Hyoantropia

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Hyoantropia Rodrigo Junqueira1

RESUMO: Yara, uma criança parte humana, parte chuva, precisa retribuir um favor que deve a outro ser fantástico, um amigo que ela esconde de todos, inclusive de sua própria mãe. O pagamento da dívida, no entanto, a leva aos extremos no processo em entender o que é ser uma ninfa dentro de uma sociedade moderna, que já esqueceu e não tem mais lugar para os antigos seres e costumes. PALAVRAS-CHAVE: Conto de fantasia. Ficção brasileira. Ninfa da chuva. — Yara, já cansaste de ouvir isso mas não me custa nada repetir: sem chover, OK?! Só faltam umas semaninhas. Combinado, filha? — foi a última coisa que as orelhas pontudinhas escondidas debaixo das mechas de cabelo grosso e preto ouviram, antes da menina assentir apressadamente com a cabeça e murmurar um trovãozinho. Em seguida, despencou correndo da caminhonete com a mochila desenhando uma sequência de ondas verdes no ar, em direção aos portões da escola. A mãe suspirou em estalos eletrostáticos, mas confiava na educação que dava à filha. Além disso, mesmo com apenas 9 anos de idade, a pequena já parecia entender o que significava ser uma hyoantropa. Yara, por sua vez, não tinha tempo a perder: aquele era o dia de volta às aulas e queria pagar logo sua dívida com Khyanjê (ficar devendo para diabrete não era bom). Sentia-se preparada para o retorno à escola, pois ela e a mãe haviam cuidadosamente realizado todos os rituais durante a semana anterior: o Marumpoyjã, apesar de demorado e fedido por conta dos ratos putrefatos pendurados em seu pescoço, era bom para dar boa sorte a novos ciclos que se iniciavam; o Kajumpoyjã, favorito de Yara pelas canções entoadas pela mãe e pelas visitas aos abrigos de cães abandonados, era indicado para ajudar a segurar a vontade de chover; e só por via das dúvidas, desceram até a pracinha do condomínio e quebraram um galho de cada árvore, enterrando-os depois em um buraco feito embaixo de uma poça d’água, salpicada com sangue de gato da vizinhança: o Tudampoyjã era bom para evitar ataques de fúria. “Só por via das dúvidas, né?”, repetia sua mãe, mas Khyanjê disse que o que ela queria mesmo eram noites de sono silenciosas. O primeiro amigo que Yara identificou nos corredores da escola foi Enzo. Ele era branco como todos os outros, mas seu rosto parecia respingado por gotas de barro. Suas sobrancelhas pareciam duas taturanas vermelhas se beijando e seu olho direito cismava em olhar sempre

1 Bacharel em Ciências da Computação pela USP. E-mail: rodrigo.fpjunqueira@gmail.com


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