Caravela | Edição 04 | 2015

Page 1

EDIÇÃO

04 Imagem: Anderson Dantas

2015

porque “navergar é preciso”

Jovem do semiárido paraibano dá seus primeiros passos na arte precisa dos renomados Mueck, Rembrandt e Caravaggio Cultura e periferia: Max B.O fala sobre sua carreira e o universo do rap Traçado abstrato: o cotidiano de Curitiba sob olhos e mãos de Igor Di Castro


Mande seus textos, ilustrações, ensaios, comentários e sugestões de pauta para: redacao.caravela@gmail.com. E acesse nosso blog: www.caravela.blog.br


A arte da precisão

Tripulaçao

Editor Bruno Ferreira Projeto gráfico Manuela Ribeiro Arte Manuela Ribeiro Colaboradores desta edição Anderson Dantas Gabriel Cruz Guilherme Almeida Igor Di Castro Jackson Boa Ventura Jenny De La Rosa Lubiana Prates Manassés de Oliveira Matheus B. Raphaelli Novaes Raimundo Neto Rodrigo Menezes Vanessa Balsanelli Wanderson Viana Wigvan Pereira Jornalista Responsável Bruno Ferreira – MTb 62552/SP

Logo na saída da Estação Luz do Metrô, em São Paulo, especialmente durante o último mês de fevereiro, foi notória a formação diária de longas filas, que reuniam pessoas de todas as idades. O motivo era especialíssimo: ver de perto as tão comentadas obras do escultor australiano Ron Mueck, que estiveram em exposição na Pinacoteca de São Paulo. Esse artista integra a escola hiper-realista, gênero artístico que explora os detalhes, conferindo-lhes uma espantosa e fascinante precisão. As esculturas de Mueck, de homens e mulheres em grandes dimensões, chamam a atenção por serem humanas em cada ruga, pelo e marcas de expressão cuidadosas e extremamente próximas à realidade. Fascinada pelo hiper-realismo, a jovem Daiany Lima, de 22 anos, dedica-se à arte da precisão em Picuí, semiárido paraibano. É no traçado, no entanto, que a jovem reproduz à mão fotos de amigos e familiares, sempre atenta aos detalhes de suas expressões. Em nosso conteúdo de capa, de autoria do jornalista paraibano Manassés de Oliveira, com imagens de Anderson Dantas, aspectos do hiper-realismo são descortinados paralelamente à história de dedicação da jovem artista. Nesta edição, você conhece também o sensível e inteligente texto do escritor piauiense Raimundo Neto, que vive em São Paulo há nove meses e ensaia a publicação do primeiro livro para breve. Conhece ainda a doce narrativa de Jenny De La Rosa ao rememorar sua relação e aprendizados, durante a infância, com sua avó no Equador, e outras autoras e autores envolventes em suas reflexões. Estamos felizes por você embarcar conosco, uma vez mais, nesta viagem de Caravela. Boa leitura! Bruno Ferreira Editor


Serviço de bordo

06. Papo na Proa. O rapper Max B.O leva um papo com

o jornalista Guilherme Almeida sobre cultura periférica e fala sobre sua relação com a música.

12. Lubiana Prates versa sobre o tempo e sobre o amor, ou a falta de.

13. E Gabriel Cruz Freitas apresenta a sua/seu (C)ora-

ção subordinada(o) do verbo infinit(iv)o.

14. Consumo responsável faz parte do Slow Fashion no mundo da moda, segundo Vanessa Balsanelli.

16. Jenny De La Rosa lembra, saudosa, d’O aroma da beleza de sua infância.

18. ATENÇÃO AO DETALHE

Manassés de Oliveira e Anderson Dantas contam a história de dedicação e fascínio pela expressividade do hiper-realismo da jovem paraibana Daiany Lima.

24. E o artista Igor Di Castro capta contextos do cotidia-

no curitibano e os expressa em um belo traçado abstrato.

28. Pessoas são como livros para Raimundo Neto. 31. Morra! é o brado de Rodrigo Menezes 32. E o Pessimista Convicto Manassés de Oliveira versa

sobre si e sobre sua Escola Analógica.

34. Enquanto Wigvan Pereira explica seu Modo de evangelizar contra o preconceito

35. E Jackson Boa Ventura pede que todos Vistam-se de

branco.


Ponto de partida POR RAIMUNDO NETO

Jornalismo terrorista Em A nova república, da escritora norte-americana Lionel Shiver (Editora Intrínseca), Barba é uma península imaginada em Portugal que busca sua independência através de um grupo separatista, o Barba, que sai pelo mundo realizando atos terroristas. Jornalistas de todas as nações fixam sua curiosidade em Cinzeiro, capital de Barba, e lá buscam informar ao mundo sobre tantas atrocidades. Um dos principais nomes desse jornalismo investigativo, Barrington Sandler, desaparece, e Edgar Kellogg, ex-advogado, resolve assumir a função de jornalista substituto. Em Barba, os atos terroristas são colados a atos jornalísticos. Ou poderíamos dizer que o jornalismo tem lá seu quê terrorista (também nos dias de hoje, né?). O estranho é que após o desaparecimento de Sandler, os atos terroristas de um grupo chamado Soldados Ousados simplesmente desaparecem. Quando Edgar então os investiga, sem tanta pretensão, embora desejando ser o que Sandler alcançou, tem uma grande surpresa: o jornalismo é também uma ficção escrita pela vaidade de Sandler. A Barba de Lionel Shriver parece um fim do mundo, um ar de ficção científica. Poucos escritores conseguem compor personagens (vários em uma mesma história) com tanta riqueza como ela. Poucos escritores conseguem sustentar diálogos ricos e vivos do começo ao fim de um romance. Shriver consegue costurar os temas jornalismo, política, terrorismo e vaidade com firmeza, sem vacilar em linha alguma. Chega a ser monstruoso como tudo é muito vivo nos livros desta escritora.

Coração em frangalhos Um rompimento leva Dani a relembrar todas as histórias que o constituem no livro Se você me chamar eu largo tudo... mas por favor me chama, de Albert Espinola (Editora Versus). Ele investiga o sumiço de crianças. Um pai entra em contato e desesperado pede ajuda de Dani, que então vai a Capri, onde busca pistas para encontrar a criança. Capri é o berço de muitas lembranças. Dani, então, rememora as situações com sua família e as primeiras experiências que o ensinaram a crescer, a ser grande. Ao longo da vida, o personagem perde pessoas; perdas que abrem espaços para o futuro. É com o coração em frangalhos que ele conta sobre o passado: a mãe afetuosa; o irmão distante; a esposa que resolve pelo rompimento; os afetos de Martín num quarto de hospital; a força e a experiência atlética de George. Essa é uma história sobre a imensidão da vida; sobre fracassos que engrandecem, sobre vitórias que empurram para cima; sobre derrotas que não diminuem. O livro é sobre um homem pequeno com um coração no qual cabe o mundo.

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

5


Papo na Proa ENTREVISTA: GUILHERME ALMEIRA | IMAGENS: MATHEUS BAGAIOLO

Das quebradas para o mundo “Se não fosse o rap eu seria office boy no escritório ainda, meus amigos ainda seriam os mesmos. A gente pode ir longe e se manter perto da nossa raiz.”

