Revista Atrium Revista de humanidades - Ano 2 - Junho/ 2016 - ISSN 2446-7219
ENTREVISTA com Dominique Maingueneau Pรกg. 04
PERFIL DE ALBERT REVELANDO UM EINSTEIN DRAMA por Ernesto Kemp
por Leonardo Carrato
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Revista Atrium - Ano 2 - Junho/2016 - ISSN 2446-7219
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Editorial Mantendo a linha editorial de servir como meio multiplicador de conhecimento, ao reunir e divulgar as várias áreas do saber, a Revista Atrium, nesta segunda edição, oferece a você, leitor, uma temática político-social que tem abalado a sociedade em várias partes do globo, abordada sob diferentes aspectos e pontos de vista: a intolerância entre os povos. Na contramão dos acontecimentos, que, fomentados pelas tecnologias de informação e comunicação, caracterizam o chamado fenômeno da globalização, o qual, entre outros aspectos, dilui as diferenças ao redimensionar as noções de tempo e espaço, temos testemunhado, com inegável estarrecimento, um movimento cada vez mais crescente de grupos radicais que têm literalmente espalhado o terror em várias partes do mundo. O motivo? Justamente a afirmação de identidades, tão “fragilmente ameaçadas” pela possibilidade de uma maior comunicação entre os indivíduos do planeta com uma pretensa agenda de diluição das fronteiras, paradoxalmente, cada vez mais nítidas. Sobre isso nos fala Dominique Maingueneau, importante e reconhecido pesquisador na área da Análise do Discurso, que, coincidentemente, concedeu à Revista Atrium uma entrevista dias antes do atentado terrorista em Paris em novembro de 2015. Sobre a intolerância religiosa que tem dizimado milhares e originado outros tantos refugiados palestinos e sírios-palestinos no Oriente Médio nos dá ainda o seu testemunho crítico e analítico Lúcia Helena Issa, na seção Opinião. Através de seu olhar lúcido e ao mesmo tempo humanitário, a jornalista, premiada nacional e internacionalmente por seu trabalho jornalístico investigativo, nos possibilita um raro contato com os refugiados palestinos e sírios e com os muçulmanos pacíficos e seu conturbado mundo de guerras que a grande imprensa camufla. E como que para conectar tudo isso, o renomado físico da Unicamp Ernesto Kemp, na seção Perfil, compartilha com o leitor seu artigo de cunho biográfico “Albert Einstein e a crise no Oriente Médio: conexões?”, no qual relata dados interessantes da vida do físico e cientista responsável por mudar definitivamente os rumos da ciência moderna. Sua teoria que possibilitou o desenvolvimento da primeira bomba atômica da história, colocando fim, ainda que de maneira trágica, à Segunda Guerra Mundial, não foi capaz, no entanto, de erradicar os conflitos de ordem política no Oriente Médio combatidos por Einstein já naquela época, os quais persistem até os dias atuais. Além das vítimas da intolerância étnica, religiosa e política do Oriente Médio, são igualmente foco da Atrium nesta edição as vítimas do descaso do poder público brasileiro retratadas em imagens pra lá de eloquentes de Leonardo Carrato. O fotógrafo denuncia, por meio de um impressionante registro fotográfico, as condições subumanas em que, pelo menos até 2015, viviam os ocupantes do antigo prédio do IBGE, localizado no “coração da comunidade da Mangueira”, na Cidade Maravilhosa. Outras questões de ordem política, posto que pressupõem relações de poder, podem ser também apreciadas na seção Artigos, que, neste número, conta com três temáticas distintas: a primeira trata-se da visão de um delegado de polícia, mestre em Direito Social e professor de Direito Penal sobre os procedimentos que envolvem o tratamento dado com pretensões de legitimidade para pessoas que estão em fase terminal de doenças ou complicações da saúde graves, como a eutanásia, o suicídio assistido, os cuidados paliativos, abordados a partir de uma perspectiva interdisciplinar com o objetivo de se analisar o conteúdo e a aplicabilidade das normas jurídicas que tutelam a vida humana. A segunda, desenvolvida por uma professora de inglês mestre em Linguística Aplicada, diz respeito à análise, sob um viés discursivo pecheutiano, do discurso de posse do primeiro mandato do presidente norte-americano Barack Obama, produzido num momento político marcado por uma profunda crise socioeconômica, desvelando os efeitos de sentido evocados, ainda que à revelia do sujeito, nessas condições de produção. E a terceira enfoca o papel da pichação em nossa sociedade. Sem questionar a ilegalidade do ato, considerado, segundo a Constituição brasileira, crime contra o meio ambiente, os autores buscam interpretar, também sob um viés discursivo, o sentido desses dizeres, considerados por eles mais como um ato de indignação do que propriamente de agressividade. Abordando também os conflitos propriamente humanos, a Literatrium conta com duas narrativas envolventes: a primeira, intitulada “O batom de Mary Sheeley ou A balada de um serial writer”, enreda o leitor num conto de cunho experimentalista e a segunda, “Santa”, convida-o a desvendar um conto fantástico-policial. Em qualquer uma delas, no entanto, o leitor é instigado a percorrer os intrincados meandros da mente humana, tecidos por uma trama ágil e desafiadora. E na esteira dos relacionamentos humanos, primordialmente entre pais e filhos, o sociólogo Mauricio Murad nos presenteia com um bate-papo bastante agradável e enriquecedor ao abordar aspectos fundamentais que envolvem o universo de pais e filhos, que ele procurou retratar em seu livro de crônicas “Histórias que meus filhos não me contaram”, além de tecer sua opinião sobre os impactos que as Olimpíadas de 2016 poderão trazer às políticas de melhorias sociais e aos esportes em geral no Brasil, já que, por influência de sua obra, segundo ele, iniciaram-se, nas universidades brasileiras, os estudos permanentes de sociologia do futebol. Aproveitando a citação feita por Murad, “Só há duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana. E eu tenho dúvidas em relação ao universo.”, atribuída a Albert Einstein, a Revista Atrium, ao promover a multidisciplinaridade integradora, procura poder, se não diminuir a estupidez humana, que tem se refletido nos diversos conflitos abordados nesta edição, ao menos ampliar o universo da curiosidade motivadora, da sensibilidade instigante e da criticidade transformadora que nos torna, enfim, humanos.
Boa leitura! Daniella Menezes
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Expediente Editores
Daniella de Almeida Santos Ferreira de Menezes Marcelo Ferreira de Menezes
Edição final
Daniella de Almeida Santos Ferreira de Menezes
Revisão
Os editores
Daniella de Almeida Santos Ferreira de Menezes Marcelo Ferreira de Menezes
Conselho Editorial Adriana Cintra de Carvalho Pinto
Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP)
Daniella de Almeida Santos Ferreira de Menezes Doutoranda em Letras (USP)
Eliane Freire de Oliveira
Doutora em Ciências da Comunicação (USP)
Eveline Mattos Tápias Oliveira
Doutora em Linguística Aplicada (Unicamp)
Glória Cortés Abdalla
Lúcia Maria Marques Gama Lacaz
Doutora em Linguística Aplicada (UNICAMP)
Marcelo Ferreira de Menezes
Graduado em Letras (UFF)
Maria Dolores Wirts Braga
Doutora em Letras (USP)
Paula Tatianne Carréra Szundy
Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP)
Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP)
Diagramação
Maria Júlia Egreja
Contato
E-mail: revistaatrium@gmail.com
ISSN 2446-7219 Revista Atrium é publicação eletrônica gratuita e anual de humanidades: ciência, comunicação, literatura, artes e cultura geral.
Sumário Entrevista
Dominique Maingueneau Mauricio Murad
Opinião
Lúcia Helena Issa
Revelando um Drama
Leonardo Carrato
Artigos
Eduardo Luiz Santos Cabette Márcia Rita Rodrigues Costa Chini Stephany da Silva Souza Marinho Rafael Isola Lanzoni
Literatrium
Marcelo Ferreira de Menezes Renan Augusto de Oliveira Carvalho
Perfil
Ernesto Kemp Revista Atrium - Ano 2 - Junho/2016 - ISSN 2446-7219
Acesse: revistaatrium.blogspot.com
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Entrevista DOMINIQUE MAINGUENEAU é professor de linguística na Universidade Paris XII. Seu trabalho e sua obra se desenvolvem no âmbito da linguística da enunciação e da análise do discurso. O autor publicou em 1976 uma Iniciação aos métodos da análise do discurso (Paris, Hachette), que apresenta a problemática da chamada “Escola francesa”. Em seguida, publicou outras obras teóricas e também de cunho didático que seguem a evolução dessa disciplina, desenvolvendo, paralelamente, pesquisas sobre diferentes corpora, em especial o discurso religioso, o filosófico e o literário, mas também os da imprensa e da publicidade. Fluente em língua portuguesa, Maingueneau já esteve diversas vezes no Brasil, onde ministrou palestras sobre Análise do Discurso em algumas universidades.
REVISTA ATRIUM: O que despertou o interesse do senhor na pesquisa que veio a constituir o que hoje é conhecido como Análise de Discurso? DOMINIQUE MAINGUENEAU: O cenário do que hoje chamamos de “análise do discurso” é bem diferente hoje daquele que encontrei quando me inscrevi em outubro de 1970 no departamento de linguística da Université Paris X, em Nanterre. Olhando rapidamente a lista de cursos do 3º. ano de licenciatura, meu olho parou sobre uma disciplina intitulada “Análise do discurso”; esse termo não me era desconhecido, pois eu já havia começado a frequentar o Laboratório de lexicometria política, recentemente fundado na École Normale Supérieur de Saint-Cloud e que buscava colocar a informática a serviço do estudo de panfletos políticos produzidos durante os acontecimentos de maio de 1968. Eu desconhecia que esse curso de “Análise do discurso” que me foi proposto era sem dúvida o primeiro assim intitulado em uma universidade francesa, e talvez fosse o primeiro do mundo. O curso era mantido por Denise Maldidier, que estava em vias de concluir, sob a orientação de Jean Dubois, uma tese sobre a guerra da Argélia na imprensa francesa. Foi a garantia de Dubois que permitiu que se abrisse esse novo curso em Nanterre: um ano antes, em setembro de 1969, ele havia dirigido um número especial da revista Langages intitulada precisamente “l’Analyse du discours”, número que oficializava essa nova disciplina. O que me preocupava, então, era estudar as polêmicas religiosas do século XVII, e me foi dito que, me inscrevendo nesse curso, a análise do discurso me ofereceria os instrumentos para esse estudo. Na verdade, esse curso não foi muito útil para mim porque ele estava centrado no método distribucional e privilegiava o estudo de textos políticos. De maneira mais geral, eu rapidamente percebi que os trabalhos que se faziam nesse momento em análise do discurso não foram muito proveitosos para minhas próprias pesquisas. Foi preciso, portanto, inventar meus próprios instrumentos. Retrospectivamente, eu me digo hoje que a marginalidade inicial na qual eu involuntariamente me coloquei se mostrou produtiva. Meu trabalho nos anos que seguiram consistiu, de fato, em propor por etapas um alargamento da análise do discurso para que ela fosse capaz de integrar certos tipos de corpus que não eram levados em conta. Os analistas do discurso tinham naturalmente a tendência em investir nos corpora negligenciados pelas faculdades de letras: primeiramente o discurso político, que em particular, sob a influência do marxismo, foi então considerado a via de acesso real [royale] ao conjunto do panorama intelectual, mas também em seguida a mídia, na medida em que se desenvolviam os departamentos de “comunicação”. Minhas pesquisas sobre o discurso devoto do século XVII me conduziram a destacar diversas problemáticas que tiveram importância a partir dos anos de 1980: especialmente o papel constitutivo desempenhado pela interação na construção das identidades enunciativas (para além da simples abordagem contrastiva que prevalecia então), a noção de competência discursiva (em uma época em que o que fosse de ordem cognitiva era suspeito na análise do discurso francófona), as relações entre
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corpo e enunciação através da questão do ethos, a característica central de gêneros de discurso e de cena de enunciação, a indissociabilidade entre comunidade e discurso.
RA: Atualmente qual é a contribuição da Análise do Discurso para os problemas sociais que concernem a política, a economia e a história? DM: Não podemos dizer que a análise do discurso em seu conjunto busque contribuir com a resolução de problemas sociais. Como todas as disciplinas das ciências humanas e sociais, ela é dividida em duas grandes tendências: uma que busca antes de tudo compreender o funcionamento das atividades discursivas, a outra que pensa que o estudo do discurso deve se esforçar para remediar as disfunções da sociedade (racismo, desigualdade, pobreza...), o que supõe evidentemente que se saiba determinar quais fenômenos são percebidos como disfunções e, dentre essas disfunções, quais devem ser estudadas de maneira privilegiada pela análise do discurso. Essa segunda tendência é representada pela corrente que chamamos de “análise crítica do discurso” (em inglês CDA). Dito isso, a distinção entre abordagens crítica e não crítica não é tão simples quanto poderíamos pensar. Parece-me, na verdade, que, para além de toda visada militante imediata, o estudo do discurso possui uma força crítica pelo simples fato de contestar um certo número de ilusões constitutivas da ideologia espontânea dos locutores: em particular a convicção de que eles dizem o que pensam, que utilizam a linguagem como um simples instrumento, que o discurso reflete uma realidade já lá etc. Além disso, existe uma continuidade natural entre a análise dos poderes do discurso e a crítica das formas de poder. As abordagens crítica e não crítica são complementares: uma boa análise crítica implica uma análise aprofundada do funcionamento do discurso; reciprocamente, o estudo do funcionamento do discurso implica que levemos em conta o fato de que o discurso não é neutro, que ele é sempre realizado por interesses socialmente localizados.
“EXISTE UMA CONTINUIDADE NATURAL ENTRE A ANÁLISE DOS PODERES DO DISCURSO E A CRÍTICA DAS FORMAS DE PODER.” RA: A internet é uma possibilidade para as novas modalidades discursivas ou ela se limita a reproduzir modalidades já existentes? DM: Sobre o plano de objetos de análise, o desafio mais evidente com os quais são confrontados os estudos de discurso atualmen-
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te, como aliás o conjunto das ciências humanas e sociais, é evidentemente o desenvolvimento da internet e a interpenetração crescente de diversas tecnologias da comunicação, fenômenos eles próprios estreitamente indissociáveis da globalização, de que são um dos motores. Os estudos de discurso são obrigados a se confrontar com esse dado novo. As problemáticas do discurso se desenvolveram na Europa nos anos de 1960 principalmente em torno do texto escrito, e nos EUA principalmente em torno de interações orais. É também um período dominado pelo desenvolvimento de redes de televisão em nível nacional. É inevitável que os conceitos e os métodos desse campo de pesquisa sejam profundamente marcados por isso. Ora, por uma ironia da história, é no momento em que os estudos de discurso ganham uma grande visibilidade que se reconfigura o universo no qual eles emergiram: a internet e a multimodalidade generalizada subvertem de fato essa distinção entre escrito e oral e desaloja a televisão da posição central que ocupava, obrigando os pesquisadores que trabalham sobre a comunicação a repensar o conjunto de suas categorias. Mesmo os corpora escritos ou orais tradicionais estão submetidos a novas modalidades. Essa transformação concerne não somente os objetos de análise, mas também as condições da própria pesquisa. O acesso ao corpus far-se-á cada vez mais através de bases de dados; isso também se aplica aos softwares de processamento desses dados. E o que dizer dos próprios arquivos? O que será, por exemplo, dos corpora daqui a algumas décadas, uma vez que a imensa maioria dos enunciados pertinentes será transmitida pela web e que apenas uma parte mínima poderá ser estocada? A potência de inovação da internet é tal que é fácil de se atribuir sem esforço algum um certificado de modernidade que não corresponde realmente a um enriquecimento conceitual. Vemos, por exemplo, se desenvolverem as “humanidades digitais” que se esforçam em explorar inúmeros instrumentos postos a sua disposição pelas tecnologias digitais, mas sem que isso seja acompanhado de um aggiornamiento epistemológico. Sob os trajes sedutores da novidade vemos, assim, perdurarem as práticas de análise que evidenciam, na verdade, a análise do conteúdo, esta precisamente contra a qual foram desenvolvidas as problemáticas da análise do discurso. Não é fácil estimar em que grau as novas tecnologias colocam em causa os pressupostos dos estudos de discurso. O bom senso pede que se evitem duas armadilhas simétricas. A primeira consiste em desqualificar, como obsoletas, todas as categorias e todos os quadros de pensamento anteriores ao desenvolvimento de um universo digital. Mas existe também a armadilha simétrica, que consiste em pensar que, de uma certa maneira, tudo é já dito desde as origens da análise do discurso. Adota-se, assim, uma atitude próxima à da hermenêutica religiosa, que consiste em buscar, por uma leitura apropriada, nos textos considerados fundadores, as respostas às novas situações. Qualquer que seja a genialidade dos pensadores que contribuíram com a formação da análise do discurso, podemos duvidar de que seu pensamento possa conter uma resposta a todos os efeitos provocados pelas tecnologias contemporâneas da comunicação. A boa atitude se situa necessariamente entre esses dois extremos: de um lado não devemos dar crédito absoluto aos teóricos do discurso anteriores ao desenvolvimento das novas tecnologias, crer, portanto, que os conceitos seriam atemporais, mas é preciso também se recusar a crer que a internet desqualifica irrevogavelmente os pressupostos conceituais e metodológicos anteriores. Mas o equilíbrio justo é muito difícil de encontrar.
RA: Nunca, em nenhum outro momento da história da humanidade, estivemos imersos em uma rede tecnológica de comunicação. Por que a compreensão entre as diferentes partes (problemas do Oriente Médio, a questão da Síria, a intolerância étnica na Europa...) ainda permanece tão distante? DM: Essa é uma questão importante. Efetivamente, as novas tecnologias de comunicação possibilitaram o relacionamento de todos os indivíduos do planeta. Mas isso não passa de uma possibilidade: factualmente, essa globalização permite também, e talvez sobretudo, a emergência e o desenvolvimento de pequenas comunidades nas quais seus membros podem se libertar da distância. É isso o que vemos, por exemplo, com os islâmicos radicais. De maneira mais geral, quanto mais as comunicações se intensificam, provocando uma fragilização das identidades culturais, mais os indivíduos têm a necessidade de trabalhar para se munir de uma identidade que os assegure. Assistimos, por-
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tanto, a um crescimento constante de fenômenos de afirmação de identidades, destinados a sustentar uma identidade, que se tornaram fundamentalmente problemáticos. A internet se esforça assim para suprir os quadros identitários que forneciam anteriormente de maneira forte os pertencimentos tradicionais (a família, a aldeia, a classe social, a profissão, o sindicato, a nação...) que essa mesma internet contribui para enfraquecer.
RA: A Análise do discurso parece ser uma ferramenta fundamental para a problematização do indivíduo em relação à sociedade. Se levarmos em consideração a posição pós-moderna, segundo a qual se questiona a totalização de todo conhecimento e para a qual as questões ligadas à língua são ressaltadas, por que esses estudos são ainda distantes da escola de formação de base (ou seja, do ensino infantil)? DM: Não podemos dizer que a análise do discurso seja desconhecida dos pedagogos; existe um grande número de países em que os programas escolares foram fortemente influenciados pelas pesquisas em análise do discurso: seja no ensino de língua materna ou de línguas estrangeiras. Basta assinalar a importância dada no Brasil aos gêneros de discurso. Você tem razão quando diz que o fato de que essa utilização da análise do discurso não concerne, em geral, os elementos de teoria que você chama de “pós-modernos”. Eu não pensei o suficiente sobre essas questões para dar uma resposta sólida. Espontaneamente, eu diria que há talvez uma tensão constitutiva entre a lógica do pensamento teórico, que visa desestabilizar as ideias comuns, e a lógica do ensino de massa que visa sobretudo formar cidadãos que compartilham um certo número de convicções. Além disso, é bem conhecido que os sistemas escolares são em geral reticentes às transformações profundas. Enfim, a escola tem por natureza a tendência de simplificar e imobilizar as teorias quando fazem delas um objeto de ensino; o que pode permanecer da potência crítica de um pensamento quando esta entra para o aparelho escolar? Tradução de Bruno Turra, doutorando em Linguística Aplicada, na Unicamp.
