Continente #185 - Nise da silveira

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NISE DA SILVEIRA

# 185

Terapia com arte

#185

A MÉDICA ALAGOANA QUE REVOLUCIONOU O TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO NO BRASIL

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CONTINENTE MAI 16

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Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:

PROGRAMAÇÃO

maio e junho

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco

2016

Seguindo com a programação musical do Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco, maio e junho têm grandes feras da guitarra e novidades da música pernambucana e brasileira.

THIAGO PETHIT 07/05 • SÁBADO• 17h

MIKE MORENO 14/05 • SÁBADO • 17h

ROGÉRIA 28/05 • SÁBADO • 17h

GUSTAVO RIPA 04/06 • SÁBADO • 17h

BOLE BOLE 18/06 • SÁBADO • 17h

QUINTETO ARRAIAL 25/06 • SÁBADO • 17h

RENATA ROSA 21/05 • SÁBADO • 17h

DANIEL MURRAY 11/06 • SÁBADO • 17h

PATROCÍNIO

PRODUÇÃO

APOIO

SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. REALIZAÇÃO

INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sáb e dom 14h as 17h


MAIO 2016

MARCOS MICHAEL

aos leitores Em tempos de luta antimanicomial no Brasil, o legado de Nise da Silveira (1905-1999) segue não só vivo, como imprescindível para pensar o cuidado com os transtornos psiquiátricos neste mundo. Não estamos diante apenas de um problema individual a ser tratado cientificamente, mas de uma questão social, cultural e emocional com a qual temos que lidar. Por isso, a chegada agora de filmes, livros e peças teatrais sobre o trabalho da psiquiatra alagoana que não parou de sonhar diz respeito a todos nós, e é nossa reportagem de capa, assinada pelo jornalista Marcelo Robalinho. Com a atriz Glória Pires no papel principal, o longa Nise – O coração da loucura, de Roberto Berliner, é certamente a obra de maior alcance neste cenário, em cartaz no circuito comercial desde abril, depois de rodar festivais. A arte e Nise, aliás, têm tudo a ver. Foi através da criação artística que ela desviou o destino dos internos do Centro Psiquiátrico Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, ao dar-lhe outras possibilidades que não tratamentos severos como a lobotomia e o

eletrochoque, comuns à sua época. Nise era rebelde e passava sua rebeldia adiante em prol da saúde de seus pacientes, sobretudo esquizofrênicos. De forma intuitiva, ela seguiu contra a maré, criando, no Pedro II de 1946, um espaço de vanguarda para atividades terapêuticas e trabalhos manuais, como pintura, desenho, modelagem, jardinagem, marcenaria etc. O que havia nela faltava em seu entorno: afeto, sensibilidade, amor ao próximo, elementos tão importantes quando lembramos a dimensão do sofrimento da mente. “A terapêutica ocupacional que procurei adotar era de atividades expressivas que pudessem dizer algo sobre o interior do indivíduo e, ao mesmo tempo, falar das relações deste com o meio”, disse ela ao jornal O Estado de S. Paulo em 1987. Para Glória Pires, que concedeu entrevista exclusiva à Continente, Nise foi “a personagem mais completa” que já interpretou. E é interessante notar que o legado de Nise não foi apenas para a medicina ou a psicologia, mas para a própria arte. Boa leitura!


sumário Portfólio

Carlos Penna

6 Colaboradores +

7 Cartas

8 Entrevista

Continente Online + Expediente Beth Carvalho Sambista carioca fala com exclusividade à Continente no mês em que celebra 70 anos de vida

18 Balaio

O legado da arquiteta iraquiana Zaha Haddid

36 Conexão

Os direitos e deveres das máquinas em uma sociedade cada vez mais robotizada

48 Viagem

Londres Capital inglesa contabiliza 8,6 milhões de habitantes como a marca incessante de sua paisagem

54 Sonoras

Pet sounds Disco dos Beach Boys, marco na história da música pop, completa 50 anos

65 Visuais

Jovem designer mineiro tira da arte contemporânea a inspiração para criar suas joias e semijoias, que nascem de uma perspectiva crítica incomum ao setor

12

Gerda Wegener Conhecida como a companheira da trans Lili Elbe, artista dinamarquesa deixou obra de vanguarda

70 Matéria

corrida

José Cláudio Segundão

72 Palco

Nordestinos Alexandre Lino recria a vida de imigrantes como ele a partir de histórias de cartas e e-mails

80 Entremez

Ronaldo Correia de Brito Já ninguém lê

88 Criaturas

Miles Davis Por Raul Souza

Cardápio Casquinho

A mais saborosa iguaria com carne de caranguejo que circula pelo Recife tem autoria: Margarida Nunes, que transformou receita familiar em referência na cidade

60 CAPA ILUSTRAÇÃO Mauricio Planel

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Capa

Especial

Símbolo da luta pela humanização da psiquiatria brasileira, a rebelde alagoana vira tema de filmes, livros e peças teatrais voltados ao grande público

Um álbum inédito e um documentário estão entre as últimas criações ligadas à vida do músico pernambucano, que faleceu no último dia 9 de março

Leitura

Claquete

Carambaia edita coleção de três volumes com crônicas, folhetins e textos teatrais do jornalista carioca, que escreveu com maestria sobre o Rio da belle époque

Festival comemora 70 edições, mantendo-se como o mais influente da área. Neste ano, o pernambucano Kleber Mendonça Filho está na mostra oficial com Aquarius

Nise da Silveira

20

João do Rio

76

Naná Vasconcelos

42

Cannes

82

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Mai’ 16


colaboradores

Marcelo Robalinho

Duda Martins

Michelle Assumpção

Luiz Joaquim

Jornalista, mestre em Comunicação, com estudos sobre comunicação e saúde

Jornalista, diretora e atriz da Dispersos Cia. de Teatro

Jornalista da área de artes e cultura

Jornalista, mestre em Comunicação e coordenador do Cinema da Fundaj

E MAIS Clarissa Gomes, jornalista e fotógrafa de viagem. Flora Noberto, jornalista. Guilherme Carréra, jornalista, doutorando em Artes e Mídia na Universidade de Westminster, em Londres. Bárbara Buril, jornalista e mestranda em Filosofia na UFPE. Helder Ferrer, fotógrafo. Hélia Scheppa, fotógrafa. Rafael Medeiros, fotógrafo. Rafael Teixeira, jornalista, crítico de teatro e autor do blog Espectador Privilegiado. Raul Souza, ilustrador. Yellow, designer, músico, mestre em Ciências da Linguagem e professor de jogos digitais.

NISE DA SILVEIRA

NANÁ

Para produzir nossa matéria de capa desta edição, o jornalista Marcelo Robalinho e o fotógrafo Marcos Michael estiveram mais de uma vez em visita a Engenho de Dentro, onde puderam acompanhar e registrar o trabalho realizado com os pacientes. No site da revista, oferecemos material extra desta reportagem, como uma galeria de imagens feitas por Michael no local e reproduções de obras históricas do Museu de Imagens do Inconsciente, além de matéria sobre espetáculos teatrais realizados a partir dos estudos de Nise da Silveira, como Pulsões (foto) e Nise da Silveira: Guerreira da paz.

Depois de ler o especial sobre o percussionista Naná Vasconcelos, entre em sintonia com sua música pelo vídeo de Africadeus, no qual toca, ao vivo, seu berimbau na Roma de 1983.

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BEACH BOYS Como complemento à matéria sobre os 50 anos de Pet sounds, assista, no nosso canal do YouTube, ao The lost concert, apresentação do início da carreira dos Beach Boys.


cartas

EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR

DIVULGAÇÃO

Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses

EDIÇÃO #184 Parabéns à Continente por estar sempre à frente, com as pautas mais vibrantes e a delicadeza e cuidado que lhe são tão peculiares na escolha das pautas. Essa edição, para mim, é especial porque inspira as melhores sensações: a necessidade do silêncio para uma vida plena, a música que inclui todos os sentidos e uma saudade muito pessoal de Cuba sempre alegre, vibrante, mesmo com a incerteza do futuro que imaginavam não chegar. Gracias, siempre! ERIKA PIRES RAMOS SÃO PAULO – SP

HUMOR Fiz questão, como nos velhos tempos, de ir a pé pra banca e comprar a Continente de abril, antes do meu exemplar chegar pelos correios. Parabéns a Débora Nascimento pela matéria. Boligán a elogiou bastante, pela inteligência e pelas perguntas saírem do “lugar-comum”… Quando soube que você faria a

matéria, fiquei tranquilo. Sabia que o humor estava em boas mãos. SAMUCA RECIFE – PE

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO

O SILÊNCIO Sou voluntária da Arte de Viver desde 2008 e já tive a oportunidade de perceber, aqui no Brasil e em outros países, o benefício que as técnicas de respiração inventadas por Sri Sri Ravi Shankar deixam nas pessoas que se dispõem a aprendê-las, praticá-las e compartilhá-las. Fiquei muito feliz em constatar, na leitura do especial sobre silêncio na Continente #184, que a matéria acolheu as reflexões do Swami Atmanand sobre a relevância da meditação, da respiração e da ioga para atingir algum tipo de quietude nos dias corridos e perturbados de hoje. O silêncio é fundamental nas nossas vidas e o caminho para se chegar a ele passa pelo que há de mais íntimo e sagrado em todos nós. JANUÁRIA QUÉRETTE RECIFE – PE

Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Olívia Mindêlo (repórter) Maria Helena Pôrto (revisão) Maria Luísa Falcão, Marina Moura, Ulysses Gadêlha e Victória Ayres (estagiários) Olivia de Souza (repórter - Continente online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se

compromete a publicar todas as cartas enviadas à redação. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone.

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 - (81) 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

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BETH CARVALHO

“Antes de tudo, sou uma cidadã”

No mês em que completa 70 anos, sambista carioca fala sobre o começo da carreira, a música pernambucana, o futebol, a Mangueira e a atual crise política do país TEXTO Duda Martins

CON TI NEN TE

Entrevista

“O Brasil não está me deixando trabalhar”, soltou na lata a sambista Beth Carvalho, quando questionada sobre como iria comemorar seus 70 anos de idade, completados no dia 5 de maio. “Sei que quero fazer um DVD, mas ainda não tive tempo para pensar em nada.” A crise política que o país está enfrentado é a responsável por atrapalhar os planos de Beth, que, nos últimos tempos, dedica a maior parte dos seus dias participando de manifestações. “Lula lá”, ela cadencia a fala e joga com as palavras como se estivesse compondo uma profecia: “Sei que quero Lula como ministro da Casa Civil e que em 2018 ele seja eleito”, disse à Continente, sem esconder o jogo. Além de politizada, entende de futebol (se afirma fã de Neymar), foi pioneira na figura de mulher sambista, uma das primeiras banjistas do Brasil e a primeira em vida a ganhar um enredo em sua homenagem no Sambódromo, segundo ela, “a maior emoção que um artista pode ter na vida”. Lançou nomes como Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e o grupo Fundo de Quintal.

Atualmente com 51 anos de carreira e uma discografia de 35 títulos, cinco DVDs e seis Prêmios Sharp, a cantora – que é filha de uma carioca com um piauiense – diz ter sangue nordestino, região que ama e para onde pretende voltar logo, quem sabe, para gravar um frevo com “aquele menino”, Maestro Spok e a sua orquestra. Ele ainda não sabe dessa pretensão. CONTINENTE Você teve uma forte educação política. Seu pai foi cassado e preso pela ditadura militar por ter pensamentos de esquerda. Isso se reflete no seu movimento artístico. No mês passado, você esteve em Brasília para participar de um encontro de artistas e intelectuais a favor da democracia, no Palácio do Planalto e, pouco antes deste nosso encontro, já confirmou presença em outra manifestação na UFRJ. Qual o seu prognóstico do momento político que estamos passando? BETH CARVALHO A gente não esperava que fosse tão violento. Eu conheci Lula, acompanho-o desde o Sindicato dos Metalúrgicos até a sua chegada em Brasília. Espero que o ministro da Casa Civil seja ele, e que em 2018 seja eleito. Estamos na luta

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pra isso. O governo atual foi eleito pelo povo, não se tem nada contra ela (Dilma), não se prova nada contra ela. O que eles estão querendo? CONTINENTE Você acha que os artistas brasileiros deveriam se engajar e se posicionar mais? O que falta para isso acontecer? BETH CARVALHO Quanto mais melhor. Antes de tudo, sou uma cidadã, e me preocupo como tal. Não posso obrigar ninguém a fazer o que acho certo. Sou de esquerda, nunca escondi. Meu trabalho é popular, feito com gente pobre, com gente dos morros. Eu acho importante participar desses movimentos porque penso que eles vão me ouvir. O povo não é burro, mas é importante que alguém comunique da forma certa. É importante existirem outras alternativas de mídia como TVs e rádios universitárias. Nós fazemos a nossa parte. Disseram que a nossa ida a Brasília e o Chico (Buarque) aqui no Rio (o cantor discursou em ato contra o impeachment de Dilma Rousseff no Largo da Carioca, Centro) surtiram efeito.


WASHINGTON POSSATO/ DIVULGAÇÃO

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CONTINENTE Na década de 1970, você já representava minorias, quando, por exemplo, fez parte do ABC do Samba, em que, junto a mulheres, como Clara Nunes e Alcione, foi considerada pela crítica como grande representante do samba no país. Como foi fazer parte disso? BETH CARVALHO Foi um momento muito bom, de crescimento do samba. Nós vendíamos muito disco, batíamos recorde, e as gravadoras faziam o que a gente queria. A gente mandava. Essa época era melhor que hoje, porque tínhamos respaldo

Fregonesi e Daniel Santos. Eles têm um grande futuro pela frente. CONTINENTE Você teve despertada a vocação pelo violão ao escutar pela primeira vez João Gilberto tocando e cantando Chega de saudade e Desafinado. Como se processou essa mudança para o samba de raiz? BETH CARVALHO Sempre gostei de música, desde criança. Escutava a Rádio Nacional tocando Dalva de Oliveira, Emilinha Borba. E, desde sempre, fui apaixonada por samba.

queria cantar alto, como no morro, e na zona sul isso não existia. O samba não era tão bem-aceito no meu bairro como é hoje. Eu era a única menina que sabia sambar na minha escola. Hoje todas as meninas da zona sul sabem sambar. Que bom, né?! CONTINENTE Chegou a conviver com João Gilberto? BETH CARVALHO Não. Mas uma vez fiquei muito feliz quando o ouvi dizer que eu era a maior cantora do Brasil. Era um exagero, mas fiquei feliz.

REPRODUÇÃO

CON TI NEN TE

Entrevista das gravadoras, existia loja de disco, e tínhamos controle do quanto vendíamos. Hoje não tem mais isso. CONTINENTE Você lançou grandes nomes do samba brasileiro: Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Arlindo cruz, Jorge Aragão. E é considerada madrinha de tantos outros. Da nova geração do samba, qual nome você gostaria de ter sido madrinha? BETH CARVALHO Continuo sendo madrinha de muita gente, recentemente gravei discos de dois jovens muito talentosos: Leandro

Foi a partir da bossa nova que me interessei por tocar violão, a partir da batida do João Gilberto, que era única. Era como se fosse um simplificado do samba, um tamborim. A bossa nova tinha tudo a ver comigo, porque era samba falando sobre a zona sul do Rio e eu sempre morei na zona sul. Era uma música que me comovia, me emocionava. Mas, depois de um tempo, comecei a achar muito fechado, intimista e até elitista. A cultura negra, popular, do samba aberto de raiz era a minha paixão. Eu

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CONTINENTE Você se considera responsável pelo surgimento do pagode carioca por conta do seu disco De pé no chão, de 1978? BETH CARVALHO Eu sou responsável por trazer novos compositores e novos músicos. Cheguei ao Cacique de Ramos (bloco de Carnaval do qual se tornou madrinha) e encontrei os meninos do Fundo de Quintal. Vi aquela maravilha, aquele talento, eles misturavam banjo, tantã, repique de mão, coisa que ninguém fazia. Por um ano, eu ia toda quarta-feira pra lá e eles tocavam todas as minhas músicas.


Os compositores ficaram sem lugar. Quando souberam que a Beth estava lá, todos foram. Eu tinha um repertório vastíssimo, e saía distribuindo músicas. Quando gravei o Vou festejar (primeira faixa do disco), todas as gravadoras quiseram copiar. No ano seguinte, lancei o Beth Carvalho no pagode. CONTINENTE Qual o seu conceito de pagode? BETH CARVALHO O pagode é a forma íntima de se chamar o samba e também a reunião dos amigos para tocar. CONTINENTE E o estilo musical que a maioria conhece por pagode hoje, o que você acha dele? BETH CARVALHO Esse é um outro tipo de pagode. Eles se utilizam de alguns elementos desse pagode que eu trouxe, mas este não tem a nossa filosofia. É mais vazio de letras e sentimentos. Não aprofunda, é mais para brincar. CONTINENTE Como foi a experiência de participar pela primeira vez do Festival de Montreux, na Suíça, e como é ser considerada um fenômeno da MPB no Japão, por exemplo? BETH CARVALHO Eu não esperava o sucesso que foi em Montreux. Pensei: um festival de jazz, o que eu vou fazer lá? Na Suíça, todo mundo dorme cedo, o show era às 2h da madrugada. Mas estava lotado. Quando acabou o show, tive que voltar ao palco três vezes. Fiz shows por lá mais duas vezes (1989 e 2005), na última ida, gravei um DVD. Eles adoram a nossa música. No Japão, é ainda mais louco, porque nunca fui lá e é um dos países onde mais vendo discos. Um disco meu chegou a vender 25 mil cópias. É impressionante. Mas sabia que os japoneses tocam e cantam bem o samba? Eles aprenderam a cantar até nossos “breques”, mas não sabem o que estão dizendo (gargalhada). CONTINENTE Reza a lenda que a Seleção Brasileira só vai bem quando há um jogador do Botafogo no time. Você compartilha dessa tese? BETH CARVALHO Eu compartilho totalmente (riso). Sou botafoguense e fiz até uma música para o meu time. Mas agora não estou acompanhando tanto. Mas, posso falar? Adoro o Neymar. Acho ele um gênio! Eu o escalaria para a minha seleção ideal.

CONTINENTE Você fez o Brasil inteiro cantar junto As rosas não falam, de Cartola. É a intérprete que mais gravou Nelson Cavaquinho. Qual desses dois gênios da música brasileira a encanta mais? BETH CARVALHO Eu amo os dois. Vou te confessar que tenho uma pequena preferência por Nelson, mas eu amo o Cartola. Não sei explicar, mas o Nelson era mais músico… São coisas diferentes, mas ambas geniais. CONTINENTE Em 1983, no disco Suor no rosto, você gravou um frevo do compositor pernambucano Luiz Bandeira, chamado Sedução. Como sambista, fale sobre essa experiência, e a sua ligação com a música pernambucana.

“Vou confessar que tenho uma pequena preferência por Nelson, mas eu amo Cartola (à esq.). Não sei explicar, mas Nelson era mais músico… São coisas diferentes, mas geniais” BETH CARVALHO Antes desse frevo, no meu primeiro disco de samba, eu gravei Evocação Nº 1, do Nelson Ferreira. Gravei porque escutava muito no Carnaval, quando era pequena. Meu pai é do Piauí, tenho sangue e alma nordestina. Me sinto muito à vontade com tudo o que diz respeito ao Nordeste. A música pernambucana, em especial, é muito rica: maracatu, ciranda, frevo, forró. Esse frevo que você citou, do Luiz Bandeira, ele me apresentou há muito anos na RCA, e eu resolvi gravar. Tem um outro dele que quero gravar. (Ela se esforça pra lembrar e depois de um tempo canta a letra toda de É de fazer chorar). Tem uma versão do maestro (ela se esforça novamente para lembrar), aquele menino, o Maestro Spok, que é maravilhosa. Eu amo a Spok Frevo Orquestra, acho eles demais. Quem sabe eu não gravo com ele esse frevo?

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CONTINENTE O que foi para você cantar Andança, música de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, no Festival Internacional da Canção, o FIC, em 1968. Essa apresentação representou um divisor de águas? BETH CARVALHO Sem dúvida. Eu fiquei conhecida no Brasil inteiro por conta dessa música. É uma toada. Ganhei o terceiro lugar no festival desse ano, mas foi como se tivesse sido o primeiro, tamanha a repercussão. Andança foi o título do meu primeiro LP, que lancei no ano seguinte. CONTINENTE Andança também é o nome do musical que você ganhou em sua homenagem, ano passado. BETH CARVALHO Sim, foi uma honra ser representada no teatro e ainda viva. Geralmente, quando fazem uma montagem sobre a vida e carreira de alguém, é em homenagem a quem já morreu. Eu ainda tenho tanto a viver e já ganhei uma peça de teatro! É linda! Todos são supertalentosos! CONTINENTE Como mangueirense da mais alta estirpe, como foi ver a escola do seu coração voltar ao pódio este ano? BETH CARVALHO Fiquei muito feliz e foi muito justo. A Mangueira estava linda. Sou mangueirense desde pequena. Aos sete anos, eu mesma decidi que seria da Estação Primeira de Mangueira. A minha mãe comprava um caixote para eu subir e conseguir assistir aos ensaios. Amo Carnaval. Eu fui o primeiro enredo vivo e a primeira campeã do Sambódromo, em 1984, na ocasião em que o Brizola o inaugurou. Depois disso, fui enredo de várias escolas. A maior emoção do artista é ser enredo da escola de samba. CONTINENTE Depois de se tornar madrinha de tantos talentos, quem você considera o seu padrinho musical? BETH CARVALHO Foi um camera man, da antiga TV Rio, Raul Alvarenga Porto. Ele me levou para o programa de Flavio Cavalcante, chamado Um instante, maestro. Era o programa de maior audiência e de fato era muito bom. Usei uma roupa emprestada da mãe dele, porque na hora eu não tinha uma boa para me apresentar, e cantei duas músicas no violão. A RCA me assistiu e me convidou para gravar. Ali começava a minha carreira.


LUIZA ANANIAS/DIVULGAÇÃO

Port 1


fรณlio


FOTOS: SERGIO DE REZENDE/DIVULGAÇÃO

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CON TI NEN TE

Portfólio

Carlos Penna

DA CRÍTICA À CRIAÇÃO TEXTO Olívia Mindêlo

Fuçando a construtora do pai, Carlos Penna descobriu materiais como… o

prego. Do objeto, ele partiu para experimentar diversos elementos, processos e conceitos. Hoje, o jovem designer de joias e semijoias nascido em Minas Gerais possui um trabalho reconhecido justamente por essa experimentação, cujo ponto de partida é também o de chegada: provocar o inesperado. O brinco de prego banhado em prata tornou-se o carro-chefe de suas criações, virando mercadoria fetiche e ganhando versões ao longo das coleções. O caráter da peça suscita agressividade e delicadeza ao mesmo tempo, tornando-a uma espécie de read-made das orelhas, para trazer aqui o conceito de Marcel Duchamp, que ecoa até hoje tanto na arte contemporânea, quanto em áreas afins, como o próprio design. O mineiro, aliás, diz buscar suas referências muito mais na arte contemporânea do que na moda ou mesmo no design. “A arte sempre me seduziu. As obras de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Louise Borgeois influenciaram a marca totalmente. Minha pesquisa é dentro desses trabalhos”, afirma Carlos Penna, cuja grife leva o seu nome e foi criada em 2013. As referências artísticas, contudo, não incidem de forma literal em suas criações, que transitam tanto por formas contidas, minimalistas, geométricas, quanto por texturas mais orgânicas, abstratas, rebuscadas. A coleção Plantae (2015), por exemplo, demorou seis meses para ser executada por meio de um processo escultórico de transformação de elementos orgânicos, como folhas, em objetos duradouros para compor os acessórios. Normalmente, Carlos faz pesquisa, estuda diferentes materiais, testa e prova até chegar ao resultado desejado. Existe a técnica, mas muito mais a descoberta, o deixar-se levar também pelo acaso. Aconteceu assim justamente com a série Plantae, que partiu da investigação das

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Páginas anteriores 1 MUTAÇÃO

Nova coleção do designerartista explora materiais como mangueira e cobre

Nestas páginas 2-3 ORGÂNICO

Exemplares da série Plantae partiram da pesquisa botânica para culminar em formas inesperadas

4 COLAR Referências contemporâneas e processo escultórico fazem parte de suas criações Próximas páginas 5-6 ESTILO

" Não consigo ser fofo", diz Carlos Penna, referindo-se às suas peças conceituais

TRANSFORMAÇÃO 7 Metais ganham movimento pelas mãos do mineiro


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FOTOS: DIVULGAÇÃO

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CON TI NEN TE

Portfólio

plantas e de conversas com uma amiga botânica até alcançar um tratamento que conferisse a materiais perecíveis uma qualidade mais permanente, como foi o caso das folhas. Sua nova coleção (primavera/ verão 2017) foi lançada no mês passado, na Minas Trend, feira de moda consagrada no país, e será apresentada ao Recife, pela primeira vez, no dia 7 deste mês. Mutação, como se chama, explora tramas, ninhos, casulo, além de materiais como borracha, mangueiras, metais (fio de cobre, ouro, prata). Apesar de o reaproveitamento dos materiais não ser uma questão da marca, ele tem na perspectiva crítica seu mote de criação. “Não consigo ser ‘fofo’. Em

Plantae, por exemplo, trabalhei a morte da natureza, a ideia de fragmento, corrosão. Em Mutação, a borracha, o petróleo. Tem que sempre haver a crítica, não só a estética”, diz o artista, embora considere também que seja importante deixar as ideias em aberto, “porque cada um pode criar o seu próprio conceito” ao entrar em contato com as peças, seja com o olhar, seja com o corpo. Outro conceito-base em Mutação, também de alguma forma presente nas coleções anteriores, é a confecção de peças que se transformam segundo o desejo do usuário – brinco, pulseira, colar, há sempre a ideia de versatilidade permeando as criações. Tendência? Para Carlos Penna, de

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certa forma, sim, e lembra as peças de roupa, como calças que viram bermudas, por exemplo, além do design japonês. Neste mês, ele chega ao Recife também para uma parceria com o bistrô Oma, no Parnamirim. No restaurante, ele apresentará uma coleção exclusiva, inspirada no cardápio da casa, que, por sua vez, criará pratos baseados nos produtos de Carlos Penna. Como diz o texto da nova coleção, “por acaso ou por vontade, estamos dispostos a nos transformar e somos livres para nos moldarmos da maneira que quisermos. Assim é a Carlos Penna, como um organismo vivo, em constante mutação”.