N

o meio da tarde, lá pelas 15h30, ele chegou no boteco numa das partes mais altas do Jardim Pery, zona norte de São Paulo, acompanhado por mim, seus amigos e pelo fotógrafo Matheus Raphaelli. Conforme caminhava, estendia uma mão para cumprimentar seu Dácio e escondia o chapéu para trás do corpo com a outra. Quando eles estavam quase se abraçando, Max revelou o que trazia consigo: um presente para o dono do modesto estabelecimento. — Viu como ele ficou feliz com o chapéu? Ele tinha falado que queria ter um igual num dia que eu estava usando. Eu até disse: Esse eu não te dou, porque estou usando, seu Dácio. “Cipá” ele tinha até esquecido disso. Mas eu fiz questão de lembrar. Aquela conta que a gente pendurou lá, duvido que ele cobraria, explicou Max B.O., já no caminho de volta à sua casa, que fica na Vila Romana. Logo depois, já falava ao repórter e ao fotógrafo sobre sua relação com as origens mesmo depois da fama. Max B.O., rapper e apresentador de TV, reservou toda a tarde de terça-feira para nos receber para uma entrevista, publicada originalmente na Revista Vaidapé. Estava bem à vontade em sua

6

edição 04 | 2015

Caravela

casa quando chegamos, uns dez minutinhos mais cedo do que havia sido marcado. Marcelo, o Max, vive um dos melhores momentos de sua carreira, em que acumula quatro anos de trabalho de qualidade na TV Cultura, a frente do programa Manos e Minas, e os lançamentos de duas Mix Tapes. De chinelo e camisa da seleção brasileira, o rapper mostrou trechos de musicas do EP Fumassom, ainda no processo de produção. A entrevista começou quando Max disse “chega aí”. Apagou o cigarro e começou a falar, sem frescura. Enquanto respondia as primeiras perguntas, o rapper vasculhava os arquivos do computador de seu estúdio caseiro, à procura das músicas que complementariam suas respostas. Vaidapé: O que você acha do funk ostentação? Max B.O.: Eu não sou especialmente um fã, mas não acho que é um desserviço à música que se fazia antes. É uma música que saiu agora na frente das outras. Por exemplo, durante uma época quem tomou a frente do rap foi o gangsta rap, depois foi um rap romântico, agora tem um som com uma mensagem mais jovem.



É uma questão de fluxo então? Um termo bom é esse mesmo. E é também uma forma de ter algo que a galera não pode ter. Você vê um cara, dentro de um Golzinho batedeira 1996, ouvindo uma música falando de uma Ferrari, tá ligado? Mas, ele ouve também um sertanejo que fala do Camaro amarelo. No rap gringo tinha um 2 Live Crew que cantava esse bagulho. E eles tinham uma pegada Miami bass, que é o ritmo do funk hoje. Quem faz rap tem obrigações específicas? Com o passado, com os MCs mais velhos? Não necessariamente. Tanto que se vê muito desse argumento: “Eu faço tal coisa diferente, porque sou uma pessoa diferente”. E está certo. Muita gente se enrola em certos discursos também: “Eu estou levando o rap para um novo patamar”. Mas por que o rap tem que sair do patamar que está? O rap é minha vida há mais de 20 anos, minha relação com meus amigos, meu trabalho. Eu fiz meus pais gostarem de rap, por mostrar todos os lados dele, não só um. Acho muito importante o discurso “o rap me salvou”, ele abre caminhos para outras coisas. A partir daí tudo depende de você. Acho que a pessoa só rouba ou mata se quiser, assim como o cara só vai bater uma laje se ele quiser. Então, não tem essa história. Se não fosse o rap eu seria office boy no escritório ainda, meus amigos ainda seriam os mesmos. A gente pode ir longe e se manter perto da nossa raiz.

Qual é o seu método de produção? Você gosta de estar envolvido em todas as etapas? Agora tenho participado bastante de todas. Mas antes tinha muito essa coisa de eu pegar uma batida que eu gostava, ir para o estúdio e trabalhar só no mapeamento. Agora eu tenho até ajudado a compor umas batidas, mas não sei de teoria musical. Você acha que precisa saber? Não precisa saber, mas é bom. Eu até falo isto quando vou fazer workshops: se você tiver a oportunidade de tocar um instrumento, vai ser um diferencial. No meu caso, eu sou um MC, não só um rapper. Esse tem a coisa de só cantar o rap, já o MC é o mestre de cerimônias. Então, eu canto samba, rimo em drumandbass, em reggae. Eu tenho escrito vários sambas, já tenho quase 20 compostos. Às vezes eu sinto falta de não saber teoria, quando eu vou em alguma roda de samba, tenho que cantar um pouquinho no ouvido do cara para ele saber que nota é e me acompanhar. Como você faz as parcerias para seus projetos de rap? Eu terminei agora a mixtape “Fumasom - volume 1”, que está indo para a fábrica. Ela foi toda produzida pelo Uzi e tem várias participações. Eu sempre tento gravar com amigos com quem ainda não gravei. No fim das contas sempre chamo meus amigos. Não dá pra ser aquela pessoa só porque eu sou fã dela. Até porque muitas das pessoas que eu era fã na minha adolescência são meus amigos hoje em dia.


Tipo quem? Tipo o Seu Jorge, o D2, o Kl Jay, Edi Rock, o Brown, o Thaíde… Aí você vai correndo atrás de quem você não gravou ainda. E você sabe que cada um tem suas agendas, seus estilos. Às vezes tem que compor um som especial para chamar o cara. Quem você quer como parceiro num próximo trabalho? O Dexter, com certeza. Além de ser amigo pessoal, tem uma música que eu acho que tem muito a ver com ele. *** “Precisa existir pessoas que fazem o que eu faço: que mostrem que a linguagem da quebrada pode ser usada para fazer comunicação mais ampla. Mas é possível que tenha gente que nem consiga fazer uso dessa ferramenta, porque está lotado de show.” Quando o papo já havia passado pelos mais diversos assuntos, Max B.O. pausou a música que tocava, virou a cadeira de modo a ficar de frente para mim e o Matheus: — Rapaziada, tem dois jeitos de continuar essa conversa: aqui ou dar um rolê lá na minha quebrada e fazer umas fotos melhores. Qual vai ser? Topamos a sugestão de Max. — Minha quebrada é essa aqui, Jardim Pery, Pedra Branca, diz, enquanto dirige seu carro barulhento. Max, no entanto, mora há um ano em uma casa na zona oeste de São Paulo, apenas por questões logísticas: montar o estúdio e receber pessoas para ocasiões profissionais.

Os carros param numa rua íngrime, onde de um lado ficava o boteco de seu Dácio e do outro a casa em que seguiríamos a segunda parte da entrevista. Logo após fazer o dia de seu Dácio com um novo chapéu, Max pediu duas cervejas e começou a levá-las para a laje da casa de um amigo que estava fora. Subindo a escadinha lateral da garagem aberta, Max olhou para trás e pediu como quem se lembrasse da coisa mais importante do mundo: — Não esquece os Fofura de cebola!. No topo da escadinha de degraus curtos, a foto que tanto queríamos. Por cima da laje dava para ver favelas e prédios elitizados dividindo uma paisagem que serviu de explicação do porquê Max B.O. fazia tanta questão de andar esses 20 minutos em seu carro, o Simonal, aquele que canta bem, mas também bebe bem. Tudo pronto, banquinhos colocados, câmera na mão, gravador apoiado no tijolo e segue o papo: Quando começou a viver de rap? Eu comecei a trabalhar com rap com 13 anos, e me tornei profissional com 19. Agora tenho 34. O primeiro rap eu fiz para tocar no festival na escola que minha sala ganhou. Em 1999, no primeiro festival de Hip Hop internacional no Brasil eu já estava lá tocando. Foi quando ganhei meu primeiro cachê, assinei o primeiro contrato. Mas sobreviver de rap mesmo, só a partir de 2008, 2009. Hoje eu sobrevivo do rap, mas na televisão principalmente. Não tenho aquela estabilidade do cara que tem show o mês inteiro. No campeonato de escola que eu participei, eu fiz um freestyle sem saber. Eu esqueci a letra e fiz um improviso.

