laboratório de escrita de invenção que, por um lado, reconheça os modos de escrita em dança mais populares, e por outro, amplie nossa percepção sobre a escritura e a teoria da dança para além da coreografia e da crítica. Ao longo dos últimos anos, o intercâmbio entre a comunidade artística e a academia vem ganhando cada vez mais força e notoriedade. A Revista Espaço é mais uma produção que surge dessa interseção. Como editor, e professor, me coloco o desafio de propor um corpo redator integralmente composto por estudantes. Todos os textos publicados nas páginas a seguir foram produzidos por graduando/as ou recém-graduada/os em dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o que faz da revista, também um retrato dos interesses dessa geração e de sua produção artística e sensível. O campo da teoria da dança se afirma aqui como uma produção que é resultado de um trabalho intelectual performado por todo o corpo, em suas percepções, relações, e sensibilidades. Boa leitura! Felipe Ribeiro Editor-chefe da Revista Espaço



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REPERTÓRIO _ Marcela Levi e Lucía Russo

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HASHTAG _ Um manifesto

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NOTAÇÕES _ O caderno de aula como cartografia de vida

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ALI ONDE VEJO DANÇA_

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LABCRÍTICA _ Performances da banalidade do mal que insiste

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PERFORMAR O FRAGMENTO_ Desdobrando uma citação

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ENSAIO _ O desejo faz correr, flui e corta. Carta a Deleuze e Guattari

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O ACERVO _ Quando partilhar se torna a palavra operativa de um arquivo

árida o estepa (2005), de Lucía Russo. Foto de Manuel Vason.


MARCELA LEVI E LUCÍA RUSSO Em setembro de 2017, as coreógrafas Marcela Levi e Lucía Russo foram entrevistadas pelos estudantes escritores da revista Espaço, na Sala de Encontros do Museu de Arte do Rio (MAR).


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“Natureza Monstruosa”(2010) marca o início da parceria entre as artistas que recentemente estrearam sua quinta criação conjunta, Deixa Arder – lançada dois meses após nossa conversa. Nas páginas à seguir, abordamos não só as peças da dupla já sob a Improvável Produções, como obras que Lucía dirigiu ainda na Argentina – seu país de origem – bem como os trabalhos de Marcela, desde seu primeiro solo em 2002. As perguntas feitas partiram de reflexões em sala de aula onde, durante um semestre, o/as aluna/os estudaram o repertório da dupla e tiveram acesso a registros e escritos complementares.

"Nenhum (dos textos) reflete o que eu penso em geral do assunto abordado porque eu não penso nada em geral de nada, a não ser da injustiça social. O livro representa, quando muito, o que eu penso certas vezes, em certos dias, de certas coisas. Portanto representa também o que eu penso." Marguerite Duras, "A vida material"

- enviada por Levi & Russo

contexto, uma ‘peça’ é incompleta, é insuficiente, mas é necessária para que solo, Marcela. Ali, o seu corpo se torna algo possa funcionar. Eu fico pensando uma zona de experimentação. Mas por na relação entre o Boca de Ferro que é o outro lado nos perguntamos se seria nosso último trabalho, meu e da Lucía, e correto dizer “o seu corpo” ou mais o Imagem. Imagem era um solo, e Boca precisa e coletivamente “um corpo de Ferro é um solo. Eu, de cara, queria feminino”? trair essa ideia de um solo e queria ser um corpo acompanhado. Criar um solo Marcela _ Eu tento me afastar dessa posse, desse lugar “meu”. Justamente eu que não fosse um solo. Em Imagem, eu estava pensando que esse solo, que foi tinha as coisas: duas peças de roupa. A a minha primeira ação, a minha primeira ideia era não simplesmente manipulálas, mas fazer com que elas pudessem tentativa de articular uma peça –– e eu gosto dessa palavra ‘peça’ porque é um intervir nesse corpo. No caso, um corpo de mulher. Por que eu penso também pedaço que precisa ser colocado num Imagem (2002) é seu primeiro trabalho

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a minha obsessão artística, articular isso nesse encontro com a Lucía. A gente de fato coloca em jogo essa autoria bicéfala, esse lugar que está partido, que não é inteiro, que tem fricção ali dentro. Imagem entra num contínuo que é uma construção-desconstrução-construçãodesconstrução que tenta abalar a ideia de imagem como algo fixo, como algo que tem ali um ponto final. Tomo a imagem como um trânsito, como simulacro, como alguma coisa que está ali inventando possibilidades temporárias e não chegando a uma conclusão. E Boca de Ferro, por outras vias tem esse corpo invadido; tem esse corpo que outros falam ali dentro; tem esse corpo que está ali não para fazer unidade, mas para estilhaçar.

nessa ideia de feminino e masculino: o feminino não está necessariamente locado em um corpo de mulher e o masculino em um corpo de homem. Há ali questões que tocam no feminino pelo fato de abordar o objeto exposto que é o masculino: um falo no caso. Uma pessoa me perguntou por que eu começava deitada. Aquele corpo não fica em pé de cara, não é vertical, não tem o formato de um obelisco. Ele é horizontal, ele está em contato com o chão. Ele se espalha mais do que concentra. Ao fazer uma analogia com o Boca de Ferro, já no encontro com a Lucía: “_ Nossa! Esse lugar de ser um solo sem ser um solo; um corpo que não está sozinho; um corpo que é afetado por esse short, por essa blusa, e que é transformado!” Mas, só depois eu consegui articular isso. Acho que essa é

Imagem (2002), de Marcela Levi. Foto de Claudia Garcia. 6


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tempo inteiro. Então há uma fuga. Não é uma presença que se expõe na frente de outros, mas tem um fora dali. Eu estou fora daquilo. É a minha estratégia performativa. Estar fora daquilo. É ter um duplo, ter todo um engajamento psíquico de ter uma imagem refletida na frente de mim mesma. É estar lá, e não aqui. Tem uma coisa que eu já não consigo mais fazer... Eu estava naquela época [da

Você vai reapresentar Imagem no SESCCampinas, na Bienal de Dança do SESC. [A peça foi apresentada no dia 24 de setembro de 2017] Como é refazê-la 15 anos depois e à luz das discussões de gênero atuais?

Marcela _ Eu gosto desse trabalho

porque ele fala de buracos e protuberâncias, ele fala de uma brincadeira quase infantil. Eu lembro de quando eu era pequena eu fazia umas esculturas de cabelo no banho com o shampoo, sabe? E aí tinha essa coisa de transformar essa imagem. E entrar nesse negócio 1 5 anos depois – mesmo tendo reapresentado essa peça há 5 anos atrás –, eu tenho 44 anos agora e é estranho, mas, ao mesmo tempo, é um convite a não ser eu também. Porque é todo um esforço que eu tenho para me aproximar daquilo, mas ao mesmo tempo eu me coloco ali e não tem eu de fato. A peça vai surgindo da experiência de se colocar nesse jogo com essas duas peças de roupa. Você falou do “meu corpo” ou “do corpo”... Eu voltei a ensaiar há um tempinho e no último ensaio eu até comentei com a Lucía [sobre uma estratégia de] presença, pois eu forjo que estou me olhando no espelho o

"Tomo a imagem como um trânsito, como simulacro, como alguma coisa que está ali inventando possibilidades temporárias e não chegando a uma conclusão." Marcela Levi

criação de Imagem] na minha época bailarina. Eu estava saindo de uma companhia na qual eu trabalhei 8 anos. Eu tinha uma prática de estar em cena e de performar que eu não tenho mais. Agora isso é muito esporádico, é extraordinário. Sempre tive pânico de entrar em cena. Sempre antes de entrar em cena eu falo: “_O que é que eu estou fazendo aqui?” Havia ali uma relação com a escuta e com a presença como desaparição que me jogavam num mundo que é único, e ao qual eu provo 7


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Lucía _ árida o estepa foi o primeiro

muito pouco hoje em dia. É um mundo único e que só quem faz passa por isso. Eu tenho que entender o que é possível hoje. Há todo um treinamento para que aquele corpo possa pulsar, para que aquele corpo possa se mover por dentro mesmo com uma aparente paragem. Eu sinto que estou menos ativada neste sentido. Eu tento voltar a trabalhar... mas é uma prática, né?! E isso é muito claro no nosso trabalho: ele é uma prática. Se eu não estou praticando-o –– mesmo que eu faça um mês antes [som que ilustra movimento de treino] –– tem alguma coisa que é muito diferente. Imagem, eu demorei 28 anos para fazer, ou 30! Foi um trabalho carregado por toda uma vida de prática, de experiência com outros trabalhos.

trabalho solo que eu fiz. Naquele primeiro momento minha investigação era a de “me mover e ser movida.” Há uma questão que eu leio, mas só agora, em retrospecto, que é de um certo anonimato nas três peças, ao se colocar os performers no mesmo nível dos objetos. Em árida o estepa, eu começo no chão, junto com as sacolas de plástico. Eu escolhi as sacolas por conta do vento. O vento é um movimento sem objeto, é puro movimento e eu fui criada na Patagônia, em uma pequena cidade que é a capital do vento. Então, eu vivi muito, como experiência corporal, a situação do vento. O vento contra, o vento a favor, diferenças entre um vento que é uma brisa e um vento de 1 80 km/h! A minha irmã pequenininha, quando a gente levava ela pela mão, ela quase levantava do chão. Ou seja, tem uma resistência ao vento que é muito concreta. O vento é essa invisibilidade que se evidencia pelo contato com o outro. Determinadas matérias é que fazem o vento visível, porque senão a gente não o vê. Quando eu escolhi o plástico, fininho, foi pela sensibilidade daquele material que oscila com as correntes de vento. Aquelas sacolas são movidas de várias maneiras, e tem uma

Nós assistimos ao registro de três peças argentinas da Lucía: árida

o estepa, Fantasmagoría e El Borde Silencioso de las Cosas . Naquele momento o trabalho de corpo parece ir em outra direção. Ele parece se construir ora por uma dissolução de contornos, ora por um compartilhamento com os objetos. Você poderia comentar um pouco sobre essa investigação corporal?

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hipersensibilidade ao vento. Havia uma analogia da questão do movimento na dança com aquele movimento que tem a ver com desejo, com isso o que nos move. Como meu corpo poderia se tornar tão sensível a esse movimento como aquelas sacolas? O vento está sempre em movimento de desterritorialização, o que me leva ao nomadismo... a um nomadismo contínuo. Já eu, não ocupava nunca o mesmo espaço, nem repetia nenhum movimento. Isso era algo que tinha a ver com uma transformação contínua. Além disso, ao pensar o momento da dança contemporânea na Argentina, eu estava em bastante desacordo com o que estava acontecendo. Havia muito formalismo. Dava-se muita importância aos passos. Para mim, esse processo de desterritorialização precisava acontecer também no campo da dança e seu formalismo.

foi um trabalho bastante difícil. Porque foi muito difícil trabalhar a transmissão. Eu tinha só 4 meses para trabalhar com as performers, e era muito difícil, nestes 4 meses, transmitir um estado de presença e de relação com os objetos que eu construí durante muitos anos. Essa questão de ser movido, de entrar num certo anonimato, não é fácil quando você topa com bailarinos que vem de uma outra formação. Por isso, eu valorizo muito hoje o trabalho de continuidade com os performers que levamos adiante na Improvável. Em El Borde... eu fiz um trabalho, basicamente, das performers pegarem pra si as potências, e as funções dos objetos. Era uma espécie de coisa trans, ao pegarem a potência dos objetos como possibilidade de movimento. Por exemplo, eu dizia: [Lucía pega uma almofada no chão da Sala de encontros para demonstrar] “_Pega isto, com esta forma… Como você traduz isto? Como você se torna isto? Esta concretude que tem esta solidez, este quadrado, este volume, e este peso? Como você traduz isto no seu corpo?” A gente passava horas olhando e testando coisas, e depois o próprio corpo para pegar as potências dos objetos. Abríamos essa passagem de não ser “eu mesma” para poder pegar as potências

Depois veio El Borde Silencioso de las Cosas. Esta foi uma peça em que eu retomei a direção de outros corpos. As pessoas, o corpo humano, o corpo animal, o corpo vegetal, o corpo mineral, o corpo dos objetos, tudo estava no mesmo nível. Os objetos! Finalmente, o que ficou mesmo foram os objetos. Este 9


