Revista Atrium

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Revista Atrium Revista de humanidades - Ano 1 - Nยบ 1 - abril / 2015

2015 Atrium


Revista Atrium - Ano 1 - Nº 1 - abr 2015

Editorial Caro(a) leitor(a), é com imensa satisfação que oferecemos a você o primeiro número da Revista Atrium, uma revista de humanidades de veiculação anual por meio eletrônico. Com o objetivo de divulgar e valorizar produções tanto de cunho acadêmico quanto de cunho artístico, contemplando, inclusive, as diferentes linguagens, a Revista Atrium tem como proposta constituir-se como um espaço central para o qual convergem várias áreas do conhecimento, fazendo, ao mesmo tempo, circularem os diversos saberes, na maior parte das vezes segmentados em revistas especializadas de público restrito. Por essa razão, a linguagem prima pela clareza dos termos e princípios, sem, contudo, destituirse do conteúdo técnico e científico. Para tanto, este periódico divide-se nas seguintes seções: Entrevista, Opinião, Artigos, Revelando o Vale, Literatrium e Perfil. Nesta primeira edição, abrimos a seção Entrevista com chave de ouro. Os entrevistados são o consagrado escritor, roteirista e compositor Bráulio Tavares e um dos mais importantes ícones da literatura nacional contemporânea: Marina Colasanti. A Revista Atrium enfoca ainda neste número, em Opinião, um tema atual que tem gerado bastante polêmica: a extinção das torcidas organizadas. Para expor seu ponto de vista sobre o assunto, o nosso convidado é um dos maiores especialistas na área: Maurício Murad. O leitor que se interessa por temas mais acadêmicos voltados para a área dos Estudos da Linguagem, encontrará, na seção Artigos, pesquisas que enfocam desde o discurso publicitário e sua contribuição para a (re)construção de valores sociais até os discursos pedagógicos na e para a sala de aula, como é o caso do artigo que discute o papel da cultura para o ensino de língua estrangeira e do que analisa as contribuições e limitações decorrentes do uso de livro didático para o ensino de inglês na escola pública. E, como que para “amarrar” tudo isso, um quarto artigo percorre os meandros da escrita (no caso, a escrita de si) como lugar possível para o sujeito (re)construir sua identidade. Para tal, a autora tece uma análise discursiva de viés psicanalítico de uma obrapor ela considerada autobiográfica, de Contardo Calligaris.. Já os que apreciam uma visão mais artística da realidade são presenteados, em várias páginas da revista, com a sensibilidade e a habilidade artística ímpares do consagrado desenhista guaratinguetaense Tom Maia. Com seus desenhos a bico de pena, o artista nos oferece um trabalho histórico sem igual ao registrar paisagens e cenas pitorescas de todo o Brasil e, em especial para esta edição, do Vale do Paraíba, região localizada no interior do Estado de São Paulo, também brilhantemente retratada pelo olhar aguçado e, ao mesmo tempo, poético do fotógrafo Luciano Dinamarco, na seção Revelando o Vale. A Atrium conta ainda com uma seção voltada à literatura, a Literatrium, que abre este número com um conto envolvente “Aposentadoria” -, de Marcelo Menezes. Não deixe de ler; você vai se surpreender. E quem não se lembra do inesquecível e emblemático Capitão Aza, fenômeno televisivo da década de 60 cuja plateia de admiradores era formada sobretudo por crianças de todo o Brasil? Em Perfil, você poderá reviver essa época acompanhando a extraordinária trajetória de vida dessa personalidade, cujos feitos de super-herói não se limitaram às telinhas. Boa leitura! Daniella Menezes

Revista Atrium é publicação eletrônica gratuita e anual de humanidades: ciência, comunicação, literatura, artes e cultura geral.

Expediente Editores Daniella de Almeida Santos Ferreira de Menezes Marcelo Ferreira de Menezes

Edição final

Daniella de Almeida Santos Ferreira de Menezes

Conselho Editorial

Adriana Cintra de Carvalho Pinto Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP)

Daniella de Almeida Santos Ferreira de Menezes Doutoranda em Letras (USP)

Eliane Freire de Oliveira

Doutora em Ciências da Comunicação (USP)

Glória Cortés Abdalla

Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP)

Lúcia Maria Marques Gama Lacaz

Doutora em Linguística Aplicada (UNICAMP)

Marcelo Ferreira de Menezes Graduado em Letras (UFF)

Maria Dolores Wirts Braga

Doutora em Letras (USP)

Paula Tatianne Carréra Szundy

Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP)

Ilustrações

Tom Maia

Diagramação

Maria Júlia Egreja

Contato

E-mail: revistaatrium@gmail.com

A Revista Atrium autoriza a reprodução parcial ou integral de seu conteúdo, desde que devidamente informadas a publicação de origem, as fontes e os respectivos autores.


Sumário Entrevista

Bráulio Tavares Marina Colasanti

Opinião

Maurício Murad

Artigos

Maria Dolores Wirts Braga Daniella de Almeida Santos Ferreira de Menezes / Adriana Cintra de Carvalho Pinto Lúcia Maria Marques Gama Lacaz Glória Cortés Abdalla

Revelando o Vale

Luciano Dinamarco

Literatrium

Marcelo Ferreira de Menezes

Perfil

Capitão Aza

Acesse: revistaatrium.blogspot.com


Entrevista BRAULIO TAVARES - Poeta, escritor e compositor, estudou

na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). É colunista do Jornal da Paraíba e escreve roteiro para shows, cinema e televisão. É romancista premiado em Portugal, com o Prêmio Editorial Caminho de Ficção Científica, em 1989. Parceiro de Lenine, Ivan Santos e Lula Queiroga, tem cerca de 60 composições gravadas por vários artistas da MPB, entre eles MPB4, Elba Ramalho, Maria Rita, Skank e internacionais como a cantora norte-americana Dionne Warwick.

REVISTA ATRIUM: O que motivou o senhor a se tornar escritor e como foi o início? BRAULIO TAVARES: Nasci numa família - pelo lado paterno - de jornalistas e poetas, como eram meu avô, meu pai e meus tios. Escrever era algo que se aprendia desde a infância como algo natural, como brincar ou jogar bola. Não havia a expectativa nem a cobrança de ser escritor. Na verdade, meu pai esperava que eu me tornasse jornalista ou advogado, mas sempre me encorajou a escrever poesia (ele era mais ligado em poesia do que em prosa). Escrevi desde cedo, mas comecei a publicar relativamente tarde. Meu primeiro livro publicado foi um folheto de cordel, escrito em 1975 e publicado em 1979, “A Pedra do Meio Dia, ou Artur e Isadora”. Foi reeditado como livro infantil em 1998 (pela Editora 34, de São Paulo) e é hoje o meu livro mais vendido.

“Escrever era algo que se aprendia desde a infância como algo natural, como brincar ou jogar bola.”

RA: Que escritor o senhor considera que teve maior influência na formação de seu estilo? BT: Sinceramente eu não creio que tenho um estilo literário definido, porque as influências são variadas, e, em cada conto que escrevo, procuro um tom meio diferente, uma mescla de vários estilos. Por outro lado, não acho que influência diga muita coisa boa. Tem escritor jovem que diz: “Sou influenciado por Machado de Assis, Kafka, Joyce, Balzac, José Saramago...” E daí? O que quer dizer isto? Que ele tenta escrever igual a eles? Que adota os mesmos temas usados por eles? As influências são o lado negativo da nossa obra, estão na coluna do “Débito” e não na do “Crédito”. O que temos de perguntar a um escritor é: “Existe algo que você considere uma contribuição tipicamente sua para a literatura?”. No meu caso, a resposta seria “não”. Costumo caminhar por caminhos já percorridos, mesmo que por pouca gente. RA: Como foi receber o Prêmio Editorial Caminho de Ficção Científica, em 1989, concedido pela editora de José Saramago?

BT: É o prêmio que mais me orgulho de ter recebido, inclusive porque foi conferido ao meu melhor livro, aquele que eu escolheria para preservar se todo o resto tivesse de ser destruído. Ele me proporcionou aos 39 anos minha primeira viagem para fora do Brasil, e foi em grande medida um triunfo coletivo da minha geração de escritores, porque, sem o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC) e o seu fanzine, o “Somnium”, meu livro não teria sido escrito. RA: Como o senhor vê o panorama da literatura brasileira de ficção científica hoje em dia? BT: Existe uma atividade editorial muito intensa, centralizada em São Paulo, com muitas pequenas editoras produzindo livros de excelente qualidade gráfica, e aos poucos encontrando canais de distribuição, resposta na imprensa, etc. Esse movimento é impulsionado pelo movimento dos fãs de FC, que já apresenta faixas de gerações sucessivas – o pessoal na faixa dos 50-60 anos, como é o meu caso, o pessoal na faixa dos 35-40 e mais uma porção de jovens que estão estreando. Vejo isso com muita alegria e otimismo; se existisse um ambiente editorial como este 20 anos atrás, eu teria me tornado um escritor de ficção científica. A crítica que faço (repetidamente) a esse movimento é que o pessoal é meio descuidado com o estilo, pensa só na história que está contando. Como leem apenas livros em inglês e livros (mal) traduzidos, muitos deles têm dificuldade em escrever uma prosa que vá além do “fanfic”. RA: Em seu artigo “A solução que caiu do céu” (Revista Língua), o senhor falou um pouco do clichê deus ex machina e de como esse recurso torna os finais das narrativas decepcionantes para os leitores. Buscamos orientar nossos alunos a evitá-lo em suas redações. Isso porque não se valoriza o trabalho de intrincamento entre os elementos constantes na trama, o que permite que o redator conte qualquer história, por mais absurda que pareça, para no final informar ao leitor que tudo não passava de um simples sonho. Perguntamos: esse recurso, despertar de um sonho, enquadra-se nesse mesmo caso de “deus ex machina”? Eu tenho essa mesma impaciência quanto às histórias que no fim dizem ter sido tudo um sonho, um delírio, uma fantasia... E não são apenas redações de estudantes – muitos grandes contos da literatura seriam melhores ainda sem esse recurso. Não acho que se aplique a eles o termo “deus ex machina”, porque me parece que neste caso específico se alude a uma interferência externa de alguém que vem salvar o herói de um perigo ou esclarecer uma situação confusa. É o “deus que desce do céu com a ajuda


Opinião por que NÃO acabar com as de máquinas”, algo que não fazia parte da história até então, não fazia parte da equação literária e vem apenas para salvar, na verdade, mais o autor do que o personagem. O “Foi Tudo Um Sonho” é irmão de sangue desse recurso, talvez não seja exatamente a mesma coisa. RA: O emprego desse recurso no cinema, na televisão e na literatura tem um contexto bem diferente do de uma redação produzida para avaliação seletiva. Há até exemplos interessantes na literatura brasileira, e um deles é o de Aluísio Azevedo, em seu livro de contos chamado “Demônios”. Nesse livro, o primeiro conto, também intitulado “Demônios”, se vale de uma solução quase parecida. O narrador revela que toda sua narração era apenas o que ele escrevera numa noite de insônia. BT: O conto “Demônios” foi incluído por mim na antologia “Páginas de Sombra - Contos fantásticos brasileiros”, que organizei em 2003 para a Casa da Palavra. É um grande conto, e seu maior defeito é justamente esse final esvaziador. Meu conselho aos autores é que procurem imaginar um final surpreendente, original, e que depois comecem a contar a história tendo esse final em vista, sabendo aonde querem chegar, mas sem dar muitas pistas ao leitor, para que seja uma surpresa, sim, mas não uma surpresa que é uma mera negação do que foi contado antes. Escritores jovens ou principiantes também tendem a usar esse recurso do sonho porque é o estado mental mais parecido, na experiência de vida deles, ao ato criativo-imaginativo-literário em que estão mergulhados ao escrever.

RA: Em um de nossos contatos, o senhor utilizou a expressão “final onírico”. Este é o termo pelo qual os autores se referem a esse artifício ou é uma criação sua? BT: Chamei de finais oníricos por falta de outra coisa. Não acho que exista um termo específico para isto. Um termo frequente, mas mais amplo, é “final surpresa” (ou “surprise ending” em inglês), aquele final que passa uma rasteira no leitor. O final “era tudo um sonho...” muitas vezes entra nessa categoria, mas nem sempre.

RA: Brasileiro gosta de ler? BT: Essa pergunta é muito ampla; há 190 milhões de brasileiros e nem todos podem, conseguem, sabem, gostam de ler. Mas o crescimento do poder aquisitivo que inflou a Classe C (dizem que ela hoje corresponde a 51% da população) vai ampliar a base de leitores do Brasil. Talvez estejamos criando as condições para que em breve haja aqui um fenômeno de literatura de massa parecido com o da pulp fiction norte-americana dos anos 1930-50, só que agora conjugado a fatores imprevisíveis como o livro eletrônico e a revista multimídia. Seria bom que isto ajudasse o surgimento de gêneros literários brasileiros, consolidados, gêneros pouco ou não conhecidos em outros mercados. Já pensou, um florescimento de um “corpus” de romances afro-brasileiros, de uma poesia indígena urbana, de épicos de cangaço, de cordel-pop dos morros e periferias? E sem dúvida haverá um espaço para uma FC brasileira, um terror brasileiro, um policial brasileiro, etc.

TORCIDAS ORGANIZADAS? 1) Porque os vândalos são minorias dentro das organizadas. Entre 5% e 7% dos integrantes das organizadas é que se envolvem em atos de vandalismo, agressividade e violência, de acordo com as pesquisas que coordeno, desde 1990, primeiramente na UERJ e agora no mestrado da Universo. 2) Não adianta, porque elas não acabam de fato, retornam com os mesmos dirigentes, endereço, símbolos. Só mudam mesmo o nome, como foi o caso da “Mancha Verde”, do Palmeiras, para “Mancha Alviverde”. E isso, claro, é uma desmoralização das autoridades, da Polícia e da Justiça. 3) Tentar acabar é empurrar para a marginalidade um imenso coletivo e aí é que fica mesmo difícil acompanhar, monitorar, controlar e punir em caso de transgressão. 4) As forças públicas de segurança têm a obrigação constitucional de garantir a ordem e a segurança, prendendo e punindo (de acordo com a lei e a segurança jurídica do país) os delituosos. Não se pode punir o “todo” por ações de “partes” desse todo. 5) Quando, por exemplo, um parlamentar (ou um policial) é flagrado em delito, quem é punido: ele, o partido a que pertence ou o próprio parlamento? Quando é punido (repito: quando é punido), é ele, somente ele. 6) Se pegasse essa moda, no Brasil, de acabar com a instituição, em decorrência do comportamento ilegal de membros dessa instituição, como ficariam o Congresso, a Justiça, a Saúde, a Polícia, a Educação, em nosso país? E essas são instituições essenciais ao bom funcionamento coletivo de uma estrutura social. Quando não andam bem, é preciso sim reavaliar, investigar e punir os autores de seus descaminhos, mas não acabar com elas. 7) Numa sociedade democrática e de direito, como a nossa (está consagrado em nossa Constituição), todos têm que seguir a lei e os que a transgredirem, deverão ser punidos; eles, e não as entidades às quais pertencem. 8) As torcidas organizadas fazem parte do espetáculo e do patrimônio cultural do futebol; coreográficas, alegóricas, mas pacíficas e ordeiras, dentro das regras e normas legais de uma sociedade democrática.

Maurício Murad, sociólogo da UERJ e professor titular do mestrado da Universo


CINCO perguntas para

Entre os dias 30 de setembro e 03 de outubro de 2014, a cidade de Lorena, em São Paulo, recebeu, no Teatro São Joaquim, a II Jornada Literária do Vale Histórico, promovida pelo Instituto Uka. Em seu segundo ano, o evento, que teve como foco temático As linguagens da literatura infantil e juvenil, ofereceu ao público palestras, mesas de debate, rodas de conversa e contou com a presença de personalidades como o escritor Paulo Lins, autor do livro Cidade de Deus, e Ferréz, autor de Capão Pecado. A II Jornada Literária não deixou de lado a boa música também, já que escalou ninguém menos do que o internacionalmente conhecido violonista Robson Miguel, virtuose no instrumento, para encerrar os trabalhos. Uma das estrelas da literatura nacional contemporânea, Marina Colasanti, eternizou a noite de abertura com palestra magna que versou sobre o tema A magia dos contos de fada na literatura. A Atrium esteve lá e teve o prazer de conversar um pouco com a carismática jornalista e escritora. Fizemos a ela cinco perguntas. Confira as respostas dessa verdadeira fada encantada de nossas letras. 1) Em sua palestra ocorrida em Lorena, na abertura da II Jornada Literária do Vale Histórico, a senhora demonstrou sua preocupação quanto à moderna tendência de suavização dos elementos constituintes e dos finais das histórias infantis clássicas, conforme a senhora disse, uma espécie de higienização dos contos infantis. Entretanto, tais histórias são fruto de uma longa tradição oral, o que pressupõe uma autoria coletiva e favoreceu, em alguns casos, como o das Mil e Uma Noites, a chance de outras versões para uma mesma história. O que desautorizaria a sociedade contemporânea de, seguindo o pensamento de sua própria época, promover os ajustes que julgar necessários aos contos dessa natureza? MARINA: A pergunta envolve duas questões diferentes. Uma é o hábito, nas escolas, de pedir às crianças para criarem finais diferentes para histórias já existentes, como meio de implementar a imaginação e a escrita. Com isso, entretanto, transmite-se à criança a ideia de que qualquer final vale, quando a verdade é que um conto é uma construção consequente em que o final é construído paulatinamente desde o início. Outra é reescritura dos contos clássicos. Reescrevê-los é perfeitamente legítimo - o próprio Andersen reescreveu muitos contos do folclore, assim como Monteiro Lobato. Não foi a isso que me referi na palestra. E sim à modificação “higienizante”promovida em prol do politicamente correto. O politicamente correto pode ser muito perigoso, porque não representa a voz popular, mas a de lideranças que querem impor sua própria moral. Lembro que, durante o fascismo, na Itália, estátuas clássicas tiveram as partes sexuais cobertas com pudicas folhas de hera, e na China, durante a revolução cultural, inúmeras e preciosíssimas obras de arte foram destruídas.

4) Fala-se muito no papel da literatura como fator de transformação da sociedade. Em geral, os exemplos de seu poder de intervenção na realidade tomam por base inevitavelmente a educação, o que determina uma relação mediata, sempre sujeita ao tempo. A senhora consegue enxergar alguma possibilidade de ela intervir de forma mais imediata nos problemas que nos cercam, em áreas como política e/ou economia, por exemplo? MC: Não sei exatamente o que você quer dizer por “imediata”. A leitura literária intervém na formação das pessoas, a formação das pessoas vai determinar suas escolhas, e as escolhas das pessoas determinam a evolução do mundo ao seu redor. 5) Jornalismo e Literatura são duas áreas bastante íntimas e, não raro, os limites entre elas se confundem, dividindo a opinião de especialistas. No entanto, um ponto tênue e, ao mesmo tempo, incontornável, se coloca como elemento definidor: a verdade factual. É possível mensurar o quanto da Marina jornalista se encontra na Marina escritora? MC: Não sei com que metro você mediria isso, nem a que tipo de trabalho você se refere. Se está falando de crônica, as duas atividades se cruzam, porque a crônica como gênero é exatamente o cruzamento de literatura e jornalismo. Se está se referindo à poesia ou ao conto ou aos contos de fadas, uma atividade é completamente ausente na outra. O fato de ter um bom texto não significa que eu esteja fazendo literatura quando, por exemplo, fizer uma reportagem ou uma entrevista.

2) Parte de sua obra é dedicada a um diálogo com o universo mítico dos contos de fada. Os mitos sobrevivem a um mundo sem sombras, assepsiado pela luz elétrica? MC: Os mitos não precisam da sombra exterior para viver, e sim daquela que se aninha no interior dos seres humanos, e que os distingue das outras espécies vivas. Esta continua inalterada.

3) Em uma de suas falas, a senhora disse que, ao contrário de toda sua obra, que se pauta na racionalidade, os contos de fada não nascem da técnica, antes são fruto do livre fluxo do inconsciente. Ainda que seja uma experiência pessoal e que, segundo a senhora, não tenha qualquer relação com mágica, essa parece ser uma prática restrita a poucos. Na sua visão, a produção de contos de fadas é menos democrática do que a sua leitura? MC: A escrita é democrática, porque aberta a todos. Todos podem escrever. Assim como todos podem ler. Para ser escritor, entretanto, exigese um talento específico. A arte é sempre mais acessível na fruição do que na realização. Mas eu não usaria para isso a palavra “democracia”, que tem outro perfil.