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

9


Como você vê o processo de ganho de espaço na mídia e consequentemente de dinheiro que começou uns três anos atrás, com rappers como Criolo, Emicida, Rael, Projota? Esses são exemplos que conseguiram viver de rap sem necessariamente depender de outras vertentes. Mas deram seus passos em outras coisas também. O Emicida foi repórter do Manos e Minas. Mas eles conseguiram movimentar o mercado fonográfico mesmo, acho que isso foi o mais importante para o rap. Precisa existir pessoas que fazem o que eu faço: que mostrem que a linguagem da quebrada pode ser usada para fazer comunicação mais ampla. Mas é possível que tenha gente que nem consiga fazer uso dessa ferramenta, porque está lotado de show. Desses nomes, com exceção do Criolo, os caras são relativamente novos. Já pegaram o bonde com asfalto na rua. Eles não demoraram muito tempo para alavancar suas carreiras. *** “O que os Racionais conseguiram dentro dessa recusa dos holofotes foi incrível: vender um milhão de discos oficiais de um trabalho, fora o que o camelô vendeu.” Além de a cerveja ter acabado o tempo estava virando, o dia já tinha ficado feio e começou a chover. Cada um pegou o que pôde, entre garrafas, banquinhos e embalagens de Fofura de cebola, e desceram de volta ao bar de seu Dácio. No pequeno estabelecimento, que é um meio termo entre mercearia e bar, todos se sentaram, menos Matheus, ele tinha um cenário novo. Pediram mais cervejas e se acomodaram. Foi raro ver Max falar por mais de dez minutos sem parar para cumpri-

10

edição 04 | 2015

Caravela

mentar algum morador do bairro. Foi assim, entre um “opa!”, um gole de cerveja e um Fofura de cebola que a maior parte da entrevista aconteceu. A impressão que ficou é que o bar do seu Dácio era o lugar ideal desde o começo. Segue o jogo. Quem são seus ídolos no rap? Muitas vezes você admira a pessoa e nem gosta tanto da música. Às vezes gosta muito da música, mas não tanto da pessoa. Mas, eu sou muito fã dos Racionais, claro, do Thaíde, eu sou muito fã do Consciência Humana, do Sistema Negro, do Ndee Naldinho, do Rashid, do Haikaiss, do Flow MC. Pessoas que eu vou ouvindo e que têm a história muito parecido com a minha. Você não tem problema em falar que é fã de alguém que ainda está na ativa e supostamente disputando espaço com você? Sabe que isso é raro, né? Claro! Isso é importante. Acho que as pessoas tinham que fazer mais isso. É raro, mas é aí que se emprega o uso de uma coisa da qual as pessoas falam muito: humildade. Eu acho importante falar que eu sou fã desses caras. Sabe o que é uma felicidade? Estar num show dos Racionais e o Brown perceber que eu estou cantando a música, igual eu fazia em 1997, e ele me fazer um jóia. Isso me dá vontade até de chorar, porque esse é o sentido da parada. Por outro lado, você vê cara que fica dedicando prêmio ao Sabotage. Ele morreu, né, velho? Ele merece o prêmio? Merece, eu dedico um prêmio para ele também. Mas eu também dedicaria com ele em vida. Não é porque, falando friamente, é mais um cara com quem eu poderia estar dividindo palco e cachê. O que você pensa dessa retomada protagonizada na mídia por caras como o Emicida, Rashid e Projota? Acha que tem algum


conflito com legado que os Racionais deixaram, por exemplo? Acho que foi bom. Não está em mãos ruins. Acho que recusar a mídia foi importante também. O que os Racionais conseguiram dentro dessa recusa dos holofotes foi incrível: vender um milhão de discos oficiais de um trabalho, fora o que o camelô vendeu. É imensurável o alcance deles, é imaginável. Isso fora da indústria fonográfica, sem ir domingo no Faustão. Então eu também não preciso do Faustão. Agora, tem outros espaços, ir no Altas Horas é legal, o Sabotage abriu essa porta. De que assunto você prefere tratar nas músicas? São basicamente situações cotidianos. Na mixtape mais recente, “Fumasom”, elas estão amarradas pela questão do fumo, mas são relações cotidianas como nos outros trabalhos. São sempre assuntos que eu conheço com profundidade. Eu prefiro contar a história de uma blitz que eu tomei, porque eu tenho profundidade para contar essa situação. Tem uma música minha sobre mulheres da quebrada: “De Rosa Parks a Maria de Lurdes, todas têm seus defeitos e suas virtudes, todas têm suas falhas, às vezes poucas ou tantas, mas você é

guerreira então não precisa ser santa. Aquela que se veste coma veste da cor da lua, chega de manhã em casa na mesma hora que a outra, ela já deixou a mesa pronta para que o filhote dela, quando levantar, tenha tudo certinho, pode até faltar pão só não pode faltar carinho”. São coisas que eu conheço daqui. A hora que a puta chega em casa é a mesma que a doméstica está saindo para trabalhar. Eu tenho profundidade para falar disso. Agora, não posso falar do que não conheço. *** Já num clima de fim de papo, todos decidem encerrar por ali. Já não estava mais chovendo e todo aquele material seria muita coisa para editar. De volta à casa dele, tudo já era diferente. Já não estávamos mais fazendo uma entrevista com Max B.O, rapper e apresentador de TV. Ali, estava reunido um pessoal no fim do expediente. Conversamos por mais uma hora, ou algo próximo a isso. Max contou que, na interpretação dele, um carro só o havia fechado numa rua próxima à sua casa quando chegavam da zona norte, porque ele não tinha respeitado a quaresma: “Não é coisa de Deus ou do capeta, é do universo”.

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

11


LUBIANA PRATES

do tempo, ou sobre: dias que nascem escuros e ferventes ou esse felino com olhos amarelos e garras terríveis despedaçando os calendários que pensamos sucessão de dias, essa ideia coletiva inconscientemente repetida e repetida e tudo o que pesa pó: esquecimento, a saudade faz multicolor o que antes P&B apenas P&B viver sempre a astrologia: times are hard for dreamers.

Lubiana Prates é escritora e editora da Revista Parênteses. É autora do livro Coração na Boca, no qual esses poemas foram originalmente publicados.

12

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

esse escuro e ou meia-luz jamais claridade de exacerbar os defeitos em noites que pretendemos silêncio entre declarações i love you jet’aime eu te amo em todos os idiomas repetições para ser verdade e gemidos pulsões dilatações de pupilas e poros por suores. amor o que me descreveram apenas a certeza que é porque sempre mesmo quando essa linha tênue entre o sim e o não, a certeza.

