Caravela | Edição 02 | 1º Semestre de 2013

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EDIÇÃO

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1º SEMESTRE

2013

porque “navegar é preciso”

Imagem: Projeto Identidade Carioca

Ialentialaale Carioca

Da Rocinha a Copacabana, o Rio de Janeiro fica ainda mais lindo com a autoestima e a diversidade do povo da cidade maravilhosa Arte na periferia: artista conta porque trocou as exposições internacionais por oficinas na comunidade Rio+20: a constatação do desinteresse dos governantes e do engajamento da sociedade nas questões socioambientais


Mande seus textos, ilustrações, ensaios, comentários e sugestões de pauta para: redacao@revistacaravela.com. E acesse nosso blog: www.revistacaravela.com


A beleza da alma carioca

Tripulaçao

Editor Bruno Ferreira Projeto gráfico Manuela Ribeiro Arte Manuela Ribeiro Colaboradores desta edição Antonio Lino Evelise Barboza Gabriela Pessoa Hugo Paz Jackson Boa Ventura Julia Dávila Rafael Martini Simone Nascimento Vanessa Balsanelli Wanderson Viana Jornalista Responsável Bruno Ferreira (MTb 62552/SP)

Este número da Caravela talvez seja o mais poético de todos. Isso porque apresentamos, no decorrer das páginas da edição, alguns trabalhos em verso de Hugo Paz e Antonio Lino, nossos colaboradores desde a edição zero, e também de Jackson Boa Ventura, que reverencia a cidade onde é radicado, o Rio de Janeiro. A cidade maravilhosa é tema não apenas do poema Nas Esquinas do Teatro Municipal, mas também do ensaio fotográfico Identidade Carioca, nosso conteúdo de capa desta edição. Ambos são trabalhos de Jackson, mas para constituir o seu ensaio fotográfico, ele contou com a colaboração de três amigas. O trabalho foi exposto no espaço Oi Futuro Ipanema, zona sul do Rio, em fevereiro e junho de 2012, e também na comunidade da Rocinha e na praia de Ipanema, num varal de fotos. A proposta do ensaio foi a “reconstrução e afirmação da autoestima do povo carioca”. Isso porque, segundo o próprio idealizador do ensaio, o Rio de Janeiro é internacionalmente conhecido pelas belezas naturais, pelo Cristo Redentor e pelas comunidades, mas nunca pelo povo. Tratase de um reconhecimento mais que merecido! Do Rio de Janeiro vamos a São Paulo, onde conversamos com a artista plástica Mônica Nador, que insatisfeita com o circuito da arte e, ao mesmo tempo, movida pela solidariedade, muda-se para a periferia da zona sul da capital paulista, onde estabeleceu uma ONG dedicada à democratização da arte. Esperamos que você aprecie mais este passeio a bordo da nossa nau. Boa viagem!

Bruno Ferreira Editor


Serviço de Bordo

06. Papo na Proa. Artista plástica movida pelo ideal da

solidariedade refugia-se na periferia de São Paulo para se dedicar à democratização da arte

12. E Vanessa Balsanelli apresenta o trabalho de estilistas que

se dedicam à Moda Inclusiva

15. Hugo Paz se entristece com o teor de uma Notícia barata 16. IDENTIDADE CARIOCA

O Rio de Janeiro é muito mais que Cristo Redentor, favelas e belas paisagens. Talvez a principal beleza da capital fluminense esteja nas características do povo carioca

22. Rafael Martini se anima com o clima do Carnaval de Salvador 24. Enquanto Evelise Barboza e Julia Dávila fazem um balanço

da Rio+20

30.

E o tema Golpes de Estado na América Latina é objeto de análise de Gabriela Pessoa

32. Ainda Menino, Bruno Ferreira relembra com saudade a

época de escola

33.

E Jackson Boa Ventura poetiza sobre o que vê Nas Esquinas do Teatro Municipal e sobre sua Confusão libertiginosa

34. O Lápis de cor de pele, de Simone Nascimento, mostra

como o racismo começa na infância

35. E Antonio Lino revela em versos como plantou um lindo Pé-de-céu.


Ponto de Partida

Autoritarismo e controle Apesar de escrita em 1948, a obra de George Orwell continua sendo referência para a discussão de controle social. O romance 1984 aborda o contexto de um regime político extremamente autoritário e repressivo que o autor inglês cria para, a partir do personagem central Winston Smith, detalhar como uma oligarquia dominante é capaz de persuadir, oprimir e controlar toda a humanidade com medidas extremas. O monitoramento do comportamento humano, por meio de uma tela (teletela) existente em cada domicílio, a modificação frequente de arquivos históricos de acordo com a conveniência do grupo dominante, e a proibição do uso de palavras e a menção a pessoas que afrontam a ideologia castradora do regime vigente eram alguns dos métodos utilizados para limitar os seres humanos. O termo “Big Brother” tem origem nesta obra. Tratava-se da autoridade máxima da sociedade, que controlava a tudo e a todos, e a qual todos deviam obediência para não sofrer a consequência do esquecimento. Isso porque, as pessoas que não seguiam as determinações do “Grande Irmão” não eram apenas mortas, mas eliminadas da memória social, como se nunca houvessem existido.

Educação sob novo prisma O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Muniz Sodré propõe uma visão comunicacional da educação em sua mais recente obra Reinventando a Educação – Diversidade, descolonização e redes, da Editora Vozes. De acordo com o autor, a educação necessita rever seus paradigmas em razão da presença das novas tecnologias da comunicação no cotidiano da sociedade, especialmente a internet. A obra propõe uma reflexão acerca do modelo atual de educação, segundo Sodré ainda conservadora, excludente e pouco aberta à diversidade.

Cinema participativo O documentário Life in a Day (A Vida em um Dia) é a prova de que o acesso às novas tecnologias da comunicação pode fazer do cidadão comum um verdadeiro cineasta. O longa-metragem mostra como foi o dia 24 de julho de 2010 de diversas pessoas de 192 países, de diferentes etnias e hábitos, que registraram suas atividades em vídeo nesse dia e enviaram as imagens aos produtores do documentário, que afirmam terem recebido 85 mil vídeos, o equivalente a 4.500 horas de imagens. O documentário foi feito em parceria com o site Youtube, onde está disponível gratuitamente. Há ainda o DVD, lançado no ano passado no Brasil.

