Interface Comunicação, Saúde, Educação
APRESENTAÇÃO
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ENSAIOS sobre Universidade A Universidade no limiar do século XXI
DEBATES
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Marcio José de Almeida
Antonio Manoel dos Santos Silva
Globalização, neoliberalismo e Universidade: algumas considerações
29 133 Formação dos conceitos científicos e práticas pedagógicas
Marília Freitas de Campos Pires e José Roberto Tozoni Reis
Inovação na Universidade: a pesquisa em parceria
123 O ensino médico e o perfil do profissional de saúde para o século XXI
Cleide Nébias
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143 Árvores de saúde Entrevista com Pierre Lévy
Denise Leite et al
A atualidade do debate sobre autonomia universitária
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159 LIVROS 167 TESES
Renato de Oliveira
173 NOTAS BREVES ESPAÇO ABERTO
ARTIGOS E RELATOS Jornal, saúde, doença, consumo, Viagra e Saia Justa
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Fernando Lefévre
Fernando Lefévre
Voces y cuerpos: el consultorio médico radial como espacio discursivo en el Perú
177 Aids (por exemplo): o que quer dizer eu tenho informação?
75 CRIAÇÃO
María Mercedes Zevallos Castañeda
Boneca Gertrudes: identidade feminina e práticas educativas em saúde
93
Claudia Bógus e Áurea Zöllner Ianni
Saúde e Educação: a discussão das relações de poder na atenção à saúde da mulher Ana Flávia P. Lucas D'Oliveira
105
179 Projeto Internos: a fotografia no hospital Haná Vaisman
Interface Comunnication, Health, Education PRESENTATION
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ESSAYS on University
DEBATES 123
The institution of universities on the threshold of the 21st century
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Medical education and profile of the health care professional in the 21st century Marcio José de Almeida
Antonio Manoel dos Santos Silva
133 Globalization, neo-liberalism and universities: a few considerations
Innovation at universities: research conducted in partnership
Cleide Nébias
29 143
Marília Freitas de Campos Pires e José Roberto Tozoni Reis
Scientific concepts and pedagogical practices
Health trees Interview with Pierre Lévy
41
159
BOOKS
167
THESES
173
BRIEF NOTES
Denise Leite et al
The current nature of the debate on university autonomy
53
Renato de Oliveira
OPEN PAGE
ARTICLES and REPORTS Newspapers, health care, disease, consumption, Viagra and "Saia Justa" new column
63
177
Aids (for example): what it means "I have information?" Fernando Lefévre
Fernando Lefévre
75 Voices and bodies: radio consulting as an arena for discourse in Peru
CREATION
María Mercedes Zevallos Castañeda
179 The Gertrudes Doll: female identity and educational practices in health care
93
Claudia Bógus e Áurea Zöllner Ianni
Health care and education: a discussion of power in woman's health care Ana Flávia P. Lucas D'Oliveira
105
Interns project: the photography in the hospital Haná Vaisman
APRESENTAÇÃO
O RISO DO FILÓSOFO Coube-me a estimulante e honrosa tarefa de apresentar o presente número de Interface. Assim, serei eu próprio a interface entre você, leitor ou leitora, e esse conjunto de trabalhos, que, por sua vez, são outras tantas interfaces - as interfaces multiplicam-se ad infinitum, para o interior e para o exterior, como pude aprender neste número da revista. Aprendi também que uma interface não é o lugar que separa ou distingue uma identidade de outra, seja de territórios, nacionalidades, individualidades, objetos etc., como nos sugerem as idéias correlatas de fronteira, divisão, limite entre uma coisa e outra. Uma interface é uma superfície de troca, de interação, dispositivo de mútua atribuição de identidades aos espaços que através dela se comunicam. Por isso, se há alguma introdução que eu queira fazer a esse número da Interface é recomendar aos leitores que se deixem permear por ele e, ao mesmo tempo, fecundem-no de suas leituras particulares. Que não atravessem as fronteiras rumo a esse material para colonizá-lo de si mesmos, mas que, estimulados pela própria proposta da publicação, explorem com o máximo de gozo e proveito o encontro promovido por sua leitura. Bem, se você chegou até este ponto da apresentação é bastante provável que já tenha me aceitado como seu mediador, mesmo que temporariamente. Devo me policiar para evitar que, favorecido pelo seu crédito, eu tente lhe conduzir à mesma leitura que fiz deste número - risco de