Crédito da imagem: Flickr: ctinawholesale/ Creative Commons

sobre amor ou a falta de


Wanderson Viana

GABRIEL CRUZ FREITAS

(C)oração subordinada(o) do verbo infinit(iv)o Em uma oração por um pretérito perfeito, Você é o sujeito. Cada vírgula se mistura com lágrima, Parênteses são sorrisos ou mágoas? Eu hei de folhear o seu âmago. Destilarei suas belas ausências literais. E sempre te admirarei do prefácio ao prólogo. No clímax, dois adjetivos se encontram. Gritam seus nomes, se abraçam e se beijam Num enredo nada convencional, Sem clichês e sem antagonistas E, no final, tem nós dois, e mais nada. (Mas tem o meu amor no rodapé da contra-capa). Desde que te encontrei, Nenhuma outra obra mais me agrada.

Gabriel é estudante de Educomunicação da ECA/ USP e idealizador da página literária Autor Desconhecido, do Facebook.

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

13


VANESSA BALSANELLI

Slow Fashion Estilo e consumo revestidos de responsabilidade ambiental

E

m contrapartida ao Fast Fashion, que comercializa novas peças a cada quinzena ou em menor tempo, o Slow Fashion é o movimento que busca a conscientização desse consumo desenfreado por parte dos consumidores e propõe um respiro para os designers de Moda, que devem repensar seu modo de criação e oferecer peças com significações que vão além da tendência do momento. A prática do Slow Fashion está ligada a: • Uma preocupação ambiental, alternativas sustentáveis de fabricação que agridam menos o ambiente, customização e reutilização de roupas antigas, escolha de marcas sustentáveis; • Busca pelo desenvolvimento social, com escolha de produtos de pequenos negócios ou negócios locais, que tenham grande parte da produção em território nacional; • Escolha de qualidade e durabilidade em vez de quantidade, com materiais que durem mais e possam ser facilmente reparados, com modificações que dão às peças mais tempo de uso, compras em menor quantidade, menos frequentes e mais conscientes. O termo “Slow Fashion” foi cunhado em 2007 por Kate Fletcher, pioneira e mentora do movimento, possui cadeira cativa no London College of Fashion, especificamente do núcleo de Moda

14

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

Sustentável, além de ser co-autora de um livro dedicado à conscientização da cadeia têxtil e confeccionista, que no Brasil pode ser obtido na editora Senac. Moda & Sustentabilidade: Design para mudança, o livro é uma interessante leitura sobre os processos realizados no exterior, e nos faz refletir sobre o que vem sendo realizado nesse sentido no Brasil. Mais do que uma reflexão, as autoras Kate Fletcher e Linda Grose incitam ao questionamento da cadeia têxtil e confecção, para que possamos refletir sobre o impacto ambiental de suas práticas. A obra das autoras é uma importante contribuição, pois demonstra a necessidade de nos esforçarmos para procurar novos meios de reduzir ou mesmo zerar esse impacto e a educar os consumidores a fazerem sua parte. Recentemente esse movimento tem ganhado adeptos brasileiros que preferem consumir peças duráveis, artesanais, compradas em brechós, customizadas ou feitas por eles mesmos. Embora o estilo de aquisição do vestuário seja diverso, o que há de comum a todos os adeptos é o objetivo de consumir menos e responsavelmente.


No Brasil, Chiara Gadaleta Klajmic, que é italiana, mas cresceu em São Paulo, pode ser considerada a embaixatriz desse movimento. Além de modelo, stylist, estilista, empresária e apresentadora, Chiara é a força por trás do evento EcoEra, que ocorre semestralmente em São Paulo. A EcoEra além de oferecer palestras, oficinas e debates sobre temas que vertem para a moda sustentável, tem espaço para divulgar o trabalho de estilistas, ONGs e marcas comprometidas com o consumo sustentável em desfiles e exposições. O evento em parte orienta consumidores e educadores a transformarem o consumo linear, que inicia a compra e termina com o descarte, em um movimento cíclico. Trata-se de um novo sentido para o consumo que não somente o universo da moda deve adquirir -, contemplando alternativas como reparar ou consertar, doar, customizar, usar e doar. A intenção é que o produto tenha sua vida útil prolongada e passe a ser descartado somente após passar pelo processo de doação, conserto e customização. Em harmonia com essa conscientização maior acerca do consumo, uma legislação recente, como é o caso da lei nº 12.305/2010, estabelece responsabilidade a empresas e consumidores quanto ao descarte correto dos resíduos. Para as confecções, uma saída para se tornar consciente é a parceria com ONGs e artesãos, como Recicla Tecidos e Coopa-Roca, ambas do Rio de Janeiro, que trabalham com descarte de tecidos para produção de produtos como roupas e acessórios, e Gustavo Silvestre, de São Paulo, que cria crochê de fios descartados. Para consumidores, a doação, bazar e troca entre amigas torna o processo divertido. Pode até ser difícil fazer esse “detox” do consumismo desenfreado, mas depois do desapego, do papo com o terapeuta e das compras reflexivas, o processo de montar o look se torna mais criativo e as muletas usadas para a compra impulsiva acabam sendo aposentadas. Ou, no nosso caso, doadas! Vanessa Balsanelli é designer de moda

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

15


JENNY DE LA ROSA

O aroma da beleza A

vovó não permitia que ninguém se aproximasse dela, circulava livre por entre as escadas e o corredor do segundo andar da antiga casa onde transcorreu a infância. Suas folhas eram brilhantes, sutis, mas ao mesmo tempo fortes, como se soubessem que em breve iriam sustentar um grande peso. O vaso que vovó arrumou para ela também era enorme. Colocado no começo das escadas, no canto esquerdo, dominava por inteiro a paisagem do quintal interno da casa. Cresceu aos poucos, sob o vigiante olhar da vovó. Foi trepando por entre o velho corrimão de madeira que parecia recebê-la com a calma que dão os anos. Quando já quase o cobria por inteiro, soberana, cheia de mimos e cuidados, nasceram ramalhetes dentre seus talos pequenos. A primeira vez que se observavam tinha-se a sensação de presenciar o preâmbulo de uma sinfonia. Algo estava por acontecer e ninguém sabia o quê. Diante da tentativa de tocar os misteriosos botões, a vovó reagia indignada, era para deixá-los em paz! Aos poucos, os tais botões que não pareciam querer deixar ver o que tinham por dentro começaram a exalar um perfume intenso, diferente, único, poderoso. Do quarto podia-se distinguir claramente aquele aroma.

16

edição 04 | 2015

Caravela


O que teria acontecido à noite anterior para que tal aroma aparecesse? A vovó estava parada junto à planta, silenciosa, calma. Uma espécie de êxtase a contemplava, como um pintor contempla a sua obra. Aqueles botões, tão zelosamente cuidados, abriram-se e deixavam ver o que parecia ser um tecido de veludo. Dezenas de pequenas, simétricas e ordenadas flores saíram do seu casulo. Parada junto a vovó, no mesmo êxtase, descobria a perfeição, o divino, a beleza. O silêncio era total, a contemplação passou a ser o ritual diário ao acordar com aquele aroma da beleza. Cada vez eram mais ramalhetes, o desejo de tocar cada flor crescia, horas e horas observando-as, até que ocorreu o milagre, as flores não apenas exalavam aquele embriagante perfume, mas o transformaram num mel que caia como uma chuva doce que grudava nos dedos. “Experimenta”, disse a vovó, e se a vovó diz, devia ser coisa boa... Na boca, o sabor adocicado daquelas gotas provocavam um sorriso inexplicável, o olhar sucumbia e transitava por pensamentos de alegria, de felicidade, de paz. Como algo podia ser de tanta beleza! De repente, a casa toda estava cheia de tios, tias, primos, primas, amigos, amigas... Todos querendo conhecer o mistério da flor de cera, que já havia ganhado mais uma guardiã. Mas, para um visitante não estava preparada. O beija-flor movia incessantemente as asas, que pareciam transformar-se num arco-íris de cores, como se tivesse muita pressa, e passeava de flor em flor,colocando de vez em vez seu cumprido bico nelas.