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Papo na Proa

ENTREVISTA: BRUNO FERREIRA | IMAGENS: ARQUIVO JAMAC

Colorindo um mundo solidário “A gente tem que ser solidário, cara! Tem que ensinar solidariedade. Nelson Rodrigues disse que o brasileiro só é solidário no câncer. E é verdade!”

A

pesar de ser no mesmo bairro onde resido há um ano, não tinha uma noção exata do local onde encontraria a minha entrevistada. A organização fundada por ela fica numa casa de esquina, de “muro todo colorido”. O ponto de referência dado por Mônica Nador não poderia ter sido melhor. Avistei o tal muro a muitos metros de distância. Já próximo à casa, antes mesmo de tocar a campainha, percebi o movimento do local. Batidas de martelo indicavam algum tipo de obra em andamento e latidos de cães davam a impressão de que aquele espaço era mais do que um ambiente profissional. Mônica, além de trabalhar, mora na casa de 200 metros quadrados, “num buraquinho ali atrás”. Com voz firme e jovial, a artista plástica de 57 anos me recebeu com um entusiasmo tímido, talvez típico de uma filha de húngaros. Há oito anos, decidiu sair de São José dos Campos (SP) e abandonar o circuito de arte para se estabelecer na periferia da zona sul de São Paulo por uma questão puramente ideológica. De convicção socialista, acredita que quem estudou tem por obrigação repartir o conhecimento que possui com quem não tem. Mudou-se para o Jardim Miriam, bairro próximo à divisa com o município de Diadema para cumprir com a missão de “repartir a sua renda” com os mais pobres. Por isso, em 2004, fundou o Jardim Miriam


Arte Cluble (Jamac), onde envolve moradores da região em atividades com estêncil, técnica em que se aplica tinta em um molde com o formato de uma figura que se deseja reproduzir. Hoje, um dos principais desafios da organização é a garantia da sustentabilidade por meio de uma recém-instalada estamparia no local. Mônica Nador é conhecida pelos projetos artísticos voltados à moradia e territorialidade que desenvolve. Um deles é o Paredes Pinturas, que foi realizado no Jardim Santo André, periferia de Santo André (SP), em parceria com a CDHU. A ação na comunidade do município do ABC paulista não apenas preencheu com cor e criatividade as moradias populares, mas sobretudo devolveu a autoestima dos moradores. Durante o bate-papo de quase três horas com Mônica, num sábado chuvoso de janeiro, ela conta casos de pessoas que se reencontraram nas atividades artísticas de seus projetos pessoais e nas do Jamac, que até pouco tempo envolvia a comunidade também na linguagem do cinema. Muito mais que a experiência da ONG, a artista dá uma aula de militância política. Admiradora assumida de Che Guevara, cita Darcy Ribeiro, Roberto Schwarz, Nelson Rodrigues e o filósofo húngaro da educação Istvan Mézaros para expressar sua indignação com as injustiças sociais e com o ser humano, segundo ela, ainda avesso à solidariedade.

Caravela: Como foi que você escolheu o Jardim Miriam para estabelecer uma ONG? Mônica Nador: Eu escolhi porque eu sou desse circuito de artistas de São Paulo, dos museus e galerias. Então, eu vim fazer um trabalho de arte na ONG da Milu Vilela, que até então era diretora do MAM. Eu vim pra ficar um ano. Eu já tinha feito algumas ações, por exemplo, em uma favela em São José dos Campos, e eu não estava satisfeita com o modelo que o circuito oferece que é de ir, fazer uma ação e voltar para o seu lugar. Eu queria ficar no lugar. Queria fazer uma ação permanente? Sim, permanente, e ver virar! Resolvi inventar outro formato pra mim. Precisamos reinventar a arte no Brasil, mas acho que já avançamos. Isso porque estamos consumindo uma noção de cultura europeia. E isso sempre foi assim, desde o começo do Brasil. Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, diz que o Brasil não foi descoberto e não fica naquela coisa idílica de “Novas Índias”. Quando fomos descobertos, já estava sendo organizada uma sociedade capitalista megaevoluída e a gente já nasceu pra ser a periferia, porque os caras estavam precisando de mais área. Mas eu não consegui ser conivente com isso, eu não conseguia achar normal ver criança morrendo na rua e passando fome. Eu acho que quem estudou no Brasil tem obrigação de distribuir EDIÇÃO 02 | 1º SEMESTRE DE 2013

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“Os fins justificam os meios? Eu acho que a gente não está mais nessa. A gente deveria prestar mais atenção no meio, porque olha a quantidade de exclusão social que o modelo vigente produziu.” o que aprendeu, sabe? Eu acho o ser humano muito ruim. E eu sou a primeira geração da minha família, que é húngara, aqui no Brasil. Eu não cheguei a desenvolver o cinismo constituinte da sociedade brasileira que o Roberto Schwarz, em Ao Vencedor as Batatas, se refere. Ele faz uma análise do pensamento da classe média, da burguesia aqui do Brasil, que diz que tudo da Europa é bom e que aqui, a colônia, é ruim; além da vergonha que se tem do Brasil...

Quando você veio pra cá, já veio com a ideia de fundar a ONG? Eu vim para isso! Só inventei de fazer porque eu ficava cutucando umas pessoas lá da zona oeste, onde eu morei, e antes mesmo de já ter o lugar já tinha um estatuto.

É interessante perceber que nos seus projetos procura-se valorizar mais o processo do que o produto final, não é? E como é que se muda essa visão que o próprio Isso aí é uma coisa que tem que ser feita, porque a Brasil tem de si mesmo? valorização do produto é a valorização da mercadoria. A gente tem que ir contaminando as pessoas. Existe Os fins justificam os meios? Eu acho que a gente não um livro muito legal de um cara chamado Istvan Mé- está mais nessa. A gente deveria prestar mais atenção zaros, um filósofo da educação húngaro maravilhoso. no meio, porque olha a quantidade de exclusão social Ele tem um livro chamado A Educação para Além que o modelo vigente produziu. Por isso que não me do Capital, em que ele fala de uma educação, seja lá interessa inventar uma linguagem mais elaborada, o que onde você estiver, que deve ser feita de outro jeito, com me interessa agora é distribuir conhecimento para as solidariedade. A gente tem que ser solidário, cara! Tem pessoas que não tiveram acesso. A gente precisa correr que ensinar solidariedade. Nelson Rodrigues disse que atrás do prejuízo. Eu não consegui ficar acomodada no meu canto. o brasileiro só é solidário no câncer. E é verdade! 08 24

