Continente #029 - O enigma chinês

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COMPORTAMENTO 89 » Foto: Rogério Reis/ Tyba

precedentes, materializando antigas aspirações que nunca tinham passado da esfera do mito e do sobrenatural, não é menos correto afirmar que os mecanismos de produção, distribuição e apropriação dessa tecnologia transformaramse em instrumento de pressão política e opressão social, concorrendo de forma vital para uma globalizante disseminação da miséria e da exclusão”. Para traçar essa linha histórica, os autores revisitam Donga, Lima Barreto e Aluísio de Azevedo, que relatam o modo de formação das favelas cariocas e dão uma radiografia do lugar: O samba não veio do morro, ele foi para o morro... ele apareceu na Cidade Nova. Cidade Nova é Senador Pompeu, Travessa do Bom Jardim, Largo do Depósito, Saúde, Barão de São Félix, rua do Sabão, rua do Costa... e no Centro tinha a rua da Alfândega e a rua do Hospício (atual Buenos Aires). Aquela parte ali, de onde é a Rio Branco para cá, ali era tudo negro, tudo africano que morava ali, baianos... aí se formou tudo. (Donga). Assim começa a se definir o Rio de Janeiro de hoje, num contorno geopolítico que traduz o projeto dos “higienistas” Francisco Pereira Passos e Oswaldo Cruz, promotores de uma “limpeza” urbana que pretendia modernizar a cidade, adequando-a em beleza aos moldes parisienses. Ao mesmo tempo em que construía grandes prédios, botava abaixo os cortiços, levando essa população para os morros, onde começou a construir barracos tão ou mais insalubres — o termo favela é trazido da Bahia pelas tropas egressas da Guerra de Canudos, que se apropriaram do Morro da Providência e ao redor das suas residências construíram os barracos. Rapidamente o povo estabeleceu uma relação metonímica, passando a chamar o Providência de “Morro da Favela”. Começam, então, a ocorrer vários crimes nesses locais, que em nada se diferenciavam dos ocorridos no resto da cidade. No entanto, o preconceito originado da escravidão e fortalecido pela “reforma urbana” sobe os degraus do estereótipo, levando à associação direta local-crimes. Nesse contexto, o juiz de menores do Rio de Janeiro, Mello Matos, cria o

Contraste social modelo da “limpeza urbana” promovida no Rio de Janeiro é adotado em todo o país

Código de Menores do Brasil. Começa aí uma trajetória político-social que põe crianças e adolescentes como objetos de tutela do Estado, acentuando o estigma de que a população pobre, além de merecer cuidados, deve ser alvo do receio da classe dominante. Tal paradigma começou a ser rompido com o advento do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, lei de 1990 que garante a prioridade absoluta a crianças e adolescentes e os enxerga como sujeitos de direitos. Mas são apenas doze anos de Estatuto contra 500 da formação de um povo que sempre estabeleceu relações baseadas no poder, na competitividade e na discriminação; permeada de contradições e arbitrariedades. Instigados por essas incômodas situações, os argumentos arrolados pelos autores — que incluem dados estatísticos, depoimentos de 88 jovens sobre a vida no tráfico e as implicações do uso das drogas na saúde dos adolescentes, relatadas no capítulo “Coração de bandido é na sola do pé” — provocam a compreensão de que a questão do jovem envolvido com o tráfico não pode ser analisada de forma estanque, como se fosse um mero fenômeno de fim de século, a ser resolvido somente com a intensificação da repressão: é um problema estrutural, contextualizado nas relações sociais e econômicas. Mas fica o questionamento: qual o plano de distribuição da obra? Como ela pode contribuir para minimizar a intolerância aos jovens agentes, que são, sobretudo, vítimas de violência? Que caminhos ela vai percorrer para contribuir com a formulação e a efetividade das políticas públicas voltadas para este público? Continente maio 2003


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