“Vovó, um intruso! Alguém profanando a materialidade do sublime!” Ela riu e disse: “Eles podem, estava esperando-os. Para eles é o mel”. Como podiam eles ter permissão? Por quê? Porque o aroma é o convite que elas fazem e o mel o presente que outorgam a quem levará o que depois será uma flor de cera em algum outro lugar. A resposta da vovó era quase irreal. Foram semanas adivinhando como seria essa tal viagem, imaginando-a... A casa agora tinha outros fregueses: abelhas, borboletas e, claro, outros beija-flores... Após um tempo, a vovó se compadeceu, arrancou num ato de profunda cumplicidade uma das pequenas flores. Com a anuência da soberana, experimentei sua textura. Não podia imaginar tal suavidade em algo vivo... E ela me disse: “Come-a!” “Come-a?” Com a flor na mão, pensava: “As flores não se comem”. Mas, ao mesmo tempo, comecei a me sentir uma beija-flor, e a comi... Finalmente entendi aquela viagem, o ritual estava completo. As flores, que a cada manhã, abriam-se e a cada anoitecer fechavam-se, foram morrendo, não eram eternas, mas a vovó prometeu que elas retornariam. Anos mais tarde a avó adoeceu, e com ela a planta que tanto cuidou. As duas se foram da minha vida, mas jamais a beleza que me mostraram e ensinaram.

Jenny é designer e educomunicadora. Equatoriana radicada no Brasil, vive em São Paulo.

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

17


Capa MANASSÉS DE OLIVEIRA | FOTOS: ANDERSON DANTAS

O preciso riscado de Daiany Lima

I

sso é uma fotografia ou um desenho? Esta é a dúvida recorrente de quem observa, pela primeira vez, uma imagem hiper-realista. Daiany Lima tem 22 anos e mora na cidade de Picuí, no limite entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Ela é artista gráfica e dedica-se ao hiper-realismo. Em 2011, quando começou a desenhar com mais rigor técnico, a garota que gosta de rock e usa óculos de aros grossos, não conhecia nada desta linguagem artística. “Só em 2012 que comecei a ver desenhos que meus colegas me mostravam”, lembra Daiany. Ela conta que a turma da escola via imagens realistas, lembrava dela e levava algumas para a sala de aula. Sem saberem, os amigos da escola envolveram a artista em sua atual paixão. Até aquele ano Daiany confessa: “Não tinha inspiração nenhuma”. A paraibana não quer mais perder tempo. Ela garante que vai estudar o universo dos hiper-realistas a partir do ciberespaço. “Vou pesquisar sobre eles de agora em diante”.

18

edição 04 | 2015

Caravela


O realismo e o hiper-realismo O italiano Caravaggio e o holandês Rembrandt, por exemplo, são dois nomes clássicos de um tipo arte que, no tempo no qual viveram, era conhecida como realista. Os realistas eram os fotógrafos oficiais das cortes e da burguesia europeias. O grau de detalhamento de suas obras, o tratamento da luz, a pesquisa histórica para a composição das cenas os alçavam à condição de mestres da cultura e lhes rendiam fama, dinheiro e problemas. Caravaggio e Rembrandt se especializaram em retratar cenas bíblicas. Isso exigia pesquisa dos textos, interpretação pessoal do contexto e coragem para publicar suas próprias versões acerca do sagrado. O Retorno do filho pródigo, O martírio de São Estevão, Jeremias lamentando a destruição de Jerusalém, por exemplo, são pinturas realistas assinadas por Rembrandt. Elas são a leitura do autor sobre a cena retratada. Nem sempre essa leitura agradava. Para citar um exemplo, Caravaggio buscava, entre o povo italiano, os modelos para retratar o que ele pintava sobre a Bíblia. Prostitutas, marinheiros e comerciantes representavam, na concepção e na arte de Caravaggio, o verdadeiro “povo de Deus”. O versículo bíblico que diz que “Jesus veio para curar os enfermos” e a peregrinação do messias junto aos descamisados de seu tempo são elementos retóricos e históricos que fizeram o artista italiano buscar, entre essa gente, o elo engajador do seu trabalho à sua interpretação do cristianismo. Nesse sentido, Caravaggio reagiu às convenções de sua época e deu nova concepção às cenas

de Michelangelo pintadas no Vaticano. A conversão de São Paulo, a caminho de Damasco e Crucificação de São Pedro, são exemplos dessa rebeldia. Hoje, os realistas deram lugar aos hiper-realistas que deixaram pra trás a polêmica e a transgressão artístico-religiosa. Em tempos de Photoshop e computação gráfica, o hiper-realismo se tornou um diferencial na vida de vários artistas espalhados pelo mundo. Jeff Ramirez, Alyssa Monks, Eric Zener e Robin Eley, nos Estados Unidos, Pedro Campos e Juan Francisco Casas, na Espanha, Roberto Bernardi, na Itália, Gottfried Helnwein, na Áustria e Iman Malek, no Irã, são apenas alguns nomes que se dedicam ao gênero. O hiper-realismo é caracterizado pela carga de detalhes contida nas imagens. Poros, pelos, rugas de expressão, gotas d’água ou de suor desafiam a credulidade de quem se depara pela primeira vez com uma obra desse tipo. Os trabalhos encantam e impressionam tanto pela incidência de caracteres quanto pela ausência de sofisticação tecnológica.

edição 04 | 2015

Caravela

19


O australiano Ron Mueck é a grande celebridade do hiper-realismo contemporâneo. Entre março e junho de 2014, teve uma exposição de seus trabalhos no Museu de Arte Moderna (MAN) do Rio de Janeiro. A partir do dia 20 de novembro do ano passado, a Pinacoteca de São Paulo recebeu as esculturas de Mueck. A exposição seguiu até fevereiro de 2015, com grande público. Se não fosse pelo tamanho das esculturas, algumas enormes e outras diminutas, à primeira vista seria fácil confundi-las com pessoas de verdade devido ao alto grau de detalhamento delas. O David, uma das obras mais conhecidas de Michelangelo, se fosse esculpido por Ron Mueck, usando os materiais de hoje no lugar do mármore da época do renascentista, ficaria muito diferente. Esses artistas podem ser alinhados dentro de uma mesma escola na qual Daiany Lima dá os primeiros passos na terra do pintor Pedro Américo e, quem sabe, assim como o conterrâneo, siga para a França e para o mundo a fim de encantar seus admiradores.