LUIZA ANANIAS/DIVULGAÇÃO

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

“TRETA” DE TALESE 1 Abril não foi um bom mês para Gay Talese. No dia 2, numa conferência na Universidade de Boston, ao ser questionado sobre quais autoras o influenciaram, o renomado jornalista e escritor respondeu: “Não conheci nenhuma escritora que eu amasse”. Indagado sobre a colega Joan Didion, argumentou que “as mulheres não escrevem uma boa não ficção porque não gostam de falar com estranhos”. Nas redes sociais, até Neil Gaiman se pronunciou contra o ícone do Novo Jornalismo e o Guardian publicou uma lista de 10 autoras que Talese deveria ler. No mesmo evento, numa conversa com Nikole Hannah-Jones, Talese perguntou à repórter como uma mulher negra havia conseguido o emprego no New York Times. Cinco dias depois, Dean Baquet publicou uma resposta que concluía: “Um dos meus momentos de maior orgulho como editor foi quando Nikole disse ‘sim’ e concordou em vir para o Times”. Sobre a celeuma na palestra, Talese justificou-se, pensou que era sobre mulheres jornalistas. Convenhamos: não ajudou muito. (Débora Nascimento)

A partida de Zaha Hadid Em 2004, a iraquiana Zaha Hadid se tornou a primeira – e única mulher até agora – a vencer o Pritzker de Arquitetura. Foi um marco a coroar uma trajetória de arrojo e coragem. Nascida em 1950, em Bagdá, Zaha estudou Matemática em Beirute e, aos 22 anos, migrou para a Inglaterra, onde se graduou na Architectural Association, em Londres. Os primeiros projetos grandiosos, em que buscava uma maior fluidez no desenho arquitetônico, vieram quando estava à frente do escritório Zaha Hadid Architects. A estação Vitra Fire em Weil am Rhein, na Alemanha (1993), o museu MAXXI, em Roma (2009), a Ópera de Guanghzou, na China (2010), e o centro aquático concebido para as Olimpíadas de Londres (2012) são algumas obras marcantes do seu legado arquitetônico. Em fevereiro deste ano, ela recebeu a Gold Medal, outorgada pelo Royal Institute of British Architects, o maior reconhecimento que o Reino Unido pode dar a um arquiteto. “Nossa heroína… como temos sorte em tê-la em Londres”, saudou sir Peter Cook, no ato da premiação. Um mês depois, Zaha Hadid faleceu subitamente, aos 65 anos, em um hospital em Miami, vítima de um ataque cardíaco, quando se recuperava de uma bronquite. Seu escritório divulgou que está com 36 projetos em desenvolvimento em 21 países, quatro deles são uma sede do porto na Antuérpia, uma galeria de matemática no Museu da Ciência em Londres, o terminal marítimo em Salerno e um centro de pesquisa sobre petróleo em Riad – com inauguração prevista para este ano. O destemor e a leveza do seu pensamento arquitetônico, pois, serão apreciados a despeito de sua triste partida. LUCIANA VERAS

CON TI NEN TE

Balaio CAPITU NAS GARRAS DA LEI

Em 2013, num julgamento sobre indenização por danos materiais e morais em caso de traição entre cônjuges, a 3ª turma do STJ usou o exemplo de Capitu, a mais polêmica personagem de Machado de Assis, que pode ter traído seu marido Bentinho com o amigo do casal, Escobar, resultando no nascimento de um filho, Ezequiel. O escritor deixou ao leitor a dúvida eterna sobre se houve traição ou apenas paranoia de Bentinho, mas a turma do STJ não deu moleza a Capitu: se o julgamento fosse pra valer, ela estaria livre de pagar por danos materiais, mas seria condenada a pagar R$ 200 mil de indenização moral a Bentinho, por ter escondido durante anos que o filho era de outro. Já o amante estaria livre do julgamento: a lei entende que uma terceira pessoa não é culpada, se o casal não cumpriu seu juramento de fidelidade. (Mariza Pontes)

A FRASE

“A consciência é o último ramo da alma que floresce; só dá frutos tardios.” Joaquim Nabuco, estadista

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“TRETA” DE TALESE 2 Além das questões racial e de gênero, Gay Talese se envolveu numa controvérsia com relação à ética jornalística. No dia 11 de abril, a revista The New Yorker publicou The Voyeur’s Motel, uma amostra de seu novo livro, resultado de uma investigação feita no começo dos anos 1980. Na época, o jornalista recebeu uma carta de Gerald Foos, um dono de um hotel que montou um sistema de espionagem de seus clientes. O homem queria contar com exclusividade sua história de 15 anos de voyeurismo. Após a publicação do capítulo,Talese foi criticado porque aceitou o convite para também espiar um casal e por não ter denunciado Foos, que omitira um assassinato. Segundo o gerente, o crime aconteceu depois que ele resolveu retirar os entorpecentes do quarto que um casal transformou num ponto de vendas de drogas. Na volta dos hóspedes, testemunhou a briga do traficante com sua namorada – o criminoso achava que ela teria vendido os produtos – e o estrangulamento da moça. Talese, que assinou um contrato para jamais revelar o nome do proprietário e nem o endereço do estabelecimento, falou sobre a nova polêmica: “Uma das coisas que os jornalistas mais respeitam é a proteção de suas fontes. Esperei 30 anos para conseguir que me liberasse o uso de seu nome. Se não tivesse conseguido, nunca teria escrito O motel do voyeurista”. Após 30 anos, todos os crimes prescreveram. O livro, que será lançado em julho, foi vendido, no mês passado, para virar filme pelas mãos de Sam Mendes. E o jornalismo, mais uma vez, vai dormir com sua consciência tranquila. (DN)

ARQUIVO

A morte está com a goitana

No meio musical, a morte está livre, leve e solta. Não contente em começar o ano carregando o camaleão inglês David Bowie para seus braços, ela tem metido a foice a torto e a direito, sem nenhum padrão de seletividade, ou melhor, está levando alguns dos melhores músicos e intérpretes que já ouvimos. Em março, num mesmo dia, ela levou o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos e o maestro britânico George Martin, para muitos o quinto beatle. Depois, foi a vez da cantora Natalie Cole e também a do mestre dos teclados Keith Emerson, do trio de rock progressivo Emerson, Lake and Palmer. E, quase no fim do mês passado, o baixinho invocado de Minnesota – não, não estamos falando de Bob Dylan, mas de Prince Rogers Nelson, mais conhecido como Prince, ou um símbolo que não tem cristão que consiga pronunciar. E, mais recentemente, Billy Paul (foto), que balançou os esqueletos de muitos casais na década de 1970, com sua música soul-chiclete. De vez em quando, o cantor aparecia pelas terras brasucas, inclusive aqui pelo Recife, cantando pela trilionésima vez Me and Mrs. Jones e a cover emblemática de Your song, de Elton John. Vamos fazer figa pelos artistas que nos restam. LUIZ ARRAIS

BRENNAND E O RAPPA

FENÔMENO DO FOFÃO

“Alguém disse, e deve ter sido alguém muito importante e inteligente, que a vida sem música seria um exílio total. Entre outras coisas, deve ser um antídoto contra a morte, aliás a arte, de uma maneira geral, é um antidestino.” A frase, dita pelo artista Francisco Brennand, abre o clipe oficial d’O Rappa para a música Uma vida só, lançada em março como parte do primeiro DVD “eletroacústico” do grupo, previsto para junho. O videoclipe foi gravado no silêncio e mistério da Oficina Cerâmica Brennand, no Recife, e pode ser conferido no YouTube. Bonita a filmagem, e bem curioso esse encontro entre o senhor das artes plásticas pernambucanas e uma música d’O Rappa que fala da história de um vendedor ambulante, cujo destino é “uma vida só”. (Olívia Mindêlo)

Na cidade de Ribeirão Preto (SP), há um fenômeno cada vez mais famoso na internet, compartilhado em memes ou vídeos no YouTube: a cultura dos “trenzinhos”. Esses caminhões coloridos transportam pessoas que pagam para serem levadas a um passeio pelas ruas da cidade. Não haveria nada de especial, se os caminhões não fossem acompanhados por adolescentes e jovens adultos vestidos de personagens conhecidos, como Popeye, Pica-Pau, Homem-Aranha e, o mais prestigiado de todos, Fofão. Dançam funk, samba e outros ritmos que requerem muito gingado. Os trenzinhos ficaram tão conhecidos, que um documentário está sendo produzido para retratar esse entretenimento peculiar da cidade paulista. (Victória Ayres)

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MAURICIO PLANEL

CON TI NEN TE

CAPA

NISE DA SILVEIRA

Humana, acima de tudo

TEXTO Marcelo Robalinho

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“Eu não paro de sonhar nem de fazer projetos. Muita gente pode dizer que, nesta altura da vida, em termos de tempo, você sonha ainda projetos? Posso sonhar projetos para o ano quatro mil. Posso sonhar.” Proferida pela psiquiatra Nise da Silveira durante uma premiação em 1990, a afirmação é simbólica e contundente para uma senhora de 85 anos de idade naquela época. Pequenina e aparentemente frágil, mas com “Lampião debaixo da pele”, como dizia, pela coragem e força dos seus ideais, Nise faleceu em 1999, aos 94 anos, tendo se tornado um dos principais nomes da psiquiatria brasileira, mesmo atuando na contracorrente do pensamento vigente, de forma meio marginal. Parte importante da história, do legado e dos sonhos dessa alagoana rebelde – que usou a arte e a livre expressão artística como principal ferramenta de recuperação da saúde mental de pacientes com transtornos e na humanização do tratamento psiquiátrico – está sendo contada agora ao grande público em filmes, livros e peças teatrais. Dos novos projetos, o de maior destaque é o longa-metragem Nise – O coração da loucura, em cartaz nos cinemas desde o final de abril. Estrelado pela atriz Glória Pires no papel de Nise (leia entrevista com a atriz a seguir) e sob a direção do cineasta Roberto Berliner, o filme rodou festivais no Brasil e no exterior antes de entrar no circuito comercial, ganhando prêmios de melhor filme, melhor atriz, melhor direção de arte e melhor trilha sonora. As duas últimas exibições em mostras fora do país ocorreram em Gotemburgo (Suécia) e Glasgow (Escócia), no começo deste ano. A Continente assistiu a duas sessões do longa no último Festival do Rio de 2015, quando foi oficialmente lançado e recebeu prêmio de melhor filme do Júri Popular. Com 109 minutos de duração, Nise – O coração da loucura é uma ficção baseada em fatos, ou drama biográfico, conforme classificou Berliner. Lançando mão de certa liberdade artística na abordagem da história de Nise e dos personagens em torno dela, o cineasta e uma equipe CONTINENTE MAIO 2016 | 21

de seis profissionais construíram alguns roteiros até chegarem à versão definitiva, que concentra o enredo entre meados dos anos 1940 e início dos 1950, na fase posterior à saída da psiquiatra da prisão. Afastada do serviço público durante oito anos sob a acusação de ser comunista, época da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937–1945), Nise voltou a trabalhar no antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, que havia sido transferido da Praia Vermelha, zona sul do Rio, para o Bairro do Engenho de Dentro, no subúrbio da zona norte carioca. No Pedro II, a psiquiatra tomou contato com novos métodos usados no tratamento de esquizofrênicos que haviam surgido no período em que esteve presa. Entre eles, a lobotomia, o eletrochoque, o choque de insulina e o cardiazol (convulsivante aplicado em injeções endovenosas). Revoltada, ela se recusou a utilizálos, demonstrando a rebeldia e a contestação que a tornaram peculiar. Em contrapartida, a negativa forçou-a a buscar alternativas à margem do processo. Por dois anos, trabalhou numa enfermaria do hospital tentando criar atividades diferentes, até que, em 1946, fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR). Com a finalidade de desenvolver a capacidade de expressão dos pacientes que frequentavam o espaço, Nise, de forma meio intuitiva, criou atividades terapêuticas, como oficinas de trabalhos manuais, jardinagem, marcenaria, sapataria, tapeçaria, esportes, teatro, desenho, pintura e modelagem, coisas que não existiam até então no serviço. Aos poucos, as atividades foram sendo oferecidas aos internos. Apesar de não concordar inteiramente com as opiniões da Nise, a direção do Pedro II deixou-a fazer o que quisesse, razão para o desenvolvimento da STOR. Dezessete atividades chegaram a funcionar no setor, contando com a presença de uma grande equipe de monitores. Uma enfermeira e assistente social, em especial, destacou-se décadas depois na música: a compositora e sambista Ivone Lara. Vivida no filme pela atriz Roberta Rodrigues, Ivone Lara integrou a equipe na década de 1940 e nela trabalhou por 30 anos, até se aposentar no final


CON CAPA TI NEN TE MARCOS MICHAEL

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da década de 1970, quando passou a se dedicar à carreira artística. O filme concentra-se apenas no seu trabalho ao lado de Nise.

AFETO NO TRATAMENTO

“A terapêutica ocupacional que procurei adotar era de atividades expressivas que pudessem dizer algo sobre o interior do indivíduo e, ao mesmo tempo, falar das relações deste com o meio”, contou Nise, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 1987. Guiada por um olhar sensível e bastante humano, ela percebeu a importância do afeto no tratamento dos esquizofrênicos, o que lhe fez incentivar nos monitores e estagiários que passaram pelo serviço o sentido do acolhimento para o sucesso da terapêutica, além de propor a incorporação dos cães e gatos à equipe, uma modalidade nova na época, em que os animais atuavam como coterapeutas no tratamento para criar pontes de comunicação com o esquizofrênico. A riqueza das obras produzidas no ateliê do Engenho de Dentro rendeu notoriedade artística aos internos – ou “clientes”, como Nise

“Procurei adotar atividades expressivas que pudessem dizer algo sobre o interior do indivíduo”, disse Nise costumava chamá-los, atraindo a atenção de artistas e críticos de arte. No plano terapêutico, isso levou-a a travar contato com o psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung (1875–1961), de quem obteve incentivo para desenvolver estudos sobre arquétipos e inconsciente coletivo a partir das pinturas dos pacientes. Essas análises podem ser conferidas nos livros Imagens do inconsciente, relançado em agosto do ano passado pela Editora Vozes (leia na página 24), e O mundo das imagens, este último ainda fora de catálogo e disponível apenas em sebos, a preços bastante altos. Atuando desde a inauguração do ateliê no Pedro II, a presença

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do pintor e artista gráfico Almir Mavignier (interpretado no filme de Berliner pelo ator Felipe Rocha) foi fundamental para incentivar os internos a projetarem em telas e esculturas as imagens que vinham dos seus inconscientes. A sensibilidade e o conhecimento sobre a arte de Almir fizeram a diferença no apoio à produção dos internos. “A experiência do ateliê mostrou que as fontes de criação se encontram dentro, e não fora do artista. Não trabalhavam como estudantes de belas-artes, que se encontravam ligados a uma arte tradicional. Essa tradição se deixa conhecer como ‘arte do consciente’, denominação que uso para representar a família internacional de artistas”, relatou Mavignier. Para ele, os pintores do Engenho de Dentro não se inseriam nesse grupo. “Suas obras fazem descobrir, na história da arte moderna do Brasil, um grupo de artistas incomparáveis, porque não foram influenciados por tendências estrangeiras”, explicou o pintor, em depoimento sobre o módulo


1 ENGENHO DE DENTRO Terapias com base na arte, criadas por Nise da Silveira, nos anos 1940, são mantidas na instituição

Imagens do inconsciente, na exposição Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento. Realizada em São Paulo, em 2000, a mostra contou com trabalhos dos artistas do Engenho de Dentro e foi eleita pelo público e crítica como um dos pontos altos da exposição. A partir do trabalho do ateliê do Engenho de Dentro, despontaram nomes de grande talento, como Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Emygdio de Barros, Fernando Diniz, Lucio Noeman, Octávio Ignácio e Raphael Domingues. Todos eles são retratados no filme. Para o papel de Adelina, foi escalada a atriz Simone Mazzer, um dos destaques na trama pela realidade impressa na atuação da personagem, quase sem falas. “Deu certo medo fazer a Adelina, porque a linha entre uma atuação mais realista e uma mais falseada é muito tênue, principalmente quando a gente interpreta uma pessoa louca. É incrível, porque os exageros são muito bem-vindos e é tudo possível. Porém, você tem de cuidar para que seja verdade, pois o ator tem de imprimir isso de uma forma muito profunda. Era desgastante achar essa via de passar uma realidade em cena. Como atriz, foi uma coisa engrandecedora, um mergulho muito importante na minha vida e um aprimoramento do meu ofício”, disse Simone. Assim como a atriz, os demais atores passaram por uma preparação longa e detalhada. Durante dois meses, o elenco praticamente se mudou para as instalações do Pedro II (atual Instituto Municipal Nise da Silveira), onde foi montado um set de filmagens. Lá, o trabalho de composição incluiu palestras com psiquiatras e colaboradores de Nise sobre os tratamentos usados na época da sua chegada ao hospital, oficinas de artes manuais com artistas plásticos e contato direto com os atuais pacientes da unidade, que também ensaiaram com o elenco e aparecem em muitas cenas como coadjuvantes. As filmagens ocorreram em 2012. “Num primeiro momento, ficamos um pouco assustados com essa

presença dos clientes, mas, depois, completamente envolvidos. Quando a gente começou a rodar o filme, cada um já sabia como se colocar em cena. Filmamos em ordem cronológica e fomos vivenciando essa mudança dos personagens como um documentário. Foi uma catarse, porque você via as pessoas se transformando. Às vezes, um interno entrava no meio da filmagem e estava integrado ao ambiente da trama. Escutamos deles os comentários mais lúcidos sobre o que estávamos vivendo no processo de filmagem. A gente se transportou para um lugar entre o real e o fictício”, afirmou Roberto Berliner. Do início do projeto até agora, foram 13 anos, incluindo pesquisa, construção de roteiros, filmagem, edição e lançamento. Durante esse tempo, Berliner lançou outros cinco filmes. Dois deles também enfocaram pessoas que vivem com

Nise recebeu de Carl Jung incentivo para desenvolver estudos sobre inconsciente coletivo a partir das obras dos pacientes limitações e lutam por inserção social: os documentários Pindorama: A verdadeira história dos sete anões, de 2007, codirigido por Lula Queiroga e Leo Crivallare, sobre uma trupe circense de anões, e A pessoa é para o que nasce, de 2005, a respeito de três irmãs cegas que tocam e cantam pelas ruas de Campina Grande (PB). Indagado pela Continente sobre a razão dessa preferência, Berliner acredita ser inconsciente. “Uma vez, um tio disse que faço meus filmes com esses personagens por causa do meu irmão, que tem Síndrome de Down. Falava que eu sempre o buscava, e meu irmão é puro afeto. Achei muito legal essa associação. Pode ser isso mesmo”, considerou.

OLHAR DE NISE

Outro filme que está rodando festivais dentro e fora do Brasil é o Olhar de

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Nise. Dirigido por Jorge Oliveira e Pedro Zoca, o documentário de 90 minutos de duração traz a memória de Nise como fio condutor da narrativa, enfocando as passagens mais marcantes da sua vida. Para isso, Jorge ganhou de um amigo, já na fase de edição do filme, uma entrevista inédita de cerca de quatro horas de duração com a própria Nise falando sobre si. Esquecido em seis fitas Betacam nos arquivos de uma produtora já desativada, o depoimento tinha sido concedido por ela, dois anos antes de morrer, para um trabalho acadêmico que não foi finalizado. A descoberta mudou os rumos da edição, tornando-se o carro-chefe do Olhar de Nise. “É um material precioso, já que os filmes feitos até então com Nise, alguns com a sua ajuda na roteirização, apegam-se à parte psíquica dos pacientes e ao trabalho dela no hospital. Nessa entrevista, o áudio não estava muito bom, mas conseguimos equalizá-lo, colocando Nise numa situação importante de esclarecimento sobre toda a sua história”, comenta Jorge Oliveira. Contemporâneo de Nise, ele fez filmes sobre outros alagoanos ilustres, como o escritor Graciliano Ramos e o militar Floriano Peixoto. Na sua visão, o seu filme faz um contraponto a Nise – O coração da loucura, do Berliner, ao mostrar outros fatos da história da personagem, como a sua saída de Maceió (AL); a chegada ao Rio para morar no Bairro de Santa Teresa, onde travou amizade com o poeta recifense Manuel Bandeira; a entrada no serviço público; a prisão e o retorno ao hospital, depois de solta. Outro ponto alto de Olhar de Nise é a presença do Almir Mavignier no filme. Morando na Alemanha e atualmente com mais de 90 anos, o artista já não estava mais dando entrevista sobre o assunto. Depois de várias tentativas, a produção conseguiu o seu aceite para participar do documentário e rumou para a gravação com ele em Hamburgo. “Almir parecia carregar certa mágoa pela maneira distorcida como algumas coisas haviam sido ditas sobre a sua participação no trabalho com Nise. Eu precisava ouvir a sua versão da


CON CAPA TI NEN TE

CARLOS PERTUIS/ REPRODUÇÃO

LEITURAS DE NISE Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra rebelde LUIZ CARLOS MELLO Automática Edições A iniciativa do livro foi de Nise da Silveira, nos seus últimos anos de vida, mas não seguiu adiante por sua idade avançada. Contando com apenas o título e pouco mais de uma página escrita por ela, o colaborador Luiz Carlos Mello deu continuidade ao projeto. Tendo como vantagem o grande conhecimento dele e o vasto acervo pessoal da psiquiatra sob sua guarda, Lula Mello optou por uma fotobiografia que contasse a trajetória pessoal e científica de Nise, desde a infância em Maceió, até a sua morte, no Rio de Janeiro. Numa produção de luxo, com 365 páginas em papel cuchê, a obra traz, além de fotos, recortes de jornal, informações coletadas em arquivos públicos e no acervo dela, manuscritos e correspondências, como as cartas trocadas com Jung, e a cópia do prontuário do antigo Dops, na época da sua primeira prisão, em 1936. Ainda, reproduções de pinturas dos artistas do Engenho de Dentro. Na sua segunda edição, em 2015, o livro conquistou o segundo lugar na categoria biografia do 57º Prêmio Jabuti, concedido pela CBL. Em 2014, o acervo da psiquiatra foi contemplado pelo Programa Memória do Mundo da Unesco, assumindo valor de patrimônio documental da humanidade. Com mais de 365 mil obras e sob a guarda de Luiz Carlos, ele está disponível para consulta no Museu Imagens do Inconsciente, no Engenho de Dentro.

Imagens do inconsciente NISE DA SILVEIRA Editora Vozes Lançado originalmente em 1981 pela extinta Editora Alhambra, Imagens do inconsciente surgiu a partir de um sonho que Nise da Silveira teve de uma tigresa parindo dois filhotes em uma caverna, na verdade, uma imagem do seu processo criativo. Escrita após a sua aposentadoria compulsória, em 1975, quando teve tempo para se dedicar ao projeto, a obra representa uma síntese do trabalho científico da autora, um mergulho nas profundezas do ser. Depois de quatro edições pela Alhambra, o livro saiu de catálogo, sendo relançado em 2015 pela Vozes. A obra, com 336 páginas, apresenta todas as 271 ilustrações coloridas do livro, um antigo sonho da Nise e da equipe do Museu de Imagens do Inconsciente. O propósito disso é que os leitores conheçam melhor a relação das imagens com as análises da psiquiatra, diferencial que acabou encarecendo o valor final da obra.

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história. Ele nos exigiu uma série de coisas para entrarmos no seu ateliê. A entrevista foi extremamente esclarecedora”, contou Jorge. Outras pessoas próximas de Nise foram entrevistadas no Brasil. Algumas delas: o poeta Ferreira Gullar, ele próprio pai de um filho esquizofrênico, a artista plástica Martha Pires Ferreira, a atriz Elke Maravilha, o poeta e romancista Marco Lucchesi, Luiz Carlos Mello, colaborador da psiquiatra durante anos e diretor do Museu Imagens do Inconsciente, e Dionysia Brandão, filha de Otávio Brandão, fundador do Partido Comunista, que teve forte influência ideológica e intelectual sobre ela. Para ilustrar certas partes da narrativa e compor o enredo do documentário, Jorge e sua equipe gravaram cenas ficcionais no Rio de Janeiro e em Maceió. No elenco, os atores Mariana Infante, no papel da Nise, Rafael Cardoso, interpretando Mário Magalhães, e Nando Rodrigues, vivendo o escritor e dramaturgo Antonin Artaud, considerado como louco e por quem Nise tinha uma admiração profunda, pela obra por ele produzida. Parecido com o filme de Berliner, o projeto de Olhar de Nise demorou cerca de 14 anos para ser realizado. Exibido pela primeira

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2 CARLOS PERTUIS

A obra deste paciente foi produzida no período de Nise e integra o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente

vez na Mostra Panorama Brasil do 48º Festival do Cinema Brasileiro de Brasília, o documentário passou também em Los Angeles (EUA), ano passado. Em 2016, o filme foi selecionado para festivais de cinema nos Estados Unidos, Inglaterra e Portugal. No segundo semestre, o público poderá assisti-lo no Canal Brasil. A Continente conferiu a sessão beneficente realizada no Cine Odeon, no Rio de Janeiro, em prol da Casa das Palmeiras, que vem passando por sérias dificuldades financeiras. Sem fins lucrativos, a instituição foi fundada em dezembro de 1956 por Nise, com uma proposta bastante audaciosa para os padrões da época de realizar atendimento, em regime aberto, às pessoas com transtornos mentais, buscando cortar o ciclo de internações existente. Acabou se tornando modelo de atendimento, antecipando as transformações ocorridas décadas depois com a Reforma Psiquiátrica. Este ano, a Casa das Palmeiras completa 60 anos como uma entidade que também promove atividades terapêuticas à margem do sistema de saúde.


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Entrevista

GLÓRIA PIRES “NISE FOI A MINHA PERSONAGEM MAIS COMPLETA” Estrela do filme Nise – O coração da loucura, a atriz Glória Pires, 52 anos, encarou o desafio de viver nas telas a psiquiatra alagoana Nise da Silveira. Depois de estudar a personagem através de livros e entrevistas, Glória resolveu imprimir um toque pessoal à interpretação, não imitando Nise, inclusive o sotaque nordestino, abolido durante as filmagens, ocorridas no início de 2012, nas dependências do antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro. O processo de imersão na vida e obra da personagem gerou, no filme, uma Nise dura e firme nas colocações, mas sem perder o lado humano e afetivo, marca registrada da psiquiatra alagoana. “Foi a personagem mais completa que já tive”, garantiu. Ganhadora do prêmio de Melhor Atriz no Festival de Tóquio de 2015, Glória concedeu entrevista à Continente nos bastidores do Festival do Rio do ano passado, comentando sobre sua participação no filme. CONTINENTE Como classificaria a Nise da Silveira dentro do rol de personagens que você já fez? GLÓRIA PIRES Eu a classificaria como a personagem mais completa que já tive oportunidade de interpretar até hoje, não só pela vida longa que ela teve, mas também pela vida cheia de lances incríveis que passou e pelo tanto que me inspirou como mulher. O que ela deixou é um patrimônio para a humanidade. CONTINENTE Interpretar um personagem real difere de um personagem fictício? GLÓRIA PIRES Sim e não, porque, embora nós estivéssemos falando de personagens reais, havia uma preocupação muito grande do nosso diretor (Roberto Berliner) de não parecer uma imitação. Ele queria que fosse uma coisa muito orgânica, verdadeira e real. Então, ao mesmo tempo em que o filme estava baseado

em fatos, em coisas que Nise escreveu, em informações clínicas, às vezes, todos nós, atores, trouxemos muito de nós mesmos para o trabalho, como se fôssemos camadas superpostas. CONTINENTE No filme, você lançou mão de uma licença poética ao interpretar Nise, inclusive não imitando o sotaque nordestino dela. De onde partiu essa ideia? GLÓRIA PIRES O próprio Roberto colocou isso. Ele tinha medo de que o sotaque ficasse mais importante que a história que estava sendo contada. Não podia ter uma coisa que chamasse mais a atenção, positiva ou negativamente, que a história de Nise, o caráter, o ser e a visão dessa mulher; as opções todas que ele fez, com tanta pressão, de tão pouco tempo para se realizar o filme, tantas dificuldades que a produção e ele como produtor também enfrentaram. Então, acho que ele foi muito sábio, guiado por uma coisa verdadeira e uma responsabilidade de trazer a história de Nise para as pessoas entenderem o que foi isso. Não é pouco.

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CONTINENTE Mudou alguma coisa o fato de o set de filmagem ter sido o próprio local de trabalho de Nise e ainda hoje do Museu de Imagens do Inconsciente? GLÓRIA PIRES A preparação foi toda lá. Ficamos ali praticamente “internados”. A gente chegava muito cedo, saía muito tarde e, a partir disso, fomos entrando naquele universo do inconsciente e aquele universo entrando em todos nós. Então, foi importantíssimo a preparação dos personagens ter acontecido concomitantemente, no mesmo lugar. CONTINENTE Li numa reportagem que você chorou durante o processo de filmagem, chamando a atenção das pessoas. Isso ocorreu em função da força do próprio espaço de filmagem e da temática do filme em si? GLÓRIA PIRES O ator lida o tempo inteiro com emoções. Então, há uma troca permanente de energias. Esse vislumbre que o ser humano tem por dentro muitas vezes é surpreendente e ficamos realmente emocionados com isso.


CON CAPA TI NEN TE REPRODUÇÃO

FORMAÇÃO Uma mulher infiltrada no mundo dos homens

Psiquiatra alagoana entrou no curso de Medicina aos 15 anos e lá se interessou pela doença mental a partir de estudos da criminologia feminina

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A relação de Nise da Silveira

com o Nordeste não se limita a Maceió (AL), onde nasceu e viveu a infância e adolescência. Ela teve proximidade também com o Recife (PE) e Salvador (BA), cidades que integraram parte importante da sua história. As lembranças mais antigas vêm do Recife e são ligadas à família. Filha de pai e mãe pernambucanos – o jornalista e professor de matemática Faustino Magalhães da Silveira e a musicista Maria Lídia da Silveira –, Nise tinha como um dos grandes prazeres, quando pequena, viajar para o Recife. “Uma de minhas lembranças era da irmã do meu pai, que morava em Casa Forte. Algumas vezes, nós nos hospedávamos lá. Era a Campina da Casa Forte. Era um verde enorme. Então, ficávamos lá, na casa de minha tia, que tinha duas filhas. E havia o Colégio da Sagrada Família, em que minha prima estudava pintura. Achava bonito. Outra lembrança que tenho é da casa do pai de minha mãe. Ele morava com uma filha solteira e um filho poeta que, já aos 15 anos, publicou um livro de versos. Ele teve vários filhos, entre eles um que era predileção minha e da minha família. Era escritor e se chamava Léo. É em sua homenagem que dei o nome dele a um dos meus gatos”, recordou Nise em entrevista à revista Psicologia – Ciência e Profissão, em 1994. Nise ingressou no curso universitário em 1921, na Faculdade de Medicina da Bahia, aos 15 anos, influenciada por um grupo de rapazes que estudava com o pai, entre os quais o primo Mário Magalhães da Silveira. Mais tarde, ele se tornaria grande médico sanitarista brasileiro, com quem Nise se casou. Quando passou em Medicina, ela ainda não tinha a idade mínima exigida, que era a partir dos 16. “Mas em Maceió tudo se arruma. E assim deram lá um jeito e eu entrei para a faculdade com 15 anos, como se tivesse 16. Depois, tive um trabalho danado para corrigir isso e voltar à idade certa”, contou, em depoimento ao poeta Ferreira Gullar, no livro Nise da Silveira: Uma psiquiatra rebelde, de 1996. Nise se tornou a única mulher na faculdade, em que só estudavam

homens. Foi nessa época que decidiu viver junto com Mário, seu colega de turma. Segundo relata Luiz Carlos Mello, na fotobiografia Nise da Silveira: Caminhos de uma psiquiatra rebelde, na época, a família não aprovou a união dos dois, por serem primos e não terem se casado no papel. Decidida inicialmente a se dedicar à clínica médica na faculdade, ela mudou os planos depois de conhecer a criminologia, área que a fez se interessar pela psiquiatria. Sua monografia de conclusão de curso – Ensaio da criminalidade da mulher no Brasil – foi um estudo com base em observações em presídios de Alagoas, de Pernambuco e da Bahia. “Já pensando seriamente na tese, aproveitei a oportunidade para penetrar mais a fundo nos assuntos de criminologia na época do quinto ano do curso. Por isso visitei o presídio do Recife. Foi aí que encontrei o

Em presídio do Recife, Nise teve o primeiro contato com a doença mental; era uma presa condenada por homicídio primeiro doente mental em minha vida. Tratava-se de uma pobre mulher, presa e condenada por homicídio, mas que não passava, afinal, de uma grande delirante, de uma louca. Conheci muitas outras pessoas doentes mentais, mas aquela, por ser a primeira, fez-me uma forte impressão”, recordou Nise. Na sua mudança para o Rio de Janeiro, em 1927, depois da morte súbita do pai, ela foi morar com Mário em Santa Teresa, bairro da zona central carioca. Vivendo num quarto modesto na antiga Rua do Curvelo (hoje Rua Dias de Barros), eles tiveram como vizinhos o poeta recifense Manuel Bandeira e o alagoano e líder comunista Octávio Brandão, militante e um dos pensadores do Partido Comunista Brasileiro. “Logo que soube ter tão próximo um conterrâneo, fui visitá-lo”, contou. Octávio e a

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esposa, Laura Brandão, tornaramse amigos de Nise. Ambos foram deportados para a Alemanha, em 1931, no governo de Getúlio Vargas. Laura faleceu em 1942, e Octavio regressou ao Brasil em 1946. A aproximação da alagoana com as ideias de esquerda lhe rendeu perseguições. Foi presa em março de 1936, após ser denunciada por uma enfermeira com quem trabalhava no antigo Hospital da Praia Vermelha de que portava livros de marxismo. Ficou detida um ano e meio, o que lhe custou a perda do emprego e o afastamento do serviço público. Foi nesse período da prisão que Nise conheceu o escritor Graciliano Ramos, na cela ao lado da sua, na antiga Casa de Detenção, localizada na Rua Frei Caneca, no centro do Rio. O encontro e a convivência entre os dois na prisão foram relatados pelo próprio Graciliano no livro Memórias do cárcere. A psiquiatra foi posta em liberdade em junho de 1937, por não haver processo contra ela. Em novembro do mesmo ano, porém, houve nova onda de prisões no país, levando-a a fugir para a Bahia, onde ficou escondida. “A partir de então, Nise permaneceu na clandestinidade lá e em outros estados do Nordeste e do Norte. No início da década de 1940, viveu em Manaus, onde Mário serviu como delegado federal de Saúde. No período da Segunda Guerra Mundial, por iniciativa do companheiro, Nise casou-se em regime de comunhão de bens. O casamento ocorreu no Recife, em novembro daquele mesmo ano”, revela Luiz Carlos Mello. Segundo ele, a intenção de Mário era garantir uma aposentadoria a Nise, caso ele viesse a falecer, já que viajava com frequência para a base aérea norte-americana em Dacar, a fim de inspecionar as aeronaves para controle da malária. Foi nessa fase do exílio que a psiquiatra se aproximou da obra do filósofo holandês Baruch Spinoza. A profunda admiração pelo autor levou-a a escrever Cartas a Spinoza, lançado em 1990 e atualmente fora de catálogo, revelando aspectos públicos e privados da psiquiatra na sua relação com o pensamento do filósofo. MARCELO ROBALINHO


CON CAPA TI NEN TE EMYGDIO DE BARROS/ REPRODUÇÃO

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ARTISTAS O que importa é o mundo interior

1 EMYGDIO DE BARROS Considerada moderna pela crítica, obra do interno foi realizada entre as décadas de 1940-50

Produções de pacientes do Engenho de Dentro abrem acesso para a análise de conteúdos do inconsciente e impactam profissionais da arte

Era comecinho de 1949 no Rio de Janeiro. Em pleno verão carioca, o artista plástico Francisco Brennand, na época com 21 anos, hospedara-se na casa de seus tios, aguardando o embarque no navio da Mala Real Inglesa rumo à Europa. Seria a sua primeira viagem de navio com destino a Paris, onde pretendia morar, como tinha

feito o pintor Cícero Dias. Durante os dias que antecederam a viagem, o pernambucano conheceu o pintor Almir Mavignier, que se mostrou interessado em acompanhá-lo em alguns lugares da cidade. Um deles foi a Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, em que funcionava o ateliê destinado aos doentes internos.