todo indesejável, mas muito comum em apresentações, prefácios, resenhas. Não posso, contudo, deixar de responder à curiosidade que lhe trouxe até aqui, leitor ou leitora. Afinal, você deve estar se perguntando, o que tem esse apresentador a dizer sobre a leitura que estou prestes a fazer? Eu lhe responderei com o riso do filósofo e o semblante inquiridor do paciente. O riso do filósofo está por toda parte na entrevista concedida por Pierre Lévy a Ricardo Teixeira, especialmente quando se trata dos temas mais profundos e significativos, e o semblante inquiridor está na segunda foto do ensaio fotográfico de Haná Vaisman, num duro contraste com outros risos. Por que o filósofo ri? Por que o paciente não ri? Reagindo à foto de Vaisman, o acadêmico de medicina conclui: “a descontração é legal, mas é uma descontração só nossa, né?”. Comentando o riso do filósofo, o entrevistador comenta: “é o imenso prazer do nosso interlocutor com as idéias...sua alegria espontânea de pensar”. A co-presença desses dois elementos, a experiência fecunda e compartilhada do riso, de um lado, e a estranha e inquietante ausência desse riso, de outro, conformam um pano de fundo sobre o qual todos os demais trabalhos adquirem contornos extremamente vivos e instigantes. Os artigos aqui reunidos estão todos permeados desse riso e da sua ausência, do êxtase da liberdade na aventura do viver e do constante susto de flagrar a participação nem sempre concorde, mas inexorável, que o outro tem nessa aventura. Seres que nos “obrigamos” à liberdade, compreendemos o riso e reclamamos sua presença. Talvez ainda não tenhamos dado a devida atenção à importância que Kant (em seus próprios êxtases) atribuiu à felicidade como fundamento prático de todo pensar e conhecer, da Razão, ela mesma. De qualquer forma, o rico diálogo que Lévy, Teixeira, Vaisman e os internos do hospital estabelecem entre si e conosco nos exime de chegar
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a tão altas pretensões filosóficas para alcançar uma compreensão, no meu ver, quase tão simples quanto fundamental: a de que a felicidade pode ser a medida da razão e de que esta só se realiza plenamente na efetiva comunicação com o outro. É a razão que nos distingue como seres obrigados à liberdade. Seres que a cada momento tomam a realidade como experiência aberta e se põem a inventar suas formas, damos asas ao grande arcanjo de que nos fala Michel Serres, impulsionadas pelo perene vento da história, de que uma vez nos falou Walter Benjamim. E qual pode ser a reação de um ser criador diante da sua aptidão criadora senão o riso, a felicidade? Da mesma forma, o incômodo com o desencontro na felicidade é um duplo sinal da relevância da comunicação num projeto racional de humanização da vida. Vivida como um déficit, a ausência do sorriso é a constatação de que o motivo da felicidade de um não o é para o outro, de que esse outro não é efetivamente partícipe do ato criador em curso. Ao mesmo tempo, essa sensação de déficit é expressão de uma autêntica vontade de que isso fosse diferente. É como se, não sendo a felicidade completa, a razão ainda estivesse a meio caminho. O riso do filósofo não nos cobra significado, mas a feição tensa do paciente sim (e o detalhe da Bíblia aberta na cabeceira do leito, da leitura possivelmente interrompida, tinge de cores ainda mais fortes o desencontro retratado). Ora, e o que são todos os esforços de comunicação senão esse movimento da razão que cria, da razão que atualiza nossa escolha pela liberdade, na direção de seu total compartilhamento? Senão, vejamos. Não pode a boneca Gertrudes ser entendida como uma tentativa de fazer com que a felicidade na vida sexual e reprodutiva seja compartilhada entre as diferentes mulheres? Não incomoda à pesquisadora do PAISM que as técnicas assistenciais em saúde da mulher não consigam romper a diferença de poder entre homens e mulheres na criação de suas formas de convivência? Ao perscrutar o diálogo estabelecido através do meio rádio ou do meio jornal, não é a dúvida sobre o que se está verdadeiramente criando que está em questão? O que dizer, então, dos diversos textos debatendo a universidade e a educação? Não é a razão debruçando-se sobre si mesma e recusando o caráter limitado de sua capacidade de criar compartilhamento na felicidade? Este me parece o sentido mais substantivo de todo e qualquer esforço racional/ comunicacional: a possibilidade de nos colocarmos juntos na criação, não para criar todos a mesma coisa, nem de uma vez por todas, mas para desfrutarmos o mesmo êxtase da liberdade de estarmos inventando a vida. Parece também uma leitura possível deste estimulante número da Interface. É desta leitura que quero, de minha parte, convidar os leitores a compartilhar. Só a leitura de cada leitor e leitora poderá, por outro lado, decidir sobre a felicidade desse convite. São Paulo, 12 de Fevereiro de 1999