REVISTA ATRIUM: Qu’est-ce qui vous a éveillé l’intérêt pour la recherche qui est venue à constituer ce qui est connu aujourd’hui comme l’Analyse du Discours? DOMINIQUE MAINGUENEAU: Le paysage de ce qu’on appelle aujourd’hui « analyse du discours » est bien différent aujourd’hui de celui que j’ai trouvé quand je me suis inscrit en octobre 1970 au département de linguistique de l’université Paris X, à Nanterre. Parcourant du regard la liste des cours de 3° année de licence, mon œil s’est arrêté sur un enseignement intitulé « Analyse du discours » ; ce terme ne m’était pas inconnu car j’avais déjà commencé à fréquenter le Laboratoire de lexicométrie politique, récemment fondé à l’Ecole Normale Supérieure de Saint-Cloud et qui cherchait à mettre l’informatique au service de l’étude des tracts politiques produits pendant les événements de mai 1968. J’ignorais que ce cours d’ « Analyse du discours » qui m’était ainsi proposé était sans doute le premier ainsi intitulé dans une université française, et peut-être était-ce le premier dans le monde. Il était assuré par Denise Maldidier qui était en train d’achever, sous la direction de Jean Dubois, une thèse sur la guerre d’Algérie dans la presse française. C’est la caution de Dubois qui avait permis qu’on ouvre ce nouveau cours à Nanterre : un an auparavant, en septembre 1969, il avait dirigé un numéro spécial de la revue Langages intitulé précisément « l’Analyse du discours », numéro qui officialisait cette nouvelle discipline. Ce qui me préoccupait alors, c’était d’étudier les polémiques religieuses du XVIIe siècle et je me suis dit en m’inscrivant à ce cours que l’analyse du discours m’offrirait des instruments pour le faire. En réalité, ce cours ne m’a pas été très utile car il était centré sur la méthode distributionnelle et privilégiait l’étude des textes politiques. De manière plus générale, je me suis vite aperçu que les travaux qui se faisaient à ce moment en analyse du discours n’offraient étaient d’un faible profit pour mes propres recherches. Il m’a donc fallu inventer mes propres outils. Rétrospectivement, je me dis aujourd’hui que la marginalité initiale dans laquelle je m’étais involontairement mis s’est révélée productive. Mon travail dans les années qui ont
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suivi a en effet consisté à proposer par étapes un élargissement de l’analyse du discours pour qu’elle soit capable d’intégrer certains types de corpus qui n’étaient pas pris en compte. Les analystes du discours avaient en effet naturellement tendance à investir les corpus délaissés par les facultés de lettres : au premier chef le discours politique, qui en particulier sous l’influence du marxisme était alors considéré comme la voie d’accès royale à l’ensemble du paysage intellectuel, mais aussi par la suite les médias, au fur et à mesure que se développaient des départements de « communication ». Mes recherches sur le discours dévot du XVIIe siècle m’ont ainsi amené à mettre l’accent sur diverses problématiques qui ont pris de l’importance à partir des années 1980 : en particulier le rôle constitutif que joue l’interaction dans la construction des identités énonciatives (au-delà de la simple démarche contrastive qui prévalait alors), la notion de compétence discursive (à une époque où ce qui était d’ordre cognitif était suspect dans l’analyse du discours francophone), les relations entre corps et énonciation à travers la question de l’ethos, le caractère central des genres de discours et de la scène d’énonciation, l’indissociabilité entre communauté et discours. RA: Actuellement quelle est la contribution de l’Analyse du Discours aux problèmes sociaux qui concernent la politique, l’économie et l’histoire? DM: On ne peut pas dire que l’analyse du discours dans son ensemble cherche à contribuer à résoudre des problèmes sociaux. Comme n’importe quelle discipline des sciences humaines et sociales, elle est partagée entre deux grandes tendances : l’une qui cherche avant tout à comprendre le fonctionnement des activités discursives, l’autre qui pense que l’étude du discours doit s’efforcer de remédier à des dysfonctionnements de la société (racisme, inégalités, pauvreté…), ce qui suppose évidemment qu’on sache déterminer quels phénomènes sont perçus comme des dysfonctionnements et parmi ces dysfonctionnements lesquels doivent être étudiés de manière privilégiée par l’analyse du discours. Cette seconde tendance est bien représentée par le courant qu’on appelle “analyse critique du discours” (en anglais CDA). Cela dit, la distinction entre approches critique et non-critique n’est pas si simple qu’on pourrait le penser. Il me semble en effet qu’au-delà de toute visée militante immédiate, l’étude du discours possède une force critique par le seul fait qu’elle conteste un certain nombre d’illusions constitutives de l’idéologie spontanée des locuteurs : en particulier la conviction qu’ils disent ce qu’ils pensent, qu’ils utilisent le langage comme un simple instrument, que le discours reflète une réalité déjà là, etc. En outre, il existe une continuité naturelle entre l’analyse des pouvoirs du discours et la critique des formes de pouvoir. Les approches critiques et non-critiques sont complémentaires : une bonne analyse critique implique une analyse approfondie du fonctionnement du discours ; réciproquement, l’étude du fonctionnement du discours implique que l’on tienne constamment compte du fait que le discours n’est pas neutre, qu’il est toujours porté par des intérêts socialement situés.
“IL EXISTE UNE CONTINUITÉ NATURELLE ENTRE L’ANALYSE DES POUVOIRS DU DISCOURS ET LA CRITIQUE DES FORMES DE POUVOIR. ” RA: L’internet est une possibilité pour les nouvelles modalités discursives, ou elle se limite à reproduire celles déjà existantes? DM: Sur le plan des objets d’analyse, le défi le plus évident auquel sont confrontées les études de discours aujourd’hui, comme d’ailleurs l’ensemble des sciences humaines et sociales, c’est bien évidemment le développement d’Internet et l’interpénétration croissante des diverses technologies de la communication, phénomènes eux-mêmes étroitement indissociable de la globalisation, dont ils sont un des moteurs. Les études de discours sont bien obligées de se confronter à cette nouvelle donne. Les problématiques du discours se sont développées en Europe dans les années 1960 principalement autour du texte écrit, et aux USA principalement autour des interactions orales. C’est
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aussi une période dominée par le développement de réseaux de télévision au niveau national. Il est inévitable que les concepts et les méthodes de ce champ de recherche en soient profondément marqués. Or, par une ironie de l’histoire, c’est au moment où les études de discours accèdent à une grande visibilité que se reconfigure l’univers dans lequel elles ont émergé : Internet et la multimodalité généralisée subvertissent en effet cette distinction même entre écrit et oral et délogent la télévision de la position centrale qu’elle occupait, obligeant les chercheurs qui travaillent sur la communication à repenser l’ensemble de leurs catégories. Même les corpus écrits ou oraux traditionnels sont soumis à de nouvelles modalités. Cette transformation concerne non seulement les objets d’analyse, mais aussi les conditions mêmes de la recherche. L’accès aux corpus se fera de plus en plus à travers des bases de données ; il en va de même pour les logiciels de traitement de ces données. Et que dire des archives mêmes ? Qu’en sera-t-il par exemple des corpus dans quelques décennies, lorsque l’immense majorité des énoncés pertinents aura transité par le Web et que seule une part minime aura pu être stockée ? La puissance d’innovation d’Internet est telle qu’il est facile de se donner à peu de frais un certificat de modernité qui ne correspond pas réellement à un enrichissement conceptuel. On voit par exemple se développer des « humanités numériques » qui s’efforcent d’exploiter de nombreux instruments mis à leur disposition par les technologies numériques, mais sans que cela s’accompagne d’un aggiornamiento épistémologique. Sous les habits séduisants de la nouveauté on voit ainsi perdurer des pratiques d’analyse qui ressortissent en fait à l’analyse de contenu, ce précisément contre quoi s’étaient développées les problématiques d’analyse du discours. Il n’est pas facile d’apprécier à quel degré les nouvelles technologies mettent en cause les présupposés des études de discours. Le bon sens voudrait que l’on évite deux écueils symétriques. Le premier consiste à disqualifier, comme obsolète, toutes les catégories et tous les cadres de pensée ce qui est antérieur au développement de l’univers numérique. Mais il existe aussi l’écueil symétrique, qui consiste à penser que d’une certaine façon tout a déjà été dit dès les origines de l’analyse du discours. On adopte ainsi une attitude proche de l’herméneutique religieuse qui consiste à chercher, par une lecture appropriée, dans des textes jugés fondateurs les réponses à des situations nouvelles. Quel que soit le génie des penseurs qui ont contribué à la formation de l’analyse du discours, on peut douter que leur pensée puisse apporter une réponse à tous les effets provoqués par les technologies contemporaines de la communication. La bonne attitude se situe nécessairement entre ces deux extrêmes : d’un côté on ne doit pas accorder un crédit absolu aux théoriciens du discours antérieurs au développement des nouvelles technologies, croire donc que les concepts seraient intemporels, mais il faut aussi se refuser aussi à croire qu’Internet disqualifie irrévocablement les présupposés conceptuels et méthodologiques antérieurs. Mais ce juste équilibre est très difficile à trouver.
RA: Jamais, à aucun autre moment de l’histoire de l’humanité, on a été immergés dans un réseau de la technologie de communication. Pourquoi la compréhension entre les différentes parties (problémes du Moyen-Orient, la question de la Syrie, l’intolérance ethnique en Europe...) reste encore tellement éloignée? DM: C’est une question importante. Effectivement, les nouvelles technologies de la communication donnent la possibilité de mettre en relation tous les individus de la planète. Mais ce n’est qu’une possibilité : dans les faits, cette globalisation permet aussi, et peut-être surtout, l’émergence et le développement de petites communautés dont les membres peuvent s’affranchir de la distance. C’est ce que l’on voit par exemple avec les islamistes radicaux. De manière plus générale, plus les communications s’intensifient, provoquant une fragilisation des identités culturelles, et plus les individus ont besoin de travailler à se doter d’une identité qui les rassure. On assiste donc à un accroissement constant des phénomènes d’affirmation d’identités, destinées à étayer une identité qui est devenue foncièrement problématique. Internet s’efforce ainsi de suppléer les cadres identitaires que fournissaient auparavant de manière forte les appartenances traditionnelles (la famille, le village, la classe sociale, le métier, le syndicat, la nation…) que ce même Internet contribue à affaiblir…
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RA: - L’Analyse du Discours semble être un outil fondamental pour le regard de problematisation de l’individu par rapport a la société. Si on prend en considération la position postmoderne, selon laquelle on met en question la totalisation de toute connaissance et pour laquelle les questions liées à la langue sont mises en relief, pourquoi ces études sont-elles encore si éloignées de l’école de formation de base (c’est à dire, l’enseignement pour les enfants)? DM: On ne peut pas dire que l’analyse du discours soit inconnue des didacticiens ; il existe un grand nombre de pays où les programmes scolaires ont été fortement influencés par les recherches en analyse du discours : que ce soit pour l’enseignement de la langue maternelle ou des langues étrangères. Il suffit de songer à l’importance donnée au Brésil aux genres de discours. Là où vous avez raison, c’est dans le fait que cette utilisation de l’analyse du discours ne concerne pas, en général, les éléments de théorie que vous appelez “postmodernes”. Je n’ai pas suffisamment réfléchi à ces questions pour apporter une réponse solide. Spontanément, je dirai qu’il y a peut-être une tension constitutive entre la logique de la pensée théorique, qui vise à déstabiliser les idées communes, et la logique de l’enseignement de masse qui vise surtout à former des citoyens qui partagent un certain nombre de convictions. De plus, il est bien connu que les systèmes scolaires sont en général réticents aux changements en profondeur. Enfin, l’école a par nature tendance à simplifier et à figer les théories quand elles en font un objet d’enseignement ; que peut-il rester de la puissance critique d’une pensée quand elle entre dans l’appareil scolaire?
CINCO PERGUNTAS PARA
Mauricio Murad O sociólogo e escritor Mauricio Murad lançou, no final de 2015, seu mais recente livro Histórias que meus filhos não me contaram – pequenas crônicas para pais e filhos entre o real e o ficcional. O escritor brinda o leitor com narrativas ágeis, colhidas no cotidiano entre um pai e seus filhos, sempre alinhavadas pelo espírito investigativo e desinibidamente inquiridor das crianças, o que não raro resulta em situações cômicas, ainda que às vezes involuntárias. Mesmo com toda a presença do humor, o livro é uma reflexão sobre a importância em se estreitar o convívio entre pais e filhos, algo quase esquecido nos dias de hoje. A Revista Atrium esteve lá para conferir essa concorrida tarde de autógrafos no Museu da República, no Rio de Janeiro, e de quebra ainda conseguiu uma deliciosa entrevista com o simpático autor. Confira o bate-papo. REVISTA ATRIUM – O que motivou você a escrever essas crônicas de pais e filhos? MAURICIO MURAD – Na verdade são aquelas histórias que as crianças, todas as crianças, pela criatividade delas, pela espontaneidade, sempre falam, criam na nossa frente. Elas não nos contam como histórias, mas a gente acaba ouvindo como histórias. E são histórias de grande sabedoria, de grande questionamento, de grandes ideias sobre a vida, sobre relacionamento entre pais e filhos. Então eu fui juntando isso ao longo de vários anos e resolvi escrever um livro de pequenas histórias, histórias curtas, sem grande elaboração, mas que retratassem exatamente essa atmosfera de afeto, de carinho, de espontaneidade, de originalidade que as crianças têm, especialmente quando nos questionam e às vezes nos deixam sem resposta. Então, eu digo para os meus filhos, eles são coautores desse livro. Eles não me contaram essas histórias, mas eu ouvi como histórias e estou agora repassando para todo mundo como histórias.
estupidez humana. E eu tenho dúvidas em relação ao universo” (risos). Então, é genial! Então, eu acho que, se a gente sentar com afeto, com carinho, ouvir, relatar, trocar ideias com as crianças, em síntese, mais presença do que presentes, a gente pode não resolver, mas melhorar um pouquinho a estupidez humana. Esse é o meu sonho, com este livro, contribuir um pouquinho, um pouquinho pra isso. E, com a minha obra, eu tenho a alegria de ter iniciado na universidade brasileira os estudos permanentes de sociologia do futebol, e eu acho que isso contribuiu muito, especialmente pra denunciar e combater a violência. Então, esse foi um sonho parcialmente realizado e agora com esse [livro] eu pretendo que seja um sonho, quem sabe também, mesmo que parcialmente, realizado.
RA – E o que lhe dá mais prazer: escrever artigos mais científicos, sobre esportes, sociologia, ou crônicas? MM – O que me dá mais prazer é escrever sobre ficção. É escrever crônicas, romances, contos, que eu já tenho... Esse é o meu sexto livro na área de ficção. Eu gosto também muito da área da pesquisa, do ensaio, do trabalho científico, mas a ficção é a que eu acho que nos dá maior liberdade, maior criatividade e às vezes a gente consegue, através da ficção, falar de uma maneira muito mais profunda e um alcance muito maior do que o texto científico. Eu realmente gosto muito mais da ficção.
RA – Aproveitando a oportunidade, já que o senhor é uma autoridade nos assuntos esportivos, não poderíamos deixar de perguntar, sobre as Olimpíadas de 2016, que impactos o senhor acredita que elas poderão trazer às políticas de melhorias sociais e aos esportes em geral no Brasil? MM – Infelizmente eu acho que nós estamos muito atrasados com aquilo que seria a coisa mais importante dos jogos olímpicos, que seria o legado: o legado do plano da segurança pública, o legado do plano da educação esportiva integrada à educação geral das escolas, o legado em termos de equipamentos esportivos comunitários... Infelizmente estamos muito atrasados. Mas o que eu desejaria, mais do que a vitória por medalhas, era esse legado, a herança que os jogos podem deixar, em termos educacionais e sociais. Infelizmente, volto a dizer, estamos atrasados e estamos deixando talvez passar uma nova oportunidade, já que deixamos passar a Copa do Mundo também. Mas isso seria mais importante do que os jogos, do que a competição, do que o esporte, é o legado social, cultural, um pouco mais de valores, de ética. Nós estamos no Brasil com as instituições muito vazias de valores, de ideologias, de sentidos, de projetos, e um grande evento desses deveria contribuir pra melhorar as ações das nossas instituições. Eu gostaria que fosse isso. Mas não tenho certeza se vamos conseguir.
RA – Todo escritor tem um desejo interno, uma espécie de inquietação, de querer ver que alguma coisa da sua obra contribuiu numa mudança de comportamento na sociedade. O senhor também tem esse sonho? E, com esse livro, gostaria de ver algo transformado nas pessoas que o lerem? MM – Olha, começando pelo final; com esse livro, eu gostaria ― como e eu termino o livro dizendo isso ― que os pais, ao invés de dar presentes para os filhos, dessem presenças; sentassem no chão, ouvissem, conversassem, dialogassem, porque, se fizermos isso, a gente contribui pra melhorar um pouquinho da estupidez humana. Albert Einstein ― e está no livro isso ― tem uma frase em que ele dizia: “Só há duas coisas infinitas: o universo e a
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RA – Então, podemos dizer que o público de seu novo livro são tanto os pais, quanto os filhos. MM – Exatamente! São crônicas para pais e filhos. A intenção é exatamente essa, que pais e filhos possam se encontrar nesse livro. É isso que eu desejo.
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Opinião por Lucia Helena Issa Muitas pessoas me perguntam sobre o que mais me marcou em minhas várias estadias em Campos de Refugiados e no Oriente Médio em geral, em Beirute, Nablus, Ramallah, cidades a que tenho ido para dar voz às mulheres no livro que estou escrevendo, a ser lançado em breve. A dor das refugiadas palestinas e sírias que conheci em Sabra, Chatila e na Cisjordânia foi o que mais marcou toda a minha carreira. Sabra e Chatila são campos de refugiados palestinos no Líbano. Na verdade, Sabra não é mais considerado um campo de refugiados, pois se transformou em bairro muito pobre da periferia oeste da rica cidade de Beirute. Mas hoje são cerca de 13 mil pessoas vivendo em Chatila, onde não existe saneamento básico, só há luz durante uma parte do dia, os apagões são constantes (os bombardeios de Israel em 2006 destruíram toda a rede elétrica que havia sido reconstruída na parte oeste da cidade). O Líbano acolheu os palestinos e a ONU lhe agradece por isso, mas o país não considera Chatila nem os outros campos como parte do território libanês, e sim como enclaves, pois alega que a ONU, e não o governo libanês, é responsável pela situação dos refugiados. O resultado é um sofrimento infinito para os palestinos, uma dor que me fez sentar e chorar um dia e que mudou para sempre meu olhar para o mundo. A condição de vida dos refugiados palestinos é estarrecedora. A única escola de Chatila foi criada pela UNRWA (órgão da ONU criado para dar apoio aos refugiados palestinos) porque as crianças palestinas não podem estudar em escolas libanesas, assim como seus pais não podem viver como cidadãos de fato no Líbano, pois o Líbano sofre pressão interna para que os palestinos não se tornem cidadãos libaneses. Há pessoas lá que esperam há mais de 60 anos o direito de pertencer a uma pátria. Ou o direito de existir. O Líbano aceitou acolher os refugiados num ato de solidariedade e vem acolhendo pessoas há décadas, mas havia uma promessa da ONU de que o Estado da Palestina seria criado em breve, mas, com o apoio bélico dos EUA a Israel, essa resolução foi se tornando cada mais difícil, e o conflito, cada mais feroz. Nakba (catástrofe) ainda é a palavra que mais se ouve em campos de refugiados palestinos no mundo. Só consegui entender de fato o peso dessa palavra e a recorrência dela quando cheguei ali. Os palestinos precisavam dar um nome a tanta dor, a tantas perdas, a tamanha desumanidade. A Nakba está em todos lugares de Chatila. Nos olhos da senhora com quem conversei numa noite de inverno
e que viu seus três filhos serem assassinados em Deir Yassin (vila palestina vítima de outro massacre executado pelos israelenses em 1948), no depoimento da menina de sete anos que sonha em ser médica para ajudar seu povo, no único quadro da casa do homem que viu a filha ser morta no massacre de Chatila. Hoje existem no mundo todo mais de sete milhões de refugiados palestinos e sírios-palestinos. Muitos dos habitantes de uma parte do país a que hoje chamamos de Israel foram levados a abandonar suas casas para não morrer, sobretudo depois do massacre de Deir Yassin. As leis do governo israelense impedem o retorno de milhões de palestinos à pátria em que nasceram. Todos sonham com o dia em que poderão voltar à Palestina. O direito de retorno foi assegurado pela ONU, mas jamais cumprido por Israel. Entrevistei também dezenas de refugiadas sírias-palestinas da guerra atual da Síria. Mulheres que viviam no Campo de Yarmouk, onde houve um massacre de sírios-palestinos, na maioria mulheres e crianças. Essas sírias-palestinas estavam num campo cercado pelos membros do ISIS, cujas vítimas maiores são os muçulmanos pacíficos. Estavam sem água, sem comida, bombardeados por todos os lados do conflito, sem voltar a sua terra de origem, a Palestina, porque seriam massacrados por Israel no caminho, sem poder sair de lá. Mais de 300 crianças morreram de fome em Yarmouk, enquanto os EUA e o mundo assistiam a tudo passivamente. Ao contrário do que as pessoas acreditam, os membros do ISIS têm matado milhares de muçulmanos pacíficos, pois os consideram “infiéis”. O ISIS segue a corrente religiosa wahabbita, rejeitada por todos os muçulmanos que conheço, sírios, libaneses e palestinos, mas seguida e propagada pela Arábia Saudita, um dos países mais radicais do mundo, mas que, paradoxalmente, são os maiores aliados dos EUA no Oriente Médio. Não apenas os membros do ISIS são wahabbitas, com muitos sauditas entre seus soldados, mas também o grupo radical BOKO HARAM, que atua na África e já matou milhares de muçulmanos. O fato de que a maior parte das vítimas é muçulmana não é sempre divulgado, e algumas pessoas passam a alimentar um ódio irracional pelos muçulmanos. Um dia antes dos atentados de Paris, houve um atentado em Beirute, em Al Barajneh, onde eu estive três vezes. Morreram 43 pessoas nesse ato hediondo. Todos eram muçulmanos. Entre eles, uma professora que fazia um trabalho maravilhoso pela paz e de quem eu havia me tornado amiga. Mas a dor imensa dessas pessoas não apareceu nas nossas TVs. Não deveríamos refletir sobre isso? Essas pessoas eram nossos irmãos, eram crianças que riam e brincavam como nossos filhos, eram mulheres que amavam, tinham sonhos e que um dia amamentaram seus filhos, como eu e você.
