Continente #171 - Quando o corpo é a arte

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QUANDO O

# 171

CORPO

A

G E N T E

L I G A

E M

D E T A L H E

ÉA

S E C A D A

#171

D E

P E R N A M B U C O .

ano XV • mar/15 • R$ 10,00

ARTE

PERFORMANCES, MUTAÇÕES FÍSICAS E NET ART SÃO ALGUMAS DAS VERTENTES DESSE FENÔMENO QUE REMONTA AOS ANOS 1960

CONVERSA

CONTINENTE

FALTA DE ESPAÇOS DE ATUAÇÃO? FORMAÇÃO PRECÁRIA? BAILARINOS, ATORES E DIRETORES DE TEATRO FALAM DE CRISES E REAÇÕES

A Globo Nordeste está presente em cada canto do nosso Estado. Para levar notícia, informação, entretenimento e cultura para todos os pernambucanos. Porque é através da tela da Globo Nordeste que Pernambuco se vê.

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E MAIS MAURÍCIO CASTRO | JOSÉ RUFINO | DIÓGENES MOURA | ELIZABETH TEIXEIRA

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Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:

PROGRAMAÇÃO

março e abril

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco

2015

A programação do Ouvindo e Fazendo Música no MEPE (Museu do Estado de Pernambuco) segue em março e abril com as principais tendências da música brasileira e internacional, enchendo de música as tardes de sábado em Recife.

14/03 • SÁBADO• 17h SHOW COM DEDO DE MOÇA

21/03 • SÁBADO • 17h RECITAL COM ANDREIA ANDRADE

28/03 • SÁBADO • 17 SHOW COM FRANCIS

04/04 • SÁBADO • 17h SHOW COM DUO SIM

11/04 • SÁBADO • 17h SHOW COM MARSA

18/04 • SÁBADO • 17h SHOW COM ANINHA MARTINS

11/04 • SÁBADO • 15h OFICINA DE 7 CORDAS EXPERIMENTAL COM RODRIGO SAMICO

PATROCÍNIO

25/04 • SÁBADO• 17h SHOW COM JEFFERSON GONÇALVES PRODUÇÃO

APOIO

SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$ 5,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 2,50 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.

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REALIZAÇÃO

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sab e dom 14h as 17h

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REPRODUÇÃO

MARÇO 2015

aos leitores O corpo e a arte sempre mantiveram uma relação estreita. Ao longo da História, essa ligação foi tensionada e transformada, sobretudo quando, no século 20, aquilo que era apenas representação – em pinturas e esculturas, mas também na dança e no teatro – passou a ser suporte para experimentos, tornado-se não apenas um meio para discutir determinada temática, sendo ele o próprio tema. Entre os artistas que empreenderam as rupturas na concepção do corpo na arte, a partir dos anos 1960–70, está a sérvia Marina Abramović. Sozinha ou junto com o parceiro de mais de uma década, Ulay, ela realizou performances inquietantes e questionadoras, de intensidade poética e grande plasticidade. Este mês, será aberta, no Sesc Pompeia (SP), a exposição Terra comunal, que empreende uma retrospectiva do trabalho seminal de Abramović. Este fato é o ponto de partida da nossa matéria de capa, que traz a discussão sobre a relação arte-corpo, da qual a artista é protagonista. Além do retrospecto histórico, fundamental para a compreensão do tema, o material parte para a discussão contemporânea do papel do corpo nas linguagens artísticas. Uma das vozes presentes é a da psicanalista e pesquisadora de arte Suely Rolnik, a partir das conceituações

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que estabeleceu de “corpo-que-sabe” e “corpo recalcado”. Esse último seria centrado no eu, reforçando uma perspectiva estéril do corpo, já o “corpo-que-sabe” seria questionador, “um corpo, enfim, que sabe e existe em potencial até serem ‘ligadas’ suas conexões sensíveis e performativas em relação ao meio circundante”, como explica a jornalista Olívia Mindêlo. Tudo indica que migramos, como afirma o francês Michel Bernard, “da civilização contra o corpo para a civilização do corpo”. Hoje, experimentações performativas têm forte cunho político, como aquelas que operam catarses na memória de corpos marcados historicamente por escravizações, explorações e torturas, como os das mulheres e de gays. As redes sociais e a internet também têm se mostrado, na contemporaneidade, ambientes propícios a essas provocações, manipulações e exibição da intimidade. Ainda nesta edição, retomamos a Conversa, projeto lançado na edição de janeiro, dentro das comemorações dos 15 anos da Continente, que, a cada dois meses, reúne profissionais de uma determinada linguagem artística para discutir as principais inquietações das suas áreas. Neste segundo encontro, reunimos cinco profissionais das artes cênicas.

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sumário Portfólio

Maurício Castro 6

Cartas

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Expediente + colaboradores

8

Entrevista

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Felipe Pigna Historiador e escritor argentino discute a relevância da disciplina História como desencadeadora do pensamento crítico

Conexão

Posfácio Site focado em literatura disponibiliza artigos, críticas, colunas e análises coletivas de livros

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Perfil

Elizabeth Teixeira Chega aos 90 anos a legendária sindicalista, personagem de Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho

Tradição

Boi da Macuca Há duas décadas, fazenda realiza encontro de música e folguedo em Correntes, no agreste pernambucano

América Latina Pesquisadores percorrem países do continente para fazer mapeamento do circuito da música independente

58

Leitura

64

Entremez

68

Visuais

70

Matéria corrida

72

Claquete

88

Criaturas

Balaio

Leila Diniz Irreverente e transgressora, musa desbocada da TV e do cinema brasileiro faria 70 anos neste mês

Sonoras

Depois de experimentar vários suportes, artista plástico e cenógrafo atuante desde a década de 1980 faz um retorno à gravura, ao desenho e à pintura

14

Diógenes Moura Em Fulana despedaçou o verso, ficcionista traz narrativa imagética em um falso bloco de notas

Ronaldo Correia de Brito O toro de madeira

Naïf Galerista Jacques Ardies registra parte da produção brasileira do gênero, de 1940 até hoje José Cláudio Desenho

Documentário Fernando Weller prepara filme que remonta vinda de norte-americanos em missão ao Brasil, no período militar

Elis Regina Por Kleber Sales

Cardápio Tequila

Cidade de 40 mil habitantes a 65 km de Guadalajara, em Jalisco, nomeia a bebida mais consumida do México e que ganha mais adeptos no Brasil

50 CAPA FOTO Marina Abramović/Crystal Cinema I (1991)/Cortesia do Acervo Marina Abramović

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Capa

Viagem

Fundador da própria concepção de arte, o corpo, que foi palco de experiências nas práticas artísticas dos anos 1960, dialoga, hoje, com as novas tecnologias

Trecho geográfico conhecido como Cariris Velhos abriga formações rochosas peculiares e guarda antigas histórias e manifestações culturais tradicionais

Palco

Conversa

Como forma de enfrentar a carência de espaços de encenação e o incentivo cultural mirrado, coletivos encenam para pequenos grupos em residências

Profissionais falam sobre a produção pernambucana na área e a necessidade de uma maior articulação entre eles para conquistar mais espaços e públicos

Corpo na arte

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Domiciliar

75

Paraíba

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Mar’ 15

Artes cênicas

80

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cartas CHICO LUDERMIR

SEXUALIDADE Gostei muito da matéria de capa da Continente de fevereiro. Os trechos biográficos das pessoas trans estão lindos! Em um comentário breve, talvez tenha havido vários momentos em que o nome de registro das pessoas pudesse ser repensado. No mais das vezes, não é necessário – e é geralmente visto como uma forma transfóbica clássica de fazer referência a pessoas trans. Achei que foi um tanto exagerado, nas biografias. Achei o texto, como um todo, muito pertinente e crítico, no entanto. E adorei a matéria sobre arte e sexualidade e a revista inteira. Espero ter contribuído para as reflexões. VIVIANE VERGUEIRO SALVADOR – BA

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. boas e conseguiram uma proeza: tratar do tema por vários ângulos. Vocês estão todos de parabéns. ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA

MATHEUS TORREÃO

RECIFE – PE

RIO DE JANEIRO – RJ

CONTINENTE 15 ANOS A edição da Continente de janeiro ficou incrível. Parabéns e obrigado pela oportunidade de participar. KELVIN FALCÃO KLEIN

SEXUALIDADE 2 A matéria ficou muito boa. Acho que revistas como a Continente deveriam investir mais em matérias longas, mais verticalizantes, e deixar de querer disputar espaço com as breves notícias do Yahoo e do Uol. No conjunto, as matérias ficaram muito

ipanemense pela imensa boa vontade e incansável fanfarronice. Como diria Gil brother: alô Banda de Ipanema, aquele abraço!

RIO DE JANEIRO – RJ

DO FACEBOOK

BANDA DE IPANEMA Matéria que tive grande felicidade de escrever este mês para a Continente, devendo obrigados especiais à velha guarda

FEVEREIRO Esta edição é leitura obrigatória para todos que procuram textos interessantes, inteligentes, exigentes. Recomendo aos professores que se interessam por assuntos contemporâneos para aulas interdisciplinares! Já está na minha linha de ação para este ano letivo! MARIA HELENA PÔRTO

A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

(81) 3183 2780

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RECIFE – PE

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colaboradores

Bárbara Buril

Flavia Pinheiro

Mariana Camaroti

Olívia Mindêlo

Jornalista, com pesquisa em arte, tecnologia e imagem

Bailarina, performer, atriz, professora e pesquisadora

Jornalista, radicada em Buenos Aires

Jornalista, mestre em Sociologia pela UFPE

E MAIS AD Luna, jornalista. Anco Márcio Tenório Vieira, professor da UFPE e doutor Teoria da Literatura. Augusto Pessoa, fotógrafo e jornalista. Gilson Oliveira, jornalista, assessor de comunicação da Companhia Editora de Pernambuco. Kleber Sales, ilustrador e caricaturista.

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO

CONTINENTE ONLINE

ATENDIMENTO AO ASSINANTE

GOVERNADOR

Adriana Dória Matos

Olivia de Souza (jornalista)

0800 081 1201

Paulo Henrique Saraiva Câmara

SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO

Juan Ropero (webdesigner)

Fone/fax: (81) 3183.2750

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Luiz Arrais

assinaturas@revistacontinente.com.br CONTATOS COM A REDAÇÃO

Antônio Carlos Figueira REDAÇÃO

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EDIÇÃO ELETRÔNICA

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Ricardo Leitão

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Fernando Athayde, Laís Araújo, Pethrus

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Tibúrcio e Priscilla Campos (estagiários)

Eliseu Souza

Bráulio Mendonça Meneses

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Sóstenes Fernandes

Everardo Norões (presidente)

ARTE

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E PARQUE GRÁFICO

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diagramação e ilustração)

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CONSELHO EDITORIAL:

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO

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FELIPE PIGNA

“O passado é uma arma muito valorizada” Historiador e escritor argentino critica a manipulação e descontextualização do ensino dos fatos históricos, encapsulando a disciplina apenas como conteúdo do Ensino Fundamental TEXTO Mariana Camaroti, de Buenos Aires

CON TI NEN TE

Entrevista

Há 10 anos, o historiador e escritor argentino Felipe Pigna, 55 anos, lançava o primeiro livro da série Los mitos de la história argentina e, com ele, começava a aproximar a História da população. Daí em diante, cada vez que ele lança um livro – a série está em seu quinto volume –, entra na lista dos mais vendidos, com destaque nas livrarias e mãos de leitores em transportes públicos. Um fenômeno. Os argentinos, conhecidos pela sua tradição de leitura, se voltaram à história do país depois da crise de 2001. O desconforto de Pigna pela maneira como os fatos nacionais foram manipulados o levou a uma abordagem diferente da narrativa oficial, desenvolvida para que pudesse chegar às pessoas, sobretudo através dos meios de comunicação. Pigna está à frente de programas de televisão – chegando a 25 pontos de audiência em horário nobre –, de rádio, histórias em quadrinhos, revista e uma página no Facebook com quase meio milhão de fãs. Entre seus best-sellers, figuram 1810 – la outra historia de nuestra revolución fundadora (2010), a

biografia Evita – jirones de su vida (2012) e Mujeres tenían que ser – historias de nuestras desobedientes, incorrecias, rebeldes e luchadoras, desde los orígenes hasta 1930 (2012), afora a popularíssima série dos mitos locais citada anteriormente. CONTINENTE Você foi além das salas de aula e aproximou a história argentina dos próprios argentinos, através de livros, programas de rádio e TV, e meios impressos como revistas e histórias em quadrinhos. Qual era o seu objetivo com a apropriação dessas mídias? FELIPE PIGNA Como tenho muitos anos de ensino, sentia os déficits que havia no conhecimento da história argentina. Assim como acontece em muitos lugares da América Latina, a nossa história havia sido contada pelo poder, como uma garantia de continuidade do status quo. Uma ideia de que existiam seres sobrenaturais ou imaculados que controlavam a política e que o resto deveria estar subordinado a eles. Pouca contextualização, uma história política isolada, importando apenas o que acontecia

no nível local, sem mostrar o que acontecia no mundo e na América Latina. Tudo isso provocava um tédio, afastando as pessoas da História, uma matéria sem graça e sem nenhuma utilidade. Por outro lado, havia a aceitação do presente a partir de um condicionamento do passado. Como dizia (George) Orwell, “quem controla o passado, controla o presente; quem controla o presente, controla o passado”. O passado é uma arma muito valorizada, é o relato justificatório do presente, portanto, em geral, os poderosos tiveram muito cuidado com a História, relatando-a como proprietários não apenas das terras e dos meios de produção, mas também do passado. Com famílias formadoras da nacionalidade, excluindo a chamada classe subalterna. CONTINENTE Como se esses subalternos não houvessem participado da História. FELIPE PIGNA Exatamente. Mas, então, por quem os exércitos estavam integrados? Quem realizou as obras que construíram os países? Por

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MARIANA CAMAROTI

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ou seja, dois milhões de escravos, que só vão ter gradualmente sua liberdade na década de 1860, num país fundado em 1776. Instala-se uma lógica de poder na qual as pessoas vão aceitando esses sinais da submissão e soa lógico que um país se declare independente e que transcorram quase 100 anos até que uma parte importantíssima da população possa ter seu direito mínimo, o de ser livre, que, com certeza, não é assim porque a liberdade outorgada aos escravos

CONTINENTE Como no Brasil, quando o Imperador Dom Pedro I proclama a independência do país. FELIPE PIGNA Isso, porque convinha a toda uma classe que o apoiava. Portanto, é fundamental a perda da inocência, que nós comecemos a perceber que a História é política, que a matéria-prima dessa área do conhecimento são a economia e a política e que, sendo assim, não pode haver inocência na sua leitura. Todo acontecimento é intencional, histórico e político; negociações, decisões que

DIVULGAÇÃO

isso se diz que fulano construiu tal coisa, beltrano venceu tal batalha, sem reconhecer todo o componente humano que havia atrás disso. Então, meu objetivo foi dar visibilidade aos invisíveis e uma lógica à História, porque, na verdade, era uma narrativa totalmente sem lógica, sem explicar a razão de acontecimentos na América Latina. Por que o que aconteceu na região desencadeou um processo de independência ao redor de 1810? O que estava se passando na Europa? Sem esse contexto básico, não se

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Entrevista entende o passado. Nesse sentido, havia muito para analisar e busquei aproximar esses acontecimentos remotos das pessoas, porque são patrimônio coletivo, não existe um dono da História. As pessoas devem saber o que lhes antecedeu. CONTINENTE A História está malcontada, portanto. FELIPE PIGNA Muito malcontada, por uma operação política, não por acidente. É um fenômeno que acontece no mundo todo. Os negros não existiram na história americana, uma história de brancos, na qual se diz muito sutilmente “foi decretada a igualdade de direitos entre as pessoas, com exceção de algumas…”,

é de um nível de inferioridade tão grande, que eles continuarão sendo subordinados e pobres por gerações, como aconteceu no Brasil. Às vezes, toma-se a história declamatória como se a declamação e a proclamação provocassem uma imediata liberdade do povo. Como na Revolução Francesa, que foi puramente declamatória. O lema da “liberdade, igualdade e fraternidade” não teve um efeito imediato nos setores populares, porque a desigualdade está estabelecida quando a liberdade é proclamada. É quase uma armadilha que a burguesia lança, usando as classes chamadas subalternas para promover sua ascensão.

implicam pessoas que vão se salvar, outras que vão desaparecer, umas que estarão submetidas, outras que vão melhorar de vida. É a luta permanente da História, a base de sua dinâmica. CONTINENTE Os latino-americanos se conhecem dentro dessa perspectiva? FELIPE PIGNA Estamos começando a nos conhecer mais. A ascensão da esquerda praticamente em toda a América Latina no início do século 21 motivou as pessoas a buscarem esse conhecimento. A ideia de cidadania e de passar a fazer parte dela vem acompanhada da identidade e do desejo de responder à questão: Quem sou eu? A direita nunca se preocupou com que os indivíduos tomassem

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posse da própria história, mas que conhecessem a “história-poder”, que de alguma maneira garante a continuidade do status quo. CONTINENTE Em que sentido a existência de democracias fraudulentas e ditaduras, como você se refere em seus livros, influenciaram a falta de conhecimento dessa história real? FELIPE PIGNA Impressiona, quando a gente constata essa história construída pelas democracias fraudulentas e ditaduras. É uma falsificação. Mentiram descaradamente para

“É preciso que o conhecimento da História deixe de remeter ao Ensino Fundamental, como acontece com muitos adultos hoje. Porque se trata da nossa vida, do nosso país, não se trata de algo que diz respeito à ‘escola’”

nós e ocultaram documentos fundamentais, e ocultar é mentir. Com essa ideia de que se as pessoas não sabem, continuam vivendo numa espécie de limbo e, portanto, não conectam passado e presente. Parte do negócio das ditaduras era cortar a conexão entre passado e presente. Uma das obsessões da direita é cortar esses vínculos. CONTINENTE Quais os prejuízos de desconhecer a história real? FELIPE PIGNA Conhecer a verdade permite questionar. CONTINENTE Na escola, as crianças aprendem a História baseada em datas, elites e heróis. Por que esse modelo se perpetua?

FELIPE PIGNA Ele só se sustenta se for acompanhado de uma lógica interna. Conhecer heróis em si não é um problema, mas é importante saber que a História não é feita de individualidades, que existem contextos, um país e um povo por trás. É preciso que o conhecimento dessa área deixe de remeter ao Ensino Fundamental, como acontece com muitos adultos hoje. Porque se trata da nossa vida, do nosso país, não se trata de algo que diz respeito à “escola”. Restringir a compreensão da História aos estudos que adquirimos nos primeiros anos de ensino é uma deturpação habilmente construída por essa história-poder. Tornar o assunto maçante e desinteressante, restrito quase às recordações infantis, encapsula esse campo à fase pueril da vida e faz com que associemos os fatos ocorridos aos contos de mocinho e bandido. CONTINENTE A História se torna, assim, desvinculada da política? FELIPE PIGNA Totalmente. Além do mais, acusam-nos de politizar a História. É ridículo. É como acusar alguém de matematizar a geometria. Óbvio, sem matemática não existe geometria; sem política não existe história. De que vou falar, se não falo de política quando se trata de história e se eu não der um sentido político a ela? Tudo foi política, do contrário não é História. Esvaziá-la da sua política é transformá-la em um conto estúpido. CONTINENTE Você mantém programas em canais de televisão pública. De que maneira o atual governo argentino fomenta essa revisão da História? FELIPE PIGNA Um exemplo desse esforço, creio, é o canal de documentários Encuentro, de alta qualidade, para o qual trabalho. Nele se produzem programas com uma visão local, falando do que nos importa. A América Latina precisa olhar para si mesma. CONTINENTE Por que o Brasil sempre esteve mais afastado da América Latina? FELIPE PIGNA Por vários fatores. O Brasil sempre acreditou ser uma potência e isso prejudicou sua conexão com a América Latina.

Além disso, havia ameaças de invasões brasileiras aos países vizinhos. Situações muito diferentes. O Brasil não teve um processo independentista como o do restante da região. Não teve libertadores. Da própria questão portuguesa nascerá o Brasil, um caso endógamo, o que dificulta a integração. CONTINENTE A esquerda que chegou ao poder na América Latina na década passada tem cumprido as expectativas ou traído as esperanças? FELIPE PIGNA As esperanças são tão grandes, que é difícil cumprir todas as expectativas. São séculos de miséria e submissão e esses governos despertam nas pessoas o desejo de que todos os direitos sejam realizados. Cumprir todas as promessas é algo difícil, mas esses governos não podem falhar. Na Argentina, estamos julgando os criminosos da última ditadura, do franquismo. Algo inédito e admirável. CONTINENTE De onde vem esse interesse dos argentinos pela História? FELIPE PIGNA A Argentina chegou ao fundo do poço com a crise de 2001, o que não aconteceu com o Brasil, e começou a se perguntar por que quebrou, como chegou até ali. Três anos depois, saiu o primeiro livro da série Los mitos de la história argentina. Comecei a responder que isso não vinha da Era (Carlos) Menem (presidente de 1989 a 1999), vinha de muito antes; isso foi um divisor de águas. Depois o programa Algo habrán hecho teve um grande resultado (com 25 pontos de audiência no horário nobre de um canal privado) e despertou interesse nas pessoas pela área de conhecimento, incluindo os jovens. CONTINENTE Qual é o seu próximo projeto? FELIPE PIGNA Uma biografia sobre San Martín, para fazer justiça a esse homem (que, junto com Simón Bolívar, liderou a liberação da América do Sul) tratado tão injustamente, caluniado. Uma pessoa que entregou sua vida pelo país e viveu quase toda a existência no exílio. Depois disso, não tenho limites, há muita coisa que quero explorar, voltar à série Los mitos.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

CON TI NEN TE

CORPO NA ARTE

MÚSICA

Quem visitar o site vai poder conferir com mais detalhes algumas das obras discutidas na matéria de capa. O internauta poderá ouvir, entre outros, o áudio em inglês da artista Marina Abramović falando sobre a performance Os lábios de Thomas e ver teasers de dois trabalhos do ator e diretor de teatro pernambucano, radicado em Barcelona, João Lima (foto). Também estará disponível o artigo As infinitas descobertas do corpo, da historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna e a palestra de Suely Rolnik no 8º Encontro do Instituto Hemisférico de Performance e Política (SP, 2013).

Ouça trabalhos de algumas das bandas latinoamericanas citadas na reportagem de AD Luna para a seção Sonoras.

Conexão

FICÇÃO Leia trechos do livro Fulana despedaçou o verso, do escritor e curador de fotografias Diógenes Moura, comentado em Leitura.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

ARTE

CULTURA POP

CINEMA

TURISMO

Um espaço para ler sobre mostras em cartaz, análises, críticas e também humor

Atualização constante e análise cuidadosa são pontos altos de Flavorwire

Cinemateca portuguesa disponibiliza, além da programação, acervo digital

Lugares fora do roteiro para quem quer evitar cenários cartão-postal

hyperallergic.com

flavorwire.com

www.cinemateca.pt

atlasobscura.com

O Hyperallergic funciona como um fórum para discutir perspectivas contemporâneas sobre arte. As pautas passam por análises de novos artistas (a maioria da América Central), debates sobre problemáticas que permeiam o mercado, resenhas de exposições e curiosidades aleatórias. O site também possui newsletter, enviada todos os dias para os assinantes. Nas terças-feiras, uma carta do editor apontando quais as matérias mais importantes e acessadas da semana é anexada ao e-mail.

Portal de notícias relacionadas à televisão, cinema, música, design e literatura. A constante produção e a forma analítica cuidadosa de seus textos são os pontos altos do Flavorwire. As resenhas dedicadas aos episódios de séries americanas e inglesas prometem tornar-se o centro dos debates de qualquer “série maníaco”. Outros conteúdos sobre fotografia, cultura pop, moda e teatro também estão disponíveis.

Criada em 1948, a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema é um dos mais importantes patrimônios cinematográficos de língua portuguesa. O site oficial do espaço traz, além de informações sobre o acervo e a programação, um interessante arquivo digital. Na seção Cinemateca digital, o visitante pode encontrar material em texto, vídeo e imagem. Filmes e escritos sobre o cinema português datados do início do século 20 podem ser achados em boa conservação.

Site colaborativo, o Atlas Obscura oferece um tipo de catálogo turístico diferente. A ideia é mostrar lugares singulares e inóspitos como, por exemplo, as 10 ruínas acessíveis de Paris. A divisão temática das seções é ótima para pesquisa. Na parte de Articles, o leitor tem acesso não só aos detalhes práticos do local em foco, mas também à parte histórica. Já em Places, o lugar a ser visitado pode ser procurado através do nome da cidade e país.

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blogs EDITORA CARAMBAIA blogdacarambaia.com.br

Fundada em 2014, a Carambaia ainda não publicou nenhum livro. O seu catálogo será dedicado a edições com pequenas tiragens e atentas ao processo de produção dos formatos e conteúdos. Enquanto ainda não aparece nas prateleiras, a editora paulista organizou um espaço virtual com ricos debates. Em seu blog, críticos refletem sobre questões ligadas ao meio literário.

LITERATURA ACIMA DE TUDO

CASA NOVA

Posfácio concentra-se na análise de textos literários, fomentando, inclusive, a leitura e crítica coletiva de livros, como Graça infinita, de David Foster Wallace

Para além de conselhos sobre decoração, o Apezinho apresenta textos que abordam um evento importante na chamada “linha da vida”: a saída de casa. De acordo com a descrição do site, a ideia é compartilhar dicas e contar histórias de quem já passou por experiências como a busca pelo novo lar e as várias opções para pendurar quadros.

posfacio.com.br

O vício pela literatura catalisa a maior parte da produção do Posfácio, site que surgiu em 2013, após o fim do blog Meia Palavra. “Muita gente ainda quis continuar e entramos num acordo para fazer algo novo. Sabíamos de literatura, mas queríamos expandir para cinema e até política. O site teve uma ótima recepção nos primeiros seis meses e manteve a audiência. A equipe mudou muito. Temos cerca de 10 colaboradores hoje”, explica o editor Felippe Cordeiro. Três vezes por semana, novos textos – colunas, críticas, artigos – são postados. Em dezembro do ano passado, o Posfácio promoveu o início de uma leitura coletiva do calhamaço Graça infinita, de David Foster Wallace. Intitulado Verão infinito, o especial trouxe muita visibilidade para o site. “A ideia é montar, neste ano, um clube de leitura com a temática sci-fi”, afirma Felippe, que destaca também a importância da primeira cobertura feita na Festa Literária de Paraty (Flip) como motivo para a forte presença do site no meio literário virtual. No rumo contrário à poluição textual dos portais de notícias, as caixas de comentários do Posfácio são uma atração à parte: alguns posts rendem conversas e debates PRISCILLA CAMPOS analíticos tão bons quanto os arquivos principais.

apezinho.com.br

CRÍTICA LITERÁRIA vicentemiguel.wordpress.com

O goiano Andrés de Leones, autor dos romances Terra de casas vazias (2013) e Dentes negros (2011), escreve, desde 2009, artigos, resenhas e comentários literários em seu blog. Leones também dedica alguns textos a críticas cinematográficas. Gilles Deleuze, Herman Mellvile e David Foster Wallace são alguns dos escritores analisados.

sites sobre

Faça Você Mesmo (DIY) MODA

ARTESANATO

CONSTRUÇÃO

psimadethis.com

viladoartesao.com.br

familyhandyman.com

A proposta é veicular dicas para criação de todos os tipos de roupas e acessórios: camisetas, saias, sapatos e bijuterias. Também possui uma loja online.

Surgiu em 2009 com o intuito de divulgar o artesanato local. Agora, todo o espaço online é dedicado à concepção das peças artesanais e de objetos de decoração a baixo custo.

Tem como propósito divulgar ideias de projetos com maior complexidade, como pintura de parede, instalação de pisos e portas de armários.