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das coisas. A gente trabalhou, por muito tempo, com o espaço cheio de coisas. Lotado, lotado, lotado. E a 1 0 dias da estréia eu olhava para aquilo e falava: “_Putz, está horrível. Putz! Tem muita coisa…” Mas de novo, era um momento muito específico na Argentina, de muitas pessoas morando na rua, pegando coisas da rua e a peça tecia relação com a situação de pessoas que moravam entre coisas. O que é tido como subhumano, tinha que ser visto como algo que fosse parte do humano. O lixo como parte do humano e não como algo fora… Não como imundo, mas como mundo. Disso a gente falava bastante. Daí a vivência com as coisas, e entre as coisas –– que não eram nem bonitas, nem limpas. Era necessário se viver e se estar entre essas coisas. E para as performers era isso, era viver a experiência, se mover entre as coisas. Mas, então, duas semanas antes eu olhei para aquilo tudo e retirei a maior parte dos objetos. E elas tinham que continuar fazendo o mesmo que faziam antes, como se as coisas continuassem existindo… Agindo com a subtração dos objetos, na sua fantasmática. Só uns meses depois, eu entendi isso! E uma última versão da peça –– que chegamos a ensaiar, mas não a apresentar –– era sem coisa

alguma. Sem nada além da espectralidade das coisas.. Todas as coisas foram suspensas no espaço... uma desaparição mesmo. Esse espaço de desaparição, do qual a Marcela também falou, era o lugar da paixão dos anônimos e dessa possibilidade de circulação do desejo das coisas. Um amigo que é filósofo me falava da erótica das coisas. Para ele, mais do que sobre o desperdício, a peça endereçava o erotismo, um tráfico de desejos entre os objetos e as pessoas que viram, elas também, objetos. Por fim, vem Fantasmagoría. Mas ali o “ser movido” já é outra coisa, ali é sobre animação. Ser animado: o movimento que aparece na passagem entre uma imagem e outra. Eu trabalhava com um músico e a gente investigava muito a construção do corpo que tivesse a ver com animar, com insuflar vida, ou seja, “dar ar”, respirar. A peça é um corpo que o tempo inteiro se deforma. Eu tinha um sistema complexo de mangueiras e de coisas que eu inflava. As minhas costas cresciam, a minha cabeça crescia, cresciam várias mãos, e pés. Haviam várias luvas que inchavam e desinchavam. Um monte de mãos que cresciam, as costas, a cabeça… Então

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El borde silencioso de las cosas (2009),

de Lucía Russo. Foto de Juan Gasparini vuuuuuu, sabe?! A fantasmagoria do era esse corpo que não se afirma. Um espectral reaparece em cada peça de imaginário da animação de um corpo instável. Uma possibilidade de ser vários uma maneira diferente. corpos, sem afirmar um só... Nesse ponto também a gente se encontrou Essa relação corpo-espectro assombra bastante, Marcela e eu. Nossos trabalhos vão nessa direção, mesmo se também esse primeiro momento da tua de maneiras muito diferentes. Para mim, pesquisa corporal, Marcela. Imagem , por vezes trazia uma exposição de fotos. E essa prática de não afirmar ser um só depois em In-organic uma fotografia surge de uma pesquisa obsessiva da fantasmática. A estepe na Patagônia tem premiada gera questionamentos sobre o olhar como dispositivo de objetificação essa coisa fantasmagórica. O vento do outro. Ali a câmera é um voyeur e

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portanto, um dispositivo patriarcal. Que diferenças podemos pensar nessas duas proposições?

Marcela _ As abordagens são bem

diferentes nessas duas peças. Em Imagem a relação era a de provocar o movimento em algo que se pressupõe estático, que se pressupõe um inteiro, mas que tem um monte de coisa fora. Tem um monte de invisíveis, e de edição, "Eu me perguntava o que era horizontalidade, o que era trabalhar coletivamente, enfim." Lucía Russo

que é um recorte, e é um olhar. O estudo fotográfico, feito pela fotógrafa Claudia Garcia era só o meu corpo cortado. Fragmentado. Dividido em três. Separado, com espaço entre. Deformado de alguma maneira. Uma imagem que não é inteira, é fragmentada, tem corte, tem espaço no meio. Já em In-Organic eu estava trabalhando com uma série de pinturas da Paula Rêgo, uma artista portuguesa. Ela tem uma série de pinturas que se chama Mulher Cão. E de repente, eu estava lendo jornal e me apareceu essa imagem e era uma mulher

cão: a foto dessa mãe com o filho no colo, na rua. [Em um momento de InOrganic,Marcela aborda o discurso do fotógrafo em uma cerimônia de premiação quando explica as motivações artísticas que o levaram a tirar a foto de uma mãe que, sentada no chão, segura no colo a cabeça do filho morto a tiros numa rua do Centro do Rio.] Isso me aproximou e, de uma certa maneira, entrou em In-Organic uma narrativa, a meu ver, um pouco explícita demais. É engraçado, In-Organic é uma peça que ficou marcada na minha trajetória, mas é, para mim, a mais falida artisticamente. Eu sinto que eu falei demais. Eu acho que me coloquei mais do que eu devia ali dentro, no momento em que eu dei nome aos bois. Então é sempre pra mim uma questão – porque foi a peça que eu fiz por mais tempo. É a que mais me chamam pra fazer e eu sempre quero dizer não, quero dizer não, quero dizer não, e por questões circunstanciais eu acabo dizendo sim. Porque ela abre espaço, porque as pessoas me dizem “não, não é só isso, tem mais coisas!” Mas enfim... Foi importante fazer, mas não farei mais dessa maneira. Foi importante fazer para não fazer de novo. Não vou conceder novamente. Não vou.

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Ao fazer Massa

dos Sentidos , você revisa

também a apropriação que o dadaísta Marcel Duchamp fez do corpo feminino. Essa parece ser também uma forma de explodir com o dispositivo voyeur do olhar masculino ao corpo feminino…

Marcela _ Tem aquela obra né, L'Objet

d`art que

tem esse jogo de palavras de “objeto de arte” e “dardo”. Isso que enfia, que aponta. E aí o Duchamp botou uma daquelas massas de molde de dentista na vagina da mulher dele, e saiu o molde de um falo. Eu estava interessada na banda de Moebius, numa ideia de revirar o dentro em fora, o fora em dentro. Massa dos Sentidos foi um trabalho bastante específico em relação a esses dentrofora que não estão separados. Que tem a ver só com uma torção: você torce e o dentro está fora e o fora está dentro. Então foi todo um trabalho em torno disso –– mas você falou da apropriação do quê? Do corpo feminino?

mulher… Cara, eu tenho interesse mesmo em confundir essas coisas, está entendendo? Claro, isso é uma condição: eu sou uma mulher. Mas como é que eu faço disso alguma coisa que vai se afastar do que você pode nos separar [binariamente], aonde é que a gente vai se borrar. Onde é que vai ficar menos possível afirmar “são questões femininas, são questões masculinas, é uma apropriação…” O que me interessa do feminino é o que pode existir aí em torno do buraco. É o que pode existir no entorno. É o que de fato não afirma, é o que tem ali uma obscuridade, que guarda uma obscuridade, que guarda um nãodito, que não é totalmente coerente, não é objetivo, que tem esse caminho mais borrado, com mais invisibilidades, que gagueja, que não é tão eficaz. É isso que eu posso dizer, talvez, sobre essa questão.

Nas anotações de processo criativo de

borde silencioso de las cosas , você fala É. Do Duchamp, enquanto artista homem fazendo isso. E você enquanto artista mulher…

Marcela _ Pois é, eu como artista

El

bastante num processo de des-obrar. Você poderia falar um pouco mais desse intuito, Lucía? Dessa questão do desobrar?

Lucía _ Quando eu comecei a trabalhar 13


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Massa de Sentidos (2004), de Marcela Levi. Foto de Claudia Garcia.

no El borde... antes mesmo de começar a ensaiar, eu chamei um amigo filósofo, pois eu estava lendo muito Jean-Luc Nancy naquela época. Lia Ser Singular Plural, e também Corpus - 58 indícios sobre o corpo. E Nancy fala muito em des-obrar a obra. Eu pensava muito mais na palavra (des)composição, e ... Olha! Já tinha esquecido! Eu estava pensando na palavra composição como um modo de organização. Eu me perguntava o que era horizontalidade, o que era trabalhar

coletivamente, enfim. Essas perguntas me vinham por diferentes experiências: ora através dos coletivos artísticos nos quais participei (Casa Dorrego, c.a.s.a.), ora pela Rede Sulamericana na qual eu trabalhava há muitos anos, ora com outros grupos de pessoas com os quais eu colaborava. Eu me perguntava como se dão esses processos coletivos quando você dirige. Como endereçá-los nos termos da direção? Como não pensar em termos de composição, mas sim de dis14


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arrumavam como se estivessem em um campo de refugiados. A gente estava trabalhando com o Homo Saccer [livro do italiano Giorgio Agamben] investigando situações de exceção, e a situação dos que ficam por fora de qualquer lei , daí os campos de refugiados: as situações dos que estão sem direitos, e portanto também sem lei. A gente pensava em como o trabalho poderia se construir menos como composição, e mais ao priorizar a auto-organização das coisas, que não são uma forma livre, mas predisposições que nos chegam a partir "O que me interessa do de determinadas emergências. Essa era feminino é o que pode existir aí a proposta, na verdade! Originalmente a em torno do buraco. gente falava também da disposição de É o que pode existir no corpos e de objetos. Não de um entorno. " dispositivo, mas de uma disposição. Marcela Levi Daquilo que se predispõe. De fato, muitas pessoas que foram assistir e enterrada embaixo das coisas. Era essa mesmo apoiadores e jornalistas, me a situação para, então, vermos o que falavam: “Por que você não vai fazer essa situação lhe trazia. E foi a própria escultura ao invés de fazer dança? Isso bailarina que inventou isso, porque cada não é dança”. Mas justamente: nessa uma ia inventando quais eram as suas época ainda era muito difícil em Buenos relações [com as coisas]. Havia um Aires criar trabalhos que não tivessem trabalho de sobrevivência também... “Se relação com o teatro mais clássico, com você tivesse em uma situação de uma narrativa mais linear ou do que se emergência que cinco coisas você levaria chamava de “dança-teatro”. Eu me consigo?” As vezes a gente passava um interessava em cruzar a dança com ensaio inteiro assim, e as pessoas se questões escultóricas ou filosóficas, e

posição? E como predispor o corpo? Como se predispor a certas condições de emergência para que alguma coisa aconteça? Tinha mais a ver com os princípios do que como algo se constrói. Daí a diferença entre “se predispor” e “compor”. Você não fala mais “isto vai com isto, e com isto, e com isto”. Em El borde a gente fazia exercícios em que as bailarinas ficavam horas entre as coisas. E assim ficavam ... Nos primeiros 1 5 a 20 minutos da peça, uma delas ficava

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"Muitas pessoas me falavam: Por que você não vai fazer escultura, ao invés de fazer dança? Isso não é dança!"

Lucía _ Eu escrevi esse texto à convite

da revista DCO. A questão da direção, particularmente, sempre me intrigou Lucía Russo muito. Acho que até mais do que performar. Talvez porque nunca tive naquela época [2008] isso era difícil. muitas aulas de direção. Na direção Tanto eu como outros colegas que eram parece que você cria suas ferramentas da mesma geração e que também trabalhando com outras pessoas ou você fizeram peças com uma dramaturgia mesma trabalhando e pensando a mais aberta, tivemos uma crítica que nos respeito do ofício. É muito difícil ministrar destruiu! Diziam que aquelas não eram oficinas de direção. Quase ninguém se obras de dança. Mas estávamos anima a dar oficinas de direção em justamente rediscutindo a noção de obra. dança. Dirigir é uma atividade intangível. Em Buenos Aires não existiam peças de E além do mais, eu ouvia e participava de dança que fossem performances, ou muitas discussões de performers a instalações. E eu pensava os meus respeito de diretores. Sobre exploração trabalhos mais em termos de instalação de trabalho... Uma situação de do que em termos de obras, sabe? Por ressentimento da parte dos intérpretes isso fiquei tão interessada em alguns que falavam que não tinham voz. artistas da dança carioca, como a Marcela e o Gustavo Ciríaco, entre A “quarta mirada” é esse lugar da quarta outros, que trabalhavam nesse limiar parede que nos faz pensar como as entre dança/performance/artes visuais. peças são construídas. Na dança elas se constroem, como no campo das artes cênicas, entre os olhares. Não apenas Em um outro texto seu, você fala em um um olhar. Eu pesquisava a direção como “quarto olhar”, além do intérprete, do uma construção que se dá entre espectador e da direção. Como você pessoas. E depois tem a chegada do circulou por esses 3 [papéis], gostaria espectador, que é mais um sentido que que você falasse um pouco mais sobre se soma. Procuro uma direção que não isso pra gente.

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esteja dada pelas vontades do diretor, mas pelos diálogos, pelas discussões, por tudo que acontece no processo criativo entre todos os participantes da criação. Eu ficava pensando bastante sobre o que a gente cria entre a gente e sobre o que cria vida própria. As peças olham de volta pra gente. Isso que a Marcela fala de In-Organic: “_Ah eu não vou fazer essa peça”. Aí eu falo: “_ Caramba, mas essa peça... É foda porque a peça ganha existência! Ela é um além da gente, não está grudada na gente. Ela fica lá!” Essa existência que em um determinado momento do processo criativo começa a rejeitar determinadas coisas. As peças também colocam seus limites. É nesse lugar que eu penso um “quarto olhar”.

dirigir uma obra tem muito poucas ferramentas.

A boca, principalmente quando para de falar e entra em outras atividades, parece ser um conector forte entre nós e o reino animal. Nos parece que da boca aberta, aos sons guturais, a mordida, a gargalhada e a salivação, a boca tem sido um elemento recorrente na dramaturgia de vocês. De onde vem esse interesse?

Marcela _ A boca é o lugar dos sentidos.