Lucia Helena Issa é jornalista por formação, com graduação em Comunicação Social e especialização em Linguagem e Semiótica, pela Universidade de Roma, na Itália. É autora do livro-reportagem "Quando amanhece na Sicília...", premiado no Brasil e na Itália, sobre a luta das mulheres e da sociedade civil contra a máfia na Sicília, onde entrevistou mais de 120 mulheres. Morou em Londres, São Paulo e durante quase seis anos em Roma, de onde colaborou como jornalista com alguns dos principais veículos de comunicação do país, como Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e revista IstoÉ. Viajou por cerca de sessenta países do mundo, alguns deles devastados por guerras recentes e reportados por ela, in loco, tais como Rússia, Sérvia, Kosovo, Bósnia e Líbano. Atualmente, mora no Rio de Janeiro, onde é correspondente internacional e está terminando um novo livroreportagem, sobre mulheres do Oriente Médio que lutam pela paz. Recentemente, foi nomeada Embaixadora da Paz no Brasil, um título concedido pela Royal Society Group, pela UNRWA e reconhecido pelo governo brasileiro. Recebeu também, por seu trabalho no Oriente Médio e Europa, mais 8 prêmios nacionais, entre eles: - Prêmio Recife de Liberdade de Expressão, outorgado em 2015 na cidade de Recife, PE. - Prêmio "Mulheres Maravilhosas", outorgado em São Paulo, pelo livro "Quando amanhece na Sicília...", outorgado em Taubaté, São Paulo em 2015. - Medalha Anita Garibaldi, outorgada a ela em 2015, pelo livro "Quando amanhece na Sicília...", no Rio de Janeiro, na sede da OAB de Niterói. - Comenda da Paz, pelo conjunto da obra, outorgada em setembro de 2015, no Rio de Janeiro, no Quartel General do Exército Brasileiro. - Medalha "Emissário da Paz", concedida a ela pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro e OAB Rio.
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HOMICÍDIO NOS CONFINS DA VIDA: entre o dever de cuidar e o suposto direito de matar
Eduardo Luiz Santos Cabette1
1. Introdução Todo o ordenamento jurídico brasileiro, vindo da Constituição Federal e passando pela legislação ordinária, protege, de maneira muito especial e atenta, a vida humana e isso se repete de modo geral no Direito Comparado. Entretanto, a gênese desse fenômeno jurídico somente pode ser bem compreendida mediante um aprofundamento sobre a base antropológica que norteia toda essa preocupação conformadora de normas jurídicas protetivas. Um conceito do que seja um ser humano digno de tutela em sua vida, do que seja uma “pessoa humana” é a chave para a compreensão da razão de ser de toda a rede jurídica tutelar de que se está falando, bem como para a devida interpretação e aplicação das normas que regulam a matéria. Por isso, neste trabalho partir-se-á de um estudo do conceito de “pessoa humana” para, a partir daí, poder, com segurança, analisar o conteúdo e a aplicabilidade das normas jurídicas que tutelam a vida humana, especialmente aquela que se encontra em seu limite final. Nesse caminho árduo serão abordados problemas cruciais como a eutanásia, o suicídio assistido, os cuidados paliativos, enfim, todos os procedimentos que envolvem o tratamento dado com pretensões de legitimidade para pessoas que estão em fase terminal de doenças ou complicações da saúde graves. A abordagem do tema, como não poderia deixar de ser, é interdisciplinar, de modo que serão postos em questão problemas não somente jurídicos, mas também antropológicos, morais e éticos (mais especificamente bioéticos). Será perceptível que as concepções antropológicas, morais e bioéticas envolvidas podem e realmente norteiam, de forma muito importante, não somente a formulação, a aplicação, as propostas de reformulação e a interpretação das normas jurídicas. Ao final, serão as principais ideias expostas ao longo do texto retomadas, apresentando-se uma síntese conclusiva. 2. O conceito de “pessoa humana” Há um costume ou condicionamento bastante arraigado de interpretar o vocábulo “pessoa” como dotado sempre de uma qualificação ocultada apenas para evitar redundância, ou seja, dizer “pessoa” equivaleria sempre a dizer “pessoa humana”. Conforme esclarece Durant (1995, pp. 65 e66), “a palavra pessoa é empregada, então, para criticar a igualdade, o valor e a dignidade de cada ser humano por oposição ao mundo dos animais e das coisas”. Nesse passo “pessoa” e “ser humano” são encarados necessariamente como sinônimos, operando uma drástica distinção entre “sujeitos” e “coisas”, sendo que somente poderiam ascender 1 Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós-graduado com especialização em Criminologia e Direito Penal, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós-graduação da Unisal e membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
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à categoria de sujeitos os humanos; outros seres vivos não humanos jamais poderiam escapar do estatuto que lhes é reservado: aquele que os torna meras coisas ou objetos. Assim apresentam-se as definições clássicas de pessoa, tais como a de Boécio: “substância individual de natureza racional”. O homem é considerado pessoa por ser capaz de refletir sobre si e de se autodeterminar: “capta o sentido das coisas e dá às suas expressões, com razão, liberdade e consciência”(VALLS, 2004, pp. 30 e 31). Mas esse traço distintivo tão simplista e arbitrário não é isento de críticas. A definição do que seja uma “pessoa” não é algo tão simples, de modo que a polêmica sobre a questão tem povoado as discussões filosóficas ao longo dos séculos. O tema é tão profundo que ensejaria o desenvolvimento de um trabalho específico que fugiria aos objetivos desta exposição e, certamente, extrapolaria inclusive os limites do conhecimento deste autor. Pretende-se por ora tão somente abordar o tema em linhas gerais, de maneira a possibilitar alguma reflexão em especial quanto à discussão acerca das linhas limítrofes traçadas entre o homem e os demais seres vivos para sua inclusão ou exclusão do conceito de pessoa. Ainda assim a empreitada é desafiadora, pois, como aduzem Prigogine e Stengers (1991, p. 25), a “tragédia do espírito moderno” consiste no fato de que o homem “desvendou o enigma do Universo, mas apenas para substituí-lo por um outro: o enigma de si próprio”. Em um opúsculo bastante esclarecedor, Mondin (1998) arrola os principais critérios apontados como cruciais para a definição da chamada “pessoa humana”. O ponto de partida para uma definição de pessoa é apontado por muitos como a posse de uma cultura, ou seja, “o conjunto de todas as atividades e de todos os produtos que são frutos da iniciativa e da genialidade humana”. Por isso, a primeira definição de homem e, por conseguinte, de pessoa seria aquela que o toma como “um ser cultural (e não natural)” (op. cit., p. 11). Trata-se da emergência humana perante a natureza, tornando o homem por excelência o chamado “ser antinatura”. Mondin repisa essa temática, qualificando-a de adequada “porque o homem não é como as plantas e os animais, um puro produto das leis da natureza, e não é nem o resultado de uma prodigiosa autotese, isto é, fez-se sozinho, mas é fruto de uma sapiente colaboração entre natureza e cultura” (op. cit., p. 13). E segue destacando o fato de que,
diversamente dos outros seres vivos, cujo ser é inteiramente produzido, pré-fabricado pela natureza, o homem é em grande medida o artífice de si mesmo. Enquanto as plantas e os animais sofrem, no ambiente natural em que se encontram, o homem é capaz de cultivá-lo e de transformá-lo profundamente, adequando-o às próprias necessidades (op. cit., p. 15).
Em suma, o homem não se adapta ao ambiente, mas adapta o ambiente às suas necessidades. Note-se que então essa seria a primeira característica a apartar os demais seres vivos não humanos do estatuto de “pessoas”. Sem essa qualidade de emergência, de autonomia ante aos determinismos naturais, o ser não superaria o mero status de “coisa”. No seguimento outro atributo é apontado, inclusive como pré-condição do primeiro. Esse atributo é a “liberdade”. É ela que, segundo Sartre, “permite ao homem tornar-se o artífice de si mesmo” (apud op. cit., p. 18). Na verdade a liberdade insere-se totalmente na qualidade de emergência anteriormente tratada. Ela se traduz e mostra sua face de maneira plena quando se constata a capacidade humana de superação dos mecanismos de determinação natural da conduta. Por isso só o homem pode ser bom ou mau, pode fazer mal a si mesmo, inclusive tirar a própria vida em total confronto com o instinto de autoconservação. Essa capacidade de escolha de caminhos, de acesso a normas de conduta
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gerais e abstratas que podem ser obedecidas ou transgredidas, seria outra característica exclusiva humana a reservar-lhe a qualificação de pessoa. Mas tudo isso forma um amálgama indissolúvel com a qualificação do homem como ser cultural. A espiritualidade exsurge também como elemento importante na definição do homem e em sua constituição como pessoa. Para Mondin (1998), a espiritualidade, embora menos evidente que sua materialidade, necessitando ser demonstrada e argumentada, nem por isso se torna um fenômeno secundário. Ela é implícita nas definições anteriormente abordadas do homem como ser cultural e livre. São exemplos ou manifestações dessa espiritualidade imanente ao homem e que constituem elementos de sua configuração como pessoa “a autoconsciência, a reflexão, a contemplação, o colóquio, a adoração, a autotranscendência etc.”. Tudo isso são condições que o espírito proporciona para a existência da liberdade, pois que só o espírito “é essencialmente livre”. O homem se sobreleva aos limites do espaço-tempo, ao ambiente, aos determinismos naturais e instintivos porque “leva consigo um elemento de imaterialidade e de espiritualidade, porque possui uma dimensão interior de natureza espiritual: a alma, a mente e o espírito”. Essa concepção que dá especial relevo à espiritualidade humana como elemento diferenciador dos demais seres vivos nos é legada sob o aspecto religioso pelo cristianismo e sob o enfoque metafísico pela filosofia oriental e platônica (op. cit., pp. 21-24). Também o existencialismo heideggeriano não deixou passar in albis o assunto ora tratado. Segundo Derrida (1990, p. 59), a afirmação de Heidegger de que o animal não tem mundo traz como consequência sua não espiritualidade. Isso porque o mundo é essencialmente espiritual; seu “ser” somente pode ser acessado pelo espírito que perscruta e não pela mera relação material. A negação da espiritualidade atrelada à vedação do acesso a um mundo animal parece entrar em franca contradição com as famosas três teses de Heidegger: 1 – “A pedra é sem mundo”. 2 – “O animal é pobre de mundo”. 3 – “O homem é formador de mundo”. Ora, se o animal é “pobre” e o homem é “rico” em mundo, sendo este espírito, então a conclusão mais coerente seria “menos espírito para o animal, mais espírito para o homem”, o que não implicaria uma “privação” de espírito para o animal, senão uma certa “restrição” deste. Mas, para Derrida (op. cit.), na verdade, “essa pobreza não é uma indigência, com pouco de mundo”, tendo induvidosamente “o sentido de uma privação, de uma falta” (op. cit., pp. 60 e 61). Essa “pobreza” do animal implicaria não uma diferença de grau, mas sim de natureza da relação do animal e do homem com o “ser”. “O animal não tem uma relação menor, um acesso mais limitado a um ente, tem uma relação ‘diversa’” (grifo no original) (op. cit., p. 61). Entretanto, o não ter mundo e, consequentemente, espírito do animal não corresponde ao mesmo “sem mundo” da pedra, da matéria inanimada enfim. No caso do animal, há “privação” porque ele pode ou poderia ter um mundo, ao passo que a pedra não tem mundo na forma de uma “simples ausência” (op. cit., p. 62). “O animal pode ter um mundo, posto que ele acede ao ente, mas é privado de mundo porque não acede ao ente como tal e no seu ser”. Ele não questiona, não nomeia nem classifica, permanece agrilhoado à mera relação material com os seres, embora, diferentemente da matéria inanimada, mantenha certa relação com o ser. No exemplo de Heidegger, “a abelha operária (...) conhece a flor, sua cor e seu perfume, mas ela não conhece o estame da flor como estame, não conhece suas raízes, o número de estames etc.”. Também o lagarto é outro exemplo de que Heidegger se vale, descrevendo sua permanência sobre a rocha ao sol e destacando que ele igualmente “não se reporta à rocha e ao sol como tais, como aquilo a respeito do que se pode colocar questões, justamente e dar resposta”. No entanto, o animal chega a ter uma relação com a pedra e o sol, enquanto a pedra não tem nenhuma relação com eles” (op. cit., p. 64).
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Mas a relação do animal com as coisas, devido à falta da espiritualidade, o distancia sobremaneira da mesma relação entre o homem e as mesmas coisas e consequentemente distancia de forma abissal a animalidade da humanidade. Nas palavras de Michel Haar, citadas por Derrida, “o salto do animal que vive ao homem que diz é tão grande, senão maior, que o da pedra sem vida ao ser vivo” (op. cit., p. 65). A tradição oriental não deixa de perceber essa gradação da espiritualidade nos seres, resumindo-a poeticamente em versos: “O espírito dorme na pedra, Sonha na flor, Acorda no animal E sabe que está acordado no ser humano” (apud BOFF, 2004, p. 230). A ascensão à condição de pessoa nesse contexto pressupõe então a presença da espiritualidade como característica indeclinável. E quando Heidegger aponta para a “pobreza e a privação” dos animais em espírito, isso implica certa “hierarquização e avaliação”, na qual, sem dúvida, os animais são relegados a um segundo plano (DERRIDA, 1990, p. 68). Quando essa espiritualidade atribuída ao homem é enfocada sob um prisma teológico, passase a uma outra definição de pessoa que também tende a reservar somente aos seres humanos essa qualificação. Só o homem é o ser feito “à imagem e semelhança de Deus”, o único “teomorfo” (MONDIN, 1998, p. 37). Agora a espiritualidade é aquilo que possibilita ao homem e só ao homem ascender ao divino. Deus passa a ser o paradigma que deve ser perseguido pelo homem que pode buscar a perfeição. Todo o esforço humano deve consistir então em aproximar-se o máximo possível de Deus e essa aproximação só é viável por meio da exaltação do espírito, que é aquilo que enseja a supremacia do humano perante o restante da criação. Mondin (op. cit., pp. 38 e 39) descreve essa concepção com bastante propriedade:
O modelo sobre o qual o homem deve decalcar o desenho da sua própria personalidade não pode encontrá-lo nas criaturas inferiores: nem nas plantas, nem nos animais, nem nos astros. Nem mesmo no melhor dos outros homens, porque, por mais que possa ser bom, inteligente, sábio, forte, santo, os homens são sempre dotados de uma humanidade imperfeita. De resto, a humanidade primitiva não pode avaliar-se pela exemplaridade de nenhum outro ser humano. O único modelo adequado à aspiração de infinitude do homem encontra-se inscrito na própria espiritualidade. Não pode ser outro que um modelo infinito: infinito como espírito, infinito como inteligência, infinito como vontade, como liberdade, como bondade, como amor. O único modelo adequado que o homem deve assumir, para levar à plenitude da própria pessoa, é (...) Deus mesmo. Por esse motivo, para a realização plena de si mesmo, que é ontologicamente teoforme, o homem deve fazer-se um imitador de Deus.
Nada mais que isso é o que propõe o Frei Tomás de Kempis (2001, p. 75) em sua obra sugestivamente intitulada “Imitação de Cristo”. Na forma de um diálogo entre uma “Alma fiel” e Jesus Cristo, faz brotar da boca do segundo a seguinte orientação:
Filho, se desejas de verdade ser feliz, Eu devo ser teu fim último e supremo. Essa intenção purificará teu coração, tantas vezes apegado desregradamente a si mesmo e às criaturas. Porque, se em alguma coisa te buscas a ti mesmo, logo desfaleces e afrouxas. Refere, pois, tudo a Mim, principalmente porque Eu sou quem te dá tudo.
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Eis aí outra característica tomada como imprescindível para possibilitar a qualificação de um ser como “pessoa”, a transcendência possível em direção ao divino, o encontro de si mesmo na glória de Deus, cuja “imagem e semelhança” é atributo exclusivo humano. Michelangelo (1475 – 1564), pintor, escultor, arquiteto e poeta italiano, brindou a posteridade com uma obra-prima que bem pode ser tomada como um dos grandes símbolos dessa concepção. Trata-se do afresco pintado na Capela Sistina denominado “A criação de Adão”, no qual o homem estende seu braço e seu dedo indicador toca aquele que representa o Deus Criador. Reproduzir a cena, trocando o homem por um macaco, por exemplo, consistiria em uma transgressão de enormes proporções a toda uma tradicional visão religiosa e filosófica. Pode haver outros critérios, além dos já mencionados, para a definição de pessoa, mas estes são os mais aventados, de maneira que as argumentações geralmente giram em torno dessas questões. Apenas exemplificando, em 1972, Joseph Fletcher arrolou quinze critérios ou características de pessoa: “inteligência mínima, consciência de si, domínio de si mesmo, sentimento do tempo, noção de futuro, percepção do passado, aptidão para se comunicar com os outros, interesse pelos outros, comunicação, domínio de sua existência, curiosidade, desenvolvimento e variabilidade, equilíbrio entre a razão e os sentimentos, a idiossincrasia e a função neocortical”. Posteriormente, em 1974, avaliando as críticas que seus critérios ensejaram, reduziu-os a quatro: “a consciência de si, a capacidade de interação, felicidade e a função neocortical” (DURANT, 1995, p. 67). Como consequência de todo o exposto, só o homem poderia ser tomado como pessoa (“persona”), pois que pessoa significa o que é mais perfeito em toda a natureza, o que consiste na natureza racional (São Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, 23, 2) (MONDIN, 1998, p. 25). E isso torna o humano um “valor absoluto, não um valor instrumental”, pertencendo “à ordem do ‘frui’ e não àquela do ‘uti’”. Na linguagem de Santo Agostinho, o homem (pessoa) existe “para usar e não para ser utilizado” (op. cit., p. 43). Também de forma semelhante manifesta-se Kant, qualificando todo ser racional como um fim em si mesmo e jamais como um simples meio para quaisquer objetivos (KANT, 2002, pp. 58 e 59). O conjunto dessas concepções necessariamente exclui os animais de qualquer possibilidade de acesso ao estatuto de “pessoas” e suas correlatas prerrogativas. No entanto, há quem advogue uma definição menos restritiva de pessoa. Peter Singer indica uma série de aproximações entre animais e humanos que, a seu ver, poderiam justificar a atribuição da qualidade de pessoas também aos primeiros. Parte de uma definição psicológica de pessoa, proposta por John Locke: “Um ser pensante inteligente, dotado de razão e de reflexão, e capaz de cogitar de si como si mesmo, uma mesma coisa pensante, em diferentes tempos e lugares” (apud SINGER, 2002, p. 105). É bastante conhecido o quanto as ciências (zoologia, etologia, psicologia, genética, anatomia comparada etc.) foram capazes de demonstrar que as características supraelencadas e outras mais não são exclusividades humanas, embora apresentem certas peculiaridades distintivas. Na tentativa de distinção entre os homens e os animais, os primeiros já foram identificados e individualizados por diversas características tomadas como exclusivas. O homem já foi descrito como animal político, animal social, animal que ri, animal que fabrica utensílios, animal religioso, animal que cozinha, animal que dialoga, animal que é proprietário, animal racional, animal livre etc. (THOMAS, 1989, pp. 37-39). Não obstante, tais definições, muito mais do que distinguir o homem dos animais, visavam “propor algum ideal de comportamento humano” (op. cit., p. 37) e efetivamente não operavam nenhuma distinção relevante do ponto de vista moral a alijar os seres não humanos do estatuto de “pessoas”, de “sujeitos” aos quais se deve uma obrigação moral, mesmo porque nem sempre podem ser tomados de forma geral e imparcial, como características verdadeiramente exclusivas dos humanos. Em seus comentários à obra de Coetzee, Bárbara Smuts deixa clara sua impressão de que
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nossa classificação de pessoa tem uma base arbitrária, não se referindo ao fato concreto de que um ser possa ou não ser encarado como pessoa, mas sim à nossa disposição em assim encará-lo de acordo com a forma mais ou menos preconceituosa pela qual o vemos. O conceito de pessoa estaria, na verdade, ligado à possibilidade de uma relação social entre dois sujeitos que se afetam mutuamente e, especialmente, no reconhecimento dessa “relação pessoal”. Se os humanos não reconhecem os animais dessa forma, mas lhes atribuem o mero status de “coisas”, isso não quer dizer que eles são apenas “coisas”, mas que nós lhes atribuímos essa condição de forma preconceituosa e arbitrária, desconsiderando nossa possível “relação pessoal”. Nas palavras da autora, “quando um ser humano se relaciona com um indivíduo não humano como objeto anônimo, mais do que como um ser com sua própria subjetividade, é o humano, e não o outro animal que renuncia à pessoalidade” (COETZEE, 2002, p. 142). Portanto, o que limita nossas relações com os animais é “a visão estreita com que pensamos quem são eles e que tipos de relações podemos ter com eles” (op. cit., p. 145). Tratar-se-ia, assim, de uma manifestação do chamado “especismo”, pois a qualidade de pessoa não deveria permanecer atrelada ao mero pertencimento à espécie “Homo Sapiens”. Deveria estar sim ligada a certos requisitos comuns a todos os seres sensíveis. Singer (2002, p. 390) assim responde sobre o tema em entrevista a Bob Abernethy:
A simples condição de fazer parte da espécie (“Homo Sapiens”) não basta. As qualidades que considero importantes são, em primeiro lugar, a capacidade de vivenciar a experiência de alguma coisa – isto é, a capacidade de sentir dor, ou de ter algum tipo de sentimento. Isto é realmente fundamental; e, no entanto, é algo que temos em comum com uma quantidade imensa de animais não humanos.