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Portfólio

Páginas anteriores 1 COMPOSIÇÃO

Gravuras do artista têm como base desenho sofisticado

Nestas páginas 2-5 ACERVO

Trabalhos dos anos 1980 apontam a demanda crítica de sua obra

6-7 DIA A DIA Crônica do cotidiano é recorrente no repertório de Maurício Castro

Maurício Castro

RETORNO À GRAVURA TEXTO Olivia de Souza

Imagem obtida através de impressão em matriz artesanal, a gravura é uma técnica tradicional, empregada por muitos artistas para terem suas obras de arte reproduzidas em larga escala. Isso se dá tanto em sua forma mais antiga, a xilogravura – em que a matriz é escavada em madeira –, como na gravura em metal, na litografia (em pedra) e em técnicas mais modernas, como a serigrafia e a gravura em linóleo (lineografia). Esta última se assemelha à xilografia, mas, ao invés da base de madeira, uma placa de linóleo – material impermeável semelhante à borracha – recebe a tinta nas partes em relevo, sendo em seguida transferida para o papel. Assim como está presente nas mais remotas manifestações artísticas ocidentais e orientais, a gravura pontua diversos momentos da vida de Maurício Castro, artista plástico e cenógrafo pernambucano, que, desde a década de 1980, vem participando do cenário artístico, integrando coletivos e realizando exposições no Brasil e no exterior. Depois de trabalhar por quase 10 anos com objetos de ferro relacionados à criação de esculturas e engenhocas para o cinema e teatro, hoje ele se dedica ao desenho, à pintura, e à gravura. Seu primeiro contato com a técnica se deu ainda no curso de Arquitetura, no ateliê de José de Barros, no Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, onde encontros com vários futuros amigos resultaram na criação de ateliês pelo Recife. “Na universidade, eu trabalhava com José de Barros fazendo gravuras em metal. Coincidiu com um período em que, de certa forma, já estava em crise com a arquitetura, querendo pintar e fazer coisas relacionadas às artes plásticas. Então, eu, José Paulo e Ronaldo Câmara montamos um ateliê, que funcionava no primeiro andar do escritório de arquitetura do meu pai”, lembra. Enriquecedoras também foram as experimentações no Coletivo Aurora, fundado em 1983 por Cavani Rosas, Petrônio Cunha, Antônio José do Amaral e Álvaro Vieira. Além das aulas, Castro ajudava Cavani nas modelagens de esculturas em concreto. CONTINENTE MARÇO 2015 | 16

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Em 1989, antes da revitalização do Recife Antigo, Maurício Castro fundou, junto com José Paulo, o Quarta Zona de Arte. O espaço foi montado num casarão comprido e de pé direito alto, o que possibilitou aos artistas ali reunidos trabalharem com obras em grande formato. “Foi um momento muito rico, tanto de produção quanto de intercâmbio, e uma época em que todo mundo estava pintando quadros enormes. Não só o Quarta Zona, como outros ateliês que posteriormente se instalaram lá no bairro. Também houve uma boa retomada das gravuras, compramos uma prensa e começamos a trabalhar em linóleo e metal”, situa. Depois de morar em Barcelona, onde teve contato com novas técnicas e suportes, Castro desenvolveu uma percepção singular de arte, que definiu os moldes do que viria a criar na década seguinte. Na Espanha, fundou o ateliê Torre de Papel e se envolveu com o coletivo Drap-Art, plataforma de artistas que utilizam objetos encontrados no lixo como suporte artístico. De volta

ao Brasil, em 2001, Castro fundou o Submarino (inicialmente com Isabella Stampanoni, Juliana Notari, Jacaré e Fernando Augusto), ateliê no qual pôde criar objetos com ferro e sucatas de eletrodomésticos, material que despertou seu interesse no contato com os trabalhos do Drap-Art. A partir dessa experiência, ele passou a trabalhar com cenografia para teatro e cinema, o que incluiu criações para a microssérie televisiva A pedra do reino, de Luiz Fernando Carvalho, e a direção de arte de clipes da Mundo Livre S/A. O retorno de Maurício Castro à gravura ocorreu no Ateliê Peligro, após a oficina de fabricação de papel Papelombra. “Vivemos um tempo horrível, de urgências, cobranças e estresses. Tenho procurado meios de desacelerar minha vida, de depender dos meus próprios processos. Esse é um dos motores da minha retomada da pintura, do desenho e da gravura. Além, é claro, da saudade mesmo.” Da necessidade de “desacelerar” surgiu a Gráfica Lenta, montada na Maumau, após residência artística de outro Maurício, o Silva, que ministrou

durante um mês uma oficina de gravura no local, que funciona no Espinheiro, como residência, ateliê e galeria. O coletivo adota o lema “a prensa é inimiga da perfeição” e preza pelo respeito ao tempo e à individualidade de cada artista – num método de criação mais devagar e humano. A Gráfica é utilizada de segunda a sexta-feira e, às terças, abre para o público conferir de perto os processos artísticos, aprender as técnicas e fazer suas próprias obras. Uma síntese da produção recente de Castro pôde ser conferida em agosto de 2014, em mostra individual n’A Casa do Cachorro Preto, em Olinda. Lá foram expostos trabalhos tanto do período em Barcelona quanto os mais recentes, realizados no Peligro e na Maumau. “Gosto de fazer desenhos como se fossem histórias em quadrinhos. Questionamentos do cotidiano, a complexidade e os problemas da vida, do tempo. Isso é o que tem me instigado a fazer gravuras, essa coisa sempre muito presente e cíclica na minha vida. Sempre volto para ela.”

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8 SULCOS Os cortes da matriz se destacam nesta obra 9 GRÁFICA LENTA O ateliê do qual Castro faz parte funciona na galeria Maumau 10 EXPOSIÇÃO Em 2014, o artista plástico lançou exposição individual n’A Casa do Cachorro Preto 11 COR Embora menos frequente, a policromia aparece em suas gravuras 12 IDENTIFICAÇÃO Obras pessoais como Eu Hamster trazem marcas da vida contemporânea

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

RAIO GOURMETIZADOR

Leila Diniz, mulher do (*) Nascida em Niterói, em 25 de março de 1945, a professora primária e atriz encarnou o papel de mulher bonita, livre, moderna e prafrentex, no jargão da época, desbunde dos anos 1960/70. Tinha 20 anos quando foi convidada por Cacilda Becker para interpretar um papel na peça O preço de um homem, ao lado de Adriano Reis. Atuou em filmes e novelas de TV. Figura “carimbada” de Ipanema, sua fama aumentou muito depois da entrevista concedida ao Pasquim. As entrevistas do hebdomadário carioca eram publicadas diretamente do gravador, sem edição e a de Leila, com mais de 70 palavrões ou expressões chulas, teve que ser entremeada por asteriscos nos lugares das palavras mais fortes. Como a gorilada da ditadura não achou graça nenhuma no modo como foi feita, instituiu a censura prévia ao jornal, que, a partir daí, tinha que mandar, página por página, as reportagens, fotos e cartuns para a Censura Federal em Brasília. Ao mesmo tempo, Leila sofreu forte pressão de setores moralistas da esquerda e da direita, tendo até seu contrato de atriz não renovado pela TV Globo, a emissora baba-ovo do regime militar. Ainda assim, balançou o coreto de muita gente, quando, grávida da filha Janaína, posou nua e também de biquíni, na praia, ostentando o barrigão. Musa da Banda de Ipanema, morreu em 1972, vítima da explosão de um avião, na Índia. LUIZ ARRAIS

CON TI NEN TE

A FRASE

“Basta um drinque para me deixar mal. Mas nunca sei se é o 13º ou o 14º.” George Burns, comediante

Coxinha, tapioca, pipoca e até água! Nada escapa ao poder do raio gourmetizador. Comidinhas que antes eram baratas e práticas de fazer ganharam novos ingredientes e alguns zeros a mais no preço. Uma dessas vítimas foi o picolé. Vem fazendo muito sucesso no Brasil uma versão gourmetizada da singela guloseima, as paletas mexicanas, que são, na realidade, maiores e acrescidas de recheios. No entanto, chefs mexicanos garantem que se trata de invenção de brasileiro. As paletas originais são grandes mesmo, mas constituídas apenas de fruta e água, como qualquer picolé cansado de guerra, e não têm, em hipótese alguma!, os recheios que encontramos nas paleterias brasucas. Muito menos custam R$ 10,00. Especialistas da área antecipam: o sucesso desses geladinhos mexicanos está perto de derreter. Ainda mais se o raio gourmetizador atingir logo um outro produto. (Débora Nascimento)

Balaio HISTÓRIA REAL

Na lista dos indicados ao Globo de Ouro e ao Oscar deste ano, havia uma série de filmes “baseados em fatos reais”. Dentre eles, duas cinebiografias bastante badaladas, A teoria de tudo e O jogo da imitação, ambos sobre a vida de dois gênios, respectivamente Stephen Hawking e Allan Turing. Dentre outros selecionados, alguns possuem enredos tão absurdos que parecem “coisa de cinema”, como Big eyes, o ótimo “drama pastelão” de Tim Burton sobre a artista plástica norte-americana Margaret Keane, cujos quadros (acima) eram vendidos pelo marido como se fossem dele. Nos anos 1960, o falsário virou uma espécie de Romero Britto dos EUA e queridinho de estrelas de Hollywood, como Natalie Wood e Joan Crawford. A pergunta é: essa enxurrada de roteiros baseados em casos verídicos sinalizariam uma crise de criatividade nos roteiristas? Ou a realidade está superando a ficção? (DN)

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ARQUIVO

TONS DE TOMIE Nem toda revolução é ruidosa. No caso de Tomie Ohtake (1913-2015), por exemplo, tudo a que assistimos em sua trajetória artística parece mansamente revolucionário. Ela somente começou a dedicar-se à arte aos 40 anos, quando muita gente já se acha velha para a tarefa. Começou nos anos 1950, com o figurativismo que tinha esboçado na juventude. Depois que se definiu como artista abstrata, nos anos 1960 criticou o excesso de racionalismo dessa corrente ao seu modo, vendando os olhos e realizando uma série de Pinturas cegas. A cada passo, trazia um elemento novo para sua obra – fosse no uso de materiais e cores ou na ocupação do espaço, cada vez mais minimalista –, embora se mantivesse fiel a si mesma. Já aos 90 anos, realizou uma série de pinturas que tinham o círculo como tema, afirmando que era desafiador trabalhar com tal síntese, já que esta era a primeira forma desenhada pelas crianças. Uma declaração que soa como metáfora a um fechamento de ciclo, quando, na velhice, a artista retornava à forma essencial da infância. (Adriana Dória Matos)

NOVOS PIRATAS Uma notícia causou rebuliço na internet, no final do ano passado, e foi encarada por muitos internautas como o apocalipse: o fim do Pirate Bay, mais popular site de distribuição de arquivos. Poucas semanas depois, para alegria geral, um novo PB abriu suas “portas virtuais”. No entanto, os sempre alertas teóricos da conspiração começaram a desconfiar de que se trata de uma armadilha do FBI para caçar os piratas virtuais. O grupo Anonymous garantiu “ter recebido informações” de que a nova versão do TPB está usando o CloudFlare, ferramenta que ajuda a administrar grande tráfego virtual, com um porém: registra os IPs dos usuários. Logo, todos os que fizerem seus downloads estarão à mercê de uma batida policial em suas casas. O administrador anônimo da nova página afirmou que está usando o CloudFlare temporariamente. Quem vai confiar? (DN)

A musa do Cinema Novo Morreu em fevereiro deste ano Odete Lara, o rosto enigmático das telas brasileiras. Era uma figura de poucos sorrisos, apesar de participar de dezenas de filmes, novelas e peças de teatro, sempre dirigida por profissionais de primeira grandeza do ramo. Filha de imigrantes italianos, a atriz, cantora e escritora nasceu em São Paulo, em 1929, com o nome de Odete Righi. Atuou também como modelo e gravou dois discos ao lado de Vinicius de Moraes. Participou do grupo Opinião e militou contra a ditadura. No auge da carreira cinematográfica, decidiu abandoná-la no final dos anos 1970, exilandose em um sítio em Nova Friburgo, onde passou a dedicar-se ao budismo, ocupando todo o seu tempo com meditações, exercícios de ioga, tradução de livros filosóficos orientais e escrita de livros autobiográficos, como Eu, nua. Há alguns anos, devido a uma fratura do fêmur, voltou a morar no Rio, em uma casa de repouso na zona norte, onde recebia alguns amigos, que declararam que ela estava em estado depressivo, assumindo a vontade de morrer, o que aconteceu, aos 85 anos, em pleno sono. Na foto, Odete posa bela e ambígua em uma cadeira bowl, projetada por Lina bo Bardi, em 1953. LUIZ ARRAIS

JOHN GREEN TROPICAL O jornal espanhol El País fez uma seleção das melhores narrações de mortes de personagens na literatura mundial. Em uma seleção de 17 autores, que incluía Shakespeare, Joyce, García Marquez, aparece o brasileiro José Mauro de Vasconcelos, autor do famigerado Meu pé de laranja lima, uma das histórias mais melosas já realizadas na literatura, capaz de colapsar qualquer diabético com seu carregado teor edulcorado. O clássico brasuca, de dar arrepios até em John Green, virou novela para carpideiras na extinta TV Tupi, na década de 1970 (ao lado). Entre os personagens, para variar, um portuga, Manuel (um solitário com jeitão de pedófilo), interpretado por Cláudio Corrêa e Castro e um pentelho, Zezé, por um tal de Haroldo Botta, esquecido para sempre. Alguém sabe dele? (LA)

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FOTO: HEINI SCHNEEBELI/ MARINA ABRAMOVIĆ, SHOES FOR DEPARTURE (1991)/CORTESIA DO ACERVO MARINA ABRAMOVIĆ

CON TI NEN TE

CAPA

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UM CORPO

EM CONSTANTE (RE)DESCOBERTA No mês das mulheres e da vinda de uma megaexposição retrospectiva de Marina Abramović ao Brasil, propomos uma abordagem sobre como a arte transforma o corpo, e vice-versa TEXTO Olívia Mindêlo

Era 1975. Na Galeria Krinzinger,

na Áustria, entrava em cena uma performance para ficar na história. Longe de Nova York, centro catalisador da body art desde os anos 1960, a artista sérvia Marina Abramović surgia despida e disposta a fazer de seu corpo um verdadeiro templo de exorcização. No auge dos seus 27 anos, a sua tarefa era como um ritual: atravessar a própria vida e chegar até o seu limite. Primeiro, ingerindo um litro de mel e outro de vinho (alternada e lentamente) e, por último, lançandose nua sobre uma cruz feita de blocos de gelo, onde ficaria imóvel por cerca de 30 minutos. Entre um extremo e outro, estava o processo da obra Os lábios de Thomas, performance de duas horas na qual ela foi não apenas do empachamento à hipotermia, como também talhou uma estrela ao redor do umbigo com uma lâmina, açoitou-se até não sentir mais dor e cantou canções de um passado nada reconfortante. Psicanálise para quê, não é mesmo? Marina já estava ali resolvendo, em meio ao público, o peso de uma existência

que torna a sua frase “quanto pior a infância, melhor a artista” o lema de uma trajetória que se tornou ícone da arte contemporânea. A partir deste mês, o percurso da artista pode ser experimentado de perto no Brasil, com a abertura da megaexposição Terra comunal – Marina Abramović + MAI, no Sesc Pompeia, em São Paulo. Em cartaz de 11 de março a 10 de maio, a retrospectiva traz um apanhado de sua vida e obra, repletas de vivências intensas. A mostra deve reforçar o seu pioneirismo no campo da performance e contribuir para uma reflexão sobre a relação corpo-arte desde o aparecimento da artista – ou mesmo antes disso. Pode-se dizer que Marina já pôs em prática quase tudo nesse terreno e, por isso mesmo, ajudou a consolidar um gênero no qual a presença do artista é o epicentro de poéticas quase sempre marcadas por momentos radicais aos olhos de um indivíduo comum. Mais ainda: Marina é um desses nomes que ecoam de imediato, quando lembramos o momento no qual o corpo intermediou, na

arte, uma mudança de paradigmas entre a esfera da representação, no geral figurativa, e a esfera da experimentação, no geral corpórea. A instituição arte, que por séculos tendeu a engendrar os corpos segundo ideais da pintura, escultura ou mesmo da dança, com os seus códigos preestabelecidos, viu nascer, através da arte viva do século 20, criações totalmente distintas, como as de Marina Abramović. Não apenas ela, mas uma leva de colaboradores de peso para a arte contemporânea, tais como Bruce Nauman (1941), Vito Acconci (1940), Joseph Beuys (1921–1986) e Cindy Sherman (1954), na performance; ou Trisha Brown (1936), Yvonne Rainer (1934), Steve Paxton (1939) e Merce Cunningham (1919–2009), na dança. No Brasil, os artistas visuais Hélio Oiticica (1937–1980), Lygia Clark (1920–1988), Lygia Pape (1927–2004), Artur Barrio (1945), Paulo Bruscky (1949) e Daniel Santiago (1939) foram exemplos que trouxeram o corpo para o meio das experimentações artísticas. Independentemente da área, essas

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CON CAPA TI NEN TE

IMAGENS: REPRODUÇÃO

Página 22 1 SHOES FOR DEPARTURE

Obra de 1991 de Abramović é feita com cristais de ametista

Nestas páginas 2 OS LÁBIOS DE THOMAS

Na célebre obra dos anos 1960, Abramović promove açoites e automutilação

3 VITO ACCONCI Trademarks registra performance de 1971 do artista norte-americano 4 BRUCE NAUMAN Repetição, circularidade e minimalismo em Walking in an Exaggerated Manner Around the Perimeter of a Square

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pessoas, cujos trabalhos eclodiram com mais força nos anos 1960 e 1970, mudaram nossa concepção de arte e trouxeram a reboque uma quebra de fronteiras entre linguagens instituídas pelo campo, como música, teatro, dança,

artes plásticas, cinema. Isso abriu caminho para outras possibilidades de criação, através de expressões híbridas que guiam, até hoje, boa parte das produções, embora as expressões pictóricas e escultóricas sigam

existindo. Na história, afinal, nada é estanque. Como lembra a artista e pesquisadora carioca Flavia Meireles, a historicidade desse período pode contribuir para pensarmos outros tempos e colocálos lado a lado, refletindo sobre o momento no qual “o corpo que se apresenta se coloca como objeto de arte”, o suporte que “absorve” diferentes linguagens como potência experimental – ao mesmo tempo ou em separado. Ele surge, portanto, como o meio e o fim da experiência estética, que, na visão da psicanalista e especialista em arte Suely Rolnik, é uma ação fundamentalmente política. Não necessariamente engajada, rótulo insuficiente para compreender, por exemplo, obras como a performance Os lábios de Thomas, mencionada no início deste texto. Uma ação política, porque, ao despertar determinados entendimentos do e no

corpo, é capaz, segundo Suely, de “incidir na política dominante de subjetivação”, de construção daquilo que somos. Isso significa, para ela, ativar o “corpo-quesabe”, ou seja, “que sabe dos efeitos do outro na própria consistência ou tessitura de si”.

MEMÓRIA DO TRAUMA

Quando Marina Abramović realizou Os lábios de Thomas, na Áustria, o marechal Tito exercia plenos poderes como presidente da então Iugoslávia, à época um retalho de povos subordinados a um regime comunista. Os pais da artista estavam não só de acordo com o sistema, como se envolviam na luta política. Enquanto isso, empenhavam em casa uma educação de rigor militar com a filha, “performatizada” por gestos como tapas, dedo em riste e ausência completa de afeto. A estrela que Marina riscou em

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volta do umbigo na performance, fazendo sangrar sua pele, aludia às suas origens relacionadas à família e ao ícone comunista que flamejava junto à bandeira da ex-Iugoslávia. O autoflagelo e a cruz eram claras evidências da presença da cultura cristã no seu corpo (ou no nosso). O mel e o vinho, por sua vez, referências a rituais religiosos. Sem falar no canto, na nudez e no frio como excertoschave de uma obra catártica repetida por ela até pouco tempo, em sua trajetória pautada pelo limite. Suely Rolnik certamente diria que a experiência estética de Marina Abramović ativou a memória de um trauma que habita o seu corpo e, ao libertar essa representação identitária de si, despertou também o germe de uma subjetividade que está no “ponto de interrogação”, não no de afirmação; que está no “corpo-que-sabe”. Um ponto em que a arte negocia o seu ser

O campo da arte tem se prestado ao “saber do corpo”, em que o performer expressa suas inquietações na própria matéria no mundo; uma fissura entre o ego e um eu mais profundo, um corpo que é “inumano, porque escapa à instituição de valores”, “vivo”, porque afetado pelos sentidos e pelo outro, e “estranho”, uma vez que distinto da normatividade cultural vigente. Um corpo, enfim, que sabe e existe em potencial até serem “ligadas” suas conexões sensíveis e performativas em relação ao meio circundante. “A criação artística vem da escuta desse ponto de interrogação e a arte acabou se tornando o campo no

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qual ficou confinada a possibilidade da ação e do saber do corpo, e do pensamento dele. Temos que fazer isso transbordar, até porque a arte está um pouco cafetinada hoje”, proferiu a pesquisadora paulista em 2013, durante o 8º Encontro do Instituto Hemisférico de Performance e Política, em São Paulo. Estudiosa da obra de Lygia Clark, outra artista de experiências estéticas com o corpo, Suely se refere ao conceito de “corpo-que-sabe” como um sistema de pensamento oposto ao “corpo recalcado”. Este último seria o sustentáculo do saber ocidental moderno, amparado pela visão racionalista, mas ainda pela forte presença da igreja católica, sobretudo nos processos civilizatórios das colonizações. A mesma, como ela lembra, que contribuiu para reduzir a cultura de povos nativos do Brasil e a ofuscar um saber do corpo que está

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CON CAPA TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO

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na nossa pele tanto quanto o trauma dessas sobreposições culturais. Se algumas criações artísticas reforçaram uma perspectiva estéril de corpo ao longo da história, outras lograram o contrário, tornandose patentes essas contradições que habitam a nossa dimensão físico-mental. Poderíamos dizer que, nesse sentido último, as manifestações populares nordestinas compostas por múltiplas gramáticas artísticas, a exemplo do frevo e do cavalo-marinho, estão no mesmo patamar da arte contemporânea.

CORPO-HISTÓRIA

“Quando inserido no contexto, o corpo é atravessado por diferentes forças ou tensões políticas. O trabalho do corpo revela certos estados da subjetividade contemporânea e aponta possibilidades de imersão e transformação de formas de vida”,

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“O trabalho do corpo revela certos estados da subjetividade e aponta possibilidades de imersão” João Lima acredita o artista pernambucano João Lima, de 34 anos, que não consegue enxergar seu processo criativo separado da dimensão corpórea. Ator, dramaturgo, diretor de teatro e performer, João é radicado em Barcelona, na Espanha, e já fez trabalhos como Morder a língua (2014), Ilusionistas (2012), Natureza monstruosa (2011) e O outro do outro (2010), pesquisa coreográfica subvencionada pelo Programa Rumos Itaú Cultural Dança 2009/10, no Brasil. Em todos estes, o corpo emerge como alavanca

indispensável; são na verdade, crias da arte performática, marcada, na visão do artista, por fronteiras móveis e flexíveis. “Desde que comecei, sempre me interessei pelo corpo. Quando escrevo, atuo, faço performance. O teatro, mesmo, é a arte do corpo e da presença, embora alguns tenham uma visão ‘textocentrista’. O corpo é a unidade mais simples e complexa de se relacionar com o mundo e os outros”, defende ele. Liana Gesteira, artista e pesquisadora em dança no Recife, dialoga com essa linha de atuação e pensamento, e acredita nesse potencial. Porém, para ela, membro do Coletivo Lugar Comum, “o entendimento de corpo ainda é muito etnocentrista, modernista, muito centrado no eu (em outras palavras, no corpo recalcado, de Suely Rolnik)” e isso automatiza a criação, pois muitos treinamentos reproduzem isso.

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PAULA KOSSATZ/DIVULGAÇÃO

5-6 LYGIA CLARK E HÉLIO OITICICA Artistas expandiram seu campo com a criação dos Objetos relacionais e dos Parangolés, respectivamente 7 PAULO BRUSCKY “O que é a arte? Para que serve?”, questiona o artista aos passantes 8 DANIEL SANTIAGO Registro da performance O velho e o mar, de 2012 9 JOÃO LIMA Ator pernambucano, em cena com Natureza monstruosa, não enxerga o processo criativo separado da dimensão corpórea

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“A performance tem tentado explodir esses lugares, provocando descolamentos desse corpo eu e identidade, e algumas pessoas também têm buscado outros treinamentos, como a ioga, cuja concepção da matéria é mais ligada ao cosmos, por exemplo”, diz Liana. João comenta que, como performer, já passou por várias fases nesse sentido: “A gente vai se transformando, envelhecendo, se descobrindo. Já fiz tai chi chuan, acrobacia, ioga, esportes… A performance é heterogênea e pouco

ortodoxa, inclui a vida cotidiana como prática corporal. O sujeito que está sentado no computador o dia todo, que corpo tem ele? E os da atividade doméstica e os que se deslocam pela cidade?”. Na visão de João, a ação performática seria justamente o ato artístico que se insere na realidade como gesto. “Essa consciência é diferente do que seria a arte tradicional. A performance questiona os meios, o contexto; na verdade, assume o contexto da ação. Você se

assume e, assim, se insere no real de forma mais potente”, defende ele, um dos idealizadores e realizadores do Articulações, ao lado da própria Liana. O encontro teve sua segunda edição no ano passado, no Recife, reunindo pessoas interessadas em debater, na teoria e na prática, a arte da presença. “Na performance, há um natural cruzamento de linguagens; há teatralidade, plasticidade, poesia, música, difícil demarcar como algo preestabelecido. Então, qual seria o início da performance? Poderíamos perguntar. Nos anos 1950, com as experimentações de John Cage na música? Com os happenings dos surrealistas (no início do século passado)?”, indaga o pernambucano. Por isso, talvez seja mais prudente trabalhar com a ideia de paradigma, em vez de gêneros ou escolas artísticas mais datadas, a fim de buscar compreender o lugar do corpo na arte,

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CON CAPA TI NEN TE ALICE MOREIRA/DIVULGAÇÃO

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até porque, como sabemos, diferentes expressões e tempos se manifestam atualmente. A professora, artista e pesquisadora em dança Roberta Ramos, também de Pernambuco, acredita ser interessante observar essas transformações a partir de um espectro mais amplo. Citando o autor francês Michel Bernard, ela conta que houve, na História, “uma passagem da civilização contra o corpo para a civilização do corpo”. Se, antes, havia mais fortemente uma “condenação”, sobretudo cristã, que interferia até nas ciências e na filosofia, com o passar do tempo, essa outra visão de mundo, também inserida na modernidade, começa a ganhar (literalmente) vida, sobretudo no mundo contemporâneo. Apesar de considerar que a ideia de controle e repressão do corpo ainda esteja presente na sociedade, para lembrar Michel Foucault, a pesquisadora identifica diferentes campos de conhecimento se alinhando dentro de uma perspectiva mais favorável. “O corpo ganha força e se valoriza. Na arte, e particularmente na dança, ele se torna o assunto e não o

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“Na arte e na dança, o corpo torna-se o assunto e não o suporte para outros assuntos” Roberta Ramos suporte para outros assuntos. É a ideia de corpo performativo, termo usado por Jussara Setenta e Judith Butler”, explica Roberta, para quem tudo isso também reverbera no próprio ensino da dança no Brasil, que começa, cada vez mais, a adotar noções mais atuais. Não por acaso, a própria Suely Rolnik constata e defende o retorno paulatino do “corpo-quesabe”, diferente do “corpo recalcado” que pauta, a grosso modo, o ensino do balé clássico, por exemplo. “Embora as descobertas do corpo não sejam uma novidade da atualidade, foi no decorrer dos últimos 40 anos (55 anos agora) do século 20 que elas ganharam uma importância inusitada. Após os movimentos sociais da década

LIANA GESTEIRA

Para a bailarina, o entendimento do corpo ainda é etnocentrista, modernista, centrado no eu

de 1960, por exemplo, o corpo foi redescoberto na arte e na política, na ciência e na mídia, provocando um verdadeiro ‘corporeísmo’ nas sociedades ocidentais”, escreve, em seu artigo As infinitas descobertas do corpo (de 2000), a historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, professora do Programa de Estudos PósGraduados em História da PUC–SP. Roberta Ramos lembra as diferentes perspectivas teóricas nessa construção de conhecimento. Na arte, segundo ela, houve uma ruptura entre o corpo abstrato da visão platônica e o corpo do qual se extraem conceitos a partir da própria experiência, ou da própria prática, como defendeu o filósofo Friedrich Nietzsche. Denise, por seu turno, afirma que “as descobertas do corpo possuem uma história secular e vasta, pontuada pelos avanços e limites do conhecimento humano. Pois, se o corpo não cessa de ser descoberto, é preciso não perder de vista a provisoriedade de cada conhecimento produzido a seu respeito: constantemente redescoberto, nunca, porém, completamente revelado”.

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JULIO PANTOJA E MARLENE RAMÍREZ-CANCIO/REPRODUÇÃO

CRÍTICA Uma dimensão política para as experimentações

Artistas desenvolvem performances em que discutem os corpos marcados historicamente por escravizações, explorações e torturas, como os das mulheres e de gays

Um corpo em posição fetal. Um

corpo em posição fetal, deitado no chão. Um corpo em posição fetal, deitado no chão, à espera de um olhar. É um corpo feminino, todo coberto de carvão, que se retrai em silêncio. Aos poucos, outros corpos se aproximam. De pé, eles urinam sobre as costas da mulher em posição fetal, deitada no chão. Pedra é título dessa performance da artista guatemalteca Regina José Galindo, 40 anos, realizada em 2013, durante o 8º Encontro do Instituto Hemisférico de Performance e Política, em São Paulo.