É lugar do gosto, é o lugar da… Tem um trato que liga diretamente com a área erógena. Esse lugar onde a coisa fica engasgada. A gargalhada tem a ver com esse lugar aqui que sobe e desce –– que Eu escrevi esse texto, acho que antes do nem põe para fora, nem põe para dentro. ano 2000 – numa época em que não existia internet para você procurar texto, No caso de Mordedores, o que nos ou para assistir obras... A gente só tinha interessa ali é esse lugar que não é uma acesso a VHS! Eu me formei indo ver mordida que alimenta, não é uma peças, mas tudo que você não conseguia necessidade. É uma pulsão desejante. E ver ao vivo, tinha que tentar conseguir o portanto, violenta e ao mesmo tempo VHS! Tentar conseguir algum texto com deliciosa. Outro dia a Lúcia me mostrou alguém que tinha... Eu aprendi um pedacinho do Teatro da Morte do compartilhando o processo com colegas, Tadeusz Kantor [diretor de teatro e sendo performer. Eu acho fundamental polonês] e ele fala justamente da esse tipo de encontro. Pois quem quer convivência da tragédia com a 17


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gargalhada... coisas que normalmente são colocadas separadas. A boca tem bactéria, tem sujeira, tem essa coisa aqui [move a língua], tem esse órgão vermelho que é esse pedaço de carne que a gente balança aqui dentro e sai a linguagem. Tem a saliva, tem o cheiro. A gente tem interesse por essa porta de entrada e de saída. Outro dia também numa leitura dessas que a gente faz, lembrei de uma frase que é: “O que contamina o mundo não é o que a gente põe para dentro, mas o que a gente fala, o que a gente põe para fora”. É o dentrofora que mais uma vez existe aqui, na boca. Ela é a entrada e a saída na relação que a gente tem com o outro, com o mundo. Um buraco negro e os dentes, que são ossos. E quando a gente gargalha a gente mostra os ossos. E então “mostrar os dentes” é [Marcela faz som de rosnado], é mostrar os dentes. Eles são uma reminiscência do nosso esqueleto que é o que vai sobrar depois da morte. E é o que a gente acha graça.

esse movimento da boca é um reflexo. Tem também esse lugar da gargalhada do homem substituir a vontade de comer o outro. Por que a gente acha graça quando o outro cai? A gente ri para não comer o outro. Porque quando a pessoa cai ela fica no lugar da presa. A boca, ela é tão incrível assim em todos esses sentidos. Gustativos, eróticos e esse contato sujo –– que pega, que deseja, mas que estraçalha também. Ela tem um paradoxo, tem alguma coisa que não vai se resolver. E isso diz respeito ao nosso trabalho: como é que a gente trabalha "A boca tem bactéria, tem sujeira, tem essa coisa que é esse pedaço de carne que a gente balança aqui dentro e sai a linguagem. " Marcela Levi

para construir objetos que não vão se resolver? Que não estão aí em função de indicar caminhos. Como é que a Em Mordedores, estudamos Massa e o gente coloca coisas em jogo e convida Poder do Canetti. Ele fala da hiena, da as pessoas a serem parceiros nesse gargalhada da hiena que tem a ver com a jogo, sem necessariamente ou fome. Esse som que a gente entende messianicamente, indicar caminhos. Não como gargalhada é, na verdade, quando é para resolver. É para colocar em jogo! elas estão de frente para a comida e Pra gente estar aqui, por exemplo! Pra 18


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gente pensar a partir disso, pra gente se encontrar. A boca é bem cheia de possibilidades nesse sentido.

que a gente pode questionar. Do que a gente pode articular.

Lucía _ A boca é um espaço de

articulação de várias coisas simultâneas. E no bailarino não é uma parte que seja muito trabalhada. Geralmente a formação de um bailarino é bastante muda. E o espaço de articulação dentro-fora de que a Marcela dizia, para mim é fundamental! Esses espaços que não tem fechamento e que nos mantém continuadamente entre o dentro e o fora. A gente vem pensando também, nos nossos trabalhos, no contágio, na contaminação nesse mundo que pensa o outro como uma ameaça. A boca é esse espaço de caldo para bactérias, e germes ... quando a gente apresentou Mordedores na Espanha, as pessoas falavam “_eu gostei da peça, mas eu fiquei pensando nos germes”... porque a boca não é um lugar de assepsia, a boca é um caldo de cultivo. Socialmente, a gente precisa tampar a boca para não contagiar o outro; “não se pode deixar a boca aberta”... Ela é o espaço de emanação do que a gente incuba para o mundo. É o lugar da articulação da linguagem. Do que a gente pode dizer, do

A dança tem uma maneira de transmissão –– justamente falando de contágio –– de transmissão oral, basicamente. A gente tem muito pouca documentação e a transmissão, a oralidade na dança é fundamental, mas as pessoas parecem que não se dão tanto conta disso. Para dirigir ou para interpretar a gente precisa muito falar. Parece que a dança é muda, mas não, ela se constitui na oralidade. Além de toda a questão erótica.

Marcela _ Mas justamente… Não querer

falar. Usar a boca sem entrar na articulação da linguagem onde a gente compartilha códigos. A gente poderia falar sem comunicação. A gente usa isso pra... ou a gente acha, né?! Que você está ouvindo o que eu estou falando, que eu estou falando o que você está ouvindo. Mas não! Quer falar, mordedor? [Marcela dirige a fala ao bailarino Ícaro dos Passos Gaya]

Ícaro _ Eu lembrei agora que quando o

nome do trabalho ainda não era Mordedores, um dos nomes que estavam sendo cogitados para a obra era

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Revista Espaço_1

Colônia. A boca como uma colônia que fermenta, e onde existe um trânsito, um contágio, uma troca suja... Uma troca encarnada, uma troca de fluidos, uma troca por contaminação mesmo.

Marcela _ Eu ouvi muita gente falando

de Mordedores assim: “_Ah, mas eles se machucam”; “_ A boca é muito frágil”, “_Eu vejo que sai sangue”... E a gente falava bastante disso, desse horror que vaza, né? Ali de fato é um lugar frágil, sensível e é também um traço da dança: o de que a ferida e a dor podem existir mesmo se não forem expostos. As pessoas não falam por exemplo do pé de uma bailarina clássica, que bota diariamente aquela sapatilha, que fica com pé completamente distorcido, detonado, ferido. Mas isso está dentro da sapatilha de cetim. Então está bonito. Mas o que aparece é insuportável. Pode existir!... Se não for aparente.

De maneira sintética, vemos que há um interesse forte no corpo feminino nos primeiros trabalhos de Marcela. Um interesse forte na relação objetal, no trabalho de Lucía. E parece que esse duplo interesse se encontra na pesquisa atual de vocês duas, quando o corpo humano entra em composição animal.

Marcela _ [suspira] A gente tem um

treinamento, né? Esse treinamento tem como figuras o animal e a criança. E o ponto convergente nesse treinamento do animal e da criança é o não objetivo, em prol de se estar em caminho. Fazer-se "Eu ficava pensando bastante sobre o que a gente cria entre a gente e sobre o que cria vida própria. " Lucía Russo

presente enquanto envolvimento com alguma coisa. Você vê uma criança, ela está ali com alguma coisa e ela não vai, Lucía _ O espaço da boca então tem toda essa consistência. Você ri, você fala, necessariamente, pegar e abordar aquilo com os códigos e com a função que o você morde, você beija. A boca é o objeto tem. E o animal tem esse estado espaço de ruminação, daquilo que fica de estar... de estar aqui. E se tem um engasgado e que não se digere. É o momento que estamos vivendo, também. som tuum, ele olha pra lá. Há uma Com essas coisas engasgadas que não reação ao que está acontecendo, uma forma de estar ali fazendo parte do que saem por nenhum dos dois lados, que ficam nesse espaço. 20


_repertório

está acontecendo que é diferente da ânsia antropocêntrica que controla e subjuga o que quer que seja. O animal está ali. Essa possibilidade de ser parte, de estar em caminho e não trabalhar sobre alguma coisa com algum objetivo específico, eu acho, que nos aproxima dessa coisa que poderia se dizer animal. O que nos interessa é justamente a recepção, sermos furados pelo sons; tomar a visão como alguma coisa que eu não vou e capturo, mas recebo. Criar um estado de recepção, de antena, de possibilidade, de uma promessa de que as coisas podem acontecer, mas sem necessariamente saber o que é que vai acontecer. Isso tem muito a ver com a nossa maneira de pensar a performatividade. Trabalhar esse corpo que se encontra com as possessões; esse corpo que é mais um receptor do que um ator – um ser que age. É mais um cavalo, um espaço furado – e aí mais uma vez entrando na ideia de feminino – desse espaço furado, desse espaço que é esburacado e não pauzudo, que não está ali demonstrando o que quer que seja, mas sim passando por (in)determinadas situações.

Lucía _ Os bichos não se alienam. As

coisas que lhes passam e que lhes

transpassam, afetam eles. Nosso trabalho é o tempo inteiro atravessado pelas situações nas quais nos encontramos. Contextuais, ou pessoais… A gente está aí sendo afetada pelo entorno. Não é um lugar nem de projeção, nem de alienação. Mas um estado de muita sensibilidade, de estar muito à flor da pele. Os gatos, você olha para eles, e eles estão aí, estão nesse lugar de presença que a escuta dá. Esses termos de performatividade tem a ver com os médiuns, tem a ver com a nuca, com a parte de trás do corpo. Tem a ver com o espectral e com o fantasmático. Pois é o que está aqui atrás, e não o que a gente vê de frente. Nesse sentido é que nos interessam os bichos. Os bichos não estão aí pra ficar vendo e pensando e projetando e projetando… a maioria dos bichos tem mais escuta do que visão. A escuta, ainda mais vivendo no Rio que é uma cidade super barulhenta, parece as vezes que não tem muito lugar. As pessoas falam muito… E tem muito barulho o tempo inteiro. A escuta que se coloca aqui [continuam os movimentos que sinalizam os espaços atrás do corpo], também faz o silêncio possível.

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Revista Espaço_1

A artista visual, professora e escritora, Laura Erber colaborou em algumas das tuas obras, Marcela, vocês inclusive realizaram dois vídeos juntas – Firma e

Superfície de Balanço. Atualmente Erber segue como dramaturgista nos trabalhos da Improvável Produções. Vocês podem falar um pouco sobre essa miríade de colaborações entre vocês e a Laura?

Marcela _ A Laura é uma visitante. Uma

visitante dura. Justamente por isso que a gente a convida, porque ela é uma visitante arrogante, prepotente, que chega lá e prumm! Mas a gente também é assim. Então a gente se gosta. É uma pessoa que nos interessa e que tem uma maneira de pensar, de articular que ressoa no que a gente faz – e o que a gente faz ressoa nela também – e é por isso que ela pode ir lá e dizer coisas. Ela é um ser externo, deliberadamente externo, e a gente precisa dessa separação, do choque mesmo! Entre nós já temos isso, muito, mas estamos lá todos os dias. Chega uma hora que um ser externo é importante para estilhaçar. Depois a gente fica na ressaca desse estilhaçamento e algumas coisas se colam novamente e outras, de fato, ficam atingidas e isso faz com que a gente

possa rever o que faz. Então, é um trabalho de intervenção e quebra, para se poder seguir em trabalho. Me lembra um pouco a frase do Tunga que diz: “fazer arte é montar, desmontar e remontar”. É claro que chega uma hora que a gente interrompe, não finaliza, mas interrompe. Porque chega uma hora que a gente começa a foder o negócio, e: “_Chega! Para! A gente continua no próximo!” É só isso! Corte! Páá Interrompeu. Segue. O que ficou ali é substrato para seguir. Mas eu fiquei com vontade de falar de funções: da direção e do performer. Para mim, existe alguma coisa nessas funções que é horizontal, e é a desaparição. Um bom performer desaparece, e uma boa direção desaparece também. Temos que abrir esse espaço. Somos tubo… [somos] tubo e passagem. Tanto a função da direção quanto a do performer.

Lucía _ A Laura tem uma capacidade de

leitura. Ela lê o trabalho, fala para gente das leituras possíveis e parece que a gente consegue ouvir as questões que a peça está trazendo mais agudamente, mais aguçadamente, e de pronto a gente consegue voltar ao trabalho de outra maneira. Quando a Laura veio assistir ao Boca de Ferro, na hora em que ela se

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Em redor de buraco tudo é beira se

oferece como uma fábula que se deixa interromper; que surge da articulação de 'manifestações curtas' (fragmentos autônomos curtos e potentes) que se repelem e se atraem de modo a manter sempre o sentido sob tensão. Se há estranheza nos dois corpos em cena que parecem nunca conversar diretamente, isso se deve ao fato de que Levi abandona a idéia de diálogo como encontro, troca ou convergência e propõe aí uma outra experiência, inspirada no pensamento de Maurice Blanchot (A Conversa Infinita) para quem a conversa se dá justamente como descontinuidade, no espaço vazio que irrompe entre uma fala e outra. Laura Erber


Revista Espaço_1

sentou, só pelo fato de estar olhando, antes mesmo dela falar, ela já fez com que eu visse a peça de outra maneira. É muito doido, só pelo fato dessa pessoa estar ali assistindo, a gente já não enxerga a peça da mesma maneira. Do mesmo jeito, quando vem o público pela primeira vez. Outro dia estava lendo O espaço vazio, de Peter Brook. Ele fala do momento quando você assiste a obra e de repente, tudo aquilo que no ensaio você achava incrível, agora acha lento! A presença do público, ou de determinadas pessoas ali, faz você enxergar e ouvir as coisas de uma outra maneira. A Laura vem escrevendo textos dos nossos trabalhos e é super bom e interessante ver a articulação que ela faz. Ela faz suas apostas e a gente têm as nossas. Geralmente estamos mais de acordo. Mas há coisas que ela vê e que a gente não. É como uma voz. Que vem e traz questões. Um corte . É um corte. Uma fissura.