20

edição 04 | 2015

Caravela


Métodos e materiais Daiany passa, em média, duas semanas para concluir um trabalho. Mas não é raro um desenho seu ser finalizado numa escala de tempo que envolve até dois meses. A primeira etapa do processo é pegar uma foto de um cliente e inseri-la no que ela chama de grid. Geralmente as imagens que recebe são pequenas e tem algum grau de ruído, como ranhuras, manchas e amassados. Ela tira uma cópia da foto e desenha alguns quadrados sobre a imagem para poder ampliá-la. O procedimento é repetido na folha A4 em que a imagem será reproduzida. Feito o grid, começa o trabalho. Para fazer os desenhos evoluírem, Daiany tem de cumprir horário. O primeiro expediente tem duas horas e meia. À noite, ela emprega mais quatro horas na rotina artística. “Desenho às tardes, de uma às três e trinta e, à noite, de oito às doze”. A paraibana compra o material de trabalho em Campina Grande, a 127 Km de Picuí. Frequentemente usa lápis grafite de variadas graduações, dos tipos H e B. Geralmente os grafites H e B têm 20 graduações que indicam a dureza ou a maciez de seus traços. O H é o indicativo para hard (duro) e tem tonalidade mais clara. O B indica black (preto) e permite um traço mais macio e escuro. Para desenhar sombras, Daiany usa esfuminhos e pincéis. “Eu tenho lápis HB, 2b, 4b, 6b, 7b e 8b, esfuminhos números um, dois, três, seis e nove e pincéis do número zero ao doze”. Para efeito de textura de pele a artista diz que usa tanto os pincéis quanto um pedaço de algodão. Os métodos e os materiais empregados no

hiper-realismo tornam a arte, de fato, impressionante. Assim como Daiany, o chinês Paul Lung, o espanhol Juan Francisco Casas, o escocês Paul Cadden e o chileno Roberto Bizama usam poucos recursos para realizar os seus trabalhos. Além do papel, grafite, giz branco, carvão e caneta esferográfica são os materiais de rotina desses hiper-realistas. A jovem holandesa Rajacenna, também tem algumas semelhanças com Daiany Lima. A primeira é a idade, 21 anos. A segunda é que ela também é autodidata. Rajacenna gasta 40 horas para concluir um desenho. Dayane investe um pouco mais de tempo, dependendo do trabalho, ela passa dez dias desenhando, de segunda à sexta-feira, durante seis horas e meia por dia, totalizando 65 horas. Geralmente, Daiany aperfeiçoa a imagem que recebe por meio de fotografia. Ela diz que as pessoas costumam mandar mais de uma foto para que os personagens sejam agrupados numa só imagem. “Pedem pra eu ajeitar cabelo ou dentes, às vezes”, revela. E acrescenta: “Montagens têm bastante”. Quando finaliza o desenho, Daiany passa uma camada de spray para proteger o trabalho. Ela diz que o grafite se desprende do papel e, de acordo com o manuseio, a arte pode ser danificada.

edição 04 | 2015

Caravela

21


Trabalho autoral e futuro O trabalho de Daiany Lima e de todos os hiper-realistas tem, como principal característica, a precisão. Nesta modalidade artística a reprodução de imagens é uma prática bem comum. Mas isso não quer dizer que o hiper-realismo seja um “copiar e colar” da arte. Ele também tem o seu lado autoral. Um bom exemplo de criatividade autoral nesta modalidade é o trabalho de Ron Mueck, por exemplo. Daiany gosta de arte fantástica. “Criaturas mitológicas e fictícias, como anjos e ninfas, gosto particularmente”, confessa. “Mas tudo isso realista”, enfatiza.

A paraibana explica a diferença entre a reprodução e o trabalho autoral. “A reprodução é só copiar. Os poros são difíceis de fazer e os cabelos também. Não é fácil chegar à textura desejada. São necessários alguns processos. Mas para criar vou ter que me virar com sombra, musculatura e pose. Para isso eu pego modelos reais para não errar tanto”. Em síntese, o trabalho de criação exige mais imaginação. Para reproduzir, o que prevalece é a técnica. O artista gráfico holandês Maurits Cornelis Escher misturava a imaginação ao rigor técnico. Ele se destacou pela precisão matemática de seus trabalhos, transformando a geometria de suas li-


nhas em ilusões de ótica inimagináveis para um artista convencional. Daiany desistiu do curso de letras para se dedicar aos estudos de desenho industrial. Ela atualmente se prepara para voltar à formação acadêmica num curso que tem mais relação com sua arte. “Esse é o único da área de arte que eu achei aqui por perto. Na verdade o que eu queria era belas artes. Mas só tem no Rio de Janeiro”, explica. Neste ponto ela inicia um diálogo com Escher. O desenho industrial aproxima a arte da Matemática. Assim como o holandês produziu beleza a partir da geometria, Daiany pode enxergar um novo horizonte para o seu trabalho. “Meu sonho é um dia trabalhar com desenho animado estilo HQ ou anime. Mas o que está ao meu alcance é ser desenhista industrial. No momento é isso que quero. No futuro eu quero trabalhar na área de desenho”, avalia Daiany. O mundo artístico não é fácil. Mas vale um conselho de Escher: “Nunca pense antes de começar”. Em 1922 o holandês concluiu os estudos na Escola de Arquitetura e Artes Decorativas. No relatório final, o diretor escreveu que ele era um bom artista gráfico. Mas, segundo sua avaliação, “faltava-lhe o temperamento artístico adequado” porque a obra de Escher “era muito cerebral. Não era suficientemente emocional nem lírica”. O artista gráfico holandês, na verdade, era demasiadamente original e reivindicava uma aproximação entre a Matemática e a poesia. “Não se pode compreender a humanidade sem ver que Matemática e poesia têm as mesmas raízes”, disse. Desenho industrial, por sua relação mais íntima com a Matemática do que com a poesia, talvez seja a melhor escolha para Daiany, se ela não pensar na faculdade de belas artes antes de co-

meçar o curso. Escher, em seus diálogos com os matemáticos, certo dia disse: “Não sou professor de Matemática. Só quero causar um alvoroço”. Para Dainy e tantos outros jovens que se dedicam ao hiper-realismo não serem apenas designers diplomados, talvez devam focar no alvoroço, para poderem reinventar a própria arte.

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

23


IGOR DI CASTRO

Olhar por cima do muro A ideia de trabalhar com a representação do meio urbano me agrada muito. Mais do que apenas a síntese do que observo eu busco transmitir em meus desenhos o equilíbrio entre o subjetivo e o real. Tento “olhar por cima do muro”, buscando enxergar o contexto que torna a natureza irredutível em alguns aspectos e gravá-lo em uma superfície para torná-lo comunicável.

Estação Central de Curitiba

24

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela


EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

25


Museu Oscar Niemeyer

Centro Cívico de Curitiba

26

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela


Residência da Família Coelho.

*Igor Di Castro estuda Gravura na Faculdade de Belas Artes de Curitiba Praça do Japão edição 04 | 2015

Caravela

27


RAIMUNDO NETO

Pessoas são como livros Se eu possuísse um romance inteiro no corpo, eu seria um livro ou uma pessoa?