José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres
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Interface _ Comunic, Saúde, Educ
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PRESENTATION THE PHILOSOPHER’S LAUGH It has been my good fortune to be asked to fulfil the stimulating and estimable task of introducing this issue of Interface. Thus, I myself will be the interface between you, the reader, and this set of papers which, themselves, stand for a range of other interfaces — interfaces multiply themselves ad infinitum, internally and externally, as I learned through this issue of the magazine. I also learned that an interface is not the area that separates or distinguishes one identity from the next, regardless of whether these refer to territories, nationalities, individualities, objects etc., although this might be suggested by the related ideas of frontiers, divisions, or limits between one thing and the next. An interface is a surface of exchange and of interaction, a device whereby identities are mutually assigned to the spaces that connect through the very interface. Therefore, if there is an introduction I would like to make to this issue of Interface, it is to recommend that its readers allow themselves to be permeated by the magazine, while, at one and the same time, enriching it through their own reading of it. They should not cross the frontiers toward this material to colonize it with their own self, but rather, stimulated by the proposal of the publication itself, they should explore the encounter offered by its reading with a maximum of benefit and enjoyment. Now, if you have reached this point of my introduction, it is quite probable that you have accepted me as your mediator, albeit temporarily. Having thus been granted your trust, I must police myself to ensure that I do not lead you to the same reading I have made of this issue — a risk altogether undesirable, but nonetheless so common in introductions, prefaces and reviews. I cannot, however, fail to respond to the curiosity that has led you, the reader, this far. You are, presumably, asking yourself: “What does this introducer have to say regarding the reading that I am about to embark upon?” And I shall answer you with the philosopher’s laugh and the patient’s inquiring countenance. The philosopher’s laugh is to be found everywhere in the interview granted by Pierre Lévy to Ricardo Teixeira, especially where it deals with deeper and more meaningful subjects, whereas the inquiring countenance is in the second picture of Haná Vaisman’s photographic study, in harsh contrast with other laughs. Why does the philosopher laugh? Why does the patient fail to laugh? Reacting to Vaisman’s photograph, the medical academician concludes: “the relaxation is cool, but it’s a relaxation that is only ours, isn’t it?” Commenting on the philosopher’s laugh, the interviewer states: “it is the immense pleasure that our interlocutor finds in ideas... his spontaneous enjoyment of thinking”. The joint presence of these two elements, the fertile and shared experience of laughter, on one hand, and the strange and disquieting absence of such laughter, on the other hand, establishes a backdrop against which all the other papers acquire extremely lively and instigating contours. The articles brought together here are all permeated by this laughter and by its absence, by the ecstasy of freedom in the adventure of living and by the constant alarm that results from witnessing the role, not always concordant, yet inexorable, that other beings play in this adventure. As beings “obligated” to freedom, we understand laughter and demand its presence. Perhaps we have failed, to date, to pay attention to the importance that Kant (in his