É justamente a reformulação de um paradigma que concentra no homem e apenas nele toda a preocupação moral, que pode operar uma inovadora abordagem do tema dos Direitos dos Animais e, numa etapa seguinte, da própria relação da humanidade com a natureza. Entretanto, há que ponderar o perigo ínsito na identificação do homem com a animalidade pura e simples, bem como, especialmente, o alijar de determinados seres humanos da condição de pessoas devido à falta de certos requisitos. Nada há de negativo em buscar uma elevação do status dos animais e de sua consideração e tratamento como seres sensientes. Não obstante, a aproximação exagerada ou até mesmo a identificação do humano com o animal perverte a vertente antropológica e pode levar a efeitos contrários aos que os defensores dos animais pretendem. Em vez de vermos os animais sendo tratados à semelhança dos humanos em suas relações morais, podemos passar a ver, como já ocorreu na história várias vezes, seres humanos sendo degradados ao tratamento dado a animais ou ainda abaixo disso. É inegável que o homem é dotado de corporeidade e que tem pontos comuns com a animalidade, mas o salto dado na hominização, especialmente sob o aspecto espiritual, não pode ser olvidado. Tratando do otimismo exagerado e midiático em que se envolve o mundo atual em relação às pesquisas genéticas, alerta, com acerto cirúrgico, Guillebaud (2008, p. 23):
Os defensores do otimismo cientificista irritam-se quando convocamos essa memória para denunciar os possíveis desvios da genética. Para eles, essa incansável convocação de Hitler é exasperante. Eles veem nela um modo cômodo de encorajar todas as prudências ‘obscurantistas’ ou as reações ‘tecnofóbicas’ (os dois termos estão na moda). Estão errados. A referência intuitiva a esse passado não é irracional. É realmente a intransponível exceção nazista e a Shoah que fizeram nascer, em contrapartida, nossa preocupação obsessiva com o humano do homem. A cronologia histórica é testemunha disso. É depois da abertura dos campos e das valas comuns que o trágico foi convidado, para todo o sempre, para essa questão. Depois da Shoah, rompemos com aquilo que podia haver de cortês, de indiferente, de quase divertido,
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nos séculos XVII ou XVIII, nas reflexões sobre a animalidade ou humanidade da criatura (Plutarco, La Mettrie, Descartes e outros mais...). O sistema concentrador nazista fabricou desta vez, no sentido estrito do termo, uma subumanidade. Para o bem. Para a verdade. O homem inteiro, por meio do judeu ou do cigano, foi reduzido forçosamente à animalidade ou condenado ao estatuto de objeto ou de coisa. Os corpos supliciados, seus dentes, sua pele, seus cabelos, se tornaram matéria– prima... Em 1945 – 1946, subitamente, o Ocidente descobriu (então) com horror que podíamos destruir uma verdade mais preciosa que a própria vida: a humanidade do ser humano.
Por seu turno, Henry (2012, p. 20) chama a atenção para a barbárie da “naturalização” do homem pela ciência moderna, tornando-o indistinguível das coisas. A lição histórica não pode ser esquecida e exatamente por isso, quando se trata de vida e morte de seres humanos, estejam eles em que condição estejam, o substrato primeiro de qualquer discussão tem de ser um referencial teórico antropológico que não permita o olvidar da humanidade do homem e impeça, em qualquer situação, sua reificação. 3. A (i)legitimidade e (i)legalidade da morte dada aos moribundos: confluência entre antropologia, ética e direito Partindo de um referencial teórico antropológico, ético e filosófico que tem como marco o conceito de pessoa humana como unidade corporal e espiritual e, portanto, sujeita a uma dignidade especial, surge o problema de como lidar com a questão daqueles que estão no final de suas jornadas vitais. Uma primeira questão conceitual a ser enfrentada diz respeito à distinção entre “doença avançada” e “doença terminal”. Nem sempre é bem-delineada a definição dessas expressões frequentemente utilizadas nas discussões acerca do tratamento das pessoas acometidas de doenças letais graves em fase crítica. Segundo Floriani (2011, pp. 49 e 50), é no campo da oncologia que se tem avançado mais para esse estudo. Assim sendo, “doença avançada” tem sido definida como “aquela que não tem possibilidades de tratamento curativo, com expectativa de vida relativamente curta, ainda que esse tempo possa ter uma grande variabilidade, às vezes de anos”. Doutra banda, o conceito de “doença terminal” apresenta maiores dificuldades de delimitação, principalmente no caso de enfermidades que costumam apresentar eventuais fases de recuperação, ainda quando o paciente já apresenta um quadro degenerativo de saúde bastante avançado. A verdade é que a configuração da terminalidade em doenças que não apresentam um curso linear de desenvolvimento é bastante difícil. Ainda que com essas observações, é possível referir em um sentido amplo que a terminalidade é “a fase final de uma doença avançada, que levará o paciente à morte em horas, dias ou semanas, e que se caracteriza por uma deterioração irreversível das funções orgânicas”. Enfim, pode-se afirmar que a terminalidade se caracteriza como a fase final e definitiva de uma doença avançada. Seja diante de uma doença em fase avançada ou terminal, o problema que se coloca é aquele da conduta diante do ser humano nessas condições de forma a respeitar sua dignidade. Respeitar essa dignidade seria dar morte ao doente ao menos na fase terminal? Com ou sem o seu consentimento? Seria propiciar ao doente tirar a própria vida? Seria cuidar desse paciente, ensejando-lhe um bom processo de morte com dignidade e minimizando os sofrimentos físicos, psíquicos e espirituais? Qual o caminho a ser tomado, segundo as orientações éticas e jurídicas, construídas sobre o alicerce antropológico do conceito de pessoa humana? Frise-se ainda que o fenômeno de envelhecimento da população e o aumento da longevidade apresentam enorme relevância para a problemática ora abordada, pois cada vez mais haverá a
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necessidade do enfrentamento do dilema criado pela existência de uma parcela populacional dependente de cuidados no fim da vida, os quais passam a configurar uma questão de saúde pública de ordem mundial.2 Em “As Intermitências da Morte”, Saramago (2005) dramatiza, com maestria que lhe é peculiar, as dificuldades passadas por uma sociedade em que a morte deixa de fazer seu trabalho de renovação, com o surgimento de uma população imortal porém incapacitada e debilitada pela velhice. Neste ponto é relevante salientar que na atualidade vêm surgindo, na seara filosófica, sugestões de uma “ética negativa” ou “ética do não ser” em contraposição à ética clássica que se assenta na perseverança do “ser”. Nesse diapasão, Cabrera (2011, p. 23) afirma que “nenhum filósofo enfrentou a possibilidade de uma moralidade do não ser, ou seja, as consequências éticas decorrentes de uma rejeição radical do ser”. Quanto a isso, “a Ética tradicional foi construída como se a vida fosse algo compulsivo, jamais enfrentou a possibilidade de tratar-se de uma escolha” (op. cit., p. 23). Efetivamente, uma das maiores senão a maior questão filosófica posta ao homem é o saber se a vida merece ser vivida. Camus (1989, p. 23) chega a afirmar que “só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio”. Uma “ética negativa ou do não ser” apresenta um problema filosófico de grande seriedade, qual seja, se houver realmente a possibilidade de uma “moralidade do não ser”, então, em certas situações, viver pode ser considerado como “a máxima imoralidade” (CABRERA, 2011, p. 24). Essa proposta de uma “ética negativa” tem sua valia enquanto instância crítica e de abertura de novos horizontes para o pensamento. Mas também pode ser uma árvore de frutos venenosos que pode descambar para um “niilismo” absoluto e uma total desvalorização da vida humana. Conforme destaca Cabrera (op. cit., p. 38), “crescer é gradativamente adentrar-se na morte, vivê-la cada vez mais, até, finalmente, morrê-la”. Essa é uma verdade iniludível, cuja aceitação não deve levar à prostração ou desespero, mas à aceitação da morte como um processo ou parte da vida, como a finitude inexorável que inclusive valoriza a própria vida. Nesse passo, uma “ética negativa” pode ser produtiva para afastar a absoluta e rígida rejeição da morte que muitas vezes conduz à submissão de pessoas a tratamentos fúteis que somente prolongam o processo de morte, acrescendo sofrimento e não vida, o que certamente viola a dignidade humana. Não obstante, durante a leitura da obra de Cabrera, por exemplo, os mais desavisados podem ser levados a interpretá-la como uma espécie de apologia ao suicídio e mais ainda como uma devastadora ideologia que abarca o nada como fim da moralidade. Pode parecer que a questão não esteja em levantar hipóteses em que o ser não seja melhor que o não ser, mas em afirmar que o não ser é sempre melhor. Essa interpretação faz com que a crítica ínsita ao pensamento de uma “ética negativa” se volte contra si mesma num mimetismo da ética tradicional que impõe o ser como invariavelmente melhor que o não ser. Daí para uma cultura do suicídio e da própria destruição do mundo, para a qual já somos dotados de poderes, o passo é mínimo. E se é possível retirar alguma lição ou entendimento da observação da natureza, não é em direção ao nada que se caminha. Luc Ferry, embora reconhecendo a inexistência de uma vontade dirigida a fins na natureza e muito menos uma suposta “bondade natural”, aduz, com fulcro na doutrina de Hans Jonas, a existência de uma tendência ou uma linha coerente a guiar os processos naturais. Sem poder abrir mão da linguagem metafórica para explicar-se, resume essa tendência na expressão de Jonas que afirma que “a vida diz sim à vida”. O que muitas vezes se interpreta como “vontade” da natureza seria constatável mais propriamente como uma inclinação, uma propensão, não necessariamente dirigida por um desejo, pela conservação e propagação da vida, um “perseverar no ser” (FERRY, 1993, p. 134). Note-se que não há necessidade de apelar para uma vida após a morte, para argumentos de índole religiosa, mas apenas para o fato de que o “ser” é presente e o “nada” apenas subjaz a ele sem experiência autônoma. Nas palavras de Sartre (1997, p. 64): 2 HENRARD, J. C. Cultural problems of ageing especially regarding gender and intergenerational equity. Disponível em http://pubget.com/paper/8870131/Cultural_problems_of_ageing_especially_regarding_gender_and_intergenerational_equity . Acesso em 26.01.2013.
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O nada, não sustentado pelo ser, dissipa-se enquanto nada, e recaímos no ser. O nada não pode nadificar-se a não ser sobre um fundo de ser: se um nada pode existir, não é antes ou depois do ser, nem de modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração, como um verme.
Assim a proposta de uma “ética negativa ou do não ser” torna-se vazia e perigosa se absolutizada. No entanto, pode ser útil e profícua enquanto instância dialética com a ética tradicional focada no ser, impondo-lhe alguns limites e questionamentos que poderiam muitas vezes passar despercebidos. E Cabrera (2011, p. 103) demonstra claramente essa intenção dialética quando faz a crítica da aplicação universal, sistemática e invariável de qualquer norma moral. Em certas situações práticas, a aplicação cega de uma norma moral, seja ela qual for, pode tornar-se fonte de imoralidade. Por isso é preciso contar com aquilo que o autor denomina como “astúcia da indeterminação”, a qual possibilita a noção de que um princípio moral que não permite exceções e que se aplica igualmente e invariavelmente “sempre, a todo mundo, em todo lugar, em todo tempo, e sempre da mesma maneira” é uma das coisas mais assustadoras que podem existir e inclusive à qual se dá o nome de “máquina moral infernal”. E não se trata aqui de uma defesa do chamado “Relativismo Moral”, mas da aplicação proporcional e razoável das normas e princípios que regem a moralidade. Como afirma Hare (2003, pp. 51 e 52), já que “não temos acesso direto ao que um Deus bom poderia querer”, somente nos resta “o recurso a nossa própria razão imperfeita”, que “é o melhor meio de que dispomos”. Não parece razoável que o ato de matar ou de possibilitar os meios para o suicídio de um doente terminal ou avançado possa ser tomado como paradigma ou regra na solução de uma situaçãolimite em que convergem as questões da dignidade humana e da vida. A presença do “outro” diante de mim impõe uma relação ética na qual não é permitida a apropriação da vida ou mais propriamente a aniquilação do outro (LEVINAS, 1988, p. 177). O dever moral que dessa relação emerge é o dever de “cuidado”. O cuidar deve ser o paradigma, jamais o matar ou o ensejar a autodestruição. Aliás, como ironicamente bem lembra Saramago, “a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem” (SARAMAGO, 2005, p. 113). Certamente a humanidade não precisa acrescer mais essa barbárie à sua longa lista de violências e extermínios. No contexto acima é que surgem movimentos e pensamentos fulcrados nos “cuidados paliativos” e no modelo de atendimento “Hospice”. Situa Floriani (2011, pp. 16 e 17) as bases do “moderno Movimento Hospice” com a fundação na Inglaterra, em 1967, do St. Christopher’s Hospice, propondo grandes transformações quanto aos cuidados ofertados aos pacientes e seu entorno. Esse movimento está intrinsecamente ligado aos denominados “cuidados paliativos”, os quais “implicam um conjunto de ações interdisciplinares visando oferecer uma ‘boa morte’ e aumentar a qualidade de vida dos pacientes acometidos por doenças em estágio avançado. Além disso, há uma preocupação com os familiares do paciente e com o cuidador, expressa mediante a oferta de cuidados estendidos ao processo de luto, havendo também ênfase no atendimento em clínica-dia e em programas de internação domiciliar”. O movimento Hospice e os cuidados paliativos procuram situar-se como uma mediania virtuosa entre a chamada “eutanásia” ou o “suicídio assistido” e o excesso, futilidade, encarniçamento ou obstinação terapêutica. Nem dar a morte a alguém, nem privar esse alguém de seu caminho natural em direção à finitude humana. Mas amparar o moribundo em seu caminho para a morte, conforme bem retrata a expressão grega “Kalós Thanatós”, traduzível como a “jornada da boa morte” (op. cit., p. 21). Não se acelera nem se adia a morte (op. cit., p. 36), aproximando-se mais de uma conduta de “ortotanásia”, a qual não se confunde nem mesmo com a chamada “eutanásia passiva”. A palavra
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“ortotanásia” advém do grego “orthós” (normal, correta) e “thánatos” (morte), designando, portanto, a
morte natural ou correta. Assim sendo, “a ortotanásia consiste na ‘morte a seu tempo’, sem abreviação do período vital (eutanásia) nem prolongamentos irracionais do processo de morrer (distanásia). É a ‘morte correta’, mediante a abstenção, supressão ou limitação de todo tratamento fútil, extraordinário ou desproporcional, ante a iminência da morte do paciente, morte esta que não se busca (pois o que se pretende aqui é humanizar o processo de morrer, sem prolongá-lo abusivamente), nem se provoca (já que resultará da própria enfermidade da qual o sujeito padece) (CARVALHO, 2001, pp. 27 e 28).
A intenção é a busca da chamada “boa morte”, definida, desde 1997, pelo Institute of Medicine como “aquela que é livre de uma sobrecarga evitável e de sofrimento para o paciente, as famílias e os cuidadores; uma morte que ocorra, em geral, de acordo com os desejos dos pacientes e das famílias; e razoavelmente consistente com as normas clínicas, culturais e éticas” (FIELD; CASSEL, 1997, p. 4). Afora esse equilíbrio virtuoso diante do doente avançado e/ou terminal, o sistema jurídicopenal brasileiro, movendo-se num referencial teórico antropológico de defesa da vida e da dignidade humanas, conforme proposto neste trabalho, criminaliza a execução eutanásica dos moribundos, ainda que a seu pedido, eis que a vida é considerada como bem jurídico indisponível (MIRABETE; FABBIANI, 2011, p. 27). Ocorre nesses casos o crime de homicídio (artigo 121, CP) que pode ser considerado privilegiado devido à presença de um sentimento de piedade na consecução da morte, o qual pode configurar o chamado “relevante valor moral” (artigo 121, § 1º., CP). A consequência do reconhecimento do privilégio é a redução da pena do caput, que é de reclusão, de 6 a 20 anos, de um sexto a um terço. Se por acaso o agente não mata o doente, mas lhe propicia os meios para que ele mesmo dê cabo da própria vida (suicídio assistido), ainda que a seu pedido, pode configurar-se, acaso o doente sofra lesões graves ou efetivamente morra, o crime de Induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (artigo 122, CP). Nesse caso não há previsão de privilégio, mas pode configurar-se, também pelo “relevante valor moral” propiciado pelo sentimento de piedade em relação ao enfermo, a atenuante genérica do artigo 65, III, “a”, CP. Nas atenuantes não é prevista uma redução fixa ou um intervalo de redução de pena na lei. Entretanto, é costume que a redução não ultrapasse um sexto.3 De outro lado, a ortotanásia que se compõe dos chamados cuidados paliativos quando as opções terapêuticas se revelam meras obstinações injustificadas, não configura qualquer infração penal ou moral. Trata-se da conduta jurídica e eticamente correta a ser adotada, seja pela família ou pelo profissional de medicina. Mesmo a omissão de tratamento, tirante os cuidados paliativos, é irrelevante, pois se trata de situação em que a terapêutica é retirada e não se faz nada porque nada mais há a fazer, a não ser amparar humanamente o paciente em sua jornada final. Ora, a omissão na seara criminal somente adquire relevância “quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”, o que não ocorre quando se trata de ortotanásia e da opção correta pela adoção dos cuidados meramente paliativos (CABETTE, 2009). Também não pode ser considerada moralmente reprovável e muito menos criminalmente persequível a chamada “eutanásia indireta”, informada pela 3 Conforme leciona Frederico Marques para o crime de Homicídio, valendo também para o Induzimento ao Suicídio: “Sujeito passivo (...) é alguém, isto é, qualquer pessoa humana, o ser vivo nascido de mulher, l’uomo vivo, qualquer que seja sua condição de vida, de saúde, ou de posição social, raça, religião, nacionalidade, estado civil, idade, convicção política ou status poenalis. Criança ou adulto, pobre ou rico, letrado ou analfabeto, nacional ou estrangeiro, branco ou amarelo, silvícola ou civilizado, - toda a criatura humana, com vida, pode ser sujeito passivo (...), pois a qualquer ser humano é reconhecido o direito à vida que a lei penalmente tutela. O moribundo tem direito a viver os poucos instantes que lhe restam de existência terrena, e, por isso, pode ser sujeito passivo (...). Assim também o condenado à morte”. MARQUES, Frederico. Tratado de Direito Penal. Volume IV. Campinas: Millennium, 1999, p. 101 – 102.
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“doutrina do duplo efeito”, quando um tratamento analgésico acaba abreviando concomitantemente o ciclo vital do doente. Não há nexo causal relevante para com a morte, e a conduta do profissional e/ou cuidador que ministra o tratamento é em prol da saúde e do bem-estar integral do paciente (op. cit., pp. 89 e 90). Finalmente, a não manutenção de funções vegetativas de um corpo com morte encefálica, através de técnicas e aparatos da medicina contemporânea, também constitui um irrelevante moral e jurídico. Trata-se apenas da remoção de um cadáver, pois que se considera como morte a chamada morte encefálica, inclusive por força de lei (artigo 3º., da Lei de Transplantes – Lei 9.434/97), o que torna a conduta em termos de homicídio verdadeiro crime impossível (inteligência do artigo 17, CP) (op. cit. p. 114). Já sob o ponto de vista moral, trata-se de uma questão absolutamente adiafórica, ou seja, nem boa nem má, neutra. Vale salientar que há projetos de alteração do Código Penal para a previsão da Eutanásia como uma forma especial de homicídio com penas mínima e máxima bem menores que as previstas para o caput do artigo 121, CP. Assim também há projetos para que a prática da ortotanásia seja explicitamente enfrentada no ordenamento penal, indicando sua impunibilidade. Já o Código de Ética Médica (Resolução CFM 1931/09), no inciso XXII, dos seus “Princípios Fundamentais do Exercício da Medicina”, se adianta a regulamentar a ortotanásia, permitindo-a “nas situações clínicas irreversíveis e terminais”, quando “o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”.4 Não somente sob o aspecto ético e deontológico, mas especialmente sob o ângulo criminal não se costuma dar a devida atenção a algo que ocorre cotidianamente na prática médica sob a influência de interesses financeiros espúrios e abjetos. Normalmente se foca na falta de cuidados adequados e não no exagero terapêutico, visando lucros indevidos. Floriani (2011, p. 79) é um dos poucos autores que lembra essa importante faceta. O estudioso se refere a indicações indevidas de internação e tratamento de pacientes em unidades hospitalares de alta tecnologia e elevados custos. Também chama a atenção para a realização de procedimentos diagnósticos e/ou terapêuticos de “indicação duvidosa”, visando tão somente auferir lucros, obviamente no âmbito da medicina privada. Há internações indevidas, prolongamentos de internações e tratamentos desnecessários, realização de exames inúteis de alto custo em doentes terminais etc., tudo visando a ganho financeiro e atuando sobre o corpo do paciente como se este fosse nada mais que uma fonte de lucros. Essa situação é ainda pior do que a chamada obstinação terapêutica, a qual, mesmo equivocada, pode ser considerada uma posição filosófica e ética do profissional que se apega desesperadamente na luta contra a morte. Não, nesses casos não se trata de posição filosófica, de qualquer crença, ainda que ilusória, mas de pura e simples perversidade. E se trata de uma iniquidade tamanha que pode ainda ser fomentadora de desinteresse de médicos e entidades hospitalares da rede privada para a implantação de programas dentro da filosofia Hospice e cuidados paliativos, já que esses procedimentos tendem a reduzir e não aumentar os custos hospitalares. O Código de Ética Médica repudia a mercantilização do exercício da medicina, desde seus Princípios Fundamentais (inciso IX), de modo que, sob o prisma deontológico-administrativo, a conduta acima aventada é absolutamente inadmissível (CABETTE, 2011, p. 115). E criminalmente, como ficaria a situação? Nesses casos, a submissão do paciente a procedimentos diagnósticos e terapêuticos e internações desnecessárias com dolo por parte do profissional de medicina pode 4 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Comentários ao Novo Código de Ética Médica. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 18 – 19. Deve-se anotar ainda que há no Direito Comparado legislações que permitem a eutanásia e o suicídio assistido (v.g. no caso do suicídio assistido por médico há legalização no Estado do Oregon, nos Estados Unidos e na Suíça, inclusive com permissão da prática para não médicos. Cf. FLORIANI, Ciro Augusto. Op. Cit., p. 84 – 87). Na Holanda e na Bélgica, a eutanásia é admitida legalmente. Na Polônia há previsão de exclusão de culpabilidade e no Japão a eutanásia tem sido admitida pela jurisprudência com certos requisitos rígidos. Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia. Op. Cit., p. 41 – 45.