Na biografia de vocês há uma série de artistas com quem vocês colaboraram. Há muito comumente nas obras colaborações de vários tipos, e mais recentemente créditos de cocriação com

os intérpretes. Neste sentido, que desafios vocês vêm para pensar autoria em dança?

Lucía _ Eu sempre trabalhei com outras

pessoas. Em termos de colaboração e de cocriação... é uma questão da autoria… há uma autoria, uma direção que é só um recorte, bem concreto. Mas ao mesmo tempo isso não exclui, dentro da criação, outras vozes. Como era mesmo a pergunta?

Marcela _ Como a gente enxerga a

autoria. Tem uma questão do ponto de partida, do recorte, de uma pessoa que traz e que faz possível o acontecimento começar. Você me entende? Quando a gente pensa: “_Ah, vamos escrever um projeto em que a gente vai trabalhar a partir de determinadas questões, com determinadas pessoas...” A gente possibilita esse espaço de encontro. A partir desse momento, a criação é compartilhada. Mas tem esse lugar da concepção, tem esse lugar de fazer um encontro possível. Por exemplo, ele [Felipe] fez esse encontro de hoje possível. Que não seria possível se ele estivesse sozinho, mas tem ali um ponto de partida. Tem ali um ponto de partida!

Na página anterior

Em redor do buraco tudo é beira (2009) de Marcela Levi. Foto de Claudia Garcia .

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_repertório

Eles tem que articular a sua relação com a peça. Porque isso fala da responsabilidade que cada um tem em relação ao mundo que estamos propondo. Pois é um mundo coletivo o que estamos propondo. Isso se dá na nossa ética, e no nosso trabalho de cada dia. Estamos ali fazendo nossas apostas Lucía _ Penso a autoria como algo que de um mundo coletivo. É uma se constitui entre as pessoas que criam micropolítica, é um espaço de laboratório onde o que a gente propõe poderia se uma obra. Porque quem está ali, colocando seu corpo, sua voz, ou o que ampliar para fora da sala de ensaio, e for, é parte dessa autoria e isso não lhe para fora da sala de teatro. Essa cotira a responsabilidade. A dança não tem responsabilidade é super importante. uma dramaturgia previamente escrita; a Marcela _ Eu tenho muita raiva mesmo e peça que se constrói tem a ver com todos que fizeram parte do processo. Eu cansaço de um engajamento protocolar, acho importante esse lugar da autoria em de um engajamento cansado, de um termos de quem responde por uma peça. engajamento com uma potência triste e sem vida! Uma vida morta! E isso Isso é algo que falamos muito com o independente da função que se assume Ícaro e com a Tamires [intérpretes em Mordedores e dos solos Boca de Ferro e em um trabalho artístico, e isso eu acho lamentável. Um dia-a-dia protocolar, um Deixa Arder, respectivamente]: eles, como performers, tem que ter também o dia-a-dia inerte, sem tesão, sem desejo é seu processo próprio dentro da criação. extremamente violento! Vire-se, sacou?! Não é fácil para ninguém. A gente pode achar um milhão de justificativas. "Eu acho importante esse lugar da autoria em termos de Percebo todas elas. Mas, e aí? O que você faz com isso? O que eu faço com quem responde por uma peça." isso? Como a gente faz alguma coisa? Lucía Russo Ainda mais se a gente está falando de arte! Se a gente está falando de alguma Agora, eu gosto de pensar autoria também como alguma coisa que no final das contas é um fantasma. No final das contas é alguma coisa que paira a partir do encontro de determinadas pessoas durante meses, anos, em torno de alguma coisa.

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Revista Espaço_1

coisa que não tem espaço para acontecer, que não está suposto a acontecer, e que ninguém vai abrir espaço pra gente. Cabe a cada um metabolizar o seu tesão, a sua curiosidade. Isso é sobre como eu me coloco aqui diante do outro. É sobre se juntar com pessoas e exigir que o outro fale, que o outro se coloque, que o outro não tenha uma existência parasitária. Exigência é amor. É amor.

Junto a essa investigação de deviresanimais, parece também haver uma proposta experimental de coletividade. O grupo como matilha, como um bando. O que nos coloca outras proposições acerca dos desejos e mesmo de propriedades do corpo. Como é experimentar os agenciamentos do corpo a partir desse coletivo ora orquestrado pelo som, ora emaranhado e se abocanhando – como em

Mordedores ?

Lucía _ Em Mordedores eu estava em

cena, e o mais difícil era que cada um conseguisse sustentar o seu desejo em termos de voracidade, sem se jogar em cima do outro. Como é uma peça muito puxada cada um precisa estar muito

"Eu tenho muita raiva mesmo, e cansaço de um engajamento protocolar, de um engajamento cansado, de um engajamento com uma potência triste e sem vida!" Marcela Levi

presente para a coisa poder acontecer. Quando alguém não se colocava o suficiente ficava muito pesado estar ali dentro. Era literalmente pesado, era alguém que pesava. Isso é o dia-a-dia do coletivo. Como a gente ensaia juntos, todos os dias, seis horas por dia, cinco vezes por semana, cada um traz seu humor com a possibilidade de mais um dia estarmos aqui juntos fazendo a coisa acontecer. Esse é um princípio do coletivo. Essa questão de reconectar, de coletar juntos, de trabalhar e de ler juntos. Pelo menos em castelhano, a etimologia de co-letivo, tem a ver com ler juntos, e com recolher juntos os frutos. Não tem nada a ver com a ideia de “_ah estamos aqui, todos juntos, e somos todos paz e amor.” Mas justamente, com os momentos de cansaço, de tensão, de quando a gente já não pode mais, mas ainda assim consegue fazer o (im)possível acontecer. Para isso cada 26


_repertório

um tem de se carregar em cima de seus próprios pés, e trazer o seu desejo, e se re-ativar, e se re-atualizar para gerar mais um dia de trabalho coletivo.

Marcela _ Para mim, me vem a

expressão “natureza monstruosa.” Quando a gente fala do monstro de várias cabeças é como se estar junto sendo mais de um. E mais de um é conflito.Ser mais de um é ter mais de uma visão, é ter mais de uma escuta, é ter mais de uma hipótese, é ter mais de uma possibilidade, e ... aí está a riqueza dessa possibilidade de se estar em coletivo. De maneira alguma o que nos interessa é fazer disso uma união, um unitário, alguma coisa que tenha a cara do grupo , ou ... socorro ... chegar a um consenso! Mas justamente poder se colocar em jogo através do nosso dia-adia. Porque a peça é uma ponta de lança, ela é um pedaço. O que está ali, o grosso mesmo, é a nossa convivência. Que é tumultuada mesmo! Não é fácil, mas é uma convivência apaixonada, e portanto, tumultuada! Existem ali laços. Alianças fortes. E portanto existem momentos de horror. Fortes também. A gente vive uma aposta de junção na possibilidade de disjunção mesmo. Desse lugar que tenha ali…

"Natureza monstruosa" é uma expressão de um cara chamado Giuseppe Cocco dentro de um livro O devir Brasil do mundo e o devir mundo do Brasil, em que fala da democracia como um espaço que justamente garante o conflito entre minorias. A democracia é o que garante que as minorias existam, co-existam, e portanto, a garantia de que o conflito possa existir. A gente tenta ser uma micro-comunidade democrática e por tanto conflituosa, tumultuosa e turbulenta.

Se até então havia uma externalidade dos sons, em Natureza

Monstruosa o

ruído dá lugar ao berro e já não é somente externo, mas pede também uma movimentação corporal para executá-lo. Vocês podem comentar sobre esse processo e seus desafios?

Marcela _ O berro de Natureza Monstruosa é

um berro pra dentro. É um berro ao contrário, [faz som com a boca]. É uma coisa que puxa o ar para dentro. Naquele momento, a gente queria contrapor ... a gente estava investigando o que chamou de corpo polifônico e trabalhou duas linhas paralelas de uma

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Revista Espaço_1

corporeidade que tem a ver com o Cakewalk – danças burlescas do início do século XX. A gente queria justamente trazer um certo anacronismo e queria, ao mesmo tempo, um conflito. Resolvemos contrapor o lugar bucólico desses saltos, dessa coisa um pouco ingênua, saltitante, floral, com esse berro completamente gutural, asfixiante e monstruoso.

Lucía _ A gente trabalha muito essa

questão de dançar ao avesso. A pele de bicho foi a construção dessa espacialidade –– esse bicho todo bonito, todo de pelúcia, e ao mesmo tempo a visceralidade. Pois o berro é o som das vísceras. Havia uma corporeidade quase infantil, contagiada pelos filmes de Georges Meliés e outras figuras do começo do século XX, que tinham o fascínio de um mundo que ainda não passou nem pela Primeira e nem pela Segunda Guerra Mundial, que não passou pelo nazismo, onde tudo estava ainda por ser descoberto…

Marcela _ Tem ainda isso de que são

figuras quase estáticas e a ideia de que algo move aquelas figuras como uma marionete. Isso também está em jogo ali naquelas pessoas.As figuras movidas, as marionetes e aquele berro que eu acho que é um traço de humanidade ali, de alguma maneira.

Lucía _ Como se a paisagem de trás se movesse, mas as figuras não.

Marcela _ É. E há um outro movimento:

o de diferenciação entre nós e o público, pois não estamos no mesmo lugar. Não estamos juntos. Não estamos no mesmo lugar. Há uma situação que pra mim é uma pista disso. É quando um dos bailarinos, o João Lima ... a figura dele é assim: [Marcela demonstra como o bailarino aparece numa cena de Natureza Monstruosa: movendo-se para frente com a cabeça travada e virada para a esquerda], ele vai e depois volta. Ele primeiro surge aparentemente "O êxtase dá essa possibilidade de sair de si. Ele cria um espaço, que é uma ferida, mas é ao mesmo tempo uma abertura. "

Então, o corpo das pessoas, os corpos dessa época eram corpos abertos, em plena descoberta, experimentais, quase infantis...

Lucía Russo

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Natureza Monstruosa (201 0) de Marcela

Levi & LucĂ­a Russo. Foto de

Laura Erber.


"Qual a diferença entre cumprir uma tarefa e

tornar possĂ­vel um acontecimento dentro de uma estrutura? " Marcela Levi

Mordedores (201 5), de Marcela Levi & LucĂ­a Russo. Fotomontagemde


_repertório

olhando de lado para o público – porque tem toda uma pegada circense, uma pegada exibicionista – mas quando ele volta, ele está naquela mesma posição, [com a cabeça travada e virada para o mesmo lado], ou seja ele agora olha para o pano preto que está no fundo do palco. Então nesse momento, ele faz assim: “Não é, para você!” Não estamos aqui no mesmo lugar.

básculas súbitas, edições súbitas. Talvez seja esse o traço político do nosso trabalho, de realmente fazer malabarismo para não colar, para não fazer um objeto que seja inteiro, né. Para justamente mantermos as quebras, mantermos o desacordo ali dentro. A gente faz muito a situação analítica nos nossos ensaios. Mas com um interesse de que, o que vai aparecer vai ser… Não vai ser… A gente constrói as pontes pra depois tira-las, né? Lucía _ A gente trabalhou a coexistência Pra deixar o buraco. E é isso que de fato como disjunção. Os campos do som e da nos interessa. É o buraco. imagem em disjunção. Duas coisas que não seguem numa mesma direção. "O berro é o som das vísceras." Natureza Monstruosa foi também o Lucía Russo nosso primeiro trabalho juntas. Propunhamos uma direção disjuntiva para experimentá-la em termos de Você fala em fazer pontes para depois corporeidade. Essa possibilidade de tirar, e me lembrei do seu comentário de fricção, de uma convivência que se dá no “Se preparar para estar despreparado”. conflito, se dava também pela tensão Vocês podem falar um pouco sobre isso entre mais de uma direção, pela no trabalho com os bailarinos, com os existência de mais de uma força. performers...