Marina durante palestra na II Jornada Literária do Vale Histórico

Revista Riff

Marina Colasanti



O PROGRAMA DO LIVRO DIDÁTICO DE INGLÊS NA ESCOLA PÚBLICA: uma questão de verdade e poder

Maria Dolores Wirts Braga¹

1. Introdução Desde a consolidação da legislação do livro didático em 1945 e com a criação do PNLD em 1985, essa política pública fundamental tem sido aprimorada para cumprir suas funções tanto em relação à produção e distribuição de livros didáticos às escolas públicas brasileiras quanto à transparência do processo, aos ajustes em relação à demanda, às correções de falhas e à coibição de fraudes e lobbies. É certo, porém, que sempre haverá espaço para novos acertos e adaptações. Para percebermos os efeitos da primeira adoção nacional do livro didático de inglês na escola pública brasileira, colhemos as respostas de professores que utilizam esses materiais, isto é, o livro didático de inglês (doravante, LDI) do PNLD 2011. Através das respostas desses professores ao questionário, pudemos perceber os pontos do programa que representam algumas de suas satisfações e seus descontentamentos. De modo geral, os professores receberam com grande entusiasmo o LDI. É interessante observar que mesmo aqueles que nos apontam mais críticas que elogios ainda têm o LDI como algo muito positivo e muito bem-vindo à escola pública. Em relação ao aprendizado, os principais pontos positivos elencados pelos professores concernem ao apelo visual do material, que causa a motivação e o interesse do aluno; à possibilidade de o aluno estudar em casa com esse material; ao fácil acesso a textos, exercícios, à prática da pronúncia, ao conhecimento e à língua. Em relação ao ensino, os professores consideram que o LDI facilita seu trabalho de modo geral, contribui à organização dos conteúdos a serem ensinados, oferece uma “rota” a seguir, torna as aulas mais dinâmicas, complementa as informações culturais, dispensa a produção de exercícios extras e fotocópias, traz outras formas de trabalhar os conteúdos e, ainda, torna desnecessário “escrever o conteúdo no quadro”². Os professores que responderam ao questionário de pesquisa reconhecem que o livro didático do PNLD 2011 é fruto do trabalho profissional que visa ao bem-estar dos professores e dos alunos e que traz novas perspectivas para o ensino e para a aprendizagem da língua estrangeira na escola pública. É importante dizer que nenhum respondente se posicionou contra a adoção proposta pelo PNLD 2011 nos dois questionários. Portanto, as questões e preocupações colocadas pelos respondentes não concernem exatamente à proposta de adoção do livro didático de língua estrangeira na escola pública, mas estão relacionadas ao processo de adoção propriamente dito e à qualidade das coleções didáticas. Uma questão ainda um tanto enigmática no processo de adoção proposto pelo programa é o estabelecimento do período de três anos para a duração de cada programa e, consequentemente, para a validade de cada coleção do PNLD do Ensino Fundamental. Como sabemos, pela Lei nº 11.114

¹Professora na Faculdade de Direito FAPAN - São Bernardo do Campo nas disciplinas Linguagem e Interpretação de Textos e Linguagem e Argumentação. Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. E-mail: mdolores_2000_br@ yahoo.com.br ²As citações entre aspas não referenciadas localmente neste texto são excertos das respostas dos professores ao questionário de pesquisa.


de 16 maio de 2005, que inclui obrigatoriamente a classe de alfabetização no ciclo escolar, o Ensino Fundamental passa a ter nove anos de duração. A divisão desse segmento agora é composta por dois ciclos denominados anos iniciais (as antigas 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries passam a ser os 1º, 2º, 3º, 4º e 5º anos) e anos finais (as 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries passam a ser os 6º, 7º 8º e 9º anos). Portanto, a duração de cinco anos para os anos iniciais e quatro para os anos finais parece não justificar a troca de livros didáticos a cada três anos. Mesmo com um novo PNLD a cada três anos, cada coleção para os últimos anos do Ensino Fundamental deve apresentar quatro volumes, um para cada ano escolar. Porém, como vemos na projeção abaixo, no período correspondente ao curso, os alunos nunca utilizam os quatro volumes de cada coleção e, consequentemente, nenhuma coleção iniciada chega ao término para os alunos de um mesmo ano escolar, uma mesma turma.

Triênio 1º Triênio 2ºdo LDI do LDI (novo) 2011 2012 6º ano 7º ano 8º ano 9º ano

2013

2014

7º ano 8º ano 9º ano

8º ano 9º ano

9º ano

6º ano

7º ano 6º ano

2015

2016

8º ano 9º ano 7º ano 8º ano 9º ano 6º ano 7º ano 8º ano Fig. 1: Quadro de projeção da adoção trienal do LDI por ano escolar

Portanto, parece-nos que o processo de adoção não teve como foco principal a preocupação com o aluno. Isso porque os alunos que estavam no sétimo, oitavo ou nono ano em 2011 tiveram de lidar com uma coleção já em andamento (segundo, terceiro e quarto volumes respectivamente) e planejada nos moldes do PNLD, com sua sequência própria de conteúdos, ênfase nas quatro habilidades, entre outros aspectos que, certamente, se apresentaram como novos aos alunos desses anos. Em relação ao aluno, dois aspectos – adequação à realidade e ao nível de conhecimento linguístico – se repetem nos dizeres de professores que responderam ao nosso questionário. Dizeres como “os alunos não têm pré-requisito para acompanhar a sequência do conteúdo”, “o nível de dificuldade poderia ser mais adequado/ajustado para cada série”, “ alguns temas são muito distantes da realidade do aluno”, “o aluno da escola pública tem um domínio aquém do desejado e/ou esperado para o seu nível de ensino” e “o conteúdo do livro não está de acordo com os conteúdos oficiais e nem com a proposta curricular” apontam à desconsideração do aluno, como um participante importante e decisivo no primeiro programa de adoção do LDI no Brasil. Também a desconsideração do contexto em que esse aluno se insere em relação ao processo de aprendizagem acaba por preterir elementos cruciais envolvidos na prática de ensino que podem alterar consideravelmente todo o projeto do programa em si. O número reduzido de horas para o ensino de línguas na grande maioria das escolas públicas brasileiras, como apontado por muitos professores respondentes ao questionário, pode ser o fator determinante do sucesso na implementação do programa. De todo o modo, segundo as declarações


desses professores, vários compromissos que o PNLD 2011 deveria garantir, como o livro consumível, a distribuição integral e a reposição anual dos livros, não foram realizados. O planejamento da carga horária dedicada ao ensino de língua estrangeira deverá, também, ser considerado pelos projetos e programas futuros sob pena de total insucesso. Através das respostas dos professores ao questionário de pesquisa, podemos perceber que outros compromissos do PNLD 2011 também não foram seguidos como planejados. Em algumas escolas, ambas as coleções são adotadas concomitantemente ou em anos consecutivos, ao contrário do que fora proposto pelo programa. Outros respondentes apontam, também, os problemas de distribuição dos livros, a carga horária reduzida, o número de alunos em sala de aula e a falta de equipamentos de áudio para o trabalho com o CD, parte integrante do material. Esses problemas marcam o cenário em que o aluno e o professor se inserem e, no dia a dia, podem colocar em risco o êxito do programa. Ainda assim, a cada triênio o PNLD se renova e se renovam as coleções. Esse curto período exige que, imediatamente após a adoção de uma coleção, as editoras já iniciem um novo trabalho de preparo de coleções para a próxima edição do programa. Sem que se tenha ainda sentido os efeitos da coleção anterior para os necessários ajustes, o próprio programa já reinicia a elaboração dos novos documentos, editais, contato com equipes de especialistas etc. Também os investimentos, tanto profissionais quanto financeiros, são renovados a cada triênio. O volume de investimentos na faixa dos oitocentos a novecentos milhões, conforme o quadro Valores Negociados, disponibilizado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação³, deve também ser renovado a cada triênio. Assim, tudo ocorre, na prática, num processo contínuo em que a cada momento o fim é adiado, pois o fim já é o próprio começo. Tal processo pode ser compreendido como próprio do funcionamento das sociedades de controle, conceitualizada por Gilles Deleuze ([1990] 2008). Para Deleuze, a modulação é o modo de ação da sociedade de controle, que não age por imperativos, como fazia a sociedade disciplinar. Modulações são moldes que se autodeformam, mudam constantemente, garantindo assim que nada chegue ao término. A garantia desse funcionamento interminável é possibilitada pelos princípios moduladores – ou dizeres que funcionam como modulações –, que regem a sociedade de controle, exigindo atualizações contínuas e, portanto, promovendo a motivação e assegurando o controle permanente. O ciclo trienal do PNLD é uma questão que fica ainda a ser respondida. Nesse sentido, é essencial a contribuição de todos os envolvidos, através de resultados de estudos, observações e apontamentos sobre a prática do processo de adoção de coleções didáticas na escola pública brasileira. Quando nos referimos ao processo de adoção, incluímos aí as muitas fases que o compõem; as principais são a elaboração, a escolha, a distribuição e a reposição das coleções didáticas. Podemos perceber nesse processo o controle que legitima alguns livros didáticos (os livros pré-aprovados) enquanto deslegitima outros e que deseja garantir as condições de sua produção, circulação e utilização em nossa sociedade. Esse controle já vinha sendo feito desde a adoção daquele que é considerado o primeiro livro para o ensino de inglês no Brasil (Grammatica pratica da Lingua Ingleza4) em 1863. A gramática de Corrêa foi “approvada pelo Conselho Director d’Instrucção publica” antes de ser liberada para o uso em sala de aula. O controle sobre as obras aprovadas de muitas disciplinas escolares foi renovado e intensificado em 1945 e, em 2011, com o início da adoção nacional do LDI, ele se estende à disciplina de inglês. Para percebermos a importância dessa expansão, que agora abrange a disciplina de inglês, consideraremos, a seguir, algumas observações sobre a relação entre as disciplinas escolares e a sociedade.

³ Cf. PNLD 2011 - Valores de aquisição por editora - Ensino - FNDE. Disponível em: www.fnde.gov.br . Acesso em: 5 mar. 2013 4 Grammatica pratica da Lingua Ingleza. Escrita por Filipe Maria da Motta d’Azevedo Corrêa em 1863.


2. Disciplina e sociedade Para pensarmos no ensino de inglês como uma disciplina escolar, recorremos à noção de disciplina segundo André Chervel5 e suas observações sobre o uso desse termo no contexto escolar na França. Para ele, “A disciplina é aquilo que se ensina e ponto final” (CHERVEL, A., 1990, p. 177). Essa definição sucinta e conclusiva não surge, para Chervel, alheia à história; ao contrário, e como sugere o “ponto final”, é precedida de um percurso histórico significativo. Até antes do século XX, o uso do termo disciplina no contexto escolar refere-se ao controle e repressão das atitudes para a vigilância da “boa ordem” dos estabelecimentos escolares, como podemos ler nas “determinações estabelecidas pela Junta do Comércio de Portugal em 1767 acerca da disciplina e do comportamento necessário nas aulas de comércio”6:

Alguns pontos remetem à necessidade de “decoro e silêncio”, de não se demorar a entrar nas aulas, bem como na entrada e na saída. Caso o aluno tivesse muitas faltas ou cometesse “culpas de maior escândalo”, como brigas, uso de navalhas, facas e “indecências”, seria advertido ou até mesmo expulso.

O termo disciplina só será usado para designar conteúdo de ensino a partir das primeiras décadas do século XX. Já na segunda metade do século XIX, há um amplo esforço pedagógico de renovação dos objetivos do ensino escolar que aproxima o significado do verbo disciplinar ao exercício de “ginástica intelectual”. A partir de 1850, a crise dos estudos de línguas clássicas, como o latim, pela ausência das respectivas culturas e de seus falantes nativos, traz consigo a noção de que esses estudos ainda se justificavam se tratados como exercícios para o desenvolvimento intelectual e espiritual do aluno. Em 1880, com a renovação pedagógica, a noção de disciplina como exercício intelectual passa a influenciar fundamentalmente a educação, propondo disciplinar a mente para desenvolver o julgamento, a razão, a combinação e a invenção. Essa noção permanece até o fim da primeira Guerra Mundial, quando então o termo passa a ser o modo de se classificar e denominar as diferentes matérias escolares. Mesmo assim, como nos lembra Chervel, o verbo disciplinar produz, até nossos dias, o efeito de sentido de controle sobre a conduta. Diz André Chervel (1990, p. 180) sobre o termo disciplina:

Mas, ainda que esteja enfraquecido na linguagem atual, ele não deixou de se conservar e trazer à língua um valor específico ao qual nós, queiramos ou não, fazemos inevitavelmente apelo quando o empregamos. [...] Além do mais, não tendo sido rompido o contato com o verbo disciplinar, o valor forte do termo está sempre disponível. Uma disciplina é, igualmente, para nós, em qualquer campo que se a encontre, um modo de disciplinar o espírito, quer dizer, de lhe dar os métodos e as regras para abordar os diferentes domínios

Professor de linguística e pesquisador, aposentado em 1983, permanece associado ao programa do Service à histoire de l’education Institut National de Recherche Pédagogique, Paris, França. 5

http://www.hitoriacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=749&sid=96 Acesso em: 25 fev. 2011.

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do pensamento, do conhecimento e da arte.

O que se pode perceber através desse resumido percurso histórico do termo disciplina é exatamente a relação entre “aquilo que se ensina” e a sociedade; isto é, os conteúdos de ensino parecem ter sido sempre estabelecidos a partir da forte influência da sociedade. André Chervel afirma, ainda com mais segurança: “Estima-se ordinariamente, de fato, que os conteúdos de ensino são impostos como tais à escola pela sociedade que a rodeia e pela cultura na qual ela se banha”7. Assim, o trabalho duplo que o sistema escolar desempenha, formando indivíduos de acordo com os valores da sociedade e da cultura que esses mesmos indivíduos formarão, conta com aquilo que a sociedade estabelece como conteúdo das disciplinas. Há, com as transformações dos valores sociais, um movimento a ser considerado e, segundo Chervel, “Nessas diversas evoluções, é a transformação do público escolar que obrigou a disciplina a se adaptar”. A disciplina, então, é observada como a construção social do “ensinável”, que torna o ensino possível, pois, segundo Chervel (1990, p. 200), “nesse processo de elaboração disciplinar, ela [a escola] tende a construir o ‘ensinável’”. Esse movimento circular atualiza-se em espiral a cada mudança no desenvolvimento dos indivíduos e da sociedade e, portanto, sem a fixação do “aquilo que se ensina”, o “ponto final” na definição de Chervel pode ser entendido como reticências8. Não é possível, nem fecundo, portanto, determinar a origem das transformações. Apesar disso, sabe-se que esse processo acaba se concretizando nas finalidades das disciplinas, naquilo que elas estabilizam por certo período, e nas diretrizes que estabelecem essas finalidades. Segundo Chervel,

se é verdade que a sociedade impõe à escola suas finalidades, estando a cargo dessa última buscar naquela apoio para criar suas próprias disciplinas, há toda razão em se pensar que é ao redor dessas finalidades que se elaboram as políticas educacionais, os programas e os planos de estudo, e que se realizam a construção e a transformação históricas da escola.

Observamos, pois, que nessa relação de construção, transformação e sedimentação das políticas educacionais, ambas, sociedade e disciplina, se alimentam. Além disso, é nessa relação entre sociedade e escola que o “ensinável” é legitimado. Nessa mesma relação, vemos inserido ainda o livro didático como aquilo que materializa o “ensinável” já legitimado pela sociedade e pela escola. O “ensinável” legitimado representa, portanto, a verdade que o livro didático deve materializar. Compreendemos verdade segundo a concepção foucaultiana: “Por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT, M., [1979] 2004, p.14). Portanto, a verdade, que Foucault equivale a saber, “não existe fora do poder ou sem poder”e, 7

Idem

8 Essa interpretação nos permite discordar da crítica (como proposta por Bruno Belhoste, também pesquisador do Institut National de Recherche Pédagogique, Paris, França) ao caráter generalizador da argumentação de Chervel ao considerar que todos os saberes escolares estabeleceram-se de modo disciplinar em todas as épocas da história da educação; isso porque entendemos que a definição de Chervel não pressupõe obrigatoriamente a formalização institucional de “tudo aquilo que se ensina”.


ligada “circularmente” ao poder, ou a “sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem”, constitui regimes de verdade, compostos por discursos de verdade. Pois, então, como entender o modo de funcionamento do LDI com um discurso de verdade?

3. O poder de discurso de verdade do livro didático

Historicamente, o sentido compartilhado socialmente sobre o poder do livro, como um lugar de saber, data de antes da metade do século XVIII, quando o estilo antigo de leitura se definia pela “reverência e respeito pelo livro porque ele é raro, porque está carregado de sacralidade mesmo quando é profano, porque ensina o essencial” (CHARTIER, R., [1945]1996, p. 86). Apesar de esse modo de leitura ter sido suplantado pela leitura volumosa, silenciosa e individual, com muitos textos laicos, a partir de 1750 , o poder do livro que ensina o essencial, e justamente por ensinar o essencial, parece ter sobrevivido ao tempo e marcado o livro didático desde o surgimento das primeiras cartilhas ou dos primeiros hornbooks9 (CHARTIER, [1945] 1996, p. 86). Além disso, o lugar da autoridade de saber, fruto dessa concentração da relação saber-poder, garante poder inquestionável ao livro didático e, assim, segundo Silva e Correia (2004, p. 616) “os educadores reconhecem que os impressos utilizados por alunos e professores permitem conhecer o cotidiano das salas de aula” justamente por apresentarem “conteúdos ‘legítimos’ a serem transmitidos”10 (APPLE, M. V., 1995, apud SILVA, V. B.; CORREIA, A. C., 2004 p. 617) já recortados, selecionados a partir do “patrimônio humano construído ao longo de gerações e ainda uma reelaboração dos tópicos escolhidos em nome de propósitos didáticos”11 (FORQUIN, J., 1993, apud SILVA, V. B.; CORREIA, A. C., 2004, p. 617). Além desse funcionamento do livro didático na condição de objeto de saber, é preciso considerar o modo de funcionamento de seu discurso. Para Grigoletto (1999), vários aspectos do LD apontam ao seu funcionamento como um discurso de verdade, ou um discurso que “ilusoriamente se estabelece como um lugar de completude dos sentidos”. Diz a autora (GRIGOLETTO, M., 1999, p. 68):

O modo de funcionamento do LD como um discurso de verdade pode ser reconhecido em vários aspectos: no seu caráter homogeneizante, que é dado pelo efeito de uniformização provocado nos alunos (i.e., todos são levados a fazer a mesma leitura, a chegar às mesmas conclusões, a reagir de uma única forma às propostas do manual); na repetição de uma estrutura comum a todas as unidades, com tipos de seções e de exercícios que se mantêm constantes por todo o livro, fator que contribui para o efeito de uniformização nas reações dos educandos; e na apresentação das formas e dos conteúdos como naturais, criando-se o efeito de um discurso cuja verdade “já está lá”, na sua concepção.

Também Souza (1999, p. 27) trata do poder de verdade do livro didático, relacionando tal poder ao saber que ele encerra:

Nome em inglês da cartilha feita de madeira, couro e chifre, usada durante vários séculos, a partir de meados do século XV, na Europa e nos Estados Unidos da América. 9

10 APPLE, M. Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de gênero em educação. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1995.

FORQUIN, J-C. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1993. 11


O caráter de autoridade do livro didático encontra sua legitimidade na crença de que ele é depositário de um saber a ser decifrado, pois supõe-se que o livro didático contenha uma verdade sacramentada a ser transmitida e compartilhada. Verdade já dada que o professor, legitimado e institucionalmente autorizado a manejar o livro didático, deve apenas reproduzir, cabendo ao aluno assimilá-la.

Isto é, o livro didático carrega em suas páginas, através de seu “caráter homogeneizante”, como descrito acima por Grigoletto, a “verdade sacramentada” que, de acordo com Souza, também acima, deve ser transmitida e reproduzida pelo profissional autorizado institucionalmente, portanto legitimado, a fazê-lo. Nesse momento da sala de aula, vemos a necessária participação do professor no processo de legitimação do saber digitado, linearizado, estruturado, simplificado, homogeneizado, ilustrado e diagramado nas páginas do livro didático. Um saber morto que espera, aguarda, e que só será posto em circulação pela ação do professor. Um saber que necessita de uma carga de poder que se lhe incida para pô-lo em funcionamento como verdade, como na concepção foucaultiana em que o poder tem a incumbência de produzir a verdade. Essa necessária participação daquele que coloca o saber do livro didático a funcionar como verdade pode se instaurar como um momento de escape e, no caso do professor, o lugar da resistência. É preciso, contudo, não menosprezar a força da vontade por uma ação didática apenas reprodutora, como encontramos nas prescrições detalhadas nos manuais, ou livros do professor, sobre o uso do LDI. Aliás, como lembra Grigoletto (1999, p. 76), “por sua própria concepção, o manual [do professor] induz a que se delineiem papéis fixos, padronizados, regidos pela disciplina da homogeneização, da repetição e do caminho já estabelecido por outras mãos”. Mesmo assim, não podemos deixar de perceber nesse momento, em que o saber nas páginas do livro didático aguarda a voz que o transformará em verdade, o espaço da ação docente – que, como obra do ser que age, pode não ser apenas reprodutora – e também a contribuição do discurso sobre o LDI, isto é, o discurso que fala sobre o LDI, que pode ou não atribuir ao livro didático o poder necessário para produzi-lo como verdade. Afinal, como argumentam Deacon e Parker (1995, p.102),

[...] aquilo que aparece como mecanismo para a transmissão do conhecimento por uma autoridade, dentro de uma instituição, representa, na realidade, condições de possibilidade de sujeição, mascarada por alegações de favorecimento do progresso intelectual, da mobilidade socioeconômica e do progresso social.