L

eio pessoas, invariavelmente, todos os dias. Leio livros na maior parte do meu tempo disponível. Leio pessoas de trás para frente; releio as páginas que desfizeram minha calma, e busco entender o que não pode ser absorvido pela distração da consciência. Converso com livros que me conquistam com a alma exposta no sorriso discreto; aqueles livros de olhar fixo, com uma história de sincera busca por certezas e permanências. As palavras dos livros, que abraçam meu desentendimento e esperam o tempo da minha solidão parar dentro do tempo do amor que nunca se resguarda, salvam-me do cansaço e da preguiça. Quero um livro de alma terna contornando meus arremedos de homem equivocado, oferecendo-me uma surpreendente amizade. Experimento pessoas bem escritas, esplendidamente preparadas, subitamente definitivas, que escorrem da minha estante quando resolvo esparramar-me no quarto e esperar a melhora do dia. As palavras, nos livros, costuram o silêncio do meu corpo; fica em mim o mutismo absoluto dos que nada têm a salvar. Ouço apenas todas as palavras que se espalham dentro do quarto. Visto

28

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

os sentidos dos livros, desabotoo a preguiça de ser outro. Liberto o que não tenho certeza que é meu; deixo os fios do desejo, por alguma verdade, soltos. Às vezes abandono livros. Deixo-os espalhados pela casa, como armadilhas de quieta felicidade, um estalo contido de algum mistério, de quem escreveu ou de quem me emprestou sentido. Uma pilha de livros ocupa o lado esquerdo da cama. Quando me abarrota o sono, o corpo dormido esbarra nas pontas dos livros; abraço-lhes o sentido fechado que dorme comigo; alguns escorregam da cama e espalham o som da sua noite muda. Acordo agarrado à madrugada, acendo uma luz e leio uma página do primeiro livro que a mim se entrega. Deixo um dedo preso na página daquele alvorecer: quero acordar dentro do sonho de um livro melhor que eu. Há um livro de emergência embaixo da cama, para salvar o dia triste em que tudo se perde do futuro; há outro livro na mesa de jantar, no banheiro, na casa dos outros que me pediram emprestado. Há um livro dentro de mim e milhões de pessoas que precisam ser lidas. Abandono pessoas. Ou um toque meu afasta-as. É uma fuga que elas me deixam exercitar.


nidamente. Lê-se um parágrafo, fecha-se a pessoa, pousa-se a consciência na quietude do tempo e ofende-se a pessoa com um exagero de admiração por ela ser tão bem escrita. Sou possuído por um desejo vigoroso, espesso, todos os meses: ter pessoas não lidas na estante, aos montes. E a qualquer momento, poder escolher a pessoa que me arrebatará com seus sentidos, que despedaçará minhas palavras sem majestade. Então acordar na beirada da noite, entrar nas proximidades da estante repleta, e, às cegas, escolher a próxima pessoa que me deixará em estado de verbo. Antes de sair, abrir os olhos e retirar a pessoa que me acompanhará no dia seguinte livre de medo e tumulto. Gosto de segurar no colo uma pessoa de páginas lidas há muito tempo; depois de abri-la com uma moderação religiosa na página guardada que se revelou para muitos outros leitores, extraio a fibra do significado, o sentido que a faz necessária. Prefiro não ter pressa para terminar pessoas intensas, de linhas extensas, sentidos carregados, que contam a vida dos personagens despretensiosa e incansavelmente, que relatam seus desasWanderson Viana

Deixo-as espalhadas pela casa, como fantasmas que se repetem dentro do passado. Pessoas que me deixaram são páginas perdidas, ignoradas, nas gavetas de um leitor ingênuo. Não arranco as páginas das pessoas que não suporto. Deixo-as intactas, até que o tempo as deixe livres para outro leitor mais apropriado. Todo livro tem sua pessoa preferida, que é citada como a palavra preferida; o apego chega a consumir a disposição curiosa das pessoas seguintes. Tenho tempo solto para ler pessoas, não quero hora marcada para começar um mundo novo, preciso delas como uma graça. Carrego sempre uma pessoa preferida para qualquer lugar. Quero tê-la por perto quando a bruma abafada do tédio pousar sobre o meu mundo. Deixo passagens marcadas nas pessoas lidas e relidas como uma oração; é um sopro de beatitude sobre o mal que se estabelece. Confundo pessoas e livros com facilidade. A substância dos dois pode ser uma ficção, e a verdade é sempre uma construção de sentidos destemidos. Algumas pessoas nunca permitem a entrega em suas últimas páginas; nunca cheguei ao final de algumas. O fim da leitura é postergado, indefi-

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

29


tres de amor como se fossem uma apresentação circense. As pessoas delgadas, de leitura rápida, e viva, costumam salvar viagens modorrentas ou dividem a atenção com uma visita descuidada que me toma uma tarde inteira. Sinto cheiro de pessoas recém-chegadas, de uma vida distante da minha. Passo o nariz nas dobras e sinto um sentido fragrante de novidade. Palavra tem cheiro brando, que abre no peito a sensação de deslocamento, ir e não retornar de imediato, permanecer do outro lado do mundo que não morrerá quando aquela pessoa se fechar. Cheiro as páginas daquelas pessoas recém-chegadas. Depois de rasgar-lhe a embalagem e o capricho que as protegeu de uma viagem exaustiva, absorvo o aroma de cada letra. Ainda desconhecendo a narrativa, o cheiro, mesmo disperso, destrava os trincos da expectativa e abre uma passagem para o entendimento. Já beijei os cantos da boca de um livro, cuja coragem de me ter como interesse inquestionável não se constituía uma verdade, e senti o corpo entornar todas as palavras sobre fim e recomeço que eu nunca soube que em mim existiam. Enchi o chão sob meus pés de palavras valorosas. Uma poça de sentidos aos pés do livro que não me quis. Tem sido difícil compartilhar pessoas preferidas com alguns livros; divulgar trechos que despertam o interesse alheio é sagrado, é dividir um mistério implacável que absorve a ignorância de quem segura o livro e não se permite o caos da descoberta. As pessoas preferidas e suas páginas ficam na estante, escondidas, nas sombras da minha mesquinharia cuidadosa. Mas já emprestei pessoas preferidas, que nunca voltaram. Faço anotações frugais nas bordas das páginas de algumas pessoas. A intenção moderada não é

30

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

fixar posse, demarcar território. É que se elas ganharem o mundo dos outros, compartilharão involuntariamente a minha permanência, a lápis e borrão. Algumas pessoas não ofertam o sentido esperado; alguns livros abusam da minha paciência, salpicada de sacrifícios mínimos, e se tornam decepcionantes. Exatamente porque sempre descubro que são aquilo que esconderam apenas de si: mal escritos. Uma pessoa me diz Sou a conquista dos teus dias inglórios. Um livro me diz Sou a conquista dos teus dias inglórios. E não sei mais quem é quem. Cresço dentro das experiências que os livros declaram. Apago meus esboços. Refaço-me. Cresço nas linhas das pessoas que se revelam. Prendo minha respiração a delas. Permito que seus pensamentos preencham os meus. Talvez eu só saiba pensar o pensamento dos livros. Dissociei de tanto ficcionar.

Raimundo Neto é psicólogo e escritor


RODRIGO MENEZES

Wanderson Viana

MORRA! Existem pessoas Que morrem uma vez. Outras: incontáveis... Existem pessoas Que sentem, agonizam. Outras: inabaláveis... Existem pessoas Que gritam, contorcem. Outras: suave... Existem pessoas Que antevêem, antecipam. Outras: nem sabem... Algumas moribundam, Outras: deleitam. Algumas enfrentam, Outras: enfeitam. Algumas renascem, Outras: enterram. E as que renascem: Essas imperam! Pois ouça-me, irmão Não te esqueças: Muitas mortes virão, Não esmoreças! Chorar te engrandece. Sofrer te empodera. Morrer te faz forte. (Ou um bom poeta...)