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configurar diversas infrações penais, tais como Constrangimento Ilegal (artigo 146, CP), Lesão Corporal (leve, grave ou gravíssima, conforme o caso - artigo 129 e §§ 1º. e 2º.), Estelionato (artigo 171, CP) e eventual Associação Criminosa (artigo 288, CP) quando a atuação é institucionalizada ou perpetrada por grupo criminoso formado por três ou mais pessoas. Em todos os casos, os crimes seriam agravados nos termos do artigo 61, II, “a” (motivo torpe); “d” (meio insidioso e cruel); “g” (violação de dever inerente à profissão); “h” (vítima enferma e/ou eventualmente criança, mulher grávida ou idoso) e ainda, eventualmente, “b” (para assegurar a vantagem de outro crime, quando a lesão e/ou constrangimento estiverem conexos ao estelionato). Frise-se que, ainda que a conduta seja institucionalizada por entidade médica e/ou hospitalar, não será viável a responsabilização criminal da pessoa jurídica, a qual somente é prevista em nosso ordenamento no que tange aos crimes ambientais (inteligência do artigo 225,§ 3º., CF c/c artigo 3º., da Lei 9.605/98). 4. Conclusão Não há exagero em afirmar que os dilemas e questões que surgem no final da vida foram fundamentais para o advento da bioética e de outras matérias ligadas à humanização da medicina. Entende-se que o ordenamento jurídico brasileiro, ao não recepcionar a prática da eutanásia e do suicídio assistido, conforme ocorre em alguns modelos de Direito Comparado, está imprimindo um critério interpretativo coerente com a conformação de nosso Estado Constitucional. Conforme leciona Cambi (2009, p. 414),
havendo mais de um modo de interpretar a Constituição, deve-se optar por aquele que melhor concretize o valor dignidade da pessoa humana. Assim, se uma regra jurídica puder ser interpretada de mais de uma forma, deve-se escolher aquela que esteja em maior conformidade com a dignidade humana, excluindo, por outro lado, exegeses que contrariem ou não acolham integralmente tal valor jurídico. A dignidade humana é a premissa antropológica do Estado Constitucional e o conceito chave de Direito Constitucional. Não pode haver Estado e, muito menos, Estado de Direito Constitucional sem se fazer referência à pessoa humana, porque a pessoa é um fim em si mesmo, não um meio para se conseguir um fim, devendo o Estado estar a seu serviço, não o inverso”.
Entretanto, as expressões “dignidade humana” ou “pessoa humana” podem ter seus significados moldados de diversas formas, lembrando a advertência de Miles de que existe um provérbio que diz que “até o Demônio pode citar as Escrituras” (MILES, 2002, p. 47). Por isso é importante manter sempre um referencial teórico de pessoa humana e, consequentemente, de sua dignidade especial, tendo em vista seu conteúdo corporal, psíquico e espiritual e jamais permitindo sua redução a meio ou a coisa. É no seio desse referencial antropológico que à pessoa humana moribunda não se pode estender a morte, mas sim a mão na jornada da finitude em uma conduta de cuidados “eficientes e amorosos”, conforme destaca Floriani (2011, p. 104), fazendo referência a Cicely Saunders. No Congresso Direito e Fraternidade 2013, realizado na cidade de São Paulo-SP, debateu-se sobre o tema do “Princípio da Fraternidade no Direito” como “instrumento de transformação social”. No texto-base do encontro, há manifestação destacável de Carlos Augusto Alcântara Machado, dando ênfase ao teor do Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, onde “o constituinte originário adjetivou o vocábulo sociedade, qualificando-o como fraterna. Não se contentou o legislador-mor em fornecer as bases de uma sociedade politicamente organizada e juridicamente institucionalizada. Foi mais além: comprometeu-se com a edificação de uma sociedade fraterna” (PIERRE et all., 2013, p. 68). Mas, a verdade é que, desde que os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” ganharam,
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especialmente a partir da Revolução Francesa de 1789, grande relevância no cenário jurídico e social, se tem demonstrado muita preocupação com a liberdade e a igualdade e muito, muito pouco se tem realmente focado na questão da fraternidade. Certamente, este é um tema a ser repensado no mundo jurídico, mediante a busca de não somente fazer menção à fraternidade em textos legais, mas reforçála enquanto categoria jurídica efetiva. Comunga-se da conclusão sobre a urgência de que a disciplina de cuidados paliativos passe a fazer parte obrigatória das grades curriculares das graduações dos profissionais de saúde (FLORIANI, 2011, p. 94). Assim também é imprescindível que as redes hospitalares públicas e particulares passem a investir em estrutura e formação de cuidados paliativos baseados no modelo Hospice, a fim de proporcionar uma vivência digna da própria morte às pessoas. Este tema do fim da vida humana e sua dignidade é um daqueles em que o Princípio da Fraternidade pode ensejar grandes transformações sociais. Referências BOFF, L. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004. CABETTE, E. L. S. Eutanásia e Ortotanásia. Curitiba: Juruá, 2009. _______. Comentários ao Novo Código de Ética Médica. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. CABRERA, J. A ética e suas negações. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. CAMBI, E. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. São Paulo: RT, 2009. CAMUS, A. O mito de Sísifo. Trad. Mauro Gama. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. CARVALHO, G. M. de. Aspectos jurídico-penais da eutanásia. São Paulo: IBCCrim, 2001. COETZEE, J. M. A vida dos animais. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. DERRIDA, J. Do Espírito. Trad. Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1990. DURANT, G. A bioética. Trad. Porphirio Figueira de Aguiar Neto. São Paulo: Paulus, 1995. FERRY, L. A nova ordem ecológica. Trad. Luís de Barros. Lisboa: ASA, 1993. FIELD, M. J.; CASSEL, C. K. Approaching Death: improving care at the end of life. Washington: Institute of Medicine, 1997. FLORIANI, C. A. Moderno Movimento Hospice. Rio de Janeiro: Publit, 2011. GUILLEBAUD, J. C. O Princípio de Humanidade. Trad. Ivo Stornilo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008.
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BARACK OBAMA: o (inter)discurso majestático de investidura presidencial
Márcia Rita Rodrigues Costa Chini1
1. Introdução Alguns linguistas tentam descobrir o que está por trás das palavras que os candidatos políticos escolhem para materializar seus discursos e que perfil se pode traçar a partir daí. Para compreender o discurso político proferido efusivamente por Barack Obama, em sua posse, é importante ressaltar em que cenário sociopolítico se encontravam os Estados Unidos da América. O período que antecede ao mandato presidencial de Barack Hussein Obama foi marcado por uma avassaladora crise socioeconômica. Esse período crítico de 2007/2008 reacendeu o debate sobre a “governança” global e a hegemonia americana no cenário internacional. O sistema capitalista estava, pois, sofrendo sua maior crise desde 1929. Essa crise abalou os alicerces econômicos e sociais, especialmente os do centro do capitalismo (EUA e Europa). A sua expressão máxima foi presenciada nos EUA com a eclosão da crise do subprime2. Excesso de gastos, sem lastro real em ganho real, endividou por longo período a população dos países atingidos pela primeira crise econômica do século XXI, que, desde então, passou a consumir dentro dos limites de seus ganhos, deixando como rastro a paralisia do mercardo interno cujo sucedâneo imediato foi o vasto contingente de desempregados e o consequente crescimento da tensão social. O discurso de Barack Obama foi materializado em circunstâncias reais em face das quais se questionava: Como o contexto histórico no qual os EUA estavam inseridos se deu no discurso? Que papel o Estado deveria ter para contornar a crise sociopolítica e econômica? Quem seriam os aliados e opositores nesse projeto de mundanças? Que mensagem seria designada àqueles que se opusessem a esse projeto? Quais foram as estratégias discursivas utilizadas para abordar a população norteamericana? A natureza do discurso político, consoante Charaudeau (2006), tem como fundamento a sobreposição entre linguagem e ação. Na visão do estudioso, o discurso político funciona na confluência de discursos de ideias e discursos de poder (verdade e possibilidade), pensamento e ação. Ele afirma que “todo político sabe que lhe é impossível dizer tudo, a todo momento, e dizer as coisas exatamente como ele as pensa ou concebe, pois suas palavras não devem atrapalhar sua ação.” (CHARAUDEAU, 2006, p. 104 e105). Na mesma esteira de pensamento, Charaudeau e Maingueneau ([1989] 2008, p.168) ressaltam que “o discurso é a utilização, entre os homens, de signos sonoros articulados, para comunicar seus desejos e opiniões sobre as coisas”. Ninguém pode se apropriar das palavras, atribuindo a elas um único sentido. Elas somente significam pela história e pela língua. O sujeito não é o senhor de suas palavras: o seu discurso se articula com outros tipos de discurso. Sendo assim, podemos concluir que o sentido não existe em si, mas ele se constitui a partir 1 Professora de Língua Inglesa na Escola de Especialistas de Aeronáutica. Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Taubaté. 2 Termo empregado para designar uma forma de crédito hipotecário (mortgage) para o setor imobiliário, surgida nos Estados Unidos e destinada a tomadores de empréstimos que representam maior risco.
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das posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico de produção de palavras. “As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.” (BAKHTIN, 1992, p. 41). Sendo assim, por meio dessa perspectiva da linguagem como atividade social, pois sem ela seria impossível que o ser humano interagisse com o seu meio, que o presente artigo tem por objetivo compreender, por meio de análises do discurso, como o primeiro discurso de posse do presidente Barack Obama foi produzido, considerando o momento sócio-histórico em que ele foi proferido. As seguintes perguntas foram levantadas para direcionar essa análise: 1) Como se revela o primeiro discurso de posse do presidente eleito Barack Obama diante de uma América visivelmente fragilizada? ; 2) Que efeitos de sentido podem ser produzidos por meio da fala de Obama? Este trabalho propõe uma reflexão acerca dos sentidos evocados no primeiro discurso de posse de um presidente de um país que detém a hegemonia em termos econômicos, culturais, militares e, principalmente, políticos, levando em consideração todo o cenário sócio-histórico e político em que se encontravam os Estados Unidos da América. A fim de realizar essa análise, foram utilizados recortes do primeiro discurso de posse do presidente eleito Barack Obama. Como referencial teórico, foram usados alguns conceitos da teoria da Análise do Discurso de linha francesa de filiação pecheutiana; formação ideológica e discursiva; posicionamento (para Análise do Discurso diz respeito à instauração e à conservação de uma identidade enunciativa); memória discursiva; e condições de produção. 2. Pressupostos Teóricos 2.1. Algumas considerações sobre Análise do Discurso A Análise do Discurso (doravante AD) se constitui como uma proposta de interpretar novos métodos de leitura, considerando-se a complexidade do objeto discursivo no qual convergem a língua, o sujeito e a história. Há que se ressaltar a relação intrínseca entre texto, contexto e ideologia que constitui o cerne da AD. Segundo Orlandi (2000), por meio do discurso, podemos observar as relações entre a ideologia e a língua, lugar em que se podem analisar os efeitos do jogo de língua na história e os efeitos da história na língua, o que nos possibilita compreender como elementos linguísticos possuem sentidos e como o sujeito se constitui. No procedimento da análise, devemos procurar remeter os textos ao discurso e esclarecer as relações destes com a ideologia. Entende-se que discurso é um texto que deve ser compreendido em seu contexto, e que exprime uma ou mais relações sociais. O discurso pressupõe um sujeito que o emite utilizando uma linguagem historicamente dada, e que assim procura interpelar um ou mais sujeitos que o recebem com o fim de desconstruir uma realidade histórico-discursiva. Nessa perspectiva, a linguagem passa a ser concebida como prática social em que a exterioridade lhe é constitutiva, e o sujeito, como “lugar de significação historicamente constituído” (ORLANDI, 2000, p. 37). A AD analisa o discurso levando em consideração o relacionamento das materialidades discursivas com a História, avaliando as condições de produção em que esse texto ocorre. Conforme afirma Orlandi (2000, p. 70), “compreender como o texto funciona, como ele produz sentidos, é compreendê-lo enquanto objeto linguístico-histórico, é explicitar como ele realiza a discursividade que o constitui.” A AD é, portanto, o estudo do processo pelo qual o discurso foi concebido, a percepção de sua historicidade. Analisar a materialidade de um discurso num texto significa distanciar-se de sua forma pronta e terminada e buscar os dizeres que, embora negados, afloram na superfície discursiva, mesmo que à revelia do sujeito. É trilhar o caminho pelo qual o discurso se materializa na estruturação do
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texto. Durante esse trajeto, o analista se vê no desafio de passar da superfície linguística (material bruto coletado) para o objeto discursivo, passagem que requer o entendimento do processo de enunciação, bem como o da materialidade linguística. Sendo assim, podemos dizer que o texto não se vale simplesmente por sua estrutura linguística, mas sim pelo seu teor discursivo, remetendo-se à memória histórica cujos elementos a ela pertencentes serão submetidos à análise. Segundo Gregolin (1995), o discurso é entendido como um dos steps do percurso de geração de sentido de um texto. É por meio do discurso que o sujeito da enunciação se manifesta e por meio dele se pode recuperar as relações entre o texto e o contexto sócio-histórico que o produziu. 2.2. Discurso e Ideologia “O DISCURSO é um suporte abstrato que sustenta os vários TEXTOS (concretos) que circulam em uma sociedade.” (GREGOLIN, 1995, p.17). Segundo a estudiosa, por meio da AD, podemos realizar uma análise interna (o que e como o texto diz) e uma análise externa (por que o texto diz o que ele diz). Portanto, analisar um discurso significa verificar em qual momento ele foi criado: quem e como o produziu, de que lugar e para quem o produziu. Essa análise será tecida utilizando o campo da língua e o campo da sociedade, esta apreendida pela história e pela ideologia. O discurso tem sua particularidade delineada na AD a partir da relação entre língua e história. A língua é, pois, conjugada com a história na produção de sentidos, constituindo, dessa maneira, a forma material da AD: materialidade linguístico-histórica. É nessa materialidade que se manifesta o interdiscurso (da memória), conjunto de formações discursivas. Segundo Dicionário de AD, “todo discurso é atravessado pela interdiscursividade, tem a propriedade de estar em relação multiforme com outros discursos.” (CHARAUDEAU; MAINGUENAU, 2008, p. 286). Por meio da interdiscursividade, podemos observar os efeitos materiais da língua. Pensar a língua enquanto forma material pressupõe compreendê-la como opaca, reconhecendo a transparência do sentido como um efeito ideológico. Sendo assim, o tripé língua-discurso-ideologia se fundamenta nas seguintes premissas: o discurso é a materialidade específica da ideologia, e a materialidade específica do discurso é a língua. Essa relação se complementa na medida em que “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido.” (ORLANDI, 2000, p. 17). Por meio do discurso é que se observa essa relação entre língua e ideologia, depreendendo como a língua produz sentidos por/ para sujeitos. Assim, analisar um discurso implica, inicialmente, tomá-lo como objeto teórico, ou seja, como objeto histórico-ideológico, produzido a partir de práticas sociais de linguagem e manifestado em sua forma material, “que é a forma encarnada na história para produzir sentidos” (ORLANDI, 2000, p. 19), portanto, essa forma, ao mesmo tempo, linguística e histórica. O sentido é, assim, determinado por essa relação do sujeito afetado pela língua e pela história. Conforme Orlandi (2000, p.49), “se o sujeito não sofrer os efeitos do simbólico, ou seja, se submeter à língua e à história, ele não se constituiu, não fala, não produz sentidos.” Nessa perspectiva, a linguagem passa a ser concebida como prática social em que a exterioridade lhe é constitutiva, e o sujeito como lugar de significação historicamente constituído. “Enquanto prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e a língua com a história para que haja sentido.” (ORLANDI, 2000, p. 48). Segundo Pêcheux ([1983] 1997), a relação entre a língua e o discurso se estabelece na medida em que a língua é pensada como sistema sintático passível de jogo, enquanto a discursividade é a inscrição de efeitos linguísticos materiais na história. É, portanto, partindo do lugar material que o analista compreende o funcionamento discursivo e, nessa perspectiva, vai trabalhar com os gestos de interpretação dos sujeitos – determinados por sua relação com a língua e a história – a fim de
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compreender como os efeitos de sentidos são produzidos. O sujeito é, para a AD, essencialmente ideológico e histórico, pois está inserido num lugar e tempo. Ele não é fonte absoluta do sentido, nem tampouco da origem do discurso. Ao contrário, o sujeito se constitui pela fala de outros sujeitos. Pode-se dizer que o sujeito é fragmentado, cindido, atravessado pela ideologia e pelo inconsciente; daí atribuir a ele o caráter heterogêneo. Para Orlandi (2000), o espaço da interpretação, no qual o autor se insere com seu gesto, e que o constitui como autor, provém de sua relação com a memória, isto é com o saber discursivo – o interdiscurso. A memória, quando pensada em relação ao discurso, é tratada como interdiscurso. “Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente (ORLANDI, 2000, p. 31). Pela noção de interpretação desenvolvida e pela consideração de que sujeito e sentido são constituídos pela ordem significante na história, percebem-se efeitos de sentidos construídos discursivamente nas relações entre sujeito, sentido, língua, história e ideologia (ORLANDI, 2000). É com base nessa visão de sujeito perpassado por dizeres que serão abordadas, a seguir, a questão do interdiscurso e as condições de produção desse discurso. 2.3. Condições de produção e memória discursiva Delinear a AD significa tentar entender e explicar como se constrói o sentido de um texto e como esse texto está concatenado com a história e a sociedade que o produziu. O discurso é um objeto, ao mesmo tempo permeado pelo linguístico e histórico; entendê-lo requer a análise desses dois elementos conjuntamente. Partindo dessa confluência, o discurso se define na/pela determinação da língua pela história, e o sujeito, constituído na/pela lingua(gem) é afetado duplamente. Assim, analisar um discurso implica, inicialmente, tomá-lo como objeto teórico, ou seja, como objeto histórico-ideológico, produzido a partir de práticas sociais de linguagem e manifestado em sua forma material “que é a forma encarnada na história para produzir sentidos” (ORLANDI, 2000, p. 19), portanto, forma esta ao mesmo tempo linguística e histórica. Reconhecer que há uma historicidade inscrita na linguagem implica compreender que não existe um sentido literal e que o sentido não pode ser qualquer um, visto que toda interpretação é regulada por condições de produção específicas. “As palavras remetem a discursos que derivam seus sentidos das formações discursivas, regiões do interdiscurso que, por sua vez, representam no discurso as formações ideológicas.” (ORLANDI, 2000, p. 80). Pode-se dizer que o orador, de certo modo, pode experimentar o lugar do ouvinte a partir de seu lugar de orador: sua habilidade de imaginar, podendo “prever” onde esse ouvinte o “espera”. O sujeito discursivo é pensado como “posição” entre outras. Num campo discursivo, “posicionamento” define mais precisamente uma identidade enunciativa forte, um lugar de produção discursiva bem específico (discurso político, por exemplo), as operações pelas quais uma identidade enunciativa se instaura e se conserva num campo discursivo. Do ponto de vista discursivo, o que existe é a relação entre língua e objeto que é sempre atravessada por uma memória do dizer, e essa “memória” é que determina as práticas discursivas do sujeito. Em outras palavras, para a AD, o dizer do sujeito é determinado por outros dizeres, ou todo discurso é determinado pelo interdiscurso. De acordo com Maingueneau (2008), uma formação discursiva é tomada em uma “dupla memória”: a externa e a interna: esta refere-se aos enunciados produzidos anteriormente no interior da mesma formação discursiva, aquela coloca-se na filiação de formações discursivas anteriores. Isto quer dizer que o discurso apóia-se numa Tradição, entretanto, aos poucos, ele cria sua própria Tradição. Podemos dizer que, no campo da AD, o discurso produz sentidos a partir de outros sentidos já cristalizados na sociedade. Pode-se conceber, então, memória discursiva como sendo esses sentidos já cristalizados, legitimados na sociedade e que serão reavivados no intradiscurso.