Tais “possibilidades de sujeição” devem ser consideradas, esclarecem os autores, dentro de uma microfísica do poder, como na concepção foucaultiana sobre a circulação do poder, e não no sentido de mão única da dominação. Ainda segundo Foucault, não há verdade que se faça sem poder e, do mesmo modo, o poder não deve ser entendido como algo que se possui, pois ele circula: “para que haja um movimento de cima para baixo, é preciso que haja ao mesmo tempo uma capilaridade de baixo para cima” (FOUCAULT, M., [1979] 2004, p. 250). Tal como a verdade, o poder não deve ser entendido como algo que se possa produzir fora de sua relação com o saber. São essas as motivações que nos levam a crer que o livro didático não pode funcionar como um discurso de verdade sem a contribuição do discurso sobre ele, visto que o saber que ele encerra necessita de investimentos de poder para circular e, assim, se colocar


como verdade. Acreditamos, portanto, que o discurso sobre o LDI investe poder sobre o saber do LDI para que ele possa funcionar como um discurso de verdade. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação: FNDE. Guia de livros didáticos – PNLD 2011. Disponível em: < http://www.fnde.gov.br/index.php/pnld-guiado-livro-didatico/2349-guia-pnld-2011>. Acesso em: 10 jun. 2010. BRASIL. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação: FNDE. Valores Negociados e Resumo Físico Financeiro do PNLD 2011. Disponível em: <www.fnde.gov. br/index.php/edital-pnld>. Acesso em: 10 mar. 2011. CHARTIER, R. Do livro à leitura. In: _____. Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, [1945]1996, p. 77-105. CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. In: Teoria e Educação, n. 2. Porto Alegre, 1990, p. 117-229. DEACON, R.; PARKER, B. Educação como sujeição e como recusa. In: SILVA, T. T. (org.), O sujeito da educação. Petrópolis: Ed. Vozes, 1995, p. 97-110. DELEUZE, G. Conversações: 1972-1990. São Paulo: Ed. 34, [1990] 1992, 7a reimpressão: 2008. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 20ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Graal [1979] 2004. GRIGOLETTO, M. Leitura e funcionamento discursivo do livro didático. In: CORACINI, M. J. (org.). Interpretação, autoria e legitimação do livro didático. Campinas: Pontes, 1999, p. 67-77. SILVA, V.; CORREIA, A. Saberes em viagem nos manuais pedagógicos (Portugal-Brasil). In: Cadernos de Pesquisa. São Paulo, vol.34, nº123, 2004, p.613-622. 2004. SOUZA, D. Autoridade, autoria e livro didático. In: CORACINI, M. J. (org.). Interpretação, autoria e legitimação do livro didático. Campinas: Pontes, 1999, p. 27-31.


OS VALORES MORAIS E O DISCURSO PUBLICITÁRIO: efeitos de uma relação de poder

Daniella de Almeida Santos Ferreira de Menezes¹ Adriana Cintra de Carvalho Pinto²

Todo o mundo é composto de mudanças, Tomando sempre novas qualidades. Camões As qualidades das coisas são as qualidades que o homem empresta às coisas. Nietzsche

1. Introdução É pertinente que a priori se discutam os conceitos de ética e de moral. De fato é bastante tênue a diferença entre eles. Enquanto este último se refere ao conjunto de valores que norteiam as relações sociais e a conduta dos homens, a ética diz respeito aos princípios e leis normativas relacionados ao comportamento humano. Em outras palavras, o primeiro trata da essência das normas, valores, prescrições e regras da realidade social, e o segundo, dos valores propriamente ditos que regulam a vida das sociedades em determinado momento histórico e espaço social. Conforme reitera Kremer-Marietti (1989, p. 7), “(...) se a moral está marcada com o selo da história presente ou passada, a ética concerne à teoria e à prática morais, consideradas do ponto de vista de uma situação fundadora, com perspectiva sobre um futuro imediato ou longínquo”. Do exposto acima, deduz-se que os valores morais são historicamente construídos e variam conforme o tempo e o espaço; consequentemente, limitam-se ao ontem e ao hoje, não podendo se projetar para o amanhã. Já a ética, por referir-se à essência desses valores, não está sujeita a uma mutabilidade cronológica, mas busca princípios e critérios estáveis que determinem esses valores, sem naturalmente desvincular-se de sua prática, pronunciando-se, inevitavelmente, também ao que está por vir. De qualquer forma, ambas têm um ponto em comum: o comportamento do homem. Se a moral diz respeito aos valores das ações humanas propriamente ditas, a ética é a arte que busca a

¹Professora de Língua Portuguesa na Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR), em Guaratinguetá-SP. Atualmente é doutoranda em Letras, no Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Universidade de São Paulo. E-mail: dasfmenezes@gmail.com ² Professora de Língua Portuguesa no Departamento de Comunicação Social da Universidade de Taubaté (UNITAU) e na Faculdade Dehoniana. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UNITAU. Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: cintracarvalho@hotmail.com


excelência dessas ações. Segundo Messner (19--, p. 22),

(...) todos os sistemas de ética estão de acordo em que o conhecimento do bem e do mal, o sentimento do dever e da responsabilidade, a consciência, são dados da experiência moral. Mas os sistemas divergem quando se trata de explicar a origem, a essência, o fundamento da obrigatoriedade da moral.

Por essa razão, para compreender e interpretar a dinâmica da moral — por vezes polemicamente discutida, sobretudo neste século, que se inicia sob a égide da mídia, a qual desempenha relevante papel na construção de valores por meio de propagandas — é imprescindível que se compreendam os fundamentos da ética. Marchionni (1997), baseando-se em critérios metafísicos, apresenta três fundamentos da ética, historicamente divididos: 1. Fundamento cósmico da ética. 2. Fundamento religioso da ética. 3. Fundamento antropológico da ética. É importante que se conheçam, portanto, esses fundamentos. Para cada fundamento são apontadas correntes diferentes. O ponto de referência para o primeiro fundamento é a Natureza, a qual indica ao homem o que é bom e mau. Para os adeptos dessa filosofia (cujos maiores representantes foram os estoicos, para os quais a Natureza é dotada de um Logos, assim como o Homem o é, o que torna possível, portanto, a identificação entre ambos), o homem é capaz de praticar ações boas tanto quanto for capaz de aproximar-se da natureza. Existe, no entanto, uma outra linha que acredita ser a natureza totalmente desprovida de valores, incapaz, portanto, de exercer qualquer influência ética sobre as pessoas. Desse modo, as coisas em si não têm valor de bom ou mau, sendo esses valores totalmente subjetivos. Isso significa que Ser (as coisas) e Valor (bom e mau) são distintos. É o chamado Relativismo Ético, segundo o qual os valores “são uma contínua criação e recriação ditada por fatores como índole, sociedade, tempo, lugar e circunstâncias” (MARCHIONNI, 1997, p. 39). Já para o fundamento religioso, o diapasão é Deus, o Deus-Pessoa e Deus-Pai das Religiões, que resume em si a Verdade, a Beleza e a Bondade. Dessa forma, o homem que a Ele se assemelha também assume esses atributos, eticamente reconhecidos. No sentido oposto a essa tese, encontram-se aqueles que acreditam serem os valores frutos do poder e do interesse. Os filósofos mais importantes dessa visão são Schopenhauer, Nietzsche e Foucault. As éticas do pragmatismo e do utilitarismo, segundo as quais bom é aquilo que apresenta utilidade para o maior número possível de pessoas, encontram-se nessa mesma linha. E, finalmente, o último fundamento tem na liberdade do Homem de se autocriar o seu maior argumento. Nessa linha destacam-se Kant e Marx. O primeiro acredita ser a razão humana a grande fonte de moralidade e a única a que o homem deve obedecer. Para esse filósofo, a liberdade do homem reside no fato de que a sua vontade não está sujeita às leis físicas da natureza. Na natureza há leis; na ética há deveres, e são justamente esses deveres que dão ao homem a liberdade de opção. Assim, ele pode escolher ser bom ou mau, comportar-se deste ou daquele modo. Para Marx, no entanto, a liberdade do homem não depende apenas da sua razão, mas está


vinculada às situações materiais, como o trabalho e a propriedade. Para realizar-se plenamente, ou seja, para ser livre, o homem precisa dedicar-se a realizar as suas qualidades essenciais, que, segundo o filósofo, são as seguintes: inteligência, consciência, liberdade, sociabilidade, estética. Ocorre que, para realizar essas qualidades, o homem precisa estar livre das necessidades biológicas. Portanto, não há liberdade quando o trabalho obedece às necessidades biológicas, como comer, dormir, vestir-se, por exemplo, como é o que acontece no sistema capitalista, em que o homem trabalha para sobreviver e não para satisfazer suas qualidades essenciais. Daí dizer que o trabalho, no sistema capitalista, aliena o homem, isto é, o destitui de exercer suas capacidades. Como se vê, todos esses fundamentos, embora filosoficamente diferentes, têm no Homem o seu maior sentido, pois é por ele e para ele que existem. 2. Os valores morais: origem histórica e processo de hierarquização social Falar sobre moral implica, portanto, necessariamente falar sobre cultura, história e sociedade, já que, por definição, “moral é tudo aquilo (ato, comportamento, fato, acontecimento) que realiza o homem, que o enraíza em si mesmo e, por ele e para ele, ganha sentido humano” (PEREIRA, 1991, p. 11). Desse modo, conhecer os costumes de um povo bem como a origem e a hierarquia dos valores que os acompanham é essencial para se discutir e compreender a dinâmica da moral. Essa preocupação do homem com os valores vigentes em sua época — sendo os principais expoentes, na área da ética antropológica, Sócrates e Kant — remonta praticamente à origem da civilização ocidental, o que permite traçar uma trajetória significativa do ponto de vista histórico e perceber como se regulamentam os costumes ao longo do tempo. Para Sócrates (apud VALLS, 1991), o fundamento para a questão da moral encontra-se no próprio homem, que, através da consulta à sua consciência, procura compreender a justiça das leis. Nesse sentido, a razão humana é a fonte dos critérios de moralidade. Kant (apud VALLS, 1991), conforme discutido na introdução, ao buscar uma ética de validade universal que se apoiasse apenas na igualdade fundamental entre os homens, reforça essa ideia instituída por Sócrates de que toda moral é racional porque busca encontrar no homem as condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro e do agir livre. Esse postulado permite, então, concluir-se que, “se a moral é a racionalidade do sujeito, este deve agir de acordo com o dever e somente por respeito ao dever: porque é dever, eis o único motivo válido da ação moral” (VALLS, 1991, p. 20). Decorre daí a necessidade de se estabelecerem as condições em que são construídos os valores que determinam a conduta do homem em sociedade. Segundo Nietzsche, em sua “A genealogia da moral” (1967), toda ação altruísta é reputada boa desde que tenha utilidade para aqueles que dela desfrutam. Assim, por esquecimento e por costume adquirido da linguagem, essas ações altruístas passaram a ser consideradas boas em si mesmas. O fato é que a origem da antítese entre “bom” e “mau” ficou a cargo de uma raça superior e dominadora, ligada à classe dos nobres. Por dedução lógica, “bom” denotava “nobreza”, no sentido de ordem social. Na Roma antiga, o arquétipo de homem bom baseava-se na figura do guerreiro. De acordo com a própria etimologia da palavra, bonus é proveniente de duonus (duo), que seria o homem da disputa, o guerreiro. Contrariamente a bonus, malus podia designar o homem plebeu, de cor morena e de cabelos pretos, o autóctone do solo itálico que se distinguia muito, pela sua cor, da raça dominadora e conquistadora dos ruivos arios (NIETZSCHE, 1967). A partir de então, “bom” era associado à nobreza, e “mau”, ao povo (o “vulgar” e o “plebeu”).


As diferenciações valorativas morais originaram-se dentro de uma raça dominadora (...). (...) quando são os dominadores os que determinam o conceito de “bom”, são os estados de alma elevados e altivos que são sentidos como o que distingue e determina a ordem hierárquica. (...) Note-se desde já que nesta primeira espécie de moral a antinomia “bem” e “mau” significa o mesmo que “nobre” e “desprezível”; a oposição “bom” e “maldoso” é de outra origem. (...) O tipo nobre de homem sente-se a si próprio como determinador de valores, não necessita que o aprovem; opina: “o que é prejudicial para mim, é prejudicial em si”; sabe que é só ele quem confere honra às coisas, quem é criador de valores (NIETZSCHE, 1958, p. 192 e 193).

No entanto, como reação à moral da aristocracia guerreira, os judeus instituem uma mudança radical nos valores morais, uma “vingança essencialmente espiritual”; os desgraçados, os pobres, os impotentes, os pequenos, os sofredores, os necessitados, os enfermos, os piedosos são o modelo de “bom”. Nasce, desse modo, a moral dos sacerdotes em oposição à moral da aristocracia; o “mau” para os escravos é o “bom” para a moral aristocrática, isto é, o poderoso, o dominador. Vê-se, assim, que os valores têm origem na vontade de poder, já que a própria vida é vontade de poder (NIETZSCHE, 1958). “O valor das coisas nada mais é que um sintoma de força por parte dos que estabelecem escalas de valor, uma simplificação para conquistar a vida” (NIETZSCHE, 1966, p. 112). As coisas não têm, portanto, valor em si, o qual varia em proporção ao aumento de potência daqueles que fixam os valores. Daí a proposta nietzscheana de inversão ou, para ser mais precisa, de transmutação de todos os valores: “(...) a verdade, o conhecimento, a metafísica, a religião são inúteis, pois existe somente a vontade de poder, que sintetiza toda a vida individual e social” (NIETZSCHE, 1967, p. 9). Era preciso, entretanto, para tal empreitada, negar a figura de Deus, fundamento metafísico de toda verdade, pois, para Nietzsche, segundo Giacoia (2000, p. 24), “a morte de Deus é uma expressão simbólica do desaparecimento desse horizonte metafísico, baseado na oposição entre aparência e realidade, verdade e falsidade, bem e mal”. O filósofo não admitia a existência do deus criado pelos racionalistas, definido por atributos, pois o atributo já é um limite ao qual Deus não poderia se cingir. Na verdade, Deus era uma estratificação da vontade humana de potência — vontade de poder e de saber. O mesmo posicionamento crítico frente ao racionalismo clássico quanto às relações entre a razão e a vontade verifica-se em Perelman (1999, p. 377): “A vontade divina é, em Descartes, criadora do real e fundamento de todas as normas, pois nada pode limitar-lhe a onipotência nem a perfeição. Mas essa vontade é pura arbitrariedade, pois não deve amoldar-se a nenhum critério exterior a ela”. Citando Nietzsche, Foucault (1996) discute a questão da invenção (Erfindung) e da origem (Ursprung). Contrariamente a Kant, Nietzsche acreditava que, entre a natureza humana e o conhecimento, não há qualquer relação de continuidade ou de instinto, muito pelo contrário; o conhecimento não faz parte da natureza humana. Este se localiza entre o homem e o mundo; não há, entre nenhum deles, qualquer afinidade, semelhança ou mesmo elos de natureza.

Assim como entre instinto e conhecimento encontramos não uma continuidade, mas uma relação de luta, de dominação, de subserviência, de compensação, etc., da mesma forma, entre o conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer não pode haver nenhuma relação de continuidade natural. Só pode haver uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação. O conhecimento só pode ser uma violação das coisas a conhecer e não percepção, reconhecimento, identificação delas com elas (FOUCAULT, 1996, p. 18).


Nesse sentido, é lícito dizer, portanto, que o conhecimento foi inventado, o que significa que ele não tem origem; é fruto do desejo de verdade. A verdade, então, nada mais é que desejo de realização de nossa vontade de logicizar, de racionalizar o mundo, a fim de conferir-lhe um equilíbrio em meio aos impulsos na luta contra a instabilidade (FOUCAULT, 1996). Da mesma forma que o conhecimento, a verdade não existe, mas é originária do nosso desejo de obter; é inventada. Se conhecimento e verdade não têm origem em si mesmos e, portanto, não são naturais, mas são inventados, fabricados, deter o conhecimento e, assim, a verdade é uma forma de dominação, de poder, porque sempre atendem a interesses de alguns. Por essa razão, saber gera poder e vice-versa: “(...) o poder produz saber; poder e saber estão diretamente implicados; não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 1997, p. 63). Daí a figura do tirano estar associada aos bons valores morais, pois ele era o homem que dominava tanto pelo poder que exercia quanto pelo saber que possuía. Nos dias de hoje, o mesmo ocorre com pessoas que, de alguma forma, exercem uma certa influência social, com a diferença de que não se trata de tiranos, mas de pessoas ligadas à política, às leis, ao saber científico e até mesmo ao meio artístico. Compreendem-se, dessa forma, as origens das desigualdades sociais defendidas por Smith (MALAGUTI, 1998), fundamento do pensamento liberal. São quatro as causas por ele apontadas: a primeira seria a superioridade de qualificações pessoais, de força, beleza e agilidade e de sabedoria; virtudes de sensatez, justiça, coragem e moderação; a segunda diz respeito à superioridade da idade; a terceira, à superioridade de fortuna, e a quarta, à superioridade de nascimento, sendo que as duas últimas “constituem as duas grandes fontes de superioridade pessoal e são, portanto, as principais causas que ‘naturalmente’ estabelecem a autoridade e a subordinação entre os homens” (MALAGUTI, 1998, p. 65). Assim, desaparecendo a relação entre conhecimento e natureza humana, não haveria mais sentido a existência de Deus e tampouco a do sujeito em sua unidade e soberania. O que mais se justificaria seria falar em sujeitos ou na não existência de sujeito.

“Conhecer” é uma contradição, porque exigiria identidade. Conhecer é ficção, é recurso conceitual. A cognoscibilidade relaciona-se ao cognoscente. Sendo o cognoscente tumultuário (...), conhecer é tumulto. A concepção de sujeito como “individuum” afirma separação, diferenciação. Conhecer seria diferenciação, se o “individuum” fosse realidade independente. Não havendo fronteiras entre sujeito e objeto, conhecer é simplesmente símbolo (NIETZSCHE, 1966, p. 31).

Dessa relação de poder, que está vinculada às condições sócio-históricas, nasce o conhecimento, o qual pertence à ordem do efeito e confere a quem o detém uma certa relação estratégica. Sendo efeito de batalha, o conhecimento sempre encerra em si um caráter perspectivo, portanto ideológico. Desse modo, não é possível desvinculá-lo dos valores morais, visto que estes também se constroem nas relações sociais, que, por sua vez, pressupõem relações de poder e, por conseguinte, relações e discursos de classes. A moral e o conhecimento são, ao mesmo tempo, resultado e mecanismo ideológico, dissimulador de aparências, uma vez que sempre perpetuam poderes, privilégios. Valendo-se de valores dominantes, a moral luta por uma padronização das relações sociais, tentando abafar as


outras vozes que também a constituem. Por esse motivo, utiliza-se de mecanismos ideológicos que objetivam garantir a sua hegemonia e, portanto, a homogeneização de comportamentos, preferências e atitudes. Conforme as mudanças de ordem social vão se sucedendo, a moral vai se adaptando a essas mudanças, e outros valores passam a ocupar a posição de domínio, sempre, é claro, refletindo os interesses dominantes.

... a sociedade do capital é dividida em classes subordinadas aos interesses dos proprietários dos meios de produção. Isso posto, o mercado tenderá, naturalmente, a resolver as pendências sociais segundo os critérios, os desejos e os interesses dos que detêm uma vasta gama de informações e possuem a grande maioria dos bens transacionados no mercado. Neste sentido, a obediência aos “critérios” do mercado tende, no mínimo, a perpetuar a atual hierarquia das classes sociais. (MALAGUTI, 1998, p. 73)

Como fenômeno mundial muito recente, as cidades têm-se transformado no espaço privilegiado de uma cultura objetivada e exteriorizada como o elo de padronização das relações, como extensão de nosso corpo (PEREIRA, 1991). Essa sociedade capitalista tem assistido a uma gradativa modificação das tradicionais instituições — antes guardiãs por excelência da moral — que passam a ceder o lugar a uma moral do desejo.

Com a deserção da razão clássica vai se desfazendo na cultura, nas instituições, o esquema mental sobre as bases das dicotomias, de forte herança cristão-ocidental: céu/inferno, Bem/Mal, teoria/prática, trabalho manual/trabalho intelectual, etc. Não por acaso hoje se valoriza tanto o universo do desejo, do imaginário, as entrelinhas dos discursos ou práticas culturais, a emergência inclusive do irracional, a presença da melancolia, da paixão (...) (PEREIRA, 1991, p. 69).

