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2. BIOGRAFIA

Biografia:

Anna Kossak: uma jornada inspiradora da resiliência à transcendência

Foto: Site Homeopatia Explicada, de Anna Kossak.

A professora e médica homeopata brasileira Anna Kossak Romanach nasceu em 1929, em Três Barras, município do Estado de Santa Catarina, uma aldeia minúscula repleta de sobrados de madeira com varandas, armazém e correio, bem ao estilo faroeste norte-americano. Sem escola ou hospital, os moradores contavam com uma parteira voluntária e com uma estação de trem que ligava a pequena vila a Curitiba e a Porto Alegre, quando deixar Três Barras se fazia uma necessidade.

Naquela época, reinava no município a companhia Southern Brazil Lumber Colonization, ou simplesmente Lumber - como era conhecida popularmente -, subsidiária da Brazil Railway Company, uma empresa norte-americana de serraria cujo objetivo era explorar terras em São Paulo,

Rio Grande, Santa Catarina e Paraná. A companhia chegou a precisar de um jornalista fluente em inglês e foi um primo de Anna Kossak quem ganhou o cargo. Mais tarde, também foi ele quem 25

convenceu o pai dela, Felippe Kossak, então casado e residente em Curitiba, a tentar uma nova vida como operário na mesma empresa.

Com o tempo, o pai de Kossak foi promovido para o cargo de perito experiente, responsável pelo manuseio de longos cabos de aço que arrastavam os troncos de pinheiro em direção a guindastes enquanto ferrovias eram alongadas, e os acampamentos de operários, transloucados. Sua esposa, Elena Kossak, se ocupava de cozinhar, fazer pães, costurar e cumprir com tarefas domésticas.

Nessas condições nasceram sete filhos, dos quais apenas quatro sobreviveram. Dois deles, Wenceslau Kossak, 12 anos, e João Kossak, 10 anos, foram levados para Curitiba por uma tia para serem alfabetizados, deixando Anna, ainda bebê, com a mãe e sua irmã Olga, de 4 anos.

Durante a infância, Anna Kossak se divertia arrastando latas vazias furadas que, dotadas de brasas fumegantes, imitavam locomotivas. À tarde, observava o pôr-do-sol com Olga. Então veio a necessidade de mudar de vida. Quando Olga completou oito anos – sem ser alfabetizada –, seu pai comprou uma chácara nos arredores de Curitiba, além do bairro Bigorrilho. Dos irmãos homens, o mais velho, Wenceslau, com talento perceptível para mecânica, preferiu permanecer em Três Barras, e o outro, João, foi premiado com uma bolsa de estudos e viajou para a Europa.

Anos depois, um tio da futura homeopata passou a dividir a residência com ela e sua família. Segundo Kossak, ele era diferente, culto e passou a amar as sobrinhas.

“[Ele] sabia incentivar e instruir. Opinava sobre as melhores escolas e discutia assuntos desde geografia até a Primeira Grande Guerra... Antes de sair para o trabalho, durante a primeira refeição, ele inteirava minha mãe sobre os principais acontecimen-

A estadia na chácara durou cinco anos e, com palavras da própria Kossak, era “uma ilha tranquila em meio a um inferno”.

Diante da propriedade havia moradias de oito irmãs, cujos maridos alcoólatras transformavam a área num palco de escândalos, palavrões, brigas, facadas e pauladas aos fins de semana. “A polícia era constante. A miséria, chocante”, conta Kossak. “Grudada ao portão de minha casa eu a tudo assistia, horrorizada. Não entendia a razão de tanta desgraça dos filhos maltrapilhos e das esposas espancadas por transviados. Eu sofria vendo e desejava poder fazer algo para evitar aquilo”.

Mas o que ela poderia fazer? Estudar? Trabalhar? Havia uma forma de fazer as bebidas alcoólicas desaparecerem?

Tais indagações, vindas de uma criança que já semeava a empatia que, futuramente, seria colocada em prática em níveis mais complexos ao assumir a profissão de médica, eram constantes na mente da pequena Anna, que observava o cenário além dos portões de seu lar como “um filme de misérias materiais e morais, de pessoas vivendo como animais, crianças andrajosas e esfomeadas”. Uma vez que as deficiências eram várias, sob todos os aspectos, e “médico” era uma palavra completamente desconhecida naquela região.