Marcela _ A gente pensa essa peça

como um Frankenstein. Uma estratégia que a gente usa bastante é não pensar nunca a coisa como um todo. Você olha e não enxerga um todo. A gente fazia força para que a coisa não se tornasse um todo. A gente não construía pontes, mas

Ícaro (bailarino de Boca de Ferro) _ É

sobre como se manter atravessado, e se manter predisposto às reações e às sensações. Não estar ali para fazer alguma coisa, mas para receber. Despreparado nesse sentido de, por exemplo, na hora do… Ei Ei Ei [Ícaro se

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Revista Espaço_1

refere a um trecho do trabalho Boca de Ferro], presentificar determinadas coisas, concretizá-las materialmente, mas sem saber. É ser movido. Um corpo que está sendo movido, e que está predisposto a ser movido. Despreparado no sentido de ser lançado pra lugares diferentes, de cair em buracos. [treinar] é ser acometido por coisas…

Marcela _ É um treinamento que tem

uma estrutura em que o performer sabe que ele vai fazer uma cambalhota, depois ele vai correr, etc. Mas justamente o treinamento é: como você vai viver ao fazer isso acontecer? Você não vai cumprir isso como uma tarefa que você já sabe e que simplesmente cumpre. Senão aquilo passa a ter gosto de passado, sabe? Não pode ter gosto de já-feito. Tem que, de fato, estar acontecendo. Qual a diferença entre cumprir uma tarefa e tornar possível um acontecimento dentro de uma estrutura? Tem que se preparar para não saber, para não estar preparado. É aí que interessa, e é ai quando se tem rigor e espontaneidade. Quando é do rigor que algo espontâneo pode acontecer.

Lucía _ Fundamental! São esses os

princípios! Como em um empurrão que

faz com que de repente uma coisa se transborde em outra. E nem é porque você quer, mas porque você já está na coisa. Você está ali e a coisa te leva pra lá. Às vezes isso significa aumentar a temperatura do corpo. Por exemplo, em Boca de Ferro, o Ícaro precisa suar para a tinta [que esta emplastrada na raiz do cabelo] escorrer. Mas para ele suar, ele tem que se colocar em jogo. Ele precisa estar naquela situação para que a tinta se ative. Essa relação é muito concreta, "A gente fez um trabalho de supressão e ele precisa manter. É aí que entra a capacidade psíquica dele de manter o que não existe, e fazer daquilo um real. " Marcela Levi

uma mudança quase química, a alquimia de fazer uma passagem de estado. O trabalho é esse, o de não planejar o momento seguinte, mas acreditar que por determinadas razões você vai passar a ele. Às vezes isso é o mais difícil. Porque a gente fica com medo, medo da coisa não acontecer. Eu me lembro, e me lembro muito, de uma cena em árida o estepa quando eu faço um som com a voz [Lucía repete o som]. Sempre antes de começar a peça havia o medo de

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_repertório

é ao mesmo tempo ativar e ser movido por aquilo. Nós trabalhamos durante todo o processo de criação com uma setlist de várias músicas. O Ícaro dançou essas músicas meses a fio. No processo, ele aprendeu todas as músicas, ele sabe cantar de cor todas elas. Então, o trabalho dele se tornou cantar mentalmente todas as músicas que fazem com que ele dance. Se ele chegar ali e desprezar esse princípio que é o ponto vital da peça, que é o que vai fazer ele mudar de estado, que é o que vai fazer a tinta escorrer; se ele desprezar Marcela _ É muito concreto! E tem este princípio e começar a se mexer estratégias determinadas. No caso de automaticamente sem “ouvir” a música Boca de Ferro – vou explicitar o que acontece na primeira cena –, justamente na cabeça, sem estar ocupado com esse o que move o performer é o que não está corpo que escuta – que é de onde vem o explícito. Mas ele sabe. E o trabalho dele buraco, que é de onde vem a

falhar, pois era essa ativação, essa especificidade da voz que me levaria a tremer. Eu não sabia, mas o tremido sempre acontecia no mesmo momento e eu o ativava de uma certa maneira. Mas não porque “eu “ começasse a tremer mas porque “a coisa tremia em mim”. Então são esses os princípios para que eu entre lá e a coisa aconteça e para que a cada vez a gente ficasse quase que surpresas (risos) que a coisa novamente acontecia!

Boca de Ferro

(201 6/201 7), de Marcela Levi & Lucía Russo. Foto de Elisa

Mendes.

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Revista Espaço_1

possibilidade de se estar esburacado – ele vai simplesmente fazer aquilo de maneira formal. Ele vai trair o princípio do trabalho, que é o de um corpo que está ouvindo o que não é audível para as outras pessoas, o de um corpo que está evocando a invisibilidade, evocando alguma coisa que não está ali. A gente fez um trabalho de supressão e ele precisa manter. É aí que entra a capacidade psíquica dele de manter o que não existe, e fazer daquilo um real.

trabalhavamos os mesmos princípios. O meu princípio era produzir vento e o dele também. Ele tinha que fazer as cordas virarem vento e eu fazia as minhas cordas vocais virarem vento! Quando a gente conversava, a gente não falava em termos musicais, mas em termos de consignas semelhantes, que cada um dos dois trabalhava à sua maneira, cada um com seu instrumento, digamos assim. Já com o Javier Bustos - o músico de Fantasmagoria – a gente trabalhava com a questão da animação. E ele na verdade Há uma recorrência na dança não queria estar em cena (risos). Só que contemporânea de se tirar o não tinha como ele não estar nela. Ele acompanhamento musical para deixar tinha construído esse instrumento, ver os ritmos corporais. Em duas das Manófano, então não dava para ele tocar suas peças Lucía, árida o estepa e de fora... Os mesmos princípios para Fantasmagoría , você não apenas dança construir esse instrumento foram os que sob música, como traz o corpo do eu usei para construir todas as músico para a cena. Você pode falar um deformações e os sopros no meu corpo! pouco sobre isso? E aí (risos) era super difícil, pois ele não se deixava dirigir, além de ser muito Lucía _ Na gravação que vocês viram de descoordenado. Foi ele quem fez o som árida o estepa o músico estava na cena, de El Borde Silencioso de las Cosas mas não foi sempre assim. Foram também. Todo o trabalho dele foi um poucas as apresentações com esta trabalho de delay, de defasar o tempo configuração. O músico e eu trabalhamos real. E geralmente o som é o lugar do com os mesmos princípios. Era tempo. O trabalho era fazer as interessante ver como ele de posse de defasagens de som ao vivo. Ele criava um objeto muito concreto, o violoncelo, e pequenos atrasos ou antecipações, de eu com meu corpo, como nós forma ao som nunca coincidir com o que 34


_repertório

estava acontecendo.

instrumento algo soa. Então tem esse terceiro termo aí que é caro à nossa maneira de pensar presença.

Os músicos, quando tocam, tem um engajamento corporal e uma intensidade Boca de Ferro parece trazer uma únicos! Eles estão na função de tocar investigação muito peculiar sobre o seus instrumentos. E eu pegava muito êxtase. Através desse trabalho isso pra pensar o tipo de engajamento que me interessava para dançar. Quando conseguimos perceber que essa pesquisa já estava presente em Natureza se toca um instrumento, a presença se Monstruosa e certamente, em constrói, se constitui nessa relação. Mordedores . A produção de um êxtase contido, implodido, acompanhado de Marcela _ Mas eu acho que tem mais uma coisa que ali... sobre o manófano... uma violência. O que está em jogo nesta ambivalência? O cara era um inventor! Ele construiu, inventou esse instrumento, e era Marcela _ Exatamente isso [risos] Essas simbolicamente super-lindo. núpcias… A gente sempre tem vontade de trabalhar com músico, mas nos falta o dinheiro. A Lucía _ Eu acho que é sobre esse lugar do êxtase como esse sair de si que presença do músico, a carne, e o som enquanto matéria e presença tem muito a produz um desgarro. Mas tem uma ferida. Então tem uma violência e ao ver com o nosso treinamento, com o nosso espaço de trabalho, e esse treino mesmo tempo uma abertura. O êxtase dá para um instrumentista é muito concreto: essa possibilidade de sair de si. Ele cria um espaço, que é uma ferida, mas é ao ele tem que ir lá, ele tem que estudar mesmo tempo uma abertura. porque senão ele não vai tocar aquele instrumento. E o nosso trabalho se Marcela _ É eu acho que sim… É a relaciona com esse labor do matéria estalada! Esses extremos. Esses instrumentista. Do cara que está ali tocando, e que faz o ‘eu’ desaparecer. O lugares extremados que estão fora de moda! [risos] instrumentista está lá em relação com aquele instrumento. Entre ele e o 35

Na página posterior. In-organic (2007), de Marcela Levi. Foto de Claudia Garcia.


_repertรณrio


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Revista Espaço_1

NOTAÇÕES A escrita em dança abre uma possibilidade de discutir a política do movimento. Para além das convenções nas quais a/o aluno/adançarina/o é um ser que se agita num fluxo ininterrupto - sem parar, pensar ou pesar -, tomamos a folha de papel como mais um dos planos de composição da dança. Se históricamente, a coreografia é um imperativo no qual o papel é um reflexo metafórico do palco, ao tomarmos as anotações como notações, propomos uma relação entre corpo e escrita em dança que se elabore para além da palavra como um comando a ser obedecido. As palavras se tornam o próprio contexto político que o corpo, ao mesmo passo em que ativa, é ativado. Reproduzimos inscrições de um caderno de aula da aluna do curso de Teoria da Dança da UFRJ, Alárìnjó Oliveira Isa. Mulher, negra e

bailarina, a estudante reitera o que chama de “uma dança-teatro afrografada.” Seu caderno é pautado, modelo muito comum no uso escolar. Mas sua ocupação é pouco obediente àquelas linhas. As palavras muitas vezes ocupam espaços variados, e sua disposição no papel inverte a lógica da escrita ocidental de direcionar a leitura da esquerda para a direita. As cores preta, rosa e azul são as mais usadas e criam seus destaques. Vide as palavras “preta”, “preto” e “negro”, que estão sobregrafadas em preto tanto quanto em rosa. Desenhos, rabiscos geométricos de círculos, linhas e setas além da espacialização da escrita, diagramam e aproximam informações, durações de fatos, dados estatísticos, e trechos de músicas à histórias coletivas e pessoais. Esses elementos compõem a afrografia de Isa.

(Rogério Gonçalves)

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ALI ONDE VEJO DANÇA A cidade está em ponta de lança, a cidade é a ponta da lança. Onde para o corpo que sonha o movimento?

A história a seguir se passa através de alguém que, ao observar o mundo, se encosta a escrever em dança com ele. As palavras eram muitas, e saiam da boca de um homem que logo era desejado pela esquina entre duas ruas quaisquer do bairro carioca da Lagoa. Era dia. Entoadas, aquelas palavras circulavam pelo espaço. Era fimde-semana, e falar era também um ato de coragem. Falar era a ação daquele corpo de médio porte que tornava-se ele todo, um tubo de passagem da voz. Ele todo passagem, ele que cuspindo tanta palavra, vocalizava ao espaço seu deslimite. O que era dito, embora não possa agora ser lembrado, fez-se memória. A fala como movimento de encontro com a cidade. Falava, apenas falava, falava, e ainda mais falava. Falava enquanto andava, falava enquanto parava, falava com as pessoas que passavam, falava com os carros que transitavam. E a todos olhava de perto. Mesmo quando não estava tão perto assim... Este corpo-tubo-passagemde-voz, tinha braços. E os movimentos dos braços apontavam ao léu embora parecessem também reger o invisível. Pois não chegavam a ser movimentos desgovernados, no sentido de parecerem ilógicos, mas antes,

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os gestos de quem ouvia uma sinfonia. Antes de qualquer significado, falar era também um gesto. Suas pernas, eretas, pausavam no contorno da calçada e se colocavam em posição de escuta a outras pernas que porventura pudessem passar. Estava ele, ali, atento e pousado à beira do bueiro. Não pousou em nenhum outro lugar que não à beira do bueiro. Abre-se a rua em abismo? Abre-se ela em encruzilhada? Abre-se a rua ao corpo que abre-se a rua? Abre-se ao que esteve desde sempre aberto? Abre-se tudo o que se calhar pouco sabe se fechar, pouco se interessa por fechar-se. Assisto à dança sonora que expande a esquina, em encruzilhada do corpo com o espaço. Aquele homem ali parado redimensiona a minha passagem. Acrescenta-se àquela esquina a dimensão do que só pode ser visto ou ouvido pelos corpos que se atravessam. Acrescenta-se àquela esquina da Lagoa a dimensão dos segredos. Li que atravessar é considerar pôr-se entre. Passado, futuro, eu, outro, norte, sul, céu, terra. A sintonia que borbulha entre o corpo aberto e a rua de certo pode atrever-se à diferença. Sobe um braço, rebola a cabeça, continua a boca no seu abrir e fechar, em seu vocalizar. (Laura Vainer - colaborou Felipe Ribeiro) 44



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PERFORMANCE DA BANALIDADE DO MAL QUE INSISTE

crédito desconhecido

Este texto começou a ser escrito no início do mês de julho de 201 6 após assistir ao espetáculo Por amor ao

polêmico trabalho escrito por Arendt para o The New Yorker sobre o julgamento de Adolf Eichmann, primeiro caso julgado mundo – um encontro com Hannah no recente estado de Israel, em Arendt, de Marcia Zanelatto e direção de Jerusalém. Eichmann era chefe da Isaac Bernat. A obra nos faz ter a Seção de Assuntos Judeus no sensação de que estamos num encontro Departamento de Segurança do Terceiro com esta mulher, judia, alemã e filósofa Reich responsável pela emigração dos do século XX, Hannah Arendt, judeus dos territórios ocupados por reconhecida, sobretudo, como uma das Hitler, pelo envio a campo de trabalhos pioneiras pensadoras do totalitarismo, forçados e, por fim, pelo extermínio através de obras como Origens do (principalmente nas câmaras de gás). No totalitarismo e Eichmann em Jerusalém – julgamento, ocorrido em 1 961 , Eichmann Um Relato sobre a Banalidade do Mal. foi acusado por essa logística do holocausto. Em cena, de um encontro A peça, não tem intuito de refazer um com Hannah Arent, a filósofa nos conta retrato do pós-guerra, mas aborda o da época em que presenciou o genocídio 46


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dos judeus e de como até os judeus acabavam matando seus semelhantes porque estavam condicionados por um mal sem motivos, sem raiz, sem explicação (nos fazendo pensar que a questão do mal não é uma questão ontológica, mas sim, uma questão de pensamento crítico, de política, de ética). Na obra de Zanelatto e Bernat, o pensamento de Arendt é transformado em diálogos que ora nos emocionam ora nos trazem incômodo por nos reconhecermos em pequenas atitudes. Nosso conformismo com o que ela chama de “banalidade do mal” é um confronto que permanece ao longo dos 60 minutos em que estamos diante da obra. Começamos a rever, pela experiência teatral, cenas do cotidiano e noticiários assistidos todos os dias que reiteram a banalidade do mal e que escorrem sob nosso chão.