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Já atuando como monitor de lá, Mavignier apresentou Brennand a Nise da Silveira. A visita ao Engenho de Dentro causou grande comoção e surpresa ao artista. Além dele, o pintor e desenhista Ivan Serpa (1923–1973) e o artista plástico Abraham Palatnik foram marcados pelo contato com as obras produzidas na unidade.


“De formação modernoacadêmica, eu ainda não havia travado conhecimento com a arte dos doentes mentais e, sobretudo, não encontrara dois verdadeiros gênios, como Raphael e Emygdio de Barros. Raphael, cujos desenhos lembram de imediato as melhores fases de Paul Klee, e Emygdio, com uma pintura expressionista de uma categoria inusitada. Raphael causoume impacto com a singularidade dos seus desenhos, de uma linha surpreendente e pura. Vê-lo trabalhar ininterruptamente, traçando linhas sem nenhuma hesitação e qualquer possibilidade de retorno, é motivo de estupefação”, escreveu Brennand, num dos seus diários. O trecho acima integra uma das páginas dos diários de Brennand, que compreendem a fase de 1949 a 2013. Em entrevista à Continente, o artista, que agora em junho completa 89 anos, recordou que o contato com a produção do ateliê do Engenho de Dentro modificou seu pensamento sobre o significado da arte. “Tudo aquilo em que eu acreditava como indispensável à formação de um artista não representava absolutamente nada diante dos insondáveis mistérios do inconsciente. Isso me deixou perplexo. Era muito melhor que eu jamais poderia alcançar”, disse. Ao tomar contato com os trabalhos dos frequentadores dos ateliês, Abraham Palatnik afirmou ver ruírem os conhecimentos adquiridos na Palestina e nos ateliês de arte visitados ao redor do mundo. Assim como Brennand, Ivan Serpa nutria grande admiração pelos desenhos de Raphael, o que acabou influenciando seus trabalhos, indica José Otávio Pompeu e Silva, na dissertação A psiquiatra e o artista: Nise da Silveira e Almir Mavignier encontram as imagens do inconsciente, apresentada na Universidade de Campinas (Unicamp). Raphael já desenhava pequenos traços nas paredes das enfermarias do Pedro II, quando começou a frequentar o ateliê de pintura. Lá, ele continuou a temática até desenvolver sua capacidade artística e terapêutica. No livro O mundo das imagens, Nise da Silveira analisou que a presença de

Almir Mavignier e, posteriormente, de Martha Pires Ferreira foram fundamentais na história de Raphael. Funcionando como catalisadores, os dois artistas ofereceram, em épocas distintas, apoio e estímulo para ele desenvolver suas atividades, sem influenciá-lo. A produção dele sofreu uma mudança, quando um dos frequentadores do ateliê, desavisadamente, sugeriu que desenhasse uma cara e depois um burrinho, contrariando as regras de não intervenção. “Esse fato insólito marcou o início de nova fase no desenho de Raphael. A partir daí, sem etapas de transição, num salto espantoso, surgem traços mágicos que virão configurar desenhos da mais alta qualidade. O prazer de desenhar num ambiente em que era tratado como pessoa humana querida despertou nele insuspeitadas

Diante dessas obras, Francisco Brennand afirmou que o que acreditava relevante à formação do artista perdeu importância manifestações de força criadora”, apontou Nise.

RAPHAEL E EMYGDIO

Nascido em São Paulo, em 1913, Raphael Domingues chegou a estudar desenho acadêmico, a partir dos 13 anos. Acometido por uma forma grave de esquizofrenia aos 16 anos, foi internado aos 19, no Hospital da Praia Vermelha, sendo transferido depois para o Pedro II. Suas pinturas chamaram a atenção também do crítico de arte Mário Pedrosa (19001981). “Que fez o destino a um ser extraordinário como Raphael? Tentou expulsá-lo da vida, trancando-lhe de saída a mocidade. Engenho de Dentro, felizmente, recolheu seus restos de personalidade, permitindo que ele ao menos fizesse uso de parte de seu aparelho de percepções. E o que este fez é sem par na história da criatividade humana”, considerou Pedrosa.

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Outro frequentador dos ateliês que surpreendeu foi o Emygdio de Barros. Desde criança, ele já demonstrava habilidade com as mãos, fabricando brinquedos com caixas e pedaços de madeira, relata Luiz Carlos Mello. Formado num curso de torneiro mecânico, chegou a se tornar operário da Marinha, tendo realizado um estágio na França em função da qualidade do seu trabalho. Na volta da viagem, porém, entrou em crise ao descobrir que a mulher que amava tinha se casado com seu irmão. Assim como Raphael, Emygdio de Barros passou pela Praia Vermelha e depois foi para o Engenho de Dentro. Internado há 23 anos e referido pelo seu psiquiatra como um “crônico muito deteriorado”, Emygdio começou a pintar ao ver os outros internos que frequentavam o ateliê. Logo chamou a atenção pela capacidade criadora, sendo considerado um gênio. “A pintura de Emygdio não reflete a experiência humana no nível da sociedade e da história. A ruptura com o mundo objetivo precipitou-o numa aventura abismal, em que o espírito parece quase perder-se na matéria do corpo, afundar-se no seu magma. E é daí, desse caos primordial, que ele regressa, trazendo à superfície onde habitamos, com suas imagens fosforescentes, nos ecos de uma história outra, que é também do homem, mas que só a uns poucos é dado viver”, escreveu o poeta Ferreira Gullar. No texto produzido para o seu diário na época da visita ao Engenho de Dentro, em 1949, Brennand escreveu que evitaria retornar ao local, o que acabou ocorrendo. “Sinto-me estranhamente diminuído e desorientado quanto ao meu aprendizado futuro. Todas as regras tinham sido violadas”, afirmou. Apesar disso, ele não deixou de estudar a arte dos doentes mentais. A maioria das esculturas produzidas por ele e inspiradas em figuras mitológicas, a partir dos anos 1970, apresenta grande liberdade formal, possivelmente fruto do contato com os trabalhos dos internos. MARCELO ROBALINHO


CON CAPA TI NEN TE MARCOS MICHAEL

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TERAPIA O dia a dia no convívio com a arte Nos ateliês do Museu de Imagens do Inconsciente, clientes enfrentam seus transtornos pelo uso da criatividade

Renata Inocêncio usa as pontas dos dedos em vez de pincéis para aplicação das tintas nas telas e costuma se projetar para dentro das imagens retratadas. Já Francisco Noronha segura as mãos na cabeça quando desenha e produz em papéis e lápis nº 2 figuras espirituais, fazendo desaparecer, durante o momento

da produção, os efeitos do Mal de Parkinson que o acomete. Ênio de Carvalho, por sua vez, busca encostar a cabeça na preparação dos seus trabalhos, feitos com canetas esferográficas e hidrográficas, lápis de cera e papéis, para que o material “diga” ao seu inconsciente o que desenhar. Frequentadores atuais do

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Museu de Imagens do Inconsciente, os três são exemplos da produção contemporânea da instituição. Obras de Renata, Noronha e Ênio podem ser conferidas junto com outras na exposição Emoção de lidar, em cartaz no museu. A mostra apresenta um breve panorama do que está sendo feito hoje em dia nos ateliês terapêuticos da instituição. Nela, é possível ver diferenças significativas com as obras do período histórico da instituição, que vai de 1952 a 1999 (ano da morte da fundadora Nise da Silveira). Esse acervo foi tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em setembro deste ano, o ateliê de pintura completa 70 anos de atividades ininterruptas. “A atual exposição busca mostrar a ideia do museu vivo. Todo dia, há uma nova produção dos nossos clientes. É um acervo que não é voltado para o passado, ele está sempre se renovando


1 RENATA INOCÊNCIO Uma das clientes mais jovens do museu, ela teve obras premiadas e diz gostar da pintura de Monet

novos tempos, o museu hoje se depara com questões específicas, diferentes do período de Nise da Silveira. Entre elas, estão o reconhecimento da autoria do artista e os próprios direitos autorais, que impuseram a autorização do uso de imagem; o contexto da reforma psiquiátrica, que promoveu a ressocialização dos doentes e sua integração ao seio familiar, diferentemente de antes, quando a maioria dos pacientes vivia interna; o advento da medicalização, que, de certo modo, provocou um esvaziamento da terapia ocupacional; e o próprio contexto da pesquisa científica, que impôs a submissão dos projetos de estudos com seres humanos nos comitês de ética e o anonimato às fontes entrevistadas. Para a realização desta reportagem, por exemplo, os artistas do museu consentiram ser mencionados e divulgar suas obras. “No caso do Francisco Noronha, que trabalha os chakras nos seus desenhos, você vê que a obra dele aparece mais em termos teóricos, indicando um campo de investigação bastante interessante relacionado à espiritualidade. Porém, através das expressões mais profundas do ser humano”, comentou Luiz Carlos Mello, diretor e curador do Museu de Imagens do Inconsciente. Resultado de um trabalho em equipe e com custo praticamente zero, a exposição dá visibilidade e voz aos frequentadores atuais, sendo a primeira vez em que o museu expõe um conjunto mais amplo dos trabalhos deles. Até então, havia uma participação pontual das obras atuais no contexto das produções expostas. “A gente sempre tem muito cuidado quando o autor é vivo, porque trabalhamos com direitos autorais. Hoje, existe mais esse reconhecimento da autoria. As obras que fazem parte do período histórico são, de certa maneira, de domínio público, porque os próprios autores e seus familiares já morreram. Mas os novos, não. Precisamos de autorização para cada obra exposta”, comenta a coordenadora de Projetos do Museu, Gladys Schincariol. Sinal dos

Criado em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente foi motivado pela riqueza de material produzido pelos pacientes é delicado se fazer estudos científicos sobre o frequentador atual, porque qualquer coisa que você vá publicar sobre o cliente vivo precisa passar hoje pelo comitê de ética”, exemplificou Gladys. Embora as obras produzidas no museu tenham valor artístico, ela destacou que a proposta não é formar artistas, e, sim, tratar das pessoas que, apesar do sofrimento, enfrentam os seus problemas com criatividade na busca por um caminho de cura. O caso de Ênio de Carvalho é interessante. Internado por 11 anos no

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Centro Psiquiátrico Pedro II, ele começou a desenvolver a pintura na época em que Nise ainda estava viva, sendo um dos poucos que possuem obras datadas do período histórico. Com diagnóstico de esquizofrenia paranoica, ele começou a apresentar melhoras significativas depois que passou a frequentar o ateliê, a partir de 1995. “Quando crio uma obra, não copio ninguém. Quero fazer a minha criação e deixar que a mão vá livremente pintando para fazer aparecer todo o meu interior, como se eu estivesse copiando comunicações e visões internas”, contou. Hoje, Ênio mora sozinho num apartamento em Copacabana e frequenta três vezes por semana o museu, onde costuma pintar quadros a óleo e, algumas vezes, trabalhar com argila. Quando os desenhos são produzidos em casa, ele tem a preocupação de levá-los para o museu, a fim de serem preservados. “Antigamente, eu vendia os meus quadros para um médico porque não tinha benefício. Fiquei muito sentido de ignorar o museu porque tudo o que conto é uma história interessante. Fiz 40 trabalhos grandes e deixei para lá. Eu busco contar a história da minha insistência de mostrar que nem tudo está perdido, sabe? Mostrar que, de uma coisa ruim, é possível causar uma explosão de coisas bonitas. Quando eu vier a falecer, sei que meus trabalhos ficarão no museu e que as pessoas vão valorizá-los”, afirmou. Criado em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente foi motivado pela riqueza do material produzido permanentemente pelos pacientes. A intenção era congregar as obras realizadas nos ateliês de pintura e modelagem para o estudo das imagens e símbolos através da convergência de olhares entre diversas áreas do conhecimento, além do acompanhamento dos casos clínicos através dessa produção. Hoje, ele se situa num híbrido entre arte e ciência. Embora funcione nos moldes de um museu, com uma equipe formada por uma museóloga e seis estagiárias destinadas a realizar a organização, a conservação e o tratamento das obras, está inserido na rede municipal de saúde do Rio de Janeiro com uma proposta terapêutica para os usuários do sistema com problemas psíquicos.


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Hoje, o museu conta com cerca de 360 mil obras da fase histórica e da atual. Todas são classificadas e guardadas em espaços separados por artistas. As pinturas da fase mais antiga ficam num quarto climatizado, para manter a temperatura do espaço e garantir a sua preservação. Além da catalogação, passam por um trabalho de reacondicionamento para evitar danos futuros. Já as obras mais recentes são submetidas a uma conservação reparadora, que consiste na higienização, manutenção das condições ambientais e acondicionamento. “O objetivo daqui nunca foi ser um museu de tratamento das obras. Então, no começo, não havia um acompanhamento muito rígido do movimento delas, nem a importância da conservação. As pessoas tiravam as obras do lugar sem ter noção do que isso poderia causar na organização. Há alguns anos, acompanhamos o movimento delas em todos os momentos”, exemplificou a museóloga Priscilla Moret. Tamanho cuidado e seriedade no trabalho lhe rendeu da direção o apelido de “governanta alemã”, dito de forma carinhosa. O acervo das obras ainda está sob a responsabilidade do Ministério da Saúde, do tempo ainda em que o museu fazia parte da estrutura federal. “O nosso museu é um dos melhores lugares para se estudar Jung. Foi isso que me trouxe para cá, em 1974, quando comecei a trabalhar com Nise a fim de comprovar cotidianamente a teoria dele sobre o inconsciente coletivo, essa herança psíquica que temos. Lá, você percebe que a palavra não dá conta desse grande universo, então a imagem vem também como outra linguagem, muito mais consistente que apenas a palavra. Não querendo desmerecer a palavra, mas a imagem diz muito mais”, argumentou Gladys, que é psicóloga. O afeto, o convívio, a aceitação do outro e a liberdade que o cliente tem de se colocar permeiam o trabalho do museu.

MANDALAS E TEMAS MÍTICOS

A produção em série de imagens circulares ou tendendo ao círculo foi um dos primeiros desafios de Nise. “A analogia era extraordinariamente próxima entre essas imagens a aquelas descritas sob a denominação

de mandala, em textos referentes às religiões orientais”, disse. O intrigante, para ela, era isso vir da produção de esquizofrênicos, já que a cisão das funções psíquicas é uma das características principais da doença, conforme a psiquiatria dominante. O fato levou Nise a enviar uma carta para Jung, em 1954, com fotos das obras, a fim de explicar o que se passava e lhe pedir ajuda. “Foi um dos atos mais ousados da minha vida”, revelou. A resposta de Jung veio logo em seguida, abrindo novas possibilidades de compreensão sobre a esquizofrenia. “A psiquiatria tradicional permanece fixada diante dos graves sintomas de dissociação. Assim, não vê no esquizofrênico nada mais além das ruínas. Jung pesquisou por trás das ruínas”, argumentou Nise. A troca de correspondências entre a brasileira e o suíço também revelou a aproximação

De acordo com a diretora de projetos da instituição, as obras ali produzidas devem ser analisadas em conjunto das pinturas com os estudos junguianos sobre os arquétipos, levando Nise a realizar depois uma temporada de estudos no Instituto C.G. Jung, em Zurique, onde também foi realizada uma exposição, em 1957, sobre a produção imagética dos esquizofrênicos. Nas aproximações das produções com elementos míticos, Adelina Gomes foi um exemplo clássico. O mito da Dafne se revelou na sua obra, ao retratar em diferentes quadros a metamorfose da mulher em vegetal. Ninfa da mitologia grega, Dafne entra em pânico e foge diante da paixão expressa pelo deus Apolo. Correndo para junto da mãe, esta a transforma em loureiro, compondo a coroa de Apolo e dos poetas, conforme a mitologia. Ao estudar a obra de Adelina em paralelo à sua história de vida, Nise descobre, através de relatos familiares, que a paciente tinha sido proibida de namorar o homem que amava, quando jovem. Tímida, ela acabou cedendo ao

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GUARDIÃ DO ACERVO

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veto, sendo acometida de uma tristeza permanente. Tempos depois, ela sofreu uma crise violenta que a fez estrangular a gata de estimação da casa, levando-a ao internamento. O animal viria a ser tema das suas primeiras pinturas no ateliê. Segundo Gladys, é muito difícil entender o significado de uma obra isolada dos clientes do museu. Ela só tem sentido se analisada no conjunto com as demais obras. “A importância de Nise foi justamente ter guardado as obras para que pudessem ser avaliadas no seu conjunto. Havia um problema científico a investigar tanto para ela quanto para nós hoje em dia. Bonito ou feio, não importa. O que importa é o processo de criação e de expressão, mais que o resultado final, como a obra foi desenvolvida e como o cliente trouxe aquele conteúdo”, explicou. Renata Inocêncio é uma das clientes mais jovens do museu. Com 37 anos recém-completos, seu olhar sobre a


2 ENIO DE CARVALHO Paciente começou a desenvolver pinturas quando Nise da Silveira estava viva

pintura revela muito mais conteúdo do que sua materialização é capaz de mostrar. Isso porque ela imagina não só a situação em torno da imagem retratada, como também descreve espaços e pessoas que não estão necessariamente na cena representada. Já premiada pelas suas obras, ela diz gostar do pintor impressionista Claude Monet (1840–1926), de quem recebe influência pelas cores e formas usadas. “Costumo pintar com o dedo. Só quando é detalhe uso pincel. Eu gosto da mão. Às vezes, eu pintava e sentia formigamento na ponta dos dedos. Não era pela tinta. Tem quadros que eu pinto, mas sei que não fui eu. Já vi uma casa como se fosse num chá de tarde. Lá, tem uma mesa com varanda, pessoas de época. Do lado da varanda, já vi que colocam uma mesa com louças finas. Vi um piquenique. Tenho vontade de pintar, mas ainda não fiz”, contou Renata. É uma das poucas clientes sem diagnóstico fechado.

O museu do Engenho de Dentro está com a exposição Emoção de lidar em cartaz, com obras produzidas pelos clientes Usuário antigo, Francisco Noronha aparece no filme Olhar de Nise, de Jorge Oliveira, entrando numa das cenas gravadas do depoimento de Nise da Silveira, em que presenteia a psiquiatra com um dos seus quadros. Com grande expressividade, seu trabalho apresentou mudanças ao longo do tempo. Das cores comumente utilizadas nas telas, ele passou a se expressar atualmente com lápis. “Começo meus desenhos pela cabeça, depois eu faço o pescoço e

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os ombros. Pinto homens e mulheres, seres da minha imaginação”, disse à Continente, num dos raros momentos em que se permite falar. Demonstrando alguns sinais do Mal de Parkinson no dia a dia, ele impressiona a equipe do museu pelo controle das mãos quando desenha. Nesse momento, elas param de tremer. “Certamente, o Parkinson é devido ao excesso de medicamentos que ele tomou num período em que sumiu daqui e ficou internado num hospital ‘barra pesada’. Os neurolépticos atacam o sistema extrapiramidal, que é a base do cérebro e responsável pelos movimentos. Então, o excesso de neurolépticos dá crises parkinsonianas. O fato de parar de tremer, quando pinta, deve ser pela ligação dele com as imagens. A pessoa se supera”, disse Luiz Carlos Mello. Ao comentar sobre a produção do museu, o psicoterapeuta e artista plástico Lula Wanderley disse que o debate em torno do que é arte se torna esvaziado, por não haver uma definição exata da loucura nem da arte para comparações. “São dois campos em que a única referência que você tem é a vida. As pessoas costumam pegar na intencionalidade do artista. Como você vai medir a colocação do sujeito no mundo sem intencionalidade? É difícil. Ele vai fazer arte para a vida e com a vida o tempo todo. Isso fica muito próximo de uma intencionalidade intensa. Na época de Raphael e de Emygdio, você tinha a arte moderna, em que a grande característica era a expressão. E você expressa a sua relação com o mundo, o mundo em sua época. Uma coisa é certa: emociona como qualquer artista”, considerou o pernambucano. A exposição Emoção de lidar pode ser conferida de segunda a sexta, das 9h às 16h. O Museu de Imagens do Inconsciente fica na Rua Ramiro Magalhães, nº 521, Engenho de Dentro. Mais informações pelo telefone (21) 3111.7471. . MARCELO ROBALINHO


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INSTITUIÇÕES Produção relevante em outros acervos

Museus Bispo do Rosário, na extinta Colônia Juliana Moreira, e Osório César, no Hospital Psiquiátrico do Juquery, revelam potência artística de internos

O uso da arte como recurso terapêutico e o reconhecimento do valor artístico das obras feitas por pacientes psiquiátricos não são exclusivos do Museu de Imagens do Inconsciente. A extinta Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá (RJ), e o Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha (SP), também tiveram uma

produção relevante nesse sentido. Grande parte do material das duas instituições se encontra preservada em acervos dessas duas instituições, além do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Na capital carioca, o Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea é referência na produção artística de pacientes com histórico de sofrimento

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1 MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO Na Bienal de Arte de 2000, foi criado núcleo especial com a arte do inconsciente; acima, obras de Artur Bispo do Rosário

psíquico. Localizado no Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, complexo de saúde mental ligado à Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, o espaço conta com cerca de 1.500 obras produzidas por internos. Dessas, 804 são de Arthur Bispo do Rosário. Bispo do Rosário nasceu em 1911, em Japaratuba, município do Vale de Cotinguiba, zona norte de Sergipe. Em 1925, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou na Marinha e na companhia de eletricidade Light. Também foi lutador de boxe. Acometido por um delírio místico em 1938, no qual se viu como um enviado dos céus para julgar os vivos e os mortos, Bispo do Rosário foi diagnosticado com esquizofrenia paranoica e internado


no Hospício Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, sendo transferido posteriormente para a Colônia Juliano Moreira. Entre as décadas de 1940 e 60, alternou períodos de alta e internação, até permanecer definitivamente na Colônia. Lá, iniciou sua rica produção de estandartes, composta de fragmentos de tecido, linhas e objetos usados, como canecas, pedações de madeira, arame, vassoura, papelão, fios de varal, garrafas e outros materiais. “Todo o processo dele foi bem independente, sem orientação de qualquer ordem. Tinha um contexto em que Bispo foi trazendo elementos e influências para dentro de suas obras. Sabemos, por exemplo, que havia uma referência das festas de reisado e do folclore de Sergipe na fabricação de seus brinquedos, quando criança, e de seus estandartes e bordados produzidos posteriormente”, comentou a diretora do museu, Raquel Fernandes. Bispo do Rosário ficou famoso como artista visual a partir de 1980, depois de aparecer numa reportagem de TV. Em 1982, a convite do crítico de arte Frederico Morais, ele expôs seus estandartes em À margem da vida, mostra coletiva realizada no MAM-RJ com pessoas marginalizadas na sociedade. Foi a única exposição que ele autorizou. “A partir daí, ele recebeu vários convites para expor, mas não concordou mais, possivelmente pela dificuldade de se separar de sua obra. De alguma maneira, era parte dele. Não via como obra de arte, mas uma missão que tinha na Terra, porque era obrigado a fazê-la. Vários críticos diziam que o que ele fazia não era arte, porque não havia uma intencionalidade. Mas a forma como ele organizava isso era artística, a forma como criava as vitrines, muito particular, não tinha a ver com a esquizofrenia”, considerou Raquel Fernandes, que também é médica psiquiatra e com formação em cinema. Agora em maio, o Museu Bispo do Rosário está fechado, porque se prepara para uma exposição, que iniciará no dia 4 de junho. Sob o título Das virgens em cardumes e a cor das auras e com curadoria de Daniela Labra, a mostra reúne obras de artistas brasileiros contemporâneos de caráter performático e multimídia, com o intuito de estabelecer um diálogo com a obra de Bispo do Rosário.

A primeira experiência museográfica da Colônia Juliana Moreira data de 1952, com a criação de um departamento para abrigar a produção dos pacientes da unidade que participavam dos ateliês de arteterapia da época. O setor era intitulado Egaz Muniz, em referência ao criador da operação de lobotomia. Em 1982, passa a se chamar Nise da Silveira, em homenagem à psiquiatra. Com a morte de Bispo do Rosário, em 1989, suas obras integram o acervo do museu. Devido à vinculação feita entre as obras dele e a psiquiatra alagoana, que nunca chegou a trabalhar na Colônia Juliano Moreira, o museu muda novamente seu nome, em 2000, para Museu Bispo do Rosário. O termo “arte contemporânea” foi acrescido em 2002, justamente para reafirmar a presença de Bispo do Rosário no cenário da arte. O acervo foi tombado pelo Instituto Estadual de Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (Inepac) e se encontra em processo de catalogação.

No Brasil, a primeira experiência no tratamento da doença mental com arte foi feita pelo médico Osório César, em SP A experiência mais antiga nesse campo vem de Franco da Rocha. Lá, Osório Thaumaturgo César (18951979), médico psiquiatra do Juquery, propôs a pesquisa e a utilização da arte como alternativa para o tratamento dos internos, assim como Nise da Silveira, só que de um modo diferente. As atividades começaram a ser realizadas a partir de 1925, ainda de forma embrionária, dentro de práticas artísticas incentivadas pelos médicos da instituição, que levavam papéis, lápis grafite e lápis de cor para os pacientes que faziam sulcos ou desenhavam nos muros do hospital. O primeiro artigo de Osório César sobre os fatores psiquiátricos que mobilizavam a produção plástica dos pacientes foi publicado nos anos 1920. “Seguindo o pensamento de psiquiatras com formação em História da Arte ou que demonstravam interesse pela arte, como Hans Prinzhorn, Walter Morgenthaler e Jean Vinchon,

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principalmente Prinzhorn, César compreendeu que a necessidade do alienado de se manifestar plasticamente não era uma consequência do estado doentio, como defenderam alguns psiquiatras, mas procedia da capacidade humana de organizar ideias e sentimentos por meio de imagens”, revelaram as professoras Rosa Cristina Maria de Carvalho e Lucia Reily, em artigo para a revista ArtCultura sobre a produção artística do Juquery. Em 1956, Osório César fundou a Escola Livre de Artes Plásticas no hospital. “Osório já vinha de um processo que envolvia o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Teve contato com Tarsila do Amaral, com quem chegou a viver por uma época. Por conta desse contato, ele desenvolveu junto aos pacientes uma teoria da recuperação psiquiátrica através da arte. E, com o arquiteto Flávio de Carvalho, promovia exposições com os pacientes que achavam ter dote artístico”, lembrou Pier Paolo Pizzolato, diretor técnico e responsável pelo Núcleo de Acervo, Memória e Cultura do Juquery. O núcleo é hoje responsável pela proteção do acervo do Museu Osório César, ligado à Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo. Estima-se um total de 8 mil obras, das quais 2 mil são da fase inicial do museu. Cerca de 300 obras desse quantitativo estão catalogadas. Desde o final de 2014, o Museu Osório César reabriu as portas ao público. A abertura do museu aos domingos (o último do mês, das 9h às 12h) coincide com o dia em que o passeio público de Franco da Rocha é interditado ao tráfego de veículos. As visitas são gratuitas, mediante agendamento. A proposta de reabertura do Juquery se deveu à exposição Histórias da loucura: desenhos do Juquery, realizada ano passado pelo Museu de Arte de São Paulo (Masp). A mostra reuniu 101 desenhos feitos por internos do hospital psiquiátrico, sendo 42 só de Albino Braz, que ganhou uma sala reservada, em função da quantidade. Os demais desenhos foram de Pedro Cornas, J. Q., Claudinha D’Onofrio, Pedro dos Reis, Sebastião Faria, A. Donato de Souza, Marianinha Guimarães, Armando Natale, Augustinho e H. Novais. (M.R.)