De fato, o desejo tem sido amplamente explorado nessa sociedade de massas, sobretudo a partir do surgimento da propaganda, que, ao simplificar o mundo por “clichês” mentais preestabelecidos, raciocínios baseados em slogans, em frases feitas, favoreceu a padronização do gosto, das ideias e das perspectivas. A propaganda, por criar a ilusão do prazer imediato pela aquisição do produto, contribui significativamente para a construção e perpetuação de uma sociedade hedonista, cada vez mais volúvel aos apelos externos que estimulam progressivamente os desejos. O desejo, por sua vez, aumenta o valor do que se quer possuir, e até cresce quando não satisfeito. As coisas passam a adquirir um valor sempre maior à proporção que aumenta o nosso desejo delas. Criam-se, dessa forma, necessidades implantadas em nós pela longa interpretação moral; por outro lado, suportamos viver por aquelas necessidades, às quais o valor parece ligado (NIETZSCHE, 1966). Vale dizer aqui que as necessidades, em publicidade, não são criadas, mas transferidas. Formula-se uma necessidade coletiva que as massas percebem de modo confuso a fim de orientá-


la para uma ação precisa; transfere-se uma necessidade real para um objeto ou para um ato sem relação direta com a necessidade; conciliam-se necessidades opostas entre si ou hábitos opostos a uma situação nova e, finalmente, faz-se uma promessa — satisfazem-se em esperança necessidades que são atiçadas pela própria promessa (REBOUL, 1975). De fato, conforme afirma Perelman (1996, p. 312), “as técnicas modernas da publicidade e da propaganda exploram a fundo a plasticidade da natureza humana que permite desenvolver novas necessidades, fazer desaparecer ou transformar necessidades antigas”. E a propaganda, ao apresentar com naturalidade aquilo que foi construído, torna-se um forte instrumento da ideologia vigente, não apenas agregando ao produto valores que acredita já constituírem o público-alvo do qual tem uma imagem, como em princípio se admite, mas efetivamente construindo valores e produzindo imagens, invadindo, assim, o campo da ética e interferindo, inevitavelmente, na sociedade. Assim, a propaganda, ao incutir em nós necessidades que, na verdade, são sempre fabricadas com claros objetivos mercadológicos, constrói valores morais, que tampouco estão necessariamente ligados àquelas necessidades. Daí a importância de se reconhecer que valores estão sendo construídos a pretexto de se satisfazerem necessidades criadas pela própria propaganda. Nesse sentido, ao disfarçar o seu caráter moralizante, que visa à uniformização para o domínio, a propaganda é também um meio de dominação, pois, negando sistematicamente suas intenções e dissimulando o nome do desejo para melhor aliá-lo às virtudes existentes e reconhecidas, cria valores e os introjeta no inconsciente (NIETZSCHE, 1966), a fim de, assim, melhor manipular o destinatário. Essa padronização de valores e supressão das diferenças, sob o pretexto de universalidade, encobre a imposição totalitária de interesses particulares e transforma as pessoas em peças anônimas da engrenagem global de interesses (GIACOIA, 2000). Como se vê, o discurso publicitário, sendo intrinsecamente um discurso que tenta uniformizar os valores (ainda que de maneira camuflada), através da repetição e da argumentação, reforça esses valores e colabora para a construção de outros. Assim, a propaganda influencia a moral e é por ela influenciada, estando sujeita às mesmas regras sociais vigentes que determinam os valores morais de cada época. REFERÊNCIAS FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 1977. —————. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1996. GIACOIA JUNIOR, O. Folha explica Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000. KREMER-MARIETTI, A. A Ética. Campinas: Papirus, 1989. MALAGUTI, R.A.C.; CARCANHOLO, M.D. (orgs.). Neoliberalismo: a tragédia do nosso tempo. São Paulo: Cortez, 1998. MARCHIONNI, A. A ética e seus fundamentos. In: MARCHIONNI, A. Ética: na virada do século: busca do sentido da vida. São Paulo: LTr, 1997, pp. 29-49. MESSNER, J. Ética Social: o Direito Natural no Mundo Moderno. São Paulo: Quadrante: [19—]. NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal. Lisboa: Guimarães Editores, 1958.


—————. Vontade de potência. Rio de Janeiro: Tecnoprint Gráfica Ed., 1966. —————. A genealogia da moral. Rio de Janeiro: Tecnoprint Gráfica S.A. Clássicos de bolso, 1967. PEREIRA, O. O que é moral. São Paulo: Brasiliense, 1991. PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996. PERELMAN, C. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. REBOUL, O. O Slogan. São Paulo: Cultrix, 1975. VALLS, A.L.M. O que é ética. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.


ESCRITA DE SI E MEMÓRIA: em busca da (re)construção de si

Lúcia Maria Marques Gama Lacaz¹

1. Introdução Na contemporaneidade, marcada pela instantaneidade do tempo, pela incerteza, o sujeito não encontra mais as referências que permitiam a ele mapear as coisas, o mundo e a si mesmo. As identidades se fragilizam, perdem a (ilusória) consistência “e agora cabe a cada indivíduo, homem ou mulher, capturá-las em pleno voo” (BAUMAN, 2005, p.35), às vezes, numa busca de segurança, às vezes, num desejo de ser desimpedido, livre. A busca por identidade vem do desejo por segurança, inteireza, frente ao desamparo do sujeito que, diante disso, procura formas de preencher o malestar que o acomete, pois “flutuar sem apoio num espaço pouco definido, num lugar teimosamente, perturbadoramente, ‘nem-um-nem-outro’, torna-se a longo prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade” (id., ibid., p.35). Desse modo, a escrita, em especial a escrita literária, é um lugar onde o sujeito se manifesta e constitui um corpo pela linguagem, o escritor “dá corpo” ao sujeito que o habita pela linguagem, através da qual busca sua completude, sua (impossível) identidade, como suporte para ser-no-mundo e dar sentido à sua existência. A escrita permite, pois, ao escritor um meio de permanecer vivo e de tentar (sobre)viver através dela. Neste artigo, procuramos discutir a escrita, no caso, a escrita de si como o lugar possível para o sujeito (re)construir, buscar sua identidade, sempre fugidia. Fazemos, inicialmente, um breve percurso da escrita de si na história e os sentidos que ela assumiu para o sujeito. Em seguida, apresentamos a noção de memória. Por fim, na tessitura entre escrita de si e memória, trazemos, para análise, a obra O conto do amor, de Contardo Calligaris, livro que consideramos de caráter autobiográfico e que nos permitirá discutir como a escrita de si pode se constituir, para o sujeito, numa tentativa de buscar sua identidade. Como referencial teórico, trabalhamos com a Análise de Discurso, uma vez que discutimos o sujeito e sua prática discursiva, no caso, a escrita de si; também enfocamos, via linguagem, a questão da memória, ou seja, os diferentes fios que vão constituir o sujeito e sua escrita. É pelo discurso, também, que se pode compreender como um determinado material simbólico ganha sentido e como o sujeito se constitui, produzindo discursos e sendo por eles produzido.

¹ Ministra cursos de pós-graduação nas áreas de Pedagogia e Linguística, com ênfase em leitura e estudos da linguagem. Doutora em Linguística Aplicada pela Unicamp. E-mail: wilson.lacaz@uol.com.br


2. A escrita de si: em busca da (impossível) identidade

Este é tempo de partido Tempo de homens partidos. Carlos Drummond de Andrade

A cultura ocidental contemporânea, marcada pelo pluralismo de valores, pelo individualismo, impõe uma convivência conflitiva do sujeito com diferentes imagens de si, com a presença simultânea de elementos locais e globais (BAUMAN, 1999), em decorrência da supressão das distâncias e da compressão do tempo. Diante das incertezas, o sujeito contemporâneo depara-se com a necessidade de buscar uma identidade, uma inteireza na qual possa sustentar-se. Nesse sentido, concordamos com Coracini (2007, p.9) ao dizer que, “constituída de representações imaginárias que se imprimem no e pelo espelho do olhar do outro, a identidade de cada um (...) se faz escrita, se faz texto, narrativa, ficção”. A escrita de si, hoje tão disseminada, principalmente na literatura, através da publicação de autobiografias, biografias, romances e poesias, torna-se um processo de busca de si mesmo, de um dizer-se do sujeito para constituir uma identidade. Essa forma de escrita de si tem seu início, segundo os estudos que Foucault ([1983] 1992) empreendeu das chamadas “artes de si mesmo”, ou seja, sobre a estética da existência e o governo de si e dos outros, na cultura greco-romana, nos dois primeiros séculos do Império. O filósofo comenta a obra Vita Antonii, de Atanásio, sobre a vida de Santo Antônio, que traz a escrita e os pensamentos como elementos fundamentais para a vida ascética, no sentido de dar “o que se viu ou pensou a um olhar possível” (id., ibid., p.130). Foucault considera não ser possível aprender a arte de viver sem um adestramento de si por si mesmo. Refere-se também aos hipomnemata (séculos I e II), que podiam ser livros de contabilidade ou cadernos pessoais, como uma forma significativa de subjetivação do discurso, constituindo-se numa memória escrita do já-dito, das coisas lidas, ouvidas ou pensadas. Embora fossem um meio para se estabelecer uma relação de si para consigo próprio, não se constituíam numa “narrativa de si próprio”. Foucault (ibid., p.143), citando Sêneca, em sua carta 84, afirma que, pela escrita, constitui-se um “corpo”, “como o próprio corpo daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez sua a respectiva verdade: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida ‘em forças e em sangue’ (in vires, in sanguinem)”. A escrita se faz corpo naquele que escreve, entretanto, não se trata, ainda, de uma escrita de si. Por sua vez, a narrativa epistolar, ou seja, a correspondência, constitui-se, para Foucault (ibid., p.150), numa certa maneira de cada um se manifestar a si mesmo e aos outros. Diz ele: “Escrever é, pois, ‘mostrar-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro (...) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz”. Nesse sentido, Foucault considera que a correspondência já seria uma narrativa de si pela “troca do serviço da alma” (ibid., p.152). Isso porque aparecem as manifestações da alma e do corpo de quem escreve, seus lazeres, suas ações, suas experiências. Como exemplo, o filósofo lembra uma carta de Marco Aurélio a Frontão, em que o primeiro passava em revista o seu dia, num exercício ligado à memória e, no dia seguinte, reproduzia essas impressões, esse “livro imaginário da memória”, através de carta ao amigo. Essa experiência de escrita, para Foucault, já se constitui numa forma diferenciada em relação aos hipomnemata, pelo processo de fazer coincidir o olhar do outro e aquele que se volta para si próprio. Assim, a correspondência seria uma forma de saber de si, e também dar a saber, sob o olhar do(s) outro(s). Pensamos que essas narrativas epistolares antecipam, por exemplo, os diários que os jovens costumam escrever, e também as autobiografias, as narrativas, que são “ficções de si, do outro e do outro em si” (CORACINI, 2007, p.9-10). Ao escrever sobre si, o sujeito traz outras vozes, do presente e do passado, fios que se entretecem, na busca de uma unidade impossível, decorrente de sua inscrição no simbólico (LACAN [1966] 1998), ou seja, na linguagem, tornando-se, então, para sempre, sujeito (d)à falta, (d)à falha.


Kehl (2001), em sua reflexão sobre sujeito e escrita, destaca a relação fundamental que o sujeito, a partir da modernidade ocidental, estabelece com o tempo, relação essa marcada por contradições. Vivemos numa sociedade em que o tempo nos modifica continuamente, inscrevendo-nos numa ordem complexa que não dá conta de nossas filiações simbólicas, levando-nos continuamente a buscar uma explicação, uma representação dos efeitos desse tempo sobre nós mesmos. Simultaneamente, não suportamos “a passagem do tempo nos conduzindo para onde não podemos prever e nos modificando de maneira que não conseguimos controlar” (KEHL, 2001, p.58). Nas sociedades tradicionais, lembra Kehl, sustentada nas ideias de Walter Benjamin sobre o narrador, cada sujeito se representava como pertencente a uma comunidade e, assim, tinha referências simbólicas relativamente estáveis, que eram compartilhadas, trazidas pela tradição oral e que serviam de “modelos” de sabedoria construídos na vivência coletiva. A partir da modernidade, é o romance que representa a subjetividade moderna, através do qual o escritor assume um ponto de vista singular, pessoal, na busca do sentido da vida, numa relação linear, com começo, meio e fim (KEHL, ibid., p.61). Assim, a literatura torna-se o artifício pelo qual o sujeito, desgarrado e desamparado do plano divino ou da harmonia natural que o sustentava, busca dizer-se pela/na linguagem:

Se a linguagem, nas sociedades modernas, é um acervo comum, arbitrário, sem Deus nem pai que a sustentem “de fora dela”, o homem cava seu túnel narrativo por entre o caos dos significantes que remetem somente uns aos outros, tentando deter-se no tempo, o que é o mesmo que dizer: tentando “ser” (KEHL, ibid., p.64).

Desse modo, é pela escrita que o sujeito constrói a si mesmo e o mundo em que vive. Porém, para constituir essa escrita, o sujeito se utiliza de fios trazidos do passado e do presente, fios que constituem sua experiência, aqui entendida como experiência de si. Como nos lembra Montaigne: “Fez-me o meu livro, mais do que eu o fiz; e autor e livro constituem um todo; é estudo de mim mesmo e parte integrante da minha vida; não sou diferente do que apresenta nem ele o é de mim” (apud KEHL, 2001, p.79). Essas palavras de Montaigne marcam a íntima e inseparável relação entre sujeito e experiência, esta tomada pelo escritor como a observação que pode enriquecer, porém sempre obtida a partir da própria observação do mundo, que também o constitui. Desse modo, livro e autor são uma coisa só, fundem-se numa só teia, num só texto. Como afirmou Flaubert em certa ocasião: “Madame Bovary sou eu”, ou seja, autor e personagem, autor e criação fundem-se. No mundo contemporâneo, em que os modos de ser e viver se sustentam na incerteza, no individualismo, a escrita de si torna-se, portanto, uma das maneiras que o sujeito encontra para conseguir uma (ilusória) consistência e inteireza, na busca contínua de (re)construção de si, de sua identidade, através de narrativas orais ou escritas, sempre fazendo uso da memória e de outros fios discursivos que o constituem e que lhe permitem construir um texto que o “conforte” diante do desamparo e da falta de certezas que o acometem. 3. Em busca da memória Cada um deixa uma marca, por mínima que seja: na lembrança de quem sobra, nos filhos que engendrou, nas três ou quatro linhas que assinou, nas obras que quis. Deixamos marcas simbólicas que são, enquanto simbólicas, dificilmente


assassináveis. Contardo Calligaris - “Sociedade e indivíduo”.

Quando pensamos em memória, é ao passado e às lembranças que nos remetemos: trata-se de um volver, de um retorno àquilo que em nós acreditamos guardar, de maneira fixa, e que nos permite “garantias” de ser e de nos explicar. Entretanto, a memória não apresenta essa fixidez de fatos, de experiências, de acontecimentos vividos. Neste estudo, utilizamos a noção de memória trazida pela psicanálise e também a noção de memória da Análise do Discurso. Fazemos, inicialmente, um retorno a Freud e à sua noção de memória, tomando por base sua Carta 52 ([1896] 1986) dirigida ao amigo Fliess. Nessa carta, o autor relata que está trabalhando com a hipótese de que o mecanismo psíquico constrói-se por um processo de estratificação. Segundo sua teorização, “a memória não se faz presente de uma só vez e sim ao longo de diversas vezes, [e] que é registrada em vários tipos de indicações” (id., ibid., p. 208). A memória, para Freud, estaria sujeita a rearranjos, a (re)organizações contínuas, de acordo com as novas circunstâncias em que ela é ativada, constituindo-se como uma montagem, uma re-escrita, sempre em movimento. Freud (ibid., p. 209) propõe um diagrama em que estabelece a existência de, pelo menos, três formas de registro ou indicação da memória, a saber: 1) Wz (Wahrnehmungszeichen = indicação da percepção), que é o primeiro registro das percepções, inacessível à consciência, organizandose de acordo com associações por simultaneidade; 2) Ub (Unbewusstein = inconsciência) é o segundo registro, cujos traços talvez correspondam a lembranças conceituais, também inacessível à consciência; 3) Vb (Vorbewusstsein = pré-consciência) é o terceiro registro, correspondente a uma pré-consciência, ligando-se às representações verbais. A partir da leitura da Carta 52, pode-se inferir que Freud produz uma subversão da noção de memória — geralmente considerada como algo fixo, do qual o sujeito supõe ter consciência —, trazendo a hipótese de uma memória, em grande parte, de caráter inconsciente, sobre a qual não temos controle; para ele, também a consciência e a memória são mutuamente excludentes. Daí não ser possível à consciência ter controle sobre a memória. Ainda podemos afirmar que o autor propõe um aparelho psíquico no qual há a retenção permanente das percepções, sob a forma de traços mnêmicos, os quais produzem contínuas associações. Um dos aspectos que Moraes (1999, p. 34) considera fundamental na Carta 52 é

[...] o fato de Freud caracterizar a memória tomando a impressão [Eindruck] do mundo exterior efetivamente como uma inscrição [Niederschrift] e reescrição [Umschrift] do signo [Zeichen], que se modifica em traço [Spur], fatos estes da ordem da escrita [Schrift]. Esse material literal, primariamente inconsciente, e, por si mesmo, desprovido de significação, pode se apresentar como alteridade radical em relação a quem fala, pois está submetido a leis descontínuas de associação.

Isso significa que tudo que afeta o sujeito fica impresso no aparelho psíquico, submetido, como vimos, a contínuas e diferentes associações dos traços mnêmicos, que se organizam como uma linguagem, da qual não se tem o controle. Dessa maneira, há traços que são simbolizados e verbalizados, há outros que permanecem inconscientes e, vez ou outra, emergem como atos falhos, chistes ou outras formações do inconsciente. Assim, pode-se supor, com Freud, que há a organização de uma escrita anterior e parcial, um material significante para se fazer significar qualquer coisa, enfim, para que a memória funcione, porém sem o controle do sujeito. A Análise de Discurso, por sua vez, ao tratar da noção de memória, trabalha com o interdiscurso,


constituído por “fragmentos de múltiplos discursos que constituem a memória discursiva — que não deve ser confundida com a memória cognitiva —, fragmentos esses que nos precedem e que recebemos como herança e que, por isso mesmo, sofrem modificações, transformações” (CORACINI, 2007, p.9). Pêcheux (1999, p. 56) aponta que a memória discursiva é constituída também pelo exterior, pelo “real histórico”, sempre em movimento, contrapondo-se à ideia de uma organização estável, totalizante e consciente:

A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse debate é que uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos (PÊCHEUX, 1999, p. 56).