Ao dar outros sentidos, em diferentes contextos, às suas experiências estéticas, os performers atualizam a linguagem dessa prática artística nascida nos anos 1960–1970. Assim, Regina não está sozinha. Sua pele carrega não apenas mulheres, povos, culturas e tempos, mas tantos outros artistas que seguem buscando na arte efêmera do corpo uma forma de se posicionar diante do mundo e promover reflexões acerca de realidades circundantes. “Sobre o corpo das mulheres latinoamericanas está inscrita a história

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da humanidade. Sobre seus corpos conquistados, marcados, escravizados, objetificados, explorados e torturados, podem ser lidas as nefastas histórias de luta e poder que formam nosso passado. Corpos frágeis somente na aparência. É o corpo da mulher que sobreviveu à conquista e à escravidão. Que, como pedra, guardou o ódio e o rancor em sua memória para transformá-lo em energia e vida.” Assim define Regina José sua obra descrita no início do texto. Em 2005, questão semelhante havia perpassado outra de suas criações, intitulada Perra (em português, “cachorra”, “vadia”). Sentada em uma cadeira, numa galeria de arte na Itália, ela escreveu sobre a coxa, com um canivete, a palavra que dá nome ao trabalho, a mesma encontrada no corpo de mulheres assassinadas em seu país, num tempo não muito distante. Perra surge como uma citação interessante à performance Os lábios de Thomas (1975), de Marina Abramović, mencionada na reportagem anterior. Para Regina José Galindo, existe claramente um devir corpóreo a serviço de um discurso poético e crítico. Essa forma de estar no mundo, não raro,

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CON CAPA TI NEN TE DIVULGAÇÃO

repercute dentro e fora da Guatemala, fazendo ecoar, no cenário cotidiano, uma pauta comumente ignorada pelos veículos de comunicação, pela sociedade civil ou pelos governos locais. A mídia guatemalteca certamente não noticiaria, por exemplo, o conteúdo abordado por Regina José na performance ¿Quién puede borrar las huellas? (Quem pode apagar as pegadas?, em português), na qual caminhou com os pés sujos de sangue pelas ruas da capital, em memória das milhares de vítimas do conflito armado da Guatemala (1960–1996) e em rechaço à candidatura do ex-militar “genocida e golpista” Efraín Ríos Montt. “Mas não foi um protesto político, foi uma performance. Eu queria fazer uma pintura em toda cidade do meu país. Não sou uma ativista, sou uma artista. Agora, claro, uma artista que é um indivíduo político com convicções políticas muito claras”, lembrou a artista, em entrevista ao Lacap – Latin American Canadian Art Projects. O performer e pesquisador potiguar Jota Mombaça não concebe a arte separada da dimensão política. Já fez um trabalho no qual ficou soterrado sob britas e areias, acompanhado dos nomes que se feriram durante as manifestações de junho de 2013, no Brasil, e geralmente é atraído por criações dessa natureza, como as de Regina José. “O que se vê hoje, na arte, é a emergência de múltiplos discursos sobre o corpo, sobre corpos historicamente negados ou reprimidos. O número de corpos femininos, por exemplo, que foram super, hiper, ultrarrepresentados na história da arte é inversamente proporcional à quantidade de mulheres artistas que tomaram voz para falarem de si próprias”, observa Jota. Assim como as mulheres, o artista chama a atenção para a emergência de um debate na arte em torno dos gays e dos transexuais (leia a edição de fevereiro da Continente, nº 170), e dos significados que determinadas partes do corpo, como o ânus, possuem na produção artística e no contexto atual. Por isso, apropriou-se, em seus estudos prático-teóricos, do conceito de “corpo-que-sabe”, de Suely Rolnik, para abordar a noção do “cu-que-sabe”. Uma de suas experiências estéticas foi fazer a reperformance de Terço, trabalho de

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DANIEL LIMA /DIVULGAÇÃO

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Pedro Costa no qual ele insere e expele um terço católico por vias anais. “A obra revela a construção do indivíduo nas colônias do Brasil, onde há a marca de corpos degradados, que somos nós. Existe uma ancestralidade na gente e, quando ele tira o objeto do corpo, está expurgando o projeto genocida cristão, abrindo-se, resistindo com um discurso anticolonial e fora da gramática convencional”, afirma Jota. Há quem acredite, contudo, que a performance, como linguagem, perdeu em potencial poético, e mesmo político, acomodando-se nesse campo de experimentações da arte contemporânea. “A performance já é instituição e, como movimento, vem perdendo bastante dos anos 1960 para

cá”, acredita Flavia Pinheiro, artista de 34 anos, criada entre São Paulo e o Recife, onde vive atualmente, depois de quase seis anos morando em Buenos Aires, na Argentina. Com formação em dança e interessada pelas questões relacionadas a corpo e tecnologia, Flavia também já se aventurou pelas vias performáticas, costurando e descosturando a própria pele, por exemplo. “Existem paradigmas de corpo na arte, incluindo a dança contemporânea e a performance. Nesta, existe aquela coisa do extreme, do ir na dor para se sentir vivo, bem dos anos 1960. A performance do terço tem sentido dentro de um contexto, mas também a gente se pergunta se ainda faz sentido essas coisas se repetirem”, diz Flavia.

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DIVULGAÇÃO

Página 29 1 PEDRA

Nesta obra, Regina José Galindo discute a sujeição do corpo feminino

Nestas páginas 2 FLÁVIA PINHEIRO

Com formação em Dança, ela se interessa pelas relações entre arte e tecnologia

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JOTA MOMBAÇA

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STELARC

Para o artista, a dimensão política é inerente à arte

Para fins de pesquisa estética, artista implantou uma orelha no antebraço

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Questionado a respeito da repetição de performances com partes tabus do corpo, Jota responde que anda refletindo sobre isso, inclusive sobre a proliferação de trabalhos, no Brasil, como Macaquinho (2014), que chamam a atenção para partes íntimas e geram polêmica. “Não sei se fazer performances desse gênero é datado. Se as pessoas ainda se chocam, é porque isso tem sentido. Muitas questões postas nos anos 1960–1970 foram reapropriadas pelo poder e pelo mainstream. Além disso, será que a gente tem que ver isso só pela questão do desbunde, como se fazia na época e como mostra o filme Tatuagem? Temos que observar a atualidade das questões e os seus efeitos. Mudando de lugar, muda o contexto”, argumenta o performer. Mesmo criticando, Flavia Pinheiro também considera que algumas performances ainda são eficazes no “universo pós-colonial, no qual ainda funcionam esses esquemas” – de violência contra a mulher ou os homossexuais, por exemplo. “Muitos artistas ocupam o espaço urbano, tensionando a relação com a cidade, ou veem o corpo como parte

Mesmo artistas performáticos discutem a sua possível institucionalização e perda de vigor da comunicação, da semiótica. Mas o problema para mim agora é outro, já não é suficiente pensar o corpo dessa forma”, argumenta Flavia, que enxerga a performance na própria vida e não vê mais o corpo como suporte e, sim, como algo a ser pensado a partir de uma tensão entre o analógico e o digital (leia mais sobre isso nas páginas a seguir). Essa perspectiva parece sinalizar um caminho distinto daquele que marcou justamente a quebra de paradigma entre o corpo representado e o experimentado, no século passado. Para ela, essa visão já está um pouco obsoleta, tanto quanto alguns trabalhos que se aventuram pela tecnologia como quem “aperta um botão”. Nesse sentido, questiona as experimentações, como a

da dança telemática, realizada a distância entre diferentes corpos. “O que vemos ali é só uma tela bidimensional! Temos que parar para pensar: o que aconteceu com um futuro que imaginávamos? Como vamos expandir tecnologicamente essa consciência artística? O que vejo é um esquema hegemônico que usa a tecnologia para controlar pessoas e artistas. E a arte está automatizada”, critica a bailarina, para quem pensar em novas tecnologias é diferente de pensar, necessariamente, em novas mídias. Pesquisadora do uso de recursos low tech, de baixo custo, na arte contemporânea, Flavia acredita que, nesse meio, pesquisas estéticas nos chamados medialabs, de alta tecnologia, trazem consigo, por exemplo, os ideais de quem produz máquina de guerra. Não é o caso da dança telemática, mas de locais como o SymbioticA, cofundado por Oron Catts, artista conhecido por suas experimentações em bioarte. O laboratório, considerado de excelência em artes biológicas, fica na Austrália e ajuda a pôr em prática projetos ousados de nomes como o da artista francesa Orlan (1947), célebre por suas performances em cirurgias plásticas, e de Stelarc (1946), que lá implantou uma orelha no antebraço para fins de pesquisa estética. “Para mim, a arte se constitui na tensão entre arte, corpo e tecnologia, mas é preciso perguntar o que são esses conceitos. Não acho que chegamos ao lugar da matéria no qual ela tenha uma hiper, ultrapercepção desenvolvida a ponto de precisarmos tanto da digitalização ou desse tipo de pesquisa”, observa Flavia. A bailarina e pesquisadora Liana Gesteira faz a ressalva de como o corpo pode “desnormatizar” as coisas a partir da forma como se faz uso dele, ou como ele mesmo pode se “desnormatizar”, sendo essa uma maneira de repensar a própria performance. “Valorizo o lugar da técnica e sempre a utilizo para compor, até mesmo na performance. Mas de que forma eu aproveito isso para atacar a visão de mundo na qual essa técnica foi criada? Existe um pensamento político na construção dos corpos, a questão é não reproduzi-lo, mas criar para desconstruir a partir dele”, defende. Tomando partido das ideias do astrofísico Jorge Albuquerque, com quem teve aula sobre teoria do

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CON CAPA TI NEN TE FOTOS: DIVULGAÇÃO

Artigo

FLAVIA PINHEIRO O CORPO NA ERA DA DIGITALIZAÇÃO. AINDA SOMOS HUMANOS?” Nas viagens familiares de final de

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RON MUEK

Obras do australiano dão novo sentido à arte figurativa. Nelas, o corpo hiperrealista e em escalas diferentes do padrão empolgam o público

conhecimento durante pós-graduação em Dança, Liana gosta de lembrar que, como ele disse, “a ciência explica o real, o senso comum vive nesse real, a filosofia questiona o real e a arte cria outras possibilidades do real”. Enquanto isso, artistas recriam técnicas antigas para embaraçar nossas noções de realidade em torno do corpo, por mais simples que isso pareça ser. É o caso do aclamado escultor hiperrealista Ron Mueck (1958), cujo trabalho atraiu, até janeiro deste ano, milhares de pessoas à sua exposição na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Não há ali uma preocupação de ordem performática, mas as obras do australiano mexem com a ideia de escala e dão um novo sentido à arte figurativa, colocando os padrões em perspectiva e a presença do espectador como parte dessa construção.

Outros criadores seguem com suas investigações e, a cada mergulho, nos trazem mais descobertas desse mundo, seja ele real, virtual, ideal ou de inúmeras sensações. Umas são mais surpreendentes, outras nem tanto, mas, graças aos artistas, podemos perceber o quão nosso corpo pode ser mais do que a combinação de pele, ossos, órgãos. No século 15, essa ainda era uma compreensão vaga. O pintor e cientista Leonardo Da Vinci (1452–1519) foi um dos que toparam avançar carne adentro – sendo radical em suas investigações. Trancou-se com vários cadáveres para dissecá-los e, ao desbravar a matéria humana, compreendeu o que muitos de nós sequer imaginávamos. Seus cadernos de anatomia ajudaram a reforçar um determinado olhar sobre a matéria; mais positivista, talvez. No entanto, enquanto estivermos imbuídos desse espírito inquieto que rege a arte, mais infinitas serão as possibilidades do corpo, essa cartografia sem fim. OLÍVIA MINDÊLO

semana, meu pai tinha o costume de abrir o capô do seu carro Diplomata só para ter certeza de que tudo funcionava bem. Se preciso, montava e desmontava alguma parte. Minha mãe trocava as peças do velho liquidificador e a máquina de lavar roupa funcionava como nova depois de inúmeros consertos. Eu, que desde o três anos usava óculos e frequentava as aulas de dança, assisti no cinema aos futuros corpos possíveis: as intervenções genéticas em A mosca (1986), de David Cronenberg, e as possibilidades iminentes de inteligência artificial em Blade runner (1982), de Ridley Scott. A relação entre arte, ciência e novas tecnologias, tanto analógicas como digitais, estão presentes na vida cotidiana e aparecem integradas a muitas práticas que involucram o corpo. A tecnociência que me vendeu o futuro como a possibilidade de superar a materialidade, através do cruzamento da biologia e da informática, pelo processo de digitalização dos corpos e da manipulação genética, vem contribuindo, em contrapartida, para a manutenção de uma hegemonia de controle e vigilância desses corpos. A especulação de que a realidade virtual substituiria a realidade material e de que o corpo em vida sofreria um processo de desmaterialização e libertação ainda está no campo das tecnofantasias. A história do meu corpo, assim como a da civilização ocidental, está acoplada à história das técnicas e dos seus usos. Estas afetam distintos aspectos da sociedade e, internamente, como somos, nascemos e vivemos. A utilidade das ferramentas e das técnicas nos permitiram construir entornos habitáveis, permeáveis e

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retroalimentados, que são redefinidos constantemente de acordo com as respostas percebidas. Penso que o corpo no Ocidente tenha atravessado uma era mítica que o delineava como uma figura de barro, mágica e maleável. Passou pela “Idade dos Relógios” (séculos 17 e 18), na qual era entendido como um mecanismo. Concebido como um motor de calor, responsável por queimar glicogênio nos músculos, chegou à “Era do Vapor” (séculos 18 e 19) e, finalmente, um sistema eletrônico na “Era da Comunicação e do Controle”. Emergem, assim, as promessas de digitalização e virtualização da vida. Os discursos agenciados dos dispositivos das novas tecnologias, da cibernética, da tecnologia de informação e da biologia molecular programam um devir-mundo pós-orgânico, pós-humano e pós-biológico. Sendo assim, a arte contemporânea converteu o corpo humano em um dos temas paradigmáticos das últimas cinco décadas. O italiano Marco Donnarumma e o japonês Daito Manabe, nas suas práticas artísticas, relacionam o corpo e a tecnologia com interfaces biofísicas. Os trabalhos de Orlan, Stelarc, Marce. lí Antúnez e Eduardo Kac também tencionam esse paradigma. Todos, porém, se utilizam de um meio contínuo para a recepção. Em oposição ao futuro imaginário divulgado na minha infância, a arte digital, até o momento, não existe. Que sorte! Continuo dançando! A percepção é analógica e falar de digital apenas sublinha o meio pelo qual algo foi desenvolvido. Os meios analógicos estão constituídos de valores contínuos, ou seja, nunca podem ser exatamente determinados. Por outro lado, os meios digitais estão constituídos por números precisos, discretos e pontuais. Por exemplo, desenhamos com um lápis uma linha reta de 10 cm sobre uma folha. Quando olhamos a linha de perto, verificamos um monte de imperfeições. Podemos talvez perceber alguma curva ou ver que, em algum ponto, a linha é um pouco mais grossa. Não podemos definir exatamente onde começa e onde termina a cor negra do lápis e o branco da folha. Se desenhássemos outra linha, tentando copiar a anterior, com certeza

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seria diferente, porque se trataria de uma construção analógica de uma linha sobre o plano. Ao nos aproximarmos de uma linha desenhada pelo computador, podemos distinguir com exatidão os pontos que formam a linha negra e os pontos que formam o espaço em branco. Essa linha está representada por números exatos e pode ser repetida inúmeras vezes da mesma maneira. Os trabalhos realizados em suportes digitais podem, então, aproveitar os benefícios desses meios para automatizar processos de criação, gerar estruturas modulares, realizar trabalhos que interagem com o espectador etc. No entanto, a maneira de aceder ao trabalho artístico é através do nosso corpo e dos nossos sentidos, ou seja, da percepção analógica do mundo. Vemos intensidades de luz com os nossos olhos, percebemos as mudanças de vibração com os nossos ouvidos e sentimos as mudanças de pressão, temperatura e textura na nossa pele, pelo toque. Os espaços virtuais, imersivos da dança telemática, por exemplo, são percebidos de forma analógica. A existência da arte digital pressupõe uma forma de perceber as representações digitais… digitalmente! Isso implicaria uma mudança nos sentidos e talvez uma maneira de perceber através de computadores.

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MARCO DONNARUMMA

Em suas práticas artísticas, italiano relaciona o corpo e a tecnologia com interfaces biofísicas

Eu ainda uso óculos… Ao pensar o futuro desde o passado, gosto da promessa de que a tecnologia podia aproximar os humanos da sua humanidade. É na materialidade do corpo obsoleto atravessado por diferentes técnicas que posso aderir à informação do mundo. Pergunto: Como manter-me viva? Prefiro tocar as pessoas às telas do celular. É em contraposição à tecnocracia hegemônica, desenvolvimentista, digitalizada, virtualizada e que etiqueta tudo com data de validade que considero o uso da tecnologia como uma tática, uma alternativa inventiva de sobrevivência da vida, uma outra maneira de respirar. Estão presentes, neste texto, ideias de Bruno Latour, Donna Haraway, Paula Sibila, Ihde Don, Roy Ascott, Richard Barbrook, Jones Steven, Slavoj Sizek, Rodrigo Alonso, Gilles Deleuze, Marcuse, Giberto Sparza, Leonello Zambon, Jorge Crowe, Leo Oliván e Cesar Aira.

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DIGITAL Arte que atua em rede

Criações de net artistas refletem sobre deslocamento de identidades, manipulação de corpos e exibição de intimidades na internet TEXTO Bárbara Buril

De junho a setembro de 2014, a artista visual argentina Amalia Ulman encarnou a pele de uma it girl norteamericana, sempre preocupada com o próprio corpo, nos seus perfis no Instagram e Facebook. Na série de fotografias Excellences & perfections, espécie de performance nas redes sociais, ela viveu diferentes fases de uma narrativa de vida peculiar, criada por ela mesma. Nos primeiros meses, vestia-se de forma clássica, em fotografias de fundo neutro. Ursinhos de pelúcia, rosas artificiais e fofos pingentes de bigode compunham

o cenário inicial. Até que Amalia, na narrativa fictícia, parece perder-se de si mesma. Gradualmente, transforma-se em gângster, tira selfies de calcinha diante do espelho e se fotografa com dólares nas mãos e revólveres. Vive um falso colapso mental. A artista chega, então, ao ápice da performance: imersa na vida de gângster, decide fazer uma cirurgia de aumento de seios. Durante quatro dias, compartilha todo o processo cirúrgico fictício nas suas redes sociais. Posta fotos de si mesma com uma bata hospitalar,

depois publica imagens dos seios enfaixados e, por último, coloca uma fotografia do próprio busto, coberto por um top de ginástica. E agradece a todos pelo apoio na jornada. A performance da artista parece tão real, que os seus seguidores no Instagram e amigos no Facebook passaram a acreditar que Amalia estava realmente vivendo aqueles processos. A mentira nas redes sociais conseguiu enganar, inclusive, os amigos da artista, com os quais ela precisou ter uma conversa para explicar que aquilo não passava de arte. O trabalho de Amalia Ulman, considerado um dos exemplos mais bem-sucedidos da net art – corrente artística nada homogênea que se tornou ainda mais forte e disseminada mundialmente a partir do surgimento da internet banda larga, nos anos 2000 –, mostra como a arte das redes tem refletido sobre a forma pela qual os nossos corpos têm sido exibidos, manipulados, criados, transformados ou deturpados na internet. “Os corpos podem se desfazer, perecer, nos desapontar, nos promover. Os corpos representam quem somos, qual é a nossa

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história, de onde viemos. Não podemos escapar deles”, escreve Amalia Ulman, em um dos slides artísticos que utiliza em palestras performáticas apresentadas em diferentes lugares do mundo. É ele – o corpo que pode ser um investimento, carne que tem preço de mercado – uma das principais inquietações da artista. Diante de um cenário contemporâneo no qual os corpos são transformados em imagens, com o intuito de gerar uma quantidade de dinheiro que é proporcional ao grau de satisfação dos estereótipos de beleza correntes, Amalia Ulman manipula a própria imagem para mostrar como é fácil enganar uma audiência através de representações corporais falsas. Assimila os gestos e a lógica dos sistemas de dominação, pensando que assim se opõe melhor a eles. Como explica o pesquisador espanhol Juan Martín Prada, autor do livro Prácticas artísticas e internet en la época de las redes sociales (Práticas artísticas e internet na época nas redes sociais), “o que Ulman quer fazer é, acredito, uma resistência estratégica baseada em duplicar o sistema de espetacularização dentro de sua própria

lógica, refletindo-o como um espelho para, por último, subvertê-lo”. Amalia resgata, então, o mesmo espírito de resistência trazido pela artista francesa Orlan, nas décadas de 1980 e 1990, que é o da crítica através da assimilação. De 1990 a 1993, Orlan realizou uma série de nove cirurgias plásticas, não com o intuito de criar uma versão mais jovem de si mesma – como acontece com a maior parte das mulheres que se submetem a tais procedimentos –, mas com a intenção de trabalhar a questão da imagem e da cirurgia de maneira artística, através da crítica aos padrões de beleza que normalmente regem tais processos cirúrgicos. Como ela escreve no Manifesto da Arte Carnal, em 1990, no qual define as próprias práticas artísticas, “a Arte Carnal não está interessada no resultado de uma cirurgia plástica, mas no processo da cirurgia, no espetáculo e no discurso do corpo modificado que já alcançou um lugar no debate público”. Trata-se de algo semelhante ao que fez Amalia Ulman, 25 anos depois, em Excellences & perfections, quando colocou a cirurgia de aumento de seios

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AMALIA ULMAN

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ORLAN

Artista argentina inventou perfis falsos nas redes sociais para discutir obsessão pela perfeição física AFrancesa realizou, entre os anos 1980 e 1990, nove cirurgias plásticas para discutir a ditadura dos padrões de beleza

como centro de um debate na internet de onde emergiram várias críticas e inúmeros elogios. A discussão sobre como as imagens de corpos padronizados afetam materialmente outros corpos humanos sinaliza que o conteúdo exibido nas redes não está isolado em uma redoma de vidro, fechado na tela preta do computador ou do smartphone. Em outras palavras, tais debates mostram que o que está na internet, na verdade, realiza uma profunda ação no mundo material, porque o corpo, quando virtualizado em forma de imagem, ainda guarda a força da sua materialidade em potência. Como escreve Pierre Lévy, no livro O que é o virtual?, de 1995, “os clones, agentes

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CON CAPA TI NEN TE DIVULGAÇÃO

JI YEO/REPRODUÇÃO

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visíveis ou marionetes virtuais que comandamos por nossos gestos podem afetar ou modificar outras marionetes virtuais ou agentes visíveis, e, inclusive, acionar a distância aparelhos ‘reais’ e agir no mundo ordinário”. Os corpos, na internet, ganharam uma força impensável anos atrás, porque não se imaginava que as plataformas existentes na rede integrariam a nossa vida com tamanha intensidade, chegando a caber na palma das nossas mãos, na forma de smartphones. Os nossos avatares na internet não são mais apenas isso. São nós mesmos. É como se, hoje, tivéssemos chegado ao ponto de não vermos mais os nossos perfis nas redes sociais como um simples avatar de video game, distantes e diferentes de quem somos. Por constrangimentos ou necessidades sociais, praticamente só somos autorizados a ser, na internet, quem já somos no mundo ordinário, porque é assim que o outro pode nos acessar em tempos de dependência da rede como espaço de encontros e interações sociais. Como explica Juan Martín Prada, “é evidente que, em nossas sociedades, estar conectado de forma quase permanente está deixando de ser uma opção para se converter em um estado necessário, em uma condição para a não exclusão social”.

Trabalhos na web têm refletido sobre como fenômenos da rede repercutem e transformam seus usuários

Trabalhos de net art funcionam, então, como caminhos para refletir sobre manifestações e fenômenos encontrados na rede que influenciam legiões de pessoas a transformar os próprios corpos, caso das garotas sulcoreanas que postam selfies no Instagram após profundos e violentos processos cirúrgicos de “ocidentalização” dos próprios rostos; das jovens anoréxicas que até pouco tempo utilizavam seus blogs para trocar dicas de emagrecimento; e, recentemente, dos fenômenos no Instagram que propagam um ideal de beleza fitness, caso de Gabriela Pugliesi, que largou o emprego em uma joalheria para cuidar dos seus perfis nas redes sociais, através dos quais mais de 993 mil seguidores “aprendem” a como ser saudáveis diariamente. O preço de tamanha “conversão virtual” a um determinado padrão de beleza é uma exposição constante de corpos privados de intimidade,

como se eles não pertencessem a apenas uma só pessoa, mas a várias.

IMAGENS LÍQUIDAS

Desde que as câmeras fotográficas passaram a ser embutidas em smartphones, tornando-se mais leves e mais portáteis, começamos a tirar fotos de nós mesmos. Quando a internet se incorporou a esses dispositivos móveis, nossas imagens privadas entraram no fluxo da rede de uma forma natural, como se o que fosse íntimo pudesse, sem constrangimentos, tornar-se, de repente, público. Assim, hoje, proliferam imagens de nossos rostos na rede. Batizamos esses autorretratos de selfies, considerada inclusive a palavra internacional do ano de 2013 pelo dicionário inglês Oxford. Sem percebermos, lançamos um novo paradigma com relação à exibição dos corpos na rede. Seriam eles menos íntimos do que antes? O que queremos dizer e provocar quando tiramos vários autorretratos e postamos essas imagens amadoras nas redes sociais? Estaríamos mergulhados em uma época de narcisismo on-line? Essas perguntas inquietantes levaram o net artista holandês Jasper Elings a reunir várias selfies, encontradas aleatoriamente na internet, no vídeo Flashings in the mirror, em 2010. “Nossos corpos

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REPRODUÇÃO

VIMEOS O CORPO FEMININO NA NET ART Vários trabalhos de arte na internet abordam as diversas questões que os corpos femininos trazem quando estão em rede, do exibicionismo pornô às estratégias de simulacro e ao machismo que ainda existe na internet. Confira abaixo algumas criações.

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estão sendo representados na rede de uma maneira massiva. Todo mundo tira e compartilha fotografias de si mesmo. Estamos nos imortalizando diariamente”, justifica o artista. O trabalho criado por ele mostra uma sucessão rápida de selfies diante do espelho, tiradas por pessoas nuas, vestidas, negras, brancas, gordas, magras, sozinhas ou acompanhadas. Sempre diante do espelho, entretanto. No vídeo, os flashes que vêm dos dispositivos fotográficos surgem como reflexos no espelho e formam um círculo cujo centro pode ser o próprio desejo humano de se sentir acolhido. Para o teórico Juan Martín Prada, nós nos situamos hoje em uma evidente crise do introspectivo, pois vivemos um permanente intercâmbio de intimidades ou em uma constante espetacularização da intimidade. “É como se tivéssemos alcançado um momento extremo daquilo que foi vaticinado por Walter Benjamin, em que a Humanidade ‘que antes, em Homero, era objeto de espetáculo para os deuses olímpicos, se converteu agora em um espetáculo de si mesma’ ”, acredita. Hoje, o nosso objeto de espetáculo somos exatamente nós mesmos. A selfie enquanto fenômeno contemporâneo ímpar, sinalizador de novos tempos com relação à

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dance party… just us girls!! (2014), de Ann Hirsch No trabalho, a artista mostra a relação entre o nu e a internet de maneira bemhumorada e divertida. Segundo ela, “sempre que você coloca o seu corpo on-line, de alguma maneira você já está em conversação com o pornô”. (http:// vimeo.com/115871580)

GABRIELA PUGLIESI

Brasileira administra perfis em que dá dicas de beleza fitness

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APARÊNCIA

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PIX

Garotas sul-coreanas postaram imagens de suas cirurgias de “ocidentalização” No vídeo de 2014, cineasta português Antonio da Silva agrupa selfies tiradas e postadas por gays

privacidade dos corpos, também foi investigada pelo cineasta português Antonio da Silva, no vídeo PIX, de 2014. Ele agrupou sucessivamente 2.500 selfies tiradas e postadas por homens gays, desde quando estão vestidos até quando mostram os próprios abdomens, peitorais, bíceps, nádegas e genitais completamente nus. No trabalho, o cineasta revela como o nu na internet conversa imageticamente com o pornô, com a diferença de que quem tira selfie nu na internet, ao contrário dos atores de vídeos pornôs, não recebe dinheiro para isso. Ganha – como pagamento por terem desvelado suas intimidades – afetos em forma de curtidas, compartilhamentos e comentários. Talvez só Amalia Ulman mesmo tenha descoberto como capitalizar os seus autorretratos diante do espelho: no ano passado, no leilão de arte digital Paddles ON!, ela vendeu sua selfie por 3.250 libras.