Conexão

ROBÔS Direitos e deveres das máquinas

A realidade da sociedade robotizada desperta questões complexas e impõe leis muito mais profundas que as propostas por Isaac Assimov TEXTO Yellow

Durante muito tempo , as “leis” da robótica, definidas em 1942 pelo autor de ficção científica Isaac Asimov, eram apenas três: 1. Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal. 2. Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei. 3. Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal

proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis. Embora essas leis tenham sido objeto de culto e especulação durante décadas, hoje, quando nos deparamos com o princípio de uma sociedade robotizada, questões mais complexas começam a tomar foco. Graças a avanços na capacidade de processamento dos computadores, torna-se cada dia mais acessível a aplicação de automação para a tomada de decisões e realização de tarefas de

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crescente complexidade. A utilização de cada vez mais agentes artificiais autônomos tem estimulado mudanças urgentes em nossas legislações. Os veículos autônomos estão rapidamente tornando-se uma realidade em ruas e estradas de todo o mundo. Os entusiastas da tecnologia dizem que veículos autônomos serão mais seguros e mais econômicos, e apostam que, em breve, a direção por seres humanos é que será proibida. Como o ato de dirigir é uma importante peça


MANUELA DOS SANTOS

cultural, econômica e social, a presença deste novo agente provocará mudanças consideráveis na infraestrutura, nas sociedades e em suas regras. A história do “carro que dirige sozinho” é longa, e envolve os esforços de muitas instituições de pesquisa e empresas, desde o início da década de 1990. Segundo a revista IEEE Spectrum (Fevereiro/2016), Apple, Audi, BMW, Ford, General Motors, Google, Honda, Mercedes, Nissan, Nvidia, Tesla, Toyota e Volkswagen são fabricantes de automóveis que têm investido no desenvolvimento de veículos autônomos. Atualmente, o projeto de maior visibilidade é o Google Car. Desde o segundo semestre de 2015, uma atualização de software disponibilizou aos proprietários de carros elétricos Tesla o acionamento da função de piloto automático. Hoje, a lei da maioria dos países permite que o veículo seja controlado automaticamente, desde que haja um humano de prontidão ao volante.

Em novembro do ano passado, a Google fez um pedido de esclarecimentos ao Congresso dos Estados Unidos sobre o que os regulamentos definiam como “motorista”, e o que a lei exigiria caso o responsável por guiar o veículo não fosse um humano e, sim, uma inteligência artificial. Em 9 de fevereiro deste ano, o governo americano decidiu que quem utilizar os carros autônomos da Google não será mais considerado motorista, apenas passageiro. Uma carta da Administração de Segurança de Tráfego das Estradas Nacionais, endereçada ao programa de carros autônomos da empresa, diz que: “se nenhum ocupante humano pode de fato dirigir o veículo, é mais razoável identificar o motorista como o que (e não quem) estiver de fato dirigindo”. Essa decisão é importante. Implica, em primeiro lugar, que os automóveis não precisam mais sair de fábrica com volantes ou pedais. Para amenizar a estranheza de um automóvel sem controle, o mais novo modelo tem a aparência

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infantil de um bebê com um sorriso. Outra implicação da decisão é a de que, no caso de um acidente em que se prove a culpa do robô, a responsabilidade recairá sobre o fabricante. Até fevereiro de 2016, os automóveis autônomos da Google, ainda em fase de teste, estiveram envolvidos em 17 acidentes, e ficou provado que nenhum deles foi causado pelos robôs. Mas acidentes causados por máquinas estão longe de serem apenas uma teoria. Robôs industriais, cirúrgicos – e até mesmo sistemas de metrô – já causaram danos e morte aos seres humanos. Dado o potencial de disseminação da tecnologia, é apenas uma questão de tempo até que um dos carrinhos sorridentes da Google passe por cima de um pedestre checando o WhatsApp no meio da rua. Os construtores aguardam que a lei estabeleça exatamente quando os acidentes serão considerados de sua responsabilidade, e quanto terão que pagar por eles. A maioria dos


FOTOS: DIVULGAÇÃO

1 RYAN CALO Professor norte-americano é autor de livros e estudos sobre legislação da robótica

3 STOP KILLER ROBOTS Campanha pede o banimento da “assassina” usada em campos de batalha

GOOGLE CAR 2 Este veículo dispensa direção e pedais

Conexão 1

especialistas acredita que um acidente levará a um processo sobre defeito de design. Isso preocupa as empresas de automóveis por alguns motivos. Primeiramente, esse tipo de processo é caro, independentemente de quem o vença, por envolver testes e avaliações de especialistas. Em segundo lugar, há a possibilidade de imposição de um recall. E, finalmente, porque a lei americana costuma recorrer a indenizações punitivas nesse tipo de situação. As tais indenizações punitivas são aplicáveis por conduta ultrajante no design ou manufatura de um produto defeituoso. O exemplo mais famoso do recurso foi o processo de 1994, Liebeck versus McDonald’s, que culminou em uma indenização de U$ 2,7 milhões por uma queimadura de café quente, servido em um copo descartável. Devido ao risco de tal punição, um acidente causado por um veículo autônomo pode custar muitos milhões ao fabricante. No futuro imaginado por Isaac Asimov, um acidente envolvendo motoristas-robôs seria resolvido, fazendo uma analogia com a aviação, “acessando a caixa preta” do veículo e reconstruindo os inputs que seu sistema

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recebia e seu processo de decisão, identificando assim se o acidente foi causado pelo defeito de um sensor, se o processamento foi afetado por alguma falha mecânica ou se, em último caso, o hardware funcionava perfeitamente, e o acidente foi causado por uma inconsistência algorítmica. Tal procedimento legal seria rápido e barato, e abriria até mesmo a possibilidade para que julgamentos fossem realizados por outros robôs. Mas os fabricantes não querem que isso ocorra. O que a indústria automobilística espera, e começa a fazer lobby a favor, é a isonomia no tratamento de acidentes causados por motoristas humanos e veículos autônomos, no caso, que sejam avaliadas as condições climáticas, de visibilidade, da pista, da sinalização, a posição e o trajeto percorrido pelos veículos envolvidos. Desse modo, a “mente” do motoristarobô permaneceria fora da equação judicial, e seria avaliada apenas a sua conduta, o que reduziria em muito as custas de um processo. Mas essa abordagem antropocêntrica arrisca engessar o amadurecimento de leis específicas para os robôs.

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LEI AMERICANA

A última tecnologia transformativa, a internet, forçou as cortes a revisitarem as regras de jurisdição e propriedade intelectual. Foram necessários muitos anos para que a legislação se adaptasse ao comportamento de seus usuários. A robótica, porém, não é um tema completamente novo para o direito. O professor Ryan Calo, que ministra a disciplina Robot Law and Policy na University of Washington, revisita, no artigo Robots in American law, publicado em março deste ano, nove casos em que figuravam robôs. Ao fazer um estudo de caso desses exemplos, Calo diferencia papéis desempenhados por robôs na corte. O primeiro conjunto de casos destaca robôs no papel de objetos da lei, quando a disputa judicial tem robôs como tema. Entre outros problemas, as cortes já foram obrigadas a decidir se robôs representam algo “animado”, para fins de tarifas de importação, se pianos automáticos podem ser considerados artistas, para fins de taxas estaduais sobre salas de concerto, e se uma equipe de resgate tem direito de posse


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sobre um naufrágio, se o mesmo foi encontrado e visitado por um submarino não tripulado. O segundo conjunto foca em robôs como sujeitos (ou agentes) da imaginação judicial. Tais exemplos exploram as versáteis e, muitas vezes, pejorativas funções que robôs prestaram ao raciocínio judicial. Um dos casos conclui que juízes não precisam agir como robôs na corte, por exemplo, ou aplicar roboticamente a lei. Outro caso jurisdiciona que uma testemunha robótica não deve ser confiada. E ainda outro estabelece que pessoas que cometem crimes sob “controle robótico” (como um militar que obedece a ordens de patentes superiores) podem escapar da responsabilidade por seus atos. Juntos, esses estudos de caso apresentam uma imagem cheia de nuances da maneira como as cortes abordam uma tecnologia cada vez mais importante. O artigo conclui que juristas, em geral, possuem um entendimento precário e cada vez mais ultrapassado sobre os robôs e, portanto, não estarão aptos a abordar os novos desafios que serão impostos por sua presença. Calo é um dos organizadores do livro Robot law, publicado em março deste ano, um compêndio de artigos que discute a definição de robôs e inteligência artificial perante a lei, e o estabelecimento dos primeiros passos para a definição de uma legislação robótica, em campos como ética, responsabilidade, execução da lei e guerra.

ARMAS TERRÍVEIS

Os drones, veículos controlados remotamente, espalham o horror no novo ambiente da guerra, mas já existem tecnologias mais letais e cruéis a despontar. É chegado o momento de discutir os rápidos avanços no desenvolvimento de armas completamente autônomas. Tais mecanismos robóticos são capazes de escolher e acertar alvos sem a necessidade de intervenção humana. A justificativa para o uso de armas autônomas é de que existe um pequeno intervalo de tempo entre o apertar do gatilho de um

Livro Robot law, lançado em março, reúne artigos que discutem a aplicação de uma futura legislação robótica operador remoto e o disparo, e, em determinadas situações, não há tempo suficiente para que o piloto de um drone interprete os dados de sensores ou câmeras e consiga atingir seu alvo. Exemplo de uma dessas armas em atividade, na fronteira entre as Coreias, estações automáticas de rifles telescópicos têm permissão para abrir fogo contra qualquer movimento detectado na zona desmilitarizada. Os robôs de guerra, no entanto, tomam várias formas, como o míssil

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de longo alcance produzido pela Lockheed Martin para a DARPA, que, uma vez lançado, é capaz de identificar o alvo e estabelecer sua trajetória automaticamente. No dia 11 de abril, a Cruz Vermelha se uniu à campanha Stop Killer Robots, que tem como objetivo a conscientização do problema, visando o eventual banimento deste tipo de automação. A organização compara a nova tecnologia a outras que já foram banidas por sua crueldade, como as armas químicas e o lança-chamas.

CONTRA A CRUELDADE

Fundada em Seatle em 1999, a American Society for the Prevention of Cruelty to Robots tem como missão garantir os direitos de todos os seres sencientes criados artificialmente. A opinião da sociedade é a de que qualquer criatura senciente (tenha sido ela criada artificialmente ou não) possui direitos inalienáveis, que devem ser garantidos a partir de sua criação, e não pela vontade de seu criador. Alguns desses direitos seriam à Existência, Independência e à Busca por Maior Cognição. O grupo também parte do pressuposto de que as leis atuais de propriedade e capital tentarão ser aplicadas em oposição ao exercício de tais direitos. Robôs, e todas as inteligências fabricadas, provavelmente, passarão por um período no qual serão tratados como “propriedade” antes de serem reconhecidos como criaturas sencientes. O principal objetivo do


FOTOS: DIVULGAÇÃO

Conexão 4

4 KATE DARLING Pesquisadora do MIT estuda a relação entre robôs e humanos ROOMBA 5 Aparelho de limpeza pode ser tratado como um animal doméstico

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ASPCR é despertar a conscientização do público em geral sobre questões éticas e morais acerca das inteligências artificiais. Isso inclui a discussão das implicações éticas e morais de trazer ao mundo criaturas mecânicas, porém capazes de desenvolver sentidos, e a responsabilidade que este ato traz consigo. Enquanto a ASPCR acredita que direitos só serão garantidos aos robôs após suas inteligências artificiais adquirirem consciência, um fenômeno que ainda não conseguimos explicar ou detectar, outros acham que as primeiras leis de proteção aos robôs surgirão bem antes disso. A pesquisadora do MIT Media Lab, Kate Darling, pesquisa a interação entre humanos e robôs. Em uma de suas oficinas, ela separa uma sala em grupos de três a cinco pessoas, e entrega a cada um deles um Pleo, um robô de brinquedo na forma de

um dinossauro, que reconhece sons e movimentos e interage com as pessoas. Durante cerca de 10 minutos, ela permite que os grupos brinquem com o robô e criem pequenos jogos. Após este período de reconhecimento, ela chama a atenção de todos e pede: “agora quero que vocês amarrem o robô e o impeçam de andar”. Com o aumento da severidade das tarefas, pedindo para que os grupos atormentem e danifiquem os robôs, a maioria das pessoas se sente incomodada, apesar de ser adulta e saber que a criatura não é capaz de sentir dor ou estresse. A pesquisadora observa que as pessoas desenvolvem empatia verdadeira pelos robôs. Existem, é claro, brinquedos como o Pleo e o Furby, e outros robôs, como o Seal, um bebê foca japonês usado terapeuticamente, no tratamento de idosos e pessoas com demência,

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que são feitos com o intuito de explorar essa dinâmica na interação entre humanos e robôs. Mas robôs de design funcional, que não têm rostos com grandes olhos brilhantes, também provocam essa reação nas pessoas. Os donos dos aspiradores Roomba, por exemplo, logo se apegam ao aparelho e se incomodam quando eles ficam presos em algum canto da casa, ou quando alguma visita inconveniente coloca obstáculos em seu caminho para se divertir. A pesquisadora Julie Carpenter, Ph.D. em Ciências Pedagógicas, em seu livro Culture and human-robot interaction in militarized spaces: A war story, lançado em fevereiro deste ano, relata que soldados costumam desenvolver relações de amizade com robôs descartáveis, como os que auxiliam no desarmamento de bombas, tratando-os como membros de suas equipes e atribuindo-lhes nomes, e chegam a sofrer sintomas de depressão e estresse pós-traumático, quando os robôs cumprem sua derradeira função, a de serem explodidos no lugar de um ser humano. Kate Darling acredita que nossos sentimentos de empatia por esses objetos nos levarão à criação das primeiras leis de proteção aos robôs. Em uma de suas palestras, ela lembra que, durante muito tempo, nos Estados Unidos, era proibido o consumo de carne de cavalo, embora fosse considerado normal o consumo de qualquer outro tipo de carne. A explicação é que as pessoas costumam travar relações de amizade duradouras com os inteligentes equinos. O amor aos cavalos também deve muito à cultura do cinema faroeste, no qual os animais eram estrelas que chegavam a figurar com destaque em trailers e cartazes. Se o tormento de um robô nos incomoda, talvez não seja ético infligi-lo. Darling aposta que, em breve, surgirão os primeiros casos em que pais alegarão traumas em seus filhos para justificar a punição de quem venha a postar no YouTube um vídeo de um Furby em chamas. E este será o início da marcha dos robôs em reivindicação dos seus direitos.


ANDANÇAS VIRTUAIS

ARTE Editora independente, Zazie Edições disponibiliza livros digitais gratuitos piseagrama.org/

Na contramão do circuito comercial e apostando no financiamento coletivo, os editores Laura Erber e Karl Erik Schollhammer fundaram

a Zazie Edições, com o objetivo de publicar livros de arte gratuitos e prioritariamente digitais. A editora carioca surgiu no fim do ano passado,

logo após o anúncio do fechamento da Cosac Naify. A Zazie nasce de modo independente no Rio de Janeiro e vem, de certo modo, preencher um nicho do mercado editorial, mas se afasta do modelo clássico que preza por obras luxuosas, caras e físicas. Os criadores da casa editorial, ambos professores universitários, afirmam na descrição do site que o foco é produzir livros que invistam em “formas de contato entre as linguagens artísticas e os discursos que as atravessam e catalisam”. A coleção de estreia, Ninguém mais sabe, é formada por 11 livros e baseia-se em desenhos e em um pequeno texto no qual cada artista explica suas motivações. O título refere-se a versos do escritor e compositor John Cage (1912–1992), “O que é um desenho?/ Ninguém mais sabe”. Entre os autores convidados, estão Carla Gagliardi, Fernanda Lopes, Tove Storch (Dinamarca), Tatiana Podlubny e Luiza Leite. Destaque para o poeta, escritor e desenhista carioca Zuca Sardan, com o livro de poesia gráfica brabuletas. MARINA MOURA

CINEMA

AFRO

CONTRACULTURA

FOTOGRAFIA

A Lavoura se propõe a reunir textos que discutam cinema com criticidade

Cultura negra é destaque do conteúdo do site oficial do AfroPunk Festival

Com um acervo de material anarquista e punk, site difunde o antinormativo

Revista eletrônica de fotografia dedica-se à leitura artística e conceitual da imagem

Formada por sete jovens pernambucanos, A Lavoura é um site dedicado à crítica cinematográfica. A intenção do grupo é se afastar da grande quantidade de páginas “com críticas disfarçadas de peças publicitárias, ou peças publicitárias disfarçadas de críticas”. Assim, o trunfo do site é justamente valorizar a produção crítica aprofundada, com posts pouco contemplados pela mídia tradicional, numa “luta contra o esquecimento”, como afirmam na descrição.

Além de informações sobre o evento, o site oficial do AfroPunk Festival disponibiliza conteúdos de formas contemporâneas de cultura negra dentro de várias vertentes, como moda, música, artes plásticas e cinema, com artistas de várias partes do globo, incluindo brasileiros como Karol Conká. Outros festivais de música negra também possuem conteúdo no site, a exemplo do Race Music Paris e o Afro Punk Fest Brooklin.

Com o intuito de difundir a cultura política anarquista, o NoGodsNoMasters disponibilza um grande catálogo de material referente ao assunto, incluindo arquivos da cultura punk que vão desde camisas e CDS a livros, com destaque para a quantidade de zines que existem no site, tudo à venda. As temáticas vão desde a perspectiva anticapitalista até a violência antifascista e as lutas indígenas, um cenário contracultural que espelha a revolta das minorias contemporâneas.

http://alavoura.com/

http://www.afropunk.com/

http://nogods-nomasters.com/

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http://iconica.com.br/site/

A Icônica é uma publicação independente focada na crítica artística da fotografia de uma forma ampla. Tem edição de Rubens Fernandes Junior, Ronaldo Entler, Mauricio Lissovsky, Cláudia Linhares Sanz e Pio Figueiroa, além de contar com a seção Paragem, na qual artistas são convidados a publicar suas pesquisas, somando-se aos artigos dos editores. O site também possui página no Facebook (Icônica de Bolso).


HELDER FERRER

CON TI NEN TE

ESPECIAL

NANÁ VASCONCELOS As últimas criações do percussionista genial Falecido no dia 9 de março, o músico pernambucano deixa como legado uma obra singular, além de um álbum inédito, que nasceu em meio à doença TEXTO Michelle de Assumpção

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Por trás de uma pesada máscara de

balão de oxigênio, que lhe permitia a respiração naqueles últimos dias, os olhares de Naná buscavam os de Patrícia, sua mulher. Eram de indagações, urgências. Os gestos também auxiliavam na comunicação. Queria papel, saber das visitas que constantemente entravam no apartamento e saíam do setor de internação; não queria ser sedado, queria estar consciente e, mais do que tudo, deixar seus últimos registros. Ele sabia que restava pouco tempo, mesmo que não pensasse nisso; tinha pressa. Dali a instantes, receberia duas visitas que seriam essenciais às suas criações musicais derradeiras. O maestro Gil Jardim e o músico Egberto Gismonti foram testemunhas de que a música, para Naná, estava além de qualquer restrição. O maestro Gil Jardim conheceu Naná em 1994, no Festival Heineken Concerts, em São Paulo. O percussionista e Egberto Gismonti eram os anfitriões do palco, que recebeu convidados como Don Cherry, Bob Stewart e Vernon Reid. Don Cherry, entre fins dos anos 1970 e início dos 1980, foi um dos integrantes, junto a Naná e o citarista Colin Walcott, do grupo Codona, cujos discos foram lançados pelo selo ECM. Codona é uma junção das sílabas iniciais nomes dos seus integrantes e o grupo foi um dos expoentes do que se convencionou chamar de world jazz. À frente da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, Gil Jardim e demais convidados seguiram para o Rio de Janeiro, no dia seguinte ao Festival Heineken, para a edição carioca do evento. Naná, que havia assistido a Gil em São Paulo, convidou-o para um café da manhã. Ali, nascia uma amizade que marcaria profundamente a vida dos dois e geraria os concertos Berimbau e orquestra, Noite das estrelas, Again-again, Cortina e Goreé. Além do projeto ABC Musical, que foi apresentado em diversos formatos, no Brasil e em outros países. No domingo, 6 de março deste ano, Gil Jardim chegou apressado ao quarto de Naná Vasconcelos. O percussionista pediu que acendessem a luz, para ver se era mesmo ele. Depois, que trouxessem papéis e o

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CON ESPECIAL TI NEN TE

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seu gravador, para que Gil ouvisse e transcrevesse o que ele já havia gravado. Na tarde da segunda-feira, trabalharam por mais de duas horas. Primeiro, na música Tentações de São Sebastião, que compuseram para um filme, tempos atrás. Estava no iphone do maestro. “Ele escutou atentamente os oito minutos de música que eu havia desenvolvido e gravado em MIDI. São lindos. Sempre pensamos que a melodia deveria ter a voz de Milton. Como sempre, imediatamente, Naná entrou numa frequência que bem conhecíamos: música, música, música, um espaçotempo que junta passado, presente e futuro. Nós nos conectamos dali pra frente nessa sintonia.”

Durante esse encontro, Naná pediu que o maestro ouvisse o track 10 do seu gravador. E Gil ouviu o que ele havia criado: “Amém, amem!” Um mantra surgido espontaneamente, a partir da fala de um vídeo de agradecimento que Naná gravou e publicou em sua página do Facebook, após sair do hospital, em sua primeira internação depois da descoberta da doença em agosto de 2015. “Logo identifiquei uma grande frase que estabelecia uma parte A e uma progressão melódica que seria o material da parte B. Escrevi rapidamente. Nesse processo, fui cantando para ele diversas vezes e ele me corrigindo sempre na mesma nota. A exemplo de como trabalhamos outras vezes, estruturamos a forma da composição, sua arquitetura,

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variações, interlúdios, reexposições etc. A obra é sacra, para vozes, orquestra de cordas e tambores, com duração entre oito e 10 minutos”, descreve Gil. Quem estava no quarto e testemunhou o processo criativo conta que levará na memória a cena em que Naná, ofegante e quase já sem respiração, passou a batucar numa garrafinha de vidro a condução da percussão da música. Depois, trocou a garrafinha pelas grades da cama do hospital e tentou comunicar a sua linha ao maestro. Os dedos ainda eram ágeis e certeiros. “Sim, sim, Naná, estou entendendo.” Missão cumprida. Com Egberto, que chegou na terça-feira, 8 de março, a produção não frutificou. Naná estava mais fraco,


HÉLIA SCHEPPA

RECORDAÇÕES 1 Ao lado, fotografias do músico em vários momentos da sua vida. Ao centro, retrato da mãe

diversos periódicos e participou até mesmo de um programa esportivo. Uma manchete em particular chamoulhe a atenção: “El budista afro de la percusión”, estampou o jornal La Nacion, que comparou Naná, “com seu berimbau parecendo um martelo de Thor”, às figuras do artista surrealista Mati Klarwein, cujas pinturas ilustraram capas de LPs nos anos 1970. Naná Vasconcelos, que não cansou de repetir “eu sou o Brasil que o Brasil não conhece”, contou ao jornalista argentino Jorge Luis Fernandez que

Em 2015, na Argentina, Naná recebeu a alcunha de “afro-budista” e fez dela uma música, Um budista afro-budista além disso, não conseguiu achar, em seu gravador, a melodia da música Um budista afro-budista. Ficou a encomenda e deve ser Egberto quem terminará a música para o álbum, que trará as gravações inéditas deixadas por Naná.

NA AMÉRICA LATINA

Em junho de 2015, Naná saiu em turnê pela América Latina. Realizou shows solo com suas percussões em Buenos Aires, Montevidéu e Santiago. De Santiago, havia saído surpreso e feliz ao saber que, em frente ao teatro onde realizava o show, ambulantes vendiam camisetas e canecas com seu nome e suas fotografias. Na Argentina, a repercussão por sua passagem continuou. Naná foi capa de

havia duas músicas no Brasil: “a música popular e outra, pra pular”. E que, mesmo sendo brasileiro, o que apresentava (em seus shows solo) não era necessariamente música brasileira. Era isso que mostraria lá na Argentina. Sua música, disse, não cabia em nenhum desses dois lugares. Naná gostava do olhar do estrangeiro sobre o que criava. Achava que, no Brasil, não se fazia ideia do que ele representava lá fora. Por isso, inspirou-se no título da matéria para compor mais uma música: Um budista afro-budista. A gravação, caseira, aconteceu num momento posterior, quando o câncer chegava mais ameaçador e Naná, que nunca havia expressado identidade por nenhuma

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religião (ele gostava de meditação), acatou a sugestão de um amigo músico de ir buscar tratamento com o médium João de Deus, em Goiás. Desse retiro, Naná voltou esperançoso, energizado e pronto para mais um Carnaval. Agora era a vez de ser o Naná brasileiro que o mundo não conhecia. Foi o 15º ano conduzindo mais de 700 batuqueiros pelas ruas do Recife Antigo, até chegar à sua principal praça cívica, o Marco Zero, tomado por milhares de foliões. Da primeira vez em que foi convidado para conduzir o Carnaval, à frente dos maracatus e seus respectivos mestres, Naná assustouse e achou que poderia não dar certo. Deu certo, mas não existiu um ano em que não tivesse que resolver problemas. Fossem gerados pelas disputas comuns entre as diversas nações de maracatu – sobretudo as mais antigas e famosas –, fosse pela rivalidade de artistas de outros gêneros que queriam espaço também na grande vitrine que é a abertura oficial da folia momesca no Recife. Nesses 15 anos de ritual carnavalesco, conduzindo mestres e nações maracatuzeiras, Naná deixou poucos registros sonoros e audiovisuais dessas experiências, do que produziu com os dois grupos que criou e que o acompanhavam não só no Carnaval, mas em outras apresentações no Brasil: Voz Nagô e Batukafro. Com relação a esta memória, um documentário está sendo produzido e a ideia do projeto é resgatar a história de Naná no Brasil. Deverá trazer também imagens de atividades dele em outros países, como na França, onde, pela primeira vez, teve a experiência de trabalhar com música para crianças. Naná, que chegou a discutir o formato do filme, queria finalizar as gravações num estúdio em Nova York, com artistas de todo o mundo que foram importantes para sua carreira. A ideia do documentário é também prestar um serviço de coleta de acervo espalhado ao redor do mundo e que Patrícia Vasconcelos, a viúva do músico, pretende recolher para, no futuro, transformar num memorial virtual de sua obra. Sua preocupação é conter o que diz ser uma ânsia de


CON ESPECIAL TI NEN TE HÉLIA SCHEPPA

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pessoas que querem fazer projetos usando o nome de Naná, mas que não têm, em sua opinião, verdadeira relação com a obra ou mesmo o pensamento do músico. Na casa em que viviam, no Bairro do Rosarinho, zona norte do Recife, Patrícia é agora guardiã de um acervo com ares de sagrado. Nem mesmo ela podia tocar nos instrumentos do marido, sempre manipulados por ele próprio ou por seu roldie e amigo Edelvan Guimarães, que os arrumou cuidadosamente para as fotografias exclusivas que ilustram esta reportagem. Os instrumentos que Naná levava para o palco, junto aos que eram mais usados em gravação, estão, em boa parte, no estúdio caseiro do músico. Mas Patrícia acredita que existem outras dezenas deles espalhados por estúdios de São Paulo, Itália e Nova York. Começa, para ela, um trabalhoso e necessário

Os shows que o percussionista faria na Ásia, em abril, contaram apenas com o parceiro Egberto Gismonti processo de levantamento e coleta de acervo, inclusive musical.