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own ecstasies) attributed to happiness as the practical foundation of all thought and knowledge, and of Reason itself. In any event, the rich dialogue that Lévy, Teixeira, Vaisman and the hospital inmates establish among themselves and us exempts us from reaching out to such lofty philosophical claims in order to achieve an understanding, to my mind, almost as simple as it is fundamental: that happiness may be the measure of reason and that the latter only realizes itself fully through effective communication with other beings. Reason is what sets us apart as beings bound to freedom. As beings that, at every turn, take reality as an open experience and set themselves to invent its forms, we lend wings to the great archangel mentioned by Michel Serres, propelled by the eternal winds of history, on which Walter Benjamin once discoursed. And what might be the reaction of a creative being as it beholds its creative capabilities, other than laughter and contentment? In the same way, the discomfort with divergence in happiness is a twofold sign of the relevance of communication within a rational program for humanizing life. Experienced as a deficiency, the lack of a smile is the evidence that the reason for one person’s happiness may fail to be the reason for another person’s contentment, or that the latter is not, effectively, a participant in the act of creating that is under way. At the same time, this feeling of lack expresses a true desire that things be different. It is as if, happiness being incomplete, reason were still only halfway along its path. The philosopher’s laugh does not demand any meaning from us, but the patient’s tense countenance does (and the detail of the Bible open by the head of the bed, the reading of which was possibly interrupted, lends even stronger tones to the depicted gap). Well now, and what are all efforts of communication, if not this movement of reason that creates, of reason that updates our option for freedom, aiming at sharing it completely? Let us see. Is it not possible to interpret the Gertrudes doll as an attempt to enable the sharing of happiness with their sexual and reproductive life among different women? Does it not bother the PAISM researcher that the social assistance techniques in the field of female health care fail to sever the difference in power between men and women in the creation of the ways in which they live together? In scrutinizing the dialogue established through the medium of radio or of newspapers, is it not a doubt, regarding what is truly being created, that is at the heart of the matter? And what can one say, furthermore, about the several texts that debate the issues of university and education? Is this not reason bending over itself and rejecting its limited abilities to generate shared happiness? The following strikes me as the most substantial of all efforts regarding rationality or communication: the possibility of our joining up during creation, not to generate, all of us, the same thing, nor to do it once and for all, but to enjoy the same ecstasy in the freedom of inventing life. This also seems to me to be one of the possible readings of this stimulating issue of Interface, and it is the reading that I, for one, would like to invite our readers to share. Only the individual interpretation of each reader, on the other hand, may establish whether or not this shall prove to be a felicitous invitation. São Paulo, February 12, 1999
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A Universidade no limiar do século XXI*
ENS AIOS
Antonio Manoel dos Santos Silva
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SILVA, A. M. S. The institution of universities on the threshold of the 21st century. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999.
Given that the stimulation of reflection on the future of the university institution in its current historical moment is this paper’s focus of concern, the author brings forth ideas from writers who represent various fields and trends, and who have been major sources of idea interchange where his personal reflections on the subject are concerned. Within this “composite of ideas”, he provides a summarized description of the overall circumstances of universities in several countries, going into greater depth where the so called peripheral countries are concerned; he also raises possibilities that may arise or be closed to universities as they reach the threshold of the new century. He concludes his paper setting forth the dreams he has been nurturing relative to the future of the country, as well as pointing out paths that universities could take in the construction of this utopia. KEY WORDS: university, education.