Rodrigo Menezes nasceu em Brasília/DF em 1989. Foi o vencedor do “Concurso Novos Poetas – Prêmio Sarau Brasil 2013”, promovido pela Editora Vivara, e em 2014 foi ganhador do terceiro lugar na Categoria Livre do XVII Prêmio Cidadão de Poesia do Sindicato dos Empregados no Comércio de Limeira e Região. Publicou de forma independente o livro “Catarses & Levezas”, pelo Clube de Autores. Mantém o blog www.catarse-terapeutica.blogspot.com.br Contato com o autor: rodrigomenezes13@gmail.com

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

31


MANASSÉS DE OLIVEIRA

Pessimista convicto Eu já acreditei em textos poéticos, em prosas honestas, em contos de fadas e em histórias em quadrinhos. Já acreditei na meditação das palavras, na prática da teoria e em teoria na prática. Eu já acreditei em amor sem medida, na ética, em vidas e corações modestos e no clichê dos sonhos impossíveis. Eu já acreditei em amizade sincera, solicitude descompromissada e em compromisso social. Acreditei numa sociedade que respeita as individualidades, em indivíduos corretos, em família unida, em gratidão e, acredite, em fidelidade.

32

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

Hoje eu acredito que não vale a pena acreditar que ser honesto é possível e que é possível respeitar o outro e, até, não ligar pra materialidade da vida. Hoje não acredito que a vida basta. Que basta apenas ser, sem ter nada. Não acredito em partilha, em simplicidade, no próximo, em mulheres maduras e em homens apaixonados. Eu não acredito, enfim, que acreditar nas coisas me levará à paz de espírito e nem que este poema seja, sinceramente, a expressão honesta de um pessimista convicto.


Novaes

Ela tinha brincadeiras analógicas, cantigas e recreios analógicos. A aula, a prova, as notas eram analógicas. Até a reprovação se dava desta forma.

Escola analógica A minha escola era analógica. Era de papel e tinta, giz de cal, mimeógrafo, cheiro de álcool.

Agora é tudo digital: a burrice, o diretor, a professora, o mimeógrafo, chamado de computador. O cheiro da tinta no papel, as notas, a reprovação... A escola. Bem-vinda, escola digital! Como você é diferente...

A burrice da minha escola era mecânica. O diretor era analógico, a professora era analógica, o colega ao lado também era analógico.

Manassés de Oliveira é jornalista

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

33


Novaes

WIGVAN PEREIRA

Modo de evangelizar

H

oje, domingo, três mulheres e uma criança me chamaram no portão. Elas queriam me falar de Deus. Costumo receber as pessoas, por uma questão de delicadeza, ouvi-las com respeito e me despedir depois, sem delongas e aceitando panfletos. Mas hoje não. Hoje eu me senti no direito de dizer que não queria escutar, obrigado, assim, educadamente. “Deixa essa mulherzinha pra lá, vai pro inferno de qualquer jeito”, disse uma senhora, cuspindo no chão e provocando risada. Nem dou conta de lembrar tudo o que foi adjetivo jogado contra a minha cara durante os anos - a linguagem que se pretende ofensiva é bastante criativa. Tivéssemos o mesmo esforço para lapidar elogios, nossa língua seria ainda mais rica. Não me lembro a primeira vez que me chamaram de bichinha, de gay, de viado, de florzinha, de morde-fronha, de boiola, de pão-com-ovo, de ploc-ploc, de paneleiro...

34

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

Mas: lembro que foi com cuspe. lembro que foi com chute. lembro que foi com riso. lembro que foram 7 meninos. lembro que fui parar no hospital, ossos do braço e dois dentes quebrados, precisou dar ponto, onze, para meus testículos não saírem, precisei tomar hormônio, precisei ficar de cama por dois meses sem conseguir me sentar. Ali, na frente da minha casa, tudo isso voltou, como era natural que voltasse. Então, eu disse, disse tudo. Com calma e respeito, como eu sei, sem agredir de volta. Fiz uso da minha capacidade de entrelaçar palavras. Fiz uso do conhecimento que tenho de gente. Fiz uso do meu pensamento rápido. Fiz uso dos meus três diplomas, quase quatro. Fiz uso da doçura que me foi ensinada. Fiz uso da minha bíblia em hebraico. Fiz uso de lágrima também, porque não dá para não chorar quando se fala de uma violência sofrida quando se tem nove anos. Com a minha calma didática expliquei que não me sentia ofendido em ser chamado de mulherzinha porque para mim “mulher” não é uma ofensa. Expliquei que cada pessoa é responsável pelo seu corpo. Expliquei que não precisava que ninguém aceitasse nada, que não estava pedindo permissão para exercer a minha liberdade. Calei também para dar espaço ao pensamento. Ninguém ria mais. Me pediram desculpas. Aceitei. Ofereci água. Aceitaram. Hoje, domingo, evangelizei. Do meu modo, claro. *Wigvan Pereira é Licenciado em Filosofia e Doutorando em Ciências da Literatura, escreve também para os sites A Janela, A Gambiarra, Eh! Già!, O Bule e é editor da Revista Compota.


JACKSON BOA VENTURA

Vistam-se de branco

Brasil

E o arco-íris será o rastro de minhas novas vestes. Quando eu partir mantenham-se atentos ao som da brisa, serei eu, entoando a eterna canção de amor que compus para vós. Reúnam-se para tomarem café durante a tarde e lembre-se do meu sorriso torto, mas sincero, das minhas histórias exageradas, do meu colo e do meu macarrão. Vistam-se com vestes brancas, recomecem a cada dia, vivam ferozes. Por mim, por nós.

Imagem: Acervo/Agência

S

e eu partir em breve e meus dias não forem tão longos quanto o sol quero que me cubram com as flores das mais diversas cores. Quero que vistam trajes brancos, alvos com a neve, e cantem junto com os anjos. Quero que pensem em mim quando o sol se puser. Pois de todos os momentos da vida, os pores-do-sol são os que mais me pertencem. Durante eles eu me entrego para a vida, ou a morte. Peço que se tiverem de derramar lágrimas, que o façam no mar. Pois de algum lugar eu as colherei. Peço que dancem na chuva, pois esta será minha resposta. Desse modo saberão que eu também sinto falta de vocês. Se eu partir, tenham certeza de que sonhei o que muitos não sonharam em uma vida de cem anos. Saibam que viajei por muitos lugares, conheci pessoas incríveis – no sentido literal da palavra, fui amante de muitos amigos, amigo de muitos amores. Tenham certeza de que amei incessantemente, que os desejei com toda minha alma de criança. Por favor, experimentem andar descalços, sintam a energia do solo, gastem horas olhando o céu, contemplem as estrelas e se me for permitido eu os presentearei com sonhos tranquilos. Prometam-me que aprenderam coisas novas, se desafiarão. Se eu morrer jovem, serei a liberdade nas asas de um pássaro. Serei o cobertor de muitos durante a noite.

*Jackson Boa Ventura é designer e, além disso, sensível. Um verdadeiro poeta!

EDIÇÃO 04 | 2015

Caravela

35


MĂ­dia colaborativa: livre, democrĂĄtica e diversa!


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.