HELLO SELFIE! (2014), de Kate Durbin O vídeo mostra uma performance realizada por várias mulheres em um espaço público, em que elas, vestidas com roupas com estampas de Hello Kitty, tiram selfies de si mesmas durante uma hora. O trabalho inspirase no narcisismo teenager e na estética de garotas adolescentes que se exibem no Tumblr. (http://vimeo. com/109163180#at=0) My bodies (2014), de Hannah Black A artista une vários trechos de músicas pop criadas por mulheres, nas quais elas cantam a expressão my body. No vídeo, entretanto, só aparecem fotografias de homens, sinalizando a ausência feminina, enquanto imagem, nos processos sociais. (http://vimeo. com/85791107) 666 Smielyz (2008), de Petra Cortright O vídeo integra a leva de criações que abandonam a busca por um espaço feminino ou feminizador na rede, optando por uma estratégia radical de desidentificação. Emoticons com diferentes expressões substituem expressões faciais da artista, que está diante da webcam. (https:// www.youtube.com/watch?v=_ MpkPo8YVPw)

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Viagem

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PARAÍBA Na terra dos lajedos Situado numa das regiões mais secas do Nordeste, trecho geográfico conhecido como Cariris Velhos agrega formações rochosas peculiares TEXTO E FOTOS Augusto Pessoa

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Viagem Escondida numa serra pontilhada

de enormes lajedos, uma mulher se transformou em personagem de projeção nacional, ao viver 25 anos numa gruta transformada em casa. Zabé da Loca, como é conhecida a pernambucana Isabel Marques, aprendeu a tocar pífano nos arredores de Buíque, quando tinha sete anos. Aos 16, migrou para a zona rural de Monteiro, na Paraíba, e, durante quase três décadas, morou debaixo de um enorme monólito, praticamente isolada do resto do mundo. Reconhecida como patrimônio cultural e eleita Revelação da Música Popular Brasileira, Zabé da Loca é exemplo da resiliência do povo do interior nordestino. Criada numa sociedade machista, ela engravidou ainda adolescente do fazendeiro que cedeu um pedaço de terra para sua família e, depois de fugir para a Paraíba, casar e ficar viúva, decidiu que passaria o resto da vida tocando sua flauta na solidão de uma gruta. Hoje, aos 90 anos, Zabé habita uma casa a 200 metros da antiga morada e relembra, com alegria, do tempo em que formava, com filhos e sobrinhos, uma das mais rupestres bandas de pífano de que se tem notícia. Perto dali, uma placa com 80 m x 5 m avisa: “Você está chegando à ‘Roliúde’ nordestina”. Isso porque Cabaceiras se orgulha de ser a menina dos olhos do cinema nacional. Ali já foram rodados mais de 25 filmes, entre eles O auto da Compadecida, de Guel Arraes, e Viva São João, de Andrucha Waddington. Com o menor índice pluviométrico do país, a cidade, dizem os cineastas, é perfeita para filmar. Em cada esquina, é possível encontrar personagens da vida real que, como se diz, “dariam um filme”. Gente como seu Zé de Sila, a maior celebridade made in Cabaceiras do momento. Natural do Cariri paraibano, o comerciante exibe em sua bodega as fotos que fez ao lado de grandes nomes do cinema nacional e um apanhado de reportagens em que figura como personagem central. “Até do Texas já veio gente falar comigo. Gente que nem fala brasileiro”, diz o homem, enquanto mostra recortes de jornais e segue listando as peripécias de sua carreira artística.

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Cabaceiras é especial também por outros aspectos. A começar pelas suas ruas desertas, que parecem paradas num dia qualquer da década de 1940. As casinhas coloridas chamam a atenção e dão um toque singelo à paisagem. Essa sua vocação cenográfica é que tem colocado a pequena cidade na lista das principais locações do cinema brasileiro e que gerou o projeto Roliúde Nordestina, idealizado pelo escritor e pesquisador Wills Leal, para fortalecer o turismo na região e contribuir à preservação de importantes tradições locais. “Da mesma maneira que os cineastas norteamericanos notaram que Nova York não era o lugar ideal para trabalhar e descobriram Hollywood, os diretores brasileiros percebem que Cabaceiras

é o lugar perfeito para filmar. Aqui, não chove praticamente nada, ou seja, garantia de luz o ano todo”, defende Leal. O primeiro filme rodado em Cabaceiras, A ferração dos bodes, da década de 1920, já apontava para um traço forte da região: a marcação dos animais a ferro.

BLOCOS DE ROCHAS

Mas é na zona rural, caracterizada por um ambiente extremamente pedregoso, que o Cariri ganha os seus contornos mais extraordinários. Com paisagens que intrigam pela rusticidade, a região resguarda sítios arqueológicos de configuração plástica única no Brasil. São centenas de blocos de rocha arredondados que lembram uma mesa de bilhar gigante.

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Soltos no platô, os monumentos são atração para quem se aventura pelas veredas que cortam a região. A mais famosa conduz até o Lajedo de Pai Mateus, antiga morada de um curandeiro ermitão que jamais recebia dinheiro pelas curas e fazia questão de viver em total isolamento. Outra bela conformação rochosa é a Pedra do Capacete, um bloco de granito curiosamente solto no meio da imensidão. Chamam a atenção também as cores e texturas do lugar. Na época das chuvas – quando chove, é claro –, o lugar fica ainda mais bonito. Piscinas naturais se formam entre as pedras, fazendo com que o cenário ganhe mais dramaticidade. O complexo de rochas, que serviu de refúgio natural para os bandos durante a

época em que o cangaço dava as ordens por ali, é mais que apenas um santuário ecológico. No imaginário popular dos caririenses, as pedras possuem poderes mágicos. Pinturas rupestres, camas indígenas de pedra e uma caatinga preservada, que revela centenas de espécies típicas do semiárido, compõem o cenário que tem, ainda, o privilégio de servir de observatório para o céu estrelado que brinda a região em dias de poucas nuvens. Em noites de lua cheia, os lajedos ganham um tom prateado, enriquecendo, com seu impacto sensorial, o repertório de causos transmitidos pelas gerações e que servem de tema para os aboiadores durante as típicas pegas de boi dentro da mata, outra tradição que reúne vaqueiros

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ZABÉ DA LOCA

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CABACEIRAS

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ZÉ DE SILA

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VAQUEIROS

Flautista viveu durante 25 anos numa gruta local Comerciante exibe as matérias em que foi personagem

Município ganhou o apelido de Roliúde Nordestina As pegas de bois são comuns na região

vestidos a caráter e que, em alguns rincões, é reconhecida como valioso patrimônio imaterial. Histórias inspiradoras, a propósito, são as que ainda hoje circulam pelas festas populares da pequena Zabelê, cidadezinha escondida na densa vegetação de caatinga que domina os chamados Cariris Velhos – um esquecido pedaço do Cariri paraibano que se une a Pernambuco num determinado ponto e depois se encontra com as serras paraibanas que limitam o Sertão. Um dos acontecimentos mais famosos por ali relata que, por volta de 1855, a cidade foi atingida por um surto de cólera. Na pressa em sepultar os mortos, um homem foi deixado ao relento e, sob a forte chuva que caía, levantou-se e caminhou em direção à cidade, para espanto de todos. O “milagre” correu o mundo e serviu de inspiração para os repentistas que fazem dessa região do Nordeste um centro de produção da poesia, reconhecido como repositório de manifestações populares. A própria paisagem, composta por blocos de rochas soltos entre mandacarus e xique-xiques, inspira essa vasta região do interior paraibano, repleta de histórias que remontam ao tempo da colonização e do ciclo do couro, quando o gado foi introduzido e com ele toda uma rica tradição. Segundo o escritor Bráulio Tavares, estudioso de fenômenos culturais ali surgidos, “essa área produziu alguns dos maiores talentos da cantoria no século 20, mas tão importante quanto a memória dos nomes ilustres, no entanto, é a presença viva da poesia na vida cotidiana da população em geral. É imenso o número de cantadores, glosadores, poetas diletantes e incentivadores da cantoria espalhados pelas cidades”. Terra de artistas mitológicos do porte de um Zé Limeira, o poeta do absurdo, os Cariris Velhos, tal qual um antigo gibão de couro e a firmeza de um lajedo, guarda em si as marcas de um passado que sobrevive ao tempo.

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IVANA BORGES

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Perfil

ELIZABETH TEIXEIRA Uma mulher corajosa Viúva do trabalhador rural João Pedro Teixeira e protagonista do documentário Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, ela é, hoje, símbolo da luta pela terra e pelos direitos humamos TEXTO Gilson Oliveira

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comparada sua realidade com a dos filhos dos camponeses que moravam nos sítios das usinas, os quais, devido à situação de miséria, exploração e repressão em que viviam, muitas vezes se alimentavam apenas de farinha com água e, já na infância, tinham os corpos envelhecidos e magérrimos, com as vértebras aparecendo. Muitas dessas crianças tiveram como berço a chamada “palha da cana”. É que suas mães, mesmo na iminência de parir, eram obrigadas a trabalhar e, na hora do parto, terminavam dando à luz em cima das folhas cortadas da cana-de-açúcar, às vezes ouvindo de um capanga da usina, montado em um cavalo e armado de rifle, frases do tipo: “Levanta, preguiçosa!”. Filha de Emanuel Justino da Costa, grande proprietário de terras e comerciante, e Altina da Costa, um dos poucos problemas que Elizabeth enfrentava era o fato de o pai, analfabeto,

Embora fosse um "homem de posses", o pai de Elizabeth não queria que ela aprendesse a ler e escrever

Quem conheceu as atividades sindicais de Elizabeth Teixeira, que completou 90 anos em fevereiro, não tinha dúvida: assim como o marido, João Pedro Teixeira – dirigente da Liga Camponesa de Sapé, Paraíba, assassinado em 2 de abril de 1962 –, ela era uma pessoa marcada para morrer. A situação se agravou quando, pouco depois do crime, assumiu a presidência da entidade dos trabalhadores. Cumpria a promessa feita a João Pedro, diante de seu corpo ensanguentado: continuar a luta a favor dos camponeses que, durante séculos, viveram num regime de semiescravidão. Nascida em Sapé, na Fazenda Anta do Sono, em 13 de fevereiro de 1925, Elizabeth veio ao mundo em “berço de ouro”, principalmente se

achar que mulher aprender a ler e a escrever só tinha uma utilidade: fazer cartas para o namorado. As questões sociais, políticas e econômicas só a incomodariam tempos depois. “Estudei apenas até a quarta série. Tirei o primeiro lugar e pedi para meu pai alugar uma casa em João Pessoa, para continuar estudando e me formar. Mas ele não fez, achava que eu já sabia o suficiente”, diz Elizabeth, na entrevista ao livro-DVD Palavra acesa – memórias da luta camponesa, organizado pelo autor deste texto e pelo jornalista Evaldo Costa. A obra também traz depoimentos de duas filhas e uma neta de Elizabeth, revelando experiências, opiniões e traumas de três gerações da família sobre episódios da história recente ainda pouco investigados. Seu Emanuel aproveitou a matemática e o português da filha – mas, no “barracão”, o mercadinho da fazenda. Por ironia do destino,

foi lá que ela começou a escrever cartas para o namorado. “João Pedro trabalhava numa pedreira, fazia a feira no barracão e começamos a namorar através de cartas. Um dia, ele me pediu em casamento, meu pai não aceitou de jeito nenhum e disse: ‘Minha filha casar com pobre, trabalhador de pedreira!’. Ele queria que eu casasse com um rapaz rico, e que fosse branco, não um negro”, relembra a sindicalista. A solução foi fugir de casa, trocando, aos 17 anos, uma vida de conforto por outra, de necessidades e perigos. Depois de casar, sem o consentimento dos pais, Elizabeth e João Pedro foram morar em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. Aí, ela, que sempre teve empregada, aprendeu, com o próprio marido, a fazer café, cozinhar e lavar roupa. Empregado novamente em uma pedreira, João Pedro se revoltou com as injustiças sofridas pelos trabalhadores e fundou um sindicato, do qual foi o primeiro presidente. Logo foi demitido e, como as portas de todas as pedreiras se fecharam para ele, a família, já composta de vários filhos, começou a passar fome. Por insistência de um irmão de Elizabeth, voltaram a Sapé, para tomar conta de um sítio do seu pai. Ela, na verdade, nunca mais voltou a Sapé, pelo menos à Sapé que conhecera, porque, pelo que já havia vivido e sofrido, mudara a forma de sentir e ver o mundo. Havia, inclusive, fortalecido a sensibilidade social e o senso de justiça. E o município, como toda a zona rural brasileira, parecia viver, em pleno século 20, na Idade Média europeia, com as relações sociais, as estruturas econômicas e de poder assemelhadas às do feudalismo. Era um mundo em que, por exemplo, não circulava dinheiro. Os camponeses trabalhavam em troca de alimentos, adquiridos no barracão da usina. Muitos morreram sem nunca colocar uma moeda no bolso. Sobre essa realidade, diz outro entrevistado do Palavra acesa, o economista e fundador da Liga Camponesa de Sapé, Francisco de Assis Lemos, preso e torturado depois do golpe militar de 1964: “A luta das Ligas Camponesas era para tirar o campo do sistema feudal para o capitalista. Mas os grandes proprietários de terra viviam dizendo que as ligas eram a favor do comunismo”.

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IVANA BORGES

CON TI NEN TE

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Perfil

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Essa realidade impedia a cidade de crescer, gravitando eternamente ao redor dos interesses dos latifundiários, que, devido à extensão de suas terras, viviam em verdadeiros feudos e, da mesma forma que os senhores feudais, possuíam exércitos particulares, formados por capangas. Foi contra esse mundo que Elizabeth e João Pedro, apesar da grande desigualdade de forças, começaram a lutar. Um dos objetivos era a extinção do “cambão”, que no período medieval chamava-se “corveia” e consistia em dias de trabalho gratuitos nas terras do patrão. Outros alvos eram os instrumentos de tortura, como o “cobocó”, um tanque de água fria nos porões das usinas, responsável pela morte de muitos camponeses. A arma escolhida para a luta foi a Associação dos Lavradores Agrícolas de Sapé, que ficaria conhecida como Liga Camponesa, em alusão à Liga do Engenho Galileia, de Vitória de Santo Antão, Pernambuco, fundada em 1955 e que, devido às conquistas obtidas, incentivou a criação de entidades em várias partes do país. Em 1959, estavam em 13 estados e, como este era o ano da Revolução Cubana, os camponeses brasileiros se viram no centro da Guerra Fria – o choque entre o capitalismo e o comunismo. Sintomáticas foram as idas de Edward Kennedy, irmão

Foi contra o sistema feudal a que estavam submetidos os agricultores de Sapé que Elizabeth e João Pedro se insurgiram do presidente Kennedy, ao Engenho Galileia, e de Célia Guevara, mãe de Che Guevara, a Sapé. Como Pernambuco e Paraíba foram os estados em que os camponeses mais se mobilizaram, nesses lugares a repressão foi mais radical. Quem falasse, por exemplo, em salário-mínimo e jornada de trabalho era comunista. Uma das primeiras vítimas foi João Pedro Teixeira, morto em emboscada, quando voltava para casa, depois de comprar livros para os filhos. O episódio teve repercussão internacional e virou tema do mais premiado documentário brasileiro, Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Depois disso, a vida de Elizabeth – que, pela capacidade de superar adversidades, ganhou a denominação “mulher marcada para viver” – se tornou uma sucessão de tragédias. Deprimida com a morte do pai, uma filha se suicidou. Para intimidar sua ação

RECORDAÇÃO

Sindicalista guarda fotografia em que aparece ao lado de Eduardo Coutinho

sindical, capangas atiraram na cabeça de um filho de cinco anos, que ficou com problemas mentais. A violência contra ela e seus 11 filhos, que moravam na casa onde hoje funciona o Memorial da Liga Camponesa de Sapé, pode ser sintetizada num trecho da entrevista de uma filha, Maria José, ao Palavra acesa: “Os policiais chegaram a me colocar e as outras crianças numa fila para tocar fogo”. O pior é que não existia a quem recorrer. Assim como a polícia, a imprensa e os poderes executivo, legislativo e judiciário – e até a igreja – integravam um sistema de forças voltado para servir aos poderosos. A situação piorou ainda mais com o golpe de 1964. Depois de ser presa e passar por uma série de perigos, ela se refugiou em São Rafael, Rio Grande do Norte, onde atuou como professora, sob o nome falso Marta Maria da Costa. Durante os 17 anos em que esteve escondida, os familiares, amigos e… inimigos pensaram que ela havia morrido. Foi encontrada por Eduardo Coutinho, depois de muita procura, e reiniciaram, em 1984, as filmagens de Cabra marcado…, interrompidas pelos militares. Hoje, morando em João Pessoa, numa casa presenteada pelo cineasta, ela não perde oportunidade de retomar a velha luta, defendendo os direitos dos camponeses.

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Tradição

MACUCA A festa de Zé

Fazenda situada em Correntes abriga, há mais de duas décadas, festival de música que remonta aos ideais hippies de uma vida amigável, pacata e campestre TEXTO Pethrus Tibúrcio FOTOS Laís Araújo

Um dia antes do início do Festival Macuca Jazz & Improviso, a fazenda que abriga o evento se apresenta assim: ao descer a primeira ladeira, na saída da rodovia que liga Garanhuns a Correntes, no agreste pernambucano, os visitantes encontram uma casinha charmosa, construída para servir de pousada. Na frente, um salão ao ar livre guarda mesas e cadeiras de plástico, apoio do restaurante montado para alimentar o público e a equipe organizadora. Em frente ao refeitório, um enorme terreno gramado – espaço destinado à armação das barracas de acampamento, onde fica a maioria dos visitantes. Lá embaixo, perto do riacho, um grupo trabalha na

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1-3 RESIDÊNCIA Cômodos são decorados com objetos antigos, fotos e brinquedos da cultura popular 2 POETAS Roda de poesia realizada na varanda da casa

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CON TI NEN TE

Tradição montagem do palco, que receberá os shows de maior porte. Ao longe, num terreno um pouco mais elevado, fica a sede da fazenda, onde mora José de Oliveira, o Zé da Macuca. Ainda na BR temos a primeira visão dessa sede. Com as janelas do carro abertas, é possível identificar a entrada somente pela calma música que toma conta da fazenda inteira. De dentro da casa, o dono da festa manuseia uma vitrola que sonoriza todos os ambientes do festival nos poucos momentos em que os palcos estão vazios. A construção branca de detalhes azuis e amarelos vivos, cercada por pequenos jardins, foi o lugar onde, há mais de 26 anos, Zé da Macuca decidiu morar e onde,

na mesma época, aconteceu o primeiro festival, com não mais do que 30 pessoas. Hoje, o evento costuma receber uma média de 250 barracas ou mil pessoas por final de semana. “Se vierem duas mil, serão bem-vindas”, diz Dênis Leão, integrante da produção que acompanha o festival há mais de duas décadas, desde sua terceira edição. Ele consegue apontar as mudanças que foram feitas na fazenda, para ficar mais confortável e receber mais visitantes. Na entrada da propriedade, onde antes havia uma estrada para carros, hoje está o espaço em que são guardadas as barracas. A sede possui energia elétrica para geladeira e carregadores de celular, por exemplo, mas a iluminação ainda é toda feita a candeeiro. No terraço, um batente mais elevado improvisa um palco no qual

acontecem os espetáculos teatrais da programação. Ali também se deposita parte do acervo do evento: um estandarte antigo (Movimento Anárquico Cultural da Macuca está escrito, em letras douradas), peças da fantasia de boi e uma sanfona surrada. José de Oliveira não sabe ao certo quanto tempo a fazenda – que antes era do seu pai – tem, mas diz que já encontrou lá uma moeda de 1869, querendo atestar a sua velhice. Em um quarto da casa alpendrada, um pequeno mural de fotos faz uma linha do tempo não cronológica do Macuca. Apesar disso, o dono da festa lembra bem os anos que aquelas imagens registram, identifica pessoas – dizendo, sempre, como elas estão hoje – e qualquer episódio daqueles dias. A história do Boi da Macuca começou depois que José de Oliveira, que não morava no local, realizou seu

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Perfil

O DONO DA CASA Os carros que chegam à Fazenda Macuca estão sempre cheios porque aquele é um lugar para se estar rodeado de amigos. Os que vêm para passar o fim de semana montam suas barracas e aproveitam o dia, observando a festa tomar corpo, enquanto os responsáveis pela organização resolvem as últimas pendências: o festival, que existe desde 2000 em suas três versões (Brinquedos Populares, São João, Jazz & Improviso), possui na programação shows em palcos alternados, rodas de poesia, intervenções artísticas e sempre terminam com o cortejo do boi a um distrito vizinho. José de Oliveira, o Zé da Macuca, nascido em Palmeirina em 1954, comenta o período do festival com euforia. “É uma sensação de alegria quando chega o povo, quando aparecem os meninos com as mochilas nas costas e vejo o pessoal acampado. Acho bonito, fico feliz. Mas na hora em que vão saindo é a mesma felicidade…”,

ri, emendando que também ficam a saudade e o sentimento de solidão. Após ter vivido em Garanhuns dos 6 aos 19 anos, José de Oliveira foi morar em Sergipe, onde estudou Geologia e se tornou chefe do departamento desse setor em uma indústria de cimento. Mas sentiu falta de casa e do futebol que costumava jogar por lá. “Resolvi formar um time de futebol de salão.” O time da empresa em que trabalhava jogava toda quarta-feira; na quinta, ele ia a um bar na praia onde se tocava MPB. “Percebi que, no futebol, a gente joga, perde, leva canelada, se aperreia, e depois volta para casa com um carro cheio de marmanjos. No bar, não: a conversa era boa, as mulheres chegavam mais perto, a gente falava sobre natureza, poesia. Voltei para cá”, brinca, sustentando o motivo para viver hoje no município de Correntes, na antiga fazenda do pai. Com uma kombi emprestada e carro lotado, levou vários amigos para comemorar seu aniversário na fazenda, localizada a quatro horas do Recife, cujo entorno é repleto de pequenos distritos de aparência tranquila, numa estrada com margem pontuada por capelinhas para os mortos. O aniversário foi logo depois de um carnaval de Olinda, ele recorda, justificando que consegue medir a

passagem do tempo por quem namorava na época. O sanfoneiro foi essencial àquela festa de 1989, considerada a primeira Macuca. “Não tinha prato, nem talher, e a cerveja tinha que ser aberta no dente; também não tinha copo.” Mas teve gelo, música e vontade de permanecer no lugar. Naquele momento, sua vida mudaria e a dos que passaram a colaborar com ele no evento que hoje entra no calendário cultural do estado como o Boi da Macuca, atraindo pessoas locais, da região, de estados vizinhos e mesmo de fora do Brasil. Zé da Macuca conta a história de uma alemã que, tendo visitado o interior pernambucano, ouviu falar do festival e resolveu ir conhecê-lo. Chegou depois do cortejo, mas gostou do local e nele permaneceu uma semana. “Oito anos atrás, ela voltou e andou comigo a região todinha. Foi embora para a Alemanha e, dois anos depois, trouxe o pai e a mãe de Hamburgo até aqui.” José de Oliveira, que não se incomoda com as novidades, apesar de manter distância delas, pensa que a produção agrícola na região tem diminuído por causa da dificuldade de entender a frequência das chuvas. “Mas, relacionado a isso, em 2015 vai acontecer um fato interessante, que vocês deveriam presenciar: Seu Zé Preto, que passou 30 anos trabalhando aqui, e já tem quase 90 anos na agricultura, vai completar 100 anos de idade. Ele é um agricultor durinho, inteirinho e disse que vai pagar um boi com as suas economias para todo mundo comer na comunidade de Poço Comprido, e a gente vai levar o Boi da Macuca daqui até lá. Um raro agricultor… Ninguém planta mais não.” Tecendo laços, como esse, com as comunidades ao redor, Zé da Macuca, que vive sozinho na fazenda, conta que se sente seguro. Durante os dias de festival, ele deixa uma lista escrita à mão com pessoas que moram nos arredores, para que elas tenham entrada liberada na sua casa. LAÍS ARAÚJO

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aniversário com amigos na fazenda do pai. Lá, decidiram aprender a cuidar da terra, largar seus empregos e irem morar em Correntes, onde hoje acontece o festival. “Só eu fiquei”, conta ele, que há muito é chamado simplesmente de Zé. Foi então que descobriu, nas comunidades ao redor, a figura mítica do bumba meu boi. Típico do Maranhão, o boi-bumbá aparece em diversas outras localidades brasileiras, com variações; às vezes, como folguedo de data fixa no calendário anual, ou como manifestação do ano inteiro, tradicionalmente profano, mas também de caráter religioso. Com origem nas tradições culturais ibéricas, a brincadeira incorporou elementos africanos e indígenas: foi chamado de boi de mamão ou boi de mourão, em Santa Catarina e no Paraná; bumba ou folguedo do boi, em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Cabo Frio e Macaé; boi de reis, no Espírito Santo, ou, ainda, dança do boi, boi de jacá, boi surubim e boi zumbi. Desde que colocou seu boi na rua, em 1989, Zé da Macuca tornou-se

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Tradição

CON TI NEN TE

Há 25 anos, o Boi da Macuca tornouse referência dessa tradição popular no município de Correntes

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corporificação dessa tradição para as comunidades locais, seja no cortejo que percorre as vias das redondezas, ou quando os vizinhos sobem para a fazenda. O envolvimento começa já na produção do festival, que é formada por uma equipe de 50 pessoas, a maioria vinda das comunidades de Baixa Grande e Poço Comprido, mas que pode vir de Garanhuns, Maceió e Aracaju. Muitas delas começaram a frequentar a fazenda lá no início, ou são filhas de pessoas dedicadas ao brinquedo há muito tempo. Um dia antes da sexta que inicia o festival, elas riem do que chamam de “famosas lendas do Macuca”. Uma delas, a Morena do Lago, que tradicionalmente sai,

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4-6 PÚBLICO

Cada edição do festival reúne cerca de mil participantes em 200 barracas

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BOI DA MACUCA

Cortejo do folguedo começa na fazenda e segue pelos distritos de Correntes

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ZÉ PEREBA

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DETALHE

Brincante costuma participar do cortejo como Mateus Boi da Macuca dá continuidade ao brinquedo que ganha várias denominações no Brasil

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inteiramente nua, do lago da fazenda, correndo para o mato, onde nunca é encontrada. Lembram, ainda, os muitos “filhos do Macuca”. É que, segundo contam, um número considerável de crianças foi gerado nas festas ali realizadas. No grupo ouvido pela Continente, um disse que era pai de três filhos, todos “do Macuca”. Outro gritou de lá: “Eita Macuca esculhambado! Ninguém mais anda nu por aqui!” Rotineiramente, Zé da Macuca pega um cavalo e desce para o povoado

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de Baixa Grande, a dois quilômetros de distância da fazenda, para beber com os amigos. Vez ou outra, conta uma história sobre a passagem do boi por lá, atestando o envolvimento da comunidade com a festa. Em uma dessas idas, fez um acordo com um amigo, Luiz Lucas, que o último a morrer beberia ao corpo de quem fosse primeiro. Por três vezes, segundo Zé, Luiz Lucas esteve muito próximo da morte. O ritual seria o que acontece quando alguém morre naquela região: as mulheres fazem

sentinela e os homens bebem cachaça, contando boas histórias sobre o doente. Assim que chegou em casa, recebeu a notícia de que o amigo tinha morrido. “Aí, a família chamou o Boi, e veio o corpo no caixão, que foi acompanhado de uma música bonita.” Era véspera da Festa de São Conrado, quando o Boi da Macuca corteja até o local de adoração ao santo para celebrá-lo. Então, Zé desceu com o boi e fez uma festa em homenagem à vida de Luiz Lucas. “E não tem uma foto disso porque não tinha uma câmera fotográfica. Ficou na memória da comunidade”, conta. No domingo que era o do encerramento da edição do festival que acompanhamos, em novembro de 2014, os remanescentes de uma roda de poesia acontecida pela manhã se reuniram à mesa, colocada na porta da casa, ora soltando um verso improvisado, ora cantando, como quem não consegue se despedir direito, numa pequena saudação ao dono da casa: Macuca, macuca O que é que você tem? A casa do Macuca é um barato Todo mundo lhe quer bem.

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FOTO: FREEIMAGES/DIVULGAÇÃO

Cardápio

TEQUILA O destilado que é o orgulho dos mexicanos

Homônima de uma das cidades do estado de Jalisco, a bebida tem sido propulsora do turismo local e seu cultivo aponta para antigas relações de trabalho no campo TEXTO Luciana Veras

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TRADIÇÃO

Apreciadores costumam bebê-la gelada, temperada com sal e limão

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Existem 200 tipos diferentes de agave, gênero de plantas que se assemelham, enquadradas de longe, a raios plantados no solo, pequenos cactos ou, ainda, a coroas de abacaxi brotando do chão. Mas é só de um deles – Agave tequilana, descrita pela primeira vez pelo botânico francês Frédéric Constantin Weber, em 1902, e conhecida como agave azul – que se produz a tequila, uma das bebidas destiladas mais consumidas do planeta, símbolo de um povo que se ufana de difundir, mundo afora, o mantra Arriba, abajo, al centro & adentro, na hora de entornar um pequeno copo. Não é exagero afirmar que se trata do líquido etílico predileto do México e de um dos maiores orgulhos dos mexicanos.