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Você sempre foi idealista? Antes disso, como você era? Eu era uma artista, pintora, fiz a FAAP, era do circuito, mas era muito insatisfeita, eu quase mudei de profissão. Primeiro, porque era muito difícil viver de pintar tela. Eu estava de saco na Lua disso. Quando entrei para o mestrado em Poéticas Visuais na ECA/USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), eu encontrei a literatura que me abriu os olhos. Então eu entendi que a palavra “museu” vem de “mausoléu”. Museu aberto ao grande público foi uma coisa criada no Iluminismo. Quando eu descobri que o que eu fazia servia direto para ser guardado em um “depósito” eu quase fiquei louca. E por que a opção por trabalhar com estêncil no Jamac? Porque é super democrático, né? É linguagem de grafiteiro, da galera, e é muito fácil, barato. Fui fazer uma oficina lá na beira do Rio Purus, na Amazônia, há 17 horas de barco de Manaus. Eu levei material, mas havia acabado o material deles e lá eu consegui uma cartolinazinha para fazer uma máscara. Então, é uma coisa que em qualquer lugar você faz. E tem o fato de ser uma matriz maravilhosa, uma gravura rudimentar, e esse método de construção da imagem é garantido que fica bom.

“A gente precisa integrar as pessoas e considerar a diferença de classe uma coisa importante, porque eu vejo muita gente dizendo assim: Estou indo lá conhecer, mas eu não quero mudar nada. Só estou indo para aprender com eles.”

Achei bem legal a ideia das formações daqui, que vocês chamam de Café Filosófico. Como isso foi pensado para o Jamac? É uma coisa incrível mesmo! Quando eu disse que vinha para o Jardim Miriam me indicaram o professor Mauro, de Geografia. Ele foi metalúrgico durante 30 anos, fez Ciências Sociais na PUC em 20 anos, no período noturno, entre um filho e outro, uma greve e outra... Ele tem um coração de ouro! Então, antes de me mudar pra cá, eu vinha toda semana aos domingos de São José dos Campos fazer uma conversa com o Mauro e os amigos dele, para ir mostrando o que eu queria. Eu mostrei os trabalhos para o Mauro e ele me disse: “Então, Mônica, eu não tenho problema de moradia nenhum, o que eu quero mesmo é educação continuada”. Na época o João estava com a gente, um rapaz super inteligente que fazia mestrado em Ciências Políticas. Ele conseguiu trazer para cá um professor da FEA/USP (Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo) e ele dava um curso lá que era “O Desenvolvimento do Pensamento Econômico – Dos Pré-socráticos até Hoje”. E ele trouxe esse curso e deu aqui em oito meses, de 15 em 15 dias. E quem assistiu a esse curso? A turma do Mauro de professores da rede pública de ensino, metalúrgicos e militantes, gente que tem essa ligação com o antigo PT, como o Mauro, que levou borrachada da polícia nos anos 1970. Mas hoje tem muita gente nova nesse grupo... Depois desse curso, a gente começou outro, que era “O Desenvolvimento do Pensamento Político – Dos Pré-socráticos até Hoje”, que durou uns quatro meses. Depois disso, em 2006, fomos convidados para participar da Bienal de São Paulo. Tinha um ônibus da Bienal que trazia, duas vezes por semana, os visitantes para conhecer a nossa experiência. Se estivéssemos lá, seria apenas mais um ateliê. A gente precisa inteEDIÇÃO 02 | 1º SEMESTRE DE 2013

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O que você acha sobre a pichação? grar as pessoas e considerar a diferença de classe Ainda é discriminada, claro! Eu acho que é uma uma coisa importante, porque eu vejo muita gente dizendo assim: “Estou indo lá conhecer, mas eu expressão completamente legítima de cultura. Eu não quero mudar nada. Só estou indo para apren- acho que eles têm que pichar. Não gosta da pichação? Vamos dar educação para, quem sabe, fazerem der com eles”... outra coisa. É o repertório dos caras. Tá reclamando Só querem viver uma experiência antropo- do que? Os caras picham porque eles têm que se sentir dentro da cidade. O cara quer se incluir. Tem lógica? Sim. Mas enfim, quando eu fui convidada pra que considerar completamente, não tem nem o que Bienal, eu reuni o grupo e foi definido que faría- questionar! Teve uma Bienal em que foram os pimos um simpósio sobre arte contemporânea e pe- chadores e a instituição em vez de dizer “Vinde a riferia. O Celso Favaretto, que é filósofo da mim as criancinhas”, os discriminou. Isso aumenta educação e professor da USP, veio pra cá para par- a segregação, a desigualdade, o incômodo... ticipar de um Café Filosófico. Quando ele veio, o Mas como resolver esse conflito? Mauro virou para ele e perguntou: ”Professor, eu Educação! E tem que engolir! Tem que se aprotenho reparado que uns professores de Educação Artística não gostam, não sabem e nem querem ximar, chegar junto... O natural pra eles é virar grasaber de Arte Contemporânea, acham feio ou não fiteiro e trabalhar com isso... a entendem. Por que isso acontece?”, então o Celso respondeu: “Arte é uma coisa que sempre fez parte do cotidiano das pessoas. Mas a partir "A gente não pode devolver a da industrialização, o desenvolvimento da arte vai violência com a violência. A gente tomando um rumo diferente e se afasta da educação da população como um todo. Então, as pestem que usar outra moeda, por soas daqui não têm condições de entender o que mais difícil que seja.” se passa”. Isso foi legal porque eu entendi o que eu queria: fazer uma coisa normal, que é fazer com que as pessoas vivam a arte não como um espetáculo a ser consumido, mas como algo constiIsso porque o grafite é mais aceito? Sim, e porque é mais compreensível, né? Agora tuinte da vida cotidiana. já virou arte. Mesmo a pichação já virou arte. A França já levou um menino aqui da zona sul pra “Claro que estragar a casa pichar um museu e foi incrível. Tinha um menino daqui da região que viu o outro no jornal e disse: dos outros é um saco. Mas não “Nossa, eu conheço esse cara! Ele é muito pobre! adianta você não gostar. Eu não acredito que ele está lá!” Foi a primeira coisa que ele disse. Eu acho que tem uns pichos O cara está ali se manifestando, muito legais por aí. Claro que precisa ter um olhar sendo gente.” para aquilo, precisa desconstruir todo o preconceito. E isso é marcação de território mesmo. Esses caras estão se aproximando do território que 10 24

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também é deles, o que é completamente legítimo. Claro que estragar a casa dos outros é um saco. Mas não adianta você não gostar. O cara está ali se manifestando, sendo gente. Pra você, a melhor forma de revolucionar é por meio da Educação? Sim! Mas isso depende de uma força tarefa, de vontade política. Claro que nós, os bonzinhos, estamos nos replicando, mas os malvados também estão e em maior escala. Mas também é verdade que a gente não pode devolver a violência com a violência. A gente tem que usar outra moeda, por mais difícil que seja.