Pêcheux, ao concluir seu texto, lembra que “nenhuma memória pode ser um frasco sem exterior”, acentuando que existe o “interno” e o “externo” da memória, ou seja, ela é constituída por diferentes fios, pelo(s) outro(s) que atravessam o sujeito. Pensar discursivamente a memória é trabalhar, ainda, com a noção de arquivo de que trata Foucault ([1969] 2004, p. 147), como uma “prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados”, em contínua formação e transformação. O arquivo é, portanto, organizado a partir de fragmentos provenientes de várias regiões do discurso: do passado, do presente, do(s) outro(s) que atravessam e “marcam” o sujeito. Assim, o sujeito, ao produzir uma escrita de si, remetendo-se à memória, lança mão de alguns fios discursivos, “deixa” outros de lado para constituir seu texto: trata-se de um processo novo e velho ao mesmo tempo. As configurações que ele constrói são novas, porque foram assim tecidas no momento do arranjo discursivo, mas carregam as “marcas” do velho, daquilo que constitui o sujeito: são (re)arranjos produzidos pela rede de fios que vai constituir, no sujeito, “a memória que se faz discurso, nas histórias de vida, nas invenções de si” (CORACINI, 2007, p. 11). Quer pela psicanálise, quer pela Análise de Discurso, a memória pode ser entendida como um processo contínuo de inscrição de marcas, traços, impressos no sujeito, num (re)arranjo, que também poderia ser outro, dependendo da organização dos fios — (des)contínuos, (des)conhecidos, (des) ordenados — provenientes da memória discursiva e do inconsciente, numa impossibilidade de se determinar sua procedência. Na análise que empreendemos sobre o livro O conto do amor, consideramos que são esses diferentes fios que o sujeito tece para construir o texto, a escrita de si, enfim, a ficção, na busca, sempre incompleta, de sua verdade, de sua identidade, pois, segundo Costa (1998, p. 127-128), “o sujeito é na medida em que enuncia”, na medida em que adquire “a consciência de uma presença, a consistência de um corpo, mesmo que este seja somente um recorte ficcional sobre o real”. 4. A (re)construção de si: escrita e memória Como não nos reconhecer neste trabalho através do qual tentamos nos situar como personagens centrais de um romance, o romance de nossas pequenas vidas que escrevemos incessantemente, dentro ou fora do espaço criado pela psicanálise e como não nos indagar, ao mesmo tempo, sobre o significado desta necessidade? Kehl (2001, p.57-58)


Para buscar uma articulação entre memória e escrita de si, ou seja, essa necessidade de nos remetermos à memória como forma de nos explicarmos, de buscarmos uma identidade, pela escrita, trazemos à discussão o livro O conto do amor (2008), de Contardo Calligaris. A obra tem um caráter autobiográfico e aponta para uma (re)construção identitária do autor, através de uma escrita de si. Primeiramente, apresentamos um breve resumo da obra e também alguns dados biográficos do autor, pertinentes à análise. Em seguida, passamos à análise de excertos do livro, com o objetivo de discutir como o sujeito se constitui pela escrita de si. O conto do amor tem como protagonista o italiano Carlo, psicoterapeuta que mora em Nova York e que procura desvendar um mistério revelado pelo pai. Pouco antes de morrer, ele lhe contou que teria sido, em outra vida, ajudante de um pintor chamado Sodoma (1477 – 1549). Doze anos após essa revelação, Carlo resolve investigar o passado do pai e, nessa tarefa, vai em busca de arquivos, lembranças, casos amorosos e encontros com personagens, em várias cidades como Monte Olivetto Maggiore — onde estavam as pinturas de Sodoma —, Milão, Siena, Florença, Paris. Trata-se de um percurso através do qual Carlo procura interpretar as anotações deixadas pelo pai em seus diários, com o propósito de associá-las à confissão por ele feita na hora da morte e também entender a si mesmo e sua relação com o pai. Entretanto, nessa espécie de romaria por diferentes lugares, há imprevistos, enigmas a serem decifrados, surpresas e, ainda, a descoberta do amor — pela jovem italiana Nicoletta, que o ajuda na investigação —, através do qual vê a possibilidade de (re) construir sua vida. Ao fim de suas buscas, escreve um livro sobre a experiência vivida. O autor do livro O conto do amor — Contardo Calligaris — assim como o protagonista dessa história, também é italiano, psicoterapeuta e teve um pai que lutou na resistência antifascista italiana. Apesar de todas essas semelhanças presentes no livro, o sujeito-autor, ao produzir a escrita de si, ao “buscar” na memória lembranças já vividas, “jamais se descreve tal como ele ‘seria’, tal qual ele deseja mostrar-se, pois das palavras ditas irrompem sentidos fluidos, escorregadios, imprevisíveis, incontroláveis” (ECKERT-HOFF, 2008, p. 75). Ao enunciar, o sujeito não controla a linguagem, as palavras escapam e emergem sentidos não esperados. Embora busque, pela escrita, (re)construir a própria identidade, através de um dizer aparentemente coeso, que lhe permita sentir-se em sua inteireza, isso não ocorre. Na obra O conto do amor podemos dizer que há o entrelaçamento de três escritas de si, tecidas com os fios das vidas de Carlo, de seu pai e do próprio autor do livro, num jogo de espelhos em que cada um reflete fragmentos dos outros. Os três produzem a escrita de si, na tentativa de (re) ver o que foram ou desejam ser e viver, como forma de, pela memória, explicarem e (re)construírem a si mesmos, através da linguagem. Carlo busca, como dissemos, descobrir o mistério da vida do pai e, através dela, entender melhor sua relação passada com ele; o pai, por sua vez, nos diários deixados, (re)vela uma outra vida, sustentada através de uma escrita de si; e o próprio escritor do livro — Contardo Calligaris — constrói um personagem-autor, que é um outro de si, ficção e realidade ao mesmo tempo, por meio do qual parece procurar (re)construir a própria vida, de alguma forma realizar-se como sujeito-no-mundo. Como nos lembra Eckert-Hoff (2008, p.78), a escritura de si é “lugar possível de (re)fazer a sua existência, de sobreviver, de retalhar-se, de (re)costurar-se, de (re) tecer-se”. É o que buscam esses três autores ao produzirem a escrita de si. Passamos, a seguir, à interpretação de alguns excertos do livro, com o propósito de discutir como o(s) sujeito(s), através da escrita de si e recorrendo à memória, procuram (re)construir sua identidade, sua inteireza, porém sempre de maneira incompleta. Lembramos que interpretar é um trabalho necessário em relação à linguagem, justamente por estar ela sujeita ao equívoco, à incompletude. Desse modo, a interpretação que fazemos dos excertos compreende uma entre outras também possíveis. Comecemos pelas palavras de Carlo:


E1² – Fazia doze anos que meu pai estava morto e eu sentia sua falta (CALLIGARIS, 2008, p. 7). O personagem-autor — Carlo — inicia a narrativa marcado por uma falta e por uma necessidade de preenchê-la. Após relembrar os últimos momentos de vida do pai, em que este lhe fizera uma confissão insólita — ter sido um dos ajudantes de um pintor da Renascença chamado Sodoma —, o protagonista decide investigar esse enigma. E2 – De repente, sem que eu soubesse bem o motivo, a pergunta surgiu e se impôs com força: por que razão e com qual intenção meu pai tinha me contado aquela história? Eu acabara de me separar, mais uma vez, e viajar se tornara mais fácil – era o pretexto de que eu precisava. Em suma, decidi voltar à Itália (id., ibid., p. 15). Num olhar psicanalítico, pode-se dizer que se trata de um sujeito que se descobre na premência de estabelecer uma relação de si para consigo mesmo, de buscar sua “verdade” no passado, no seu país de origem, através da “verdade” (ainda desconhecida) do pai morto. Nem ele sabe explicar as razões que o levaram a demorar tanto tempo sem procurar desvendar esse mistério — “De repente, sem que eu soubesse bem o motivo, a pergunta surgiu e se impôs com força”. O uso da expressão adverbial “de repente” aponta para a imprevisibilidade com que as lembranças emergem no sujeito. Algo adormecido, “esquecido”, mas que deixara suas marcas no inconsciente, aflora: é o desconhecido, o estrangeiro em cada um (KRISTEVA, 1994, p.9) que vem à tona, sem o controle do sujeito. Pode-se perceber isso, na materialidade linguística, pelas formas verbais “surgiu” e “se impôs”. Na consulta ao dicionário, o primeiro verbo — surgir — remete a algo que aparece ou ocorre de repente, enquanto o segundo — impor-se — significa fazer-se aceitar como necessário, incontestável. O uso dos dois verbos, pelo protagonista da história, aponta para uma forte demanda do sujeito, à qual ele não consegue se furtar. Na necessidade de dar coerência à sua escrita, uma das justificativas que encontra é a separação conjugal. Entretanto, trata-se, como ele próprio afirma, de um “pretexto”, de uma desculpa para uma necessidade do sujeito. Talvez a desilusão causada por mais um casamento desfeito, talvez uma crise existencial, talvez a busca da (re)construção de si como sujeito-no-mundo, ou todas essas “motivações”, ao mesmo tempo, tenham “despertado” nele essa imposição, que vai se desdobrar numa jornada por lugares onde pretende encontrar respostas às suas indagações: “decidi que estava mais do que na hora de voltar à Itália”. Embora Carlo acredite estar tomando uma decisão consciente, essa decisão já se fizera presente nele, via inconsciente, manifestada pela/na linguagem. A busca identitária do protagonista tem início na Itália, em Monte Oliveto Maggiore, onde confere as pinturas mencionadas pelo pai e se pergunta: E3 – O que estou procurando?, resmunguei comigo mesmo. Bom, eu procurava algo que ao menos me explicasse um pouco por que, nos anos trinta, meu pai tinha tido a certeza de ter vivido ali uma outra vida, cinco séculos antes (id., ibid., p. 16). A indagação inicial de Carlo sugere a condição do sujeito que busca, “escavando” o passado, entender a si mesmo e as palavras ditas pelo pai: E4 – A pintura da Renascença nunca foi um hobby para mim; ela era a minha casa. A minha vida. Só não era esta vida, mas uma outra, também minha (id., ibid., p. 12).

² Os excertos estão apresentados em itálico, indicados pela maiúscula E e numerados sequencialmente.


Esse excerto ilustra a maneira como o pai de Carlo procurou preservar a memória de tempos vividos na juventude, em Monte Oliveto Maggiore, onde tivera um grande amor. Em seus diários, construiu uma vida paralela à “real”, através da linguagem — uma escrita de si —, pela qual preservava e (re)vivia, (re)tecia, continuamente, a experiência amorosa. Daí ele afirmar que a pintura da Renascença “era a minha casa”. O uso da palavra “casa” remete ao “si mesmo”, àquilo que nos parece familiar, que nos dá conforto e identidade, que nos dá a ilusão de completude, de inteireza. Freud, com sua hipótese do inconsciente, deslocou o sujeito de suas certezas, de sua morada, onde se sentia abrigado, seguro. Por sua vez, Lacan, com a teoria do estádio do espelho ([1966] 1998), propôs um sujeito que, pela entrada no simbólico, ou seja, na linguagem, tornou-se para sempre em falta, em dívida, numa contínua busca por completude, nunca alcançada. No excerto em análise (E4), o pai afirma, ainda, que a pintura da Renascença era “a minha vida. Só não era esta vida, mas uma outra, também minha”. Essas palavras revelam as confusas fronteiras entre realidade e imaginação, criando um espaço ficcional em que o sujeito pode (se)dizer. Segundo Eckert-Hoff (2008, p. 77-78):

[...] edificar uma história de vida é da ordem do (im)possível, implica sempre na encenação de um lugar onde é possível a não-castração simbólica, a não-coincidência, a fratura, a fissura, que ocorre pela ilusão (necessária) de inteireza e, ao mesmo tempo, pela inevitável estranheza-alteridade.

Daí a estranheza que as palavras do pai e as anotações de seus diários causa(ra)m ao filho Carlo: o pai criara um outro de si, uma outra vida, pela escrita, espaço onde tudo pode se realizar, onde se mesclam fios da realidade e da imaginação, sem que se possa diferenciá-los. Assim como o pai na juventude, Carlo também encontra o amor: em Florença, conhece Nicoletta, uma estudiosa das pinturas de Sodoma, nas quais ele estava interessado; a jovem torna-se sua parceira no amor e na investigação sobre o pai: E5 – Era como se a conhecesse desde sempre (...), senti como se tivesse, enfim, chegado em casa (id., ibid., p. 41). Novamente retorna (como em E4) a imagem de “casa” como lugar de encontro, de identidade. Carlo, italiano, vivendo em Nova York, ao encontrar o amor de uma italiana talvez tenha, momentaneamente, experimentado o sentimento de identidade, de inteireza, de plenitude, continuamente buscado pelo sujeito. O retorno à terra natal, as investigações sobre o pai, a identificação amorosa com Nicoletta, tudo isso contribui para esse “sentir-se em casa”, para essa tentativa de (re) construção de si. Carlo prossegue em seu trabalho de “escavar” a vida do pai, agora, com a ajuda de Nicoletta. Fazem novas descobertas e Carlo retorna a Nova York, onde (re)toma a leitura dos diários, agora sob um novo olhar, construindo outras interpretações e (re)tecendo os fios da memória, em seus contínuos rearranjos: E6 – Rapidamente, me dei conta de que aqueles não eram, de fato, os diários de meu pai; eram os diários de “outra vida”, a do ex-ajudante de Sodoma. Eles continham sobretudo relatos de experiências estéticas, contemplações de obras conhecidas e desconhecidas. Eram uma viagem contínua num universo de arquiteturas, esculturas, quadros, poemas, romances, peças


de teatro, filmes e mesmo paisagens naturais (id., ibid., p. 59). Sabemos que ler é produzir sentidos; assim, a cada leitura, a cada (re)tomada do texto, novos sentidos se constroem. Foi o que aconteceu com Carlo. Se, nas leituras iniciais dos diários, o filho não “aguentava aquele estilo meloso” (id., ibid., p.60), nessa outra leitura, sob um outro olhar, com novas informações obtidas nas buscas realizadas, “descobre” a “outra vida” do pai, a que este se referira antes da morte. Entretanto, essa “outra vida” fora construída através da escrita de si: o pai edificara um mundo à parte, uma outra identidade, um outro de si, como ex-ajudante do pintor Sodoma. Assim, o pai permitia-se (re)viver a experiência do passado, manter a lembrança da mulher que amara e o gosto pela arte, já que essa mulher era uma restauradora e copista de quadros da Renascença. Sua escrita constituía-se, então, numa “viagem contínua pelo universo da arte, não apenas pela pintura: fios artísticos do passado e do presente, da imaginação e da realidade mesclavam-se. Buscou realizar e (re)atualizar, permanentemente, sonhos e desejos “esquecidos” na memória, porém e(in)scritos em seus diários, onde ele tentava ser e viver, pela escrita. Pela escrita constituiu-se um “corpo”, ou seja, a escrita transformou-se “em forças e sangue”, como lembra Foucault ([1983] 1992, p. 143), citando Sêneca. O excerto seguinte traz a conclusão de Carlo a respeito do mistério da vida do pai: E7 – A moral da história é que meu pai se casou com uma mulher com quem cumpriu o seu dever, combateu, teve filhos, trabalhou. Mas amou outra, perdidamente, por seis dias e para o resto da vida. Inventou uma maneira de encontrá-la às escondidas, sempre que podia (...) ele entrava nos quadros para encontrar sua amada. Passeava com ela por cidades imaginárias, medievais e renascentistas; todo o seu interesse pela arte sacra dos séculos quinze e dezesseis não passava de um truque para poder entrar nos quadros e circular pelas ruas e pelos caminhos que são o pano e fundo das pinturas. É ali que ele encontrava sua amada. A jornada de Carlo pelo passado parece estar concluída: descobriu o sentido das últimas palavras do pai, através das investigações e dos diários. De fato, esses diários eram, como o próprio filho constatou, uma invenção, um “truque”, um artifício pelo qual o pai criou outra cena, pela linguagem, onde buscava realizar-se imaginariamente, com as lembranças permanentemente (re) tecidas da mulher que amou. Esse artifício remete-nos ao poema Vou-me embora pra Pasárgada, de Manoel Bandeira, em que o poeta também cria um lugar imaginário – Pasárgada – no qual poderia realizar, sem limites, pela escrita, pela arte, os desejos e sonhos impossíveis de serem concretizados na realidade, pela própria contingência humana e em decorrência de sua frágil saúde, comprometida pela tuberculose. Com elementos de sua realidade, imbricados à imaginação, sem que se possa saber exatamente o que pertence a uma ou outra, o poeta constrói a invenção de si, a escrita de si, no desejo (permanentemente adiado) de completude. Com Carlo ocorre situação similar: apesar da empreitada para (re)construir-se, mediante um trabalho de “escavação” do passado, a busca identitária continua adiada, mesmo tendo se ocupado em escrever um livro sobre esses acontecimentos, como forma de (re)tecer os fios da própria vida: E8 – Em outubro, comecei a escrever esta história, tinha tempo, eu mal saía à noite, ficava em casa nos fins de semana (id., ibid., p. 105). E9 – Passei dezembro e janeiro redigindo a história de meu pai, de Sodoma, de dona Bice, de Nicoletta e de mim, aos poucos (id., ibid., p. 111). E10 – É março, começo de março, terminei de escrever. Não sei qual será o futuro deste manuscrito (id., ibid., p. 122).


Os três excertos pontuam o processo de escrita no qual Carlo mergulhou, ocupando seu tempo, sozinho em Nova York, após a conclusão de suas buscas. Conclui o livro, mas continua inseguro (“Não sei qual será o futuro deste manuscrito”), incompleto, desconhecendo-se. Bartucci (2001, p. 383) lembra que “ [...] toda obra é autobiográfica, na medida em que expresse com propriedade as tensões derivadas do contato com as oscilações entre a certeza e a incerteza de ser”. De fato, o que Carlo e o pai constituíram foi uma escrita de si que, aparentemente, lhes permitia a ilusão de completude, de realização; entretanto, ao mesmo tempo, o pai tinha que continuamente renovar-se nessa escrita, através dos diários, como “lugar psíquico de constituição de subjetividade” (BARTUCCI, 2001, p. 380). Por sua vez, Carlo escreve um livro sobre suas investigações, mas também não se satisfaz, não se encontra, como revela a Nicoletta, através de um e-mail; ele, em Nova York, ela, em Florença: E11 – Oi, madona florentina, o inverno foi longo, frio e solitário. E acho que não acabou. Não sei se vai acabar. Tento, mas não me reencontro (id., ibid., p. 111). Refere-se ao inverno em Nova York, mas também a um outro inverno, dentro de si, pela solidão, vazio e incerteza que sente (“E acho que não acabou [o inverno]. Não sei se vai acabar”), por não saber de si mesmo, por não (re)encontrar-se. Logo depois, recebe a resposta de Nicoletta: E12 – Oi, tio da América, aqui também o inverno foi longo, cinza e sem graça (...). Então onde será nossa primavera, em Nova York ou em Florença? A primavera é o (re)nascer da vida, da esperança, do amor. O encontro com o outro, com o amor é um novo desafio para esse homem saído de outros relacionamentos. Por sua vez, Calligaris, que construiu um outro de si, através do protagonista Carlo, também se dá uma chance, pela escrita, pela ficção produzida. Concluindo... Analisando as três escritas de si, que se entrelaçam no livro O conto do amor, constituídas através da memória, percebemos que essas escritas retomam fios do passado e do presente, num trabalho arqueológico (FOUCAULT [1969] 2004) de escavação e descoberta, em que arquivos são (re)constituídos continuamente, cartas são (re)lidas, lembranças são (re)atualizadas, porém, apesar de tudo isso, o processo identificatório do sujeito nunca se completa. O sujeito nunca se (re)encontra por inteiro, há sempre falta, os espaços a serem continuamente preenchidos. O sujeito esta(rá) sempre em falta. As escritas de si serão (re)constituídas e (re)lidas. O que há é a linguagem, em sua incompletude, que também constitui o sujeito na falta, na falha. Essa é a condição humana: estar entre a impossível unidade e a insuportável divisão. E, ainda assim, continuar . . . Referências BARTUCCI, G. Alteridade e cultura. Entre o mesmo e o duplo, inscreve-se a alteridade. Psicanálise freudiana e escritura borgiana. In: BARTUCCI, G. (org.). Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.


CALLIGARIS, C. O conto do amor. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CORACINI, M. J. R. F. A celebração do outro: arquivo, memória e identidade: línguas (materna e estrangeira), plurilingüismo e tradução. Campinas: Mercado de Letras, 2007. COSTA, A. M. M. da. A ficção do si mesmo. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998. ECKERT-HOFF, B. M. Escritura de si e identidade: o sujeito-professor em formação. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2008. FOUCAULT, M. (1983) A escrita de si. In: FOUCAULT, M. O que é um autor. Tradução António Fernando Cascais e Edmundo Cordeiro. Lisboa: Veja, 1992. ______. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. FREUD, S. (1896). Periodicidade e auto-análise. In: MASSON, J. M. A correspondência completa e Sigmund Freud para Wilhelm Fliess - 1887-1904. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1986 pp.208-215. KEHL, M. R. Minha vida daria um romance. In: BARTUCCI, G. (org.) Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução de Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. LACAN, Jacques (1966). “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 93-106. MORAES, Maria Rita Salzano. Materna/estrangeira: o que Freud fez da língua. Campinas, SP, 1999. Tese de Doutorado – UNICAMP – IEL. PÊCHEUX, Michel “Papel da memória”. In: ACHARD, Pierre. Papel da memória. Campinas, SP: Pontes, 1999.



A CULTURA OU CULTURAS EM SALA DE AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA: discutindo conceitos e possibilidades

Glória Cortés Abdalla¹

1. Introdução Neste artigo, tratarei sobre a importância da cultura e sua inserção no ensino de Línguas Estrangeiras, buscando oferecer algumas reflexões para o trabalho do professor. Cito o ensino de línguas estrangeiras, pois insiro-me nessa área de pesquisa, no entanto acredito que a discussão aqui trazida pode fomentar uma reflexão também no trabalho de língua materna. Discutirei primeiramente o conceito de cultura e a importância das artes no desenvolvimento do indivíduo. Na sequência, falo da utilização dos gêneros textuais inseridos nessa perspectiva cultural e, por fim, as possibilidades de utilização do cinema como meio e conteúdo didático. Desde o início de minha carreira, venho buscando refletir sobre minha prática e suas implicações. Como professora de inglês e espanhol, além das problemáticas inerentes ao ensino de língua estrangeira no país, outras questões perpassavam meu cotidiano docente. Por exemplo, o meu fazer pedagógico fomenta o pensamento crítico de meus alunos? Os conteúdos que escolho refletem a diversidade possível de culturas e pensamento dos povos que falam o idioma que eu ensino? Como tudo isso, cultura, língua em uso e crítica podem unir-se em sala de aula e gerar formação e transformação? Tendo como base as pesquisas desenvolvidas na área da Linguística Aplicada, procurei, ao longo dos últimos anos, colocar em prática uma nova visão de trabalho para o espanhol e também para o ensino de inglês na qual os idiomas são inseridos em temas de cultura, tendo como suporte conteúdos e instrumentos das Artes Plásticas, Cinema e Literatura. Tendo desenvolvido e aplicado ao longo dos últimos anos um desenho de curso para o espanhol com base na visão sócio-históricocultural para a Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (COGEAE) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), pude observar e entender melhor os resultados dessa visão e proposta de ensino. Neste artigo não descreverei o referido curso e nem os resultados obtidos com essa proposta, relatados em minha tese de doutorado (ABDALLA, 2013). No entanto, no processo de pesquisa pude entender melhor alguns conceitos que trago aqui para melhor esclarecer os caminhos que podemos seguir no sentido de fomentar um ensino-aprendizagem mais coerente com a realidade e com a necessidade premente de formar criticamente os indivíduos.