Enquanto isso, Anna Kossak também sofria com crises de otite, chegando a sentir dores insuportáveis de ouvido. Nessas ocasiões, sua mãe ia até uma farmácia homeopática e de lá trazia um vidro com líquido transparente, cujo conteúdo lhe trazia alívio quase que de imediato:

“Tal crise de dor se repetiu várias vezes, sendo sempre superada pelo tal medicamento homeopático, até desaparecer para sempre”, assinala Kossak, acrescentando que este foi seu primeiro contato com a Homeopatia.

Seu pai seguia trabalhando na Lumber e sua mãe passara a costurar para uma loja de artigos masculinos, vez ou outra contando com a ajuda da pequena Anna para pregar botões, bainhas de calças e fazer caseados. Após o processo de acabamento, era hora de passar a peça de roupa à ferro e então fazer a entrega dos pacotes, que continham de dez a 20 calças. “Minha mãe [os] carregava à loja, ora apoiando o pacote no quadril, ora na cabeça. O ponto de ônibus era distante. Assim, aprendi a trabalhar e trabalhar... E a refletir”, aponta Kossak.

Com o propósito de também alfabetizarem as duas meninas, os pais de Kossak matricularam a ela e Olga num colégio de freiras. De acordo com a própria homeopata, o aprendizado foi deficiente tanto para ela quanto para sua irmã:

“Para o 3 º ano fui matriculada no alto do Bigorrilho, numa escola isolada. Sofri muito. Eu não conseguia entender nada e a professora me humilhava”, recorda Kossak. “Para o 4º ano fui matriculada no Grupo Escolar Dom Pedro II; eu estava atrasada em tudo e passei de ano com dificuldade”.

Neste ínterim, mais mudanças. Saindo o pai da Lumber, a família de Kossak deixou a chácara para residir no Bigorrilho, numa zona menos afastada do centro da cidade. Kossak, então, foi matriculada em outra escola, chamada Grupo Escolar 19, para fazer o 5º ano. Lá, ela se tornou a primeira aluna da classe e decidiu fazer o ginásio. Enquanto isso, sua mãe assumiu um armazém de secos e molhados e seu pai encontrava grandes dificuldades para conseguir um novo emprego.

“Meu pai trabalhou algum tempo na jardinagem da Prefeitura. Não demorou para que as companhias construtoras ficassem sabendo sobre suas habilidades frente à rotura de cabos de aço. [Então, ele] passou a ser bastante requisitado e ganhava bem”, destaca Kossak, logo antes de compartilhar que, anos depois, seu pai acabou falecendo de tétano após ferir um dedo durante o trabalho. A adolescência de Anna Kossak, segundo ela mesma, foi marcada “pelas misérias do mundo”. Acima de qualquer coisa, ela precisava de um emprego. Por isso, aprendeu datilografia muito cedo e decidiu fazer o ginásio - Ginásio Paranaense, Secção Feminina.

“Tive excelentes professores que valorizavam a mulher”, assinala a homeopata. “Dentre eles jamais esquecerei de Raul Gomes, professor de português e história do Brasil. Esse professor, com rosto desfigurado por acidente de arma, foi o maior patriota que já conheci. Sem o saber, ele me despertou para a realidade de que o mundo depende muito da participação da mulher”, complementa. Na infância, o sonho de Kossak era ser professora: “A ignorância e a pobreza da sociedade me apavoravam”, ela explica. Con26

“No dia da prova final, deparei-me com antiga colega que, constrangida, lamentava não poder aceitar um emprego de auxiliar na Gazeta do Povo, devido à oposição da família”, conta Kossak. “Ela estava a caminho da redação, então me dispus a acompanhá-la e me ofereci para o emprego”.

Como resultado, a futura homeopata começou a trabalhar como auxiliar de escritório: “O ambiente me agradava, me instruía e me desembaraçava. O chefe, Carlito, me ensinou [e educou] para jamais esbanjar as oportunidades e os minutos da vida”, assinala, mostrando que, no percurso da jornada profissional, todo conhecimento adquirido pode ser aproveitado de alguma forma, independente de qual seja o destino final.