Tendo como preocupação central estimular a reflexão sobre o futuro da Universidade no atual momento histórico da instituição universitária, o autor traz à tona idéias de teóricos que, representando diferentes áreas e tendências, têm sido interlocutores importantes em suas reflexões pessoais sobre o tema. Nesse “arranjo de idéias”, faz uma breve descrição da situação geral das universidades em diferentes países e, detendo-se nos chamados países periféricos, levanta as perspectivas que se abrem e se fecham para a universidade no limiar de um novo século. Conclui expondo sonhos que tem alimentado sobre o futuro do país e apontando caminhos para a universidade na construção dessa utopia. PALAVRAS-CHAVE: universidade, educação.
Palestra proferida no programa de Qualificação do Pessoal Docente para a Gestão Universitária, em 19/08/98, na sala do Conselho Universitário, Reitoria da UNESP. Reitor da Universidade Estadual Paulista - Unesp/SP.
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ANTONIO MANOEL DOS SANTOS SILVA
Muito, se não tudo, desta palestra, constitui um arranjo de idéias tomadas de vários autores. Não será falsa impressão se, ao ouvir-me, vocês sentirem que já leram alguma coisa idêntica ou semelhante em Drummond, Mário de Andrade, Mário Faustino, Eliade, Escotet, Albornoz, Giddens, Marcuse, Pedro Demo, Sérgio Buarque, Petitfils, Darcy Ribeiro, Adam Schaff e muitos outros, especialmente Souza Santos, que consultei mais. Misturo, portanto, poetas, cientistas políticos e sociais, educadores, filósofos, antropólogos e historiadores das mais diferentes e opostas tendências. Não vou ficar citando-os mas compensarei a falta de ostentação erudita indicando, no fim, a lista dos livros de que me servi nesta colagem. Trata-se de falar da universidade num momento de preocupação com o seu futuro. Preocupação que vem motivada pelo fato de que se percebe, dentro da universidade, uma espécie de alienação crescente: verifica-se, de um lado, que os membros da comunidade universitária tendem a isolar a sua instituição dos problemas vividos e enfrentados pela sociedade e, por outro lado, nota-se uma perda de vínculos identificadores internos tanto quando se menosprezam os problemas específicos da administração universitária, como quando se levanta um distanciamento entre a figuração abstrata da Universidade e a própria vivência construída dela. Não é difícil deparar-se a cada momento com manifestações de professores, alunos e servidores técnicos e administrativos, em que cada qual, sendo da universidade, fala desta como se fosse uma entidade de que não fazem parte. Começarei com uma pequena digressão, um tanto imaginária, seguida de breve apanhado sobre a situação geral em que as universidades, sem distinção de lugar, se encontram hoje tanto nos países qualificados como centrais quanto nos enquadrados como periféricos. Depois disso vou-me deter um pouco a estes últimos, apontando para as perspectivas que se abrem ou se fecham no limiar de um novo século. Encerrarei com a exposição de um sonho ou, se quiserem, de sonhos. Como todos sabem, a palavra limiar, como quase todas as palavras, tem muitos significados. O básico é “soleira”; mas tem também outros bem comuns como os de “portal”, “entrada”, “patamar junto à porta”. Interessa-me este sentido de espaço que precede a uma porta, porta que pode abrir-se, como umbral, a um espaço, que, neste caso, é um tempo que está por vir, o século XXI. Na experiência quotidiana, vemo-nos muitas vezes em limiares: vestíbulo, sala-de-espera, sala de recepção, alguma vez já estivemos nesses lugares que nos preparam para a entrevista, para a audiência, para a consulta, para a cerimônia. Quando usamos a palavra limiar, evoco, portanto, um desses locais contíguos e fronteiros a outros que nos esperam. Imaginemos, dentre estes locais, algum que nos seja desconhecido, como quando visitamos pela primeira vez uma clínica ou um consultório, no meu entender, espaços bem adequados para a representação. Estamos, então, sentados na sala-de-espera, e, dependendo do horário e da circunstância, estamos sozinhos. Nas paredes muitos posters, digamos posters de quadros de Van Gogh ou de impressionistas em exposição no museu d’Orsay; excepcionalmente uma cópia de gravura e, mais excepcionalmente ainda, um quadro primitivista. As cadeiras e poltronas são confortáveis, as mesas de