Basta viajar até a América Central para constatar. Em qualquer um dos 31 estados mexicanos, ou mesmo no Distrito Federal, a tequila é consumida nas bodegas populares ou nos restaurantes mais sofisticados, sorvida pura, no shot, ou em drinques apresentados em copos longos, divididos alegremente por jovens ou senhoras, e também em cumbucas de barro, como uma sangria disfarçada de um refrescante e perigoso caldo gelado. Em Jalisco, no entanto, recebe um status quase sagrado. O estado – famoso pela capital Guadalajara, pela cantoria animada dos mariachis, pelos murais de José Clemente Orozco e ainda por ter recebido a Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de

1970 e 1986 – possui, entre seus 125 municípios, uma localidade com pouco mais de 40 mil habitantes e o nome que batiza a bebida nacional. Tequila, a 65 km de Guadalajara, é patrimônio da humanidade pela Unesco desde 2006 e um pueblo mágico – assim classificada pelo governo federal por manter a memória e o costume locais como ferramenta para catalisar a cadeia turística. “Jalisco foi o primeiro estado do México a ter cinco pueblos mágicos, que são Tequila, Mazamitla, Amatitan, San Sebastian del Oeste e Lagos de Moreno. De todos esses, Tequila é o que possui a maior força no turismo cultural, com seus passeios que saem pelos campos de agave para mostrar como a bebida é feita. Chegamos a receber mais de 5 mil turistas por mês”, explica Enrique Ramos, secretário estadual de Turismo de Jalisco. À Continente, ele acrescenta que a indústria “do tequila” – lá, a bebida assume outro gênero para diferenciála da cidade e passa a ser tratada por el tequila – é a “mais crescente e mais importante” do estado. “Temos

Distante 65 km de Guadalajara, Tequila é patrimônio da humanidade pela Unesco e pueblo mágico nacional muitas empresas de tecnologia também e sete das mais importantes universidades, o que faz de Jalisco o ‘Sillicon Valley’ do México, mas é do tequila que vem cerca de 12 a 13% do PIB do estado”, detalha Enrique Ramos. Estados Unidos, Canadá e França são os países que mais enviam turistas para o Vale do Tequila. Os brasileiros têm se animado cada vez mais. “Em 2008, 77 mil brasileiros vieram ao México. Em 2014, esse número saltou para 309 mil. Ainda houve um aumento de 16% no fluxo de turistas brasileiros de 2013 para 2014. Percebemos que os brasileiros, embora sempre mais interessados nas praias, já buscam outros segmentos, como o turismo religioso,

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FOTOS: CPTM/RICARDO ESPINOSA - REO/DIVULGAÇÃO

Cardápio 2

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LUCIANA VERAS

a arquitetura e a rota do tequila”, pontua Diana Pomar, do Conselho de Promoção Turística do México. Vivenciar a “rota da tequila” é compreender que os mexicanos se repartem entre a tradição que cultuam e cultivam e a necessidade de modernizar os processos para dar mais visibilidade (e, por conseguinte, extrair mais retorno financeiro) a essa tradição. Tome-se como exemplo a Jose Cuervo, uma das mais conhecidas fabricantes do destilado. Criada em 1758, ainda sob o domínio espanhol, recebeu, em 1795, a permissão para comercializar a tequila. Possui 48 mil hectares de terras e ainda subloca propriedades em estados vizinhos, de modo que 70% de sua produção decorrem dos seus campos de agave e, o restante, dos produtores independentes. Seu rótulo é uma grife, suas garrafas, um mimo mais caro. Se o visitante houver

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2 PLANTAÇÃO Agave tequilana é a espécie da qual se produz o destilado 3 COLHEITA Jimadores desenterram a pinha do agave 4 DEGUSTAÇÃO Empresas produtoras promovem a “rota da tequila” 5 GUARDA Barris de madeira armazenam as várias classes da bebida

escolhido a experiência Mundo Cuervo, terá vindo de trem de Guadalajara – um expresso descrito pela própria empresa como “clássico e luxuoso” – e chegado a La Rojeña, a destilaria mais antiga da América Latina, em um ritual pomposo e elitizado. O que, por sua vez, contrasta em tudo com a árdua colheita do agave, feita, na prática, não pelos simpáticos funcionários que recepcionam os turistas, mas por jimadores, como Ismael Gama. Há 48 anos empregado da Jose Cuervo – “Meu avô, meu papai e meus dois irmãos mais velhos eram jimadores, então cá estou” –, ele poderia ser confundido com um boiadeiro no Brasil. Maneja dois machetes – um menor, outro gigante – com destreza para desenterrar a pinha, a parte da planta que importa para a feitura da bebida. É um trabalho de força e delicadeza ao mesmo tempo, e de

paciência também: somente após sete a 10 anos é que o agave pode ser colhido. O serviço de Ismael consiste em “deixar as pinhas livres das pencas”, como destaca Juan Pablo Ramirez, que atua como uma espécie de mestre de cerimônias, no campo e também na destilaria Jose Cuervo. Cada 7 kg de pinha rende um litro de tequila. “As pinhas geralmente têm entre 40 kg e 50 kg, o que dá aproximadamente sete litros da bebida”, situa Ramirez. Na Jose Cuervo, existem 140 jimadores; Ismael supervisiona uma equipe de 12 pessoas e encara uma jornada de oito horas diárias, mas não prova do líquido cuja fama ajuda a alastrar. “Não bebo, não tomei nunca”, diz. Não deixa de ser uma ironia, ainda mais quando se descobre que a La Rojeña produz até 50 mil litros de tequila por dia, em um roteiro que começa com a chegada das toneladas de pinhas cortadas pelos jimadores e levadas a um dos 16 fornos para a primeira etapa da fermentação. É quase como se fossem dois mundos distintos: Ismael, pai de 15 filhos, dos quais três já seguem sua profissão, e sua maestria na imensidão dos campos de agave, e a destilaria, onde o aspecto artesanal divide espaço com a indústria e o consumo. La Rojeña recebe o visitante com corvos em todos os lugares. Óbvio que existe uma loja onde se vendem camisas, chaveiros, lápis e outros bibelôs com a marca do

animal eternizado por Edgar Allan Poe – e onde se gasta dinheiro, pois isso também faz parte do ritual consumista. Mas o passeio guiado é bem interessante, não se pode negar. É curioso aprender, por exemplo, que o mezcal, outra bebida típica do México, nasce do agave verde na região de Oaxaca, que o processo de fermentação dura de 50 a 60 horas e que o líquido resultante da etapa inicial, a de fervura, é chamado de mosto. “O vinho do agave é fermentado duas vezes até se formar o tequila”, ensina Juan Pablo. Em seguida, há um novo processo de destilação, de onde surge a tequila blanco com impressionantes 55% de teor alcoólico. “Mas não podemos vendê-la no México, pois existe uma lei que proíbe a venda de tequila com mais de 45%. Essa é feita para exportação”, complementa o mestre de cerimônias da Jose Cuervo. A lição se completa durante uma degustação em meio a centenas de barris de madeira. Existem duas categorias de tequila – uma que é 100% feita de agave e outra com “apenas” 51% da planta azul (o resto é preenchido com destilado de cana, ou seja, algo similar à cachaça tupiniquim), que é destinada para coquetelaria. Há também cinco classes – joven, blanco, reposado, añejo e extra-añejo. Joven é a mescla das duas categorias. Blanco é submetida a um período de 15 dias a um mês de maturação no barril; na reposado, esse tempo é de dois meses a um ano. Añejo fica até três anos em contato com o barril e a extra-añejo, de três a sete anos. Melhor de tudo é perceber, depois de um dia em Tequila, que boa parte do que você ousava imaginar (e acreditava saber) sobre essa entidade etílica mexicana estava errada. Não há nada mais inadequado do que o arriba, abajo, al centro & adentro. A forma correta de degustar, ensinam os mestres da Jose Cuervo, é ir bebericando aos poucos, deixando o líquido acender as papilas gustativas da língua e escorrer para dar o calientito no estômago. De uma próxima vez, experimente assim. O perigo é não conseguir parar. A repórter viajou a convite da Copa Airlines.

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CIRCUITO Laços musicais com os hermanos

FOTO: DIVULGAÇÃO

Pesquisadores mapeiam o circuito da música independente da América Latina e as possíveis conexões entre esses artistas TEXTO AD Luna

Sonoras Nós, brasileiros, vivemos uma situação paradoxal em relação aos nossos vizinhos que falam espanhol. Com exceções, sabemos pouco sobre o que é produzido no universo pop do Chile, Argentina, Uruguai, México, Colômbia, entre outros, comparada à nossa aproximação com músicos e bandas dos Estados Unidos e Reino Unido. A relação fica ainda mais restrita, se pensarmos no circuito independente. Foi com a ideia de conhecer melhor essa realidade que a jornalista Elayne Bione e o cineasta Alex Guterres, da Dozão Produções partiram de Pernambuco e percorreram cinco nações da América do Sul. A dupla produziu imagens de shows, bastidores e entrevistas com músicos, produtores e curadores de festivais como o Fest by Contrapedal (Montevidéu), Circulart (Medellín), Amplifica (Santiago do Chile), Festival del Bosque (La Plata), além dos eventos brasileiros Rec-beat

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(Recife), El Mapa de Todos (Porto Alegre) e o Festival de Música de Rua (Caxias do Sul). Eles também tiveram contato com artistas de outros locais, como Porto Rico, Panamá, Venezuela e Cuba. Atualmente, Bione e Guterres trabalham na montagem do roadmovie, que necessitará da captação de recursos para sua edição e finalização. O principal objetivo da dupla é poder voltar aos locais onde o documentário foi gravado para exibi-lo e estimular o debate acerca da (pouca) integração entre as cenas de Pernambuco, do Brasil e da América Latina. “Grande parte dos festivais que mapeamos tem, em sua programação, palestras, rodas de negócios, oficinas e debates sobre o mercado musical atual na América Latina. As primeiras viagens foram como uma pesquisa que foi se aprofundando, quando percebemos que poderia virar um documentário”, conta Elayne Bione.

De acordo com ela, em 2011, o Contrapedal recebeu pela primeira vez um artista brasileiro. No caso, Fernando Catatau, guitarrista cearense radicado em São Paulo. O trio carioca Autoramas desembarcou em 2014 no Vive Latino, realizado na cidade do México, inaugurando a participação de brasileiros no evento. “Na Colômbia, ano passado, a sergipana Coutto Orchestra foi a primeira a representar o Brasil no Circulart. O filme quer debater isso. Por que o Brasil não aparece mais?”, questiona Elayne. Enquanto o filme não fica pronto, os dois resolveram criar um podcast voltado para a música da América Latina. O roadcast, como eles o apelidaram, é produzido, gravado e apresentado pela dupla. “Contamos algumas experiências ligadas às bandas que escolhemos na seleção musical. Nas duas primeiras edições, tocamos músicas do Uruguai, Chile, Argentina, Colômbia, Brasil e El Salvador. Além disso, recebemos

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convidados que também mochilam pelo mundo ou estão envolvidos com arte em geral”, detalha Elayne Bione. Para ouvir, basta acessar o link da Dozão no Soundcloud: https:// soundcloud.com/podcastdozao/.

INÍCIO

O estímulo inicial para o projeto do filme surgiu em 2012, quando Bione e Guterres conheceram Gabriel Turielle. O uruguaio os convidou para trabalhar na equipe de comunicação do seu evento, o Fest by Contrapedal, em abril do ano seguinte. Lá, aproveitaram para registrar shows e trocar ideias com integrantes de bandas e produtores. Esses contatos os fizeram notar que a proposta de divulgação de cenas independentes era algo comum também em outros locais. “Percebemos que as mesmas bandas estavam circulando em festivais diferentes. Vimos também que os shows são apenas ‘a ponta do iceberg’”, expõe a jornalista,

Chile, Argentina, Uruguai, México e Colômbia foram os países visitados para a documentação da cena independente indicando a existência de uma cadeia produtiva da música independente de considerável amplitude. Entre os aspectos que mais chamaram a atenção dos pesquisadores, destacam-se a organização colaborativa e o profissionalismo demonstrado nos lugares por onde passaram. Há políticas públicas que estimulam e facilitam a circulação dos artistas por vários países. A infraestrutura apresentada também é algo que merece destaque. O citado Contrapedal, por exemplo, dura três dias, funciona com dois palcos,

URUGUAI

A dupla de jornalistas passou por festivais como o Contrapedal

tenda eletrônica e abre espaço para a realização de palestras e workshops sobre o mercado da música. Ele foi criado em 2006, para celebrar o aniversário do selo homônimo. Os patrocínios partem de setores públicos e privados, o que garante a qualidade da programação, dos equipamentos de som, iluminação e de todos os outros itens que compõem grandes espetáculos musicais. “Na Argentina, visitamos um festival em La Plata que reúne a música tradicional e folclórica local com artistas e bandas novas e independentes. A estrutura é de primeira, palcos enormes, som de qualidade, devido ao apoio das secretarias de cultura da província de Buenos Aires. Na Colômbia, também encontramos o mesmo movimento”, informa Alex. Em Santiago, capital do Chile, ele e Elayne assistiram ao debate realizado em uma feira de música no qual foi discutida a chamada “Ley dos 20%”. Como o nome já indica, ela prevê a execução de, no mínimo, 20% de música chilena nas cerca de 1.200 rádios locais. “A intenção é aquecer o mercado musical chileno e tentar diminuir a hegemonia das grandes corporações da música comercial. Muitos artistas nos disseram que essa seria a chance de conseguir tocar nas rádios do seu próprio país”, diz o videomaker.

ELEMENTOS DE CENA

Rock, eletrônico, rap e ritmos tradicionais são os principais gêneros musicais presentes entre as diversas bandas que os documentaristas conheceram. No entendimento de Elayne Bione, as propostas são muito criativas e não ficam restritas a um estilo ou estética. “Percebemos também que o show está muito conectado com o visual. Quase todas as bandas, além de tocar, também utilizavam outros aparatos, como videomapping, figurino diferente, elementos teatrais e circenses, tudo misturado com a música”, comenta Alex Guterres. Dentre os artistas que mais chamaram atenção, Elayne Bione destaca três nomes. A mexicana Descartes a Kant foi criada em 2001, em Guadalajara, e canta em inglês.

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

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DESCARTES A KANT

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COUTTO ORCHESTRA

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MAX CAPOTE

Banda formada em 2001 destacase no cenário musical mexicano Grupo de Sergipe representou o Brasil no colombiano Circulart Músico é um dos nomes mais relevantes do rock independente uruguaio

conhecimento, admiração e interesse pela música feita em nosso país. Essa poderia ser uma oportunidade para artistas e grupos do Brasil se comunicarem e armarem participações em festivais e/ou shows em parceria com produtores e bandas de países da América Latina. “Nesse âmbito da música independente, o Brasil está começando a entender a conexão latina e, aos poucos, entrando nesse circuito. Infelizmente, não por iniciativa das bandas, mas, sim, dos agenciadores e programadores, que reconhecem a importância do Brasil no contexto e terminam apadrinhando algum artista”, expõe Bione.

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Sonoras

REC-BEAT

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“Os seis integrantes consideram o som que fazem como ‘punk rock cabaretero’. As frontgirls Dafne, Sandra e Ana Cristina hipnotizam o público. O show é um espetáculo teatral com muitos figurinos e as letras são bem interessantes”, aponta. O uruguaio Max Capote, que tocou no Rec-Beat do ano passado, é considerado um dos mais relevantes nomes do rock independente do seu país. “Ele é um personagem. Sobe no palco sempre de preto, com óculos escuros e com um copo de uísque na mão.” Do Brasil, mais especificamente de Sergipe, Bione exalta a complexidade sonora da Coutto Orchestra, que está na estrada há quatro anos. “O que nos impressiona no som deles é o uso

dos ritmos regionais como a taieira, o maracatu de brejão, marujada e o forró em diálogo com o tango, a cumbia, o balkan, as valsas, as marchas, o house e o jazz manouche. No palco, os instrumentistas unem aparatos tecnológicos à sanfona, a percussões, sopros, vozes e cordas”, descreve. O público que frequenta os festivais visitados costuma ser aberto a novidades. “Em todos os festivais, as pessoas, assim como nós, estavam lá para conhecer a proposta da banda que chegava de outro país. E nem todos eram shows gratuitos. Apenas alguns”, destaca Elayne Bione. De acordo com ela, ao contrário de muitos brasileiros, as pessoas com as quais conversaram demonstram

Além do El Mapa de Todos, que vai promover sua sexta edição em 2015, Elayne Bione e Alex Guterres destacam o Rec-Beat. O festival, que integra a programação oficial do carnaval do Recife, completa duas décadas este ano. “Ele é o único, aqui em Pernambuco, que mostra um pouco dessa proposta de integração entre artistas da América Latina”, observa Elayne. Criado pelo jornalista e produtor paulista Antonio Gutierrez, o festival tem mantido a tradição de convidar sempre duas ou três bandas latinas ao Recife. “Creio que o Rec-Beat seja o pioneiro em fazer isso no Brasil. Nós somos ainda muito fechados para a produção latina”, lamenta Gutierrez, referindo-se aos brasileiros. Todos os anos, ele viaja seis, sete vezes, para feiras de música em países da América do Sul, a fim de conhecer novos grupos e estabelecer conexões com produtores. “As pessoas de lá gostam muito da música feita no Brasil. Acho que deveriam existir mais políticas culturais por aqui, para que esse mercado seja mais explorado”, sugere.

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INDICAÇÕES MPB

ELETRÔNICO /POP

Independente

Warp

BOA NOVA VENTURA Abstracto

APHEX TWIN Syro

Em 2012, o compositor pernambucano Hugo Durães entrou em estúdio para dar início ao longo processo de produção, gravação e finalização de suas canções. Após dois anos de trabalho, o resultado veio com o disco Abstracto. Entre os sons consagrados do piano elétrico e do violão de nylon, Durães e sua banda utilizam dissonâncias e timbres incomuns de guitarra e sintetizadores para dar a forma e a personalidade requeridas pelas composições. O destaque é para a faixa intitulada Amante.

Depois de destruir e reconstruir inúmeras vezes o universo da música eletrônica, o produtor e compositor norte-americano lança um disco voltado para a melodia. Syro, bem como tudo que Aphex Twin já fez, é genial. O álbum é intrigante em suas 12 faixas. O primeiro single, minipops 67, é uma síntese do que o trabalho oferece de melhor: timbres analógicos, escalas menores harmônicas e muita experimentação. O surpreendente é que a obra, mesmo soando eletrônica, foi inteiramente gravada à mão.

INSTRUMENTAL

ELETRÔNICO /EXPERIMENTAL

Independente

Tri-Angle Records

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Elayne Bione e Alex Guterres apontam certo desinteresse de bandas pernambucanas em fazer parte da cena latina. Isso porque, em dois anos de pesquisa, não identificaram nenhum artista do estado que tenha desenvolvido laços com outros países das Américas. A prioridade tem sido investir no mercado musical europeu. “Porém, com as mudanças no mercado econômico de lá, a América do Sul assume uma posição de novo mercado. A tendência será os artistas focarem seu trabalho no universo latino-americano”, acredita Bione.

CANAL ON LINE

Criado em abril de 2012, o site Yo No Hablo Su Lingua (www.yonohablo.com) é uma boa fonte para aqueles que desejam conhecer cantores e grupos chilenos, argentinos, uruguaios, colombianos, mexicanos, portoriquenhos, salvadorenhos, peruanos, entre outras nacionalidades. O veículo é mantido pela mineira Laís Eiras, que tem observado uma abertura maior dos brasileiros em relação à

música em espanhol e à cultura dos países vizinhos. “Ainda há muito caminho a percorrer, mas, em relação ao início, percebemos uma receptividade maior”, comenta. Em suas viagens, Laís se surpreende com o constante desenvolvimento das cenas latinas. Do México, ela destaca a qualidade das bandas de rock e as propostas musicais variadas. A Costa Rica vive um momento de profusão de bandas independentes. Os colombianos demonstram profissionalismo em tudo que se refere à cadeia produtiva da música. “O Chile teve um momento bem efervescente e mantém propostas interessantes. O Uruguai é para ficar perdido. Todos os dias existem bons eventos acontecendo”, conta. Indagada se já ficou “rica” com o site, Laís Eiras se diverte com a pergunta e responde: “Milionária! Já não sei mais o que fazer com tanto dinheiro”, brinca. “A motivação é mesmo a paixão e ver que o objetivo tem sido alcançado; ainda que a cena latina venha se tornando mais unificada, a pasos de hormiga’” , arremata.

PEQUENO CÉU Pequeno Céu De Belo Horizonte, a banda Pequeno Céu apresenta seu primeiro disco, embalado na união entre vertentes da música instrumental norte-americana e ritmos tradicionalmente brasileiros. O lançamento homônimo é a porta de entrada para a união entre belos timbres e composições cativantes. Na obra, o samba encontra o post rock em músicas como Quebra o pandeiro, e Na decadência do samba leva o ouvinte a experimentar um álbum interessante.

SD LAIKA That’s harakiri

O disco de estreia do produtor SD Laika leva a música ao limite. Minimalista, That’s harakiri é uma obra caótica, em que o fundamental é levar o ato de compor a uma nova dimensão. Ora melódico, ora dissonante, o álbum não segue nenhuma estrutura harmônica convencional e reivindica a ideia de que a música eletrônica é um gênero dançante. Ao longo do trabalho, é possível reconhecer os elementos musicais, como a marcação do andamento e os próprios timbres digitais, mas a relação existente entre eles é indecifrável.

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ARISTIDES ALVES/DIVULGAÇÃO

Leitura

DIÓGENES MOURA O escritor que fotografa

Em Fulana despedaçou o verso, ficcionista e curador traz ao leitor a inquietante narrativa de um falso bloco de notas, na verdade, um livro de imagens TEXTO Adriana Dória Matos

No que serve como uma minibiografia do autor de Fulana despedaçou o verso, Diógenes Moura não diz que nasceu no Recife em 1957, mudou-se um tempo para Salvador e mora há 26 anos em São Paulo. Quer dizer, diz, mas de outro jeito, com vieses e comentários que não caberiam num texto convencional do

gênero. Assim, ele não contradiz Fulana. Mas, antes de falar dessa narrativa fragmentária, só um pouco sobre o pequeno texto que o autor escreveu sobre si mesmo. Diógenes Moura, mais conhecido como curador de fotografia do que como escritor, conta que passou a infância “entre os quintais, os pés de

abiu e a linha do trem no arrabalde de Tejipió”. E que depois dessa infância bucólica recifense, viveu 17 anos em Salvador, “quando a cidade ainda não tinha perdido a memória”. Então informa que mora em São Paulo desde 1989. Como as informações são sincopadas, tentamos preencher os espaços: o que aconteceu ao longo desses anos que gerou o autor de Fulana despedaçou o verso? É claro, não precisamos disso para nos tornarmos fiéis da leitura, apenas fazemos isso, por hábito, curiosidade, fuxico. A sensação de que muitas coisas não estão claras, que estão desfocadas, opacas ou parcialmente fora do enquadramento, e mesmo que há sobreposições, é frequente na leitura de Fulana despedaçou o verso. O que, a princípio, pode ser desconfortável, porque não nos permite domar facilmente aquilo posto, já que estamos inquietos com os “desajustes” e

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precisamos ficar atentos a eles. No caminho, entretanto, percebemos que o melhor desse livro – descrito como de contos e crônicas, embora você não precise aceitar essa catalogação – é que não pode ser apreendido em sua totalidade, que vamos sair dele com lapsos. As lacunas são inevitáveis. O mesmo que fizemos com a biografia do autor, quando a “preenchemos” com nossas intervenções mentais, fazemos com a leitura de Fulana, com uma pá de pedreiro na mão, colocando pedra e cal, construindo a nossa interpretação. E não há problema se erramos nesse intento. O erro é inevitável. Na literatura brasileira contemporânea, há uma predominância do que podemos chamar amplamente de novo realismo, que dá continuidade às formas tradicionais de contar uma história, sobretudo a partir do princípio da verossimilhança, em que imitamos a realidade. Em termos comparativos, isso acontece também – e mais acentuadamente – no cinema. Esqueça esse estratagema quando estiver lendo Fulana, porque nele não há linearidade narrativa. Mas há atalhos para entrar nesse texto incomum. Embora isso seja posterior à escrita, o primeiro indicador é o seu desenho gráfico em formato de bloco de notas e uso de fonte tipográfica que imita a de máquina datilográfica. Um livro-objeto que nos leva a um estado de suspensão. Outras pistas externas ao texto são o depoimento de Diógenes Moura de que sua literatura é “imagem” e a reiteração de que “só entende a fotografia vendo-a como literatura”. Agora, vamos aos pedaços de texto: “Pensei que o quarteirão estava interditado para que as crianças pudessem subir nos brinquedos, sem automóveis no meio da grande avenida. Mas assim que dobrei a esquina vi a moto estraçalhada embaixo das quatro rodas. O corpo estava bem perto, coberto por um tecido azul, sintético. Tinha a mesma cor do céu daquela manhã de domingo. Parecia de veludo a pequena mancha de sangue, muito vermelha, recortada como uma bolha, como num diálogo de uma história em quadrinhos. Todo aquele mundo que existia dentro da cabeça do homem estirado no

chão agora vazava sobre o asfalto. As crianças não estavam nos brinquedos do quarteirão interrompido”. Esse é praticamente todo o conteúdo da página 49, que pode ou não estar articulado às páginas anteriores e subsequentes. Algumas das situações narradas podem ressurgir ou simplesmente desaparecer. Não há páginas pares em Fulana, portanto, na seguinte, a 51, lemos: “Minha cabeça dói por trás da janela de vidro desse mínimo quarto de hotel. O mercado está fechado do outro lado da rua. A mulher bem fininha dorme. O homem em silêncio sobre o asfalto escorre dentro do meu cérebro. Amanhã o homem estrangeiro dirá que o retrato do outro homem surgiu primeiro para inventar uma vida. Mercúrio. Alumínio. Iodo. Não se trata de uma ficção. Muito menos se trata de uma falácia. Perderemos a consciência? Quem de nós dirá não? Por que seremos eternamente

Enriquece a leitura deste livro a sensação de que algo não está claro, que há sobreposições e quadros incompletos retratados? Somos uma herança de passagem para outro? A mulher bem fininha acordou. Acaba de abrir a porta do elevador. O homem em silêncio não repousa mais sobre o asfalto. A mancha de veludo vermelha foi transferida”. Nessas passagens, como em anotações desconexas, há frações de imagens sugestivas, trechos que se assemelham a pensamentos e questionamentos fugazes que trafegam pela nossa mente. Há também, nesse pequeno livro, passagens em que lemos fotografias com planos definidos, como “Do lado de cá do sanduíche dá pra ver as fatias do asfalto” ou “Um triângulo de vacas sobre o verde pasto”. Também, momentos deliberadamente poéticos como “O vento muito forte entra pela janela quadrada e as letras e as palavras voam e colam no seu rosto” e “O trem avança em direção aos ponteiros”. Diógenes Moura conta que nunca foi muito afeito ao romance. Escreve

desde os 12 anos e o contato com o primo em segundo grau Carlos Pena Filho foi epifânico em sua infância, pois havia algo de cerimonioso, mesmo sagrado, nas visitas do poeta à família, na casa do avô, no Bairro de Tejipió. Foi esse avô quem iniciou o menino na fotografia, pois lhe contava histórias da família mostrando-lhe os álbuns de imagens. Enquanto afirma o desinteresse pelo romance, Diógenes destaca seu gosto pelo conto, pela crônica, pela poesia e, sobretudo, pelo que vê ao redor. Sua formação acadêmica foi em Letras (Literatura Francesa) e Jornalismo, e ele diz que a vida o foi empurrando naturalmente para junto dos estudos sobre fotografia. “O trabalho como curador me projetou, mas sempre tenho sido escritor.” Fulana despedaçou o verso está no meio do caminho. Compõe a trilogia de contos/crônicas iniciada com Ficção interrompida (uma caixa de curtas) (Ateliê Editorial, 2010) e está programada para ser encerrada este ano com De vez em quando era mais constante. Essas coisas ele conta que escreve com calma, editando tudo em baixa tiragem (300 a 500 exemplares), enquanto leva à frente projetos curatoriais, autorias, como a mostra A arte da lembrança – a saudade na fotografia brasileira, encerrada no início de março no Itaú Cultural paulistano, com previsão de montagem este ano no Recife, de acordo com Diógenes. Como o presente são reminiscências do eterno vivendo, esse projeto de exposição de Diógenes Moura está enlaçado ao da feitura de uma novela, que ele denomina A placamãe. A narrativa vem sendo escrita há 10 anos, com um bocado das lembranças que ele cultiva, sobretudo da infância no Recife, onde havia quintais e pés de abiu que sobrevivem apenas na memória de um menino que cultiva a poesia em qualquer plataforma e há muito deixou a cidade de Carlos Pena Filho.

Fulana despedaçou o verso DIÓGENES MOURA Terra Virgem Edições Livro-objeto reúne textos em que se imbricam cenas prosaicas, reminiscências e pensamentos esparsos.