¹Professora de Língua Espanhola na FECAP (Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado), Língua Espanhola e Inglesa na Universidade Nove de Julho; orientadora e professora de Prática de Ensino no curso de lato sensu “Ensino de espanhol para brasileiros” na COGEAE-PUCSP. Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: gloriaabdalla@gmail.com


2. Falando sobre cultura Em um primeiro momento, ao desenhar o curso, a cultura que eu imaginava se referia aos temas de cada módulo do curso (Aprenda espanhol com Pedro Almodóvar, Aprenda espanhol através do Cinema latino-americano, Aprenda espanhol através da Arte, Aprenda espanhol através da Literatura e Aprenda espanhol através da Música), utilizando uma nomenclatura canônica de áreas da cultura. Essa escolha baseava-se em minhas experiências pessoais, mas também na firme convicção de que todo aprendizado humano deve passar pelo encontro com as artes. Segundo Morin (2011a, p. 47), “[...] o homem só se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura”. Segundo esse autor, no que se refere às Artes, “Literatura, cinema e poesia devem ser considerados, não apenas, nem principalmente, objetos de análises gramaticais, sintáticas ou semióticas, mas também escolas de vida, em seus múltiplos sentidos” (MORIN, 2011b, p. 48) (destaque do autor). As artes, assim, formaram parte dos conteúdos que eu previa como importantes e interessantes de utilizar em sala de aula, no entanto havia ainda outra dimensão essencial no processo que incluía uma outra acepção da palavra “cultura”. Para isso, lancei mão dos estudos da antropologia cultural, que mostrou e incumbiu-se de revelar um panorama multifacetado e complexo a esse respeito. Lima, Martinez e Lopes (1991) traçam o percurso dessa ciência e apresentam uma discussão sobre o conceito de cultura no viés da Antropologia. Assim, em contraposição a uma visão tradicional, Cultura “[...] não é somente aquilo que se adquire pelo intelecto, pela leitura, por exames, por contacto nas escolas e universidades, etc. Cultura é mais do que isso, pois um analfabeto tem cultura, embora não seja culto” (p. 37) (destaque meu). Cada grupo humano possui uma série de regras, crenças, costumes e artefatos que compõe sua cultura e que faz do homem sua parte integrante. Sendo o homem fruto do social, e o social sendo estabelecido pelo homem em suas interações com o meio e com outros homens, a cultura será então, de fato:

Todo esse cabedal, todo esse patrimônio de artefactos materiais ou espirituais em que o Homem se movimenta e de que serve para satisfazer as suas necessidades físicas, fisiológicas e espirituais, que recebeu de seus antepassados ou que acrescentou, modificou, transformou ou inventou e que transmite é o que se chama em Ciências Humanas e Sociais, cultura (LIMA, MARTINEZ e LOPES, 1991, p. 38).

Dentro da visão sócio-histórico-cultural na qual me baseei para o desenho de curso e realização de meu projeto de aulas, busquei em Vygotsky (1932,1934) apoio para compreender melhor tais conceitos e como eles seriam aplicados em sala de aula. A discussão da Antropologia cultural corrobora e alia-se aos conceitos de instrumentos e mediação simbólica propostos por Vygotsky (1934/1998a). O conceito de instrumentos insere-se na teoria vygotskiana por influência da teoria marxista. Os instrumentos intermedeiam a ação do homem e, ao mesmo tempo, têm a capacidade de modificar a própria ação. Vygotsky traça um paralelo com o uso de ferramentas nas relações de trabalho. A intermediação homem-natureza por meio de instrumentos criados com objetivos específicos e construídos socioculturalmente amplia a ação do homem no mundo. Também na Antropologia cultural se entende que, ao mesmo tempo em que o homem cria artefatos, instrumentos culturais, tais objetos também modificam sua relação com o mundo e, consequentemente, a cultura se modifica.


Porém, se o homem, para satisfazer as suas necessidades, se vê na obrigação de criar objectos, desde o momento em que os cria não pode passar sem eles: esses objectos impõem-se ao homem criando-lhe aquilo que muitos intitulam uma “segunda natureza”, paralela à sua, sem a qual não pode subsistir (LIMA, MARTINEZ, LOPES, 1991, p. 43).

Assim, cultura não se refere apenas a costumes, hábitos, usos, mas também a um conjunto de mecanismos de controle, conforme argumentam os autores, “[...] planos, regras, instruções para orientar o comportamento” (op. cit., p. 47). Nesse sentido, funcionam como mediadores simbólicos da própria ação do homem no mundo e, assim, também passam a constituí-lo. Como discute Paulo Freire (1979/2001, p. 56-57), o homem está inserido em uma estrutura social, característica do humano, e não apenas estrutura suporte, que constitui seu “eu social”. Assim, tudo o que o homem cria e recria em suas relações e inter-relações com a realidade e a estrutura refere-se à dimensão cultural:

Cultural é [...] tanto um instrumento primitivo de caça, de guerra, como o é a linguagem ou a obra de Picasso. Todos os produtos que resultam da atividade do homem, todo o conjunto de suas obras [...] voltam-se para ele e o marcam, impondo-lhe formas de ser e de se comportar também culturais. Sob esse aspecto, evidentemente, a maneira de andar, de falar, de cumprimentar, de se vestir, os gostos são culturais (FREIRE, 1979/2001, p. 57).

Em sala de aula de língua estrangeira, deparamos a problemática de entender o papel da cultura, uma vez que, apesar de ela ser inerente a cada gênero textual, função comunicativa, gestos, escolhas linguísticas que o falante faz, ainda é vista como um item a ser explicado como “curiosidade” ou elemento à parte das aulas. Para Almeida Filho (1993, p. 15), deve-se entender que aprender uma língua é “[...] aprender a significar nessa nova língua e isso implica entrar em relações com outros numa busca de experiências profundas, válidas, pessoalmente relevantes”, o que significa apropriarse de novas formas culturais, e não apenas discorrer sobre elas. A cultura como adendo é comumente identificada na fala de professores de cursos de idiomas em que a inserção da “cultura” se dá quase exclusivamente como aqueles aspectos curiosos dos povos que falam o idioma ensinado. Hábitos, festas, datas festivas, pratos típicos passam a ser a “seção cultural” da aula, quase que separada, ou estanque, do conteúdo gramatical, e muitas vezes reforçando estereótipos ou tentando sobrepor o valor da cultura estrangeira à local. Inúmeros autores apontam para a importância da inter ou multiculturalidade, ou da inserção integrada de cultura e língua como Durandi (1997), Kramsch (1993) e Motta-Roth (2006). Fantini (2001) aponta, por exemplo, o conceito “linguacultura”, ou seja, dois termos como um único, indissociáveis e inseparáveis. O autor advoga ainda a favor do desenvolvimento de uma “competência intercultural” que, apesar de admitir ser algo ainda em ampla discussão e entendido de diversas maneiras pelos autores atuais, seria “[...] a habilidade de atuar efetivamente e apropriadamente com membros de outro contexto de língua-cultura em seus próprios termos” (FANTINI, 2001, p. 2)² (tradução minha). De acordo com Dourado e Poshar (2010, p. 34):

²[...] the abilities to perform effectively and appropriately with member of another language-culture background on their terms.


A indissociabilidade entre língua e cultura é cada vez mais visível no mundo globalizado no qual urge uma educação intercultural, em que cultura e língua caminhem lado a lado como fatores fundamentais na promoção de uma convivência compartilhada no planeta.

Segundo Motta-Roth (2006. p. 199), devemos objetivar um estudo de língua e cultura de forma crítica, ou seja, refletindo sobre os aspectos de nossa própria cultura em comparação com a estrangeira, superando a visão local e fazendo o desenvolvimento de um repertório e de estratégias de aprendizagem intercultural que sejam utilizadas posteriormente pelo aluno. No que se refere ao ensino da cultura, ou das obras de arte, um dos aspectos propostos no curso que elaborei, encontro apoio em Morin (1999b, p.51) quando afirma que “Literatura, poesia, cinema e psicologia e filosofia deveriam convergir para tornarem-se escolas da compreensão”. A obra de arte, como o romance, por exemplo, ou o filme propiciariam aos indivíduos a compreensão de seus próprios dilemas e sofrimentos, da sua condição humana. Como instrumentos culturais, as áreas específicas de denominação cultural, como o são a música, a literatura, o cinema e as artes plásticas, parecem potencializar a compreensão da cultura como proposto aqui, em seu sentido antropológico, uma vez que retratam o homem, seus sentimentos e ideologias em seu tempo. Cinema, literatura e música são frutos da cultura humana, de suas indagações, concepções e contradições ao longo da história de sua civilização. Parte da chamada “cultura das humanidades”, segundo Morin (2011a, p.48), a cultura, em seu sentido antropológico, “[...] fornece os conhecimentos, valores, símbolos que orientam e guiam as vidas humanas”. Na formação integral do indivíduo, essa é uma das dimensões que deveriam fazer parte dos currículos, conforme discute Morin (2011b). Neste trabalho, utilizo o termo cultura também nessa perspectiva. Para Morin (2011b), a cultura “[...] foi, e ainda é, para uma elite, mas de agora em diante deverá ser para todos uma preparação para a vida” (p. 48). 3. A visão de linguagem: os gêneros textuais Até aqui discuti a questão da cultura e sua relação imbricada com o social e o papel das artes na formação dos indivíduos. Tratando-se de uma discussão sobre possibilidades de integração da cultura em sala de aula de língua estrangeira, não poderia deixar de incluir a perspectiva linguística, também cerne desse trabalho. Conforme Vygotsky (1932/1998b), a linguagem é desenvolvida pelos indivíduos de fora para dentro, em um processo social, e esta passará a constituir seu pensamento. Pensamento e linguagem serão então indissociáveis e, constituindo-se a linguagem no social, por sua função de ser meio de comunicação social, de compreensão e de enunciação, entende-se a importância desse processo de interação na constituição dos sujeitos e de sua mente. Segundo o autor:

[...] os processos que movimentam a linguagem desempenham um grande papel, que assegura um melhor fluxo do pensamento. Eles ajudariam os processos de interpretação pelo fato de que, sendo difícil e complexo o material verbal, a linguagem interior realiza um trabalho que contribui para uma melhor fixação e unificação da matéria aprendida. (op. cit., p. 4).


A linguagem é, na perspectiva sócio-histórica, também relacionada à concepção de um discurso em um determinado contexto social e histórico. Assim, como proposto por Vygotsky (1934/1999) e Bakhtin (1952/2010), é por meio da linguagem e nas práticas sociais que os indivíduos se constituem e, nessa interação, apropriando-se de vários discursos e signos, constituem e reconstituem todo o tempo novas formas de agir:

A internalização de formas culturais de comportamento envolve a reconstrução da atividade psicológica tendo como base as operações com signos. [...] são incorporados nesse sistema de comportamento e são culturalmente reconstituídos e desenvolvidos para formar uma nova entidade psicológica (VYGOTSKY, 1998a, p. 75-76).

Corroborando essa premissa, Bakhtin/Volochinov (1929/1999, p.95) afirmam que “[...] a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico vivencial”. Nesse sentido, não se trata, como afirmam Bakhtin e Volochinov, de imaginar a linguagem como sistema ou estrutura fixa e dissociada de um contexto:

[...] na prática viva da língua, a consciência linguística do locutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/1999, p. 95).

Ao inserir os alunos no processo de aprendizagem do novo idioma, devemos buscar, mais do que o conhecimento das estruturas linguísticas, justamente o reconhecimento das situações de enunciação possíveis dentro das inúmeras possibilidades oferecidas pelo contexto e por seus participantes. Isso porque “[...] a língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, p. 96). Nesse aspecto, os gêneros de texto constituem a materialidade do uso da língua, oral e escrita, dessa forma de pensar e agir no mundo e de estabelecer novas ações e representações. Segundo Bakhtin (1952/2010, p.261), as atividades humanas, em suas múltiplas possibilidades, sempre se relacionam com o uso da língua. A enunciação reflete, então, as condições e as finalidades específicas, tendo assim uma temática, um estilo e uma construção composicional. Desses três aspectos conjugados, nascem os gêneros do discurso. Como afirma Bakhtin (1952/2003, p. 262):

[...] cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados aos quais denominamos gêneros do discurso. A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso é infinita porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana.


Com base nos pressupostos bakhtinianos, Marcuschi (2002, p.20) define os gêneros como entidades sociodiscursivas e formas de ação social. Para o autor, “[...] os gêneros são eventos textuais maleáveis, dinâmicos e plásticos e se caracterizam mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais que por suas peculiaridades linguísticas e estruturais”. Na definição de Marcuschi, evidencia-se a relação entre linguagem e ideologia, uma vez que no gênero materializam-se a cultura, o pensamento, a organização e as ações dos indivíduos em um determinado grupo social, visto que também tem uma função social. Seu papel é, pois, essencial na comunicação dos indivíduos. Para Bakhtin (2010, p. 283), a comunicação discursiva seria impossível se “[...] os gêneros do discurso não existissem e nós não o dominássemos, se tivéssemos que [...] construir livremente e pela primeira vez cada enunciado”. Os gêneros discursivos são divididos, segundo Bakhtin (1952/2010), em dois tipos: primários e secundários. Os primeiros, mais espontâneos, referem-se às atividades cotidianas dos indivíduos e, por essa razão, são mais imediatos e menos elaborados. Nessa categoria podemos inserir, segundo Marcuschi (2010, p.40-41), as comunicações como bilhetes, e-mails, falas informais. Já os secundários referem-se às comunicações em um âmbito mais formal, ligado às trocas culturais e acadêmicas e, por essa razão, são mais elaborados, como o artigo, os gêneros jornalísticos, a escrita científica, a palestra, entre outros. Para Bakhtin (1952/2010), no entanto, tanto gêneros primários como secundários devem ser entendidos de forma imbricada, uma vez que se relacionam e se complementam. Os gêneros secundários podem absorver e utilizar gêneros primários, como é o caso do romance, que representará, por exemplo, a fala cotidiana de um determinado grupo. Igualmente, a representação teatral, o conto, entre outros gêneros da esfera literária. O conceito de gêneros primários e secundários da teoria bakhtiniana converge com a perspectiva vygotskiana a respeito do desenvolvimento dos conceitos cotidianos e científicos. Os indivíduos, ao se engajarem nas situações de comunicação, apropriam-se das ferramentas linguísticas para que possam atuar nesses âmbitos. Assim, a utilização dos gêneros secundários é mais dependente de uma formalização do conhecimento, ainda que incorpore a bagagem trazida pelo uso dos conceitos cotidianos. Nesse sentido, a escola possui um papel preponderante no desenvolvimento dos conceitos científicos e, igualmente, dos gêneros secundários. No entanto, em sala de aula de língua estrangeira, o trânsito entre os gêneros escritos e orais, primários e secundários será constante, e eles terão quase igual valor, uma vez que se trata do processo de ensino-aprendizagem de um novo idioma visando ao desenvolvimento do indivíduo em ambas as esferas, necessitando, pois, de apropriar-se de diversos recursos para realizar seu discurso. Sendo o gênero um instrumento de mediação e conteúdo ao mesmo tempo, criado em contextos sócio-histórico-culturais específicos e com funções comunicativas, deveria, nessa perspectiva, ser levado à sala de aula para oportunizar ao aluno a construção, na língua estrangeira, de formas de ação próximas àquelas que utilizaria em sua vida social em língua materna também. Assim, inseridos em uma perspectiva sociocultural, parece natural que se desenvolvam os gêneros textuais na prática de sala de aula como forma de apreensão do mundo e de novas linguagens e oportunidades para o desenvolvimento das capacidades comunicativas dos alunos. No trabalho de desenho de curso que realizei e que menciono no início deste artigo, foram definidos alguns gêneros textuais (escritos e orais) para o desenvolvimento das aulas ligados ao cinema e à esfera das discussões de cada filme: a sinopse, a biografia, a canção, o conto, o guia turístico, o mapa.

4. O cinema em sala de aula As possibilidades de utilização do cinema como ferramenta de ensino foram aventadas desde sua criação. Segundo Napolitano (2011), o cinema é uma experiência cultural importante, assim


como a música e a literatura, e a escola precisa levar isso em conta e tratar esse trio com igualdade. De acordo com Jordão (2009, p. 59), o cinema ainda é visto por muitos professores como recurso pedagógico meramente ilustrativo de conteúdos ministrados em sala de aula. A autora ressalta ainda que raramente o filme é explorado pedagogicamente em suas possibilidades estéticas, ou seu contexto de produção ou o próprio filme enquanto obra artística. Além de constituir possibilidade de formar criticamente e esteticamente o aluno, outras características do cinema o transformam em instrumento privilegiado. Segundo Duarte (2002), o cinema é visto ainda como arte menor, ou entretenimento, diante de formas de arte mais elevadas. Para Soutto-Mayor e Soares (2009, p. 80), o uso do cinema em sala de aula representa um desafio para os professores, e exige um reconhecimento de seus elementos constituintes enquanto arte e linguagem. Segundo Metz (1968/2010), o cinema possui a característica de causar no espectador uma impressão de realidade. Diferentemente de outras artes, o filme atrai multidões e incita um sentimento de envolvimento mais do que em qualquer outra expressão artística. Para Metz (2010), o filme:

[...] desencadeia no espectador um processo ao mesmo tempo perceptivo e afetivo de “participação” [...] conquista de imediato uma espécie de credibilidade — não total, é claro, mas mais forte do que em outras áreas, às vezes muito viva no absoluto —, encontra o meio de se dirigir à gente no tom de evidência “É assim”, alcança sem dificuldade um tipo de enunciado que o linguista qualificaria de plenamente afirmativo e que, além do mais, consegue em geral ser levado a sério (METZ, 2010, p. 16-17).

Ao causar essa impressão da realidade, resulta mais interessante como instrumento de trabalho, por exemplo, para ensinar-aprender a comunicação em língua estrangeira. Além de fornecer contextos e situações de comunicação, traz toda a possibilidade de exploração oral de forma mais natural e próxima da utilizada por falantes do idioma. Segundo Bradimonte (2003, p. 872):

O suporte audiovisual representado pelo cinema e a televisão, pode nos proporcionar uma fonte inesgotável de recursos para as aulas de espanhol como língua estrangeira e deve transformar-se em um instrumento imprescindível nos centros e escolas de idiomas. […] o material em vídeo permite atualizar todos os elementos linguísticos e extralinguísticos que constituem a competência comunicativa e, ao combinar-se som e imagem apresenta situações comunicativas completas, tal como ocorre na vida real e dificilmente reproduzíveis na sala de aula pelo professor. (tradução minha)³

Nesse aspecto, o cinema oferece a oportunidade de reprodução, pelo aluno, de diferentes

³El soporte audiovisual representado por el cine y la televisión, nos puede proporcionar una fuente inagotable de recursos para las clases de E/LE, y debe convertirse en un instrumento imprescindible en los centros y academias. [...] el material video permite actualizar todos los elementos lingüísticos extralingüísticos que participan en la competencia comunicativa y, al combinar sonido y imagen, presenta situaciones comunicativas completas, tal como sucede en la vida real y difícilmente reproducibles en el aula por el profesor.


eventos comunicativos, ou seja, o conjunto de ações linguísticas e atitudinais que compõem as relações humanas cotidianas. Para Casamiglia y Tusón (1999, p. 18), os eventos comunicativos, ainda que se tratem de acontecimentos únicos, têm no conjunto de seus componentes a característica de que:

[…] não se colocam arbitrariamente em cada ocasião, mas que, através das práticas sociais vão se constituindo em gêneros identificáveis por meio de regras e convenções que os falantes seguem segundo o evento comunicativo de que se trate.4