Arendt se comunica com sua grande amiga e escritora, Mary Stewart (interpretada por Carolina Ferman). Nas correspondências, as duas nos envolvem entre conversas de cenas cotidianas, simples, corriqueiras e tão próximas de nós, levando-nos à reflexão sobre a banalidade do mal – um assunto denso, pesado, dolorido, que carrega um passado e nos faz perceber sua permanência ainda nos dias de hoje. Os relatos cotidianos da vida da autora são atravessados por marcos da história política contextualizando o conjunto de artigos escritos por Arendt sobre Eichmann para o The New Yorker. Neles Arendt defende o pensamento de que, a massificação da sociedade é própria ao regime totalitário, e daí surge uma multidão sem capacidade de questionamento, pessoas incapazes de levantar julgamentos morais. Logo, esta seria a razão pela qual muitos nazistas acabaram aceitando e cumprindo o que lhes era ordenado, como é o caso de Eichmann. Se pensarmos o que era lei na Alemanha de Adolf Hitler, a palavra de ordem era: matar o outro, o dissidente. E matava-se!

Episódios da vida pessoal da pensadora também são apontados, como o caso secreto que teve com Martin Heidegger, seu orientador, e o convívio com seu marido, Heinrich Blücher, com quem viveu até a morte – dois personagens muito bem interpretados pelo ator Michel Cara/o amigo/a, se isto não te remete a nada dos dias atuais, temo por estar Robim, que narra a trama. Os diálogos falando com mais um ente da massa de acontecem também através de cartas: 47


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pensamento totalitário. Sim, o regime totalitário pode não parecer dado, explicito, mas o aceno dele é real, está presente. Como dito, minha inquietação com esta peça surgiu no início de julho de 201 6, dias após termos a notícia de que Diego Vieira Machado, aluno da Universidade Federal do Rio de Janeiro, natural de Belém do Pará, foi assassinado nas proximidades de seu lar, a residência estudantil da cidade universitária, o maior campus da UFRJ. O modo como o corpo de Diego foi encontrado – sem calças e com marcas de espancamento – traz traços contundentes de um crime de ódio ligado à homofobia. Diego era nortista, negro, homossexual assumido, militante pelas causas LGBTs e pelas políticas de inclusão e de assistência estudantil na universidade. Características semelhantes às espalhadas por grupos conservadores que manifestavam seu discurso de ódio de forma anônima em mensagens nas paredes dos banheiros da universidade – como "Morte aos gays da UFRJ". Dois emails disseminados pela rede também deixam claro o movimento fascista instaurado, segundo trechos: “Vamos começar por um certo aluno que se diz minoria e oprimido por ser homossexual (...)”, e em outro, "Nenhuma vez o

socialismo deu certo e não é com vocês que isso vai dar, aguardem os próximos capítulos. (...) Como descobrimos vocês? (...) Estamos infiltrados!". Ambos e-mails foram assinados por um grupo intitulado "Juventude Revolucionária Liberal Brasileira” e ressalva: " Nós somos muitos, somos a maioria, somos unidos e somos anônimos!". Esses e-mails

ameaçadores foram enviados para alguns estudantes da UFRJ antes de ocorrer o assassinato. A vida de Diego era um incômodo às massas absolutistas, e até hoje, quase dois anos depois, não temos qualquer resposta sobre sua morte. E nos acostumamos com a falta de respostas, com a ausência dos culpados, com a ineficiência das investigações e da justiça? Quem matou Diego? Quando Diego foi assassinado, diante do cenário de opressão um pouco mais explicito que se levantava, temíamos que esses grupos anônimos virassem “modinha”, porque o totalitarismo também se caracteriza como isso nos dias de hoje, a “modinha” – uma prática que se parece com algo do tipo eu nem sei o que é, só sei que me envolvi porque pareceu ser legal, ou porque a maioria também está envolvida.

Temíamos que o ódio tomasse ainda mais conta dos sonhos e da vida de 48


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cada um de nós; temíamos a perseguição dos grupos politicamente minoritários e daqueles que tem um pensamento crítico, que defendem a equidade social e lutam por um mundo mais justo. Temíamos que a ordem dos dias se tornasse Matar!, assim como mataram Diego. Esses temores, de forma geral, se baseiam numa crise ética, espalhada e, gradativamente, sufocante que faz de tudo para nos calar.

pelo aparato técnico-midialógico. Na década de 1 930 e 1 940, os rádios espalhavam boatos, apaziguando os judeus e tornando-os presas fáceis que chegavam aos campos de concentração forçados ao trabalho como forma de obtenção de liberdade. Nos dias de hoje, os principais telejornais espalham notícias conforme os interesses de lógicas privatistas do bem público e favorecimentos econômicos impopulares. Junta-se a isso a surpreendente força, nas redes sociais, dos Agora, dois anos depois, revejo este compartilhamentos de fakenews, as escrito, e além de Diego (co)movo-me quais geram frases de efeito também com o assassinato brutal de catalisadores e pós-verdades Marielle Franco. Impossível não chama- disseminadas sem qualquer verificação la para esta discussão. Mulher, negra, de sua fonte. Discursos de ódio são lésbica e mãe, Marielle foi assassinada, planejados e disseminados em grupos juntamente com seu motorista, Anderson de WhatsApp onde rapidamente são Pedro Gomes: mais uma ativista e mais acolhidos e reproduzidos. Hoje não um trabalhador assassinados. Tudo precisamos ter um psicopata aquilo que temíamos já está a acontecer, diagnosticado para nos depararmos com reiteradamente; o genocídio daqueles o regime totalitário, basta apenas que que nadam contra a maré dos governantes de extrema direita consigam estereótipos burgueses, daqueles que um campo epigenéticoimpulsionado pela lutam à favor dos direitos humanos, que banalidade galopante do uso das redes não se calam, não se conformam com a para se disseminar e cultivar outros desigualdade e injustiça – a ordem é: Eichmanns. O totalitarismo se instaura Matar! nas massas e nas mentes de quem não cultiva o pensamento crítico, e não se A banalidade do mal caracteriza-se como incomoda com a ignorância. D iz-nos fascismo e mais uma vez a sua Arendt:"Todos os grupos políticos recrutação encontra-se potencializada dependem da força numérica, mas não 49


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na escala dos movimentos totalitários, que dependem da força bruta, a tal ponto que os regimes totalitários parecem impossíveis em países de população relativamente pequena, mesmo que outras condições lhe sejam favoráveis. " Por Amor ao Mundo – um Encontro com Hannah Arendt é um espetáculo que

perpassa as experências vividas por uma pensadora do século XX que chegam até nós, nos dias de hoje, com uma potência desajustadora. O modo como o diálogo é conduzido, reflete nossa difícil realidade diante de cenas simples e corriqueiras que cheiram a sangue. No palco, tomase café enquanto fala-se do extermínio de milhares de pessoas. Entre palcoplateia, lembro-me dos cafés que tomamos diariamente diante dos noticiários bárbaros os quais já nos acostumamos a conviver. Assim a obra abre nossos olhos sobre o holocausto que perdura em nosso cotidiano, quando Diegos, Marielles e Andersons são levados ao matadouro. O extermínio étnico dos judeus nos anos de 1 940 encontra ressonância no extermínio dos jovens negros, dos trabalhadores e de grupos marginalizados de hoje. Haverá um regime totalitário e fascista sempre em marcha? O que leva algumas pessoas a crerem que está tudo bem? O que faz com que aceitemos extermínios

e mais extermínios de pessoas perseguidas, dissidentes ou que simplesmente lutam pelos direitos das outras? Sobre Diego, Marielle e Anderson, ainda não sabemos quem os matou. Mas sabemos que a mão que espanca, a mão que atira, não é a única envolvida. Há muitos responsáveis. Por outro lado, não há possibilidade de dialogar com (anônimos) fascistas – com fascismo a gente não dialoga, a gente intervém, cessa, interdita. Talvez você esteja ao lado de um fascista agora, neste momento. Talvez você almoce, jante, tome café, divida sala de aula, o banheiro ou seu ambiente de trabalho com um desses que se envolveu com a bactéria totalitarista e nem sequer se deu conta dela, pois é incapaz de pensar criticamente, é incapaz de se importar com sua ignorância. Talvez você tenha aceitado que não há mais perseguição de um povo, de um grupo, porque o mal tornouse assim, insistentemente, banal. Diego, Marielle, Anderson... presentes!

(Fabiana Nogueira) Fabiana Nogueira é estudante do curso de Licenciatura em Dança da UFRJ. Este texto foi produzido junto à disciplina Crítica da Dança, e desdobrado no Laboratório de Crítica, projeto de pesquisa e extensão da UFRJ, 50 sob a orientação do professor Sérgio Andrade.


"... nós não sabemos –– pelo menos não ainda –– como nos mover politicamente”. Hannah Arendt, 1 950.

"... nós não sabemos –– pelo menos não ainda –– como nos mover livremente”. André Lepecki, 201 3.


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PERFORMAR O FRAGMENTO

Desdobramos a citação de uma citação. Na escuta de uma frase que foi escrita, em 1 950, e reescrita, em 201 3, notamos a importância de considerar as camadas de tempo que esta escolha traz. A citação acima, é retirada do terceiro parágrafo do artigo Choreopolitics, Choreopolice: or, the task of the dancer (Coreopolítica, corepolícia: ou, a tarefa do bailarino) de André Lepecki. Trata-se de um reposicionamento de uma frase escrita por Hannah Arendt em 1 950. Lepecki reposiciona aquela frase, percebendo o enlace de política e liberdade como agenciamentos afins, e que se produzem mantendo seus horizontes abertos um, ao encontro do outro. A política é então o campo de negociação do que liberdade pode vir a ser. Mas afinal, o que pode querer dizer mover-se livremente? Corta!

trabalha. Uma sala que pode ser na EEFD, ali no Centro Coreográfico, lá no subsolo do SESC Copacabana… Uma sala ocupada por um grupo de investigadores das artes do corpo em residência artística. Uma sala de trabalhos em processo, e de processos em trabalho. Mais um dia se inicia e, um dos artistas convidados a estar conosco como “propositor”, nos lança sua proposta em um ato: enquanto todas olhamos em sua direção esperando que ele nos diga o que fazer, por onde começar a investigação naquele dia; ele se deita de bruços acompanhando o que pode vir a acontecer a partir do que já estava acontecendo entre nós e o espaço de trabalho. Este ato nada espetacular, nada professoral, se repetiu durante seis meses. Dos inúmeros questionamentos que este período de trabalho iniciou, perdura no encontro Há uma sala com portas, janelas e tudo. com a citação escolhida para esta Sem ventilador. Piso de linóleo. Aparelho edição de Espaço, uma pergunta que de som. Um espelho que já não ronda o que pode ser a liberdade no interessa muito a toda gente que ali contexto da pesquisa em dança. E, neste sentido, a curiosidade pelas distâncias entre o mover-se livremente e 52


o mover-se politicamente.

investigadores/as são sempre criadas (criáveis) e praticadas (praticáveis). Agrupamentos investigativos institucionais, nos quais pessoas encontram-se também mediadas pelo exercício de determinadas funções (o professor, o aluno, o bailarino, a diretora, a curadora, o ensaiador, etc), nos ensinam formas – corporais, como é óbvio. Isto para dizer que, pode haver a ilusão de que um encontro de dança no qual o ato professoral – embora virtualmente esperado, não apareça – resolva o problema da liberdade dos corpos. #sqn. Os embates que víviamos naquele contexto de pesquisa eram imensos. Deparar-se com o desejo de hierarquia da sua própria dança. Pois se não há o ato professoral, há o “pode tudo”. O “pode tudo” que, inclusive, invisibiliza o outro enquanto supõe não fazer mal algum gritar, tocar ou se abster... A “dança da liberação” a tagarelar enquanto des-ouve os canais entre corpo e mundo; enquanto legitima em si própria a ideia de liberdade como uma vitória individual, e portanto nada política.