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ADRIANO FRANCO/DIVULGAÇÃO

Leitura

JOSÉ RUFINO “Escrevendo, posso ser qualquer coisa”

Artista plástico estreia na literatura com Afagos, reunião de mais de 100 minicontos, produzidos como poemas em prosa TEXTO Luciana Veras

José Augusto Costa de Almeida completa 50 anos em 2015. Formado em Geologia pela Universidade Federal de Pernambuco, com doutorado em Paleontologia, o paraibano desafia convenções desde que se entende por gente. Filho único, inventava realidades paralelas e devorava livros com rapidez e interesse – tanto que, ainda criança, ganhou da mãe um bolo de aniversário em homenagem a Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Décadas depois, afastou-se do pétreo campo de trabalho para incursionar pela arte. Para tanto, tomou emprestado o nome do avô paterno, um coronel e senhor de engenho de quem herdou a paixão por “literatura, dicionários e lexicografia” e a ligação com palavras

“estranhas e complexas”, que hoje define “quase como uma patologia familiar”. Um dos mais representativos artistas plásticos do Nordeste, José Rufino prepara uma exposição individual para abril e dribla os enquadramentos corriqueiros do mundo contemporâneo ao assumir a persona de escritor e lançar, neste mês, o volume de contos Afagos, pela Cosac Naify. O verbete contos não é de todo adequado, na verdade, pois até aqui Rufino fugiu de quaisquer expectativas. Ele adotou o formato de pequeníssimas narrativas condensadas em 300, 400 ou 500 caracteres – ou seja, menos do que três ou quatro posts no Twitter. “Afagos reúne 102 textos que podem ser descritos como microcontos, embora

muitos sejam verdadeiros poemas em prosa, nos quais está presente o mesmo olhar do artista José Rufino que, vendo os fatos para além da circunscrita banalidade do dia a dia, oferece-nos novas possibilidades de compreensão da realidade”, escreve Luiz Ruffato, na orelha do livro. “Sempre desconfiei que ia terminar escrevendo”, confessa o artista e professor paraibano à Continente. Tal certeza vinha do ambiente literário em que fora criado, com escritores, críticos e literatos tanto do lado da mãe, Marlene, como do pai, Antônio Augusto (que ainda foi secretário do Partido Comunista e um dos fundadores das Ligas Camponesas). “Desde criança, adorava charadas com palavras e sempre escrevia fragmentos. Com o passar do tempo, nutri um problema para escrever por conta exatamente do contexto familiar. A pressão para escrever bem era tão grande, que criei uma noção deformada de que escritores tinham um estilo prévio. Até que, pouco tempo atrás, parei para pensar que, assim como os artistas visuais, os escritores evoluem de um jeito e vão mudando –não é necessário começar com um texto maduro”, sintetiza José Rufino. Afagos surge como o desfecho de uma narrativa iniciada em 2008, quando ele, a convite da revista pernambucana de arte Tatuí, rascunhou uma participação em

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um número sobre o passado. “Comecei a escrever, achei meio ruim, como se fossem palavras de um crítico a respeito do meu trabalho, e então decidi fazer em primeira pessoa, como uma pequena ficção”, lembra. Ele, que sempre usara o texto de modo pontual em seu trabalho, viu-se cooptado por aquela nova forma de expressão. Nascia ali o projeto de Desviver, em que José Rufino, o neto, revisita a história de José Rufino, o avô, no que ele chama de “transgressão e confusão do tempo”. O romance, que vem sendo lapidado desde então, já se avoluma em “mais de 500 páginas” na sua odisseia pela “minha existência dentro da existência do meu avô, uma espécie de fluxo de consciência, um solilóquio que viaja no tempo”. Tomado, pois, pela angústia dessa escrita “convulsiva”, o autor passou a se divertir com pequenas brincadeiras extraídas de work in progress em Desviver. Uma passagem o

Rufino adotou o formato de pequenas narrativas, condensadas em 300 ou 500 caracteres, quase posts de Twitter levava a imaginar outros personagens e possíveis desfechos, porém todos amarrados em rigorosas condições de exiguidade de espaço e linguagem. “Afagos é um respiro desse texto, é o oposto de Desviver com sua contração e economia. Mais calejado com o texto do romance, resolvi me submeter a uma provação inclusive estética, com formatos que variam. Me dou o direito de me desafiar e me permito ir a todas as situações. Por exemplo, escrevi muito como um jogo que adorava fazer desde criança, o de me submeter a determinada regra para me tomar o espaço da solidão. Se estava esperando numa fila de banco, sozinho no hotel ou no balcão do aeroporto, podia me dar uma ordem e escrever sobre o casal que via na minha frente. Ou de produzir um conto em cinco minutos. Me via como um cantador, a fazer uma embolada, agora com muita exigência para a

pontuação sair perfeita e a respiração ficar certa na hora da leitura”, esmiúça o escritor e artista paraibano. A argamassa para tudo, José Rufino prossegue, ele carrega desde os anos 1980, quando se reconheceu como artista: “Os microcontos falam de ciúmes, amor, solidão, violência, ausência, ou seja, as experiências da condição humana, que são temas que sempre trato nas minhas obras”. A concisão chega ao extremo em pérolas como Ataque, composto por apenas duas frases: “O corte era fundo, curto, mas não doía nem sangrava. Somente sua alma vazava em decepção”. “De fato, há algumas pancadas violentas e contos que tendem ao afago, e ainda há vários que, de alguma maneira, fazem o vínculo com a minha formação pessoal, como quando uma criança entra numa conversa de adultos e de repente solta uma palavra que silencia a todos”, testemunha Rufino. Sua trajetória como artista e escritor seria outra, se ele não houvesse cruzado a fronteira da Paraíba. “O Recife foi fundamental na minha vida. Foi aqui, na Livro 7, na Síntese, na Imperatriz e no Sebo Brandão que montei minha biblioteca de poesia, com João Cabral de Mello Neto, Manuel Bandeira, Octavio Paz e Ezra Pound. Quando li O cão sem plumas, de João Cabral, fiquei três dias com febre. Voltei à Livro 7 e comprei todos os exemplares. Ainda nos anos 1980, tinha uma paixão pelos poetas concretistas, como Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, e também admirava o trabalho de artistas como Montez Magno, Daniel Santiago e Paulo Bruscky. Tudo isso veio a formar o leito por onde eu ia seguir”, recorda. Emile Zola, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Enrique Molina, Raduan Nassar, Gabriel Garcia Marques, Thomas Pynchon, Marcel Proust, Pablo Neruda “e os russos todos por causa da minha mãe” são eleitos por ele como influências literárias. Contudo, mais do que listar as obras que o arrebataram, o que José Rufino mais gosta de fazer na iminência da sua estreia literária é saborear a infinidade de janelas por onde adentrar: “O artista plástico que sou tem uma única voz. Não sou popular, não sou naïf. Agora, escrevendo, posso ser qualquer coisa”.

Trechos

JOSÉ RUFINO AFAGOS DEVIR

Desviou o rosto dos olhos semimortos da mãe sem conseguir disfarçar o constrangimento. Sentou-se à beira da cama e ficou alisando as dobras do lençol como se fossem as dobras de uma vida toda, tão prosaica quanto aquele tecido fraco. A enfermeira entrou e disse que precisava trocar a roupa de cama.

PEDRA

Como de costume, chegou ao trabalho com a cara lítica. Era a pior forma de demonstrar a raiva contínua que sentia. Revolvia-se todo por dentro, mas a casca era pura pedra. Por obra de ironia infame, o patrão havia lhe destinado um trabalho com marreta e cinzel: quebrar todo o concreto de uma coluna até expor o esqueleto de ferro.

DOMINGO

A menina correu com os óculos do pai: apanhou na cara. O menino mijou-se todo: havia apanhado na cara. A menina mijou-se toda: apanhou na cara. A mãe levou outra garrafa, bem gelada: o pai mijou-se todo.

METEORITO

O menino, tamanho de nada, entrou na sala e ficou ali escorado numa coluna. Os bracinhos cruzados e os olhos bem atentos aos movimentos dos adultos. A conversa, acalorada, girava em torno da existência de Deus. Escutou um pouco, analisou, e tomou posição: Eu acredito em panspermia. A palavrinha final destruiu a sala como um meteorito.

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DIVULGAÇÃO

Leitura

OS DIAS O tempo que não cabe em si

Recente livro de Weydson Barros Leal, composto de 25 poemas, lida com a inadequação entre o vivido e o mensurado TEXTO Anco Márcio Tenório Vieira

Depois de uma sequência de títulos

que evocam os elementos da natureza, os mistérios da existência, as epifanias do cotidiano, as vozes que cantam a poesia e o universo literário cultivado por Jorge Luís Borges – Água e pedra (1985), O aedo (1988), O ópio e o sal (1990), O silêncio e o labirinto (1994), Os círculos imprecisos (1994), A música da luz (1997), Os ritmos do fogo (1999), Celebração (1999) e A quarta cruz (2009) –, o poeta Weydson Barros Leal batiza o seu derradeiro livro apenas com substantivo masculino – Os dias –, inscrevendo a sua obra em uma tradição de títulos literários que se valeram desse substantivo – seja como metáfora, seja como alegoria – para plasmarem o caminhar do homem sobre a terra.

Foi assim com Os trabalhos e os dias. Título que o poeta grego Hesíodo (séc. 18 a.C.) escolheu para falar do mundo dos mortais em contraposição ao mundo que ele cantara em sua Teogonia: o das divindades. Aqui, a palavra dias não pode ser entendida sem outro substantivo masculino: trabalho. É o “trabalho” que pauta e dá a medida dos “dias” e da miséria humana; o modo de viver e de agir dos homens, as suas insuficiências, limitações, alegrias, dores, velhice e, principalmente, a sua consciência da finitude. Para Hesíodo, o “trabalho” cotidiano e o suor do rosto é o preço que nós, humanos (chamados por ele de Raça de Ferro, ou quinta Raça), pagamos por nos afastarmos dos

deuses e semideuses — as Raças de Ouro, Prata, Bronze e de Heróis. Se o narrador épico de Os trabalhos e os dias afirma que “antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça,/ mais cedo tivesse morrido ou nascido depois”, o Marcel Proust de Os prazeres e os dias (1896) assevera em sua obra exatamente o inverso. No escritor francês, não será o trabalho e a miséria humana que lhe interessam enquanto matéria literária, pautando os contos e os poemas que formam o seu livro e, sim, a capacidade e a sensibilidade dos homens de verem e de tirarem pequenos e grandes prazeres dos fenômenos da natureza e das manifestações da vida. A vida só é suportável pelos prazeres que dela podemos extrair, escreve o prefaciador de Proust, o hoje injustamente esquecido Anatole France. O mundanismo, a sensualidade, as penas de amor, a melomania, a vilegiatura, a cor do tempo, os devaneios, a amizade, os sonhos, os castanheiros, o mar e os jantares não são apenas alguns dos títulos e subtítulos que batizam os textos que compõem Os prazeres e os dias, mas temas que dão a dimensão do que Proust entendia por prazeres. Diverso dos títulos dados por Hesíodo e Proust às suas obras, Os dias

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INDICAÇÕES não se faz precedido por nenhuma outra palavra. Não só: aparentemente não vamos encontrar nesse livro de Weydson Barros Leal elementos que direcionem ou pautem o correr do tempo: nem os trabalhos, nem os prazeres. No entanto, quando lemos os seus poemas, indiferentemente da ordem em que eles foram organizados pelo poeta ou das análises e interpretações que podemos extrair dos seus versos, vemos que uma questão ontológica parece perpassar ou alinhavar os 25 poemas que integram a obra, a de que “Algo sempre é mais breve/ do que deveria/ ou tarda além do que podemos esquecer” (As manhãs). Nesses versos, que bem ilustram o que queremos dizer, a brevidade e o espaçamento são metáforas de um tempo (pautado e contado pelos “dias”) que já não cabe dentro da medida do homem e do modo de vida da nossa contemporaneidade. O tempo, aqui, deixa de ser o limite e a regra das coisas (dos trabalhos, dos prazeres) – já que ele ora nos parece insuficiente para a demanda dos dias, ora nos consome ou nos persegue além do que desejamos –, para ser o Leviatã, o monstro do nosso caos. Assim, se, em Hesíodo e Proust, os trabalhos e os prazeres regulam e dão a disposição dos dias, nos versos de Weydson Barros Leal, a incompletude, a desmensurabilidade e a inadequação das coisas orientam e consomem os nossos desejos, as lembranças, os ofícios e, principalmente, os nossos dias.

Dentro dessa incompletude desmedida e inadequação das coisas, o poeta crê que “vivemos para lembrar/ morremos para esquecer// e assim os nomes que se perdem/ a infância que criamos/ os números que marcaram/ cada porta” (o cercado dos ossos). Não sendo mais os dias a nossa medida, perdemo-nos em lembranças que, ao fim e ao cabo, são apenas imagens que ficaram no lugar das coisas, das experiências, daquilo que vimos e sentimos um dia. Afogados em um passado idealizado e falseado por nossa memória, restanos a morte não como o perfazimento de uma existência, mas como o emplasto de uma vida que não cabe mais na medida do tempo, nos dias que estão além ou aquém das nossas ações, em uma memória inflada de imagens e coisas, que já não sabemos distinguir o que fora verdadeiro ou falso, o que fora sonho ou realidade. Os dias não só é um livro de um poeta maduro, de um dos grandes nomes da sua geração, mas uma obra que, por meio de metáforas, alegorias, intertextualidades, imagens, figuras e símbolos, por meio da aventura da linguagem, da delicadeza no emprego das palavras, nos leva a entender que o relógio que marca o nosso tempo não dá mais a medida dos nossos dias e, principalmente, que entre o ruído instalado entre o relógio e os dias que escorrem na vida e na memória dos homens, ainda (felizmente) podemos dizer e sentir o indizível por meio da poesia.

HISTÓRIA

FABIANA BRUCE Caminhando numa cidade de luz e sombras – a fotografia moderna no Recife na década de 1950

CONTOS

PATRÍCIA GALELLI Cabeça de José Nave Editora

Resultado de tese de doutorado, o livro da pesquisadora e professora da UFRPE parte do acervo do fotógráfo Alexandre Berzin para analisar a produção imagética dos anos 1950, tanto do ponto de vista dos temas em foco quanto da formação de clubes de estetas e profissionais.

“Na cabeça de José correm dois rios sem sentido” é o bordão que encadeia a narrativa. Há uma refinada ironia no texto que, embora classificado como conto – por sua fragmentação, talvez –, pode ser considerado narrativa de uma ideia. Galelli crítica os que nomeia “cabeça exata” e “cabeça vazia”. As ilustrações de Yannet Briggiler formam um bom caldo com o texto.

FICÇÃO CIENTÍFICA

COMPILAÇÃO

Fundação Joaquim Nabuco/Massangana

WILLIAM GIBSON Neuromancer Aleph

O clássico oitentista do cyberpunk ganha uma caprichosa edição comemorativa de 30 anos. Além da história sobre o cowboy Case, os leitores são presenteados com extras: prefácio de William Gibson, três contos inéditos no Brasil (Johnny Mnemônico, Hotel New Rose e Queimando Cromo) e entrevista do autor concedida ao escritor e crítico literário Larry McCaffery.

ADOLF BIOY CASARES Obras completas – Volume A Biblioteca Azul

Para Enrique Vila-Matas, o alto reconhecimento literário para Casares ainda não chegou. No Brasil, esse lançamento pode mudar tal afirmação. No primeiro volume das obras completas do argentino, que terá três coletâneas, destacam-se A invenção de Morel (1940), Plano de fuga (1945) e Os sonhos heróis (1954), além de apêndices e fotos.

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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

O TORO DE MADEIRA

A memória de alguns livros nos assalta de repente. Ou seria a lembrança das narrativas e seus autores? Tudo junto é o mais provável. Os e-books também despertam fetiches proustianos? Alguém sente junto deles o cheiro, a textura e a cumplicidade que o livro de papel nos provoca? Continuo embrionariamente ligado a esses objetos misteriosos e cheios de volúpia, que levo comigo para onde vou, como a roupa do corpo. Não foi difícil trocar a caneta e o lápis pela máquina de escrever e esta pelo computador. Incorporo as novas tecnologias sem dificuldade. Mas não consigo me desfazer de alguns livros, seria como arrancar um dedo, ou até mesmo o pé. Já sofri tontura quando não encontrei as Folhas de relva, no lugar habitual na minha estante. Faltou chão e senti-me desamparado. Acostumei-me a estirar o braço à procura de respostas e consolo nos livros que me cercam. A polêmica em torno da liberdade de imprensa, do direito de fazer humor com qualquer instituição, debochando até mesmo com o sagrado, me fez lembrar um conto do russo Mikhail

Artsibachev. Pouco lembrado e menos lido, o autor se viu proscrito pela ditadura comunista, mesmo sendo um revolucionário. Caiu no esquecimento igual a centenas de escritores russos, cujos nomes e obras o regime apagou, após a revolução bolchevique. O conto se chama O toro de madeira, foi traduzido por Aurélio Buarque de Hollanda e Paulo Rónai, e publicado em Mar de Histórias, Antologia do Conto Universal, pela Livraria José Olympio Editora. Embora eu possua esses volumes, li-o em Contos Russos, na coleção Universidade de Bolso, da Ediouro. Por que o preciosismo da informação? Quando me lembrei da narrativa, imediatamente me veio à memória o volumezinho de bolso, as ilustrações sombrias, o lugar reservado para ele na minha pequena biblioteca. O livrinho sobreviveu à doação de quase tudo que minha esposa e eu juntamos ao longo de 40 anos. Quando senti necessidade de reler o conto, localizei-o sem dificuldade e a sensação foi de que reencontrava um velho amigo, gasto pelo tempo e impregnado com o cheiro da velhice.

*** O estudante Veriguin, deportado político, anda pelo meio da floresta em direção à casa onde o seu amigo Chutof, igualmente revolucionário e perseguido, vive seus últimos dias, sofrendo de tuberculose. O contato com a floresta desperta nele o sentimento de que todo esforço é vão e que bastaria ao homem recolherse à natureza e levar uma existência contemplativa e de poucos sonhos. Essas digressões provocam o riso no jovem comunista e a certeza de que após três dias de recolhimento, seria acometido pelo mais paralisante tédio. Mesmo assim ele deita na relva, aspira o ar úmido e cheio de fragrâncias, observa borboletas e escaravelhos, o céu entre as copas das árvores. Reagindo ao torpor, se levanta e procura o caminho que o levará à cabana do amigo exilado. Ao atravessar uma clareira avista uma choça baixa, enfeitada com trapos coloridos, o telhado descendo até o chão. A estranha habitação humana, em meio ao capim e as flores, desperta sua curiosidade. Quando pensa em

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KARINA FREITAS

se dirigir à casa, percebe um velho de barbas longas, muito baixo, o corpo envergado, os braços longos, as mãos ultrapassando os joelhos. Ele pula no meio da vegetação, executa passos de dança, num ritual que parece cômico a Veriguin. O rapaz se esconde e aprecia a cerimônia, mas não resiste e sai do esconderijo, indo em direção ao velho. Ele se espanta que alguém invada o seu espaço inviolável e grita cheio de um medo feroz. Indiferente aos apelos, o bolchevique continua rindo e pede ao avozinho que não se zangue. O ancião entra na cabana e volta com um ídolo de madeira de feições toscas, levantando-o sobre a cabeça. Pronuncia algumas palavras mágicas, estranhando que o rapaz ainda não tenha sido fulminado por seu deus. – Vai-te embora! Chau, chau... Kirmet, Kirmet! O estudante finalmente compreende que chegara num lugar sagrado, onde os profanos não deviam entrar, e que o ancião procurava mandá-lo embora da clareira. Mas percebe apenas a comicidade do ritual

O conto trata de questões bem atuais: o direito de conspurcar e debochar o que é sagrado para os outros, em nome da liberdade e assume de propósito uma atitude ameaçadora. Num gesto insensato e tolo, saca o fuzil que carregava consigo e dispara uma bala no deus de madeira. Quando a fumaça se dissipa, o velho tenta levantar o deus quebrado e desfigurado, mas não consegue e foge. Veriguin continua sua jornada em busca do amigo revolucionário. Vocês precisam ler esse conto escrito há 100 anos, que trata de questões bem atuais: o direito de conspurcar e debochar o que é sagrado para os outros, em nome da liberdade assegurada por um estado laico, para o qual nada é sagrado. Veriguin chega à choupana do amigo, encontrando-o à beira da morte e descrente dos valores que o levaram a passar um quarto da

vida na cadeia. As pessoas já sabiam o que ele fizera ao velho e ao seu ídolo pessoal. Um amigo de Chutof, homem idoso e sábio, diz o seguinte: – Cada homem tem o seu ídolo. Não se trata de saber que ídolo ele adora. Não nos convém nem ao senhor, nem a mim, perseguir a religião alheia. Trate de sua religião e não se meta com a dos outros. Não se afaste do caminho do bem e, assim, será o servo do seu próprio deus. Não na igreja, mas no espírito. Veriguin questiona o velho rude que aprendera a filosofar sozinho. Pergunta a ele como alguém pode crer num toro de madeira. Afirma sua fé apenas no homem, em todos os homens e na ideia de humanidade. O velho sorri condescendente e contesta: – Não, o senhor está falando errado. Em cada homem não pode crer, pois o homem é mortal, e mesmo durante a vida ele é insignificante... O senhor acredita, como todos nós, é na verdade e no bem. É a verdade e o bem que o senhor venera nos homens. Por isso é que, para o senhor, o homem é o toro de madeira.

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. o d u t é o d ú e t . n l a o t i C g i d é m é b m a t E e t n e n i t n o C a t s i ev R a , l i r m b o a c , e l d a t r i i ig d o ã A part s r e . v s a a r t m x u e ganhará ade e recursos rápido e d l i i v c i t á f a r s i e int ma a s i d a n r i u a t l á u r c Agora se r sobre temas do Mundo. a e m l i r s o a f r n i B e o s ,d o c u b m a n r e P e d

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

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Visuais

NAÏF A personalidade da arte espontânea

Publicação, assinada pelo galerista Jacques Ardies, registra parte da produção brasileira do gênero, de 1940 até os dias atuais TEXTO Mariana Oliveira

Em setembro de 2011, a matéria de capa da Continente lançava um olhar sobre a arte naïf, buscando conceituála, entender seu espaço no mundo da arte e também apresentar a situação difícil do gênero naquele momento no Brasil. O Museu Internacional de Arte Naïf (Mian), do Rio de Janeiro, cujo acervo possui mais de 6 mil obras de artistas nacionais e internacionais, havia sido fechado (o espaço foi reaberto em 2012). Uma das principais fontes da matéria foi o galerista Jacques Ardies, que, desde a organização da sua primeira exposição, quando se instalou no Brasil, na década de 1970, tem buscado divulgar e promover esse gênero artístico. É dele uma das poucas obras referenciais sobre o assunto, lançada inicialmente em 1988 – reimpressa duas vezes devido à procura, chegando a uma tiragem total de 8 mil exemplares, um “sucesso inusitado”, segundo o próprio autor. Agora, a publicação ganha edição atualizada. “Esse livro atende a vontade de contar histórias. São histórias de pessoas ricas de imaginação, talento e afetividade. São as histórias daqueles que fazem a arte naïf no Brasil”, descreve Ardies. A arte naïf no Brasil II segue o mesmo conceito do primeiro volume, com uma seleção de artistas organizados em ordem cronológica, numa espécie de catálogo, trazendo a biografia de cada um deles. Em seu texto de abertura, o autor tece comentários e contextualiza os trabalhos dos 79 selecionados. Além dessa apresentação, a obra conta com quatro textos de apoio escritos por amantes do estilo. Eles foram convidados por Ardies a responder a pergunta: “Por que você gosta de arte naïf?”. Os testemunhos complementam a breve apresentação feita pelo autor, mas chama a atenção o fato de três dos quatro convidados serem estrangeiros. Essa escolha, em certa medida, termina reforçando a ideia de um olhar estrangeiro que se encanta pelas raízes brasileiras tradicionais, muitas vezes ligadas ao exótico e ao estereótipo daquilo que seria o “genuinamente brasileiro”. Talvez, a discussão proposta pela

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pergunta ficasse mais rica trazendo a percepção sobre a arte naïf de algum outro brasileiro, equilibrando os pontos de vista.

CARDOSINHO, O PRIMEIRO

Para sua pesquisa, Ardies catalogou cerca de 200 obras, datadas da década 1940, até as mais recentes, realizadas no ano passado. Ele conceitua o gênero de forma breve no panorama internacional e, depois, apresenta o marco que servirá como ponto de partida para a seleção dos artistas. Segundo o autor, a liberdade da criação artística no Brasil se dá a partir da Semana de 1922 e será graças a ela que, nos anos seguintes, aparecerão os primeiros trabalhos do pintor aposentado José Bernardo Cardoso Jr., Cardosinho, que traziam uma estreita ligação com as raízes culturais nacionais. Uma paisagem desse artista dá início à linha cronológica. Não faltam referências a nomes de destaque, como Sílvia, que, segundo Ardies, representa a maternidade da arte naïf brasileira, tendo um papel fundamental na eclosão do estilo no país, na segunda metade do século 20 – a imagem da capa é dela. Pernambuco é apresentado como um estado profícuo no gênero, com 11 artistas citados, entre eles José Barbosa, Ivonaldo e Crisaldo Morais. O autor destaca o papel articulador desse último, considerado um “naïf sofisticado”, na liderança do “movimento”, dando total apoio à sua iniciativa de montar uma galeria especializada no gênero. Comenta a carreira de sucesso de Ivonaldo, que se tornou o naïf vivo mais procurado do Brasil, mas que desde 2009 teve que deixar a pintura por conta de problemas de saúde. E ainda questiona a inscrição de José Barbosa no hall dos artistas naïfs. Nesse trajeto proposto pela obra, observam-se as referências clássicas ligadas à essa arte: a exuberância das cores da natureza e sua luz, as festas populares, as manifestações religiosas, a paixão pelo futebol… Entretanto, tem-se o registro também de paisagens urbanas, do caos das metrópoles brasileiras. Naquilo que o autor chama de terceira

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1 SÍLVIA Os trabalhos da artista marcaram a eclosão da arte naïf na segunda metade do século passado 2 BAJADO O artista de Olinda é um dos 11 pernambucanos que aparecem na publicação 3 CESTA DE

ORQUÍDEAS

Obra de Ivonaldo traz lirismo à luz, ao sol e à paisagem de Olinda

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geração, inscreve-se o nome de Cristiano Siadoti, jovem formado em Arquitetura que apresenta, de forma sintética e colorida, a beleza da cidade de São Paulo. Segundo o autor, a seleção foi pensada para dar uma visão geral e atualizada da riqueza e pluralidade dessa expressão no Brasil, deixando, obviamente, nomes importantes de fora da compilação. Ao atualizar a versão publicada em 1988, Ardies mostra que a arte naïf brasileira está viva e consegue desmistificar alguns conceitos sobre

ela, como aquele que a coloca em conexão direta com o popular. Mas, para ele, algo que une todos os artistas é sua criatividade e originalidade, e a ideia de uma obra pura, que seria a essência do seu valor. “Cada um apresenta uma obra diferenciada, expressiva e inconfundível, que emana de seu particular viver e invade o nosso inconsciente. Há muita poesia. Há observação encantada, a desajeitada habilidade charmosa e, na maioria das vezes, uma mensagem positiva”, descreve.