Legendas: 1. Estêncil na Parede | 2 e 3. Mônica Nador (Bruno Ferreira) | 4. Trabalhos feitos no Jamac | 5 e 6. Oficinas de estêncil no Jamac | 7, 8, 9 e 10. Paredes Pinturas

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VANESSA BALSANELLI

Moda Inclusiva Pensando nas pessoas com deficiência

“M

ercado de estilos”, um dos termos pelo qual a moda é conhecida, explicita a grande e atualizada oferta de escolhas no vestuário, possibilitando caracterizarse de diferentes formas, a cada mudança de look. No entanto, quando se tem alguma deficiência, esse parâmetro se altera. As ofertas se tornam escassas ou até mesmo nulas para alguns tipos de deficiência. Segundo informações do Censo Demográfico 2010, quase 24% da população brasileira declararam ter algum tipo de deficiência. Dessa porcentagem, 43 milhões de pessoas possuem deficiência física. A Inclusão Social é a inserção de pessoas à margem da sociedade ao ensino e ao mercado de trabalho, viabilizando sua participação ativa na sociedade. No entanto, medidas inclusivas têm caminhado a passos lentos. Em 2010, somente 46% das pessoas com deficiência pesquisadas pelo IBGE declararam possuir nível de ocupação ou serem economicamente ativas. Essa dificuldade de inclusão também se reflete na moda, em um aspecto fundamental: a necessidade de se vestir. Por não terem marcas com modelagem específica, muitos recorrem à customização de peças encontradas no mercado. Porém essa situação está aos poucos se alterando com iniciativas de alguns profissionais que estão construindo uma moda inclusiva. Moda inclusiva vem do estudo especializado da modelagem ergonômica, aquela planejada especificamente para a pessoa em situação de uso, com necessidades especiais. Esse tipo de modelagem não

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é planejado somente na posição em pé, quando é procurado o perfeito caimento da roupa, mas na utilização dessa peça como um todo, desde o vestir até a resposta que ela apresenta ao uso. Fátima Grave é tida como a percussora desse estudo no Brasil. Ela se especializou em ergonomia do hemiplégico após ser procurada pela mãe de um garoto com hidrocefalia, que não conseguia encontrar roupas que se adequassem ao uso da criança. Fátima passou a visitar o Centro de Reabilitação do Serviço Social da Indústria – SESI, hospitais e times esportivos compostos por atletas portadores de deficiência física para dar início à sua pesquisa. Segundo ela, as roupas especiais se diferenciam pela integração das tabelas, com medidas e angulações dos caimentos das peças no corpo com deficiência, ela sintetiza: “São leis da física aplicadas na modelagem”. Com 14 anos de pesquisa, Fátima escreveu três livros sobre ergonomia. Auxilia na organização do evento Reafashion com seus desfiles que ocorrem há dez anos durante o evento Reatech, uma feira de negócios voltada à tecnologia para pessoas com algum tipo de deficiência. A cada ano ela pesquisa um tema, desenha e modela suas criações e as vê ganharem vida na passarela com modelos especiais de criança a adultos. Fátima, após apresentar seu estudo em um em um congresso em Portugal, foi convidada pelo núcleo da Weadapt a fazer parte do projeto. A Weadapt é uma marca portuguesa de múltiplos designers que visam aliar à funcionalidade a estética com roupas especiais para cadeirantes. A venda é online e o projeto apresenta uma fórmula tão acertada que possui até mesmo coleção de alta costura.


Iniciativa no Sul No Sul, há a estilista paranaense Candida Cirino, que estuda a vestimenta ideal para pessoas com lesão medular, desenvolvendo moda especializada para cadeirantes. Sua iniciativa começou no desenvolvimento de uma monografia voltada para a deficiência visual, quando ainda cursava Artes Visuais. Em sua segunda graduação, Moda, iniciou o estudo com atletas cadeirantes, jogadores de basquetebol da Universidade Estadual de Londrina. Ela afirma que para desenvolver a vestimenta é preciso definir as particularidades conforme o grau de deficiência de cada atleta, mas de uma maneira geral a roupa

do cadeirante deve ter fechos acessíveis e ausência de costura na parte traseira das peças de modo a evitar escaras ou desconforto à pessoa. Ela explica que todo seu trabalho é fundamentado em dados reais e não em hipóteses. Neste semestre, Candida iniciou sua pesquisa com mães cadeirantes para viabilizar o desenvolvimento de um acessório adaptado para o uso do bebê de uma mãe cadeirante, inspirada pela obra literária Maria de Rodas – Delícias e desafios na maternidade de mulheres cadeirantes, da editora Scortecci, que trata da experiência de ser mãe. Ela ressalta que em seu site (www.candidacirino.com.br) há um espaço exclusivo para interação com o público. EDIÇÃO 02 | 1º SEMESTRE DE 2013