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A AD busca trabalhar com os processos de produção do sentido e de suas determinações histórico-sociais. Mais do que um “dado” linguístico, o texto, na visão da AD, é reconhecido pelo “fato” discursivo, trazendo à memória para a consideração dos elementos submetidos à análise. Podemos considerar que “o discurso é uma dispersão de textos e o texto é uma dispersão dos sujeitos”. (ORLANDI, 2000, p. 70). Em conformidade, Foucault (1987) diz que é na dispersão de textos (e não na unidade) que se constitui um discurso; a relação com as formações discursivas em suas diferenças é elemento fundamental que constitui o que estamos chamando de historicidade do texto. “Em um texto não encontramos apenas uma formação discursiva; pois ele pode ser atravessado por várias formações discursivas que nele se organizam em função de uma variante.” (ORLANDI, 2000, p. 70). O discurso é um processo aberto, isto é, em curso. Ele não é igual a um texto, mas uma prática. Nesse sentido, “o discurso é considerado no conjunto das práticas que constituem a sociedade histórica, sendo que a prática discursiva é considerada uma prática simbólica.” (op. cit. p.71). À luz da AD, cabe ao analista compreender como um objeto simbólico produz sentidos: o modo de construção, a estruturação, o modo de circulação e os diferentes gestos de leitura que constituem o sentido do texto. O analista só poderá compreender o modo sui generis3 de um discurso político se, no aprofundamento de sua análise, ele atingir o processo discursivo. Na apreensão desse processo, ele verificará as formações discursivas e sua relação com a ideologia, constituindo, assim, os sentidos do dizer. No caso do primeiro discurso de posse do presidente eleito Obama, verificamos, na rede de filiação de sentidos e suas relações desenhadas pela ideologia, o compromisso desse dizer com a memória da hegemonia, do poder, do domínio, das conquistas, da honra, até mesmo da dor, como um efeito que o próprio Obama pode até (des)conhecer, mas que está intimamente presente em sua fala. 3. Procedimentos metodológicos O corpus desta pesquisa é constituído pelo discurso em solenidade de posse, proferido em 20 de janeiro de 2009 pelo presidente Barack Obama, materializado em texto. A escolha desse corpus (recorte) de estudo, sob a rubrica do discurso político, deu-se pelo interesse no modo como ocorre a construção de um discurso político, levando em consideração em que condições ele foi produzido, como ele foi materializado e que efeitos de sentido poderiam ser provocados entre os interlocutores, reconhecendo que esse processo de constituição no discurso político é bastante complexo e heterogêneo, uma vez que são muitas as categorias a serem analisadas para composição da cena enunciativa. 4. Análise do corpus
“Meus co-cidadãos: estou aqui na frente de vocês me sentindo humilde pela tarefa que está diante de nós, grato pela confiança que depositaram em mim [...]. Quarenta e quatro americanos já fizeram o juramento presidencial. As palavras já foram pronunciadas durante marés crescentes de prosperidade e nas águas[...]. Ainda assim, com muita frequência o juramento é pronunciado em meio a nuvens que se aproximam e tempestades ferozes. Nesses momentos, a América seguiu em frente não apenas devido à habilidade e visão daqueles em posição de poder, mas porque Nós, o povo, continuamos fiéis aos ideais de nossos fundadores e aos documentos de nossa fundação.”
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Sui generis: de seu próprio gênero
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Neste recorte, o sujeito-presidente inicia seu discurso chamando a atenção do seu povo para que esse resgatasse de suas memórias o preceito magno daquele povo: “ideais de nossos fundadores e aos documentos de nossa fundação”. O uso da primeira pessoa do plural “We” pode evocar o sentido de uma aproximação do sujeito-presidente recém-eleito com seu povo, fazendo com que eles sejam importantes em seu discurso, de possivelmente estarem juntos em uma força-tarefa. Na eloquência de seu discurso, seu dizer o representa como sendo uma pessoa humilde, subserviente - aquele que está a serviço de outrem, consciente dos embrolhos nos quais os Estados Unidos estavam envolvidos. Buscando um “espírito de unidade” com seu povo, ele os conclama, na certeza de que, se todos estivessem unidos num único propósito, eles (nós) reconstruiriam aquele país e, assim, escreveriam uma nova história:
“Chegou a hora de reafirmar nosso espírito de resistência para escolher nossa melhor história!” “Não existe uma América liberal e outra conservadora; existem os Estados Unidos da América.”
Fazendo uma viagem pela história, verificamos que a origem do uso dos pronomes de primeira pessoa do plural está atrelado à condição expressa pelos antigos reis de Portugal, em que eles, na tentativa de amenizar a distância que os separava do povo, utilizavam um estilo modesto, fazendo uso dos referidos pronomes. Até que no início do século XVI, com D. João III, teve início o absolutismo real, fato que culminou na retomada do uso da primeira pessoa do singular. Todavia, os altos prelados da Igreja ainda continuavam fazendo uso do pronome “nós”, como forma de humildade e solidariedade para com os fiéis. Dessa forma, mediante o crescimento daquela instituição em poder e bens, tal uso passou a “soar” como uma atitude contrária à modéstia, denotando assim um instinto de grandeza – razão pela qual o plural de modéstia é também chamado de plural majestático. (cf. Língua Brasil) Como consequência disso, concluímos que os termos e vocábulos (elementos linguísticos) utilizados na produção de um texto nem sempre têm seu significado explicitado naquele enunciado. O léxico pode ganhar uma significação própria, dependendo do contexto em que foi empregado. As palavras ganham sentido de acordo com a formação discursiva à qual pertencem. Sempre que se interage por meio da língua, ocorre produção de enunciados dotados de certa força, que irão produzir no interlocutor determinado(s) efeito(s). É o exterior perpassando toda a linguagem. Há vários trechos em que, direta e explicitamente, o sujeito-presidente (re)produz o discurso da soberania:
“Ao reafirmar a grandeza de nossa nação, compreendemos que a grandeza nunca é dada: ela deve ser conquistada.”; “Nós ainda somos a mais próspera e poderosa nação da Terra.” “Nossos trabalhadores não são menos produtivos [...]”. “Nossas mentes não são menos inventivas [...].” “Nossa capacidade permanece inalterada. Mas nossa época de proteger patentes, de proteger interesses limitados e de adiar decisões desagradáveis – essa época já passou. A partir de hoje, temos de nos levantar, sacudir a poeira e começar de novo o trabalho para refazer a América.”
Essas expressões em seu discurso permitem estabelecer um efeito de sentido que provoca o movimento de adesão ao discurso da hegemonia, da arbitrariedade no sentido de determinar a construção de sua própria história – de seu povo. Postas assim na materialidade da língua, no intradiscurso (ORLANDI, 2000), as palavras do
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sujeito-presidente parecem remeter a uma formação discursiva que anseia pelo “resgate da estima”. Assim, o slogan: “Sim, nós podemos”, utilizado inclusive em suas campanhas, evoca o princípio de que o futuro daquele país está nas mãos do povo americano. Esse povo, embora ferido, abatido, fragilizado pelo envolvimento em tantas guerras e invasões durante os dois mandatos do até então presidente George W. Bush, tem o “poder hegemônico” de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Em “Sim, nós podemos”, o sujeito-presidente tinha a convicção de que a história de muitos cidadãos americanos deixou de ser escrita, ou ficou incompleta e, por isso, vai ao encontro desse povo quase que incrédulo, acolhe-o e, assim, (re)valoriza a América. Ele tem a plena certeza do quanto o povo dos Estados Unidos está faminto por essa mensagem de unidade. Estabelece-se um jogo de imagens dos papéis que cada um desempenha neste momento. Dessa forma, conforme afirma Pêcheux, “as palavras, expressões, proposições recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas [...] diremos que os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações ideológicas que lhes são correspondentes.” (PÊCHEUX, [1975] 1988, p. 160 e 161). Há também em seu discurso o grande desejo de um progresso capaz de tornar a sociedade mais justa e igualitária, dessa forma, expressando a vontade de eliminar os problemas vividos no cotidiano:
“Neste dia, nos reunimos porque escolhemos a esperança no lugar do medo, a unidade de propósito em vez do conflito e da discórdia.” “Neste dia, nós viemos proclamar um fim aos conflitos mesquinhos e falsas promessas, [...] a América deve desempenhar seu papel de nos conduzir a essa nova era de paz.”
O discurso da comoção proferido pelo sujeito-presidente parece suscitar, em seu povo, um sentimento de esperança que, a partir daquele momento, estará inundando o seu país. A maneira com que ele se posiciona diante de seu povo permite com que façamos uma leitura “heroica” desse personagem. “Essas formações ideológicas determinam o que pode e deve ser dito, a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada” (HAROCHE; HENRY e PÊCHEUX, 1971, p. 102). Em alguns excertos, ao tentar resgatar a honra da nação americana, o sujeito-presidente parece, entretanto, apagar, na superfície linguística de seu dizer, toda uma memória discursiva relativa à raça negra, ao período da escravidão, aos caminhos diferentes que percorreram os negros e os brancos nas Américas.
“ao reafirmar a grandeza de nossa nação, compreendemos que a grandeza nunca é dada. Ela deve ser conquistada. Nossa jornada nunca foi feita por meio de atalhos [...] Foi por nós que eles empacotaram suas poucas posses materiais e viajaram pelos oceanos em busca de uma nova vida. Foi por nós que eles trabalharam nas fábricas precárias e colonizaram o Oeste; suportaram chicotadas e araram terra dura. [...] Eles viram a América como sendo algo maior do que a soma de nossas ambições individuais [...]. Esta é uma jornada que continuamos hoje. Nós ainda somos a mais próspera e poderosa nação da Terra.”
No ponto máximo da análise, avaliamos em quais condições esse discurso político foi produzido e que efeitos de sentido ele poderia suscitar uma vez que se esperava que o sujeito-presidente materializasse o discurso da esperança, da mudança, marcado pelo início de uma nova etapa. Embora seu discurso reforçasse os valores da hegemonia americana e a (re)construção de uma América “forte”, “ousada”, “grandiosa” , ao mesmo tempo evocava toda uma memória discursiva relativa
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a um passado marcado por dores, sofrimentos, humilhações, materializada nos dizeres suportaram chicotadas e araram terra dura, que remetem, inevitavelmente, a uma situação de escravidão, a qual marca justamente o período que vai de encontro ao propagado no discurso de posse e que, por essa razão, ele tenta apagar. Por mais que, por um efeito ideológico, os enunciados de seu discurso apontassem para um rompimento com a era de seu antecessor, George W. Bush, na certeza de que as estratégias deveriam ser diferentes, materializado, por exemplo, em Mudanças, nós podemos!, que expressa esse desejo do sujeito de uma nova era para o país, ao se recorrer ao interdiscurso, outros efeitos de sentidos são produzidos: uma era nova não pode ser retomada por meio de modelos arcaicos, que mancharam a história longínqua da formação dos Estados Unidos. A esse respeito é bastante pertinente a afirmação de Orlandi (2000, p.95) de que “ a realidade se constitui nos sentidos que, enquanto sujeitos, praticamos.” Sendo assim, considera-se que a linguagem é uma prática porque pratica sentidos, intervém no real. O sentido do discurso se faz na e pela história. A ideologia reúne sujeito e sentido. Desse modo, o sujeito se constitui e o mundo se significa pela ideologia. Em sua fala marcada pela ideologia na perspectiva da mudança político-social, ele diz:
“Por que o mundo mudou e nós temos que mudar com ele. Assim, para todos os povos e governos que estão nos assistindo hoje, da maior das capitais à pequena vila onde meu pai nasceu: saibam que a América é ‘amiga’ de cada nação e de todo homem, mulher e criança que procura um futuro de paz e dignidade, e que estamos prontos para liderar mais uma vez”.
É notória a indissociabilidade dos aspectos linguístico e histórico-social em que esse discurso se materializa, já que a língua só faz sentido porque se inscreve na história. Pêcheux (2005) define discurso como “efeitos de sentidos” entre os interlocutores – processos de produção de sentido de um discurso frente às determinações histórico-sociais. Ao declarar que o mundo mudou e nós temos que mudar com ele e que a América é ‘amiga’ de cada nação e de todo homem, mulher e criança, o sujeito-presidente afirma, ainda que no plano inconsciente, que os Estados Unidos da América não são, ou pelo menos não foram, uma nação amiga dos povos aos quais ele se dirige. Considerando-se as condições de produção em que esse discurso político foi produzido, como já abordado na introdução deste artigo, tornam-se compreensíveis os valores como justiça, igualdade, cidadania, liberdade, dignidade que emergem na superfície linguística. Entretanto, quando Obama, sobredeterminado por seus saberes, crenças e princípios, imputa a si mesmo “o lugar”, “o papel” e, por fim, “o comportamento” daquele que mudaria a história, escrevendo a sua própria:
“Se ainda há alguém que duvida que os Estados Unidos sejam o lugar onde todas as coisas são possíveis, que ainda duvida que o sonho de nossos fundadores esteja vivo em nosso tempo, que ainda questiona o poder da nossa democracia, aqui está a resposta.” ,
ele, pela memória construída no acontecimento em questão, personifica a resposta que deveria eclodir por entre a multidão na figura dele próprio: Se ainda há alguém que duvida que os Estados Unidos sejam o lugar onde todas as coisas são possíveis (até, o que seria impossível até então, um negro chegar à presidência da república dos EUA) ... aqui está a resposta.
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5. Considerações finais As leituras e interpretações feitas foram de grande importância para a formação de um conhecimento acerca dos fundamentos da análise de um discurso político. Convém assinalar que a análise aqui efetuada constitui uma interpretação a respeito da maneira como o presidente Barack Obama proferiu seu primeiro discurso de posse em 20 de janeiro de 2009. Entretanto, não podemos refutar que elas podem ser passíveis de discussão e não esgotam as possibilidades de outras leituras. Tendo por base os pressupostos teóricos da AD de linha francesa pecheutiana, foi possível, por meio da transcrição do discurso de posse do presidente Barack Obama, levantar hipóteses sobre o que estava sendo abordado em seu discurso de posse. Como visto, o discurso é sempre efeito de sentidos entre os sujeitos envolvidos, sob condições de produção específicas. Assim, não há sentido a priori, mas sim um construto, percepção ou pensamento formado a partir da combinação de lembranças com acontecimentos atuais, da relação na língua e na imagem da historicidade e do sujeito. O momento político-econômico se constitui como uma transição entre um modelo de governo que se mostra decisivo para delinear os novos rumos de sua política. A responsabilidade posta sobre os ombros de Barack Obama é notória, haja vista a situação em que se encontravam os Estados Unidos. Obama não seria um presidente qualquer – afinal era o primeiro presidente negro da história dos EUA. Naquele momento ele escreveria sua própria história. Seu discurso deveria, pois, estar carregado de valores concisos, morais capazes de estabelecer a unidade da nação, e promover uma maneira de resolver os problemas instaurados naquele país, trazendo, assim, um sentimento de esperança e, principalmente, de mudança para os Estados Unidos da América. Referências BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. CHARAUDEAU, P. Discurso Político. São Paulo: Contexto, 2006. CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, [1989] 2008. GRANTHAM, M. R. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas (1975). In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. L. (orgs). Michel Pêcheux e Análise do Discurso: uma Relação de Nunca Acabar. São Carlos: Charaluz, 2005. GREGOLIN, M. R. V. Análise do Discurso: conceitos e aplicações. Revista Alfa, São Paulo, v.39, p. 13-21, 1995. Disponivel em: < http://seer.fclar.unesp.br/alfa/issue/view/294 > Acesso em 14 jun. 2013. FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber. 3ª edição. Tradução brasileira de Baeta Neves, Petrópolis (RJ): Vozes. 1987. HAROCHE, C.; HENRY, P.; PÊCHEUX, M. La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. Langages. Paris, número 24, 1971, p. 93-106. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes,
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2000. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcineli Orlandi et al. Campinas: Editora da Unicamp, 1988. _______. Análise Automática do Discurso (AAD – 69). In: GADET, F.; HAK, T. (orgs). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1997. QUEIROZ, L. F. Fórmulas de modéstia e majestade + Multi. Língua Brasil, Curitiba, n. 5. Dez. 2011. Disponível em: < http://www.linguabrasil.com.br/nao-tropece-detail.php?id=111> Acesso em 14 jun. 2013.
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PICHAÇÕES E GRAFITES: linguagens ocultas dentro da sociedade
Stephany da Silva Souza Marinho1 Rafael Isola Lanzoni2
1. Introdução O presente artigo visa a fazer uma análise interpretativa de dizeres pintados em muros, paredes e fachadas de edifícios, mais conhecidos como “pichações”, termo utilizado para denominar essas manifestações artísticas cotidianas. De acordo com a constituição brasileira, a pichação é considerada um crime contra o meio ambiente3. Nosso objetivo, porém, não é exatamente questionar a ilegalidade do ato, mas analisar o papel da pichação em nossa sociedade. Desse modo, nossa análise busca interpretar o sentido desse dizeres e estimar o alcance buscado pelos “pescadores”4, autores desses dizeres. Algo que muitas vezes parece ser agressivo pode ter uma interpretação outra ao ser analisado por outro ponto de vista: não exatamente como agressivo, mas sim indignado. Tal indignação busca alcançar a todos aqueles que passam despercebidos por determinado local. Por terem o desejo de chamar a atenção da sociedade, os pichadores utilizam-se de locais muitas vezes extravagantes. Os dados que embasam a pesquisa que resultou no presente artigo foram constituídos por dois tipos: fotografias de pichações e entrevistas com pichadores. Foram fotografadas pichações em muros da cidade de São Bernardo do Campo, São Paulo, no período correspondente ao segundo semestre de 2014. Nesse mesmo período, foram entrevistados quatro pichadores, autores das pichações fotografadas. Seus depoimentos foram transcritos e alguns compõem o presente artigo, como veremos. 2. O que é a pichação? Para a sociedade leiga no assunto, a pichação não passa de uma forma de vandalismo e poluição visual. Pode-se dizer que essa interpretação considera apenas o trato dado pelos pichadores ao suporte material em que os dizeres são escritos, como muros, paredes, edifícios etc. Podemos dizer, também, que a rejeição à pichação tem raízes em puro preconceito, pois apoia-se em um conceito formado sem o conhecimento exato de seus objetivos e modos de funcionamento. Para pensarmos sobre essa separação que parece haver entre o que é dito pela pichação e o seu suporte material, podemos lembrar o que disse Orlandi (2007):
Não se pode pensar a linguagem como se ela estivesse separada do seu meio material, das suas condições, da conjuntura em que aparece. Ora, se a cidade é um espaço 1 Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito FAPAN - UNIESP, São Bernardo do Campo, SP. 2 Graduando em Direito pela Faculdade de Direito FAPAN - UNIESP, São Bernardo do Campo, SP. 3 Artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais nº 9.605/98 4 Resguardamo-nos o direito de chamar de “pescadores” os artistas de pichações, sem nenhuma intenção de ofensa, por já termos pertencido ao meio e aos grupos por eles formados.
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social politicamente dividido, um espaço em que o público está rarefeito, isto estará presente também nas manifestações de linguagem que este espaço suporta. Sendo a linguagem um fato social, a própria escrita, a organização da linguagem tem a ver com o modo como, materialmente, este espaço de significação se organiza.
Para as pessoas do meio, os pichadores, o movimento reúne, dentro de uma única frase ou palavra, uma imensa insatisfação com a sociedade. Por ser algo que parte do interior de cada um desses autores, a pichação é tida como uma manifestação artística que busca mostrar à sociedade a indignação e fazer com que ela se preocupe com o próprio cotidiano. O ato de pichar também é visto por quem o faz como uma maneira de marcar território: onde você picha ninguém pode pichar por cima; é uma questão de respeito mútuo, tida como regra entre os pichadores. Além de marcar território, também há a competição entre pichadores para estabelecer quem deixa sua marca nos locais menos acessíveis e com menor incidência de serem pintados e terem sua marca apagada. Há também o desafio levado em questão quando um proprietário pinta sobre sua marca. Segundo o depoimento de um pichador5, esse desafio é parte do funcionamento da pichação: “É assim que funciona: eu picho; ele pinta. Aí a gente vê quem tem mais tinta”. Esse desafio constitui-se num lugar específico, entre o pertencer e o não pertencer. Segundo Orlandi (2007), a pichação pode ser caracterizada como um lugar de resistência. Para ela, “o sujeito não pode resistir à língua sem ser marginalizado ao cair fora da norma” (ORLANDI, 2007, p. 11). 3. A linguagem da pichação Os dizeres das pichações fazem parte de uma linguagem individual e muitas vezes são ininteligíveis para quem os enxerga a olho nu. Isso porque as palavras, além de exibirem ortografias não convencionais, podem não apresentar concordância entre si. Além disso, as letras são geralmente garranchadas, o que dificulta muito a interpretação dos dizeres. Há justificativas para as letras garranchadas. A mais frequente é que, sempre que picham, os pichadores estão cometendo um crime; logo, o fazem rapidamente, pois não há tempo para o capricho. A linguagem utilizada pouco tem a ver com a norma culta. Os dizeres da pichação são escritos na língua das ruas; uma língua tida socialmente como errada. Há aí, porém, um equívoco, pois a pichação se manifesta através da língua oficial adaptada ao meio e, portanto, apresenta uma linguagem certa e adequada para os fins aos quais se propõe. Sobre a escrita das pichações, Orlandi (2007) argumenta:
O sujeito pichador de hoje não manda mensagens, ele se significa na criação de sua letra. Não reconhece/não se reconhece no regime da alfabetização, das letras distribuídas pela escola, na ortografia do certo/errado. O pichador elabora seu sistema e não se submete ao parâmetro do certo/errado, da norma escolar. Ele resiste com sua letra indecifrável, fazendo deslizar sua escritura, produzindo um efeito metafórico da letra, produzindo um sistema de escrita urbano.
Assim, os dizeres das manifestações nem sempre se fazem claros, inteligíveis e, por vezes, gentis, mas carregam em si as contradições sociais, marcadas por sua própria identidade. Em muitos casos, para se apreciar uma pichação, basta abrirmos os olhos para o lado sorridente da vida para enxergar as belas palavras de gentileza que nos cercam. 5 Considerando-se o caráter científico e educacional do presente trabalho e a ilegalidade da pichação, os pichadores entrevistados para esta pesquisa não se identificaram e, portanto, não terão seus nomes informados.