Naquela época, Kossak também superava e ocultava um problema de saúde que, anos mais tarde, foi diagnosticado como Síndrome de Stein Leventhal, também conhecida como Doença dos Ovários Policísticos (DOP). A descoberta incentivou Kossak a fazer um curso científico à noite.

Decidida a cursar medicina, ela passou em 16º lugar entre os 100 aprovados na Universidade do Paraná e pagou por todo o curso com suas economias, trabalhando como secretária e complementando a renda com estágios em postos de saúde, laboratórios e hospitais.

Assim que Kossak recebeu o diploma do curso de Medicina, em 1953, seguiu para Paranaguá, município localizado no litoral do estado do Paraná, onde trabalhou como residente na maternidade local. “Tive uma estada feliz, plena de experiência e espiritualidade”, conta Kossak. “Mas, faltava algo mais”.

Durante uma visita a Curitiba, Kossak se encontrou com colegas paulistas que compreenderam seus anseios de aprimoramento e, assim, recomendaram que ela fizesse contato com um outro colega, ligado à Santa Casa de São Paulo. Como resultado, depois de dois anos de experiência clínica, Kossak passou a trabalhar e estudar na Santa Casa de Misericórdia da cidade, então discípula do Professor Ulysses Lemos Torres e presença constante na Segunda Clínica Médica de Homens do mesmo hospital.

“Frequentei o serviço de Anatomia Patológica e, mais tarde, a Clínica Médica de Ulysses Lemos Torres, onde cheguei a publicar três trabalhos na revista da instituição e onde me senti realizada”, compartilha a homeopata, que logo foi oficialmente designada como chefe responsável de uma enfermaria que contava com cerca de 35 leitos.

Em 1958, a Síndrome de Stein Leventhal começou a interferir na performance de Kossak e, por isso, ela procurou o serviço de ginecologia da Santa Casa. Lá, ela foi encaminhada para o professor e cirurgião Paulo Gorga, que informou que não havia tratamento para a doença, exceto por uma cirurgia de resseção parcial dos ovários com apenas um caso operado no Brasil e para o qual ainda não se tinham resultados ou base científica. “Acedi imediatamente servir de cobaia. Afinal, não havia alternativa. Tive sorte. Submeti-me à cirurgia e desde então tive uma vida de mulher normal”, aponta Kossak.

Mais um ano se passou e Anna já estava pronta para deixar São Paulo e retornar a Paranaguá. Contudo, ela recebeu um cartão que lhe recomendou procurar um agente político que estava nomeando pediatras a fim de preencher vagas em futuros Postos de Puericultura de São Paulo.

“Eu estava pronta para voltar, mas por que jogar fora aquela oportunidade?”, questiona Kossak. “Lá fui eu ao 11º andar de um prédio repleto de gente. Do elevador, me deparei com filas de pessoas, entre elas, [meus] colegas da Santa Casa.”

Porém, durante sua entrevista para o cargo, Kossak recebeu uma resposta chocante do entrevistador, que declarou que havia dado sua palavra de honra de que não nomearia mais mulheres porque elas “só davam dor de cabeça”.

“Chocada, respondi solenemente: Por minha causa, o senhor não vai faltar à sua palavra de honra. Então, me virei, saí e entrei no elevador”.

Eis que então o entrevistador reaparece diante de Kossak, dizendo que “havia gostado do seu jeito” e que ela seria nomeada.

“Não levei a sério o incidente”, conta ela, que permaneceu no cargo por 11 anos, tratando otites, atendendo gestantes, e ainda encontrando tempo para se especializar em dermatologia pela Sociedade Brasileira de Dermatologia em 1977; ser aprovada no Concurso de Livre-Docência em Clínica Homeopática pela Universidade do Rio de Janeiro e realizar um curso de especialização em Imunopatologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ambas em 1980; e para se formar como professora

Além disso, Kossak foi responsável pela criação da Unidade de Homeopatia no Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo, de onde foi diretora até 1991 e, no mesmo ano, publicou o livro “Homeopatia em 1000 Conceitos”, considerado um dos clássicos da literatura homeopática. “Levei sete anos para completar [o livro], conta a médica homeopata. “Eu [o] escrevi como gostaria que alguém tivesse escrito e, na 3ª e última edição, acrescentei um adendo com referências à atuação dos médicos homeopatas no Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo”, compartilha.

