RevistaDeLetraEmLetra vol5 n2 2018

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pessoal em conflito com a responsabilidade social. Tal como afirma Moss (1968, p.69): “A pergunta de Os desajustados [The Misfits, obra de Arthur Miller] é, portanto, a que ocorre em outras obras: como se pode reconciliar o desejo de independência com a necessidade de cooperação comunitária?”. Nesse sentido, embora A View tenha um lado psicológico forte, em que teorias Freudianas (como o próprio mito de Édipo, por exemplo) possam ser usadas em sua análise9, há também, na peça, o conflito trágico entre indivíduo e sociedade, assim como questões sociais e históricas que podem ser discutidas. Este conflito indivíduo-sociedade, de certa forma, é um dos pilares do drama burguês, e também é parte, por exemplo, da obra de Ibsen. Este dramaturgo norueguês do século XIX tentara discutir problemas sociais por meio desta forma dramática, com heróis que estavam próximos da classe burguesa. No entanto, a proposta de análise social ibseniana encontrava certas limitações no drama, uma vez que, entre outras coisas, tal gênero procurava preconizar a ausência de referências explícitas a questões externas ao palco. Deste modo, apesar de Miller se inspirar sobremaneira na obra de Ibsen para suas criações10, o dramaturgo estadunidense não fala de burgueses que aspiram a algo que não conseguem; em A View from the Bridge, Miller representa operários que também aspiram a algo, neste caso, o estivador Eddie Carbone. Isto fez com que o autor norte-americano não utilizasse o drama, mas sim a tragédia. Aliás, um dos elementos que reconhecemos como trágico nesta peça é o coro, representado na figura do advogado Alfieri. A tragédia possui alguns elementos épicos que o drama burguês, por exemplo, procurava evitar. A presença do coro é um exemplo de traço do gênero épico presente nas tragédias, já que sua função era a de narrar e comentar o que ocorria no palco, associando as ações à discussão de assuntos da polis. Rosenfeld afirma que “o coro medeia entre os indivíduos e as forças cósmicas, abrindo o organismo fechado da peça a um mundo mais amplo, em termos sociais e metafísicos” (2006, p.40). Burian (1997) também ressalta essa função do coro como uma “ponte” entre o mundo exterior e o palco: O coro, sobretudo, constitui não somente uma personagem coletiva posicionada numa relação definida com as outras personagens da peça, mas também é um intermediário entre o mundo da peça e o público cuja perspectiva ele ajuda a modelar11. (p.198) O que é curioso é que o coro, em geral, era composto por um grupo de cidadãos, liderados por um corifeu, que, de certa forma, representavam a cidade-estado grega, ou seja, a polis. Em A View from the

Bridge, este coro é composto por um só homem: o advogado Alfieri. Isto pode ser um sintoma do individualismo que o mundo contemporâneo enfrenta, já que, como muitos argumentam, não há a coesão social que havia em épocas anteriores. As grandes cidades de hoje (de certa forma, descendentes da polis grega) acabam se tornando conglomerados de gente que buscam muito mais objetivos isolados do que ideais compartilhados por algum tipo de coletividade. É o sintoma do homem moderno, sozinho e sem pertencimento a uma comunidade. 9

Cf. Murray (1967), que, no capítulo dedicado à peça, aponta esta possibilidade de análise psicológica de A View.

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Nathan (1953, p.108), diz que Strindberg está para O’Neill na análise de tensões que se escondem por baixo das “emoções superficiais mais calmas” de homens e mulheres, assim como Ibsen está para Miller na busca de aspectos sociológicos do homem – embora, vale ressaltar, Miller constantemente afirma em seus ensaios a necessidade de conciliação das esferas psicológicas e sociais na análise do homem comum.

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“The chorus, after all, constitutes not only a collective character standing in a defined relation to the other characters of the drama, but also an intermediary between the world of the play and the audience whose perspective it helps to shape" (tradução minha).

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