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José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

DESENHO

Transcorreu no ano que passou o centenário de nascimento do desenhista Arnaldo Pedroso d’Horta (São Paulo, 1914-1973). Devo tudo a ele, não posso deixar de assinalar, embora este fato em si não signifique nada, a não ser que eu me atribua grande importância. Deixando de lado minha desimportância, houve um momento em que no Brasil se dava muita importância ao bico-depena, ao desenho sobre papel. Os desenhistas brasileiros brilharam nas Bienais de Veneza e de São Paulo quando estas exposições atraíam o que de melhor se fazia no mundo em matéria de pintura, escultura e desenho, as três categorias em que eram divididas, e ganhar um prêmio significava consagração imediata. Na seção de desenho, concorriam, além de desenhistas propriamente ditos, aquarelistas e gravadores. Era a grande época de Lívio Abramo, Osvaldo Goeldi, Marcelo Grassmann e, no desenho, Arnaldo Pedroso d’Horta, Carybé, Aldemir Martins, Clóvis Graciano, Lothar Charoux, sendo que se distinguiam os unicamente

desenhistas, dos que eram também pintores, o que de certo modo comprometia a postura ética, mais do que estética, exigida para ter acesso ao seleto grupo dos exclusivamente desenhistas, como era o caso de Arnaldo e, na época, Aldemir. Havia diversos graus de pureza. O desenho tinha de ser apenas desenho, não estudo para pintura, por exemplo. No âmbito de arte, não se falava em design ou história em quadrinhos, embora Aldemir idolatrasse Alex Raymond, desenhista de Flash Gordon e alguns caricaturistas entrassem nessa aristocracia, como o pernambucano Augusto Rodrigues, Hilde Weber, Fayga Ostrower ou Saul Steinberg. Quando conheci Arnaldo Pedroso d’Horta não sabia da existência de tais burocracias, nem em pintura nem em nada, nem no Brasil nem no resto do mundo, nem quem mandava em canto nenhum e até hoje ainda sou um pouco assim. Por isso sempre precisei e tive sorte de encontrar um guia, vários durante a vida, que se alonga a 82 anos. Foi assim com Arnaldo Pedroso d’Horta. 1953, creio. Carybé precisava

viajar, Dna. Nancy, sua esposa, tinha ido para a Argentina, e Carybé me pediu para ficar em sua casa, isto é, o 2º andar do casarão do espanhol Jesus no Largo de Santana, no Rio Vermelho (Salvador). E fiquei lá no ócio beato até que aparece um telegrama “chego em tal vôo, tal hora” para estragar a festa. Aí chegaram Arnaldo, Dna. Rachel e os filhos Luís, 12, e Vera, um ano a menos. Mas isso está contado no livrinho Viagem de um jovem pintor à Bahia. Antes que me esqueça, bela exposição de desenho foi a de Aloísio Magalhães, A aventura da linha, logo depois, no Museu de Arte Moderna de São Paulo quando na Sete de Abril no prédio dos Diários Associados, sendo Arnaldo quem, na ocasião, me apresentou a Aloísio Magalhães, trazendo-me, Aloísio, de presente um rolo de papel canson. Aloísio Magalhães e Arnaldo Pedroso d’Horta são artistas cuja obra precisaria ser mais conhecida, melhor estudada. Há artistas de que as entidades que determinam os rumos da história da arte parecem ter ciúmes e os preservam tirando-os de

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REPRODUÇÃO

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CARIMBINHOS

Desenhos de carimbos de Arnaldo Pedrosa d’Horta, feitos com o gume das ferramentas de escultura em madeira, formões e goivas, 1968

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circulação, como se bons demais para serem submetidos à execração pública. Certa vez, o pintor Francisco Brennand disse não acreditar em pintores que não resistissem a um longo período de ostracismo. Mesmo considerando o lado puramente estético, do saber artístico, o meu convívio com Arnaldo Pedroso d’Horta foi uma dessas dádivas que caem do céu, sua honestidade visceral, sua absoluta segurança quanto ao que entendia como desenho. Apesar da liberdade total que se concedia com experimentalismo técnico, trabalhando com vários materiais que lhe caíam às mãos, fazendo incrustrações, minuciosas colagens, riscando o bico de sua pena, cada vez com maior apuro, a ponto de trocar a pena pelo bisturi, como se procurasse fundir o seu desenho com as texturas dos materiais, nunca perdia o respeito infinito pela arte do desenho, como se tivesse substituído a religião pelo desenho, como se a cada desenho quisesse redefinir ou reafirmar cada vez mais profundamente sua fé. Sempre absolutamente pessoal,

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Mesmo considerando o lado puramente estético, o meu convívio com Arnaldo foi uma dessas dádivas que caem do céu fica até difícil encontrar o seu DNA artístico. Não permitia que no seu desenho interferisse nenhum modismo nem interesse demagógico. Estava sempre consciente, atento cada átimo e cada milímetro, não fazendo nenhuma concessão, tão compenetrado que podia parecer desumano. Que ninguém lhe falasse de “arte engajada”! Eu nunca pude me livrar, mesmo tão diferente de minha natureza, desse seu olhar perscrutador que continua vivo dentro de mim, chama que não se apaga. Meu filho Cláudio Manuel, ou Mané Tatu como assina nos quadros, pois também enveredou pela sina da pintura, frustrando meus sonhos de uma velhice tranquila, lembra-se

de quando Arnaldo vinha nos dar a grande alegria da sua visita. E do que mais se lembra é do cheiro do uísque, o líquido derramando on the rocks, ele menino junto daquele senhor metódico estirado na rede olhando o mar de Rio Doce, quando Rio Doce era praia, lindos arrecifes onde o neto Rodrigo corria feito cabrito, eu atrás gritando “Rodrigo, não ande tão ligeiro!” com medo que ele caísse e se ferisse nas pedras, nos ouriços, ele parava e continuava a correr, até que uma hora se virou e me perguntou, aquele antigo erre paulista na sua voz infantil: “‘Ligeiro’ é ‘rápido’?”. Noutro endereço, eu morando na Rua do Bonfim, Arnaldo na rede, os pés bem brancos quase na cara de Adão Pinheiro, os dois conversando, depois Adão me disse: “Nunca vi pés tão civilizados!” Foi dessa vez que ele me viu fazendo desenhinhos de carimbos e ficou encantado. Resolveu experimentar usando em lugar de carimbos, que eu recortava na borracha, o gume das ferramentas, goiva, formão, que eu usava para escultura em madeira.

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

Claquete 1

DOCUMENTÁRIO O que sobrou da política de boa vizinhança

O professor Fernando Weller investiga, desde 2008, a presença norte-americana em Pernambuco, no período do golpe militar, e sua relação com o poder TEXTO Luciana Veras

Primeiro de março de 1961: em um dos seus primeiros atos como presidente dos Estados Unidos da América, John Fitzgerald Kennedy assina e divulga a executive order 10924, decreto presidencial que instituía o programa de voluntários Corpos da Paz. Seis meses depois, o congresso norte-americano autoriza a iniciativa por meio do Peace Corps Act (Pub. L. 87-293), sacramentando, assim, os desejos do primeiro governante católico do país. “Os Corpos da Paz serão um conjunto de homens e mulheres treinados e mandados para o exterior

pelo governo dos Estados Unidos, ou por meio de instituições e organizações privadas, para ajudar países estrangeiros a aplacar suas necessidades urgentes de mão de obra habilidosa. É nossa esperança ter entre quinhentas e mil pessoas em ação até o fim desse ano”, disse JFK em seu discurso. Março de 2015: o professor universitário, pesquisador e documentarista Fernando Weller se prepara para mais uma etapa de filmagens de Steven esteve aqui, a que se dedica desde 2008. “Neste ano,

comecei a ouvir relatos da presença dos americanos no sertão de Pernambuco. Ninguém sabia disso. A presença deles em Natal é conhecida, e virou filme, mas o fato de os americanos terem estado aqui nos anos 1960 é ainda ignorado por muitos”, observa Weller, formado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense e atualmente professor e doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco. Que relatos eram esses? “Fabulações, histórias pessoais, lendas de espiões… Em Afogados da Ingazeira, por exemplo, corria o boato de que Steven Spielberg tinha vivido lá na década de 1960. A partir do boato, fui atrás da história, que trata de uma verdadeira ocupação branca norte-americana em Pernambuco”, responde Weller. O título do seu filme brinca com essa improvável passagem do diretor de Tubarão e O resgate do soldado Ryan por paisagens sertanejas, porém, fala de um Steven verdadeiro, um dos voluntários que ingressou nos Corpos da Paz e foi um dos milhares de jovens ianques a serviço de uma política externa que prestava bastante atenção aos movimentos da América Latina, em

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especial ao Brasil, então governado por João Goulart. “Os Corpos da Paz eram um dos braços dessa ocupação, que se inicia, na verdade, com a revolução cubana de 1959 e com a constatação, por parte dos Estados Unidos, de que o Nordeste do Brasil era uma área com potencial altamente subversivo. Faziam parte de um projeto mais amplo, a Aliança para o Progresso, que derramou muito dinheiro nos países latinoamericanos. Em Pernambuco, alguns desses programas eram feitos junto com a Sudene e incluíam ações de eletrificação rural, modernização da indústria da cana, educação e saúde”, detalha Weller. Ele conta que, em 1961, quando Kennedy ainda vivia, Miguel Arraes era governador de Pernambuco e as Ligas Camponesas já incomodavam, o escritório recifense da United States Agency for International Development – USAid (a agência para o desenvolvimento internacional criada por JFK no mesmo ano dos Corpos da Paz) era um dos dois maiores do mundo.

CONTINGENTE DE 30 MIL

O Recife chegou a receber 30 mil norte-americanos, segundo Weller. Um contingente impossível de ser ignorado, no entanto, não muito discutido em sala de aula ou mesmo citado na historiografia oficial do estado – que trata os 24 anos da invasão holandesa no século 17 com pompa e minúcias. É impossível dissociar a atuação desses estrangeiros do contexto da Guerra Fria vivido após a vitória dos aliados em 1945, e a subsequente polarização do mundo entre os capitalistas do free world e os comunistas de Stálin. Os Corpos da Paz aludem tanto ao espírito expansionista norte-americano – com aquela missão de manter a ordem universal que eles atribuíram a si – como ao temor que Kennedy e seus partidários tinham de uma “vermelhização” da América do Sul. “Tenho certeza de que o programa será uma fonte de satisfação para os americanos e uma contribuição para a paz mundial”, apregoava JFK em seu discurso. O curioso é que os Corpos da Paz passaram a atrair uma juventude encorajada por razões distintas. “O clima dos direitos civis dos anos 1960 propiciava o engajamento dos jovens

1 JOGOS DE PODER Tancredo Neves, o então presidente João Goulart (centro), o diretor dos Corpos da Paz, sargento Shriver, e o embaixador norte-americano Lincoln Gordon na assinatura do convênio, em 1962 2 EM CAMPO Entre as ações desenvolvidas pelo programa de “colaboração”, constavam medidas de educação e saúde

De acordo com a pesquisa realizada, o Recife chegou a receber 30 mil norteamericanos no bojo da Guerra Fria imbuídos desse espírito libertário, mas, quando se aproxima o fim da década, começam a chegar os rapazes que não queriam servir no Vietnã. O programa passa a ser uma rota de fuga. E o que acontece? Muitos americanos vêm para defender uma ideologia liberal e terminam por se tornar simpáticos às causas dos trabalhadores rurais ou mesmo dos que lutavam contra a ditadura militar. Há casos de alguns que foram presos e torturados pelo DOPS”, aponta Fernando Weller, que já percorreu milhares de quilômetros na pesquisa e nas primeiras filmagens.

BUSCA DE FONTES

Desde 2012, quando Steven esteve aqui foi agraciado com recursos do Funcultura audiovisual para desenvolvimento de roteiro, o diretor já esteve em Afogados da Ingazeira que, supostamente, acolheu Spielberg, em Petrolina, Orobó, Belo Jardim e Timbaúba, no

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interior pernambucano, e ainda no Rio de Janeiro e em São Paulo. Fora do país, visitou Washington e Boston. Entrevistou dezenas de personagens, entre veteranos dos Corpos da Paz e brasileiros que auxiliaram o programa ou acolheram os estrangeiros. Teve acesso a um rico material iconográfico nos arquivos norteamericanos. Entretanto, a mesma sorte não lhe sorriu no congênere brasileiro, o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. “O acesso às fontes de informação histórica é incrivelmente difícil. Aqui não existe a cultura da memória. Já nos EUA, tem-se acesso a tudo. A maioria dos filmes feitos pelos Corpos da Paz com propósito de divulgar o programa ou para ser exibida aos voluntários é de domínio público e pode ser vista e usada”, explica Weller. Em 2013, o documentário ganhou outro aporte financeiro do Funcultura, dessa vez sob a rubrica de produção de longa-metragem. Já no segundo semestre de 2014, quando mais da metade da pesquisa estava concluída, veio a aprovação no edital do Longa Doc do Ministério da Cultura – o único projeto do estado a figurar no rol dos premiados. Com o selo da Jaraguá Produções, em parceria com a Plano 9, o filme vem sendo captado em HD, com fotografia de Nicolas Hallet e montagem de João Maria (“estamos filmando e montando ao mesmo tempo”, adianta

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INDICAÇÕES

Claquete o diretor). A previsão é de lançamento em 2016. Fernando Weller percebe Steven esteve aqui não como um documentário clássico a reconstituir a história do programa inventado por John F. Kennedy, mas como um mosaico fílmico em que a memória dos sujeitos se impõe sobre as instituições. Afinal, nada é novidade na participação norteamericana no golpe que derrubou Jango e instaurou a ditadura militar brasileira, no papel do embaixador Lincoln Gordon no apoio que os EUA deram às Forças Armadas (Gordon é visto em uma das imagens mais marcantes obtidas na pesquisa do filme ao lado do então presidente brasileiro Jango, do primeiro-ministro Tancredo Neves e do sargento Shriver, o primeiro diretor e um dos porta-vozes do programa, na assinatura do convênio para implantação no Brasil, em 1962) e na intensificação não apenas dos Corpos da Paz, mas de todos os programas norteamericanos ramificados no Brasil a partir da colaboração do regime de exceção. “Os aspectos mais inusitados e importantes são outros. Tenho a impressão de que a presença norteamericana divertia as pessoas, que os acolhiam como se não existisse a Guerra Fria. Ao mesmo tempo, a parte dessa juventude que vinha de lá fugida, exatamente dos dilemas dessa Guerra Fria nos EUA ou para escapar do Vietnã, era vista como se fossem espiões ou os imperialistas que implantariam o plano

americano. Mas a presença dos norte-americanos, embora disfarçada, não era inócua. Eles financiaram a criação de sindicatos rurais para competir com as antigas Ligas Camponesas, nos esforços contra o fantasma do comunismo, e assim formaram, indiretamente, os quadros políticos de várias cidades. Como faziam isso? Escolhiam um camponês, davam a ele uma formação e depois o levavam aos Estados Unidos, onde ele aperfeiçoava os estudos que havia recebido. Quando retornava, não demorava a participar da política daquele município. Em vários casos, esse mesmo camponês virou prefeito”, afirma o diretor, para quem o filme pretende mostrar, a partir de exemplos como esse, que “apesar das instituições, existem os sujeitos, que tornam as histórias mais complexas do que qualquer estereótipo”. O Steven do título não foi localizado. “Desapareceu no mundo”, nas palavras de Fernando Weller. Ele era um dos que integravam o “imenso reservatório de homens e mulheres ansiosos para sacrificar suas energias, seu tempo e seus laboriosos esforços para a causa da paz mundial e do progresso humano”, como esbravejou JFK no seu discurso, dois anos antes de ser assassinado, talvez sem fazer ideia de que seus Corpos da Paz seguiriam a existir após meio século, com atuação em 139 países, algo bem típico para (qualquer que seja) a doutrina do tio Sam, ou que tampouco virassem objeto de investigação cinematográfica que se assemelha a uma prospecção arqueológica no passado recente, e ainda não muito iluminado, do Brasil e da “terra dos altos coqueiros”.

CURTA-METRAGEM

COMÉDIA/DRAMA

Dirigido por Rodrigo Almeida Com Mário Jarbas, Thalles Oliveira Surto e Deslumbramento

Dirigido por Neil Drumming Com Dorian Missick, Suzy Jane Hunt, Gbenga Akinnagbe Netflix

CASA FORTE

O Coletivo Surto e Deslumbramento tem se destacado na produção de cinema do Recife. O premiado curtametragem Casa Forte dialoga com os temas recorrentes na produção pernambucana recente, mas se desenvolve por um viés autoral, pesado e divertido. Disponível online, é uma boa demonstração da vontade de fazer cinema do grupo, que disserta sobre as relações de poder e exploração do Brasil colonial, herdados das casasgrandes e senzalas, e presentes nos atuais relacionamentos.

DOCUMENTÁRIO

O QUE É NOSSO: RECLAIMING THE JUNGLE

Dirigido por Jerry Clode, Murilo Yamanaka e Allyson Alapont Com Voodoohop, Metanol FM, Venga Venga Independente

A claustrofobia de uma São Paulo que não privilegia os espaços públicos poderia ser somente uma narrativa triste, mas a intensidade desse problemas é tão grande quanto a vontade de pessoas em retomar a cidade. O documentário registra as noites que acontecem em túneis, prédios abandonados e ruas esquecidas, lotadas de pessoas que desejam festejar e sentir as ruas.

BIG WORDS

Na noite da eleição de 2008, quando Barack Obama ganha a presidência dos EUA, antigos membros de um grupo de hip-hop, agora na faixa dos 40 anos, se reencontram e entram em conflito por assuntos do passado. O longa de baixo orçamento é estreia do diretor, que acerta no roteiro e nas boas atuações. O filme toca em diversas questões sociais com um tom certeiro, mas erra feio na representação das mulheres, escadas para as piadas masculinas. Apesar disso, uma obra interessante.

DRAMA

PENSE NUMA LUTA Dirigido por Jailson Silva Com Jailson Silva, Jéssica Natana, Agnaldo Silva Amplitude Filmes

No município de Baixa Verde, no interior de Pernambuco, vive Zezo Ventania. Ele é um trabalhador rural que descobre que sua esposa abandonou a casa para fugir da pobreza. Com saudades de seu amor e livre do que lhe prendia à terra, o protagonista segue numa viagem à cidade na qual vive aventuras que resultam em crescimento pessoal. Pense Numa Luta é um médiametragem gravado em Carpina, feito com baixo orçamento, autodidatismo e muita vontade.

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Palco

EM CASA Intimidade e guerrilha em um teatro de portas abertas

Companhias pernambucanas investem em encenações de espetáculos em espaços domésticos, proporcionando uma proximidade maior com o seu público TEXTO Pethrus Tibúrcio FOTOS Ricardo Maciel

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Em 2014, o Recife começou a fecundar

um movimento de teatro feito com roupa jogada no chão, poeira debaixo dos móveis, que acomoda o público em cadeiras desiguais e acontece no risco de ser interrompido pelo barulho da campainha. No começo do ano, o Janeiro de Grandes Espetáculos, um dos maiores festivais do Recife dedicados às artes cênicas, fez uma mostra especialmente voltada ao teatro realizado dentro de casa. Os principais nomes que compõem essa cena, hoje, são ligados ao Teatro de Fronteira, à Hazzô, à Companhia Maravilhas, ao Teatro de Quinta da Casa.17, à Casa Outrora, à Cena Off e ao Três de Copas. O uso das salas e quartos no lugar dos espaços mais tradicionais acontece ora por artifício, ora por necessidade. Ou, como disse Márcia La Cruz, uma das integrantes da Companhia Maravilhas e idealizadora do Teatro de Quinta, de uma

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Palco

2 Página anterior 1 TEATRO DE FRONTEIRA

Iniciativa realizou, desde abril do ano passado, 35 apresentações

Nestas páginas 2 MÁRCIA LA CRUZ

”Diante de uma crise, criei um artifício para permanecer atuando”

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TEATRO DE QUINTA

Projeto da Companhia Maravilhas encena, a cada mês, um autor pernambucano

correlação entre essas duas coisas. “No caso da Companhia Maravilhas, não tem espaço para o ‘ou’. Eu sou uma artista, uma atriz. O teatro é minha ferramenta, meu meio de vida e de onde tiro meu sustento. Então, diante de uma crise, criei um artifício para permanecer atuando. Ou seja, diante de um quadro que poderia me levar à estagnação – à crise –, encontrei o impulso para perpetuar meu movimento: a inovação.” O Teatro de Quinta da Casa.17, projeto da Companhia Maravilhas, começou em maio de 2014 e, em agosto, passou a ser itinerante. Procurando fundir teatro e literatura, ele tem a seguinte proposta: a cada mês, um novo autor pernambucano, novo elenco e nova residência. A proposta inicial foi desenvolver a autonomia dos artistas, fazendo o convite para realizarem suas criações com os recursos que têm nas mãos.

“O Teatro de Quinta sempre foi feito em residência, casa ou apartamento, porque nos interessa investigar tanto a autonomia do artista quanto a possibilidade de contracenar com a memória viva de um espaço. Digo memória viva porque trabalhamos com casas habitadas. As pessoas moram lá onde a Casa.17 se instala. Como interpretar com o público assim tão perto? Como pôr em diálogo a encenação e a memória viva daquela casa, seus móveis, quadros, portaretratos? Por alguns instantes, esses elementos se tornarão signos de um espetáculo, e fazer isso é uma forma de investigar a autonomia do artista”, diz Márcia La Cruz. O projeto, que realizou seis espetáculos entre maio e novembro do ano passado, ganhou o prêmio Brasil Criativo e reuniu um público de cerca de 800 pessoas, mesmo com divulgação discreta, que procura respeitar a privacidade dos moradores. O Teatro de Fronteira fez, desde abril do ano passado, cerca de 35 apresentações, divididas em quatro textos, e estima um público de quase mil pessoas no período. La Cruz ressalta isso como forma de refutar as afirmações de que “o teatro vai mal”, redirecionando esse “vai mal” às políticas públicas de subsídio ao teatro.

Com isso, tanto ela quanto Rodrigo Dourado, coordenador do grupo Teatro de Fronteira, negam qualquer visão de que o teatro em casa é, na verdade, apenas um sintoma de um mau momento. “Ao contrário, ele parte dessa constatação precisamente para combatê-la”, diz. Para Dourado, é justamente por perceber fragilidades nas relações entre teatro e cidade, e entre teatro e público, que surge como reação o convite para essa experiência. “Se o espectador é chamado para esse espaço de intimidade é, precisamente, porque o teatro precisa reorganizar a ‘casa’, reaproximar, convidar o espectador a conhecê-lo de perto no seu caráter mais artesanal para, só então, ser capaz de renegociar sua importância como coisa pública.” “Acho que o público de teatro do Recife é muito distante, difícil de trazer para a cena. As pessoas ficam intimidadas de entrar no teatro, a grande imprensa não ajuda e o público fica sem saber o que está acontecendo. Apesar disso, a gente tem recebido pessoas que estão muito a fim de uma experiência nova com teatro. Chamá-los para a intimidade é fazer isso ser convidativo, gostoso, é quase um reaprendizado”, pontua Dourado, ressaltando que a experiência com o público não precisa ser necessariamente massiva.

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O ESPAÇO

Um dos lugares que a Companhia Maravilhas usou foi a Casa Outrora, do ator e diretor Jorge Clésio, que a utiliza como residência, loja de móveis antigos e, agora, como espaço teatral, produzindo montagens próprias de teatro domiciliar. Lá, as atrizes Luciana Pontual, Hilda Torres e o ator Cleyton Cabral protagonizaram textos do escritor Marcelino Freire. O espetáculo foi uma boa experiência de aproveitamento quase integral do espaço domiciliar, do diálogo possível com a rua e do uso dos cômodos como personagens. A cena de Luciana Pontual, por exemplo, interagia com a vizinhança da Rua da Glória e era construída, portanto, em uma narrativa que exemplifica bem a ideia de horizontalidade entre artista e público que o teatro domiciliar procura. Pendurada em uma janela, Luciana gritava suas falas para os pedestres e entregava a eles parte da responsabilidade daquele solo. Quando se fala de “guerrilha” dentro de Teatro em Casa – como um dos motivos, mas não como o único e tampouco como principal –, as lutas de grupos e movimentos sociais que já há algum tempo reclamam do fechamento de espaços voltados a apresentações teatrais no Recife imediatamente

“A gente tem recebido pessoas que estão muito a fim de uma experiência nova com o teatro” Rodrigo Dourado são lembrados. O sucateamento e o encarecimento dos aluguéis dificultam o trabalho dos artistas, que contam com poucos e espaçados editais locais de incentivo. Isso levou Rodrigo Dourado a criar o selo Projeto Fora da Lei, que ajuda a localizar os espetáculos que foram feitos sem incentivos. “Os impactos sociais desse descaso político não se restringem aos equipamentos culturais. Eles tocam artistas que ficam sem espaços para exercerem trabalhos ou pesquisas e se tornam invisíveis ao poder público, a ponto de os gestores de cultura local tomarem decisões importantes para vida pública cultural sem nem dialogar com a classe”, completa Márcia La Cruz. A iniciativa é, na verdade, mais a retomada de uma prática antiga e que já acontece com certa força em outros locais. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Festival Home Theatre – Festival Internacional de Cenas em Casa

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teve sua primeira edição em março de 2013, espalhando-se por mais de 50 casas por diversos bairros da cidade. O festival já expandiu sua experimentação para outros ambientes de intimidade e convivência, como prédios. Na mostra Meu Prédio Tem História, por exemplo, foram coletadas histórias de oito apartamentos, na Pavuna, que serviram de base para a criação de histórias apresentadas dentro das casas dos moradores. Essas e outras iniciativas apontam para um processo no qual o morador e o público estão diretamente envolvidos na criação, promovendo um deslocamento (ou compartilhamento) de olhar interessante entre tema e processo e também do lugar do espectador, de quem é retirada parcialmente a passividade, pelo poder exponenciado de interferir nas narrativas. Em Complexo de Cumbuca, por exemplo, o ator Rodrigo Cavalcanti modifica texto e cenas, improvisando histórias e piadas a partir de uma condução compartilhada com o público. De roupas casuais, ele espera os “convidados” na porta do apartamento e oferece “chá ou café?”, quebrando o tradicional afastamento entre ator e público, permitindo, já de cara, o envolvimento das pessoas na continuidade da noite.

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AGENTES

Coletivo de Teatro Domiciliar reúne integrantes de todas as companhias

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OUTRAS ÉPOCAS

Momentos em que a casa virou espaço cênico são bastante conhecidos: no período de repressão pós-1964, por exemplo, era bastante comum os artistas fugirem da censura se reunindo nas próprias casas e fazendo saraus. No filme Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, por exemplo, o grupo de teatro Vivencial Diversiones é mostrado realizando suas apresentações no espaço doméstico como forma de burlar os censores. José Manoel Sobrinho, diretor e produtor teatral no Sesc, e João Denys, professor na Universidade Federal de Pernambuco, são alguns dos que, em outros momentos, já exercitaram o teatro em casa. O esquema de “pague quanto puder” – no qual o preço não é estipulado e o público diz e decide quanto quer ou pode pagar – foi um dos tópicos discutidos em uma série de quatro vídeos gravados pelo coletivo Três de Copas, com os representantes dos grupos do Movimento de Teatro em Casa. Para o Teatro de Quinta, a ação é uma forma de fazer o público repensar a valorização do artista e seu reconhecimento enquanto profissional. Marcia conta que “já teve gente que deu R$10, R$20 ou R$100” e diz que acha que o valor cobrado deve

Apresentações em residências se tornaram frequentes no Brasil durante o período da ditadura militar ser o mesmo do mercado. Dourado comenta que prefere ver o público como “colaborador” e por isso entrega a ele a função de definir o valor do ingresso, pontuando que acredita que foi justamente o poder entregue ao mercado que desvalorizou os artistas. A Cena Off, representada por Daniel Barros, assumiu o esquema do “pague quanto puder” objetivamente: como forma de atrair o público que não tem dinheiro para pagar valores tabelados. Parte do material de divulgação do movimento, pelo menos a de algumas companhias, é feita pelo grupo Três de Copas, composto por Ricardo Maciel, Flávia Gomes e Kelen Linck. “Ao longo de 2014, nós registramos todos os espetáculos de teatro domiciliar, usando fotografia e vídeo. Acompanhamos o ano todo para dar um suporte aos grupos, mas não somos uma companhia teatral”, conta Ricardo. Foram também os

responsáveis pela série de vídeos que coloca o movimento em uma roda de diálogo. Além disso, cederam uma moradia na Rua Princesa Isabel para a realização de um espetáculo do Cena Off, com quem cocriaram o Acontece enquanto você não quer ver. A Hazzô começou a trabalhar com teatro domiciliar em maio de 2014, depois de ver a iniciativa do Teatro de Quinta. O Teatro de Fronteira anuncia pelo menos três ações de desdobramento para 2015. A primeira delas é a Roda Teatro na Minha Casa, na qual eles se colocam abertos para realizarem seus espetáculos nas casas de quem os convidar. O segundo projeto é o Roda Teatro Experimentos Ocultos, no qual, a cada dois meses, eles vão reunir pessoas inscritas em algum endereço do centro da cidade, e as levarão, sem anunciar, ao destino, a casa de artistas pré-selecionados, que performarão sobre sua vida e arte, dentro de suas casas. Conta, ainda, que agora os grupos passam a se encontrar e pensar ações juntos. “Enquanto coletivo, faremos, em 2015, a 1ª Mostra de Teatro em Casa. Estamos procurando incentivos, mas, se for o caso, faremos a mostra do mesmo jeito que fazemos nossos espetáculos. A gente vem para mostrar que está vivo e que nesta cidade se faz teatro, sim”, completa Rodrigo.

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PESQUISA Teatro para a infância

Em mais uma obra de cunho catalográfico, o jornalista, produtor e ator Leidson Ferraz faz um apanhado dessa produção em Pernambuco

MARCELO LYRA/DIVULGAÇÃO

TEXTO Mariana Oliveira

Já faz alguns anos que o jornalista, produtor e ator Leidson Ferraz abraçou uma causa: a de lançar um olhar generoso e atento sobre a história das artes cênicas em Pernambuco. Entre 2004 e 2009, ele publicou os quatro volumes do projeto Memórias da cena pernambucana, nos quais registra as atividades de 39 grupos que atuaram no estado. Agora, ele se prepara para levar a público mais um trabalho de documentação, o Panorama do teatro para crianças em Pernambuco – 2000/2010, que faz uma catalogação da produção desse gênero no período. O livro (que conta com o incentivo do Funcultura, em parceira com o Sesc Pernambuco) traz informações sobre mais de 600 montagens realizadas do Litoral ao Sertão.