Paira no ar respirado por certos corpos em dança – desde a dança moderna de Isadora Duncan – a ideia de que moverse livremente e liberar o corpo são a mesma coisa. No entato, a pergunta do movimento livre como estamos nos fazendo aqui, busca se afastar da imagem da liberdade como um ponto de distensionamento a ser alcançado. Ponto a partir do qual a implicação tônica do sujeito como partícipe de um contexto específico estivesse resolvida. O movimento livre (que não por coincidência, emparelha com o nome dado a uma das organizações civis mais conservadoras que vimos surgir nos últimos anos, o MBL - Movimento Brasil Livre), não está a serviço de liberar caminho a forças ou fluxos de nenhuma natureza. Neste sentido, quando dançamos pela liberação do nosso corpo, seria interessante lembrar – desde a dança da mesma Isadora – que corpo é mundo; e que mundo, neste contexto de uma sala de dança, pode ser tomado como um acontecimento entre diferentes corpos em dança, e as camadas de meio-ambiente que criam, com os corpos, a esfera na qual o trabalho de dança se realiza. As formas de organização de um núcleo de

Um corpo que se move sempre para engolir o espaço, considera o que da existência? E um corpo que se move para vencer? Mesmo o gesto da provocação, vem movido a cada dia pelo quê? As perguntas de um corpo que 53


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dança, mesmo quando intraduzíveis, são as perguntas de uma comunidade. E viver/dançar em comunidade – no que diz respeito à prática política e à descoberta da liberdade – supõe a comunhão de merdas, inclusive. Supõe o desajeito, a minimesial (des)afinação de acordes e o dissenso. A consideração de que a igualdade, longe de ser a pasteurização dos sonhos e das formas dos corpos, parece-se mais com a possibilidade de sentir/mover/pensar em formas diferentes e, desde estas diferenças, poder viver (poder dançar). O que não está suposto, é o extermínio. A desconsideração do valor de uma existência.

nos soa como esta capacidade própria da prática de uma dança libertária em termos extremamente terrenos: tomo a condição do meu corpo que dança/vive, neste chão em que dança/vive, nesta relação entre a terra, o céu e os demais corpos humanos ou não com os quais inventa, negocia, descobre dia-a-dia a própria verticalidade, a própria posição em relação. A própria capacidade e invenção do que é ser humano, e do que é ser sujeito da história. O mover-se livremente não pode ser encarcerado em um modelo de velocidade, em um modelo de tempo, em um modelo de forma –– “... agora ser livre é andar a 1 30km em um carro assim-assado; agora, é voar de balão na Capadócia, agora, é ter três namoradas/os em um mesmo momento…” O mover-se livremente não é da ordem do consumo, nem da ordem da resolução. É uma tessitura sempre já começada. A considerar os fios com os quais se tece e os vazios que nos dão a possibilidade de continuar. E é porque tal movimento está permanentemente a ponto de desaparecer, de ser renegociado e reinventado, que a insistência e a mudança são atitudes a serem exercitadas. Sopro de co-responsabilidade ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ transtornar o famoso slogan “Keep Walking”, em keep walking between the earth, the other and the sky.

Além do ato literal de extermínio, há pelo menos algumas maneiras de se exterminar a vida. Uma delas é entoar isto, a sentença assassina que diz “bandido bom é bandido morto”. Uma outra maneira, é desconsiderar a existência de um corpo. E desta, há salas de ensaio que estão cheias. O ato de invisibilizar um corpo, violenta o sonho do mover-se politicamente na medida em que cria a ilusão de destensionamento das forças do dissenso; na medida em que extermina – ainda que virtualmente – o diferente. Há coisas a aprender... Há coisas a deixar ir... O mover-se livremente –– e então o mover-se politicamente ––

(Laura Vainer)

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ARTIGO O desejo faz correr, flui e c . o – r t a . Carta a Deleuze & Guattari.

Vamos tentar assim, com carinho pelas narrativas que se constroem como cartas:

Queridos. Quero

muito e com esforço me ajeitar com uma coisa nem tão louca assim que me acometeu e que chacoalha toda a paisagem que o meu nome suspende de um jeito que nem sei... Era alguma coisa deste tipo: um menino comprido na calçada do Campo de Santana, parado na beira da Av. Presidente Vargas – (isso são traçados do centro da cidade do Rio de Janeiro/BR, procurem no Google) – , lembro bem da cara desse menino, lembro bem da segurança dele ali, naquela esquina, espalhando e orientando os outros meninos para que desaparecessem antes que a polícia chegasse. É que o bando que ele pertencia tinha feito uma festa criminosa em torno de um outro guri. Um outro que só vi depois e que tinha sido socado pelos arredores do nariz..., e que sangrava. Olha lá o comandante! Tônico e atento e cuidador. E aquilo tudo era um demônio aos moldes dos que vocês apresentam naquele texto fora-dacerca onde lambem com as palavras do feiticeiro os devires animais, intensos e imperceptíveis. Puta fenômeno de borda: enguiçava umas máquinas ao mesmo tempo em que escancarava outros funcionamentos. Ao mesmo tempo em que liberava para a Pág. anterior

Nakarada, de Taís Almeida. Foto de Renan Gomes.

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_Artigo

superfície cotidiana da cidade uns fluxos quentes e abafados. O menino-comandante, a rua, os outros guris que corriam antes que a polícia chegasse, o garoto que foi socado, todo mundo parando, todo mundo arredio, todo mundo olhando de longe: isso pode ser tomado como uma máquina desejante? Fluxos de centro da cidade violentamente cortados por um assalto que desencarcerou outros fluxos – as máquinas não param: até suspendem-se, freiam, mudam de frequência, ralentam, mas não param. Era bem isso o que acontecia naquele canto externo do Campo de Santana. O guri-comandante lá! Muito bonito! Vigiando o empreendimento de forças, fluxos e formas que o bando dele geria. Máquina-farol: os olhos e as orelhas e a pele. O garoto que sangrava, moído coitado, máquina-abatida. Um soco que vem como corte: interrompe um fluxo cotidiano e abre um fluxo acidente, destrava uma comporta de onde começa a vazar o líquido sanguíneo que assinala: máquina-violada. E ainda sendo acusada..., E ainda tendo que suportar um fluxo de acuamento que foi liberado pelo soco que ele mesmo recebeu: “não pode andar com celular na mão, essa área tá um horror!”; “por isso que eu digo, tem que pegar esses pivetes e matar logo!”. A máquina-transeunte escorrendo pavor . . . Indignação sem fundo . . . Cobrança assustada . . . Máquina-guilhotina: cortem o mal pela cabeça! Que tipo de volúpia é essa?

Porque é sério que não consigo registrar uma solicitação que empreenda forças para fazer morrer um menino . . . É verdade que nenhum deles nunca socou o meu nariz. Já me rasgaram bolsas, já me apontaram uma arma, já suspenderam meu gesto de escrever uma mensagem no celular com a rapidez e habilidade que só eles têm para fazer ‘nossas’ coisas desaparecerem; com a violência que eles bem investem contra o sujeito instituído e bem ordenado em bens materiais, documentos, trajetos definidos para o trabalho... Mas não, eu nunca sangrei. Então fiquem sabendo, queridos, que este meu movimento em direção a vocês se planifica em um lugar de sujeito social bastante confortável: na minha casa sempre teve roupa lavada na corda, comida pronta para ir ao microondas na geladeira, fonoaudióloga a domicílio... Desde que eu nasci que tenho cor de sujeito dominante e trânsito liberado para ocupar e fazer funcionar um padrão de mulher, branca, cis... O padrão hegemônico me deseja, e olha: os buracos me encantam. Sempre as fissuras cintilando nos meus ouvidos e desencascando devires-minoritários. Pois então que piso neste centro de cruz e é 57


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daqui que olho aquela máquina de crime no Centro do Rio. Mas de fato tenho menos afinidade com a violência dos transeuntes em relação ao bando-demônio, do que com a violência que o tal bando fez vigorar sobre o outro menino com o assalto. Deleuze, Guattari, queridos. Falem comigo sobre crueldade. Que a minha capacidade de associação de ideias empreende com facilidade que isto caiba no bucho humano, mas não suporta – nem com muita coragem – esta aproximação entre pavor e extermínio. O que vocês poderiam dizer para ajudar nisto aqui? Sabem o que é, estou muito perto deste texto em que vocês desencantam devires, e parece tanto que poderíamos tomar este assalto como uma ponta desterritorializante, como um evento rugoso e áspero, como uma anomalia que desse relevo a uma diferença e que fizesse pipocar devires-animais. É tudo uma questão de tomada de posição, não é mesmo? Uma questão de que posição escolhemos assumir ao nos depararmos com os fenômenos. Não vou aqui entrar numa de dar a vocês aula sobre Espinosa, mas preciso escrever algumas coisas neste sentido – mais a título de construção da narrativa do que de esclarecimentos, ok?! Pois bem, se partimos do que tu, Deleuze, apresenta sobre o que é, para Espinosa, a tripla ilusão, temos que a reflexão espinosista manobra para liberar o pensamento dos ditames da consciência. Isso aparece como uma poderosa ameaça afrodisíaca à reflexão da filosofia tradicional, já que empreende uma desvalorização da consciência em relação ao pensamento. Esse movimento de desvalorização da consciência acaba por apontar para o fato de que o nosso exercício de tomada de consciência dos fenômenos só pode nos oferecer realidades parciais e ideias inadequadas, construções que se fundam com as marcas que temos e que se fizeram/fazem nos encontros que realizamos ao longo das nossas vidas (estou coerente até aqui?). Bom, essas marcas, enquanto tal, só podem nos deixar a par dos efeitos dos encontros que efetivamos. No entanto as causas dos fenômenos, dos acontecimentos, a consciência não pode alcançar. Fica claro, pelo modo como você apresenta o pensamento espinosista, que a graça desta empreitada está na proposta de alargamento da experiência do corpo pensante e da compreensão acerca do que são os encontros entre os corpos. Tal alargamento, deixa a mostra nossa real fragilidade e ignorância no que diz respeito à compreensão dos fenômenos. Pela ressonância desta 58


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perspectiva acontece que suspeitamos adivinhar as causas dos fenômenos e supomos que agimos livremente em relação a eles, quando na realidade estamos a recolher fragmentos de composições bem mais complexas. Agora! Tomemos como exemplo este encontro criminoso localizado nos arredores do Campo de Santana: o menino assaltante investiu contra o corpo do menino passante, lhe socou o nariz e tomou-lhe das mãos o aparelho celular. O passante assaltado e os demais transeuntes, assimilam o sangramento ocasionado pelo soco e a perda do celular como ações causadas pelo guri assaltante. Por esta via, a ideia dos efeitos deste encontro é tomada como a causa para as ações que se sucedem a partir dali – e neste sentido os transeuntes passam a esbravejar pela morte do menino assaltante; passam a torcer pelo fim do corpo que, no encontro com os seus corpos, fez surtir efeitos que os fizeram sofrer afetos passivos, que os fizeram sofrer com a impotência e com a falta de capacidade de agir. Acontece que afora os efeitos produzidos neste encontro criminoso (perda/ganho de aparelho celular; soco no nariz/sangramento pelo soco no nariz; investida criminosa/destrancamento de um fluxo de acuamento), o encontro entre estes corpos é uma composição que se articula, infinitamente, a um número imprevisível de outros encontros entre corpos. Daqui em diante já consigo compreender que não faz sentido tomar o bando-demônio como inocente, afinal, já a investida criminosa deles opera ilusoriamente como causa: se tomando como o causador da mazela que sofre o outro, o menino assaltante torna-se idiotamente mais forte na medida em que julga-se superior ao poder instituído pela medida da sua inventividade. Mas aqui, para além dos efeitos que podem ser colhidos pela consciência, existem operações se propagando, certo?! . . . Então: o que resta desta experiência como produto/produção de afetos ativos? O que, aqui, trabalharia ativamente e a favor da potência da existência e em detrimento dos afetos passivos que, tomando a situação como um infortúnio, fazem de assaltantes e assaltados seres impotentes, propagando pela via do ressentimento o ódio?

Bom, rabiscos de iniciante.

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Sabem, ontem precisei dançar muito enquanto lia vocês para não virar um grande buraco de ar. Porque essas palavras que vocês aprontam não são presas que possam ser capturadas, os conceitos não simplificam os fenômenos tornando-os traduzíveis e possíveis de serem replicados. Não, não, não. Texto-ovo: unidade intensiva por excelência. A multiplicidade do uno em toda a sua generosidade. Já viram isso: o ovo quando alimento é, das coisas de se pôr na boca, uma das mais generosas. Serve omelete; cabe no bolo, na torta, no pão; funciona frito, quando divorciadas a clara e a gema; faz suspiro, salada, tônico afrodisíaco e no ruim de tudo, vira ovo mexido. O ovo tem uma tal produção intensiva que suas modulações extensivas são amplamente variadas. E vejam: nós as aceitamos muito bem.