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4. Tipos de pichação Há diversos tipos de pichação. Cada tipo associa os dizeres ao seu objetivo. Por exemplo, a pichação mais conhecida é a da disputa de território. Normalmente, esse tipo de pichação utiliza frases ou palavras de impacto, visando a chamar a atenção da população. Um segundo tipo é a pichação poética. Os dizeres dessa pichação oferecem à sociedade não apenas a poesia, mas também tentam provocar a reflexão sobre os mais diversos temas através de frases de algum pensador. Por fim, há o grafite. Considerado a maneira mais bonita de pichação, o grafite oferece fotos e imagens desenhadas uma a uma. É a pichação feita através de desenhos e até mesmo de imagens famosas adaptadas. Dentro de cada modalidade, há ainda uma grande diversidade de expressões e uma gama de pichações ainda a serem desenvolvidas, para todos os gêneros e gostos. 5. Tipos de pichadores Segundo nossos entrevistados, há três tipos de pichadores. Eles se dividem por categorias de ousadia e coragem. Ao tipo mais básico, pertencem os pichadores de solo, classificados comumente como velha-guarda. São pichadores de muro e de paredes, conhecidos por não terem horários definidos para fazerem sua arte. O próximo grupo, um pouco mais ousado, é formado pelos pichadores de janelas. Esses, por sua vez, desejam que suas manifestações sejam mais sensíveis à percepção da sociedade. Eles invadem prédios e edifícios comerciais, penduram-se nas janelas e picham sua marca. São conhecidos também por se expressarem em bordas de viadutos. Os pichadores desse grupo se enquadram em uma categoria mais corajosa devido ao perigo que enfrentam ao invadirem propriedades privadas. O último e mais ousado grupo é composto pelos escaladores, pichadores de edifícios. Eles se penduram de cabeça para baixo para escreverem nos topos dos edifícios, mostrando sua superioridade entre os demais grupos de pichadores e grupos rivais. Há casos de morte, pois muitos acabam caindo diante de tal perigo. Entre essas modalidades, há opções para todos os tipos de gostos e níveis de coragem. Se traçarmos um paralelo à prática de esportes, vemos que, assim como o atleta, também o pichador mais corajoso sempre tem o maior reconhecimento. A dedicação do pichador à sua prática rapidamente o levará ao seu reconhecimento pelos demais. 6. Análise das imagens Trataremos, a seguir, de analisar alguns exemplos de pichações. A análise interpretativa que empreendemos neste estudo tem como objetivo “traduzir” os dizeres das pichações para a linguagem comum da sociedade. Isso porque, ao observar uma pichação, é comum que não haja, para o observador, o imediato reconhecimento de algum sentido naqueles dizeres e imagens. Porém, a pichação transborda sentidos. A escrita enigmática através da qual esses sentidos são veiculados tem como objetivo, conforme já mencionamos, chamar a atenção da sociedade, provocando reações. Vejamos, então, os dizeres das pichações. 6.1. CH e o Real
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Fig. 1: CH
Essa primeira figura ilustra uma pichação do tipo grafite, por ser desenhada de modo elaborado e cuidadoso. O CH é uma assinatura que aparece em muitos muros da região do ABC Paulista. Em relação ao número 014, acreditamos referir-se à data da pichação. Segundo João Cunha, ex-pichador e artista gráfico6, os pichadores “datam a pichação para ver quanto ela vai durar”. O ponto forte desse grafite é a pichação que o acompanha: “4 Real”. A inscrição “4 Real” pode sugerir, para o leigo, que se trata do preço de algo em reais, R$ 4,00. Porém, segundo nossos entrevistados, a inscrição “4 Real” concentra as informações sobre seus pichadores e seus objetivos. Especificamente, a inscrição significa que os autores são quatro garotos com visões completamente diferentes de realidades, respeitando-as mutuamente e reconhecendo que cada pessoa precisa de sua própria realidade para poder, a partir daí, ampliar sua visão de mundo. O “4 Real” traz quatro realidades das ruas, pois, nesse caso, são garotos que defendem as pessoas da rua, de skatistas a mendigos, entre outros; todos que, mesmo em condições precárias de vida, ainda podem contar com e receber a dignidade de outros. É possível afirmar, portanto, que, sem o apoio dessa reflexão através da análise interpretativa, não se imaginaria haver tamanha conscientização social em um simples desenho pichado em um muro qualquer da cidade. Isso quebra preconceitos e abre portas. 6.2. YO! e a ostentação
Figura 2: YO!
Com letras enormes e escritas em lugares amplos, a pichação ostentação busca demonstrar superioridade e marcar território. Neste caso, o YO! quer dizer “acorda!”. O termo YO não pertence ao léxico do português falado no Brasil e sugere, portanto, uma interpretação não explícita. Num primeiro momento, o termo parece não significar coisa alguma. Porém, a partir de uma 6 2015.
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Disponível em: <http://mundoestranho.abril.com.br/materia/quais-os-codigos-usados-na-pichacao>. Acesso em: 04 fev.
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percepção mais sensibilizada aos sons produzidos pelo termo, observamos que se assemelha a um grito estridente, alto e forte, como as dimensões de suas letras. A pichação, então, se constitui como um grito, um susto, um choque; choque de realidade na população que a vê. Segundo um dos autores dessa pichação, a proposta, além de marcar seu território em diversos locais da cidade, é que a inscrição perdure por muito tempo, tornando-se um susto constante para a sociedade desonesta. Denunciando que nem tudo é o que parece ser, a pichação tem claramente boas intenções, por trás de uma das formas mais explícitas de vandalismo na cidade. 6.3. Pichação e poesia
Figura 3: A pichação poética
Uma pichação poética é aquela que oferece dizeres para a reflexão. Não são tão abundantes na cidade como se poderia desejar, pois beneficiam os olhares com palavras e pensamentos para refletir. Classificam-se como pichações poéticas também aquelas que apresentam palavras de críticas e de elogios. Essas manifestações trazem consigo pedidos de moderação, ponderação. Podemos considerar que a moderação se faz extremamente necessária para uma vida em sociedade mais harmoniosa. A seguir, vejamos outra pichação poética.
Figura 4: A reflexão na pichação poética
Esta é claramente uma pichação poética, pois consiste em uma reflexão a respeito das reações da sociedade em relação aos sucessos e insucessos do indivíduo, parte dessa mesma sociedade. A reflexão proposta aponta a infidelidade da sociedade em relação ao indivíduo, colocando em questão a necessidade primeira de a sociedade satisfazer seu próprio ego. Movidas por tal satisfação, as pessoas aplaudem suas vitórias, veem-se e espelham-se no indivíduo; ao ovacionarem sua decapitação, demonstram que não são confiáveis nem leais.
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Na visão do autor da pichação acima, “a sociedade não passa de uma massa de manobra, movida até hoje por pão e circo”. Vejamos agora outra pichação que, situada no mesmo local, logo acima dessa que analisamos na figura quatro, parece complementá-la.
Figura 5: a crítica na pichação poética
Essa pichação apresenta vários desenhos. Alguns demonstram rejeição à sociedade, como a mão indicando o dedo do meio e a cabeça engolindo o braço de uma pessoa. Há, também, o desenho que identifica um skatista e outro, maior e central, de um rapaz, possivelmente um pichador, pela imagem de uma lata de spray em sua camiseta. O desenho do rapaz com uma máscara de gás no rosto é, no mínimo, intrigante. De acordo com os autores, os dizeres “Não respire fundo”, escritos bem ao lado da cabeça mascarada, referem-se à poluição moral presente na sociedade através de mentiras. A máscara estaria, portanto, protegendo o rapaz de tais mentiras. A frase poderia ainda ter vários outros significados, deixados em aberto para a interpretação de cada um. De todo o modo, a validade das possíveis interpretações se ancora na visão subjetiva da sociedade, fazendo com que a sociedade possa ali se identificar, como se se olhasse num espelho, e realizar seu próprio julgamento. 7. Conclusão Neste artigo, propusemo-nos a analisar dizeres de pichações em muros da cidade de São Bernardo do Campo, São Paulo. Procuramos perceber os sentidos dos dizeres a partir do olhar e do lugar daquele que picha, para que pudéssemos adotar um gesto de “traduzir” os dizeres das pichações e, ao mesmo tempo, apreciar a contradição entre o ilícito e o direito de dizer. Nossa análise indicou que, ao contrário do que possa parecer ao leigo, as pichações não são feitas com o único objetivo de denegrir a imagem da sociedade e de vandalizar e poluir visualmente a cidade. Parece-nos que as pichações têm um papel importante em nossa sociedade, pois se constituem como um meio de expressão de jovens que, muitas vezes, não têm voz perante o poder instituído socialmente, mas que, ao mesmo tempo, têm muito a dizer à sociedade à que pertencem. Como vimos, algumas pichações se colocam como gritos para acordar a sociedade para a própria realidade; outras se propõem a colocar dúvidas à população. Além dessas, outras procuram enfeitar as ruas da cidade com suas poesias cotidianas. É certo que a pichação é considerada um ato ilegal no Brasil. Segundo o artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais n° 9.605/98, pichar é crime:
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Art. 65. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. Parágrafo único. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de seis meses a um ano de detenção, e multa.
Por outro lado, se considerarmos a pichação como um meio de expressão de pensamentos, poderíamos nos questionar sobre a questão da liberdade de expressão, direito do cidadão, garantido pela Constituição. A contradição que se coloca, portanto, entre a legalidade da expressão de pensamento e a ilegalidade da pichação não reside no direito ou na proibição de expressão de pensamento, mas no suporte sobre o qual esses pensamentos são expressos: muros e edifícios, primordialmente. Sendo assim, perguntamo-nos se, ao impormos o custo material desses suportes sobre o valor subjetivo das emoções e pensamentos, estaríamos aplicando o justo peso? Pois, como diz a canção Gentileza, de Marisa Monte, “merecemos ler as letras”: Nós que passamos apressados Pelas ruas da cidade Merecemos ler as letras E as palavras de gentileza Tais palavras de gentileza, que enfeitam as ruas da cidade, são extremamente importantes para embelezar o dia das pessoas. Para os pichadores, pichar é também moralizar o próximo; é mostrar a verdade nua e crua, sem medo do terrorismo imposto para quem o faz. Pichar nada mais é do que mostrar a todos sua opinião.
Referências CUNHA, J. Quais os códigos usados nas pichações? In: Mundo estranho. São Paulo: EditoraAbril. Disponível em: < http://mundoestranho.abril.com.br/materia/quais-os-codigos-usados-na-pichacao>. Acesso em: 04 abr. 2015. MONTE, M. Gentileza. In: Memórias, crônicas e declarações de amor. EMI Ltd, 2000. ORLANDI, E. O sujeito discursivo contemporâneo: um exemplo. In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. L. (eds.), Análise do discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz, 2007. 11 – 20p. SIMÕES, A. G. A abordagem constitucional da liberdade de expressão. In: DireitoNet, 2013. Disponível em: < http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8017/A-abordagem-constitucional-da-liberdade-de-expressao >. Acesso em: 03 fev. 2015.
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Revelando um Drama por Leonardo Carrato
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Revista humanidades - Ano 2 - Nยบ- 2ISSN - abril / 2016 Revista de Atrium - Ano 2 - Junho/2016 2446-7219
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Artigo 6º - Não Queremos Virar Estatística O artigo sexto da Constituição Federal, em seu parágrafo único, estabelece como direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Os ocupantes do antigo prédio do IBGE, assim como boa parte da população brasileira, estão desamparados em praticamente todos estes direitos, vivem em apartamentos improvisados, divididos por madeiras e cortinas, sem luz ou água encanada, cercados por lixo e dejetos. As ruínas do complexo ocupado estão localizadas no coração da comunidade da Mangueira, conhecida internacionalmente pela sua tradição no samba. A rotina dos habitantes é a explícita denúncia do descaso das autoridades, principalmente quando em contraste com os recursos públicos empenhados no Maracanã, tão perto e tão longe. Os investimentos erraram de endereço por apenas 15 minutos de caminhada, ou será que se esqueceram das prioridades? Com o risco iminente de remoção, o documentário, além de um filme, é uma denúncia. A intenção é chamar a atenção das autoridades e organizações políticas e também sensibilizar a sociedade para que se mobilizem a garantir uma moradia digna para essas famílias. O Na Ladeira é composto por um jornalista, um fotógrafo, um cineasta e um designer, mas acima de tudo humanos. A relação com as famílias do IBGE vem desde a Copa do Mundo, quando resolvemos visitar o que havia sobrado da comunidade Metrô Mangueira, após tentativa de remoção feita pelo governo. Durante a visita, fomos alertados que um cano havia estourado e os moradores do IBGE estavam sob água e esgoto. Já conhecíamos ocupações de prédios, mas não como aquela. A partir desse dia resolvemos que era preciso documentar e alertar a todos sobre a situação que viviam essas pessoas.
LEONARDO CARRATO Formado em administração de empresas, com pós-graduação em logística e mestrado em economia, Leonardo Carrato foi preparado para uma carreira executiva, tendo trabalhado intensamente em uma multinacional como ALL Logística. Mas largou tudo em meados de 2012 para uma jornada diferente: a fotografia. Movido pelo sentimento de inquietação, Leo está em busca da imagem perfeita. Aquela que faz perder, que faz achar, que confunde, que dá certeza. E que sensibiliza, acima de tudo. Os trabalhos são uma amostra desta busca. Um mergulho na realidade. Uma inspiração no profundo.
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Literatrium O batom de Mary Sheeley ou A balada de um serial writer Marcelo Ferreira de Menezes
A intenção era a de construir um corpo. A saúde era até a premissa, mas a endemia da demência já se constituía no altar. Vivo. Não que tudo fosse dar certo. Mas estava esquadrinhado. Até. Os braços tinham de ser exaustivamente expressivos. Sobrancelhas mornas. Um sorriso morno. O ventre pujante, trêmulo, desejoso, bom. Mas eu pensei em começar mesmo foi com os olhos. Por isso, os que estavam na mesa da sala de jantar já não serviriam. Eram olhos de mero vasculhar. Cabelo sem cabeça. A pele elástica. Algo de bovino. Uma orelha. A pele. Um ruminante de pé. Era tudo o que eu tinha. Não posso mais me atrever a um inseto, a uma precisão só de capa. Ser sensato. Tinha dívidas nos meus remoídos. Debalde. Já ponderarei em finíssimas abstinências de concreto. A louça a apodrecer na pia. O saber elucida? O que faz de tudo o que se vê homem? E o que não? Não? Ou seria apenas uma breve concessão do espírito? Um arrepio: o saber embrutece. Mastigo o sal e, em muitas vezes, me transformo num moinho, mas meus brinquedos não amadurecem. Já era tarde. Tudo a se despregar de nós. Fio por fio, o frio do ar me respirava. A noite seguia mais vazia e eu, ali, absolutamente tranquilo. A noite se guia mais vazia. A noite cega. Salivei antes do pigarro. Ahã! Arre! A minha perna doía, eu já nem sabia do tanto, do bonde, da curva. - O cavalheiro, por obséquio, me acenda o cigarro? - ?... ! O molde de gesso espingarda sangue na tramela dos acepipes, bíceps, gordura, estrebucha e cai. Água turva na esparrela da sarjeta de terra expandindo a flor de mútuas trevas jardinadas. Arabescos nicotínicos e o rosto flébil num choro convulso. O belo e o simples de espasmos silenciosos, macios, de conforto sem contornos. Sempre há uma pá, nem sempre uma cova, mas sempre o sempre. E distância de medo após as dez, nove, oito, sete, cinco... O demônio já ardia. Que o que se curva se cura mais é com a farmacopeia alheia, no xingamento, no puta que o pariu, no vá tomar seja lá onde for de todo o dia. De mais a mais. Alquímica desgraça dos faustos ventos. Casais se sarrando após as árvores alcoviteiras excitadas de penumbra e mistério. Escuro. Até o horizonte nos seca e nos espreita. Hora de vir quando é só de ir embora. Fuga-me. Um pé. Só osso, tendões, nervos, carne gritando no vermelho. Lâmina afiada, veias. Eu não gostava do dedo que não se dobrava, das unhas do esmalte barato, da carne fria, do batom. Cabelo? Não! Peruca! Há mais orifícios em um corpo do que julga... O amarelo loiro de fugaz sisal. Não gostei nada. A mão eu talvez aproveitasse para algo. Desbaratado talvez. Sabão e viscosidade: o soco.
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A luz na teia de aranha do fio da lâmpada que dava a luz enquanto eu bebia aluá luzente. O cheiro do limão. A lua a léguas; dimensões bailantes na cantiga insípida de profetas amarfalhados, e quase sempre todos parvos, pois a tirania. O papel com a lista de compras, a mosca nele, a mosca tem pressa, o vinho na mesa, a cachaça do quintal. Velas acesas para pombagiras cibernéticas de gargalhadas tácitas e jesuses que, quando a gente passa no diante do quadro, ele fecha e abre o olho de agonia. Parecia gozando. Eu queria o meu corpo. Não o que Deus nos deu, mas um que eu atingisse, que cravasse nele a minha cara, meu chicote, fruto da minha estupidez, todo de entranhas pelo lado de fora. Costura aqui e ali, remenda por aqui e por ali, enfia e puxa, agulha, linha úmida, gotas, mete, mete, tira, mete e alinhava, cuspe. Surge a invasão. Linha vibrante e corda tensa, tesouradas, mais um gole, gemidos no vizinho, freadas de pneu no asfalto diante da janela aberta suando de calor. O que tenho? Distância. E não é ainda corpo. Um arco voltaico talvez? Andaria? Comeria? Sorriria? Roubaria? Choraria... de rir? Olhei e não vi. Só um vórtice. Eu. O corpo estava ali, mas sobrava ainda a vida. Eu me recusava ao papel de tolo. Lá dentro ao longe. Discordância do consigo. A regra é, pelo menos, o não ser; habito-me na ausência. Abundância de tudo a desmoronar num passar ligeiro e lento. Não há política que nos redima. Somos todos sem vergonhas. Já não mais me diviso; eu não me bebo. Agora é só deixar o passar das horas, no sítio, no cimo, nos sonhos, nos frangalhos, avistar-me e estrangeiro, num sussurro altissonante entre dentes e o sibilo. Beiral de faca. Finalmente agora surge o corpo. Então, eu, alma litorânea, dissolvo-me na espumante brancura da amônia e no sal. O berço.
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Santa Renan Augusto de Oliveira Carvalho Olhou no espelho estalando os lábios para confirmar o batom. A chuva havia parado. Com um esforço tremendo, abriu a porta do carro e a empurrou com o pé. Sem olhar para baixo, saltou a poça, que antes refletia os arranhados e respingos de seu Mustang vermelho. Droga! Encostou no capô e se deu ao trabalho de retirar a lama do tênis conga preto desbotado, apoiando-o na calça de brim cinza. Resolveu caminhar em direção ao galpão abandonado do porto. Pela falta de iluminação nos arredores, não viu as próximas quatro poças em que se chafurdou, até perder o equilíbrio e cair na última, em frente à porta corrediça gigantesca do galpão. Ô, servicinho de merda! Levantou e tirou o excesso de sujeira da roupa e do crachá da polícia, deixando lastros de lama sobre seu nome: Lucinda. Olhou ao redor, e não havia vivalma. O chefe falou para checar a carga e só. Mas, nada do Cicatriz. Que saco! Eu só me enrolo nesse serviço. Lucinda caminhou um tempo pelo galpão, correndo seus dedos calejados pelas encomendas abandonadas ou embargadas há tantos anos. O cheiro de sal exalava das caixas e das cordas de sisal que a cercavam. Na verdade, o cheiro era mais forte vindo do mar, trazido pelo vento, que fazia oscilar e bater em sonoro o metal dos ganchos suspensos dos guindastes. Olhou pelas grandes janelas quebradas no alto do enorme galpão. Nem sinal da lua. Um raio atravessou as nuvens e um estampido ensurdecedor pairou bruxuleante. Droga, cadê o merda do Cicatriz? Então um holofote acendeu no fundo do galpão. Sua luz oscilava entre a forte, a quase queima e a queima total, num intervalo muito curto de tempo. Como um pisca-pisca de uma única lâmpada. Era preciso passar pelos containers para enxergar o que ela iluminava, no entanto não seria necessária uma lanterna para guiar o caminho até lá, apesar da oscilação da luz halógena do holofote. Lucinda chamou pelo codinome de Cicatriz. Não houve resposta. Continuou a caminhar. A corrente em seu pescoço subia e descia agora mais apressada. Ora revelando, ora ocultando sua medalha da Virgem Maria, esverdeada pela oxidação do tempo. Presente de mãe. Mas nem sua mãe nem as carolices depreciativas de sua infância a haviam preparado para este encontro. Lucinda estancou, deparando-se com a figura. Entre três carregamentos surrados e sujos da mais grossa ferrugem, algo que se assemelhava muito à imagem de um anjo. Não usava túnica, nem mesmo tinha um halo em sua cabeça, porém tinha asas. Sim, eram asas. Cobertas de penas como as dos pássaros. O anjo estava sentado no alto de uma escada e trazia o semblante abatido. - Eu não pude contê-los, Lucinda - uma voz chorosa e doce saiu do rosto oculto por cabelos. Seus traços não expressavam gênero. Ela não entendeu. A mão não sabia se agia no ofício e tomava posse do revólver ou se esperava aguardando o desfecho de algo sacro. Sacou a arma. Nesse instante a criatura se virou. Tinha traços finos, mas o olhar, severo. Os olhos, cinza, tinham a pureza de um leito límpido. Sem que pudesse esperar, o anjo regurgitou uma esfera perolada, que amparou com a mão, mas essa o queimava feito ácido e corroía os
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dedos. E, com um berro ensurdecedor, soltou-a; esta foi se juntar às diversas outras espalhadas pelo chão. As asas se abriram e se fecharam num golpe rápido. Os cabelos voltaram a cobrir seu rosto, e ele suspirou: - Esse não era o sonho, Lucinda. Quando entrou... não era. Mas tudo foi mudando. Você foi mudando. Nesse instante, a voz ficou grave e pesada. As feições já eram duras e seus olhos pareciam avermelhados nos cantos. O anjo pôs-se a descer as escadas. Ela empunhou a arma mais no alto, mirando-lhe o peito. Enquanto ele descia vagarosamente, uma das esferas estourou e no ambiente fez-se ouvir algo que se assemelhava a um grito engasgado de socorro. Uma voz que pedia pela vida dos filhos e da esposa. Uma voz que parecia com a de um tal de Ismael, que o pessoal da companhia chamava de Bola. O Bola, que ela mesma tratara de dar fim, pelo bem dos negócios do departamento. A cada passo dado pelo anjo em direção a ela, uma esfera no chão explodia, e os gritos e súplicas se misturavam em um coro desastroso, penoso e sofrido. O pior era que cada voz era conhecida. Criminosos, indigentes, ou inocentes. Lágrimas se amontoaram no canto dos olhos dela. Mas o ofício a fizera fria. Lembrou-se, então, da última lágrima que derramara. No começo ainda. Mulher negra. Grávida. No Riviera, umas quatorze horas. Com certeza por não pagar pelo ponto. Aquela puta! Lucinda não chorou dessa vez. Reconheceu a voz dela entre as do coro. “Não apaga ‘nóis’. Eu paguei o que devia, sua vaca. Esse ponto é meu, droga!”. Quando o anjo chegou perto, ela estava em transe ainda. Então ele segurou sua arma e seus olhos agora eram de um azul acinzentado. Abriu a boca e seus cabelos molhados colaram aos lábios, assim como na testa de Lucinda, que se via agora envolta por braços e asas, num abraço forte. Ela não disse nada. Ele então sibilou em sua fronte: - Eu sou Vehuiah. Não sou o anjo da morte, mas trago a verdade até você e seus olhos internos. Há muito sangue, Lucinda. Tem muito sangue na sua mão. É preciso repesar a balança para que não haja desfalque. O som do disparo ecoou no galpão. Não havia outro som. O baque seco do corpo estatelando no chão aqueceu as horas frias seguidas de chuva. Mesmo o sangue escorreu pelo solo sem esmiuçar som algum, apenas escurecendo o solo com sua cor e seu caldo quente. Lucinda Carmo foi encontrada suja de lama e deitada sobre o próprio sangue. Um disparo na cabeça e o revólver em sua mão indicavam claramente suicídio. Mas o que a polícia nunca conseguiu explicar à família - nem a qualquer um a quem interessasse - era o que ela fazia no galpão abandonado do porto da cidade. Não havia ordem de serviço, ocorrência registrada ou caso sendo investigado que envolvesse o galpão. Seu carro estava abandonado à porta do hangar, com as portas abertas. Não havia papel, documento, nada. Alguns níqueis no cinzeiro. No espelho retrovisor, havia um terço desbotado pelo sol forte. No porta-luvas residiam algumas canetas e mais nada. O chefe da polícia falou rindo ao jornal local, na manhã que se seguiu ao ocorrido: - Pela cara de santa, essa aí tinha algum caso sim. Se é que me entendem. Hein? - e gargalhava. Para alguns casos, só o Juízo Final.