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Agência de modelos Uma iniciativa diferente de transformação na moda foi proposta por Kica de Castro, fotógrafa que em 2007 lançou a primeira, e até então única, agência de modelos com deficiência no Brasil. Kica teve uma experiência bem delicada em seu trabalho em um centro de reabilitação para pessoas com deficiência física. Sua função era tirar fotos para prontuários médicos, algo desconfortável para os pacientes que ficavam em peças íntimas ou nus com o número do prontuário. Disposta a mudar essa situação desagradável, Kica comprou diversos artigos de beleza e acessórios e fazia uma pequena produção antes das fotos, ela afirma que esses cinco minutos de contato que promovia com a vaidade faziam o trabalho menos agressivo aos pacientes. E foram com constantes pedidos de books pessoais e mais tarde estudos sobre a possibilidade de abrir uma agência de modelos, que percebeu que na Europa havia numerosas iniciativas voltadas a deficientes, de concursos de beleza a reality show. Sua agência, localizada em São Paulo, conta com 80 modelos de diversos estados, entre homens e mulheres de quatro a 60 anos para mercado publicitário e da moda. Os quesitos para contratação são os mesmos que qualquer agência, a pessoa deve cuidar da saúde e da aparência, é importante praticar atividades físicas, ter boa alimentação e comunicação. As contratações maiores são para recepção de eventos, alguns anúncios e desfiles além de exposições fotográficas, mas Kica ressalta que a parte publicitária deixa a desejar ao não incluí-los em suas propagandas. Um parâmetro que aos poucos se modifica, a Moda Inclusiva precisa de maiores investimentos tanto de profissionais quanto de empresas e governos para edificar marcas e capacitar pessoas, promovendo uma real inclusão social na moda. Com iniciativas

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que se espalham pelo Brasil, esperamos que o futuro seja promissor e que as diferenças não sejam evitadas, mas reconhecidas com suas particularidades.

Legendas: 1. Rayane Landim (Kica de Castro) | 2. Caroline Marques (Kika de Castro) | 3. Thayla Fernanda Fitz Becalhi (Acervo Cândida Cirino)

Vanessa Balsanelli é designer de moda


HUGO PAZ

Notícia barata Os jornais... Vendem A Tragédia. A cólera... Apossa-se Das figuras empalhadas. A taça... Sangra O líquido Do pecado. A notícia barata Sobe ao pedestal Dos seres robóticos O Modernismo Tomou um tiro pela culatra. O coração É órfão Do amor. A melancolia Dos novos tempos Presenteia... Os seres alienados. As páginas se esbravejam Pela indignação acasalada. A notícia: Que um dia Foi sensata Aos poucos... Hugo Paz é escritor. Saiba mais sobre o seu trabalho no blog: http://poesiaedahoramano.blogspot.com.br/

Perdeu sua herança.


JACKSON BOA VENTURA | IMAGENS: AMANDA MARTINS, JACKSON BOA VENTURA, LOURENA AGUIAR, VYKTHORIA ALEXANDRA

Identidade Carioca S

egregados, colocados em formas quentes, cheias de julgamentos errôneos, infringidos por tantos preconceitos. Sempre desestimulados por seus próprios governantes e líderes. É hora de se levantarem como potência. Porque o povo é a potência. Todo herói deve por vez e hora revelar sua identidade, essa é a nossa hora. Brava gente, sua voz merece ser exaltada e que se ouça o grito de liberdade. Mais que as belezas naturais, o Rio de Janeiro foi agraciado por ser território de um povo amado, povo que exala carisma e amor. Povo simples, mas incomum. Que reflete a grandiosidade e a glória do seu habitat. Cariocas dispensam o ser gentílico, “pode vir, pode chegar”, basta amar o Rio, ser feliz e batalhar. A principal maravilha é ter coração de mãe, sempre cabe mais um, não importa a origem. Originalidade e singularidade que consistem na pluralidade carioca. Mistura com sintonia, riqueza. Gente que desmistifica. Há beleza no estranho, na pobreza tem requinte. Povo com rosto marcante, e espontaneidade que encanta um mundo. Da favela ao asfalto, da periferia à orla vemos o povo em destaque. E que assim seja. Podem sorrir cariocas, sejam felizes onde estão, em qualquer parte do mundo. Porque agora vocês são o novo e maior cartão postal da cidade.

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As pessoas fotografadas, em diferentes locais da cidade maravilhosa, escreveram no papel a palavra que, segundo elas próprias, melhor as define. (Nota da Redação)






RAFAEL MARTINI

Vem, Carnaval de Salvador! N

ão são poucas as pessoas que passam o ano se preparando para a principal festa do ano. Organizam grupos de amigos, economizam mês a mês, delegam funções. Até festas “preparatórias” acontecem. Tudo para que nada saia errado no evento mais esperado do ano! Mas que evento seria esse? O Réveillon? Pode até ser que algumas pessoas digam que sim. Mas no Brasil uma grande parte do povo quer saber é do carnaval! E quando falamos em carnaval, tem um destino que é unânime. Salvador! A capital baiana recebe anualmente uma das maiores festas de participação popular no planeta. Os trios elétricos, como são conhecidos os caminhões que viram palco para os principais artistas do “Axé Music”, desfilam pela cidade em três principais circuitos: Osmar (Campo Grande), Dodô

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(Barra-Ondina) e Batatinha (Centro Histórico). Para se ter ideia do tamanho da festa, segundo a empresa Salvador Turismo (Saltur), que organiza o evento, todo ano a cidade recebe mais de 2 milhões de foliões. São 231 entidades (29 afoxés, 65 afros, 14 alternativos, 39 blocos de trio, sete percussão/sopro, quatro especiais, quatro de índios, sete infantis, 19 de percussão, 33 de samba e dez de travestidos) cadastradas para o evento. De acordo com o site oficial do carnaval, a cidade ocupa uma área de 25 quilômetros de avenidas, ruas e praças de Salvador, abrigando camarotes, arquibancadas, postos de saúde, postos policiais, além de toda uma infraestrutura especial montada pelos diversos órgãos municipais, estaduais e federais. No ano de 2013, o carnaval acontece dos dias 7 a 12 de fevereiro.


Curiosidades sobre o carnaval Fique por dentro dos termos que você vai ouvir se passar o carnaval na cidade do Axé!

Trios elétricos É o nome pelo qual é chamado o caminhão adaptado com aparelhos de sonorização, que chega a pesar 35 toneladas, em média, com a estrutura para shows musicais ao vivo, de aproximadamente cinco a sete horas em cada circuito do carnaval. A potência do motor da carreta que puxa o trio varia de 300 a 440 cavalos de força. O nível máximo de emissão sonora admitido para cada trio e carro de som é de 110 decibéis, medidos a cinco metros de distância da lateral e à altura de 1,5 metro do solo.

Abadás Criado na década de 1990 pelo artista plástico Pedrinho da Rocha, o abadá veio substituir as antigas e pesadas mortalhas (vestimentas). São camisas customizadas para cada bloco, que dão direito ao folião brincar dentro das cordas.

Cordas Cada bloco é limitado por cordas, que são suspensas por cordeiros, isolando o folião da área externa do bloco.