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A UNIVERSIDADE NO LIMIAR DO SÉCULO XXI
canto suportam revistas, várias denotam uso, e uso nervoso. Estamos ali, apreensivos, não só por não saber o que há do outro lado desse limiar e quem vai abrir a porta. Estamos ali porque não sabemos o que vai acontecer depois. Como nos limiares míticos e nos espaços simbólicos de preparação, ouvimos interiormente os augúrios, as predições do futuro e podemos até ler em algum letreiro escuro, como o que Dante leu no começo de sua reveladora aventura, palavras que anunciam a morada do sofrimento e da dor, da condenação e da ausência completa de esperança. Palavras que, com as devidas adaptações interpretativas, poderiam aplicar-se aos que, neste fim de século, pretendem avançar para o próximo. Não temos, como Dante, a graça de um Virgílio que nos guie. Temos, porém, a tradição de Virgílio e de Dante, de filósofos e de historiadores de antes e de depois deles, de sociólogos e de economistas, de cientistas políticos e de utopistas. Temos toda a cultura crítica das universidades. Estamos, pois, em condições de esboçar cenários ou situações gerais para melhor nos localizarmos no limiar do século XXI. Até me arrisco a dizer que os traços fundamentais e importantes desse esboço já foram feitos por Boaventura de Sousa Santos em Pela Mão de Alice, livro cuja leitura recomendo como importante e que pode tornar-se base para reflexões sobre a situação e o destino das universidades. Vou segui-lo meio livremente. A situação da universidade finissecular não pode ficar desvinculada da situação geral por que passa a humanidade inteira, não só por causas estruturais, mas porque as próprias universidades são fonte responsável e geradora dessa situação geral. Os sociólogos e cientistas políticos concordam que as colunas que sustentam essa situação, a regulação e a emancipação, fundam-se no Iluminismo, no século XVIII, sendo cada uma delas armada e constituída por três princípios, cujo equilíbrio, predominância ou subordinação definem a natureza da coluna (não custa imaginar aqui a analogia com uma coluna de concreto armado). A coluna da regulação se forma, se organiza, se orienta, se dirige, se sustenta, se enfraquece ou se fortalece, conforme as circunstâncias, de acordo com a atuação ou do Estado, ou do
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contraditoriamente, da vontade de recuperação da territorialidade (comunicabilidade, não fragmentação do humano, busca de melhor qualidade de vida): desindustrialização das cidades, industrialização do mundo rural, micro-urbanizações rurais etc. 8 Diferenciação dos produtos de consumo, incluindo os de alimentação e vestuário, de modo que se particularizem os gostos e se aumentem as possibilidades de escolha. 9 Informatização e comunicação instantânea. Todos esses traços se verificam quando olhamos o mundo atual desde a perspectiva do Mercado, que constitui o princípio prevalente. Se o olharmos, agora, da perspectiva do Estado, verificamos, primeiro, que este se enfraquece em sua atuação diante de algumas necessidades ou demandas sociais, que são direitos humanos e verdadeiros, como a saúde e a educação. Observa-se uma retração do Estado, por meio de seus governos, às políticas sociais. Os dirigentes perdem a capacidade ou a vontade política de responsabilizar-se por esferas da produção até mesmo estratégicas para o desenvolvimento social (privatizações). Do ponto de vista externo, verificamos em nós, à nossa volta em países vizinhos e também em outros mais distantes, a debilitação do Estado por força da adesão de diferentes governos à transnacionalização da economia. Por outro lado, podemos notar outro fenômeno que reforça a subordinação crescente do Estado ao princípio do Mercado. Parece paradoxo formal, mas constitui real e histórica contradição, o fato de que o Estado se debilita na medida em que procura fortalecer-se por meio da transferência de responsabilidades e competências que não têm relação direta com os setores que os governos