A paixão do autor pelo teatro criado para a infância é antiga. Ele estreou como ator numa peça direcionada a esse público e, já nas pesquisas do Memórias da Cena, teve contato com diversas produções no gênero. “Além dessa relação antiga, sinto que esse tipo de teatro sofre muito preconceito e existem poucas pesquisas sobre ele. A própria imprensa vê o assunto como algo menor. Estamos melhorando, temos conquistado vitórias, mas ainda há muito o que fazer. Por isso, a importância desse trabalho, que dá visibilidade a essa produção, mostra que ela existe e, a despeito das dificuldades, é realizada em todas as partes”, comenta. A ideia da publicação nasceu nas reuniões do Núcleo Sesc/PE de Teatro

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A ILHA DO TESOURO

A montagem, baseada na obra de Robert Louis Stevenson, foi destaque em 2002

Para a Infância e Juventude, em 2010. José Manoel Sobrinho (que assina uma das apresentações do livro) propôs a Leidson o mapeamento estadual das montagens realizadas entre 2000 e 2010. Ele aceitou e caiu em campo. Muitas das informações foram colhidas em jornais, mas outras, especialmente as do interior, exigiram o contato direto com produtores, diretores, dramaturgos, atores e técnicos. Durante as pesquisas, o autor se surpreendeu positivamente com a produção interiorana, com montagens interessantes de grupos amadores e também estudantis. “Há produção em cidades onde nem existe uma casa teatral. Claro que encontramos trabalhos de baixa qualidade, mas muita coisa boa foi feita também. Nosso objetivo no Panorama não é julgar as obras em questão, mas registrá-las”, diz. O livro é organizado em ordem cronológica. A cada capítulo, num formato de história em quadrinhos, o autor expõe o contexto da cena teatral da época e suas influências, antes de trazer a ficha técnica completa das montagens, premiações e curiosidades. Em alguns capítulos, ao final, ele registra outras peças sobre as quais não conseguiu material, mas que, segundo apurou, aconteceram. Essa publicação se alinha a outro trabalho realizado pelo pesquisador, Teatro para crianças no Recife: 60 anos de história no século 20. Nele, Leidson parte do ano de 1939 (data que marca a primeira apresentação do gênero num teatro recifense) e segue documentando a produção da cidade até 1999. O material foi lançado em DVD, mas deve ser publicado em dois volumes; o primeiro, ainda este ano, com o apoio do Funcultura. Quando perguntado sobre o porquê dessa reincidência do registro, da documentação e catalogação, o autor diz que o teatro vive uma eterna crise e trazer essas histórias mostra àqueles que hoje fazem a cena que é sempre possível ter ideias para seguir adiante. “Quando a gente olha o passado, vê que muita coisa se parece. E temos muito a aprender com ele.”

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MARIA CHAVES

CON TI NEN TE

Conversa

ARTES CÊNICAS

Uma rede que traga mais público Profissionais ligados à cadeia produtiva do setor se reuniram, a convite da Continente, para falar sobre a cena contemporânea em Pernambuco

Neste mês de março, trazemos o registro da nossa segunda Conversa, série de encontros com realizadores de seis segmentos culturais (Cinema, Artes Cênicas, Música, Artes Visuais, Literatura e Arquitetura) para discussão sobre temas pertinentes às suas áreas, dentro das comemorações dos 15 anos da Continente. Reunimos cinco nomes das artes cênicas para falar sobre a produção em Pernambuco nos gêneros que compõem essa grande chave. Parte dessa Conversa, realizada no Espaço Fonte, está nas páginas que se seguem, outra está disponível no site da revista e no YouTube, para gerar novos debates. A Conversa retorna com nova temática na edição de maio próximo.

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as primeiras referências do teatro pernambucano, com o Teatro de Amadores e o Teatro Popular do Nordeste, que são grupos que tiveram uma intensa produção e atuação até os anos 1970. Depois, isso vai se transformando, e vem o teatro de produtores, do final dos anos 1970 para os anos 1980. Os grupos continuam existindo, mas quem ativa a cena são os produtores. Do final dos anos 1980 para os 1990, vimos um teatro de diretores, grandes encenadores. Do final dos anos 1990 para os anos 2000, ressurge com intensidade o chamado teatro de grupo ou teatro de pesquisa. Vejo isso também no campo da dança. Esses grupos vão se tornando cada vez mais consolidados e profissionais, no sentido de atuarem na busca de modos de operar e vivenciar a prática artística. Por outro lado, vemos o teatro de produtores com dificuldades, porque não temos um campo de atuação, não somos Nova York, não temos uma Broadway.

MARIANA OLIVEIRA Para iniciar, gostaríamos que vocês falassem sobre a produção hoje, em Pernambuco. Como avaliam a cena contemporânea de teatro, dança, circo, ópera e de todas as linguagens que compõem o que chamamos de artes cênicas. MARCONDES LIMA Penso em fazer uma contextualização histórica. Assim, a gente pode dimensionar qual a característica de agora – se é que existe um traço que marca essa contemporaneidade. Teatro de grupo sempre existiu, é algo que nós temos desde

MARCELO SENA Na dança, a gente passou por um momento bem forte da ideia do solo, do bailarino-criadorintérprete, que tinha algo específico a dizer e só ele conseguiria colocar aquilo. Depois de um tempo, isso começou a ser mais dissolvido na própria forma dos grupos criarem. Hoje, alia-se à manutenção do grupo e às carreiras solo.

Convidados GALIANA BRASIL Com licenciatura em Artes Cênicas pela UFPE, especializações em Ensino da Arte e Literatura e Interculturalidade, integra, desde 2000, o quadro profissional do Sesc, atuando nas áreas de gestão, curadoria e pedagogia da arte.

GIORDANO CASTRO Ator, dramaturgo e arte-educador formado pela UFPE/ Universidade de Coimbra. Membro e um dos fundadores do Grupo Magiluth, tendo atuado em peças como Um torto, O canto de Gregório e Aquilo que meu olhar guardou para você.

MARCELO SENA Artista da dança, é graduado em Jornalismo, com especialização em Dança – Práticas e Pensamentos do Corpo pela Faculdade Angel Vianna/ Compassos Cia. de Dança. É diretor e artista pesquisador da Cia. Etc.

MARCONDES LIMA Mestre em Artes Cênicas pela UFBA e professor da UFPE desde 1992, é encenador, cenógrafo, figurinista, maquiador, ator e bonequeiro. Integra dois grupos de teatro: o Mão Molenga Teatro de Bonecos e o Coletivo Angu de Teatro.

MARIA PAULA COSTA RÊGO Coreógrafa, bailarina, diretora. Criou o Grupo Grial junto a Ariano Suassuna em 1997 e, desde então, realizou 12 obras. Tem passagens nos diversos festivais de dança e prêmios como o APCA 2013 de Intérprete Criadora (com o espetáculo Terra).

Mediação

GALIANA BRASIL Isso bate um pouco com a linha que Marcondes vinha traçando. Nessa época das companhias, era tudo muito difícil. Então começou-se a economizar no cenário, na quantidade de pessoas, no peso, até chegar ao “modelo” do ator e uma malinha, porque com isso é mais fácil de circular.

CHRISTIANNE GALDINO Jornalista, professora do curso de Jornalismo da Faculdade Joaquim Nabuco e mestre Comunicação Rural pela UFRPE.

MARIANA OLIVEIRA Editora-assistente da revista Continente, professora do curso de Jornalismo da Uninassau e mestre em mestre em Humanidades pela Universidad Carlos III de Madri.

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MARIA CHAVES

DIVULGAÇÃO

Conversa

CON TI NEN TE

“A gente lida com o espirituoso, no sentido de ter bom senso, bom gosto. A arte serve para isso” Maria Paula Costa Rêgo

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O PASTO ILUMINADO

Espetáculo do Grupo Grial, criado por Maria Paula Costa Rêgo e Ariano Suassuna em 1997

Algumas funções foram entrando no ostracismo. Não tem mais camareiras, maquiadores, isso é para grandes companhias. Acho que os anos 1990 foram muito marcados pelos festivais. Isso atendeu a uma carência que a gente tinha, porque lembro que reclamava por não poder ver as coisas, de ter que sair para assistir a espetáculos que não chegavam aqui. E aí os festivais surgem para cumprir essa lacuna, mas, ao mesmo tempo, concentram a produção. Agora observo: onde está o público das artes cênicas? Porque, se você abrir um jornal recifense fora da época dos festivais, não tem nada. Os grupos não fazem mais uma produção contínua. Tem a ver com uma coisa da cidade, que é muito cíclica. Ela tem uma política cultural que trabalha por ciclos: São João, Carnaval etc. Parece que o teatro e as artes cênicas internalizaram isso. E aí entram as leis de fomento, os dispositivos de financiamento, essa coisa toda que mudou muito a forma

de produzir e a forma de interagir com o público. Antes, dependia-se da bilheteria, então a forma de se relacionar com ele era uma questão essencial. As peças eram criadas para atrair. Agora, a produção virou um oroboro, a cobra que morde o próprio rabo. MARIA PAULA COSTA RÊGO Essa situação é complexa, porque, para mim, o Recife tem um pouco de tudo hoje em dia: performances, artes visuais, dança, arte multimídia, solistas, grupo grande, balé clássico, hip-hop… No Recife, cada bailarino tem a sua necessidade e está botando no mercado. Só que não tem mercado, no sentido de que não tem público. Apesar dos festivais, não são esses que pagam (os custos dos artistas), até porque eles não pagam bem. Por isso, acho que é preciso aliar essa política à criação de público. GIORDANO CASTRO A gente está chegando num momento de transição. Vai ter algum conflito. Esse panorama que Marcondes levanta, de alguma forma, está ligado a movimentos outros – políticos, econômicos, geracionais

– que influenciam o nosso trabalho. O ressurgimento dos grupos na década de 1990, chegando a 2000, está ligado a uma falência daqueles modelos e a uma necessidade de sobrevivência daqueles indivíduos, coisa que eles só conseguiriam juntando-se. Falo até do meu grupo, o Magiluth. A gente se pegou muito diante da necessidade de furar uma bolha mercadológica. Não temos como negar que o advento dessas leis de incentivo acabou mudando a lógica. Hoje, os grupos começaram a entrar numa situação em que aquilo que era uma salvação já não serve mais, já não dá conta desse mercado e das necessidades. Estamos num momento em que dizemos que não adianta mais a gente ter leis e prêmios. Isso paga algo, mas não sustenta. Eu não sei qual vai ser a hecatombe que vai acontecer para trazer o público de volta, mas a gente percebe que alguma coisa vai mudar nesse meio de produção. MARCONDES LIMA Temos que tratar de público para tudo. Penso que ele está aí sempre existiu, sempre esteve. O que talvez falte é uma estrutura para atuar

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BRENO CÉSAR/DIVULGAÇÃO

e agir de modo contínuo para que ele possa chegar até a gente. Cinema sem salas de exibição. Vai existir? Mesmo que seja uma sala alternativa, um teatro transformado em cinema, um auditório, mas tem que haver. Assim como o espaço para dança, teatro, ópera, e a gente está, infelizmente, em defasagem, num buraco sem fundo. Por isso, Galiana, as pessoas não fazem temporadas. Quando eu era bem jovem, os produtores ficavam em temporada. A gente via um teatro que tinha três sessões – manhã, tarde e noite. MARCELO SENA A gente começou a entender, tanto nós, artistas, quanto a gestão e o espectador, que o poder público tem um papel nessa cadeia, que é o da formação, mas não de uma formação somente da criança que vai crescer e pagar para assistir a um espetáculo; mas o próprio entendimento sobre por que eu preciso ver dança? Por que teatro? Qual é a “necessidade” disso na minha vida? Aí, penso no panorama de política pública cultural que a gente está vivendo, eu acho que tem uma estruturação de um pensamento, mas que de fato ainda não acontece. Uma das primeiras coisas para as artes cênicas é a manutenção dos festivais. E o que aconteceu ano passado? O Festival de Teatro foi transformado em bienal.

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MARIA CHAVES

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GALIANA BRASIL A lei que obriga a arte na escola vai fazer 20 anos, é algo muito novo. Que professor de arte está dentro da escola, formando toda essa geração, inclusive os novos secretários

Solo de Marcelo Sena traz o universo homoerótico, evitando tocar em clichês e referências óbvias

e essas pessoas que vão decidir e tomar essas decisões? Quer dizer, as questões são mais estruturais. O ter ou não ter os festivais é a pontinha do iceberg. O que deveria nos preocupar está mais submerso, é anterior a tudo isso.

MARCONDES LIMA Os gestores, na maior parte das vezes, não têm nenhuma formação artística. Parece que falta uma sensibilidade para apreciação e compreensão do que seja a função da arte na vida das pessoas. MARIA PAULA COSTA RÊGO Aí é onde entra a educação, mesmo. O povo não foi educado para apreciar a arte. A gente lida com o espirituoso do ser humano – não tem nada a ver com o espiritual no sentido religioso, mas o espirituoso no sentido de ter bom senso, de ter bom gosto, de saber distinguir. A arte serve para isso. E, aparentemente, não interessa que as pessoas tenham essa espirituosidade.

O HOMEM QUE AMAVA RAPAZES

“Não há críticos de dança na cidade. O que existe são pessoas que assumem a função de críticos” Marcelo Sena

MARIANA OLIVEIRA Vamos falar um pouco sobre a crítica. Quando olhamos para os cadernos de cultura de 50, 60 anos atrás, alguém publicava uma crítica e havia uma réplica, uma tréplica, e víamos um caderno de cultura sendo lugar de embate, de reflexão, uma coisa que realmente não se tem hoje. Como vocês analisam o papel do jornalismo como mediador e essa aparente ausência de crítica? MARCELO SENA O jornalismo fora do Brasil tem os seus cadernos, as suas revistas e suplementos especializados. Aqui, um caderno dentro do jornal especializado em cultura é pautado pelas empresas que trabalham com cultura. Então, quem tem mais dinheiro na indústria cultural é quem tem matéria.

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DIVULGAÇÃO

MARCELO SENA E se a gente está falando sobre valor-notícia, tem uma outra sutileza disso, que é a própria crítica dos espetáculos, que é uma tarefa difícil para o crítico, para quem se dispõe a escrever.

Conversa

CON TI NEN TE

MARIANA OLIVEIRA Nós temos críticos na cidade, hoje? Se afirmativo, vocês acreditam que eles teriam um papel relevante dentro da própria construção da linguagem cênica? MARCELO SENA Vou dar um exemplo de um projeto que fizemos no ano passado. Era um site com críticas de pessoas que escreveriam sobre 10 espetáculos durante o ano. Nesse diagnóstico de quem poderia escrever sobre os espetáculos, duas ou três pessoas eram as que tinham certa regularidade em redigir sobre dança, mas não se sentiam confortáveis em estar se colocando como críticos – ficava claro na própria postura da pessoa ao responder ao convite. É difícil encontrar alguém que tenha vontade, coragem e espaço para escrever, e ainda se intitule como crítico. A gente não consegue mapear críticos de dança trabalhando na cidade. O que existe são pessoas que eventualmente assumem a função de críticos.

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MARIA CHAVES

COLETIVO ANGU DE TEATRO

MARCONDES LIMA Eu batizaria essas pessoas de comentaristas. Eles comentam, mas não são críticos. Porque crítico pressupõe um pensador. No caso do crítico na nossa área, ele precisa ter esse pensamento voltado para as questões estéticas. Na maioria das vezes, o que a gente vê o crítico fazer é alguma coisa não comportada por esse pensamento, esse espaço da filosofia, da estética: é um caráter valorativo. Só que a estética não está para dizer se é certo ou errado, se é ruim ou se é bom. Então, a gente não vê argumentações, vê depreciações dos comentaristas.

O espetáculo Rasif - mar que arrebenta, baseado na obra de Marcelino Freire, foi dirigido por Marcondes Lima

MARCONDES LIMA O que salta, à primeira vista, é uma valorização do que é maior ou vem de fora. Dá-se um espaço de capa para uma exposição que está em Nova York, e uma nota para uma exposição que está acontecendo na esquina – às vezes, até mais importante, por várias questões. E a gente tem um espírito bem provinciano, que acha que ser caro é garantia de ser bom. Constróise uma imagem que depõe contra essa luta da gente de preservar uma imagem sobre o próprio trabalho. CHRISTIANNE GALDINO Fazendo um trabalho de assessoria, já ouvi dos jornalistas que não seria possível fazer a matéria, porque o espetáculo tinha sido divulgado na estreia. Deu na estreia, não vai dar mais nunca na vida. O Teatro de Santa Isabel passou um tempão sem poder ter espetáculo para infância. E aí volta a ter, e isso não é notícia? “Porque a gente já deu essa peça na estreia”…

“O circo, o teatro de bonecos e o teatro para criança são marginais. Poucos vão ver o que é feito para crianças ” Marcondes Lima

MARIA PAULA COSTA RÊGO Eu me pergunto se essa falta de crítico de teatro não é um movimento interno do jornal, que transfere essa pessoa para a seção de culinária e ela fica lá. Quando voltar para o teatro, vai voltar defasada. A gente vai ter uma certa simpatia, porque é uma pessoa dedicada, mas ela não vai saber fazer uma crítica, porque ela não se dedicou a isso. GIORDANO CASTRO Eu acho que tem as duas coisas. Estou falando de uma forma

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até leiga e leviana, mas não acredito que na formação em Jornalismo, aqui em Pernambuco, exista uma formação pra arte ou com esse olhar. MARIANA OLIVEIRA Não. O que a gente tem são especializações esporádicas em jornalismo cultural que abrem um campo muito grande. Mas ainda assim é outra coisa, porque nem todo jornalista cultural é crítico. GIORDANO CASTRO Passei um tempo fazendo a parte de comunicação do grupo. Eu fazia release, mandava, ligava para os jornais para conseguir uma pauta. Muitas vezes a resposta dizia que o assunto era com outra pessoa e chamaria um estagiário. Pegavam a pessoa que acabou de entrar no caderno e falavam “toma, isso aqui é teu”. CHRISTIANNE GALDINO Sem contar que isso acontece por telefone, nem sempre é olho no olho. A matéria é a partir do release ou de uma conversa rápida por telefone, no máximo. MAGILUTH

Giordano Castro é um dos fundadores do grupo e atuou em espetáculos como Aquilo que o meu olhar guardou para você

MARIANA OLIVEIRA Como é que se dá, hoje, esse diálogo entre as linguagens que compõem as artes cênicas? Existe disputa, articulação, diálogo entre dança, teatro, circo e ópera? MARCELO SENA Até mesmo dentro das artes cênicas é preciso entender as diferenças. A gente está aqui falando de artes cênicas, mas não tem ninguém em específico para falar pelo circo. Ou seja, mesmo dentro dessa própria área ainda há muitas especificidades. MARCONDES LIMA Eu não parei para refletir sobre isso, mas tenho uma impressão de que a aproximação e o diálogo se dão muito mais no interior ou no trabalho de alguns grupos de pessoas que criam – como a Cia. Etc., que flerta com cinema e com várias artes –, mas não existe um diálogo fértil, amplo, com manutenção, entre essas áreas.

MARIA PAULA COSTA RÊGO A gente não se fala. Se você perguntar para um produtor de cinema sobre uma bailarina ou uma atriz que possa dançar, ele não sabe. E o teatro não vai saber indicar, porque a gente não se conhece. O Janeiro de Grandes Espetáculos é o único momento em que há uma janela para conhecer o que um e outro estão fazendo. GALIANA BRASIL Acho que o teatro e a dança dialogam mais, e vejo mais cisão com teatro de boneco. MARCONDES LIMA Marco Camarotti chamava de teatro marginal ou áreas marginais. O circo, o teatro de bonecos e o teatro para criança são marginais. Pouca gente vai ver o que o colega está fazendo para crianças e, portanto, não tem como falar com propriedade sobre aquilo, bem ou mal, porque é preciso ir lá ver. Eu não vejo essa circulação tão intensa. GIORDANO CASTRO Às vezes, a gente está muito envolvido no próprio processo, porque, para manter um grupo hoje, com aquele núcleo fixo, não se pode aprovar um projeto somente, tem MARIA CHAVES

MAURICIO CUCA/DIVULGAÇÃO

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MARCONDES LIMA Ainda peguei algumas pessoas que chegavam para fazer uma entrevista comigo, como diretor, sabendo alguma coisa sobre o autor daquela peça, tendo lido a obra.

“Eu não sei qual vai ser a hecatombe que trará o público de volta, mas a gente percebe que algo vai mudar” Giordano Castro CONTINENTE MARÇO 2015 | 85

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RENATA PIRES/DIVULGAÇÃO

que se aprovar pelo menos uns quatro ou cinco. Então, estamos tão envolvidos naquilo, que acabamos ficando cegos para os outros. E não estou dizendo que isso é bom, mas acaba sendo uma necessidade de sobrevivência. Talvez isso vá causar algum problema em algum momento. A gente começou a se alimentar do próprio veneno. Essas leis e tudo o mais são um veneno que a gente mesmo criou. Por exemplo: tem um edital de ocupação de um espaço na Funarte, você ganha uma grana massa e vai ficar lá quatro ou cinco meses naquela ocupação. Eles te dão tudo, mas você chega num espaço que é morto, não tem vida e a responsabilidade de movimentação agora é sua. Aí você não consegue dar vida em seis meses, porque aquilo tem cinco anos e nunca se movimentou antes. GALIANA BRASIL É uma forma de cabresto também. A gente não pode querer ficar só brigando por festival, isso é pouco demais para uma classe que não tem público o resto do ano. Contentar-se com um mês de público é muito pouco. É isso que a gente devia

CON TI NEN TE

Conversa negociar, não o problema do meu grupo ou do outro. Falta essa articulação. CHRISTIANNE GALDINO O suporte texto ainda é majoritário, ou seja, os trabalhos de teatro daqui continuam utilizando muito o suporte texto? São teatros de texto? MARCONDES LIMA Existe uma variante. É como Maria Paula falou: existem vários teatros, danças, públicos e caminhos. Quando olhamos para o texto, podemos pensar naqueles textos autorais, clássicos, de uma dramaturgia já consolidada, a literatura dramática, mas existem também os grupos. Esse tipo de teatro está bem em desuso, você assiste a pouco clássico, pouca velharia de biblioteca sendo levada para cena. Você não vê mais Shakespeare, vê pouco. Quando é encenado, geralmente, é uma pesquisa. Mas tem uma dramaturgia construída pelo próprio grupo, consolidada enquanto

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texto dramático. Mas penso que isso talvez não seja o mais relevante. Hoje, há uma busca por temas, motivos, que são emergentes, que podem vir da literatura, de uma coisa que aconteceu no meio da rua. E a isso os grupos estão atentos, estão buscando. MARIA PAULA COSTA RÊGO O espetáculo de dança mudou. A coreografia do passo, do movimento, mudou. Hoje, o corpo vai além do movimento. A coreografia é outra história, não tem nem mais nome de coreografia, porque a gente quer outra coisa. No teatro, certamente, a palavra ganha outro lugar na cena. A palavra não é só a palavra, é uma coisa maior. GIORDANO CASTRO Às vezes, a palavra está ali, mas talvez ela não seja o alicerce daquele trabalho. Chegar na palavra, no teatro, pode vir antes ou depois. Pode estar ou não estar. Posso falar, por exemplo, do Aquilo que o meu olhar guardou pra você, em que a palavra surgiu depois. Primeiro, surgiu o encontro. Dele foram surgindo palavras e o trabalho tem várias dramaturgias

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PALCO GIRATÓRIO

Galiana Brasil é coordenadora e curadora do festival em Pernambuco

dentro daquilo ali. Você pode assistir ao trabalho e acompanhar a dramaturgia das músicas, da luz, dos corpos. GALIANA BRASIL Historicamente, há uma época texto-centrista no teatro. Isso já foi superado. Não é judicativo, o fato de ter ou não palavra, de estar ou não em torno de um clássico. Não é um problema que a palavra venha depois ou que o grupo se reúna em torno da palavra. Para mim, a questão é como isso vai ser levado, se a palavra estará bemcolocada – ou a não palavra também. Porque, se você tirar o texto e o que colocar no lugar não for potente, não for bem-colocado, é um problema. MARCONDES LIMA Há um lugar de ocupação da palavra, mas há uma inabilidade ou uma falta de técnica em lidar com ela. Se você não constrói isso, é como não preparar o corpo de forma intensa, necessária, independentemente da corrente de trabalho de corpo, para

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“Não podemos ficar só brigando por festival, isso é pouco para uma classe que não tem público o resto do ano” Galiana Brasil você fazer um espetáculo de dança conceitual. As pessoas já se jogam num campo de exploração sem um domínio técnico, aí começam a haver os problemas. As pessoas da velha guarda têm um domínio maior sobre as palavras e, bem objetivamente, tem um domínio maior sobre ponto, vírgula, exclamação e interrogação enquanto leem o texto. Isso vem da prática. MARCELO SENA Tive uma conversa com Raimundo Branco, que é um coreógrafo daqui, e ele me perguntou o que eu achava que estava faltando para as pessoas de dança da cidade. E respondi: faltam mestres. Faltam as referências de quando se tinha uma escola a ser seguida. Parece que a gente entrou nessa estética contemporânea de possibilidades individuais, em que não adianta ter mestre, porque é um de cada vez e cada um com sua dramaturgia, com sua propriedade corporal, com o que se está querendo dizer com aquilo, e muitas vezes aquilo não serve para outro grupo, para o trabalho do outro. Então, aqueles que poderiam ser referências são muitas vezes tidos como não referências,

por negação, e não por identificação. Ele não é meu mestre porque eu não me identifico, ele não é meu mestre porque, para mim, não interessa ter mestre. MARCONDES LIMA Penso que esse lugar de referência é uma coisa importante e as referências não são necessariamente para você segui-las, mas para tê-las como um parâmetro. Vejo muito esse espaço da arrogância do conhecimento. A gente vive um momento em que as pessoas, muito erroneamente, acham que sabem de muitas coisas, quando não sabem. Ao mesmo tempo, em termos pedagógicos, esse espaço da arrogância traz, no campo utópico também, um espaço de construção de crescimento. Alguns alunos que passaram por minha sala, que tinham esse traço de arrogância, terminavam se dando conta disso, extrapolando e transformando isso. Mesmo nesse lugar nevrálgico, existe ainda uma possibilidade.

gente conversou, como é que a produção local está situada em termos de Brasil?

GIORDANO CASTRO Entrei na universidade com 17 anos, perdido. Quando cheguei, foi um tapa na minha cara a primeira aula de Camarotti. Ele dividiu o semestre inteiro: quem quer Meyerhold, quem quer Grotowski, quem quer Stanislavski? Todo mundo gritando eufórico e eu não sabia quem era ninguém. O pessoal todo sabia. A partir daquele momento, quis buscar tudo que não sabia. E acho que a universidade lhe dá liberdade para fazer o que você quiser, inclusive nada. Então, essa formação depende muito de buscas individuais. Fiz meu curso de cênicas em seis anos, mas fiz intercâmbio, fui monitor de Marcondes, fiz grupo de estudos e absolutamente tudo que dava para fazer dentro da universidade, inclusive montei um grupo dentro dela. E o Magiluth, quando surgiu, era para ser uma válvula de escape de tudo aquilo que a gente aprendia no semestre, que não tinha condições de exercitar, e a gente exercitava dentro do grupo. Se você conseguir se agarrar às possibilidades, consegue se formar dentro do curso de licenciatura. Tem um aprimoramento estético visual. Eu sinto falta, hoje, apesar de não estar dentro da universidade, de ver as pessoas assistindo aos espetáculos.

MARCONDES LIMA Somos muito criativos e fazemos milagre com tão pouco. Vivi uma experiência lá na universidade, com o Ópera Estúdio. Fizemos uma montagem que foi levada como referência, apresentada numa universidade americana como sendo uma experiência, e todos ficaram surpresos, perguntando quantos milhões ou milhares de dólares tinham sido gastos, e a gente fez com o que eles pagam como cachê para três técnicos. Bacana, isso é um mérito. Mas poderia fazer mais e melhor se tivesse mais técnica, mais condições. É um lugar do qual a gente tem que fugir, esse de que somos geniais, criativos e podemos dar o pulo do gato.

CHRISTIANNE GALDINO Apesar de todas as dificuldades sobre as quais a

MARCONDES LIMA Eu não colocaria em termos de parâmetro da gente em relação ao outro. O que sei é que o que se faz aqui está se fazendo em Londres, Tóquio. Não estamos mais num momento em que as coisas estão distantes. Estamos atrasados, talvez, em termos de condições. Mas no aspecto da experimentação, da aproximação ou das pulsões, a gente está vivendo ao mesmo tempo. Penso até que, em algumas esferas e tomando alguns exemplos, a gente está bem à frente. MARIA PAULA COSTA RÊGO Quando você fala em criatividade, sim. Mas, na realização, acho que os nossos corpos, enquanto bailarinos, atores, diretores e coreógrafos, carecem de formação, de lugar de experimentação.

GIORDANO CASTRO Isso bate na questão que conversamos muito dentro do Magiluth, em relação à profissionalização. Quando começarmos a mudar nosso pensamento em relação ao fazer, de que somos profissionais e não fazemos por hobby ou porque gostamos ou como uma segunda ocupação, acho que começará a mudar também o nosso desenvolvimento artístico. Enquanto a gente não colocar o trabalho como fundamental, precisando ter oito horas disso, a gente não vai dar esse pulo do gato. No Magiluth, somos sete pessoas que vivem exclusivamente para o grupo.

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CON TI NEN TE

Criaturas

Elis Regina por Kleber Sales

Elis Regina (1945-1982) tinha um apuradíssimo senso rítmico-melódico-estético, uma afinação e dicção

impecáveis, mas nenhum desses atributos seria suficiente para transformá-la na “maior cantora do país”, caso não tivesse sabido explorar, com precisão, os diversos sentimentos das canções que interpretou e se doado por completo em cada uma delas. Em apenas 36 anos de vida, ergueu, com sua voz, um monumento à emoção.

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