Cordeiros e cordeiras São homens e mulheres, selecionados e contratados, para segurarem as cordas que cercam os integrantes do trio. Os cordeiros devem manter as cordas suspensas, garantindo a segurança do folião e permitindo uma tranquila fluência do bloco nos circuitos. Todos são uniformizados, recebem equipamentos de proteção individual (EPI), como luvas e proteção auricular, e são divididos por lados (lateral direita, lateral esquerda, frente e fundo) para que todo o trio, carro de apoio e foliões estejam protegidos pelas cordas.

Camarotes São estruturas em torno dos circuitos, para quem prefere um maior conforto para curtir o carnaval. Os camarotes proporcionam visão privilegiada ao folião, com um interior equipado com boates, lounges, baianas de acarajé, inúmeros restaurantes, customização de abadás, salão de beleza e até spa.

Pipoca É o chamado conjunto de foliões que não possuem abadás. Os foliões da pipoca curtem do lado de fora do trio e muitas vezes acompanham o artista de sua preferência ao longo do circuito. A pipoca do Chiclete com Banana é conhecida como a maior de todos os circuitos de Salvador. (Informações fornecidas pela Saltur)

Rafael Martini é jornalista é músico

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EVELISE BARBOZA E JULIA DÁVILA | IMAGENS: JULIA DÁVILA

Rio+20: a sociedade civil dá seu recado E

ntre os dias 20 e 22 de junho de 2012, a cidade do Rio de Janeiro recebeu a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, também conhecida como Rio+20. A Conferência recebe esse nome por acontecer, justamente, 20 anos após a ECO 92, ou Cúpula da Terra, que reuniu líderes mundiais, nessa mesma cidade, para debater meios de se conciliar desenvolvimento econômico e meio ambiente. A ECO 92, em particular, foi a ocasião em que se consagrou o termo “desenvolvimento sustentável” e reconheceu-se a ligação entre os danos ambientais e as atividades dos países desenvolvidos. Neste encontro, foram oficializados importantes documentos que até hoje são referência, como a Carta da Terra, a Declaração do Rio e a Agenda 21. A Rio+20, por sua vez, surgiu num contexto em que as questões ambientais ficaram ainda mais urgentes e os compromissos firmados em 1992 não haviam sido inteiramente cumpridos. O encontro tinha como objetivo oficial estruturar a transição da economia atual para uma “economia verde” (termo um tanto quanto polêmico), definir processos para a legitimação da governança mundial sobre o desenvolvimento sustentável, e seus respectivos meios de implantação e utilização. Após três dias de negociações entre lideranças

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mundiais, foi apresentada a declaração final chamada de “O Futuro que Queremos”, assinado por 188 países. Ele recebeu fortes críticas, pois, na verdade, já estava sendo estruturado durante dois anos com consultas livres a pesquisadores e técnicos sobre os assuntos, dentro e fora da ONU e seus resultados estavam aquém do esperado. Esperava-se que seu documento final fosse ambicioso, marcado pelo real compromisso dos países com o desenvolvimento sustentável. Entretanto, não foi o que se verificou. O documento acabou sendo genérico. Ele assinala os problemas, mas sem propor medidas concretas de solução. Pouco se fala de financiamentos, metas e transferência de tecnologias. Caracteriza-se mais como uma declaração de reconhecimento e reafirmação em relação aos acordos dos últimos 20 anos.

Sociedade civil engajada Mas, se por um lado as negociações oficiais foram tidas como incipientes, o mesmo não se pode dizer da movimentação da sociedade civil. A iniciativa da ONU motivou a organização de uma série de eventos e processos de discussão paralelos, no Brasil e no mundo. Destacadamente, a Cúpula dos Povos por Justiça Social e Ambiental que ocorreu no Aterro do


Flamengo, longe do Riocentro, onde estavam as atividades oficiais, marcou o auge da manifestação civil no Rio de Janeiro. Por lá, redes de ONGs e movimentos sociais se uniram em uma grande arena de interação autogestionada que contou com importantes debates. Desacreditados com os processos oficiais da ONU, a Cúpula veio como uma resposta às negociações da Rio+20, e teve o objetivo de denunciar as causas da crise socioambiental, apresentar soluções práticas, fortalecer movimentos sociais do Brasil e do mundo, e, acima de tudo, transformar o momento da Rio+20 numa oportunidade para tratar dos graves problemas enfrentados pela humanidade e demonstrar a força política dos povos organizados.

A Cúpula dos Povos reflete a necessidade da transição de um modelo capitalista em crise para a construção de novos paradigmas de sociedade. Como Marina Silva sabiamente lembra, a crise é, na verdade, civilizatória. O modelo neoliberal de crescimento econômico como sinal de desenvolvimento está esgotado. O momento e contexto da Rio+20 foi propício para alertar isso. Com a participação restrita e mal definida no processo oficial, a sociedade se organizou por conta própria, num fórum próprio. Muito sério, aliás, mas movido a muita paixão e menos formalismo. Mais de mil eventos preencheram a programação da Cúpula dos Povos, com a participação de

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milhares de lideranças, jovens e maduras, que vivenciaram nos acampamentos, nas mobilizações e nos debates a importância da coletividade, da busca pelo equilíbrio entre a relação sociedade e meio ambiente e da garantia de uma vida digna. Lá, discutiram, conjuntamente, representantes dos mais diversos movimentos, de todo o mundo: mulheres, negros, juventude, indígenas, agricultores, trabalhadores, comunidades tradicionais, representantes de áreas urbanas, rurais, e de religiões. O auge da Cúpula foi a grande Marcha em Defesa dos Bens Comuns e Contra a Mercantilização da Vida que reuniu nas ruas do Rio de Janeiro cerca de 80 mil pessoas. Muito embora cada grupo se manifestasse com sua bandeira, o recado comum

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era claro: a solução para a crise está além dos processos tradicionais da ONU. Para a sociedade civil, tanto a Rio+20, como os eventos paralelos ou autogestionados, promoveram a convergência de diferentes coletivos e movimentos, muitos acordos autônomos foram firmados e a troca de experiências e a sinergia promoveram debates livres e intensos. Certamente a movimentação e a união da diversidade na Cúpula dos Povos foi histórica e simbólica. Enquanto os diplomatas e líderes mundiais estavam em suas salas fechadas discutindo seus próprios interesses, a sociedade civil organizada estava na rua, ocupando a cidade, mostrando o verdadeiro futuro que queremos.