O filme oferece ao aluno a possibilidade de verificar diversos arranjos linguísticos e atitudinais em cada evento comunicativo, uma vez que se propõe como representação real de diversos grupos e, consequentemente, de diferentes comunidades discursivas. Além disso, ao contrário dos áudios de livros didáticos, cujas gravações de diálogos seguem em geral um roteiro para facilitar a compreensão e produção do aluno em cada nível de proficiência, o filme oferece diálogos com a preocupação da verossimilhança, mais do que com a facilidade. Ainda que sejam oriundos igualmente de roteiros, têm outros objetivos, que não incluem necessariamente os didáticos. Além disso, estão em geral em consonância com a língua em uso em sua época e lugar, o que nem sempre se pode dizer das gravações para fins didáticos. Por fim, outro aspecto importante da introdução do cinema em sala de aula é o trabalho de diferentes visões culturais, não só ampliando o repertório cultural do aluno, como também motivando as discussões sobre as diferenças culturais, a tolerância, a diversidade de identidades. Para Bradimonte (2003, p. 872), o filme “[...] proporciona, além disso, uma grande quantidade de informação sociocultural, no sentido sociológico e antropológico (mentalidades, atitudes, costumes e valores)”.5 Sendo o filme fonte de discussões variadas e aproximação com as identidades de diversos povos, além de ser em si mesmo fruto da elaboração artística e cultural, e representar a variedade linguística desejada no processo de ensino-aprendizagem de línguas, podemos, por fim, unir todos os cabos desta discussão. 5. Chegando a algumas conclusões Ao tratar do conceito de cultura, da importância das artes e o cinema em sala de aula, ligados a uma visão de língua viva, em uso, por meio de gêneros textuais, creio apontar para as seguintes questões. É possível pensar uma sala de aula diferente. Uma sala de aula voltada para o desenvolvimento, não só de língua estrangeira, mas de uma linguagem viva e integrada com a cultura dos diversos povos que a falam. Da mesma maneira, a utilização de filmes pode se integrar de forma natural e profícua, não só com o interesse de proporcionar amostras de língua em uso, como subsídio para a prática oral, mas também como fonte de debate e discussão que objetivem o desenvolvimento crítico dos alunos. Pensar a utilização dos filmes, não como meros pretextos, nem como simples subsídio para exercícios linguísticos, pode iluminar um campo de reflexão sobre nosso papel de educadores. Da mesma maneira, acredito que devemos entender o ensino dos gêneros textuais incorporados às aulas […] no se dispone arbitrariamente en cada ocasión sino que a través de las prácticas sociales se va constituyendo en géneros identificables por unas pautas y unas convenciones que los hablantes siguen según el evento comunicativo de que se trate. 5 […] proporciona además una gran cantidad de información sociocultural, en el sentido sociológico y antropológico (mentalidades, actitudes, costumbres y valores). 4


e temáticas, não como a novidade ou panaceia a ser aplicada a partir de modelos rígidos e sem discussão, tal qual o era a gramática até alguns anos atrás, mas incorporado ao processo de discussão dos temas culturais possíveis em sala de aula e gerando interação real. Como afirma Paulo Freire, “não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura” (FREIRE, 1996/2002, p. 115). De fato, por vezes precisamos romper com as práticas automáticas, sem propósito, e ouvir quais são as necessidades e desejos de nossos alunos. Justificase, assim, nosso compromisso com a difusão das línguas estrangeiras, engajado com a melhor compreensão das culturas nas quais se realiza, aproximando e formando pontes de compreensão. Talvez, ao ensinar línguas estrangeiras, tenhamos o privilégio de aproximar culturas e minimizar diferenças, diminuir preconceitos, abrir olhares em direção a paisagens inusitadas. Ao olhar, encontramos o belo e o feio, o humano que precisa urgentemente de atenção e que, por meio da cultura, é acessado e mais bem entendido. Como formadores, educadores, não importa a disciplina, a técnica, o mister que queremos desenvolver, nosso maior objetivo deve ser ampliar nos indivíduos a consciência crítica e social, para gerar a transformação que tanto reclamamos para nossas sociedades, mas que representa um rompimento que, comodamente, muitos evitam. Referências bibliográficas ABDALLA, G.C. Percepções dos alunos sobre uma proposta de curso de espanhol como LE: o cinema e a cultura em foco. 2013. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ALMEIDA FILHO, J. C. P. Dimensões comunicativas no ensino de línguas. Campinas: Pontes, 1993. BAKHTIN, M. (1952). Estética da criação verbal. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. _______, (VOLOSHINOV). (1929). Marxismo e Filosofa da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999. BRADIMONTE, G. El soporte audiovisual en la clase de e/le: el cine y la televisión. XIV Congreso Internacional de ASELE. Burgos 2003. Disponível em:< http://cvc.cervantes.es/ensenanza/biblioteca_ ele/asele%20/pdf/14/14_0871.pdf > Acesso em 10 de jul. de 2013. CASAMIGLIA, H. ; TUSÓN, A. Las cosas del decir. Manual de análisis del discurso. Barcelona: Ariel Lingüística, 1999. DOURADO, M. R. E POSHAR, H. A. A cultura na educação linguística no mundo globalizado In: SANTOS, P. ÁLVAREZ, M. L. (org). Língua e cultura no contexto de português língua estrangeira. Campinas: Pontes. 2010. DUARTE, R. Cinema e Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. DURANDI, A. Linguistic anthropology. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. FANTINI, A.E. Exploring intercultural competence: a construct proposal. NCOLCTL Fourth Annual Conference. Brattleboro, Vermont, USA, 2001. FREIRE, P. Educação e mudança. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.


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REVELANDO O VALE REVELANDO por Luciano Dinamarco


O VALE

Luciano Dinamarco por ele mesmo Filho de famílias enraizadas em Guaratinguetá, terra de Frei Galvão, nasceu nos idos de 1971. Estudou em algumas das tradicionais escolas da tradicional cidade, participou do programa de Estudantes Estrangeiros, permanecendo ao longo do ano de 1988 na cidade de Adelaide, Austrália, onde cursou Técnicas de Fotografia em suas múltiplas linguagens. Voltando ao Brasil, formou-se em Direito, especializou-se em Direito do Trabalho e Processo Civil. Chegou a advogar, mas a arte falou mais alto. Passou a integrar movimentos de discussão das diversas linguagens fotográficas. Passou a fotografar mais e mais. Colaborou em diversos jornais e revistas e realizou exposições. Ama o que faz. Hoje reside em terras de Lobato, mas sempre em trânsito entre São Paulo e Rio, com paradas frequentes em Paraty, Guaratinguetá e São Luiz do Paraitinga, recantos onde se encontram as melhores imagens porque plenas de história, arte, amigos, porque ligadas a sua memória afetiva.


Caminhos caipiras As imagens foram registradas no eixo de São Luiz do Paraitinga a Aparecida. As bandeiras, os caminhos e descaminhos do ouro e diamantes. A cultura do Café e dos escravos, o tropeirismo, todos percorreram esses caminhos. A legítima cultura caipira, mistura de todas essas referências e influências, descrita inicialmente por Monteiro Lobato e mais tarde por Mazzaropi, emerge desta e nesta mesma área geográfica. Saudades da terra, da família, a natureza, os passarinhos, as montanhas, suas estradas, os caminhos e descaminhos, os amores e desamores que influenciaram diretamente a musicalidade, a culinária, o modo de vestir, de falar, o modo de ser, a personalidade dos que por aqui nasceram e cresceram numa dinâmica única e muito peculiar de se relacionar com o tempo e a natureza. Ainda hoje, são caminhos percorridos por romeiros que silenciosamente cortam as montanhas em direção a Aparecida.



















Literatrium Aposentadoria

Marcelo Ferreira de Menezes

Ela sumira de sua vista por alguns minutos. E ele sabia que não poderia cometer erros; não com ela. Mas ali não havia mais de duas opções de saída. Por isso ele tinha certeza de que ela ainda se encontrava no prédio, no meio dos convidados daquela requintada recepção. Circulou um pouco pelo meio do magnífico salão, por entre mulheres e homens sofisticadamente vestidos, fingindo apreciar seu uísque; não convinha beber. Até que a avistou subindo apressadamente as escadas. Discretamente alcançou os degraus da escadaria e a seguiu. O corredor era comprido e iluminado pela luz mortiça e amarelada das antigas luminárias de parede. Ladeando cada uma das portas que davam acesso aos quartos, espelhos de cristal iam refletindo a imagem do rapaz enquanto este avançava para a última porta, a única semiaberta. Em um dos espelhos, mirou sua silhueta elegantemente envolvida por seu legítimo Armani. Era um ramo arriscado, mas ele sabia que havia suas compensações. Uma rachadura nesse espelho riscava transversalmente a imagem de seu corpo. Incomodado, ele ajeitou a gravata borboleta e finalmente ganhou a porta. Ela dava acesso ao terraço, e foi lá que ele a encontrou, parada próxima ao parapeito. ‒ Rorim... Rorim Kenrob ‒ ele disse avançando lentamente em direção à mulher. A chuva finalmente dera uma trégua. Algumas pequenas falhas nas nuvens permitiam a passagem da luz da lua, que se elevava acima delas. E essa fraca luz permitiu a ele perceber que, apesar da idade, ela ainda conservava a beleza que vitimara tantos. Ela afastou com a mão esquerda uma mecha de cabelo ruivo que cobria caprichosamente um de seus olhos; olhos traiçoeiramente verdes. ‒ Ora ‒ ela o fitou altiva. ‒ Você até que é bem moço... para tanta ousadia. Admiro seus métodos. Afinal, mandar rosas vermelhas para suas vítimas antes... Bem... Não pensou que eu talvez pudesse tentar fugir? Como todos fazem? Ele, afetando interesse na conversa, respondeu: ‒ E para onde você iria? Depois, pelo que sei, você, sendo a melhor dos nossos, não faria isso. Não temeria o final que você mesma, e só você, soube entregar a tantos. Mas concordo que a fuga de nossas vítimas dá mais prazer à nossa... missão. A caçada... você sabe... é um bom treino. E todos nós não fazemos isso? Dar-lhes um aviso? Qual é... era ‒ e marcou bem esse verbo ‒ o seu? Ela pareceu ignorar a pergunta. Pela primeira vez, abaixou os olhos, mirando a cidade ao longe e suas luzes cintilantes. Abriu a carteira feminina, retirou um pequeno estojo com tampa espelhada e retocou o batom vermelho. Ele mirou o estojo, percebendo uma rachadura sobre o diminuto espelho.


‒ Então é assim. Essa é a nossa aposentadoria? A organização não nos quer mais, então... manda um cleaner? ‒ e depois de uma demorada pausa ‒ Tem um cigarro? ‒ ela perguntou soltando de uma só vez o fôlego, mas tentando manter uma altivez que já não se sustentava. A repentina fragilidade estranhamente a deixara mais sedutora aos olhos do rapaz. Então ele respirou aliviado, soltando o estilete que já espremia entre os dedos de sua mão direita enfiada dentro do bolso. Ficou feliz por ver que seria de outra maneira. Degolar aquela bela mulher era o mesmo que rasgar a tela de um Monet. E as obras de arte não mereceriam um final digno? Ele abriu a cigarreira e lhe deu um. Ela o levou à boca, tragando-o fortemente enquanto ele lhe mantinha estendido e aceso o isqueiro. ‒ Então? Como vai ser? ‒ ela indagou, misturando as palavras a uma tosse involuntária. ‒ Tenho pelo menos o direito de saber. Como? ‒ insistiu nervosa e dando outra forte tragada. ‒ Já está sendo ‒ ele sorriu maliciosamente. Vai acabar logo. O cigarro... Você conhece bem os efeitos do cianureto. Ela cambaleou. Deixou o cigarro cair. Tossia convulsivamente agora. A mão no peito tentou, mas não impediu o desmoronamento. Seus olhos permaneciam abertos e sedutoramente verdes, mas sua boca foi se congelando num esgar medonho. A brasa do cigarro se extinguiu aos primeiros pingos da chuva, que retornava mansamente. O rapaz retirou da lapela de seu Armani uma rosa vermelha e com cuidado a deitou sobre o colo da mulher sem vida ao chão. ‒ Rorim Kenrob... ‒ ele afagou o belo rosto branco e gélido e repetiu seu nome, tentando imaginar os grandes feitos daquela que fora a mais temida das assassinas de aluguel da Europa. Vislumbrou que um dia ele também seria um grande nome. Até que um cleaner enfim viesse procurar por ele. Virou-se e, com o rosto frio, deixou o terraço. No estacionamento da mansão, ele acionou o destravamento das portas da Lamborghini Murcielago. Pensou que havia perdido tempo demais naquela conversa e por isso tinha de sair bem rápido dali. Mas carros esportivos eram para isso. Ao olhar o espelho retrovisor esquerdo, irritou-se: algum carro havia batido nele, quebrando-o e causando ao moço um prejuízo de algumas centenas de dólares. “Inferno!”, ele praguejou. Ao engatar a marcha ré, olhou em direção ao teto e só aí se deu conta de que o espelho interno também estava partido. Então um frio lhe percorreu a espinha imediatamente. Havia visto muitos espelhos quebrados em um só dia, a começar pelo de sua suíte pela manhã, no Empire Inn. Um clarão em sua mente o jogou novamente na conversa que há pouco tivera com sua vítima. Viu então que a pergunta que fizera a ela não ficara sem resposta e repetiu aquele nome: “Rorim Kenrob... Rorim Kenrob... broken... broken mirror!”. Descobrira o anagrama. Moveu-se num pulo para sair do carro, mas em vão: no mesmo instante, a Lamborghini de milhares de dólares subia aos ares numa bola de fogo gigantesca que foi desaparecendo enquanto a chuva voltava a cair pesadamente por sobre toda a cidade.


PERFIL As crianças e os jovens brasileiros de hoje, tão habituados com os super-heróis americanos da Marvel e da DC Comics, talvez não saibam, mas o Brasil já teve um herói autenticamente nacional, e, ainda por cima, de carne e osso. E você pode não acreditar, mas, justamente durante os chamados Anos de Chumbo, no auge do AI-5, sua figura remetia inconfundivelmente à de um militar, e da Aeronáutica. E, como se isso já não bastasse, era também delegado de polícia. Ele não usava capa, não tinha superpoderes e não lutava contra vilões alucinados que sempre querem destruir o mundo. Sua roupa era simples: um macacão de aviador e um indefectível capacete de piloto com vistosas lentes negras. Seus poderes eram tão somente a alegria, a comunicação e a camaradagem. Sua missão, conforme bem diziam os versos de sua canção, era, pela trilha da esperança, cantar o amor e a paz. No comando de sua astronave (na verdade um, para os padrões de hoje, rudimentar cenário dentro de um estúdio de televisão da extinta TV Tupi) impreterivelmente todas as tardes, ao longo de impressionantes 13 anos, o Capitão Aza alimentou a fantasia de milhões de crianças brasileiras, que o tinham por ídolo, e se transformou no primeiro fenômeno de massa produzido pela mídia para essa faixa de público. E, diferentemente de outros programas televisivos infantis que o sucederam e confessadamente por ele foram inspirados, o Clube do Capitão Aza conseguiu toda essa audiência sem apelar para a exibição de uma adolescente sequer em micro-shorts, com coxas e umbigo de fora. Surpreendentemente todo o carisma do personagem-apresentador foi construído na base da defesa de ideais simples e atualmente tidos por alguns como fora de moda, como o valor do caráter, o respeito aos pais, à escola e aos professores, ao trabalho, aos mais velhos, ao turismo, à cultura e à pátria. Por meio de seu programa, também toda uma geração foi apresentada aos heróis mais famosos dos quadrinhos e que hoje arrecadam milhões nas bilheterias de cinema de todo o mundo, como o Homem de Ferro, o Homem-Aranha, o Capitão América, o Hulk, o Thor, o Speed Racer e o Batman. Se você tem pouco mais de quarenta anos, sabe onde viu pela primeira vez todos eles e ainda: Ultra-Seven, Robô Gigante, Príncipe Namor, Thunderbird, Super-Dínamo, Joe 90, Esper e tantos outros. Mas, por detrás de todo herói, há sempre uma identidade, um rosto, a história de um homem. Wilson Vasconcelos Vianna; era esse o seu verdadeiro nome. Ator, cantor e delegado da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, membro da Academia de Cinema de Hollywood, laureado com a medalha do Mérito de Santos Dumont por seu efetivo trabalho de divulgação da Força Aérea e, em geral, das Forças Armadas, é a ele que a Atrium rende aqui esta justa homenagem, 48 anos após a estreia do Clube do Capitão Aza.

CaPitão Aza, de A a Z

Marcelo Ferreira de Menezes

A INFÂNCIA O menino Wilson Vianna nasceu em Ipanema, no Rio de Janeiro, e passou a infância em Jacarepaguá. Filho de Ruth Vasconcelos Vianna, corista do Teatro Municipal, e de Eduardo Lopes Vianna, advogado não formado, aproximou-se da vida artística por influência de seu irmão mais velho, Wallace Vianna, ator de teatro, que chegou a contracenar com Bibi Ferreira e a trabalhar com Procópio Ferreira e que mais tarde desistiu da carreira para se dedicar à música.

... Alô, alô, Sumaré! Alô, alô, Embratel! Alô, alô, Intelsat 3! Alô, alô, criançada do meu Brasil! Aqui quem fala é o Capitão Aza, Comandante e chefe das Forças Armadas infantis deste Brasil!

Entre as brincadeiras, o estudo e fartas leituras de gibis como Mandrake, Brucutu e Dick Tracy, Wilson foi acalentando o sonho de se tornar ator de cinema, o que, de fato, acabou acontecendo até mais cedo do que ele imaginava. Mas, antes, confira como foi sua entrada para a Polícia Especial, mal tendo saído da adolescência. NO MEIO DO CAMINHO, UMA PEDRA

Durante treze anos, todas as tardes de segunda a sexta-feira, a partir desse chamado, bolas, carrinhos, pipas e bonecas eram deixados de lado imediatamente; atendendo a essa convocação, todas as crianças corriam para a frente da televisão para ouvir as orientações de seu Comandante e para assistir aos desenhos de Speed Racer, por exemplo, o campeão de audiência, ou do Homem de Ferro. O Clube do Capitão Aza estreou na TV Tupi em setembro de 1966. Mas a história do homem por detrás do personagem que leva muitos quarentões às lágrimas quando expostos às imagens ou às músicas do primeiro ídolo infantil de nosso país começou muito antes. Sua saga se inicia em verdade na construção de sua carreira como homem da lei. Sim, homem da lei (e todo herói não o é?), já que acabou por se constituir Delegado da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, função que desempenhou de 1970 até 1991, quando então se aposentou, após 40 anos de serviços prestados a essa instituição. E, ao empregarmos a palavra herói, não estamos nos referindo apenas ao mundo da ficção, pois, como membro da Polícia Especial, ainda bem jovem, antes de se lançar às artes cênicas, sendo responsável pela segurança de ninguém menos que o Presidente da República, Wilson literalmente salvou Getúlio Vargas de um atentado que poderia ter sido fatal. Sua singular e extraordinária história prossegue na luta por se estabelecer como ator de cinema no Brasil e no exterior, passando, é claro, pela inacreditável viagem feita até o México a bordo de uma Kombi, viagem que por sinal começou com o desafio de ser cumprida inicialmente de um modo bastante insólito.

Wilson na Polícia Especial

No ano de 1949, seu primo Austo Belini, policial-motociclista da guarda do Presidente Getúlio Vargas, e um dos atores do filme Ganga Bruta, levou-o para a Polícia Especial; ela era responsável pela segurança do chefe de Estado. Dessa época veio o gosto de Wilson por motocicletas e a habilidade de fazer acrobacias em cima delas, como uma pirâmide humana com dezenove homens. Por sua destreza, foi convidado a integrar a equipe de batedores do Presidente, função que representaria um grande desafio para qualquer pessoa, quanto mais para um rapaz de apenas dezoito anos. Uma vez admitido na Polícia Especial, Wilson passou a acompanhar de perto o estadista e foi responsável por um ato de verdadeiro heroísmo, o qual já mencionamos anteriormente, ao evitar um suposto atentado contra Getúlio Vargas, em Petrópolis (RJ), livrando-o do golpe certeiro de uma enorme pedra que rolava em sua direção. Em suas memórias, registradas no livro de Dora Mendonça, A trepidante vida de Wilson Vianna, o Capitão Aza, no qual nos baseamos para esta pesquisa, o ator conta que o gesto brusco feito em direção a Vargas para protegê-lo quase fez com que Gregório Fortunato, segurança particular do Presidente, o alvejasse com um tiro;


Gregório pensou se tratar de uma agressão, mas o equívoco logo se desfez com o abraço efusivo que Vargas lhe deu pelo gesto heróico. LUZ, CÂMERA, AÇÃO! Seu porte atlético, a altura (1,80) e o rosto viril, apesar de bastante jovem ainda, atraíram a atenção do diretor de cinema José Carlos Burle, que o convidou, no início dos anos 50, para atuar no filme Barnabé, tu és meu, estrelado por Oscarito, Grande Otelo, José Lewgoy, Wilson Grey e Maurício do Vale. Deu-se assim sua entrada para o universo cinematográfico, justamente através da maior produtora da época, a Atlântida. Alguns filmes mais tarde, evidentemente a carreira na Polícia Especial teve de ser interrompida. Fez vários filmes com o renomado diretor José Carlos Manga, entre eles Matar ou correr, ao lado de José Lewgoy e Wilson Grey, filme que satirizava o americano Matar ou morrer, estrelado por Gary Cooper. Trabalhou ainda para os estúdios da Vera Cruz e para a Universal Pictures.