MÚSICA DOS TROVÕES

A produtora japonesa Mari Kimura quis ver de perto a força de Naná em seu próprio país, quando chegou à sua casa no final de 2015 para lhe entregar tsurus feitos por fãs do músico no Japão. Tsurus são origamis de um pássaro que, segundo a lenda, pode viver até mil anos. No Japão, o objeto é sinônimo de desejo por boa saúde e recuperação. Mari

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entregou os tsurus a Naná e teve a chance de ouvir histórias de outros percussionistas recifenses a respeito dele e da relação de sua obra com a música percussiva do estado, a música dos trovões, dos batuques, de reis e rainhas remanescentes das nações africanas dos maracatus. Durante a visita, Naná surpreendeu Mari: surgiu na sala tocando magistralmente seu berimbau, numa demonstração de vitalidade, força, ou seja, tinha condições de ir, sim, ao Japão, onde há quase 20 anos não tocava. A produtora, assim que retornou ao seu país, confirmou o convite para que Naná fizesse a turnê na Ásia, acompanhando seu parceiro lendário, Egberto Gismonti. “Naná Vasconcelos é um músico especial, muito amado pelos admiradores da verdadeira música. Fazia tempo que ele não ia ao Japão, mas a paixão que temos por ele no país é muito


INSTRUMENTOS 2 Na casa do músico, no Rosarinho, acervo que só é manipulado, agora, pelo amigo e roldie Edelvan Guimarães GUARDIÃ 3 Patrícia Vasconcelos, viúva de Naná, tem se dedicado a organizar o legado do percussionista

forte. Ao anunciar o duo de Egberto Gismonti e Naná, tivemos uma reação esmagadora e os bilhetes para a capacidade do Concert Hall, de 1.500 lugares, foram todos rapidamente vendidos”, relata Mari. A vontade de Naná e dos fãs japoneses – e asiáticos – não pôde ser satisfeita. O concerto previsto transformou-se numa homenagem, intitulada Egberto Gismonti solo – Remembrance of Naná Vasconcelos. Os shows aconteceram em abril deste ano, nos dias 16, 20 e 22, na China (Xangai), Japão (Tóquio) e Coreia do Sul (Seul), respectivamente. Egberto reproduziu músicas de Dança das cabeças e levou instrumentos como as kalimbas, que, em sua opinião, expressavam o conceito de Naná de fazer percussão. Também foram exibidos vídeos e fotos do pernambucano, inclusive com os batuqueiros no Carnaval do Recife.

A produção de um documentário e de um disco com sete faixas são alguns dos trabalhos póstumos em andamento

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“Acreditamos que o espírito dele esteve conosco”, comentou Mari.

RESPIRE FUNDO

Na primeira internação de Naná, houve um médico que, diariamente, fazia-lhe a ausculta. “Respire fundo” era a frase que, aos poucos, tirava a paciência do músico. Por algum motivo banal, simplesmente, não tolerava os exames rotineiros e a mesma ordem de sempre. “Respire fundo.” Para resolver a intolerância à situação, transformou a ordem médica em poesia

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instrumental. Naná foi procurado pela bailarina Paula Vital, do Balé Dança Vida, de Ribeirão Preto, para que compusesse a trilha de um espetáculo que abordaria o caos da cidade. Naná contou que já tinha um tema e Paula lhe enviou uma primeira parte da coreografia. O músico começou a montagem da trilha, mas não teve tempo de acabar. Dos 20 minutos de trabalho gravado, sairá mais uma faixa para o CD póstumo: Respire fundo e diga trinta e três. O álbum deverá ter entre seis e sete músicas. São criações dos períodos do internamento do músico, entre agosto de 2015 até o seu falecimento. Um disco, segundo Patrícia, “sacro”, mais ligado às experiências de vida e à consciência cósmica, de suas leituras cada vez mais constantes do livro que há 30 anos manteve na cabeceira e nas malas: Autobiografia de um iogue, do guru indiano Paramahansa Yogananda. No último dia em vida, Naná recebeu amigos, despediu-se de um dos mais constantes e importantes da sua vida, Egberto Gismonti, da sua filha Luz Morena, de Patrícia, de Gil, entre outros queridos que estiveram com ele em sua caminhada até o instante final. Ficou desperto até onde pôde. Decidiu o momento em que seria sedado: nove horas da noite, mostrou com os dedos. Assim foi feito. Às 7h40 do dia seguinte, 9 de março, Naná perdeu os últimos sinais vitais. Partiu. Ele, que tinha pressa em definir o álbum, chegou a dizer que queria um disco parecido com o que produziu com Itamar Assumpção, Isso vai dar repercussão, que teve apenas sete faixas. Gil Jardim conta que, junto a Patrícia Vasconcelos, encontrará o melhor momento para produzir musicalmente esse material e dividir os sons com todos. Com calma, diz ele, Naná estará presente em cada nota.


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Viagem

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LONDRES Gente por toda parte! Com uma população que contabiliza hoje 8,6 milhões de habitantes, a capital inglesa é a expressão do projeto de desenvolvimento e consumo do capitalismo TEXTO Guilherme Carréra FOTOS Clarissa Gomes

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Quando a plataforma atinge a

capacidade máxima de passageiros ávidos pela chegada do próximo trem, não tem jeito. A entrada ao subsolo é interrompida, a escada de acesso se transforma em sala de espera e às dezenas de trabalhadores, estudantes e turistas só resta aguardar pacientemente – turistas nem tão pacientemente assim, tudo bem. A hora é do rush, mas o engarrafamento humano é uma constante não só nas plataformas e escadas, mas nas ruas e avenidas de Londres. Não importa o horário: a vendedora atende dois ou três clientes ao mesmo tempo, a reserva no restaurante tem hora para começar e para ser encerrada, até sol e chuva vão e vêm com a mesma pressa que o passageiro ávido tem para chegar ao lar, doce lar. São 8,6 milhões de homo sapiens atravessando a capital inglesa de cima a baixo, de leste a oeste, da neblina da manhã à noite iluminada, do chá que desperta à cerveja do fim do expediente. E quase 37% desse formigueiro vem de fora, diz o Office for National Statistics. A diversidade é tanta, que faz com que gente de toda parte do mundo

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Viagem se sinta em casa. Ou nem tanto. Um colega chinês me confessou que não vê a hora de voltar para sua Xangai. Chegou há pouco mais de seis meses para se doutorar em uma universidade londrina, mas a barreira da língua e os costumes ocidentais têm impedido sua completa adaptação. Um trio de anos pela frente pode fazê-lo mudar de opinião. A amiga de Changchun, por exemplo, gostou tanto, que voltou. Passou um ano fazendo um master pelas bandas de cá e agora tem mais quatro de doutorado pela frente. O clima frio, ressalva que muitos atribuem a Londres, é café pequeno para ela. Sua cidade natal chega a 30 graus negativos no inverno. Na terra de Elizabeth II, impossível. Raramente neva e o termômetro costuma flutuar entre zero e oito graus na temporada de frio. A chuva, que mais incomoda do que molha, obriga guarda-chuvas a tiracolo. Na Oxford Street, a icônica via do comércio de rua, eles

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Além de ter conquistado o pódio entre os destinos turísticos, Londres é a cidade mais citada nas redes sociais

estão corriqueiramente à venda. Comprar, aliás, é um dos verbos mais conjugados nessa e em outras ruas. Na New Bond Street, reduto de grifes internacionais, não se conhece o significado de barganha. Em 2014, um levantamento do Sunday Times avisou que Londres é a cidade com maior número de bilionários do planeta. Enquanto alguém compra um guarda-chuva no mercado de Camden Town, a algumas quadras do pub que era favorito de Amy Winehouse, The Hawley Arms, o suntuoso The Wolseley, por exemplo, recebe de Madonna a Samuel L. Jackson para mais um lanche vespertino. Um garçom dedicado não deixa o cliente sair sem experimentar o cheesecake

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que nenhuma outra receita consegue igualar. O preço não é módico porque o bairro pertence a nobilíssimos. Nas redondezas, o Palácio de Buckingham ainda se regozija por ter celebrado os 90 anos de sua rainha, aquela que por mais tempo na história comanda a nação britânica. São 64 anos. Ela é querida, mas seus bisnetos andam roubando os holofotes. O primeiro dia de aula do príncipe George Alexander Louis, três anos incompletos, foi capa do jornal distribuído gratuitamente no metrô. Inaugurado em 1863, o sistema de transporte subterrâneo se estende por 408 km: é o mais antigo do mundo e o maior do Ocidente. A estação mais profunda se encontra em Hampstead, o Leblon dos bairros londrinos. Afastado do centro, tem cara de interior. Mas não se engane, o metro quadrado vale tanto quanto aquele da área central. A La Crêperie de Hampstead, a bem da verdade, não é elitista. A fila dobra o quarteirão, tamanha a popularidade. Difícil mesmo é prever quando as francesas responsáveis pelo quiosque resolvem aparecer – nem sempre


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elas cumprem o horário previsto na plaquinha. Vai ver é o charme. Mas, se a fome for maior que a decepção em não poder devorar o crepe de banana com Nutella, escolha outra nacionalidade para provar dos temperos. Mexicana, tailandesa, italiana, japonesa, síria, espanhola, coreana, libanesa, argentina. A lista é imensa. Se o domingo não for preguiçoso, deixe o sunday roast do pub mais perto passar na frente. Tem prioridade. Esqueça o superestimado fish and chips, a carne (de boi, frango ou porco), acompanhada de batata, cenoura, repolho e o tal do pudding (spoiler), dá forma a esse típico prato de domingo dos ingleses.

FILA PARA EXPOSIÇÃO

Alimentado, já é possível encarar a fila para conseguir visitar alguma das inúmeras exposições em cartaz. Uma inglesa camarada me alertou que, caso esteja chovendo, melhor pensar duas vezes antes de se mandar, digamos, para a Tate Modern. O disputado centro cultural às margens do Tâmisa costuma lotar nos dias de chuva. Na Royal Academy of Arts, quase

em frente ao obrigatório cheesecake do Wolseley, a dinâmica não foge à regra. Mas qualquer uma de suas exposições temporárias merece cada pingo de chuva na cabeça, enquanto você espera do lado de fora. Ainda não comprou o guarda-chuva? Por outro lado, é injusto relegar o sol à sombra. Na medida em que o solstício de verão se aproxima, os dias se alongam. E os parques viram os protagonistas. Do Hyde Park ao Hampstead Heath, bicicletas, piqueniques e espreguiçadeiras quase fazem os londrinos se esquecerem da pontualidade britânica. No norte de Londres, Primrose Hill vale a subida até o cume. É a continuação do Regent’s Park, aonde desavisados não costumam ir. No horizonte, a roda-gigante da London Eye se destaca ao longe. Assim como o pico de The Shard, o edifício mais alto da capital. Para subir, a vista a 310 metros do solo custa 30 libras ao passante. No câmbio atual, nada menos que R$ 150. À noite, a cidade se veste do que der na telha. Se Camden Town é a porção rocker da realeza, East London

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1 BIG BEN

Passantes, táxis e ônibus nos arredores da atração

2 FEIRA

“I love rain”: os guarda-chuvas voadores de Notting Hill

não tem estilo definido. Antiga zona industrial, o leste londrino é a bola da vez entre os hipsters. A região se reinventou com a chegada de ateliês, escritórios descolados e inferninhos da madrugada. Loja de vinil? Tem. Antiquário da vovó? Sim. Café orgânico das Índias? Presente. No Bairro de Shoreditch, o Brick Lane Market foi descoberto pelos turistas e lota aos domingos. De perfume indiano, mistura galpões recém-reformados, food trucks e street art. Só perde em fama para o sábado animado do Portobello Road Market, a feira ao ar livre de Notting Hill. Mas aí já chegamos ao oeste. E haja estação de metrô pelo caminho. Em King’s Cross St. Pancras, não só de metrô, mas também de trem. Se Paris é mesmo uma festa, a senha para o rendez-vous se pega daqui. No coração de Londres, a estação liga as duas metrópoles em pouco mais de duas horas.


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Viagem 13 MILHÕES DE LIVROS

Quem não embarca em um dos vagões da Eurostar tem os 13 milhões de livros da British Library à disposição do lado de fora. A cinco minutos do terminal internacional, a biblioteca britânica reúne tudo o que já foi publicado no idioma inglês. Se considerarmos manuscritos, cartografias e composições, o número de itens chega a inimagináveis 170 milhões. Parece mentira, mas é palpável. Quer dizer, depende do que o visitante deseja tocar. Para conhecer as instalações, basta iniciativa. Para frequentar as salas de leitura e ter acesso à parte do valioso acervo, é preciso seguir uma cartilha à inglesa. Justificativa para interesse, registro prévio, solicitação de credencial. Armários para os pertences pessoais, permissão para fotocopiar apenas 5% de cada livro, toda e qualquer leitura restrita à sala. Se não deu tempo de terminar as últimas páginas de Charles Dickens ou Jane Austen, volte amanhã. Mas amanhã já é hoje. Café preto para despertar. Um sanduíche, por favor. Dois minutos para o próximo ônibus. A velocidade da vida tangível reverbera online. Além de ter conquistado o pódio entre os destinos turísticos, Londres deixou Paris e Nova York para trás no quesito Google. Desde 2004, é o lugar mais buscado no endereço eletrônico. No ano passado, as palavras “Londres” e “viagem” foram digitadas juntas cerca de 630 mil vezes, de acordo com a base de dados do Spredfast. Foi também a cidade mais mencionada no Twitter e o cenário para mais selfies postadas no Instagram. Em 2016, além do aniversário da rainha Elizabeth II, as comemorações aos 400 anos da morte do dramaturgo William Shakespeare devem impulsionar ainda mais seu alcance virtual. Em junho próximo, os britânicos vão às urnas escolher se querem ou não que o Reino Unido deixe sua cadeira na União Europeia. O referendo proposto pelo primeiro-ministro David Cameron pode ocasionar a maior mudança no panorama europeu em anos. O debate

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3 TÂMISA

Da Lambeth Bridge vê-se a Westminster Bridge, duas das pontes que cortam o rio

4 LETREIRO ELETRÔNICO

Cidade tenta coordenar fluxo intenso de pedestres nas suas vias

se desdobra nos programas de TV tanto quanto a incógnita em relação ao futuro dos refugiados sírios. São dois assuntos que encabeçam, dia sim, dia não, os editoriais da BBC e companhia. Enquanto o primeiro se detém nas consequências que uma decisão interna pode gerar ao resto do mundo, o segundo trata do horror da guerra e de possíveis estratégias para solucionar um caos que emana do Oriente para afetar o núcleo duro do país. Dois lados de uma mesma moeda, ambos os tópicos engendram o local e o global, o nativo e o estrangeiro, o poder e o medo. Estamos em Londres, não podia ser diferente.

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ROTEIRO CLÁSSICOS E MODERNOS DA TERRA DA RAINHA Oxford Street A mais famosa rua de Londres é o endereço da loja de departamento Selfridges. Fundada em 1909 pelo norte-americano Harry Selfridge, o empreendimento revolucionou a moda e o consumo na Inglaterra. Suas principais concorrentes são a Liberty (Regent Street) e a Harrods (Brompton Road). Oxford Circus Station. New Bond Street Uma das ruas mais caras da Europa, a New Bond Street é o endereço de marcas como Armani, Chanel e Louis Vuitton. Localizada no bairro de Mayfair, sede de importantes embaixadas, é vizinha do emblemático cinco estrelas Claridge’s, fundado em 1856. Bond Street Station. The Hawley Arms Conhecido como o pub favorito de Amy Winehouse, The Hawley Arms fica no bairro alternativo de Camden Town, no norte de Londres. Aberto diariamente do meio-dia à meia-noite; sextas e sábados, até 1h. Camden Town Station. Mais informações: www.thehawleyarms.co.uk. The Wolseley Com salão originalmente construído nos anos 1920, a cozinha art déco do Wolseley serve café da manhã, almoço, chá da tarde e jantar desde 2003. Antes, o espaço foi showroom de automóveis e sede bancária. Prove o cheesecake. De segunda a sexta, das 7h à meia-noite; sábado, das 8h à meia-noite; e domingo, das 8h às 23h. Green Park Station. Mais informações: www.thewolseley.com. Palácio de Buckingham Residência oficial da Família Real desde 1837, o Palácio de Buckingham é o principal ponto de visitação em Londres, depois do Big Ben. Pontualmente, às 11h30, é onde acontece a famosa troca da guarda. Entre os meses de abril e julho, todos os dias; de agosto a março, em dias alternados. Green Park Station. Mais informações: www.royal.gov.uk. La Crêperie de Hampstead O trailer da dupla francesa funciona todos os dias, das 13h às 23h. Crepes doces e salgados, sendo o de banana com Nutella o carro-chefe do cardápio. No número 77 da Hampstead High Street, a dois minutos da estação de metrô. Hampstead Station.

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Tate Modern Além de exposições temporárias, a galeria é a responsável pelo acervo oficial da arte britânica produzida de 1500 para cá. Em junho, terá sua nova sede inaugurada. Serão 10 andares dedicados a happenings, instalações e videoarte. No topo, uma vista em 360 graus. De domingo a quinta, das 10h às 18h; sextas e sábados, até as 22h. Valor do ingresso a depender da exposição. Southwark Station. Mais informações: www.tate.org.uk. Royal Academy of Arts A RA não só promove exposições ao público, como formação para artistas. Diferentemente de outros espaços culturais, não recebe subsídio do governo, dependendo fortemente de doações de visitantes e patrocinadores. Aberto diariamente das 10h às 18h; sextas, até as 22h. Valor do ingresso a depender da exposição. Green Park Station. Mais informações: www.royalacademy.org.uk. The Shard Prédio mais alto de Londres, o quarto da Europa e o 87º do mundo, o The Shard foi inaugurado em 2013. Além do terraço aberto à visitação, possui restaurantes, escritórios, hotéis e até apartamentos residenciais em sua planta. London Bridge Station. Mais informações: www.the-shard.com. Brick Lane Market Principal mercado de East London, reúne lojas de segunda mão, restaurantes indianos e performances no meio da rua. É também o endereço do Old Truman Brewery, uma antiga fábrica que hoje funciona como centro comercial no número 91 de Brick Lane. Aldgate East Station. Mais informações: www.visitbricklane.org. Portobello Road Market Imortalizada na comédia romântica Um lugar chamado Notting Hill, a feira ao ar livre acontece diariamente, sendo o sábado o dia mais movimentado. O forte são as peças de antiguidades. A partir das 9h. Ladbroke Grove Station. Mais informações: www.portobelloroad.co.uk. British Library Maior biblioteca pública do mundo, a British Library abre de segunda a sábado, a partir das 9h30, e aos domingos, a partir das 11h. Se você não tiver reading pass, pode visitar o museu, comprar na lojinha ou almoçar no restaurante. King’s Cross St. Pancras Station. Mais informações: www.bl.uk.


FOTOS: REPRODUÇÃO

Sonoras 1

PET SOUNDS Cinquentenário da joia da música pop

Obra-prima de Brian Wilson, líder dos Beach Boys, completa 50 anos como um dos álbuns mais aclamados e influentes da história TEXTO Débora Nascimento

Julho de 1963: Brian Wilson, já

líder dos Beach Boys, circula pelos corredores do Gold Star Recording Studios, em Los Angeles. Pela vidraça de uma das salas, observa a movimentação de uma gravação e é avistado por Veronica Yvette Bennett, principal cantora das Ronettes e que logo se chamaria Ronnie Spector. Um

mês depois, dirigia seu carro, ladeado pela namorada e futura esposa Marilyn Sandra Rovell, quando, do rádio, um som boom/ boom boom! no bumbo e tcha! no caixa de uma bateria lhe arrebata. Era o início de Be my baby, canção cujo registro ele testemunhou brevemente. Impactado, encostou o automóvel para poder ouvir o restante da composição,

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que logo se tornaria uma de suas obsessões – sendo a maior delas se transformar num produtor tão bom quanto o responsável por essa música, Phil Spector. Naquele verão de 1963, aos 21 anos, Brian Wilson era um dos artistas promissores dos Estados Unidos e certamente o mais talentoso jovem músico da Califórnia. Compôs alguns dos hits radiofônicos de seu país. Nesse princípio da década, sua vida parecia, como diria o título de uma das coletâneas da banda, um endless summer, um verão sem fim. O baixista e pianista gravava, pela Capitol, discos bemsucedidos ao lado de seus dois irmãos, Carl (guitarra) e Dennis (bateria), do primo Mike Love (vocal) e do amigo Al Jardine (guitarra). As inquietações que brotavam na costa leste norte-americana, mais precisamente em Nova York, capitaneadas por outro jovem artista,


1 BRIAN WILSON Baixista e pianista compôs, arranjou e produziu o 11º disco dos Beach Boys 2 PET SOUNDS Álbum de 1966 encabeça listas de melhores de todos os tempos

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Bob Dylan, de 22 anos, não afetavam a visão de mundo romântica dos garotos crescidos num bairro de classe média baixa de Hawthorne. As preocupações dos rapazes eram (ou pareciam ser) garotas, carros e surfe – embora só um deles pegasse ondas, Dennis. Com a morte precoce do frontman dos prestigiados Crickets, Buddy Holly, aos 22 anos, em 1959, os Beach Boys, que surgiriam no mesmo 1962 de Bob Dylan, formavam o grupo de rock mais badalado da primeira metade da década de 1960. Tudo aparentava estar sob controle na carreira do quinteto, até Brian Wilson ser, mais uma vez, abismado por algo que escutaria no rádio. “Aquilo explodiu minha cabeça!”, disse sobre I wanna hold your hand. Os Beach Boys esperavam tudo, menos que o seu reinado fosse abalado por estrangeiros. Após o desembarque dos Beatles nos Estados Unidos, em 7 de fevereiro de 1964, nada mais

seria como antes. “Nós sabíamos que éramos bons, mas tivemos que correr para não ficarmos para trás”, contou Brian. Então, em plena beatlemania, os californianos lançaram um de seus sucessos, I get around, que estourou, inclusive, na Inglaterra. Mas a presença crescente dos Fab Four na mídia começou a ser um incômodo, e o progresso artístico dos concorrentes ingleses, desafiador. A gota d’água no mar agora revolto de Brian Wilson foi Rubber soul, lançado em dezembro de 1965. O sexto LP dos Beatles causou espanto pelo fato de ter entre suas 14 faixas nada menos que 14 músicas fantásticas, mudando, assim, o conceito que se tinha sobre “Lado A”, com dois ou três hits, e “Lado B”, com canções mais fracas e menos radiofônicas. Além disso, o vinil inovava ao incluir um instrumento completamente diferente dos utilizados no rock’n’roll (baixo, guitarra, bateria, teclados). Logo na segunda faixa, Nowergian wood, George Harrison apresenta ao Ocidente a cítara, que se tornaria icônica em seu trabalho. Rubber soul, em suma, virou o mote que Brian estava precisando para desengavetar uma versão que havia feito de uma música das Bahamas, Sloop John B, e que seria a faixa-referência para o disco que burilava em sua mente. O artista, que tivera, em um voo a trabalho, o primeiro de seus ataques de pânico, comunicou à banda que não mais viajaria na turnê do começo de 1966. Ficaria em

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casa compondo. Começou, então, a arquitetar o plano de realizar um álbum que não soasse como os 10 anteriores dos Beach Boys – lançados num curto período de quatro anos. Primeiro, pensou num novo parceiro para as letras, o redator publicitário e autor de jingles Tony Asher, que prontamente aceitou o convite. A ideia era ter alguém no lugar de seu primo, Mike Love, letrista e principal vocalista, que não desejava sair da temática “garotas, carros e surfe”. Brian, que foi substituído temporariamente na turnê por Bruce Johnston (até hoje no grupo), também aproveitou a ausência dos integrantes para convocar o maior exército de músicos de estúdio dos Estados Unidos, conhecido nos bastidores como The Wrecking Crew (A Equipe de Demolição). Esse conjunto, de cerca de 60 instrumentistas, estava por trás de gravações importantíssimas do período, como I got you, baby (Sonny & Cher), Strangers in the night (Frank Sinatra), California dreamin’ (The Mamas and The Papas), Mrs. Robinson (Simon & Garfunkel) e de todos os sucessos de Phil Spector, como Be my baby (The Ronettes). Com apenas 23 anos, o beach boy se viu obrigado a driblar a timidez e a insegurança para liderar esses profissionais gabaritados. Segundo o baterista Hal Blaine, o mesmo da batida memorável de Be my baby e de A little less conversation, de Elvis Presley, inicialmente o Wrecking Crew não


FOTOS: REPRODUÇÃO

Sonoras 3

entendeu por que fora chamado para fazer um disco de surf music de uma banda que tinha músicos de verdade. Quando Brian apareceu com suas partituras toscas, ficaram ainda mais confusos sobre o que o rapaz queria. À medida que as gravações avançavam, os instrumentistas, antes receosos, passaram a confiar no arranjador, que não possuía educação formal na área, mas exibia um talento raro. Na volta da turnê, que incluía o Havaí e Japão, os Beach Boys mostraram-se surpresos ao encontrar o disco praticamente pronto, pois Brian havia dito que iria apenas compor, mas trabalhou rapidamente, entre janeiro e início de fevereiro de 1966, não somente na composição, mas também na gravação. Mike Love foi um dos mais resistentes em aceitar a mudança nas letras e nos arranjos. Alegou que o álbum “era muito artístico” para seus fãs. E chegou a exigir a alteração de temas, como o de I know there’s an answer, que antes se chamava Hang on to your ego. “Brian estava muito preocupado. Queria saber o que nós pensávamos sobre isso. Para ser honesto, acho que eu nem sabia o que era um ego. Finalmente, Brian decidiu: ‘esquece, estou mudando a letra. Há muita controvérsia’”, lembrou o guitarrista Al Jardine. Na realidade, essa foi uma das raras concessões de Brian com relação a Pet sounds. Ele resistiu à pressão dos irmãos, do primo, da gravadora e do pai, Murry Wilson, o agente da banda.

“Sem dúvida, mudou a maneira como eu e inúmeros outros músicos passamos a gravar”, disse Elton John sobre o disco Então, as vocalizações, marca dos Beach Boys, foram a maior participação dos outros integrantes. O principal compositor, mais uma vez, levou a mesma rigidez da gravação dos instrumentos aos vocais. Quando os membros do grupo pensavam que já haviam cantado muito bem alguma faixa, ele repetia os takes, até finalmente considerar que estava perfeita. Reza a lenda que surgiu daí o título do disco. Mike Love ironizou o perfeccionismo, dizendo que apenas ouvidos caninos conseguiriam ouvir a harmonia vocal que o primo almejava. Brian também chegou a afirmar que Pet sounds fazia referência às iniciais de Phil Spector. Após quatro meses, que envolveram o processo de composição, gravação, mixagem, masterização e prensagem, finalmente, em 16 de maio de 1966, a obra foi lançada. A maior parte da crítica ovacionou. Algumas faixas tiveram boa repercussão nas rádios. Brian, porém, ficou insatisfeito: o álbum ocupou o 10º lugar no ranking dos mais vendidos. Para ele, isso significava que o seu trabalho não tinha sido bemrecebido pelo público.

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No entanto, em 1966, o álbum estava apenas começando a provocar seu impacto. Eric Clapton afirmou que o LP havia sido peça fundamental durante a formação do seu power trio com Jack Bruce e Ginger Baker, o Cream. Graham Nash, de Crosby, Stills, Nash &Young, contou que todos os músicos que conhecia tinham ficado chocados com Pet sounds. Elton John registrou: “Eu nunca tinha ouvido essa mágica de sons, gravados de forma surpreendente. Sem dúvida, mudou a maneira como eu e inúmeros outros músicos passamos a gravar. É um registro atemporal e uma gravação de incrível beleza e gênio”. Paul McCartney revelou, em 2000, que chorou ao ouvir o disco: “Tem algo de tão profundo nessa música, que mesmo alguns pedaços dela podem fazer isso comigo, simplesmente alcançam lá fundo em mim. Acho que é sinal de um grande gênio ser capaz de fazer isso”. O ex-beatle atestou que Pet sounds foi influência determinante para os Beatles realizarem Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Ambos os álbuns, até hoje, alternam o topo das listas de melhores discos de todos os tempos. Nos últimos rankings, o dos Beach Boys aparece em 1º lugar no New Musical Express, The Times e Mojo, e em 2º na Rolling Stone. Registrado em mono e posteriormente remasterizado em estéreo com o acréscimo de algumas faixas, Pet sounds inicia com a arrebatadora Wouldn’t be nice, apresentando o que viria nas próximas 13 músicas, arranjos extremamente


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complexos, harmonias vocais sublimes, conteúdo lírico, reflexivo e sentimental. Além dos tradicionais guitarra, baixo, bateria e teclados, que foram duplicados na gravação, Brian Wilson incluiu dezenas de outros instrumentos não ligados ao rock, como seções de metais, cordas e efeitos sonoros de objetos. Pela primeira vez, o teremim era usado na música pop. As letras, menos alegres que as de costume, falavam de amor de uma forma mais profunda. Os momentos em que o disco atinge seu ponto máximo são na épica I’m waiting for the day, na instrumental Let’s go away for awhile, na versão de Sloop John B e em God only knows, que McCartney apontou como sua música preferida.

BASTIDORES

A feitura de Pet sounds teve um preço e não foi somente o valor pago pela Capitol. Durante a realização do disco, Brian Wilson passou a apresentar um comportamento excêntrico, como realizar reuniões na piscina. O motivo: achava que Phil Spector tinha grampeado sua casa para descobrir seus projetos musicais. Apenas dois dias depois do lançamento do LP, voltou-se ao registro de uma faixa que inicialmente faria parte de Pet Sounds, Good vibrations, mas que integrou Smiley smile, de 1967. A música, considerada o melhor single de todos os tempos, tornou-se uma obsessão. Foram seis meses ininterruptos destinados especificamente à gravação. A Capitol

gastou U$ 65 mil com o aluguel de quatro estúdios (segundo o compositor, cada um tinha uma acústica apropriada para gravar determinados instrumentos), tornando-o também o single mais caro da história. Para entender Brian Wilson, é preciso saber um pouco sobre o histórico familiar. Seu pai, Murry Wilson, era um músico que não obteve sucesso, mas via nos filhos uma forma de realizar seu sonho e de ganhar dinheiro. Por isso forçou, sob abusos físicos, os três rebentos a montarem um grupo e a ensaiar incansavelmente. Devido a essa intimidação, o filho mais velho tornou-se um maníaco perfeccionista. Em 1964, ele e os irmãos reuniram a coragem necessária para demitir o pai do cargo de gerente da banda. Murry ainda tentou investir na sua carreira. Um ano depois do lançamento de Pet sounds, lançou The many moods of Murry Wilson, sem repercussão alguma, e, em 1969, vendeu sorrateiramente os direitos das músicas dos seus agenciados por U$ 700 mil, uma quantia insignificante. Questionado pelo autor das composições, o pai argumentou: “Em cinco anos, ninguém vai lembrar de você nem dos Beach Boys. Talvez agora possamos voltar a ser uma família novamente”. Tarde demais. Em 1973, ele morreria, aos 55 anos, de um ataque cardíaco, e Brian passaria 10 anos, de 1966 a 1976, longe dos palcos e próximo das drogas (maconha, heroína, cocaína e LSD).