Rostos da

Rio+20

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Evelise Barboza e Julia Dávila são gestoras ambientais

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GABRIELA PESSOA

Nova roupa em um velho modelo Considerações sobre os golpes na América

Será que nunca faremos Senão confirmar A incompetência Da América católica Que sempre precisará De ridículos tiranos Será, será, que será? Que será, que será? Será que esta Minha estúpida retórica Terá que soar Terá que se ouvir Por mais zil anos...

C

aetano Veloso, na década de 1980, lançou a música “Podres poderes”, que além de criticar a atuação da população em relação aos seus governantes, colocava duas perguntas importantes. Na primeira, questionava “Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América católica que sempre precisará de ridículos tiranos”, lembrando que há anos a América Central e do Sul lidava com uma triste realidade, vários golpes de Estado que, com frequência, vinham acompanhados de repressão política, suspensão dos direitos civis, como a liberdade de expressão, e do uso da força e violência com os exércitos nas ruas. A segunda pergunta nos faz

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lembrar a reincidência destes golpes no território: “Será que esta minha estúpida retórica terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos...”. Pelo que a história nos mostra, a resposta para essa pergunta de Caetano é sim. Ainda na década de 1980, vimos Golpes no Haiti, Peru, entre outros casos. A recente deposição do presidente paraguaio Fernando Lugo mostra uma nova modalidade de golpe que já estava presente na também deposição de Manuel Zelaya, de Honduras, em 2009. Mas, afinal, o que é um golpe? O golpe de Estado ocorre quando o processo democrático, ou seja, o processo de escolha dos governantes pela maioria da população, é interrompido bruscamente. No passado, estes golpes vinham com justificativas diversas, seguidos, muitas vezes, por regimes militares violentos. No entanto, o que vemos agora são presidentes eleitos pela população, repentinamente destituídos de seus cargos, por membros do Congresso ou por juízes, sem justificativas ou julgamentos claros. No Brasil, temos dois exemplos que podem ajudar a compreender as diferenças. Em 1964, quando o Congresso Nacional depôs o então presidente João Goulart, havia descontentamento de alguns setores em relação à sua gestão, sobretudo militares e setores da classe média, que acreditavam que Goulart teria ligações com o comunismo. Sob o discurso de conter uma revolução comu-


nista, o que não foi provado, retirou-se o presidente do seu posto legal. Já no governo de Fernando Collor de Mello, na década de 1990, uma forte crise econômica, somada às denúncias de atos de corrupção dentro do governo, forçaram a abertura de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para averiguar as denúncias. O presidente foi julgado, condenado pelas irregularidades, a população também foi às ruas pedir a sua saída e o impeachment (impedimento) foi consolidado. Estes “novos” golpes acontecem de forma curiosa. Zelaya não teve direito de defesa antes de ser pedido o seu afastamento. Lugo teve o que alguns consideraram um julgamento relâmpago, com prazo de defesa reduzido e acusações ideológicas. Vale lembrar ainda que Lugo não tinha um grande apoio do Congresso paraguaio. Não nos cabe aqui avaliar se são governantes corretos ou não, mas uma vez que apareçam irregularidades, estes representantes devem ser julgados de acordo com os padrões estabelecidos em cada país e se for provada a culpa, devem deixar o cargo. Quando isso não acontece, o crime incide sobre a população, que vê anulado o seu direito de escolha.

Por que uma região tão instável?

Você pode estar se perguntando por que as Américas Central e do Sul colecionam golpes nos livros de História. Há vários fatores para responder a isso, que variam de país para país, mas de um modo geral, para encontrar essa semente da discórdia, voltamos à época colonial. Para existir uma colônia, deve existir um colonizador e um colonizado. Acontece que, com o passar dos anos, as marcas da colonização vão criando raízes no lugar. Quando os europeus foram expulsos da América, os territórios ainda guardaram a fórmula colonial: deve existir um colonizador e um colonizado. Essa fórmula foi aplicada às classes sociais, os grandes proprietários mandam e têm mais direitos na prática (apesar dos direitos serem iguais para os cidadãos) do que os trabalhadores das classes sociais mais baixas. As tensões aparecem, mas como essa pirâmide não deve ser invertida, medidas autoritárias são tomadas. Lembra que João Goulart foi deposto por uma suposta ligação com os comunistas? Aqueles que queriam uma sociedade diferente, sem divisão em classes sociais, e daí por diante? Lugo, no Paraguai estava defendendo a reforma agrária, e teve seu mandato retirado após um conflito entre sem-terra e policiais. Parece que é aquela velha história. Veste-se o velho modelo com roupa nova, para que as coisas mudem, mas continuem iguais. Gabriela Pessoa é historiadora

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BRUNO FERREIRA | ILUSTRAÇÃO: WANDERSON VIANA

Ainda menino O

excesso de peso causado pelas festas de fim de ano e o fechamento da academia de ginástica para a conclusão de uma reforma me fizeram caminhar pelas ruas da minha região. A fim de quebrar a inércia dos dias de ócio, andei por lugares não frequentados por mim já há alguns anos. Assim que saí de casa tracei o roteiro. Passaria pela minha antiga escola, onde estudei do antigo pré até a 8ª série. Confesso que foi uma experiência revigorante. Pude perceber que o menino daquela época ainda reside na minha intimidade. É um alento saber que as situações vividas fora daqueles muros altos – das salas de aula humildes, com carteiras rabiscadas, paredes pixadas, como na maioria das escolas públicas, não me modificaram a essência – não me tiraram a maneira inocente de sonhar com o futuro. Os sonhos não mais são os mesmos, afinal os anos passaram e a vida se renova. Mas, por não permitir que a maldade do mundo se engrandecesse na criança de outrora, o desejo de viver para sorrir não morreu em mim.