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PERFIL ALBERT EINSTEIN E A CRISE NO ORIENTE MÉDIO: CONEXÕES? por Ernesto Kemp Existia um programa exibido na Rede Cultura, na década de 90, de que gostava muito, intitulado “Conexões”. Esse programa era apresentado pelo historiador James Burke. O mote do programa era mostrar fatos históricos sobre o nosso conhecimento técnico-científico, em linha cronológica, começando nos primórdios das descobertas e invenções humanas, até chegar a um avanço científico ou tecnológico muito recente. As conexões entre passos anteriores e posteriores dos avanços eram feitas pela escolha de um desdobramento específico do conhecimento adquirido anteriormente. Por que um desdobramento específico? Porque sabemos que, na evolução das ideias e do conhecimento científico, cada nova proposição ou descoberta abre múltiplos caminhos a serem explorados, não apenas um. Por exemplo, recordo-me perfeitamente bem de uma das edições do programa em que o começo era dado com o domínio adquirido pelos egípcios dos ciclos de cheia do Nilo, utilizando o cruzamento de observações meteorológicas e astronômicas. Esse domínio permitiu um melhor aproveitamento das atividades agrícolas e impulsionou a necessidade de desenvolver ferramentas e meios mais poderosos de colheita, transporte e estocagem. Cada passo adiante estabelecia uma conexão com um desdobramento não necessariamente voltado às necessidades anteriores, nesse caso, por exemplo, uma necessidade agrícola impulsiona transportes, construção civil e novas ferramentas com uso diversificado. A cada desdobramento, entrávamos em marcantes períodos históricos, como a expansão grega, latina, a consolidação da Europa, a expansão marítima, as novas nações em novos continentes, os avanços científicos decorrentes de trocas e contatos com novas culturas, as necessidades de desenvolvimento de técnicas cada vez mais avançadas de produção de bens necessários para uma população crescente, os conflitos ocasionados por interesses dos grandes estados europeus em torno da era moderna, as guerras do século XX, e, finalmente, o programa culminou com a invenção da bomba atômica. Da produção de cereais no Nilo ao Projeto Manhattan, atravessamos 5000 anos, usando como guia avanços científicos e tecnológicos da humanidade, muitas vezes ocasionados por situações prosaicas do cotidiano. Cito esse programa para contextualizar o fato de termos um relato biográfico sobre o físico Albert Einstein nesta publicação sobre o Oriente Médio. Os conflitos atuais e as tensões no Oriente Médio têm raízes profundas na história, mas hoje seuss matizes mais atuais são decorrentes de interesses geopolíticos muito recentes que envolvem a reconfiguração de poder no planeta na situação pós-Segunda Guerra. E assim é que entra aqui Albert Einstein, uma das mentes mais brilhantes do século XX e cujo trabalho, de forma indireta, ocasionou o desfecho que tivemos da Segunda Guerra. A mais famosa equação da história da humanidade, E = mc², foi que abriu portas ao grupo de cientistas da época para idealizar e construir os dois artefatos, Little Boy, lançado sobre Hiroshima, e Fat Man, sobre Nagasaki, que deram fim ao conflito. A transformação de massa em energia em proporções muito grandes, ou seja, pouca massa, de urânio, por exemplo, poderia ser convertida em uma imensa energia, que, liberada de forma abrupta, resulta na explosão. Einstein não ficou na Europa por conta de perseguições antissemitas; apoiou a causa sionista – talvez hoje, o maior ponto de geração de conflitos no Oriente Médio. Era um pacifista convicto e não obstante apoiou o desenvolvimento da Bomba Atômica e seu uso como possível ponto final à Segunda Guerra. Proponho agora que o leitor siga a vida desse cientista e descubra como seres que nos parecem tão distantes por uma equivocada visão que temos de que gênios científicos são seres diferenciados em sua humanidade, na verdade têm dúvidas, angústias e uma vivência com as mais diversas relações humanas que nos coloca lado a lado. E, usando a ideia das conexões inusitadas, vemos que um ser brilhante como ele, cheio de ideias pacifistas e humanistas, torna-se um elo importantíssimo na sequência de fatos que desembocam no que hoje é esse conflito que nos parece insolúvel no Oriente Médio. Esteja convidado a estabelecer suas próprias conexões.
Boa leitura! Ernesto Kemp 74
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Trocando mensagens com o amigo Cássio Leite Vieira, jornalista e estudioso da vida e obra de Albert Einstein, recebi com curiosidade a seguinte informação [sic]: “É interessante notar como a imagem do cientista padrão se altera depois de 1919, quando a teoria da relatividade de Einstein recebe sua comprovação histórica. Antes, o estereótipo do cientista recaía sobre o naturalista aventureiro, cujos conhecimentos iam de obscuras línguas indígenas à chamada história natural. Depois disso vale o cientista “louco” (ou, pelo menos, com cara de), com cabelos brancos desgrenhados e profundos conhecimentos de física (de preferência, nuclear), bem caracterizado, por exemplo, em histórias em quadrinhos ou desenhos animados”. Ao meu ver, esse “detalhe” ilustra perfeitamente a importância e o impacto que a obra de Albert Einstein teve sobre a ciência moderna. A obra científica de Einstein lançou as ideias que solidificaram os alicerces da Física Moderna: a Teoria da Relatividade e a Física Quântica. O impacto que suas ideias causaram na ciência moderna, mudando paradigmas e originando profundos desdobramentos tecnológicos, foi tão grande que inclusive modificou a imagem popular, o ícone, associados à palavra “cientista”. Observando alguns fatos sobre a vida de Einstein, podemos ter alguma luz sobre o mito desse cientista genial e dele tirar mais uma lição. Einstein nasceu em Ülm, Alemanha, em 14 de março de 1879, filho de um comerciante que, por causa dos negócios nem sempre bemsucedidos, mudou-se várias vezes, até mesmo de país, tendo se fixado na Itália, onde veio a falecer. Einstein demonstrou interesse, ainda na infância, por física, matemática e filosofia, influenciado por um amigo da família que lhe repassava textos e livros de divulgação científica. Precoce intelectualmente, entre dez e onze anos de idade leu a Crítica da razão pura, do filósofo alemão Immanuel Kant, e teve uma fase de profunda religiosidade que durou cerca de um ano, até que lhe ofereceram um livro de geometria
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utilizado em cursos universitários que causou nele “uma impressão indescritível”, como revelou mais tarde. Torna-se autodidata em cálculo diferencial e integral. A trajetória educacional de Einstein foi muito peculiar, com momentos de brilhantismo intercalados com outros de fraco desempenho. Aos 17 anos, renuncia à cidadania do estado de Württemberg, sua região de nascimento, alegando não concordar com a mentalidade militar alemã. Posteriormente obteve sua dispensa militar, justificada por pé chato, varizes e sudorese excessiva. Formou-se na Escola Politécnica de Zurique, como professor secundário de Física e Matemática, com notas inferiores às dos colegas, e também conheceu Mileva Maric, única mulher da turma e sua futura esposa. Muito se debate sobre uma conturbada relação com Mileva e problemas de toda natureza com a esposa e os dois filhos do casal. Em 1900, Einstein está formado, desempregado, sustenta-se com mesada dos pais e aulas particulares, quando, através de intervenção do pai de Marcel Grossmann, colega na Politécnica e futuro parceiro de trabalhos científicos, consegue emprego como técnico de 3ª. classe no Escritório Suíço de Patentes, em Berna. Lá permaneceu trabalhando e desenvolveu alguns trabalhos acadêmicos de forma autônoma. Em 1905, conhecido hoje como “ano miraculoso” da física, com a idade de 26 anos, publicou uma série de cinco artigos que, inicialmente, não causaram grande repercussão, mas que, em alguns anos, iriam provocar mudanças significativas no pensamento científico do século XX. Em um deles, “O quantum e o efeito fotoelétrico” (Über einen die Erzeugung und Verwandlung des Lichtes betreffenden heuristischen Gesichtspunkt), introduz o que considerou sua ideia mais revolucionária: a de que a luz é formada por partículas, denominadas posteriormente “fótons”. A retomada do conceito corpuscular da luz, proposto também pelo físico e matemático inglês sir Isaac Newton no século XVII, foi espantosa e
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surpreendente, considerando-se que nessa época a descrição da luz como fenômeno ondulatório de natureza eletromagnética era um dos recentes triunfos da ciência. Coube aos físicos que lhe seguiram restabelecer a coesão das teorias através do conceito de “dualidade” da natureza da luz e da matéria, que ora se comportam como partículas, ora como ondas, a depender dos processos utilizados em sua observação. Também neste trabalho, Einstein utiliza outro conceito revolucionário, a do quantum de energia, proposto anteriormente por Planck para explicar a emissão de radiação térmica por corpos aquecidos. No seu trabalho, Einstein propõe que a troca de energia entre matéria e radiação não é feita livremente, mas ocorre apenas através de certas quantidades bem-definidas, múltiplos de uma unidade básica, exatamente o quantum de energia sugerido anteriormente por Planck. As implicações desse trabalho levaram Einstein a ganhar o prêmio Nobel de 1921. Em outro trabalho desse ano, “Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento” (Elektyrodynamic bewegter Körper), lança os fundamentos da teoria da relatividade restrita, na qual estabelece relações entre o espaço e o tempo, mostrando que não existe uma métrica e ritmo absolutos em nenhum referencial, ou seja, não existe um referencial preferencial no Universo. Medidas de comprimento e intervalos de tempo dependem inextricavelmente dos movimentos relativos entre observadores diferentes. Esse conceito prevê fenômenos estranhos à nossa intuição, fazendo com que distâncias se encurtem ou se alonguem e o tempo possa transcorrer em ritmos diferentes para observadores em movimento relativo, mesmo que, em um determinado instante, seus relógios tenham sido colocados em sincronia. Completando as ideias da relatividade restrita, também redige “A inércia de um corpo depende de sua energia?” (Ist die Trägheit eines Körpers von seinem Energieinhalt abhängig?). Neste trabalho aparece uma versão inicial da expressão E=mc2, considerada a fórmula mais famosa da física e, talvez, da ciência, estabelecendo a relação e a possibilidade de conversão de matéria em energia e vice-versa. Ainda em 1905, publicou artigos sobre um seu antigo tema de pesquisa: o movimento e comportamento de moléculas de um gás. Nesse miraculoso ano, estavam lançadas as novas diretrizes da ciência moderna, estabelecidas por um jovem que havia conseguido, apenas recentemente, um tranquilo e regular emprego burocrático através da 76
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influência do pai de um colega. Em 1906 recebe o título de doutor pela Universidade de Zurique, por seus trabalhos na área de termodinâmica de gases e é promovido ao cargo de técnico de 2ª Classe no escritório de patentes. Neste ano também finaliza seu artigo sobre calores específicos (Plancksche Theorie der Strahlung und die Theorie der spezifischen Wärme), considerado o primeiro trabalho na física sobre a teoria quântica do estado sólido, mostrando mais uma vez a consistência que havia nos pressupostos do quantum de energia e nas suas teorias de como a energia se distribui em sistemas microscópicos. Ainda por alguns anos, Einstein teve dificuldades em conseguir uma posição acadêmica, mesmo que seus trabalhos já tivessem começado a causar repercussão no meio científico. Apenas em 1909, pede demissão do Escritório de Patentes. A partir dessa época, passa a ser procurado por instituições acadêmicas com propostas de emprego em Zurique, Praga e Berlim com recomendações de colegas importantes como Marie Currie e Henri Poincarrè. No período em que morou em Praga, iniciou a troca de cartas amorosas com sua prima Elsa Löwenthal, e seu casamento começa a se desintegrar. Einstein e Mileva se separam e o juiz determina que, caso Einstein ganhasse o prêmio Nobel, deveria entregar o dinheiro a Mileva. A partir dessa época, Einstein passa também a redigir textos jornalísticos, de divulgação científica e de cunho político, sobre o socialismo e os movimentos antisemitas que começavam a mostrar proporções preocupantes na Alemanha. Em 1915 finaliza sua teoria da relatividade geral, que substituiria a lei da gravitação universal proposta por Isaac Newton. Vê-se que dois grandes gênios da nossa civilização dedicaram-se a estudar temas em comum. A teoria da relatividade geral é muito bem-sucedida ao explicar fenômenos como a precessão da órbita do planeta Mercúrio e o desvio das trajetórias da luz nas vizinhanças de estrelas. Mais uma vez, Einstein revolucionava nossa maneira de pensar e ver o Universo, mostrando que o espaço que nos rodeia apresenta propriedades inusitadas, podendo ser deformado pela ação de grandes massas, comportando-se de maneira semelhante a uma cama elástica com uma grande pedra em seu centro. A dinâmica determinada por campos gravitacionais passa a ter um caráter geométrico, descrita por trajetórias em espaços curvos. Em 1917 adoece, com problemas de úlcera e no fígado, sendo tratado por Elsa. Entre as décadas de 20 e 30 do século passado, Einstein Revista Atrium - Ano 2 - Junho/2016 - ISSN 2446-7219
coleciona sucessivos triunfos com as comprovações de suas teorias. A relatividade geral, por exemplo, foi testada com medidas realizadas por uma equipe internacional de cientistas durante um eclipse observado em Sobral, no Ceará, em 1919. Recebe diversos prêmios e honrarias e, ao mesmo tempo, sofre as primeiras pressões antissemitas na Alemanha pré-nazismo. Envolvese com causas pacifistas, assinando manifestos a favor do desarmamento e com o sionismo. Visita universidades pelo mundo todo fazendo palestras sobre seu trabalho. Em 1933 os nazistas chegam ao poder. Sua nacionalidade honorária alemã é retirada pelo novo governo, e suas propriedades, confiscadas. Após um período tenso em que viveu na Bélgica, parte definitivamente para os Estados Unidos, onde fixa residência. Coincidindo com a eclosão da Segunda Guerra, assina uma carta, redigida pelo físico húngaro Leo Szilard, endereçada ao presidente Franklin Delano Roosevelt, relatando as implicações militares do uso da energia nuclear e advertindo que talvez a Alemanha pudesse em breve utilizála. Em 1945, as notícias sobre as bombas nucleares lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki causam profunda contrariedade em Einstein, que se arrepende de ter assinado as cartas – total de três – endereçadas ao presidente Roosevelt e adverte a sociedade sobre os perigos de uma destruição nuclear em proporções mundiais. Aposenta-se oficialmente em Princeton. Em 1946 pede às Nações Unidas que formem um governo mundial, que, para ele, é o único modo de se manter a paz permanente. Em 1948, morre sua exesposa Mileva, em Zurique, com parte significativa do dinheiro do Nobel sob seu colchão. Nessa época é detectado em Einstein um aneurisma abdominal da aorta. Em 1952, morre Chaim Weizmann, presidente do estado de Israel desde sua fundação em 1948. O cargo é oferecido a Einstein, que não o aceita. Em 1954, defende Robert Oppenheimer na imprensa, acusado pelo governo dos Estados Unidos por seu passado político e também publica seu último trabalho científico, “Uma nova forma da equação relativística geral de campo”, em coautoria com a física Bruria Kaufman, na revista Annals of Mathematics. Encontra-se com Bohr pela última vez. Desenvolve anemia hemolítica. Em 1955 assina um manifesto, em conjunto com o matemático e filósofo inglês Bertrand Russell, contra as armas nucleares que se tornou o documento inicial do Movimento Pugwash, dedicado à paz mundial. Em 13 de abril, seu 77
aneurisma se rompe. Dois dias depois, é internado no Hospital de Princeton. Em 17 de abril, pede a Helen Dukas, sua secretária, folhas de papel em branco e seus cálculos mais recentes para continuar trabalhando. Einstein morre em 18 de abril, à 1h15min da madrugada, devido ao agravamento do quadro causado pelo rompimento do aneurisma. A seu pedido, foi cremado, às 16h do mesmo dia, e sua cinzas espalhadas em local não revelado. A intenção em relatar certos aspectos científicos e também alguns de natureza corriqueira e privada da vida de Albert Einstein foi justamente a de podermos extrair mais uma preciosa lição desse cientista genial: é perfeitamente possível que a mesma pessoa que forneceu as ferramentas básicas da ciência atual, e que hoje nos permite perscrutar de forma cada vez mais profunda o Universo, talvez um dia tenha irritado seus vizinhos tocando violino precariamente. A vida privada de Einstein foi repleta de situações de paixão, alegria, fragilidades e fracassos como a de tantas outras pessoas, colocando-o lado a lado com todos nós. Porém, a destacá-lo, existe o poder gigantesco e a genialidade de suas ideias, a ponto de pensarmos automaticamente, ao ouvir a palavra “cientista”, em um sujeito de guarda-pó branco e cabelos desgrenhados, escrevendo E=mc2 sobre uma lousa confusa. Mesmo que não saibamos quem era esse sujeito. Agradecimentos ao jornalista e amigo Cássio Leite Vieira por fornecer importante material biográfico de Albert Einstein.
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ERNESTO KEMP Nasci em Vargem Grande do Sul (SP) em junho de 1965 e vivi em uma família com um pai que era um inventor de maluquices que nunca viraram sucesso comercial e uma mãe que forneceu aos filhos cultura e experiências com a natureza, incansavelmente, de todas as formas que isso poderia ser feito. Quando era criança, mais ou menos com 5 ou 6 anos de idade, sonhava em ser astronauta e cientista, de preferência os dois juntos. Com 8, decidi ser astronauta, cientista, piloto de caça e espião. Com 10, desisti de ser astronauta e cientista; me contentava em ser espião e piloto de caça. Aos 12, desisti de tudo isso e resolvi ser piloto de voos internacionais da aviação civil — era muito mais charmoso —, mas, como não tinha dinheiro para tirar o brevê de piloto, vi como um caminho fácil entrar em alguma escola da aeronáutica. Aos 14, decidi ser astrônomo (era mais fácil chegar ao espaço desse jeito) e desisti da carreira militar. Aos 15, descobri que, para ser um bom astrônomo, precisaria saber muita física. Aos 16, entendi a abrangência da física como ciência e concluí que queria ser físico. Comecei a frequentar a Unicamp desde 1979, ainda no Colégio Técnico (cursei mecânica). Depois entrei na graduação da Física, segui no mestrado, doutorado, pós-doutorado, professor assistente e professor associado, sempre na Unicamp. Durante todo esse percurso, passei períodos curtos e longos em laboratórios no exterior, na Itália, França, E.U.A., Argentina e inclusive na Estação Antártica Brasileira Comandante Ferraz. O mundo das partículas subatômicas e o universo infinito e cheio de surpresas sempre me atraíram, então encontrei no Departamento de Raios Cósmicos da Unicamp o abrigo ideal para minha sede de conhecimento e vontade de superar desafios científicos e tecnológicos. Hoje, meu trabalho é estudar as partículas mais esquisitas de que se tem notícia, os neutrinos, sejam eles vindos do espaço ou produzidos em feixes de partículas gerados em gigantescos aceleradores. Aos interessados em uma versão mais quantitativa da minha vida, por favor podem consultar este link: http://lattes.cnpq.br/6158036609486608
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