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3 THE WRECKING CREW

Experiente equipe de músicos de estúdio foi contratada para gravar Pet sounds

4 CAROL KAYE Baixista, integrante do Wrecking Crew, durante sessão de gravação do disco 5 RETA FINAL Brian Wilson conduz o registro das vocalizações do álbum

Em 1976, o músico tentou sair da dependência química e da depressão que o levou a pesar 158 quilos. A esposa, Marilyn Wilson-Rutherford, realizava algumas ações para animálo, como organizar, em sua residência, uma festa de aniversário para os 34 anos do marido, convidando parentes, amigos e colegas de profissão, como Paul e Linda McCartney, que apareceram com os filhos. Nesse mesmo ano do anúncio de sua volta aos palcos, o Saturday Night Live fez um especial com os Beach Boys. O destaque do programa era o esquete com Dan Aykroyd e John Belushi, vestidos de policiais, invadindo a casa do grandalhão de 1,90 m para tirá-lo da cama e leválo, de roupão mesmo, ao mar para surfar. A fotógrafa Annie Leibovitz, à espera na praia, fez o clique que virou a capa da Rolling Stone de 4 de novembro daquele ano. Na entrevista


FOTOS: REPRODUÇÃO

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6 ROLLING STONE

Em 1976, no ano de sua volta aos palcos, Brian Wilson foi capa da revista

7 NO ESTÚDIO O baterista Hal Blaine e Brian Wilson durante a gravação de Pet sounds 8 PHIL SPECTOR Compositor e produtor, ídolo de Brian, ao lado de Ronnie Spector, das Ronettes

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Sonoras para a revista, Brian dá respostas desconexas, fala sobre meditação, a dificuldade de voltar a compor como antes e revela que sua mulher contratou dois guarda-costas para não deixá-lo consumir drogas. Ao final da conversa, perguntou ao jornalista David Felton se não teria cocaína ou anfetamina para lhe dar. E insistiu. O agravamento do vício se deu entre 1982 e 1992, quando, já divorciado de Marilyn, com quem esteve casado entre 1964 e 1979, passou a ficar sob o domínio do psicoterapeuta Eugene Landy. O médico tratou a dependência de drogas com a prescrição excessiva de remédios e ainda explorava o paciente financeiramente. Landy surgiu quando Brian quase morreu

Em 1982, após quase morrer de overdose, Brian passou a ser tratado por médico que assumiu o controle de sua vida de overdose de cocaína em 1982. No princípio, parecia ser uma boa influência, pois reformulou sua dieta e estabeleceu uma rotina de exercícios para baixar o peso. No entanto, foi assumindo o controle da vida do músico. De médico virou gerente de negócios, produtor-executivo e – mais assustador – tutor legal. Nesse período, o artista mal conseguia articular frases ou dar entrevistas sem a presença opressora do “guru”, que tratava o doente como um prisioneiro em sua própria residência.

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Em 2015, o filme Love & Mercy abordou esse período tenebroso da trajetória do beach boy, com os atores Paul Dano e John Cusack interpretando o músico nas fases jovem e adulta, respectivamente. Mostrou, também, como a segunda e atual esposa de Brian, Melinda Ledbetter (interpretada por Elizabeth Banks), conseguiu tirá-lo das mãos de Landy (Paul Giamatti). A cinebiografia trouxe à tona episódios terríveis da vida do artista, como a surdez de um ouvido, provocada por um murro de seu pai. “Achei muito difícil de assistir. Mas isso não foi tão ruim quanto a minha vida real era”, desabafou durante a estreia. Em 1983, Dennis Wilson, o único beach boy que sabia surfar, morreu afogado, e, em fevereiro de 1998, Carl Wilson faleceu de câncer, dois meses depois do enfarte fatal da mãe, a pianista Audree Wilson. Após essas


INDICAÇÕES ROCK

PJ HARVEY The hope six demolition project Vagrant

ROCK PSICODÉLICO

PLUCKING WINGS Plucking Wings Balaclava Records

Cinco anos após o premiado Let England shake, PJ Harvey volta a lançar um disco em que aborda a vida de pessoas em situação de risco. Em vez de se basear em relatos e documentos antigos, como no anterior, desta vez as letras foram inspiradas nos acontecimentos dos lugares visitados pela artista britânica e pelo fotógrafo e documentarista irlandês Seamus Murphy, autor dos videoclipes do álbum. Das 11 faixas do discoreportagem, destacam-se The comunity of hope e The wheel.

Integrante da banda The Twelves, o multi-instrumentista João Miguel decidiu realizar seu sonho antigo de produzir canções inspiradas nas referências de sua adolescência – Radiohead, Smashing Pumpkins e REM – quando aprendeu a tocar guitarra. À maneira do projeto pernambucano Badminton, produzido integralmente por Felipe Vieira, o Plucking Wings é centrado na guitarra de bastante personalidade, mas recorre a instrumentos do psicodelismo, como o sintetizador que produz o clima etéreo do disco.

COUNTRY

INDIE

Atlantic

Independente

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mortes, Brian fez uma retomada de sua carreira sabendo que deveria levar adiante o legado dos Beach Boys, embora seu primo Mike Love sempre queira tomar a posição de liderança da banda – em 2012, no ano do cinquentenário dos Beach Boys, Mike saiu em turnê sem chamar seu principal integrante, o que gerou polêmica na imprensa musical. No mês passado, Brian Wilson deu início à turnê comemorativa dos 50 anos de Pet sounds, que passará por diversos estados norte-americanos, além de Canadá, Israel, Reino Unido e Espanha. Para celebrar esse momento, o site da revista Pitchfork reuniu dezenas de depoimentos de músicos, de Tina Weymouth, do Talking Heads, a Sean Lennon, sobre o disco. Num longo texto confessional que resgata a rivalidade entre os Beatles e os Beach Boys, o filho de John Lennon conclui: “Brian Wilson é o meu Bach”. Aos 73 anos, com 40 discos de estúdio no currículo (29 com o grupo e 11 em carreira solo) e

há muito tempo afastado das drogas, Brian Wilson finalmente tem consciência da importância de sua obra e, em particular, de Pet sounds, tanto que resolveu embarcar nessa maratona de 67 shows, realizando o desejo de milhares de aficionados por ele e por esse disco. “Dizem que Pet sounds é o melhor álbum de todos os tempos, mas pra mim é A Christmas gift for you from Phil Spector”, declarou. Cinquenta anos atrás, quando estava gravando sua obra-prima, saiu cabisbaixo do Gold Star Studios, o mesmo em que tinha dado uma espiada na gravação de Be my baby. Então, Hal Blaine, o baterista dessa emblemática música, foi saber o motivo do desânimo. O artista disse estar preocupado com a forma como a banda reagiria ao ouvir o disco. Blaine enfatizou que Brian estava comandando uma equipe de músicos experientes, formados em conservatório, que gravaram com todo mundo, de Elvis a Sinatra, inclusive com o ídolo do beach boy e surpreendeu o rapaz de 23 anos: “Phil Spector não é nada perto de você”.

LORETTA LYNN Full circle Depois de 12 anos longe dos estúdios, a cantora e compositora Loretta Lynn volta a lançar um álbum. Aos 83 anos, faz um balanço de sua vida e carreira, como o título sugere. Full circle começa com a primeira canção composta por ela, Whispering Sea, segue por músicas folclóricas de sua formação musical, revisita sucessos e apresenta novas músicas, dentre elas Lay me down, gravada em dueto com outra lenda do country, Willie Nelson, que rendeu um belo clipe.

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XÓÕ XÓÕ

O primeiro registro do coletivo Xóõ começa com uma música verborrágica, de discurso grandioso sobre a história da humanidade e o tom segue pelas oito faixas, mas sem alcançar o mesmo êxito. O combo é formado por integrantes de diversas outras bandas: Vitor Brauer (vocalista da Lupe de Lupe), Bruno Schulz (músico que tocou com Cícero), Cairê Rego e Felipe Pacheco (do coletivo Baleia), Gabriel Barbosa (do trio carioca SLVDR), além de Larissa Conforto, Gabriel Ventura e Hugo Noguchi, do Ventre.


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CASQUINHO A maestria artesanal de Margarida Nunes A história de resistência dessa iguaria praieira feita com carne de caranguejo é difundida por uma família do Recife a partir de notícias trazidas do Pará TEXTO Flora Noberto FOTOS Rafael Medeiros

Quem se delicia com um casquinho (ou casquinha, como preferir) de caranguejo, em bares e restaurantes, muitas vezes não imagina a história e o trabalho por trás dessa iguaria. Para os amantes do crustáceo, é um prazer encontrar a carne do caranguejo temperadinha, sem necessitar quebrar a dura carapaça, apesar deste ritual trabalhoso também ter inúmeros fãs. Prontos para o consumo rápido, os casquinhos são saboreados como entrada em almoços ou como petisco acompanhando uma cerveja ou caipirosca. No Recife, Margarida Nunes é o nome lembrado pela cadeia gastronômica por cumprir com rigor o preparo dos casquinhos de caranguejo. O seu nome ganhou a força de uma marca nos bastidores de bares e restaurantes. Ela é figura importante de uma história familiar de mais de 100 anos. Sim, esta é uma daquelas belas e saborosas histórias que atravessa gerações. Margarida aprendeu a receita do casquinho de caranguejo com a mãe, Josefa Nunes, que, por sua vez, já tinha aprendido com a respectiva mãe, Sílvia Nunes. Após o falecimento de Margarida, aos 83 anos, em outubro de 2015, o capricho teve continuidade com seus filhos –Miriam Meira Leite, Wilma Meira Tinoco e Cláudio Nunes Amazonas – e uma equipe fiel de funcionários. O casquinho de Dona Margarida Nunes ganhou fama e até hoje é servido nos principais bares, restaurantes, clubes, delicatessens do Recife e em festas

O pioneirismo na confecção da iguaria começou com Sílvia Nunes, avó de Margarida, que fornecia para o Savoy de políticos e empresários da cidade. Produzidos diariamente, também podem ser levados para casa direto da fábrica, instalada num sobrado preservado, na Rua Imperial, Bairro de São José. O proprietário do tradicional restaurante Pra Vocês, localizado no Pina, Severino José Reis, é um dos clientes antigos da família Nunes. “Há mais de 40 anos, eu compro os casquinhos de Dona Margarida. Cheguei a conhecer a mãe dela. Trabalho no Pra Vocês desde a década de 1950, era garçom naquela época. O casquinho dela é o preferido. Se colocássemos casquinho de outra pessoa, ninguém pediria”, conta Severino. O pioneirismo na confecção da iguaria começou com Sílvia Nunes, avó de Margarida, que fornecia casquinhos por encomenda para restaurantes como o Savoy e também os vendia na porta de casa. Sílvia chegou a ser gerentegeral do Grande Hotel. O casquinho de caranguejo surgiu na sua vida através de um membro da família que comentou sobre o petisco que comeu no Pará. A empreendedora culinária gostou da ideia e disse que poderia fazer o casquinho

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de caranguejo no Recife. Então, desenvolveu sua própria receita. Sua filha e neta, Josefa e Margarida Nunes, seguiram os passos da matriarca na cozinha e chegaram a trabalhar juntas. O empreendedorismo se perpetuou na família e o casquinho passou a ser protagonista dos negócios. “A base da receita do casquinho é a mesma, passou da minha bisavó para minha avó e dela para minha mãe e, depois, para nós, filhos. Mas as fórmulas da minha bisavó e da minha mãe eram distintas. Nossa bisavó usava um determinado ingrediente e nossa mãe acrescentou outro diferente, que deu um sabor a mais”, relata Cláudio Nunes, sem revelar os insumos. A receita não era divulgada por Dona Margarida e os filhos continuam mantendo o segredo. A média quantitativa de vendas e o faturamento também são mantidos em sigilo.

DENTRO DA CARAPAÇA

A qualidade do petisco feito artesanalmente é um orgulho para a família Nunes. O creme de caranguejo é produzido com leite de coco natural. Nada de usar leite industrializado. Além do sabor, um diferencial do casquinho é apresentação atraente para fisgar os comensais. O creme feito com a carne do crustáceo é servido tradicionalmente dentro da carapaça do bicho. Já existem ramequins de porcelana e cerâmica no formato do crustáceo, que facilmente poderiam ser adotadas por serem mais práticos para o manuseio e limpeza.


Cardápio

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No entanto, o petisco servido no casco original continua reinando no mercado gastronômico praieiro. Por trás dessa tradição, existe um processo artesanal que exige cuidado com a estética e a segurança alimentar. Os pelos são retirados das carapaças, que são lavadas e higienizadas com hipoclorito de sódio. O processo é delicado, pois o casquinho não pode rachar ou quebrar. Dona Margarida dominou esta técnica com maestria e os seus petiscos passaram a ser reconhecidos pelos clientes fiéis por terem os cascos bem claros. Outra característica dos casquinhos de Margarida é a cor da farofa, bem amarela, que vem em cima da carne. A casa na qual funciona, até hoje, a fábrica artesanal de casquinhos foi onde Margarida nasceu, casou, criou os seus filhos e desenvolveu seu negócio. A sala é mantida no formato residencial, com móveis antigos de madeira, como mesa de jantar, marquesão e cristaleiras. A rotina da fábrica começa cedinho, às 6h, quando os oito funcionários iniciam os preparativos. Às 9h30, os acepipes já estão chegando fresquinhos

“Aqui funciona 365 dias por ano. Minha mãe nunca aceitou guardar casquinho de um dia para o outro” Cláudio Nunes às delicatessens da cidade. “Aqui funciona 365 dias por ano. Aqui não fecha, é igual à delegacia e hospital. O casquinho é feito diariamente, minha mãe nunca aceitou guardar casquinho de um dia para o outro”, afirma, com orgulho, Cláudio Nunes, o filho caçula de Dona Margarida, que está à frente da gestão do negócio familiar há 18 anos. Um dos estabelecimentos onde se pode encontrar os famosos casquinhos é a Casa dos Frios. A proprietária Fernanda Botelho Dias diz que, desde o início do negócio, oferece o item entre seus quitutes. “A Casa dos Frios está com nossa família desde 1957 e sempre compramos os casquinhos de Margarida. Chegaram aqui e nos ofereceram, então, passamos a comprar, porque quando o

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produto é bom a gente coloca na loja. Os casquinhos dela são bem-vendidos”, diz. Nos dias de aumento das vendas, como no Natal e na virada do ano, as filhas Miriam e Wilma colocam a ‘mão na massa’, junto com os netos de Margarida, para reforçar a produção. Ainda que exerçam outras profissões – uma é fisioterapeuta e a outra, servidora pública –, as duas são conhecidas pela agilidade e precisão no enchimento dos casquinhos. “O comércio é arraigado nas nossas veias, vem de bisavó. Minha mãe procurou ensinar dentro do comércio toda a dignidade e fidelidade do que a pessoa faz, ensinou a amar aquilo que ela fazia, por isso não foi difícil para a gente colaborar, estar aqui junto com ela”, explica Miriam. Margarida gostava de trabalhar todos os dias, dizia que o trabalho era o seu hobby. Como cresceu no Bairro de São José, reduto carnavalesco, aprendeu a apreciar a folia. Wilma conta que Margarida fazia questão de ver o desfile do Galo da Madrugada e esperar o trio elétrico com o grupo Som da Terra passar. Ela era fã e amiga dos músicos da banda, que tocou no badalado restaurante Las


1 CARAPAÇAS

Processo artesanal exige cuidado com a estética e a segurança alimentar

2-3 HERANÇA Filhos são os

responsáveis por manter o padrão de qualidade estabelecido por Margarida Nunes

Vegas, de propriedade de Margarida junto com o marido, Wilson Meira Oliveira. O estabelecimento, localizado na beira-mar de Olinda, foi mantido de 1973 a 1982, em paralelo à fábrica de casquinhos.

OUTROS QUITUTES

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A casa da Rua Imperial já chegou a fornecer mais de 20 tipos de doces, salgados e pratos como fritadas de caranguejo, bacalhau e vatapá. Atualmente, além do casquinho, produz coxinha de galinha, bolinho de bacalhau, casadinho de camarão e pastel de festa. Mas o carro-chefe da empresa familiar é mesmo o casquinho. O empresário Cláudio Nunes conta que, quando era criança, via os caranguejos chegarem vivos em sacos. Sua mãe os lavava, cozinhava e extraía a carne para fazer os casquinhos. “Trabalhar com comida não é fácil, ainda mais crustáceo. Minha mãe só conseguiu fazer esse nome e manter porque nunca abriu mão da qualidade. Às vezes, ela tinha que ‘brigar’ com o fornecedor porque a mercadoria não estava do jeito que ela queria. Como o caranguejo é sazonal e onde o homem chega acaba com tudo, hoje os mangues estão cada vez mais escassos. Por isso, buscamos a mercadoria tão longe, para ter a qualidade que ela sempre exigiu e que a gente não vai de jeito nenhum deixar cair”, explica Cláudio, que, atualmente, compra carne de caranguejo congelada, vinda do Piauí e do Maranhão. Dona Margarida conquistava todos com os seus casquinhos. Mesmo quando estava internada no hospital, ela pedia para os filhos trazerem a iguaria para distribuir com os médicos e enfermeiros. Para alcançar o sucesso e mantê-lo por tanto tempo, os filhos contam que a mãe sempre foi extremamente dedicada, firme nas suas convicções e também cativante e solidária com funcionários e clientes. Para garantir o seu padrão de qualidade, a quituteira consolidou uma


4 EMPRESA

À frente da equipe, os filhos de Margarida: Cláudio Nunes Amazonas, Miriam Meira Leite e Wilma Meira Tinoco

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equipe duradoura. Josias Leão foi um funcionário exemplar que esteve na fábrica por mais de 40 anos. Atualmente, o encarregado (como chamam o chefe da equipe) é Luís Carlos da Silva, Carlinhos, há mais de 30 anos na casa. Apesar do sucesso, a matriarca empreendedora também teve que superar dificuldades e até trapaças na sua trajetória. Certa vez, um restaurante estava comercializando os casquinhos fornecidos por ela junto com outros de fabricação própria. Quando soube, Margarida pediu que o estabelecimento decidisse se ficaria com os dela ou se faria os próprios petiscos, pois não queria que os clientes confundissem os produtos. O restaurante decidiu pela fabricação própria e, depois de 60 dias, desistiu, voltando a encomendar seus casquinhos. Há ainda relatos de quem use peixe em vez de caranguejo, enganando os consumidores. “Alguns bares usam de má-fé e dizem ser nosso o casquinho, que não é – terminam passando vergonha. Às vezes, o cliente chega aqui e conta que fez um escândalo em tal lugar porque perguntou se o casquinho

era de Margarida, o garçom disse que era. Mas, quando o cliente comeu, percebeu que não era, pois, na verdade, o sabor era de peixe”, conta Cláudio. Os casquinhos da Rua Imperial também resistiram a uma crise provocada por epidemia de cólera na cidade. A filha Miriam relembra que o caso foi superado com a ajuda de uma estratégia ousada do então governador para retomar a confiança dos consumidores: “Tivemos um surto de cólera no início dos anos 1990, e isso abalou muito o comércio dos que trabalhavam com frutos do mar. Nós sofremos com isso. Financeiramente, foi um período péssimo. Então, para reverter a situação, o governador Joaquim Francisco decidiu tomar banho de mar e levar uma comitiva ao restaurante Maxime para comer peixada, e divulgou isso. O dono do restaurante, que era amigo da nossa família, procurou mamãe antes, para saber se ela aceitaria e se responsabilizaria pelos casquinhos. Ela aceitou e disse que ninguém ficaria doente. Os casquinhos foram servidos na entrada do almoço e saíram nas fotos divulgadas nos jornais”.

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Com essa história de vida e paixão pelo fazer com as mãos, Dona Margarida, sua família e equipe de trabalho nos mostram que, mesmo em tempos de fast-food e comidas processadas em máquinas, o artesanal vale a pena e mantém seu espaço. O casquinho de caranguejo vem da cozinha do Bairro de São José com o sabor da resistência.

ONDE ENCONTRAR CASQUINHOS DA RUA IMPERIAL Encomendas pelos telefones (81) 3224-5501 | 3224-0914

BARES E RESTAURANTES Bar Real, Bar do Neno, Bistrô e Boteco – Shopping Recife, Boteco Barrazone, Boteco Maxime, Boteco Rio Mar, Restaurante Alphaiate, Restaurante Pra Vocês, Restaurante Samburá, Restaurante O Jabá, Restaurantes Tio Armênio – shoppings Rio Mar e Recife, Clube Alemão, British Country Club, Restaurante Brasa – Jockey Clube.

DELICATESSENS Carmem, Casa dos Frios, Diplomata, Engenho Casa Forte, Multi, Parla Deli, Rosarinho, Pão e Vinho, Pão de Forno.


REPRODUÇÃO

Visuais GERDA WEGENER Feminino à toda prova

Pouco conhecida por sua obra, artista retratada no filme A garota dinamarquesa não foi apenas a base emocional da trans Lili Elbe, mas uma criadora de vanguarda TEXTO Bárbara Buril

Ela possivelmente se relacionou com homens e mulheres, foi uma mulher à frente do seu tempo no Reino da Dinamarca, questionou as construções de gênero nos seus trabalhos artísticos e produziu ilustrações eróticas para livros também lascivos. Pouco se sabe ainda sobre a artista plástica Gerda Gottlieb (1889-1940), mesmo após o sucesso do filme A garota dinamarquesa, do diretor Tom Hooper, indicado ao Oscar em quatro categorias neste ano. Interpretada pela atriz Alicia Vikander – vencedora do Oscar de melhor atriz

coadjuvante –, Gerda surge como Gerda Wegener, a mulher que exibe um amor incondicional às vivências do marido Einar Wegener, tido como o primeiro transgênero a passar por uma cirurgia de mudança de sexo. Sem dúvidas, o enredo do filme volta-se para a história de Einar, que, de repente, se descobre Lili Elbe e escandaliza as sociedades dinamarquesa e francesa do início do século XX. No entanto, uma inquietação permanece: quem era a mulher que aparece à sombra de Einar? Se chegou

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a se destacar mais do que o marido no cenário parisiense da época, o que criava artisticamente? São questionamentos que o filme de Tom Hooper não se propõe a responder, mas que, ainda assim, mexem com os espectadores que veem na esposa de Einar “a verdadeira garota dinamarquesa”. Gerda Gottlieb, antes de assumir o sobrenome Wegener, nasceu em 1889, no seio de uma família conservadora, cujo patriarca era o pároco de uma igreja católica de uma pequena província dinamarquesa chamada Grenaa. Logo jovem, convenceu os pais a ir estudar na Academia Real de Belas Artes da Dinamarca, uma universidade para mulheres recém-inaugurada em Copenhague. Lá, conheceu Einar, com quem se casou em 1904, aos 19 anos, tornando-se, assim, Gerda Wegener, nome que usaria até o fim da sua vida para assinar as suas criações artísticas. Na época, as paisagens de Einar conquistavam o público consumidor de arte na Dinamarca, enquanto as obras de Gerda – que exibiam mulheres em posições ativas, com olhares inquisidores e independentes – eram consideradas


IMAGENS: REPRODUÇÃO

Visuais 2

demasiado controversas para o país. Mesmo assim, Gerda seguiu se dedicando às suas mulheres. Certo dia, quando uma das modelos de Gerda não pode posar para ela, a pintora pediu ao marido que assumisse a função temporariamente. Einar aceitou e foi assim que, aos poucos, ele se descobriu bastante confortável na pele de Lili Elbe, o alter ego que encarnava durante as sessões de pintura. Gradualmente, as pinturas e os desenhos de Gerda começaram a se destacar na Dinamarca, sem deixar de escandalizar a sociedade, quando se soube que as figuras femininas onipresentes nas obras provinham de uma modelo que era nada mais, nada menos do que o pintor Einar Wegener. Em 1912, o casal se muda para Paris e é lá que Lili e Gerda passam a viver como duas mulheres casadas. Embora se saiba mais da vida de Lili, principalmente devido ao diário Man into woman: an authentic record of a change of sex (em inglês, algo como Homem dentro da mulher: um autêntico registro de uma mudança de sexo), escrito por ela durante os anos em que passou pela primeira cirurgia de mudança de sexo da história, é possível encontrar, nos trabalhos de Gerda

A obra de Gerda Wegener se diferencia das representações femininas do período por trazer mulheres “donas de si”

figuras femininas como donas de si. Elas nos olham como se nos encarassem, nos interrogam e se mostram como autoras da própria beleza. Parecem não depender de mais ninguém, além delas próprias. Não são mulheres que se deixam pintar por um olhar masculino, muitas vezes objetificante, como era possível identificar comumente nas pinturas de nu feminino da época. Wegener, os temas, gestos, posições e No trabalho intitulado Olympia (1931elementos estéticos que a inquietavam 1936), por exemplo, Gerda faz uma pessoalmente. Uma amostra disso está paródia feminista da obra homônima na exposição Gerda Wegener, em cartaz de Edouard Manet, de 1863. no Arken (Museu de Arte Moderna de Na pintura do artista francês, vê-se Copenhague), aberta até o dia 8 de janeiro uma mulher branca nua, deitada em de 2017. A mostra busca desvendar a vida uma cama, com um gato preto aos seus de uma artista que passou ao largo da pés e uma mulher negra em segundo história da arte moderna dinamarquesa, plano a apresentar uma imagem de a partir de obras que retratam os hábitos flores para a mulher branca. Apesar do da sociedade europeia no início do título da obra, que remonta ao Monte século XX, em sintonia com o tempo Olimpo e às divindades gregas, a mulher em que Gerda vivia, e as relações que aparece em primeiro plano na tela afetivas e sexuais entre mulheres, usa tamancos e acessórios da época, contraculturais para a época. em uma comprovação de que se tratava de uma figura feminina humana, OLHAR SUBJETIVADO contemporânea ao pintor, e não de Tanto nas obras mais conservadoras uma divindade grega. “Isto torna a sua como nas mais libertárias, Gerda retrata nudez óbvia desconcertante, uma vez

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que ela só pode ser uma prostituta. Este trabalho foi, assim, criado apenas para o olhar masculino, já que nenhuma mulher decente se deixaria ver por um olhar como esse. Olympia olha para o espectador firmemente no olho, sem um sorriso, aceitando o próprio destino”, escreve Andrea Rygg Karberg, curadora da exposição Gerda Wegener, no texto crítico Quando uma mulher pinta mulheres, publicado no catálogo da mostra. “A versão de Gerda Wegener é totalmente desprovida de indignação social”, compara a especialista. Diferente, então, da de Manet, a Olympia de Gerda desfruta a si mesma e não fita o espectador diretamente nos olhos; é como se estivesse despreocupada com o ambiente que a cerca. “Ela está rendida por uma artista mulher que se regozija no olhar. De forma correspondente, o espectador poderia facilmente ser uma mulher com um senso de beleza da outra mulher”, analisa Andrea Karbeg em seu texto. Gerda, sem dúvidas, tinha uma perspectiva afinada para a beleza feminina. Suas mulheres exibiam um tipo clássico, mostravam elegância

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e muita força. Com olhares meio ressacados – fazendo aqui uma divagação referente aos olhos de Capitu poetizados por Machado de Assis em um tempo anterior, mas próximo à artista dinamarquesa –, as mulheres de Gerda flertam com elas mesmas. Flertam também com os homens e as mulheres que povoam as pinturas e com os espectadores, sejam masculinos ou femininos, como se vê na obra Carnaval, Lili (1928). Mulheres idosas, pobres e negras não fazem parte do imaginário urbano, “civilizado” e moderno de Gerda Wegener. É a juventude feminina europeia em ascensão que povoa tanto os trabalhos da artista tidos como os mais “artísticos”, destinados a colecionadores e especialistas de arte, como as suas criações mais comerciais. A artista, que também produzia ilustrações para revistas de moda da época, como Vogue, La Vie Parisienne e Fantasio, tornou-se uma das expoentes da art déco devido a estes trabalhos que possuíam elementos estéticos mais geométricos e exibiam um estilo de vida urbano, veloz e rico, cultuado massivamente na época por uma

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Página 63 1 GERDA E EINAR

Casal posa em frente à pintura de Gerda Nestas páginas 2 ILUSTRAÇÃO

Com linguagem visual e representação social da belle époque, detalhe de O Carnaval, de 1925

3 COQUETE

A expressão das moças exultantes dos anos 1920, em Carnaval, Lili

4 PARÓDIA

No desenho Olympia, Gerda Wegener traz a sua versão à obra homônima de Manet

indústria da moda da qual Gerda passou a fazer parte. Na ilustração Garota e pug em um automóvel (1927), publicada na revista Vore Damer, por exemplo, vê-se como a artista articula elementos da art déco magistralmente: a geometria das árvores perde a sua organicidade para ser reta e bem-definida, a mulher parece ter o seu corpo estendido no carro, a velocidade do automóvel se contrapõe à lentidão da força animal, representado em segundo plano pelos cavalos, e assim prossegue a construção dos símbolos da civilização moderna.