Cena do filme Baru, rodado no México, protagonizado por Wilson

Contabilizou ao todo 63 filmes, 43 dos quais no Brasil, porque nosso homenageado chegou a desfrutar de certa notoriedade internacional, na Costa Oeste dos Estados Unidos e no México, onde atuou em vários filmes, protagonizando inclusive um em que vivia uma espécie de Tarzan latino, o Baru. O personagem atingiu grande popularidade entre os mexicanos e, em filmes como Baru, o Homem da Selva e O Mundo Selvagem de Baru, Wilson chegou a contracenar com a Miss México de 1958. Nesse país viveu durante três anos, 57, 58 e 59, trabalhou em oito filmes, participou de muitos programas de televisão, apresentou um programa de rádio e fez shows em casas noturnas. Retornou ao Brasil no início de 1960. PIONEIRO DA DUBLAGEM

De volta ao solo pátrio, a convite de Adolfo de La Riva, amigo seu desde os tempos no México e diretor da empresa de dublagens Rivaton, Wilson assume a direção da Zivi-International Television Programs, braço brasileiro da Rivaton, e contribui para a implantação da técnica de dublagem cinematográfica no Brasil, que ainda não a utilizava, inaugurando um novo campo de trabalho técnico-artístico. Nessa empresa, Wilson dublou mais de três mil filmes e séries, tendo sido parceiro de trabalho do grande ator Mário Lago. Entre as várias dublagens que fez, destacam-se as dos seriados Bonanza, Bat Masterson, O homem do espaço, Aventura submarina e Patrulha Rodoviária. ¡VOLVER A MEXICO! Mas o México ainda voltaria a aparecer na vida daquele que seria eternizado como Capitão Aza. Isso porque em 1961 o chefe do Setor de Certames da Secretaria de Turismo do Estado da Guanabara (como então era chamado o Rio de Janeiro), Celso Azambuja, no intuito de promover a comemoração dos quatrocentos anos do Rio, fez-lhe a seguinte proposta: ir até a cidade do México, onde já era famoso por causa de Baru; só que a viagem teria de ser feita a cavalo! Wilson aceitou o desafio, e toda a empreitada está devidamente relatada no livro já citado de Dora Mendonça. Apesar dos extremos riscos, ele completou sim a viagem, só que de Kombi, façanha que, convenhamos, mesmo hoje, com as facilidades do celular e do GPS, já apresentaria desafios de sobra.

Chegada ao México, após um ano de viagem

Para quem ainda acha que uma Kombi facilitou as coisas, bastaria saber que a caravana se inciou a cavalo mesmo. Wilson, na companhia do comediante Jaime Filho e de um soldado da Polícia Militar, saiu de Copacabana no dia 28 de outubro. No dia 24 de dezembro, depois de muitos percalços, alcançaram São Paulo, perfazendo uma média de 15 a 20 quilômetros por dia. Somente ao chegar em Curitiba, já sem os dois companheiros do início da jornada, que haviam desistido, é que Wilson, cansado e preocupado com a condição dos cavalos, tomou a decisão de completar a viagem de outra maneira. Com o apoio da Volkswagen de São Bernardo do Campo, que lhe cedeu uma Kombi autenticamente alemã, pois esse modelo ainda não havia sido fabricado no Brasil, o ator, ao lado de um novo companheiro de viagem, Luizinho Montoro, deu prosseguimento à aventura, que, de forma alguma, foi mais leve por causa do veículo. Wilson não tinha patrocínio em dinheiro e teve de fazer, para sobreviver, nas cidades pelas quais passava, pequenas apresentações, onde conseguia fundos para alimentação, manutenção da perua e gasolina.

Com Pelé e o companheiro de viagem Luiz Montoro, em São Paulo

Depois de cruzar os países Argentina, Chile, Peru, Equador, Colômbia, Costa Rica, Nicarágua, Honduras e Guatemala, de enfrentar o calor de 50° do Deserto de Atacama, o frio de Macchu Pichu, de quase ser morto por bandoleiros colombianos e de permanecer cinco dias com a Kombi atolada no rio Ceibo em solo costarriquenho, Wilson e seu companheiro chegam finalmente à cidade do México, onde foram recebidos com banda de música até. A aventura de incríveis 18.200 Km, concluída em dezembro de 1962, um ano após seu início, ganhou amplo destaque da imprensa daquele país.

UM BRASILEIRO EM HOLLYWOOD Depois da jornada ao México, Wilson Vianna seguiu para os Estados Unidos ainda para tentar a carreira no cinema, apostando no fato de já ter feito alguns filmes pela Universal Internacional, como O Monstro de Curuçu (The Curuçu Monster of the Amazons) e Amantes Cativos das Amazonas (The Love Slaves of the Amazons). Mas o fato de ser estrangeiro não lhe foi propício, e o ator passou os anos de 1963 e 1964 se sustentando em funções como guia de cego, baby sitter, frentista de posto de gasolina, lavador de carros, ajudante de caminhão e estivador. Contrariando as expectativas, a chance de atuar no cinema internacional finalmente lhe chegou pelas mãos de Anne Glen, secretária de Samuel Goldwin, presidente da Metro Goldwin-Mayer. Segundo Wilson, o próprio Samuel teria sido quem lhe destinou um papel em The Great History Ever Told (A História Jamais Contada), filme em que também trabalharam Sal Mineo, Telly Savallas (que veio a se consagrar mais tarde


no famoso papel do detetive Kojak no seriado de mesmo nome) e Maximilian Schell. Com o estouro da Guerra do Vietnã, Wilson, aconselhado por Anne a deixar o país a fim de que não acabasse sendo convocado pelo exército americano, volta para o Brasil, perdendo a chance de atuar em uma série televisiva que veio a obter muito sucesso, Combate, já que a mesma Anne havia garantido para ele uma participação. O DELEGADO VIANNA Com o retorno, em 1966, Wilson retoma o curso de Direito na Universidade Gama Filho, trancado desde 1961, formando-se finalmente em 1970, período em que já integrava o elenco da TV Rio e já não mais atuava em cinema. Nessa mesma época, entrou para os quadros da Polícia Civil, tendo sido lotado no Comissariado de Cantagalo, no Rio. Em 1983, destacou-se como Diretor de Ressocialização da Penitenciária Milton Dias Moreira ao introduzir nessa instituição o teatro como alternativa ressocializante. O sucesso de seu método lhe valeu a indicação para assumir a direção da Divisão de Vigilância, Segurança e Proteção ao Menor. Nesse cargo, lutou efetivamente para a melhoria das condições no tratamento aos menores infratores: buscando apoio de empresários como Arthur Sendas, conseguiu camas novas; com donos de renomados restaurantes da Zona Sul carioca, garantiu alimentação de qualidade aos internos; ao retirar todas as grades, transformou celas em alojamentos.

Leonel e Neuza Brizola, visitando a Divisão de Segurança e Proteção ao Menor.

Wilson Vianna já era então o Capitão Aza, conhecido nacionalmente e adorado pelas crianças de todo o país. Por sugestão de um amigo, candidatou-se a Deputado Estadual, mas perdeu a eleição. Como se matriculara com seu nome verdadeiro, e não com o do personagem, os votos em nome deste último não puderam ser computados. NAS ASAS DO AZA Pouca gente sabe, mas o título de Capitão já lhe havia sido “outorgado” antes de Wilson se transformar no Capitão Aza. É que, em 1965, na TV Rio, Wilson havia protagonizado um programa chamado As Aventuras do Capitão Atlas e Seu Fiel Amigo, o Índio Chico. O programa teve vida bem curta, menos de um ano, e em 1966, a convite da TV Tupi, que queria desbancar a audiência de outro Capitão, o Furacão (vivido pelo ator Pietro Mario), atração também infantil, exibida pela Rede Globo, Wilson Vianna vestiu, pela primeira vez, o traje aeronáutico com o capacete branco alado e óculos de lentes negras, que somente seriam aposentados em 1979. Uma curiosidade: o capacete foi branco, enquanto as transmissões foram em preto e branco, mas, com a chegada da TV em cores, pintaram-no de cor-de-abóbora, talvez para destacar o apresentador do restante do cenário. Gravado no Rio inicialmente, a partir de 1974 em São Paulo e novamente no Rio, nos estúdios da TV Tupi, no antigo Cassino da Urca, o programa chegou a marcar 22 pontos no Ibope contra 11 do da TV Globo (Capitão Furacão) e literalmente tirou do ar o concorrente, alçando Wilson à condição de ídolo infantil, o primeiro da história da televisão brasileira. O personagem Capitão Aza é uma criação conjunta entre os dramaturgos Paulo Pontes e Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha), e o nome Aza grafado com z seria uma homenagem a um oficial da FAB que lutou na Segunda Guerra Mundial, o Capitão Adalberto Azambuja. Segundo o site http://institutodeartesdarcicampioti.blogspot.com.br, os dois dramaturgos foram procurar o Ministério da Aeronáutica a fim de pesquisarem dados para a criação do personagem. Foram atendidos e instruídos pelo então Chefe das Relações Públicas da Aeronáutica, o Coronel Fischer. O militar manifestou desejo de ver um personagem que representasse a aviação, ideia bastante interessante, já que, na Globo, o Capitão Furacão se baseava na figura de um “velho do mar”, o que evidentemente remetia à Marinha. Fischer disponibilizou os dados sobre os combatentes da FAB, e a história do Capitão Azambuja logo impressionou a todos: realizando manobras arriscadas a fim de distrair o inimigo e para evitar que seus companheiros fossem abatidos, o aviador sacrificou a sua própria vida.

Capitão Furacão: o ator Pietro Mario e a atriz Elizângela.

Além de participar desse momento de criação da personagem, a Aeronáutica teve papel preponderante na decolagem da audiência do Clube do Capitão Aza: ela fornecia consultoria técnica, uniformes, helicópteros e aviões. Tanto que, no auge do programa, o Capitão Aza, todos os domingos, levava trinta crianças acometidas por coqueluche para voar num avião Avro da FAB que decolava do Aeroporto Santos Dumont. Voar era considerado uma terapia para as crianças com essa doença. Ao som da bela canção Sideral, composta por Tibério Gaspar e Durval Ferreira, O Clube do Capitão Aza, que inicialmente se chamou As Aventuras do Capitão Aza, iniciava, com Wilson simulando estar pilotando uma nave espacial. Tudo muito simples, mas a imaginação das crianças da época se encarregava do restante. Tanto que a própria Xuxa, a Rainha dos Baixinhos, sua fã confessa, revelou ao ator, anos mais tarde, ter se inspirado no programa para criar o seu, que não por coincidência começava com a apresentadora saindo de uma nave colorida e terminava com a moça embarcando novamente nela.

Capitão Aza, no comando de sua “nave”.

CANTANDO E APRENDENDO Em 1968, o programa promoveu o concurso O cantor mirim da Guanabara e a escolhida foi aquela que se transformou na fiel escudeira do Capitão: a menina Martinha, de apenas sete anos e voz afinada. Os dois dividiam o espaço do programa ainda com os personagens Robô (Hilton Aby Rhian) e o boneco Pedroca (dublado por Américo Bittar), que fazia o quadro Quem pergunta quer saber. Capítão Aza e Martinha gravaram vários discos, sempre com canções de cunho educativo, como ABC, um hit entre a criançada da época e que lhe valeu um troféu da Secretaria de Educação do Estado da Guanabara, Somando com vocês e Se você quer ser alguém (Swinging on a star), esta última em que transmite lições de boas maneiras, higiene, educação e dedicação aos estudos, temas estranhos hoje em dia, não? Além de exibir desenhos animados, já citados no início desta matéria, e realizar promoções em que sorteava brindes, brinquedos e cadernetas de poupança, o Capitão Aza chegou a promover um concurso escolar em parceria com a Marinha, cujo prêmio foi uma viagem de navio a Manaus, e na companhia do ídolo,

Capitão Aza e Martinha.


responsabilidade que Wilson saberia cumprir com zelo e atenção rigorosos. Depois de analisarem 14 mil trabalhos, vinte crianças foram selecionadas ― dez meninos e dez meninas ― e partiram rumo à capital do Amazonas. “TODO ARTISTA TEM DE IR AONDE O POVO ESTÁ”

O carinho com os pequenos fãs

O grau de respeito e carinho por seu público foi demonstrado pelo contato estreito que Wilson efetivamente manteve com os pequenos fãs, em constantes visitas que o Capitão Aza fazia às escolas públicas; ao longo dos 13 anos em que esteve no ar, visitou cem escolas por ano. Nessas ocasiões fazia questão de levar consigo um policial militar, um marinheiro, um bombeiro e um ex-oficial da Força Expedicionária Brasileira (FEB), buscando fortalecer nas crianças a noção de civismo e se antecipando a possíveis acusações de ser ele apenas um garoto-propaganda de heróis americanos de tinta e papel. “Já que eu apresentava em meu programa heróis fictícios como o Homem-Aranha, o Hulk, Ultra-Man, eu queria também que as crianças conhecessem os nossos heróis vivos”, disse o ator em sua biografia. O RECONHECIMENTO OFICIAL

Wilson, sendo condecorado como Comendador da FAB.

Nas comemorações militares, como as do 7 de Setembro, Wilson Vianna participava dos desfiles com sua imponente Harley Davidson, e esse estreitamento com as Forças Armadas em um período conturbado de nossa história talvez tenha lhe valido algumas críticas; alguns chegaram a levantar suspeitas sem fundamento de que pertencesse ao Serviço Nacional de Informações, o temido SNI. Tais suspeitas eram corriqueiras por essa época e recaíam invariavelmente em pessoas de projeção na mídia (artistas da televisão e cantores de sucesso), chegando inclusive a arruinar a carreira de um outro Wilson, o Simonal. Contudo não produziram qualquer nódoa na imagem do ídolo infantil. Há que se ter em mente sobretudo que Wilson Vianna era, antes de mais nada, uma autoridade policial, de reputação inconteste, de contribuições relevantes, conforme já vimos, e a serviço da manutenção da ordem social; isso não se confunde com a ficção. Como, de fato, o Capitão Aza contribuiu, e não só na aparência, na divulgação dos ideais pátrios, das Forças Armadas em geral, da formação do caráter e do civismo, natural que o reconhecimento viesse pelas instituições onde eles são, por assim dizer, normas pétreas. Por isso, Wilson foi agraciado, e com justiça, com a medalha do Mérito de Santos Dummont, concedida pela Aeronáutica Brasileira. Essa é a maior prova de sua influência naquele momento de nosso país, e não se pode duvidar de que muitos jovens tenham ingressado mesmo na Força Aérea por causa do fascínio gerado pelo personagem, uma vez que a própria Aeronáutica reconheceu o fato por meio de documento. Além dessa condecoração, recebeu ainda o diploma de Capitão Benemérito do Estado do Rio de Janeiro por seus serviços em prol da cidadania, conceito tão em voga nos dias de hoje, mas, diga-se, ainda insatisfatoriamente aplicado às ações cotidianas. DA TELINHA PARA OS QUADRINHOS Um outro fator que demonstra bem o sucesso do personagem é a publicação de quadrinhos que levavam seu nome e contavam as aventuras do herói, empreitada assumida pela revista O Cruzeiro Infantil e cujo roteiro e arte ficaram aos cuidados de Ari Moreira. As aventuras do Capitão Aza circulou de 1973 a 1975.

Contribuição oficialmente reconhecida pelo Ministério da Aeronáutica.

E os amantes da chamada nona arte, as histórias em quadrinhos, ainda têm de pagar um bom tributo ao Clube do Capitão Aza. Explica-se: devido ao grande sucesso dos desenhos da Marvel que eram exibidos no programa, a Editora Bloch conseguiu da Transword Feature Syndicate a autorização para editar as histórias da Marvel Comics no Brasil. Como cada personagem tinha sua própria revista, pela primeira vez, o número de publicações passou para 15 títulos mensais, abrindo de vez o acesso dos leitores brasileiros a esse tipo de arte. Os títulos eram: O Incrível Hulk, Capitão América, Príncipe Namor, Tocha Humana, Homem-Aranha, Homem de Ferro, O Demolidor, Os Vingadores, Os Defensores, Thor, Ka-Zar, Mestre do Kung Fu, Motoqueiro Fantasma e Punho de Ferro. AQUI FALOU O CAPITÃO AZA, CÂMBIO E DESLIGO! Em 1979 a TV Tupi encerrou suas atividades, vitimada por uma crise financeira que a impedia de cobrir inclusive os salários de seu cast, onde figuravam astros como Bibi Ferreira, J. Silvestre e Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Com onze salários vencidos e seis meses antes da última transmissão da emissora, o Capitão Aza se despediu definitivamente de seu público. Em sua última fala, disse que estava partindo em uma missão espacial. O personagem Capitão Aza voltaria a ser visto ainda no cinema, com as participações nos filmes Atrapalhando a Suate (em 1985, com Dedé Santana, Mussum e Zacarias) e Os Trapalhões e o Mágico de Oroz (em 1986), onde contracenou com Xuxa.

Capitão Aza, personagem de quadrinhos.

Wison, no Jô Soares Onze e Meia

Após o término do Clube do Capitão Aza, Wilson Vianna apareceu poucas vezes na televisão. Foram participações especiais nas novelas da Rede Globo As três Marias e Cambalacho. Além desses trabalhos, fez o papel de um capitão (a patente lhe perseguia mesmo) na minissérie A Marquesa de Santos, protagonizada por Maitê Proença e transmitida pela também extinta TV Manchete. Chegou a receber alguns convites de emissoras para seu retorno. A TVS (hoje SBT) por muito pouco não realizou o sonho dos fãs em 1985, mas um enfarte, o segundo que o atingia, encerrou as negociações. Aconselhado por cardiologistas, Wilson Vianna deixou de vez a vida artística para se dedicar à sua pousada em Penedo e viajar pelo mundo. Em 3 de maio de 2003, aos 75 anos, no Mato Grosso do Sul, vítima de seu terceiro enfarte, ao lado de sua mulher, filho e nora, Wilson Vianna, o eterno Capitão Aza, “corpo livre no infinito”, deixou para trás o mundo aflito e a bomba H; alçou seu voo derradeiro rumo a estrelas e constelações, com destino a permanecer


para sempre no espaço da memória e dos corações dos que admiraram a força de seu trabalho e aprenderam com suas orientações e seus exemplos. Mas os homens continuam a se destruir nas guerras vãs e vão no pó dos sonhos, ah!..., em nome do amor.

INFORMAÇÕES ADICIONAIS: - Em 1977, apresentou um programa de rádio na Rádio Continental, que se chamou Mesa de Celebridades. Recebeu entre os muitos convidados, o humorista e escritor Jô Soares, que contou como Wilson foi o responsável pelo início de sua carreira artística, levando-o ainda jovem para a TV Tupi. - Wilson foi casado por duas vezes. Em 21 de fevereiro de 2007, faleceu o filho de seu primeiro casamento, Eduardo (Dudu) Vianna, em um acidente de moto ocorrido em 15 de fevereiro do mesmo ano, no túnel Zuzu Angel, na cidade do Rio de Janeiro. - O Clube do Capitão Aza chegou a receber 14 mil cartas por semana. Ao escrever para o programa, toda criança ganhava uma carteirinha do Clube do Capitão Aza e com ela o direito a assistir a lançamentos de filmes nos cinemas da rede Luis Severiano Ribeiro, obter descontos em livrarias e nas compras de material escolar. - A famosa chamada que abria o programa (... Alô, alô, Sumaré! Alô, alô, Embratel! Alô, alô, Intelsat 3! Alô, alô, criançada do meu Brasil! Aqui quem fala é o Capitão Aza, Comandante e chefe das Forças Armadas infantis deste Brasil!) foi criada por Alcino Diniz, produtor de cinema e diretor de televisão. Já o “título” Comandante e chefe das Forças Amadas infantis foi dado pelo Presidente Emilio Garrastazu Médici, quando o Capitão Aza levou a Brasília cinco crianças para serem condecoradas pelo Presidente, fruto de uma promoção feita pelo programa, cujo objetivo era apresentar uma dissertação sobre a vida de Duque de Caxias. - Wilson Vianna entrou para a Maçonaria em 1961 e chegou a atingir o grau 33. Nos Graus Filosóficos do Rito Escocês Antigo e Aceito, o grau 33 recebe o nome de Soberano Grande Inspetor-Geral; já nos do Rito Brasileiro, curiosamente, ele é o Servidor da Ordem da Pátria e da Humanidade. FONTES PESQUISADAS: Bibliografia: MENDONÇA, Dora. A vida trepidante de Wilson Vianna, o Capitão Aza.1ª ed. Rio de Janeiro, Editora Lidator, 1997. Sites acessados: http://institutodeartesdarcicampioti.blogspot.com.br/2009/03/vamos-aprender-com-o-capitao-aza-parte.html http://intervalocultural.blogspot.com.br/2014/04/o-eterno-capitao-aza.html http://meusbrinquedosantigos.blogspot.com.br/2010/11/clube-do-capitao-aza.html http://nossatvbrasileira.blogspot.com.br/2011/02/o-capitao-aza-e-assim-mesmo-com-z.html http://mutantexis.wordpress.com/2011/05/11/nas-asas-do-capitao-aza/ http://www.mundonovelas.com.br/2010/10/mundo-crianca-especial-mundo-novelas_11.html http://oficinadeartejackcartoon.blogspot.com.br/2011_09_01_archive.html http://infantv.com.br/capitaoaza.htm http://www.bcc.org.br/fotos/galeria/025243 http://redetupiyestvsempre.blogspot.com.br/2013/04/capitao-aza.html https://www.youtube.com/watch?v=VToimGA_gRQ http://lembradesse.blogspot.com.br/2010/10/capitao-aza.html http://pt.wikipedia.org/wiki/Capit%C3%A3o_AZA http://oglobo.globo.com/blogs/nostalgia/posts/2007/08/17/capitao-furacao-vivido-pelo-ator-pietro-mario-70063.asp http://desmanipulador.blogspot.com.br/2012/07/capitao-aza-biografia.html

As aventuras do Capitão Aza, em o Cruzeiro Infantil.




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