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Pude me lembrar, inclusive, do cheiro do local: cheiro de simplicidade, de alegria, de infância feliz expressada nas brincadeiras e gargalhadas nas aulas de educação física, nas conversas amenas da hora do recreio e no trato afável, quase maternal, das saudosas e inesquecíveis professoras. Senti falta daquele carinho que tanto me preenchia a alma e que hoje não tem o mesmo calor. Relembrar com saudade uma época tão cheia de significação foi um episódio inédito na minha vida, pois pouco me dou a lembranças do passado. Foram anos acolhedores, em que a ternura e a mansuetude eram verdades absolutas, inquebrantáveis, imutáveis. Receávamos a vida adulta, que chegou para todos. E agora, o que mais me faz perder o ar é o temor nos dias de hoje, pela incerteza do cotidiano adulto, desconhecido pela sublimidade da infância bem vivida.

www.desabafosnefelibatas.com


JACKSON BOA VENTURA

Nas Esquinas do Teatro Municipal Indecentes nas esquinas do Teatro Municipal. Falavam de amor, cantavam liberdade, aportavam no cais da saudade, Indecentes descendem de Afrodite? Eram afro, só por isso já deviam ser imorais Ilegais, Legalizavam o viver de sonhar, por sonhar Nas esquinas do Teatro Municipal, Dançavam, declamavam guerra à senhora monotonia. A Cinelândia assistia atenta as nossas cenas. Êxodo: Indecentes pintavam seus sexos e protestavam em favor do sol. Beijavam as almas, matavam a tristeza e eram agora Criminosos, Imorais, Ilegais Indecentes Éramos nós, descobrindo-se. Sendo gente. A gente.

Confusão libertiginosa temorial desviativa Seus pais lhe obrigam a mudar a figura de gênero? Experimenta alterar o tempo verbal para o presente, e pôr a primeira pessoa do singular no centro. Sem ela não há nós. Sem nós eles não vivem. Se apega no teu ego e goza. Desperta rei! Que só os belos têm direito de adormecer. Tua história é como a de João, sem Maria. Teu final é amar, passear pelo mundo deixando alegria, incomodando ditaduras, provocando sorrisos. Não podes amar o próximo sem se amar. Sabes que tu és teu próprio príncipe. Teu reino é em qualquer esquina. Sem anões nessa história, sem regentes, nem marqueses. Esse capítulo é dedicado a você. Não se contamine com o espírito da carochinha, carpineje. Se atente! Perceba que sua loucura está a um passo da sanidade. Fuja do tédio. Teu signo é de emoção. Tua bandeira é a graça, de graça. Teu final é amar a si, a todos, a cada um. Enfeita-se de amor, transforma o rancor em serpentina e o orgulho em confete, faz da dor um carnaval. És forte! Tatuaste nas areias do mar tua sorte, cravaste teu nome nas mãos de Deus para que Ele não te esqueça. Teus pais lhe entenderam. Não temas o olho da rua, a sarjeta. Pois lá também há talento, há beleza. Lembre-se de Basquiat. Serás grande em castelos, desertos, ou nas ruas.

Jackson Boa Ventura é designer e, além disso, sensível. Um verdadeiro poeta!

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SIMONE NASCIMENTO

Lápis de cor de pele E ra apenas uma criança e aprendia as cores, quando algo inconsciente ou bem consciente já despertava o preconceito racial nas pessoas, em nós: a forma que chamavam certo lápis de colorir, o tal de “cor de pele”. Vocês já notaram qual é a cor do lápis? Eu notei. “Por que os meus amigos da escola pedem o lápis cor de pele se a pele não é só daquela cor? A minha não é”. Lembro até hoje da pergunta que fiz à minha mãe. Algumas caixinhas com 12 lápis, outras com 36, algumas com muitos e muitos tons de cores, diferentes e incríveis, que tornam colorido o céu dos desenhos, o mar e as florestas, caixinhas com tantas cores, mas somente um chama-se “cor de pele”. Não me esqueço daquela pergunta, um pouco engraçada e sincera, de resposta muito fácil e complicada ao mesmo tempo. Hoje, não mais criança, continuo a notar que o preconceito racial prevalece, nascendo nas pessoas por algum sentido que desconheço, por algum motivo que não consigo entender, mas sei que está lá, que existe. Desde muito novos, aprendemos que a cor de pele tem que ser aquela, do lápis da caixinha, de cor clara, meio rosadinha… Eu, quando pedia emprestado, também chamava por esse nome. Força do hábito? Eu chamo de preconceito. Cor de pele, mas é pele de quem? Crescemos tendo que aprender que os tons diferentes daquele não valem para colorir os desenhos dos corpos, não valem para nós, e que a nossa pele deveria ser apenas daquela cor. Nossa vontade de colorir com outros tons foi sendo ignorada, e os lápis vermelho, amarelo, mar-

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rom, preto e branco, por que não chamá-los também de lápis cor de pele? Cor de pele negra, cor de pele branca, cor de pele mestiça, cores de pele, diversas. Quem chamou aquele lápis de cor de pele? Nós chamamos, e sem perceber fomos preconceituosos, para nós e para outros, mas fomos. Com o lápis que denominávamos único em seu nome, aprendemos a colorir, e em nossa caixinha de lápis não havia outro. Algumas crianças hoje já cresceram, outras continuam a crescer. Mas muitos de nós ainda continuam com um único lápis cor de pele em suas caixinhas. Naquele dia, minha pergunta não ficou sem resposta, o que minha mãe questionou passou a significar muito. “Então, qual das cores você vai querer?”. Foi assim que minha caixinha de lápis se transformou, cheia de tons para colorir os desenhos, muitas cores para o céu e o mar, para as florestas, e as peles dos corpos. Desde muito novos nos faziam acreditar que a cor das peles era apenas uma, e podia definir-se e limitar-se a um simples lápis de cor: o lápis cor de pele.

Simone Nascimento é estudante de jornalismo


ANTONIO LINO

Pé-de-céu Sobre a metrópole, nem tudo quem voa tem turbina no sovaco Assim era um par de asas fazendo folias na fuligem O cinza ria que até corava mais pra azul (A profissão daquele passarinho era esnobar gaiolas) Tanto vai-e-vem fez inveja num imóvel Poleiro de gentes, o condomínio pontiagudo se arquitetou como vingança... Por sua rota rotineira, os pinotes do passarinho tiravam o ar do vento

Encontrei-o tarde, já rijo e frio: minha janela envidreceu o passarinho À duras penas, o esnobador de gaiolas aprendeu a nunca mais decolar Seu epitáfio quem dirá é o chão:

Foi quando o céu empedrou: num sopetão de arapuca, onde eu moro deu uma janelada bem na testa do passarinho (Certas transparências são impróprias a voar)

Onde eu plantei o passarinho vai crescer um pé-de-céu pra gente chupar liberdades.

http://dizquefuiporai.blogspot.com

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