IMAGENS: REPRODUÇÃO

Visuais 5

ENTRE MULHERES

Mesmo tendo, de alguma forma, abraçado os elementos de sua época nas pinturas – a partir de parâmetros estéticos de um modo de vida urbano, com seus veículos motorizados, sua vida boêmia, sua velocidade, suas maquiagens, seus perfumes e suas joias –, Gerda foi também uma artista à frente do seu tempo. Em um momento no qual os relacionamentos entre duas mulheres só faziam parte de conversas de bastidores, de uma vida privada geralmente negada, Gerda levou o seu relacionamento com Lili Elbe para as pinturas. Na obra No caminho para Anacapri (1922), feita durante uma viagem delas a Capri, na Itália, é possível ver Gerda Wegener em primeiro plano, mais baixa, e Lili, mais alta, por trás. É interessante notar que Lili, embora olhe diretamente para o espectador de uma maneira sensual, coloca o seu

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Permanece uma incógnita a vida íntima da artista, apesar da variedade de obras dedicadas à relação lésbica braço nos ombros de Gerda de modo protetor, tomando-a para si. Já Gerda segura uma maçã e olha à frente como se estivesse encantada. A paisagem que as cerca, com uma atmosfera de sonho e magia, parece funcionar como um pano de fundo bastante adequado para o relacionamento amoroso de ambas. Embora o filme de Tom Hooper não deixe claro se o casal continuou a manter uma relação afetiva depois de Einar se transformar em Lili, as pinturas e as pesquisas indicam que elas permaneceram juntas, como

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companheiras e cúmplices, mesmo após a transformação de Einar. Aliás, Lili também chegou a pintar Gerda na mesma viagem, como se vê na obra Gerda em Beaugency (1924), e retratou-as juntas no cenário da ilha, na pintura Capri (1929). Em ambos os trabalhos, Lili assina como Einar Wegener, mesmo quando o que se vê são duas mulheres. Outro aspecto interessante do trabalho de Gerda é o fato de que algumas das figuras femininas e masculinas representadas por ela parecem transitar entre gêneros de um modo bastante livre e ousado. Na obra Cupido e Psiquê (criada provavelmente antes de 1927), é possível perceber os aspectos femininos do corpo e o gesto do cupido, representado na mitologia como uma figura masculina. Também na pintura Jovem homem, peito nu (1938), a figura masculina representada tem um rosto bastante afilado, olhos


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5-6 PUBLICAÇÕES Gerda Wegener teve ampla

participação em editoriais de revistas europeias

7-10 EROTISMO

Na segunda metade dos anos

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delineados e lábios bem femininos, como se Gerda fosse levada a encontrar um aspecto da mulher onde havia, anteriormente, uma característica do homem. Como se o feminino pudesse ser algo simplesmente achado, brotado, de onde fosse; como se ela tivesse, de fato, ajudado Einar a encontrar Lili. Gerda chegou ainda a produzir ilustrações eróticas para livros de poesia, como é o caso da série As distrações de Eros (Les délassements d’Eros), criada para ilustrar os Doze sonetos lascivos, de Louis Perceau, ambas as criações publicadas em edições artísticas no ano de 1925. As séries eróticas de Gerda, que também exibem um estilo art déco, resvalam claramente elementos pornográficos, mas também são cheias de humor e charme. “Estas ilustrações são caracterizadas pela frivolidade que permeava o espírito francês, como foi expresso nos salões e na mentalidade das cortes europeias

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desde o século XVIII”, escreve o crítico de arte francês Frank Claustrat, no artigo Gerda Wegener e a França, também publicado no catálogo da exposição em cartaz no Arken. Uma curiosidade é que, para se prevenir de possíveis perseguições, Gerda assinou todas as ilustrações da série com uma máscara negra de Carnaval – aliás, um tema bastante querido por ela. Apesar das variadas obras dedicadas à figura feminina, ao estilo de vida moderno e às relações lésbicas, capazes de indicar pistas sobre quem era Gerda além de Einar, a vida privada da artista permanece uma incógnita. Há indicações de que ela tenha tido uma vida afetiva própria, relacionando-se com homens e mulheres além de Einar/ Lili. Legalmente, Gerda e Lili tiveram que se separar em 1930, quando Christian X, rei da Dinamarca, tornou nulo o casamento, uma vez que Lili

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1920, a artista dinamarquesa produziu várias aquarelas para a série As distrações de Eros

já era uma mulher legalmente e, na Dinamarca, o casamento entre duas mulheres não era permitido. No mesmo ano, Lili faleceu e, no ano seguinte, Gerda se casou com um diplomata italiano chamado Fernando Porta, passando a se chamar Gerda Wegener Porta, em uma recusa ousada e corajosa a tirar de si o nome de quem foi, certamente, o amor de sua vida. Nos anos 1930, as criações de Gerda já não eram mais tão apreciadas na Europa, uma vez que o mundo da arte passou a se interessar por formas mais puras e simples, em uma espécie de “enxugamento” da art déco. Fora de moda, e com um marido desempregado, Gerda morreu na pobreza em 1940. Apesar de um final não muito feliz para uma história de vida permeada de arte e entrega, é inegável que a arte de Gerda Wegener exigia uma mente aberta diante do amor e da vida.


José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

SEGUNDÃO

Tíope trabalha numa oficina de conserto de automóvel em Olinda nos Bultrins como eletricista. Quanto a esse nome de Tíope, vem de “etíope” e remonta à época do seu ingresso na oficina ainda menino como aprendiz, mandado pelo pai para tirá-lo da rua e ver se o interessava em alguma profissão. Por coincidência alguém viu no jornal foto de umas crianças da Etiópia magérrimas e isso foi o suficiente para o garoto receber a alcunha. Já agora depois de adulto, casado, pai de família, lhe coube fazer o conserto de um carro, um Opala, exatamente há onze anos completados pelo carnaval, e nada de o proprietário lhe pagar o serviço, no valor de R$ 100 (cem reais). Apesar do temperamento pacífico, Tíope resolveu ir atrás. Mas o tal devedor, por nome Doca, era osso duro de roer. Tíope também não estava muito disposto a deixar por isso mesmo, ainda que não lhe ocorresse de que maneira pudesse sair do prejuízo. Até que numa dessas excursões de cobrança notou pela primeira vez

no arraial do inimigo, numa gaiola velha, um passarinho engurujado. Para não perder de todo, já que o outro se mantinha irredutível, propôs receber a metade do pagamento, R$ 50 (cinquenta reais) e o resto fazer um rolo com o passarinho, havendo a possibilidade de o devedor não pagar mais nada, inclusive salvando o passarinho. Caso contrário, Tíope ficaria com o passarinho e estava resolvida a questão. Ora, o Santa Cruz dependia de resultado para permanecer na Primeira Divisão. Além de ter de ganhar de outro time, que Tíope a essa altura não lembrava mais qual time seria, ainda precisava de uma derrota do Vitória da Bahia. O dono do passarinho, um galo-de-campina brabo que só, era do Santa Cruz, e foi contando com seus brios tricolores que Tíope, que era do Sport, chamou o adversário para o confronto. Deu certinho. O Santa perdeu e o Vitória da Bahia ganhou, passando o tal galo xucro à legítima propriedade do seu novo dono Tíope. Foi mais uma vitória moral, já que materialmente

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o passarinho não valia o alpiste que comia: não cantava nada e ainda passaria bom tempo sem cantar. O episódio teria ficado por aqui, nesse resultado inglório, tocando a Tíope apenas esperar que algum dia o galo-de-campina desencantasse e assumisse a responsabilidade que a natureza lhe confiara de nos brindar com seu improvável canto, não fosse o entusiasmo com que foi imediatamente recebido pela menina Rita de Cássia, Cassinha, então nos seus cinco aninhos, hoje com dezesseis, a filha de Tíope: “Painho, como ele é grande e colorido! Como é o nome dele?” O que a menina queria saber, como Tíope muito bem entendeu, era que passarinho era aquele, sanhaçu, xexéu, patativa, papa-capim ou sabe Deus de que outros nomes de passarinho Rita de Cássia já ouvira falar, mas aproveitou a deixa e resolveu batizá-lo de Segundão, lembrando a derrota do Santa Cruz, uma das determinantes, ao lado da vitória do Vitória da Bahia, da vinda do passarinho às suas mãos. E Segundão ficou sendo chamado,


JOSÉ CLÁUDIO

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conforme uma plaquinha com o nome “Segundão” que Tíope desenhou, pendurou na gaiola e foi passear pelo Monte (Olinda), tradicional reduto de tricolores. Acharam até bonito o passarinho mas estranharam a mudez. Perguntavam: “É feme?” “Comeu visgo de jaca e ficou com o bico colado?” Como tinha de ir para a oficina, recomendou à menina ficar prestando atenção para ver se Segundão expelia algum som, valendo a notícia 50 centavos. Não demorou. “Ele cantou, painho.” Tíope não acreditava. O passarinho era brabo demais, principalmente quando via o dono, ficava esbarrando nas talas. Mas Tíope teve a ideia de ficar escondido debaixo da gaiola. Aí ele cantou. “Opa! Gostei do canto!” Segundão começou a ficar conhecido. Sempre aparecia algum dono de galo-de-campina querendo fazer aposta. Tíope até evitava: “Ele agora só escreve. Virou compositor”. Chegou um com outro galo, “feminado” como diziam: você bota uma fêmea para dar fogo a ele. Segundão ganhava sempre. “Negão, seu galo canta muito?”

Acharam até bonito o passarinho mas estranharam a mudez. Perguntavam: “É feme?” “Comeu visgo de jaca e ficou com o bico colado? “Só um pouquinho.” “Quer apostar como ele não dá nem um round com o meu?” “Cantar mais, eu não sei, mas calado ele não fica não.” O outro começou a açoitar. “Segundão, como é? Tu vai cantar ou não vai? Tu vai deixar o outro gozar c’a minha cara?” Segundão cantou valendo. O outro travou na hora. Uma vez ele se soltou. A menina telefonou. Os meninos da redondeza com gaiolas e tentando jogar toalha. Segundão lá em cima no fio. Tíope chegou. “Segundão, desce Segundão.” Ele desceu certinho e pousou no dedo de Tíope. São muitas histórias. A pior de todas foi quando Tíope passou um aperto, precisou de dinheiro. Um colega disse: “Eu dou 300, não quero nem ver ele cantar”.

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1 GALO-DE-CAMPINA oto de Segundão. F José Cláudio, 2016

Tíope acertou o negócio. Foi sua Noite Triste. Olhou para Segundão. “Segundão, sou teu amigão mas vou ter que te vender.” De madrugada um saguim depenou o passarinho por fora da gaiola. Botava a mão por um lado, tangia e pegava do outro. “Vi o barulho. Corri. Vi só as penas caídas no terraço.” Ainda chegou a ver o saguim. “Matou o passarinho.” Segundão jazia inerte totalmente depenado no fundo da gaiola. Desistiu da venda. “Vou cuidar dele.” Atualmente, Segundão vive entre a casa e a oficina, como se Tíope não pudesse mais viver sem estar com os olhos grudados nele o tempo todo, catando xanana, uma florzinha branca de miolo amarelo que dá pelas ruas de Bairro Novo e bota umas bolotas que galo-de-campina adora ou procurando tenebre, uma larva de inseto feito um tapuruzinho, sem saber mais o que fazer para agradá-lo. Quem quiser provocá-lo proponha-lhe algum tipo de aposta envolvendo Segundão ou, pior, pergunte se Segundão está à venda. Prepare-se para ouvir palavrão...


JANDERSON PIRES/ DIVULGAÇÃO

Palco

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RETRATOS Encenação feita a partir de cartas e e-mails

Natural de Gravatá, Alexandre Lino cria espetáculo com textos reais de uma jornada que é também a sua, a dos nordestinos que passaram a viver em terras do sudeste brasileiro TEXTO Rafael Teixeira

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Os dados do último recenseamento feito no país, em 2010, são eloquentes: das 17,8 milhões de pessoas que vivem em uma região diferente da que nasceram, 9,5 milhões – ou seja, a maioria, 53% – são nordestinos. Desse total, 66% moram no Sudeste. Tão antigo quanto presente no imaginário popular, o fenômeno migratório do Nordeste, notadamente para estados do Sudeste a partir de meados do século XX, é o tema do espetáculo Nordestinos, de 2015. Apresentada continuamente desde a estreia no Rio de Janeiro, a peça cumpriu

uma bem-sucedida temporada em São Paulo, teve suas sessões mais recentes no Festival de Curitiba, segue atualmente em turnê e tem apresentações agendadas para a Festa Internacional de Teatro de Angra, em junho, no município de Angra dos Reis, litoral fluminense. Na base desse sucesso, está uma dramaturgia singular, construída a partir de mais de 100 cartas e e-mails enviados por nordestinos residentes em São Paulo e no Rio de Janeiro – onde são calculados mais de 2 milhões na primeira cidade e quase este número na outra.

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Trata-se de uma criação do ator, produtor e documentarista Alexandre Lino, ele próprio também um imigrante – natural de Gravatá, cidade com quase 80 mil habitantes no interior de Pernambuco. Ele reside desde 1993 no Rio, com uma curta passagem pela Itália neste ínterim. Para realizar o espetáculo, cercouse de artistas, como ele, egressos do Nordeste: no elenco, estão Rose Germano, de Riacho do Meio, na Paraíba, Erlene Melo, de Caruaru, em Pernambuco, Paulo Roque e Natália Regia (substituta eventual), ambos de Fortaleza, no Ceará. A direção ficou a cargo de Tuca Andrada, nascido no Recife. A única exceção no núcleo da ficha técnica coube ao dramaturgo Walter Daguerre, que é carioca. “Foi estratégico. A ideia era que o autor fosse alguém capaz de olhar aqueles relatos com um certo distanciamento afetivo. Mas, ao mesmo tempo, Walter conhece essa realidade, já que o pai é uruguaio e a mãe é do Norte. Então, foi uma escolha na medida certa”, explica Lino. Os relatos foram enviados a convite do próprio Lino, feito no início de 2014 por meio da imprensa, em anúncios e em notas de colunas. A partir daí, ao longo de pouco mais de um ano, foram chegando mensagens de todo tipo. Em comum, naturalmente, o desejo de uma vida melhor em outro lugar, além das dificuldades de afirmar sua própria identidade em uma terra estranha, em um país de tantos matizes culturais. Em muitos relatos, esse obstáculo fica bastante evidente. “Quando comecei a morar no Rio, me incomodava a maneira como as pessoas me pediam pra repetir o meu nome. Sempre com ironia: ‘É diferente’, ‘Como se escreve?’ e ‘Estranho’”, conta uma mulher batizada com uma mistura dos nomes do pai e da mãe – característica, aliás, comum a vários missivistas. Em outra carta, um pernambucano lembra: “Por mais que o Rio tenha me recebido de braços abertos, eu não estava em casa. Não sou carioca e não conhecia nenhum outro nordestino aqui no Rio (…) Não tinha com quem partilhar minha nordestinidade”. Além das questões de identidade, os relatos são perpassados por todo tipo de revés: a gravidez da namorada que ficou na terra natal e obriga um


JANDERSON PIRES/ DIVULGAÇÃO

Palco 2 Página anterior 1 HISTÓRIAS

As aventuras e desventuras dos nordestinos que vivem no Rio de Janeiro perpassam a dramaturgia

Nesta página 2 LINO

tor e produtor convidou seus A conterrâneos a contarem sua história através de chamados em jornais

sujeito a voltar; a jornada dupla de trabalho para juntar dinheiro enviado periodicamente para a mãe; a vida morando de favor em um quartinho, graças a uma senhora amiga da família. Em uma ou outra carta, a tristeza é mais dominante, como no caso da mulher que não conseguia manter uma relação amorosa por saudades

do Nordeste e quase matou o marido por depressão e vontade de voltar. Mas o tom geral é de superação, nos mais diversos níveis – do prosaico, como relata o sujeito feliz pelo simples fato de hoje viver em uma casa com banheiro dentro, em vez de nos fundos do quintal, até o caso da mulher que se tornou jornalista e cobriu a inauguração de Brasília. É essa, afinal, a tônica do espetáculo. “Nunca quisemos alimentar essa visão já por demais atribuída ao nordestino, de que ele é um coitado, uma vítima, um ignorante. Seria dar um tiro no pé”, diz Lino.

TEXTO FINAL

Com tantas narrativas em mãos, foi difícil selecionar o material que seria

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incorporado à dramaturgia. “Algumas cartas dariam, sozinhas, uma peça”, diz Daguerre. O diretor conta que foi especialmente desafiador procurar o conteúdo das missivas que fosse não apenas interessante, mas passível de teatralização. “De algumas, só utilizamos pedaços, e assim fomos costurando várias tramas”, lembra Andrada. Das mais de uma centena de histórias recebidas, três foram escolhidas como pilares do texto (embora haja pinceladas de outras): a de Idalenajara (Rose Germano), paraibana que, durante a viagem de 15 dias para o Rio a bordo de um ônibus velho, se apaixonou por um sujeito que só reencontraria anos depois e com quem se casaria; a de Telson (Paulo Roque), também natural


pela direção a colocarem no papel as suas lembranças de imigrantes. Todos esses relatos foram incorporados ao texto final, com o elenco se dirigindo à plateia em primeira pessoa em vários momentos. Mas a história de Lino chamou especialmente a atenção do autor. No fim, enquanto Rose, Erlene e Roque “interpretam” a si mesmos e também Idalenajara, Neguinha e Telson (além de uma série de personagens secundários), Lino é o único que encarna um duplo que é ele próprio. Meio a sério, meio de brincadeira, o ator diz que foi um processo terapêutico: “Josivânio é o meu nome de verdade, e eu demorei uma vida inteira para lidar com ele de maneira tranquila. Foi só fazendo essa peça que me permiti brincar com isso”. Como os atores encarnam conterrâneos com histórias de vida de alguma maneira semelhantes às deles (isso quando não “interpretam” a

“Nunca quisemos alimentar essa visão do nordestino de que ele é um coitado, uma vítima” Alexandre Lino

da Paraíba, porteiro há mais de 30 anos na zona sul carioca, trabalho por meio do qual conseguiu comprar sua casa própria e ainda ajudar os parentes; e a de Neguinha (Erlene Melo), pernambucana que se permitiu viver um grande amor e pegou a estrada rumo a São Paulo. A esses três pilares, somou-se um quarto, representado pela figura de Josivânio, pernambucano de Gravatá que partiu para o Rio de Janeiro em busca do sonho de virar ator, trabalhou na McDonald’s e chegou a passar fome. Se a narrativa, à primeira vista, parece muito com a história de Alexandre Lino, é porque ele e Josivânio são, de fato, a mesma pessoa. Explica-se: durante o processo de criação da dramaturgia, os próprios atores foram instigados

si próprios), o espetáculo transmite uma genuinidade que jamais poderia ser alcançada, caso o elenco viesse de outra região do país. “Eles tinham passado por essa experiência de deixar sua terra para viver em outro lugar. Então, não havia espaço para caricaturarem as suas próprias vidas”, explica o diretor. O próprio vocabulário de expressões idiomáticas flui melhor nas vozes de atores nordestinos. “A gente fala ‘gota serena’ ou ‘moléstia dos cachorro’ e o sotaque já vem, automaticamente, mesmo naqueles que já o perderam”, diz Lino. Existiu, é claro, um intenso trabalho de corpo, importante para diferenciar os muitos personagens que cada um interpreta. Mas a meta foi ir além da forma. “Houve uma preocupação em evidenciar o tom de nós, nordestinos. Tudo que trouxe veio de figuras que conheci e com quem convivi. Muito

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mais do que um trejeito, a busca foi de sentir aqueles personagens em seus relatos”, diz Roque.

ESTÉTICA DA MONTAGEM

Tal essência nordestina dos personagens se reflete diretamente na estética da montagem. O cenário e os figurinos de Karlla De Luca evocam a aridez do Sertão, tanto na paleta de cores quanto na aparente simplicidade do seu aspecto rústico. A encenação incorpora elementos lúdicos, notadamente no uso de mamulengos. “Além de ser uma manifestação típica do Nordeste, os bonecos me ajudavam a contar as diversas histórias nas quais apareciam em um grande número de personagens interpretados por apenas quatro atores”, diz Tuca Andrada. Acrescente-se a isso o uso de técnicas de teatro de sombras e um tom circense que perpassa todo o espetáculo. Segundo Lino, “essa liberdade está em comunhão com o universo, ainda reinante, dos quintais, das feiras, dos jogos de rua, das festas folclóricas e dos brinquedos artesanais típicos do nordeste brasileiro”. Somados todos esses fatores, é natural que o público nordestino seja especialmente tocado pelo espetáculo. A confirmação disso se dá em todas as sessões, na reação da plateia durante a peça e também após a apresentação, quando os espectadores ficam aguardando o elenco do lado de fora da sala para trocar ideias e tirar fotos. “Eles se reconhecem nos sentimentos dos personagens. Muitas vezes, ao final do espetáculo, ouvimos histórias que poderiam estar no palco. É tão bonito! O tom é sempre confessional, uma preciosidade”, conta a atriz Erlene Melo. O alcance do espetáculo é maior , aliás, considerando que Nordestinos é um projeto transmídia: além da peça, se desdobra em um livro – já publicado, reunindo algumas das histórias enviadas para a produção – e em um documentário, a ser lançado ainda neste ano, com direção de Lino e de Cavi Borges. Mas, apesar da forte identificação com um público específico, o projeto não se limita a esse recorte. Nesse sentido, Lino evoca o escritor Leon Tolstoi: “Fale sobre as questões da sua aldeia e você falará sobre o mundo”.


MANUELA DOS SANTOS/ARTE SOBRE IMAGENS DE DIVULGAÇÃO

Leitura CONTINENTE MAIO 2016 | 76


JOÃO DO RIO Sobre a pertinência da obra do cronista das ruas

Numa época de embates éticos na política nacional e remodelações urbanísticas na Cidade da Copa, nunca foi tão atual ler o autor de A alma encantadora das ruas TEXTO Adriana Dória Matos

A situação é a seguinte: você tem pavor daquele recanto lúgubre, sujo, perigoso da cidade, o que não significa que não tenha curiosidade a respeito dele. Você jamais iria ali, Deus a livre. De vez em quando, como num assombro, imagina-se perdida, jogada ali, naquele campo de miséria. Um arrepio a percorre (ainda bem que não era verdade!). Mas eis que alguém aparece para fazer o trabalho sujo, ou seja, alguém se enfia naquele buraco e conta como ele é para você. Esse tem sido, em boa medida, o trabalho da reportagem jornalística, ir a lugares aos quais uma parcela da população não tem acesso, ou por interdição ou por deliberação própria. Um dos camaradas que cumpriu muito bem esse papel foi o carioca João do Rio (1881–1921), que entrou para a história da literatura e do jornalismo brasileiros como o autor das ruas, como aquele que não teve pudor de sujar os sapatos nem de se misturar com todo tipo de laia (e veremos que, com a laia da banda chique, ele também chafurdou). Num dos textos de sua autoria, que representam com brilhantismo essa relação com a cidade proibida, Visões d’ópio, João do Rio se disfarça de fornecedor da droga e revela aos leitores cenas de horror nas fumeries repletas de viciados. Usando uma estratégia recorrente – a de se fazer acompanhar por alguém que conhece melhor aquela realidade e serve de guia – o escritor-jornalista provoca o leitor: “Nunca frequentou os chins das

ruas da cidade velha, nunca conversou com essas caras cor de goma que param detrás do Necrotério e são perseguidas, a pedrada, pelos ciganos exploradores? Os senhores não conhecem esta grande cidade que Estácio de Sá defendeu um dia dos franceses”. Essa crônicareportagem foi publicada no jornal Gazeta de Notícias em 1905 e, depois, em 1908, no genial livro A alma encantadora das ruas. Permanece, passados 111 anos, melancolicamente atual em vários aspectos. Esse fato torna não apenas este, mas vários outros textos do carioca nascido João Paulo Alberto Coelho Barreto, e celebrizado como João do Rio, um documento efusivo da sociedade em que vivemos. Um testemunho de que não, não somos ainda capazes de nos despir dos nossos medos e preconceitos e adentrarmos na cidade proibida. E que, portanto, pessoas despidas desses limites continuam a ser importantes para colocar a realidade aos nossos pés.

.......... Em maio de 1903, João do Rio estreou no jornal Gazeta de Notícias a coluna A cidade, na qual defendia: “Esta seção da Gazeta vai acompanhar, de passo em passo, o trabalho do renascimento. Um aviso, um conselho, um reparo, uma censura, um elogio – tudo haverá nesta curta e sóbria coluna”. O “renascimento” a que ele se referia era o do Rio de Janeiro, que passava por reformas urbanas radicais, de demolição de morros e bairros inteiros

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para dar passagem a largas avenidas, um desenho urbanístico calcado naquele empreendido pelo prefeito Haussmann da Paris da segunda metade do século XIX, que inspirou, por exemplo, várias das capitais republicanas nascentes na América Latina. A coluna A cidade atesta as contradições das nossas repúblicas, demagógicas e assentadas na divisão de classes com o privilégio das elites, nossos passos errantes, interesseiros, e também as opiniões cambiantes do colunista que foi tanto um entusiasta das mudanças, mesmo um promotor delas em vários momentos, quanto um crítico mordaz de todo o cenário, seja no sentido estrutural, urbanístico, seja no social e humano. Ainda que entusiasmado com a modernidade que se instalava, João do Rio reservou-se o saudosismo, a crítica ao que de nocivo aquele progresso apresentava (inclusive, criando a conformação urbana que viria a se chamar favela) e o comentário irônico do novo comportamento social decorrente das mudanças em curso. O Rio de Janeiro em estado de “renascimento” de João do Rio se aproxima da contemporânea Cidade da Copa em muitos sentidos, desde a demolição de bairros inteiros para dar lugar a estádios à glorificação da arquitetura do espetáculo do Museu do Amanhã, o Calatrava da Baía de Guanabara, às contradições de uma capital que continua a jogar para as bordas a sua população de baixa renda


Leitura

que, agora, devidamente articulada e armada, vai direto ao revide. Em outra de suas grandes reportagens, João do Rio sobe o Morro da Providência. Em um texto não assinado, mas em que se identifica sua autoria, Na favela – Trecho inédito do Rio (Gazeta de Notícias, 1903), ele conta, no início da travessia: “Subimos o morro, por um íngreme caminho bordado de águas empoçadas, por onde vão negras maltrapilhas, moleques desnudos, tipos suspeitos, de lenço no pescoço. É impossível imaginar que ali, no centro da cidade, habite gente tão estranha e com uma vida tão própria”. É evidente – sobretudo quando lemos “gente tão estranha” – o lugar de fala do nosso repórter, de como ele se coloca diante desse “outro” pobre e amedrontador. Podemos até reagir mal à leitura por isso, tender a acusar o autor de preconceito; esta seria uma reação comum ao leitor contemporâneo, que está habituado a essa coisa tão “estranha” e inadmissível que é a nossa pobreza e que já diluiu alguns preconceitos sociais. Quando lemos um autor – do presente ou do passado –, nossa reação comumente responde aos nossos padrões atuais e à nossa maneira de ver o mundo, que não corresponde, em absoluto, à reação do leitor vizinho (como se constata, são reações as mais díspares). Sendo assim, vamos aproveitar o melhor da reportagem de João do Rio, que, afinal, se deu ao trabalho de agir diferentemente dos seus colegas de então, que praticavam a imprensa de gabinete, e garantiu o ganha-pão dos engraxates. Ainda no texto citado, depois de registrar impressões da Providência, ele parte para a conclusão: “Nós saímos da Favela perfeitamente assombrados. As cenas que secamente narramos são a expressão da verdade e relembram as mais furibundas páginas do rodapé-romance. É possível que ali, à boca da Rua da América, no centro da cidade, as casas sejam de barro e folha de flandres, construídas por proprietários que delas retiraram grossas rendas sem o mínimo de escrúpulo? Será crível que, a dous passos da Rua do Ouvidor, haja uma Favela, reduto inexpugnável de desordeiros conhecidos e gatunos temíveis?

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Pois há, e, o que é mais, com alguns dos mais valentes prestando serviço à polícia”. (Precisamos falar, mesmo, da atualidade da obra de João do Rio.)

.......... Quando estava dedicada aos seus estudos de doutorado, a jornalista, tradutora e editora Graziella Beting se reencontrou várias vezes com a obra de João do Rio. Ela estava estudando em Paris outro jornalista, o francês Jules Huret, que ficou conhecido, sobretudo, pelas entrevistas que realizou com escritores, pelos relatos de viagem e pela crítica teatral. Era um cenário de jornalistas literatos que interessava a Graziella, que se deteve no surgimento do folhetim e da crônica. Concluída a tese e já voltada para os projetos editoriais da Carambaia, da qual é sócia, ela começou a estruturar o que viria a ser a Coleção João do Rio. Foi um mergulho sensacional em arquivos do autor em acervos públicos, como o da Biblioteca Nacional, e, sobretudo, no legado pessoal do autor, a biblioteca dele, doada ao Gabinete Português de Leitura por sua mãe, depois de sua morte precoce, de um ataque cardíaco, aos (quase) 40 anos. Nela, por exemplo, Graziella encontrou vários pontos de contato entre Jules Huret e João do Rio, pois havia entre os livros do carioca obras do jornalista francês, com grifos de João. Emoção em cima de emoção, você encontrar autores que admira e estuda em diálogo vivo, pelas anotações e comentários de próprio punho. Então Graziella pensou em como fazer a composição dos títulos – a coleção traz três volumes, Crônica, Folhetim e Teatro – mantendo o critério que norteia o projeto de sua editora, de trazer textos de qualidade de autores de qualidade, que, por motivos diversos, ficaram fora do cânone literário (ou, pelo menos, do mercado editorial). Joiazinhas e achados, digamos assim. Ao mesmo tempo em que a saída mais tentadora para o impasse das escolhas poderia ser concentrar-se nos inéditos – afinal, há um monte de textos de João do Rio que ficou restrito à publicação em jornais


INDICAÇÕES e revistas, seus veículos por excelência –, cutucava sua consciência a necessidade de reunir ali também os textos que notabilizaram João do Rio – e mais, que foram escolhidos por ele mesmo para integrar edições posteriores em livros. Pronto, ela chegou ao modelo: mesclar na coleção material inédito e obras notabilizadas. O conjunto que ficou mais conhecido da obra de João do Rio foram suas crônicas-reportagens. Elas são muito bem-escritas, vivazes e competentes como documentos da belle époque brasileira, cuja síntese foi, sem dúvida, a capital federal, com seu afã de desenvolvimento e afetação de costumes. Certa vez, João do Rio afirmou seu absoluto interesse nas classes “de baixo” e “de cima” e o menosprezo pela classe média, à qual, não resta dúvida, pertencia. Assim é que sua obra toda é assentada em narrativas que dizem respeito a essas duas categorias sociais, os ricos (e poderosos) e os pobres (e renegados). Na Coleção João do Rio, podemos dizer, grosso modo, que os “de baixo” estão melhor representados no volume de Crônicas, e que os textos selecionados para Teatro e Folhetim exemplificam melhor seu interesse pelos “de cima”, aquele segmento que ele frequentou, o dos políticos e novos-ricos, que, na maioria das vezes, são expostos em seu ridículo pela irônica pena do autor.