Nesse meio-tempo, Kossak continuou estágios e também passou a realizar palestras. Com tantos compromissos, é difícil de imaginar que ela conseguiria equilibrar a vida profissional e pessoal, no entanto, a dinâmica não foi tão difícil.

“A maioria dos esposos de médicas que conheci foram maridos cooperativos”, ressalta Kossak. “O meu marido, Salvador Romanach Zubietos, era espanhol. Formou-se em engenharia mecânica [...], orgulhava-se por ter contribuído com a construção de Brasília e, por seus serviços prestados à comunidade, recebeu título e medalha de Comedador. Ele sempre me incentivou e se orgulhava dos meus sucessos como se fossem dele”.

E os sucessos foram muitos. Em março de 2004, Anna Kossak foi homenageada com louvor pela Câmara Municipal de Curitiba, premiada com uma placa pelo Serviço Municipal de Homeopatia de Curitiba, e homenageada pelo Simpósio Nacional de Pesquisas Institucionais em Homeopatia de São Paulo; já em 2018 recebeu uma homenagem especial na solenidade de abertura do 73º Congresso da Sociedade Brasileira de Dermatologia, onde também ganhou o prêmio de melhor dissertação/tese.

Atuando como professora de Homeopatia, ela também passou por diferentes instituições, como a Universidade do Rio de Janeiro, em 1980, e a Fundação Faculdade Regional de Medicina de São José do Rio Preto, em São Paulo, em 1990.

Quando perguntada sobre qual seria sua ocupação preferida, clinicar ou ensinar, Anna Kossak preferiu não se limitar a uma opção: “O ensino representa transmissão e ampliação de experiências conquistadas, e a clínica representa conquista e ampliação do conhecimento. O ensino permite expandir o conhecimento da experiência, representa sabedoria conquistada. Experiência e ensino se complementam”, afirma a homeopata.

Hoje aos 92 anos, Anna Kossak vive uma vida simples e não atua mais como homeopata: “Meu corpo não é mais aquele. Minha Memória também [não]”, relata ela, numa bela lição de humildade.

Mas, olhando para trás e revisitando sua jornada, ela repara em muitos momentos que até hoje lhe dão orgulho e satisfação. Entre eles, Kossak dá destaque para o encontro com seu marido espanhol, companheiro de todas as horas, para o processo de introdução da Homeopatia no Hospital Municipal de São Paulo, a publicação da obra “Homeopatia em 1000 conceitos”, o lançamento de seu site Homeopatia Explicada, todos os seus trabalhos escritos sobre alcoolismo e o preparado homeopático Sulfuricum Acidum como sugestão de tratamento, e a apresentação de suas teses em outros países, como Colômbia, San Salvador, Itália e Grécia.

Os anos vividos também dão a Kossak a experiência necessária para aconselhar estudantes de Homeopatia e homeopatas que estão começando a trabalhar na área. Assim, ela oferece dicas exclusivas para os leitores da Revista de Estudos Homeopáticos na lista abaixo:

• Importante e gratificante é o emprego da Homeopatia em familiares; • Estude prioritariamente os medicamentos policrestos ou de uso mais frequente. Estude, paralelamente, a toxicologia; • Organize fichários adequados para medicamentos, eczemas, para pacientes, para tudo. Eles servem para consultas e para viabilizar futuros trabalhos; • Não propague vantagens homeopáticas aos colegas alopatas. O intercâmbio simplesmente acontece e de forma espontânea; • Não se faça homeopata para ganhar mais dinheiro; • Visite e conheça um laboratório homeopático; • Estude uma patogenesia diariamente durante a semana e duas aos domingos; • Toda ficha clínica pode ser valiosa para uma tese futura. Todo caso atual pode se tornar valioso e merece cautela.

Em suma, uma vida inspiradora e profícua, a quem rendemos homenagem nesta décima primeira edição da Revista de Estudos Homeopáticos.