Agora: qual será o imbróglio que faz de nós humanos/as perseguidores/as fascistas dos fluxos descentralizadores que são, exatamente, os vetores que permitem que o ovo assuma esta multiplicidade de formas que o faz nosso amigo? Por enquanto só consigo pensar em medo. Muito medo. Um apavoramento modulado sob uma forma sisuda que se disfarça de soberania e acaba por forjar este afeto triste, triste, que é o ódio. Que quer dizer isso: odiar alguém? Querer matá-lo? Esta investida de corte brutal... Quando sinto ódio de uma ação como esta, do assalto, apontar para o sujeito assaltante com uma faca que busque vingar o golpe que sofri, tanto simplifica quanto idiotiza a questão. Só se deseja em um conjunto, não é mesmo? E o ódio, este afeto de um calor duro e cegueta, alimenta obscuras máquinas-desejantes.

laura, cinco de agosto de dois mil e dezesseis

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Deixa Arder (2017) de Marcela Levi e Lucía Russo. Foto de Paula Kossatz.


FOTO DEIXA ARDER


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ACERVO DIGITAL Quando partilhar se torna a palavra operativa de um arquivo. A Revista Espaço propõe o diálogo e a circulação de questões sobre o campo da dança, por um lado na relação entre performances efêmeras e sua necessidade de arquivo, e por outro, tomando o arquivo como uma tecnologia que expande o imaginário do que entendemos por dança. A internet tem muito a contribuir com essas discussões. Escolhemos para a primeira edição o site UbuWeb que, ao adota uma filosofia de guerrilha em sua partilha, pois sabe que está sob constante risco de desaparecimento. Em 1 996, quando a internet começava a sair do circuito restrito das instituições governamentais para formar uma rede social mais abrangente, o poeta americano Kenneth Goldsmith, criou uma plataforma virtual de arquivos de arte. Na contramão das lógicas de mercado, a UbuWeb trazia, em língua inglesa, acesso gratuito a obras de vídeoarte, escritos diversos, e faixas de áudio experimental. De início, a poesia visual e concreta eram as forças mais expressivas do site. Depois, conforme a capacidade de armazenamento se ampliou, aquela

plataforma diversificou-se abrindo-se a outras manifestações artísticas. Quinze anos depois, em 2011 , ela já abrigava o trabalho de aproximadamente 7.500 artistas. O acervo da UbuWeb é constituído, em maior parte, por obras que oferecem relevância de estudo, mas que se encontram fora de circulação, por um hiato de programação ou por apresentarem um alto valor no controverso mercado de artes. “ Não entram no acervo obras que estiverem em catálogo ou [que já] forem acessíveis a todos. Em compensação, corre-se riscos ao por 62


aquelas [que estão] em catálogos, mas que são ridiculamente caras ou absurdamente difíceis de encontrar. ” afirma Goldsmith (201 2, p.1 3). O poeta, que é também um importante ativista pela extinção das leis autorais, disponibiliza obras raras, inclusive para baixar. A rede UBU não pede permissão nem oficializa os tratos para que o material de determinado artista esteja disponível em sua plataforma. Como bem acena Goldsmith, qualquer autorização abriria brechas para uma mobilização jurídica que invariavelmente desembocaria em tramites bancários, e isto se desvia da filosofia da plataforma de não arrecadação e não distribuição financeira. É este seu principal argumento de defesa ao esquivar-se dos direitos autorais: a rede Ubu prevê acessibilidade livre de qualquer tipo de lucro. A plataforma virtual mantém, assim, sua estrutura dependente de ações voluntárias de colaboradores que atuam na edição das seções além de hospedagem de dados e transmissão em banda larga executada por universidades.

Ao entrar em www.ubu.com nos deparamos com uma estética minimalista de organização de conteúdo, sobretudo uma limpeza visual em detrimento da não veiculação publicitária. All avant­garde. All the time Todas as vanguardas. O tempo todo

Envolvida em sua suavidade minimalista a frase de abertura do site, atrelada à imagem do dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett e o contraste das cores preto, branco e vermelho, endereça o afeto que excita toda sua criação. Avant-garde, entretanto, é a interpretação que Goldsmith faz sobre o tema: “ Ubu propõe um tipo diferente de história da arte: revisionista e baseada nas periferias da produção artística e não na percepção ou no mercado. (...) estamos mais interessados em colocar várias disciplinas no mesmo espaço e ver como elas interagem. ” (GOLDSMITH, 2011 ). A UbuWeb inaugura uma configuração de conhecimento da história da arte que independe de uma cronologia. 63


Revista Espaço_1

Dentre as várias seções que integram a rede Ubu, há uma exclusiva para as manifestações em dança. Ao clicar em Dance acessamos uma lista de obras de artistas importantes para as pesquisas deste campo, entre eles: Jérôme Bel; Trisha Brown; William Forsythe; Xavier Le Roy; Yvonne Rainer; e Merce Cunningham. Cunningham quando questionado sobre o uso, sem permissão, de uma antiga entrevista sua publicada na revista Aspen, respondeu prontamente: “ O valor educacional de ter minhas palavras na UbuWeb supera em muito qualquer remuneração financeira. Estou emocionado de que esteja lá ” . E de fato, a mescla de trabalhos antigos a tantos outros mais recentes, e materiais complementares às obras, faz da curadoria em dança da rede Ubu uma ferramenta fundamental de formação e acessibilidade para a comunidade da dança.

tão heterogêneas, chama a atenção que a única companhia brasileira listada sob dança seja a de Deborah Colker. Além disso, diferentemente da vídeo-dança que toma o vídeo como integrante direto da performance, a dança filmada, pode muitas das vezes ser um registro contraproducente. A perspectiva videográfica de uma obra está longe da experiência que temos com a obra ao vivo. Ela é, quando muito, um índice de sua formalidade sonoro-visual, visto que as sensações e percepções diante de um corpo podem mesmo propor sentimentos e significações bastante adversas à nossa visualização em vídeo.

No entanto, como uma estudante, estou acostumada a ver trechos de registros de danças em aulas e contar com materiais adicionais que me ajudem a imaginar o que pode vir Há que se notar, entretanto, que a a ser aquela obra. Talvez por isso o curadoria de artistas, coreógrafos e interesse em escrever sobre intérpretes deixa a desejar quando a Co(te)lette, vídeo de 2007 da peça busca avança sobre nomes de coreografada pela artista belga Ann expoência nacional. Num país de Van den Broek. tantos polos de dança, e produções 64


Co (te) lette – 2007.

Peça coreografada pela artista belga Ann Van den Broek; interpretada por Theodossia Stathi, Cecilia Moisio e Judit Ruiz Onandi; música montagem e mixagem de Arne Van Dongen e Yves De Mey.

mulher pelo homem, encontra agora a força sexual da escrita feminina. Co(te)lette explícita o olhar masculino de subjugação e penalização das vertigens sexuais provocativas da mulher. Tenho essa sensação quando depois de um tempo de movimentos carregados por uma força sexual as interpretes passam a agredir o próprio corpo e também o corpo nu de uma delas. São fortes tapas nas pernas, nas nádegas, e próximo aos seios, e no caso da mulher nua a direção das agressões tende ao chão; elas furam a quarta parede direcionam essas feridas no corpo feminino ao público, disparando assim questões que acenam o inconsciente de uma sociedade patriarcal: repressão aos desejos da mulher, símbolo de castração.

Co(te)lette é um título que me intriga. Seu uso corriqueiro denomina um tipo de corte de carne na região da costela. Dividido pelos parênteses, Co(te)lette remete também à Colette, o sobrenome da atriz e escritora Sidonie-Gabrielle Colette. Nascida em 1 873, esta mulher desafiou os conceitos de “decência” da época causando grandes escândalos quando, por exemplo, deixou um de seus seios a mostra em uma apresentação ou quando simulou movimentos de um ato sexual em uma de suas performances. Seus Seriam os homens os únicos trabalhos mesclam ficção e autobiografia, e afirmam aspectos da detentores do furor sexual? Ou, arremessada na perturbação e sua vivência sexual feminina. confusão que a coreógrafa me coloca: seria a peça um investimento Ann Van den Broek cria assim um jogo de palavras que é também uma crítico na mercantilização desses corpos femininos, expostos pelas afirmação sobre políticas do corpo mídias desejantes de corpos feminino. A costela, cuja atribuição bíblica se torna o mito de criação da normativos? A coreógrafa joga com a 65


Revista Espaço_1

ambiguidade das vulnerabilidades da imagem das mulheres em cena e suas autonomias ao prazer, já que certos gestos dão um tom irônico à dança. Por exemplo, quando elas gesticulam convidando-nos com as mãos ao mesmo tempo em que não permitem qualquer participação em seus atos. Fato é que em co(te)lette a sexualidade é insistentemente ativada pelos corpos femininos. E é da pelve que parte a composição dos movimentos que, intensos, ritmados e demorados fazem os quadris de Theodossia, Cecilia e Judit embriagarem o resto de seus corpos com uma dança que principia o estado de transe. A repetição prolongada parece incitar que elas sigam em direção ao esgotamento físico como plano de fluxo entre o desejo pelo gozo e a forte pressão sexual feminina. O espaço dessa dança enreda o corpo em uma atmosfera sexual que amplia as discussões quanto ao estatuto do corpo, sinalizando que o erotismo, como prática performativa, é um exercício tenso que segue pelo desejo de descongestionar o

pensamento massivo de censura. É sabido que e as criações brasileiras têm sofrido duros golpes sempre que levantam expressões que desagradam aos moralistas. O caso do artista paranaense Maikon Kempinski, preso quando ficou nu em uma apresentação artística em julho de 201 7 é um dos mais recentes. Antes de fechar essa conversa é necessário informar a/o leitor/a que o vídeo compartilhado no site, corresponde ao registro da performance ao vivo, enquanto sua sinopse descreve a versão adaptada para o cinema - The Co(te)lette film, dirigida pelo britânico Mike Figgis. A rede Ubu e seu voluntariado tem, por vezes, este outro tipo de instabilidade nos compartilhamentos de seus arquivos. Cabe a nós, espectadores virtuais, mantermo-nos ativos em visitações atentas. (Jaqueline Tasma)

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Escuda (201 7), de David Abreu.

Foto de Denilson Siqueira.


PARA SABER MAIS ENTREVISTA DCO, revista de edição binacional Argentina-México. O artículo referido está disponível em: https://luchiarusso.files.wordpress.com/201 8/05/la-cuarta-mirada.pdf ALI ONDE VEJO DANÇA SILVA, Renata de Lima. O corpo limiar e as encruzilhadas: a Capoeira Angola e os Sambas de Umbigada no processo de criação em Dança Brasileira Contemporânea. Tese de Doutorado. UNICAMP, 201 0. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/283967/1 /Silva_RenatadeLima_D.pdf. LAB CRITICA ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 201 4. POR AMOR AO MUNDO – Um Encontro Com Hannah Arendt. Espetáculo teatral; Dramaturgia – Marcia Zanelatto; Direção – Isaac Bernat; Idealização e Realização – Marcia Zanelatto/ Transa Arte e Conteúdo. Rio de Janeiro, jul. 201 6. CITAÇÃO LEPECKI, A. Coreo-política e coreo-polícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 1 3, n. 1 ,2, p. 041 -060, jan. 201 3. NEUPARTH, S. Movimento. Lisboa: edições c.e.m - centro em movimento, 201 4. RANCIÈRE, J. O dissenso. In: A crise da razão”. Adauto Novaes (Org.). São Paulo: Companhia das Letras,1 996. TODD, M. E. The thinking body. Londres: Dance Books Ltd, 1 997. ENSAIO VAINER, L. O desejo faz correr, flui e corta: carta a Deleuze e Guatarri in: Exercícios para despoluir o amor. Trabalho de conclusão de curso em Licenciatura em Dança. UFRJ, Rio de Janeiro, 201 6. ACERVO DIGITAL GOLDSMITH, K. An Open Letter to the Frameworks Community. Outubro, 201 0. Disponível em: http://www.ubu.com/resources/frameworks.html acesso em 04/11 /201 7 __________. UBUWEB WANTS TO BE FREE, Open Letter. 2001 . Disponível em: http://wings.buffalo.edu/epc/authors/goldsmith/ubuweb.html acesso em 04/11 /201 7 __________. Sobre UbuWeb. Disponível em: http://www.ubu.com/resources/ acesso em 24/09/201 7 __________. Entrevista a Alexandre Cassati. Revista Soma, nº 27, Kultur Studio, abril de 201 2. Disponível em: http://issuu.com/maissoma/docs/soma27/1 3 acesso em 04/11 /201 7 __________. Entrevista a John Jourden. Archinect Features. Disponível em: https://archinect.com/features/article/59857 // SILVA, R. J. B. A EXPERIÊNCIA UBUWEB: ARTE E ARQUIVO NA INTERNET. UFSC. 201 4. Disponível em http://biblioteca.portalbolsasdeestudo.com.br/link/?id=51 51 6265 acesso em 24/09/201 7 The Co (te) lette – registro:http://www.ubu.com/dance/broek_colette.html Sobre Sidonie-Gabrielle Colette:https ://www.britannica.com/biography/ColetteProduções de Ann Van den Broek: http://www.wardward.be/

SandWalk with me (201 2/1 3) 68

de Marcela Levi e Lucía Russo. Foto de Thales Leite.



Revista Espaço n.1 _ ano1 _ agosto 201 8. edição gratuita.

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