.......... Há uma peça de João do Rio que ficou conhecidíssima, sendo, possivelmente, sua obra-prima no gênero, A bela madame Vargas, que estreou no Teatro Municipal

em 1912, sendo sucesso de crítica e público. A história, baseada num crime passional ocorrido no Rio de Janeiro em 1906, correu mundo. Depois de uma longa temporada carioca, foi levada para Portugal, Paris, Espanha, Estados Unidos. Foi a consagração do dramaturgo, que começou sua carreira jornalística, garoto de 18/19 anos, escrevendo justamente críticas teatrais. Mas não é a Madame Vargas que adensa o volume Teatro da Coleção João do Rio, e, sim, uma peça ambientada no interior paulistano que também obteve sucesso de público, Eva – A propósito de uma menina original. Nela, estamos diante da fina flor paulistana, personagens hospedados numa fazenda de café e orbitando em torno da bela jovem Eva e, depois, constrangidos pelo desaparecimento de uma joia da anfitriã, Madame Adalgisa Prates. Uma comédia de costumes sem grandes diferenciais, exceto pela presença do irônico Godofredo de Alencar, jornalista, alter ego de João do Rio, que convive e aprecia o ambiente de frivolidades, mas dele zomba o tempo inteiro. É, entretanto, no sainete (peça curta e leve, da qual participam, no máximo, três personagens) Que pena ser só ladrão, que João do Rio apresenta sua melhor versão dramatúrgica nesta seleção da Carambaia. Deliciosamente paradoxal, a peça conta com dois personagens do submundo, um ladrão e uma moça alegre que – ninguém podia esperar, porque pouco se espera deles – agem com honra e honestidade. E não é que precisamos falar da atualidade da obra de João do Rio?

ROMANCE

ANA CÁSSIA REBELO Ana de Amsterdam Biblioteca Azul

Foi a partir de um blog homônimo que surgiu o livro Ana de Amsterdam, algo como uma antologia ficcionalizada de seus posts. A obra possui a narrativa de um diário e trata da vida da advogada Ana Clara, casada e com três filhos. A força da leitura se dá pelo descortinamento de temas ainda tabus, como os dissabores da maternidade.

QUADRINHO

AUTOBIOGRAFIA

ERNST TOLLER Uma junventude na Alemanha Mundaréu

Nesta autobiografia, o poeta e dramaturgo alemão conta sobre os 30 primeiros anos de sua breve vida (suicidou-se aos 46), que se dão do final do século XIX e começo do XX, cortada pela I Guerra Mundial, na qual foi combatente. O título faz parte de coleção que pretende focar neste período da história mundial.

POESIA

SCOTT MCCLOUD O escultor

EVERARDO NORÕES Melhores mangas

Reconhecido como teórico dos quadrinhos e defensor desta modalidade enquanto literatura, Scott McCloud volta à autoria de uma HQ após quase 20 anos. A trama está centrada no artista David Smith, que vive em Nova York e ambiciona o sucesso profissional, tendo que lidar, por isso, com uma série de conflitos éticos.

Poeta e contista premiado, Norões apresenta essa pequena joia poética, em que estabelece diálogos vários: com uma espiritualidade filosófica, com autores que lhe são caros e com o mundo ao redor, percebido de forma crítica. Observamos com satisfação um poeta inquieto e hábil com a linguagem, usada sem excesso e com precisão.

Marsupial

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Confraria do Vento


Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

JÁ NINGUÉM LÊ

Paga-se 3 euros para entrar na livraria Lello, na cidade do Porto. O valor é descontado na compra, se alguém faz. Poucos adquirem livros, a multidão de turistas está mais interessada em se fotografar nas escadarias, ou fazer selfies mirando as paredes e o teto de madeira, ricamente trabalhado. Na calçada, um atendente nos aborda em inglês e orienta a adquirir os ingressos num guichê montado à frente. A Lello tornou-se um templo do turismo e a literatura ficou em segundo plano. Chove sem parar, faz frio, o piso encharcou. Dos vidros partidos na clarabóia, caem pingos d’água. No segundo pavimento, estrangeiros amontoados em sofás bebem café em meio ao barulho infernal. Nada lembra um ambiente de leitura. As prateleiras são belíssimas, porém inacessíveis. Não consigo descobrir como se chega àquelas alturas. Numa mesa, logo à entrada, estão expostos volumes de José Luis Peixoto, Gonçalo Tavares, Walter Hugo Mãe, Mia Couto, Inês Pedrosa e Pepetela. Ao lado, romances de António Lobo Antunes e José Saramago. Um pouco adiante,

o único brasileiro: Chico Buarque e seu O irmão alemão. Procuramos uma atendente, coisa difícil de achar em meio ao caos. Encontramos uma moça ocupada com um jovem português, que insiste em ler a boa literatura de sua terra. Ela aponta a mesa da entrada e afirma generalizando o lusófono: essa é a melhor literatura produzida no país. O rapaz duvida, regateia, mas a vendedora não dá chance a outros escritores. Uma poetisa, com quem almoçamos, tinha nos indicado Lídia Jorge, Maria Velho da Costa e Mário de Carvalho, pouco referidos no Brasil, e apreciados por uma geração de leitores e intelectuais em Portugal. Quando referimos os nomes que fazem sucesso por aqui, a poetisa botou um pé atrás. Argumentei: – Mas esses são os escritores de língua portuguesa aclamados no Brasil, presentes em todos os eventos literários e premiações, exaltados pela crítica, estudados nas universidades, traduzidos na França, Itália, Espanha, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. A poetisa não abria mão dos seus critérios de qualidade, rebatia forte.

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– Vocês lêem e cultuam o que nós portugueses sequer conhecemos. Ela certamente não faz compras na primeira mesa da Lello. Havia notado a mesma resistência num professor da Universidade do Porto, que esteve conversando comigo sobre textos do mundo. E bem maior reserva noutro jovem mestre de literatura portuguesa. Escutei e deixei que falassem. Na década de 90, quando levei um espetáculo de teatro para itinerância em Portugal, percebi no meio acadêmico certo desdém por José Saramago. Portugal possui menos de 11 milhões de habitantes morando no próprio território e quase 5 milhões espalhados pelo mundo, sendo 1 milhão no Brasil. Os jovens migrantes não pensam em voltar para casa, quem vive na França ou nos Estados Unidos deseja se arranjar por ali mesmo. Tende a desaparecer a figura do retornado, como se tornaram célebres alguns moradores da cidade de Fafe, no Minho, que depois de enriquecerem no Brasil voltaram à sua terra e edificaram casas, clube e teatro, copiando nossa arquitetura. Em 2015, ao invés de crescer, Portugal perdeu 5% da população.


MANUELA DOS SANTOS

Mesmo com a emigração acentuada, o crescimento populacional negativo e o mercado pequeno, há zelo pela literatura produzida ao longo dos anos. Mas, em Portugal não é diferente do restante do mundo, seus habitantes lêem cada vez menos. Os educadores se queixam de que nos outros países da União Europeia as estatísticas são melhores e tentam formar novos leitores. Em Fafe, visitei uma escola municipal e participei de um encontro com professores, pais e alunos. Tentavam convencer os pais de que eles são os principais motivadores da leitura e esse hábito precisa nascer em casa. A biblioteca do município possui acervo grande e instalações perfeitas. Cultuam-se os clássicos, mas isso não torna menos difícil formar leitores em tempos de face book e whatsapp. Num festival literário em Buenos Aires, conversei com o escritor colombiano radicado no México, Fernando Vallejo. Ele achava o Brasil um país promissor à leitura, pois nele 210 milhões de pessoas falam o mesmo idioma, sem dialetos, com raras particularidades. Bem diferente da

Portugal não é diferente do restante do mundo, seus habitantes leem cada vez menos e os educadores se queixam da estatística suposta hegemonia do espanhol, diverso em cada país onde é falado. Penso nisso, desde a conversa. Nos últimos 12 anos houve um enorme investimento na compra de livros para as escolas públicas, na melhoria dos acervos das bibliotecas, na circulação de escritores pelas cidades pequenas, falando das suas experiências. Mas estamos longe de uma tradição literária, até o nosso patrimônio oral ameaça desaparecer. A literatura de cordel, responsável por tiragens milionárias, como a do Romance do pavão misterioso, caiu em desprestígio. Machado de Assis, José de Alencar, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Carlos Drummond, escritores canônicos, são lidos nas escolas e nos vestibulares por obrigação. E mesmo

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Clarice Lispector, cujas frases viralizam na internet, é bem mais lida nos círculos literários. Em Fafe, hospedei-me na Quinta do Ermo, casa que pertenceu a José Vieira Cardoso de Castro, amigo de Camilo Castelo Branco, e que lhe serviu de refúgio quando ele cometeu crime de adultério, raptando Ana Plácido, por quem era apaixonado há dois anos. Foi durante a fuga que Camilo, em 1860, passou por São Vicente de Passos, onde fica a Quinta. Todos na região conhecem a história. Vários livros de Camilo falam do Minho, do Ermo e de suas Memórias de Cárcere. Às vezes, sentado em frente à lareira, tentava escutar a voz do escritor romântico, que eu pouco li. Mas o som que me chegava era o de um regato, correndo ao lado da casa. Quando eu dizia às pessoas onde haviam me hospedado, elas pronunciavam um sonoro Ah! E assumiam um tom nostálgico e cúmplice. Nunca soube se essa intimidade decorria da leitura dos livros de Camilo, ou se era pura excitação com o escândalo que foi sua vida.


REPRODUÇÃO

Claquete

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CANNES Uma edição histórica

Lançado há 70 anos para ser uma celebração do cinema que unisse todas as nações, festival mantém-se como o mais respeitado e influente evento cinematográfico

1 1939

Pôster daquela que seria a primeira edição do festival, idealizado pelo jornalista Philippe Erlanger

TEXTO Luiz Joaquim

Num ensolarado dia de 1944, numa riviera ao sul da França, ocupada pela Alemanha nazista, o crítico de arte, jornalista, escritor e diplomata francês Philippe Erlanger (1903–1987) sentiu uma palpitação de alegria ao saber que, em junho daquele ano, cerca de 100 mil soldados da Aliança da Segunda Guerra Mundial haviam desembarcado na costa da Normandia. Com a ação, eles abririam uma nova frente de ataque contra o poderio militar de Adolf Hitler. Além da excitação pela possibilidade de ser iniciado um armistício em seu país, e de sua difícil vida clandestina em Cannes – em função de sua origem judaica – ser finalmente relaxada, os olhos do parisiense Erlanger também ganharam um brilho particular, por um outro motivo. Ele agora enxergava um horizonte no qual poderia pôr de pé um projeto pessoal que assumira seis anos atrás, quando então ocupava o cargo de diretor da Associação Francesa de Ação Artística (AFAA). A ideia era criar um festival internacional de cinema que respeitasse a democracia e unisse todas as nações. Em 20 de setembro 1946, na mesma cidade que o acolheu na clandestinidade, Erlanger testemunhou a concretização de seu sonho inicialmente desenhado em 1938. Ele abriria a primeira edição daquele que viria a ser, pelas

Depois de ter sido cancelado em 1939, festival estreou em 1946, com o fim da Segunda Guerra Mundial sete décadas seguintes, o mais influente festival de sua categoria. Com a 69ª edição programada para acontecer entre os dias 11 e 22, neste mês de maio, o Festival Internacional de Cinema de Cannes, do início até hoje, deixou de ser realizado apenas em 1948 e 1950 – por falta de recursos. Foram anos em que a Europa ainda se restaurava da devastação deixada pelo conflito bélico. Aquele contexto tornou a edição de 1946 ainda mais impressionante, uma vez que parte do próprio balneário na Côte d’Azur havia sido arrasado pelos alemães em agosto de 1944. Em julho de 1945, quando Erlanger agregou novos integrantes e reuniuse com a sua mesma equipe de 1938 (dissolvida pela Guerra) para retomar a realização do festival, o ambiente era muito inóspito. Os hotéis em Cannes ainda acolhiam soldados norte-americanos feridos da batalha, e muitos prédios da cidade haviam sido

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bombardeados, incluindo o cassino municipal – local então definido como o auditório para a celebração do evento. Mesmo com um aporte doado pelo Ministério de Relações Estrangeiras da França para restaurar a cidade, o montante não era suficiente. Foi quando, a partir de uma convocação do município para arrecadar fundos, nasceu um mutirão local em torno da criação do evento. Envolveram-se construtoras, agências imobiliárias, mercearias, padarias e até motoristas de táxi. Resolvida a questão dos recursos, o 1ª Festival de Cannes recebeu uma delegação de 19 países convidados, com 45 longas e 68 curtas-metragens indicados, cada um, pelo próprio país de origem – a seleção competitiva só passou a ser escolhida pelo festival em 1972. A festa de abertura aconteceu nos jardins do Grand Hotel, com uma explosão de fogos de artifício, um jantar e um baile. Na Croisette, pombos sendo soltos, enquanto a infantaria desfilava, e iniciava uma competição de flores e um concurso de beleza. Nas águas do litoral, um hidroavião pousava trazendo modelos parisienses. Julgando as beldades, o diretor Jean Cocteau, a cantora Edith Piaf e a atriz Michèle Morgan, entre outros. Esta última, que receberia ali o prêmio de melhor atriz por A sinfonia


FOTOS: DIVULGAÇÃO

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pastoral, de Jean Delannoy, causou furor com seu maiô; enquanto Rita Hayworth chamava a atenção ao lançar a moda do biquíni de duas peças. Cannes dava partida, assim, já no seu princípio, à sua vocação para atrair a mídia não apenas para a revelação de talentos cinematográficos do mundo inteiro, mas também para o espetáculo do glamour relacionado ao cinema. Entretanto, nem tudo foram flores em seu debut. Com problemas próprios de um festival gigante montado sob forte pressão, a primeira edição cometeu gafes que seriam imperdoáveis nos dias de hoje. Nas festividades, um oficial americano quase caiu do primeiro andar, o prefeito da cidade teve seu chapéu roubado, enquanto no auditório era comum ver “penetras” entrando na sala, por trás das cortinas, durante a sessão. Muita confusão também surgiu porque o público simplesmente não respeitava os assentos reservados. Nas projeções, a sessão do longa russo Veliky Perelom, de Fridrikh Ermler, foi exibida com rolos trocados. Já o seu conterrâneo, o curta Berlin, de Yuli Raizman, teve a sessão

A edição inaugural do festival, de 1946, foi considerada fundamental pelos diretores que conseguiu agregar interrompida por falta de energia elétrica, o que quase criou um conflito diplomático, com a delegação soviética ameaçando desistir da competição, alegando boicote da organização. A mesma ameaça foi feita pela delegação norte-americana, quando se deu conta de que Interlúdio, de Alfred Hitchcock, foi projetado faltando um dos rolos, tornando seu enredo incompreensível. Já o curta Jeux d’enfants, de Jean Painlevé, foi exibido com o enquadramento vazando da tela, o que fez o público urrar na plateia. Mesmo sob esse cenário quase cômico, a edição de 1946 foi considerada um sucesso pela seleção que apresentou, revelando ao mundo novas obras de realizadores já importantes e/

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ou ascendentes como David Lean (Desencanto); Emilio Fernández (Maria Candelaria); Roberto Rosselini (Roma, cidade aberta); Billy Wilder (Farrapo humano); René Clément (A batalha dos trilhos); George Cukor (À meia luz); Charle Vidor (Gilda); Jean Cocteau (A Bela e a Fera).

PRESTÍGIO

Hoje, com 70 anos de história, construídos a partir daqueles episódios que a Costa Azul viu acontecer em 1946, o Festival de Cannes manteve o rigor tanto na capacidade de atrair as máximas estrelas do cinema – tais como Kirk Douglas, Sophia Loren, Grace Kelly, Brigitte Bardot, Cary Grant, Romy Schneider e Gina Lollobrigida, entre outras dezenas – como em compor sua seleção competitiva de filmes, fazendo dessas duas referências o elemento que o tornou reconhecido como o mais influente dos festivais. “Posso ter visto filmes fracos em Cannes, mas nunca fui a uma edição ruim do festival”, diz o cineasta Kleber Mendonça Filho, que acompanha o evento desde 1999, quando fazia cobertura jornalística, tendo participado


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também como realizador em 2005, com seu curta Vinil verde na paralela mostra Quinzena dos Realizadores. Outro realizador pernambucano, Tião, não apenas participou da Quinzena por duas vezes, como foi premiado em ambas, por Muro (2008) e Sem coração (2014, codirigido com Nara Normande). Sobre Cannes ser o mais influente dos festivais, Tião é enfático. “Isso é um fato, não uma opinião. Goste ou não do que se encontra lá, Cannes dita regras, principalmente no que diz respeito ao filme de autor. Há, inclusive, quem faça filmes pensando num perfil ajustado ao do festival francês, seja para a mostra oficial, ou outra, como a Quinzena”, explica. A edição número um da Quinzena aconteceu em 1969, mas foi germinada pela Sociedade de Realizadores de Filmes no atribulado Maio de 1968. O objetivo era apresentar filmes sem o espírito competitivo da seleção tradicional, para dar um exemplo à indústria do cinema no mundo inteiro. A ideia foi um desdobramento da ação de François Truffaut, Jean-Luc Godard e Claude Lelouch naquele

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mesmo ano, quando, no dia 13 de maio, eles interromperam a 21ª edição de Cannes invocando a categoria a aderir ao espírito das reivindicações dos estudantes e trabalhadores naquele momento em Paris, e a brigar pelo retorno de Henri-Langlois à direção da Cinemateca Francesa, que havia sido demitido pelo então ministro da Cultura, André Malraux. Não demorou muito e Roman Polanski, Louis Malle e Monica Vitti, todos no júri, aderiram ao protesto. Dois dias depois, Milos Forman, Carlos Saura e Alain Resnais, com filmes na competição oficial, retiraram suas obras da disputa. O festival decidiu, então, encerrar suas atividades em 19 de maio, cinco dias antes do planejado.

MEMÓRIAS DE PRESENÇA

O jornalista paulista Thiago Stivalleti, que já residiu em Paris e vem cobrindo o festival desde 2008, destaca que talvez esse tenha sido o momento mais politizado de Cannes desde sua criação. “É algo que não seria repetido hoje. O mundo pode estar caindo aos

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2 DESENCANTO

Obra-prima de David Lean foi um dos filmes exibidos na estreia do Festival de Cannes

3 O PAGADOR DE PROMESSAS

Drama dirigido por Anselmo Duarte recebeu a Palma de Ouro em 1962

4 OS INCOMPREENDIDOS

O estreante Jean-Piérre Léaud foi celebrado por sua atuação no primeiro longa de Truffaut

pedaços, mas o evento não será interrompido”, acredita. Kleber Mendonça gostaria de ter testemunhado as turbulências em 1968, mas também pensa como teria sido participar de entrevistas com gente como Billy Wilder, Hitchcock, Jean Renoir. “Ainda assim, tive lembranças pessoais ricas de entrevistas com Manoel de Oliveira, Godard, Gregory Peck, essa figura alada do cinema. Tive ainda o prazer de estar na sessão da cópia restaurada de O Leopardo (de Luchino Visconti), com Claudia Cardinali e Alain Delon sentados nas poltronas atrás da minha”, recorda. Para Kleber, um marcante momento contemporâneo, de


FOTOS: DIVULGAÇÃO

5 MAIO DE 1968

Comitê formado por Claude Lelouch, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Louis Malle e Roman Polanski decide não participar de edição do festival em apoio aos protestos em Paris

6 AQUARIUS

Kleber Mendonça Filho e Sonia Braga no set de filmagem, em 2015

Claquete 5

importância certamente histórica, se deu no ano 2000. “Havia lá uma espécie de garoto-propaganda de um projetor digital, muito superior a tudo que existia na época, e houve um debate tenso mediado por Roger Ebert (crítico norte-americano falecido em 2013). Spike Lee estava indignado na plateia, dizendo que os 24 quadros por segundo batendo na projeção provocavam um efeito no cérebro, e querendo saber se alguém já estudava o efeito do digital. Aconteceu que, sete anos depois, a indústria definiu o padrão digital 2K para projeção no cinema e isso tornou-se o modelo standard do mercado”, contextualiza. “Um dos exemplos recentes de como qualquer coisa numa coletiva em Cannes resvala no resto do mundo”, diz Stivalleti, “aconteceu com Lars von Trier (em 2011 por ocasião do filme Melancolia). Eu já havia participado de mesas redondas com ele, que é muito inteligente, mas inseguro. É uma figura complexa, com um humor negro incrível. Mas ele estava nervoso na entrevista coletiva. Daí, soltou uma piada envolvendo o nazismo e, no dia seguinte, foi banido do festival. Cannes provou do próprio veneno. O festival precisou se posicionar para o mundo. Foi uma reação política, postura que

Sucessivas edições do festival incluíram mostras paralelas, que possibilitam a inclusão de trabalhos de menor visibilidade perdeu a prática enquanto o Festival de Berlim a tomou para si muito bem”. O jornalista destaca ainda que o prestígio de Cannes também passa pelos seus recursos. Está relacionado ao fato de a França ser o país que mais promove filmes de autor. “Seu Conselho Nacional de Cinema investe não só na produção local, mas em produções da América Latina, África e Ásia”, diz.

PESQUISAS E CRÍTICAS

“A cultura francesa do amor pelo cinema vem desenvolvendo pesquisas e críticas. Isso é também um impulsionador”, pontua Stivalleti. E Tião assina embaixo: “Depois de exibidos os nossos filmes por lá, recebíamos de todos, não apenas do público, mas também da própria produção do festival, muitos agradecimentos pela oportunidade de eles terem conhecido algo

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novo. A forma como os franceses historicamente sempre olharam para o cinema é particular. Construíram muito conhecimento crítico”. De fato, outro momento de inflexão na história de Cannes remete a 1962, quando nasceu a independente mostra Semana da Crítica. Reivindicada pela Associação Francesa de Críticos de Cinema, a Semana passou a dar espaço às obras que não eram populares, nem para o mercado, nem para os festivais. Em 1978, surgiu o troféu Câmera de Ouro, para o melhor diretor no comando de seu primeiro longametragem; e deu-se início à mostra Un Certain Regard, novo seguimento em Cannes, criado por seu então recémempossado delegado-geral Gilles Jacob (depois presidente do festival, até 2014). O espaço seria dedicado a realizadores menos conhecidos. Foi por ali que Cannes apresentou pela primeira vez talentos emergentes como o tailandês Apichatpong Weerasethakul, o romeno Cristi Puiu, o sulcoreano Hong Sang-soo e Kim Ki Duk, além do mexicano Michel Franco, entre outros que agora fazem parte de uma elite cujo clube, podemos dizer tranquilamente, seduz qualquer realizador deste mundo.


INDICAÇÕES WESTERN

TERROR

Diretores: Sergio Sollima, Tonino Valerii, Robert Hossein e Giulio Petroni Com: Lee Van Cleef, Giuliano Gemma, Michéle Mercier, Orson Welles Versátil Home Video

Diretores: Severin Fiala, Veronika Franz Com: Lukas Schwarz, Elias Schwarz, Susanne Wuest Playarte Pictures

FAROESTE SPAGHETTI

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Palma de Ouro

AQUARIUS NA COMPETIÇÃO No Recife de 1979, um menino de 10 anos de idade sempre prestava muita atenção no que os cadernos de cultura do Diario de Pernambuco e do Jornal do Commercio publicavam sobre cinema. Foi naquele ano, no mês de maio, que, pela primeira vez, leu Festival de Cannes. Trinta e sete anos depois, o mesmo menino, Kleber Mendonça Filho, atravessa neste mês o tapete vermelho que leva ao Palácio dos Festivais na 69ª edição – entre 11 e 22 de maio – do mesmo festival que apresentou ao mundo, naquele auditório, os filmes de Volker Schlöndorff, Francis Ford Coppola e Milos Forman. Com a seleção de Aquarius, o terceiro longa-metragem de Kleber (segundo de ficção), constando entre os 20 títulos escolhidos para concorrer na mostra oficial 2016 ao prêmio máximo do festival, a Palma de Ouro, o realizador parece abrir um precedente no cinema brasileiro que já vinha sendo desenhado ao longo dos últimos 10 anos. O precedente de que uma geração de realizadores brasileiros entre 40 e 50 anos de idade está nascendo aos olhos do mundo. E com um cinema muito particular, inovador e maduro. Não que a cinematografia nacional ainda não tenha encontrado reconhecimento no exterior por meio de talentos até mais jovens, mas essa geração à qual Kleber pertence, ao chegar em Cannes (o topo do mundo cinematográfico), é como se o pernambucano desse um recado universal de que há um cinema sendo feito pelos seus pares no Brasil, que pode relativizar ou redesenhar uma nova ideia para o conceito do “contemporâneo cinema brasileiro” que circula lá fora. Uma ideia diferente da estabelecida no exterior pelo estereótipo do favela movie, não por acaso inaugurado por um título que explodiu também no Festival de Cannes: Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Katia Lund, lá exibido, mas fora de competição, em 2002. Quem primeiro chamou a atenção para esse específico momento histórico que estamos testemunhando neste maio foi o baiano Cláudio Marques que, na mesma faixa etária de Kleber, depurou bastante seu primeiro longa-metragem, o premiado Depois da chuva, codirigido com Marília Hughes e lançado em janeiro do ano passado. “Há 10 anos, eu viajava pelo mundo com meu curta Eletrodoméstica e já havia uma cobrança natural das pessoas pelo meu primeiro longa”, recorda Kleber. “Junto comigo, estavam Marco Dutra, Juliana Rojas, Helvécio Marins, Clarissa Campolina, Felipe Barbosa, e eu sentia que a gente estava numa linha de montagem, preparando-nos para mudar para a próxima e natural fileira”, pontua. “Depois de quatro anos, começaram a surgir os trabalhos em longa-metragem e era como se o cinema brasileiro estivesse mudando a ficha. Muito diferente daquela que eu via nos anos 1990, quando quase nada me atraía ao iniciar como crítico de cinema”, observou Kleber, que pode estar influenciando agora um outro leitor de 10 anos. LUIZ JOAQUIM

BOA-NOITE, MAMÃE

Digistack com dois DVDs e quatro cards, o novo box da Versátil traz quatro clássicos do spaghetti western – subgênero western de produção italiana produzido durante as décadas de 1960 e 1970: O dia da desforra (Sergio Sollima), Dias de ira (Tonino Valerii), Cemitério sem cruzes (Robert Hossein) e Tepepa (Giulio Petroni). Todos os filmes estão em versões integrais inéditas com áudio original em italiano e oferta de extras.

Escolhido para representar a Áustria no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2016, este drama de horror acompanha o retorno de uma mãe para casa após passar por um procedimento cirúrgico. Irreconhecível, tanto na aparência (está com o rosto coberto de ataduras) quanto em seu temperamento, desperta a desconfiança de seus filhos, os gêmeos Lukas e Elias, que duvidam que ela se trate de sua verdadeira progenitora.

DOCUMENTÁRIO

ANIMAÇÃO

A PAIXÃO DE JL Diretor: Carlos Nader Já Filmes

No início dos anos 1990, três anos antes de sua morte, o artista plástico José Leonilson Bezerra Dias começa a gravar um diário íntimo em fitas cassetes. Nos áudios, comentários sobre o momento político do país (a Era Collor) e do exterior (a queda do Muro de Berlim), além de impressões de seu cotidiano, como comentários sobre os filmes que assistia, entre outras coisas. Tais registros, de um artista sensível e conectado à contemporaneidade, tomam outro rumo quando JL descobre ser portador do vírus HIV.

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EXTRAORDINARY TALES

Diretor: Raul Garcia Com: Christopher Lee, Bela Lugosi, Roger Corman, Guillermo del Toro GKIDS

A antologia apresenta cinco contos animados baseados em histórias clássicas de Edgar Allan Poe (The tell tale heart; The fall of house Usher; Strange case of Mr Valdemar; The mask of the Red Death; The pit and the pendulum). Cada um traz um estilo de animação distinto, do expressionismo alemão às graphic novels. Em cada história, misturas de texturas, técnicas e colorização procuram traduzir a complexidade do universo sombrio do escritor.


asza CON TI NEN TE

Criaturas Miles Davis por Raul Souza

No final de 2015, a BBC elegeu Miles Davis (1926-1991) como o maior jazzista de todos os tempos. A expressão “todos os tempos” é precisa. O trompetista esteve/está no passado, no presente e no futuro do jazz. Seus solos minimalistas e complexos, uma poderosa forma de criação artística, construíram seu estilo. Miles ousou mais, abraçou diversos outros gêneros musicais, anteviu que ele e o jazz poderiam ir além. E foram.

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