ClimaCom | Dossiê Vulnerabilidade | ANO 3, N. 5, 2015

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ENSAIO

porão” (BACHELARD, s.d., p. 31). Mas Bachelard não deixa de salientar que nossa civilização põe luz em todos os cantos. A claridade como armadilha. Crary nos dá exemplo desta vontade de uma constante iluminação, de um desejo de permanecer acordado, pois, para o capitalismo, o espaço temporal do sono seria improdutivo –a cada momento é colocada no mercado uma novidade farmacológica para destruir o sono, para que possamos ficar acordados uma maior quantidade de horas, assim, produziríamos mais, compraríamos mais. O sono seria, então, o último espaço não colonizado, não transformado em mercadoria, tornando-se, desta forma, um estorvo para o capitalismo, o sono seria uma afronta à doença das sociedades que poderíamos chamar, criticamente, de hiperdesenvolvidas (em contraponto a um subdesenvolvimento). Poderíamos exemplificar esta lógica com uma tríade: o soldado, o trabalhador e o consumidor sem sono. Mas, também, é necessário salientar práticas de uma constante tentativa de minar a experiência do sono: 1) o soldado sem sono; 2) a experiência russa de criar um satélite para refletir a luz do Sol na Terra a noite; 3) e finalmente a prática da tortura. O primeiro exemplo oferecido por Crary, numa tentativa de construir um indivíduo sem sono, aborda um empreendimento militar. O autor salienta o estudo do Departamento de Defesa dos Estados Unidos focando o pardal de coroa branca que tem a capacidade de permanecer acordado durante sete dias, quando faz sua migração. Estudar estes pardais teria como intuito a produção de um soldado7 sem sono. Este exemplo faria parte de uma gama de esforços em controlar o sono humano – no caso do ambiente militar, isso faria ecos em soldados

O sombrio sonho d’A queda do céu

mais produtivos. O complexo científico-militar norte-americano sabe que nem sempre será possível enviar drones (veículo aéreo não tripulado) na produção de suas guerras, assim, este soldado insone é necessário. Um apontamento interessante de Crary é que “a história mostra que inovações relacionadas à guerra são inevitavelmente assimiladas na esfera social mais ampla, e o soldado sem sono seria o precursor do trabalhador ou do consumidor sem sono” (CRARY, 2014, p. 13). Os exemplos da produção tecnológica e cultural no ambiente de guerra que foram incorporados na esfera social são inúmeros, porém, bastanos lembrar de um pequeno fragmento bélico que está dentro da casa de grande parte da população mundial: a internet. O segundo exemplo, bastante esdrúxulo, mas possível de aplicação, é a experiência russaeuropeia no final dos anos de 1990. O projeto era colocar satélites em órbita que refletiriam a luz do Sol para a Terra. Crary salienta os seguintes aspectos desta empreitada: O esquema exigia uma corrente com vários satélites em órbitas sincronizadas com a do Sol, a uma altitude de 1700 quilômetros, cada satélite equipado com refletores parabólicos retráteis feitos de material finíssimo. Quando completamente abertos, cada satélite-espelho, com duzentos metros de diâmetro, teria capacidade de iluminar uma área de 25 quilômetros quadrados da Terra com uma luminosidade quase cem vezes maior do que a da Lua. O impulso inicial do projeto era fornecer iluminação para a exploração industrial e de recursos naturais em regiões remotas com longas noites polares na Sibéria e no leste da Rússia, permitindo trabalho noite e dia ao ar livre. Mas o consórcio acabou expandindo seus planos para incluir a possibilidade de fornecer iluminação elétrica, o slogan da empresa era luz do dia a noite toda (CRARY, 2014, pp. 13-14).

ClimaCom Cultura Científica - pesquisa, jornalismo e arte Ι Ano 3 - N. 5 / Abril de 2016 / ISSN 2359-4705

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