Continente #145 - Babel sonora

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estava bem longe de casa: “Tenho duas amigas italianas que vivem em Paris. Há um par de anos não se conheciam, não tinham se visto, eu as apresentei num verão, eu fui o vínculo e temo que continue sendo, embora elas não tenham voltado a se ver. Desde que se conheceram, ou melhor, desde que se viram e que ambas sabem que conheço ambas, suas vidas mudaram rápido demais e não tanto paralela quanto consecutivamente. Não sei mais se devo romper com uma para libertar a outra ou mudar o viés da minha relação com a outra para que esta desapareça da vida daquela”. Perceba por esse parágrafo o quanto a certeza do “Tenho duas amigas italianas que vivem em Paris” se esfarela

Leitura com uma rapidez impressionante. Já não sabemos mais sobre o que o narrador está falando e justamente por isso prosseguimos. Não é a dúvida sobre o fim que move seus livros, mas a incerteza incômoda de como tudo aquilo começou. Ou melhor: por que tudo aquilo começou?

TRIÂNGULO

O princípio de Os enamoramentos não foge à cartilha de incertezas de Marías: “A última vez que vi Miguel Desvern ou Deverne foi também a última vez que sua mulher, Luisa, o viu, o que não deixou de ser estranho e talvez injusto, já que ela era isso, sua mulher, e eu, ao contrário, era uma desconhecida e nunca havia trocado uma só palavra com ele. Nem sabia seu nome, só soube quando já era tarde, quando apareceu sua foto no jornal, esfaqueado”. Como saber o real foco de interesse do autor nesse emaranhado de informações? Seria o foco a narradora, a mulher que perde o marido ou justamente o morto? Os enamoramentos parte da perspectiva discreta, ainda que inquisidora, de uma mulher fascinada por um casal de estranhos que observa todos os dias num café junto do seu trabalho. A cumplicidade entre os dois parece confortá-la a

respeito de algo que nem ela própria ainda compreende. Precisa apenas voltar e conferir se a vida daqueles desconhecidos permanece sob algum estatuto de proteção e de paz, na esperança de ser contaminada pela aura alheia. No entanto, o marido é assassinado por um maluco numa rua próxima ao café que parecia ser o porto seguro de todos os dias. Quebrado o inusitado “triângulo”, o livro começa a nos oferecer um incômodo questionamento sobre o lugar que acreditamos ocupar na vida dos outros: seríamos mais descartáveis do que imaginamos ou como substituir alguém que concordou em ser a nossa parede, teto e chão? Como seguir adiante e encontrar outra certeza corporificada num amante ou mesmo em estranhos casuais, já que são tão frágeis os laços apenas visuais ou mesmo todos os laços? Questões que Marías lista com uma clareza inquietante: “Mas desde o início sabemos – desde que morrem – que já não devemos contar com eles, nem para a mais ínfima das coisas, para um telefonema trivial ou uma pergunta boba (‘Lembrou de deixar a chave do carro?’, ‘Que horas mesmo as crianças saíam hoje?’), só por perguntar, por nada. Nada é nada. Na realidade, é incompreensível, porque supõe ter certezas, e isso vai de encontro à nossa natureza: a certeza de que alguém não vai mais vir, nem falar, nem dar um passo, nunca mais – nem para se aproximar nem para se afastar – , nem para olhar para nós, nem desviar a vista. Não sei como resistimos a isso, nem como nos recuperamos. Não sei como por vezes nos esquecemos, quando o tempo já passou e nos afastou deles, que ficaram parados”. É a instituição dos que “ficaram parados” que move nossa inquietação a partir desse momento. Como seguir alguém que não se mexe? Como prosseguir, se queremos continuar parados? Quanto tempo leva para que voltemos a nos mover outra vez? Para responder a essas perguntas, a novela de Balzac parece ser essencial e passamos a acreditar que Marías constrói aqui uma obra sobre como a literatura pode ser uma prótese para aqueles que se

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sentem decepados, e não apenas um mero diálogo entre dois (ou mais) autores, quando no final das contas toda literatura é um grande coro de vozes. E persistir na tecla desse coro é uma saída de incêndio fácil, mas falsa, ou melhor: superficial.

METALITERÁRIO

Percebi o engano da minha primeira leitura de Os enamoramentos, quando li uma entrevista recente de Marías, publicada no Estadão, na qual ele entregava um pouco do seu jogo. A declaração de Marías iluminou minha percepção não apenas sobre sua obra, mas sobre a literatura de uma forma mais ampla. Suas palavras foram as seguintes: “Quanto a Balzac e seu livro, não há nada de metaliterário na sua inclusão em Os enamoramentos. Simplesmente, seus personagens o leem, como faz muita gente na vida, e falam de

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