consideram essenciais, ou seja, os setores da própria e restrita administração de governo, melhor diria, de gerência de recursos. Há governos que tendem a governar-se a si mesmos, pela redução do Estado a eles próprios. Uma das conseqüências dessa redução consiste em identificar-se reforma administrativa com reestrutura de gestão; outra conseqüência é a multiplicação de microdespotismos burocráticos. Vejamos agora, dentro deste quadro, como se sai o princípio da Comunidade, coagida pelo Estado que se mercantiliza. E neste caso convém ressaltar o surgimento de fenômenos de resistência, dialeticamente explicáveis, tais como as novas práticas de mobilização social. São movimentos orientados por reivindicações mais globais ou de caráter mais geral, como os da preservação da natureza, do pacifismo, do anti-racismo, do feminismo, do homossexualismo, notando-se neles, como não poderia deixar de acontecer, a amenização do discurso radical que caracterizou muitos movimentos sociais anteriores. Menos pasteurizados, porém, ainda que com os riscos do filtro homogeneizador e da absorção político-ideológica dominante, observam-se movimentos críticos e dirigidos para interesses de classes e de grupos excluídos. Apesar disso, prevalece a adaptação, cujo resultado mais notável está no aumento astronômico dos setores de serviços. Ao mesmo tempo assiste-se à progressiva diferenciação e ao fracionamento interno das classes trabalhadoras que vão caminhando para as subclasses e para a diluição.
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Talvez esta seja uma das causas da diminuição de sindicalizados, bem como do enfraquecimento do espírito de lealdade dos filiados a seus sindicatos: os interesses de classes vão-se substituindo por interesses corporativos e individuais. Para completar, vão perdendo substância os conteúdos ideológicos dos partidos de esquerda, cujos discursos se amenizam e cujos apelos para a ação concreta vão-se transformando, principalmente em períodos eleitorais, em generalizações abstratas e aceitáveis pelas massas temerosas de inovações. Quanto à emancipação, o princípio da racionalidade estético-expressiva se dá, neste limiar do século XXI, pela dissolução. Tudo que pode significar alta cultura ou criação original, mesmo coletiva, interpreta-se como sobrevivência do arcaico, como contaminação (uma impureza) ou, no melhor dos casos, como marginalidade. Essa dissolução, que se observa, no plano da crítica, no não entendimento do que seja alta cultura, se realiza por meio da rápida comercialização, por meio da distração impositiva e por meio da reprodutibilidade técnica. Muitos posters (por que não cartazes?) e poucos quadros. Também se observa no predomínio da técnica sobre a arte, do virtuose sobre o artista, do padrão venal sobre o criativo e instigante. Também caracteriza a situação geral presente, a intensidade cada vez maior da modernização por meio da ciência e da tecnologia, com mais ênfase na tecnologia do que na ciência e - isto se torna significativo - com a indução do desenvolvimento de ambas consoante os valores de mercado. Em termos de vida social, o mundo finissecular mostra um ordenamento jurídico que põe às claras o divórcio entre alguns valores da modernidade, como a autonomia e a subjetividade, e as práticas políticas e quotidianas. Incrementam-se regulamentações jurídicas que se auto-alimentam e se multiplicam, dando origem a novas regulamentações, que dêem conta das primeiras. Por fim, neste campo da racionalidade moral-prática, assiste-se hoje ao problema grave da dissolução ética que consiste no confinamento cada vez mais estrito dos seres humanos em individualismos intransponíveis. Assim – e contrastando – se vemos hoje emergirem, positivamente, novos direitos e novas idéias de solidariedade, vemos igualmente, e de modo violentamente destrutivo, tornar-se valor predominante a competitividade. Em resumo, a situação geral se caracteriza por isso que nós hoje vulgar e banalmente chamamos de globalização, entendida esta como desenvolvimento fundado no eixo da economia de mercado e cujos aspectos mais visíveis são os que se seguem: interdependência tramada pelas leis do mercado financeiro; concentração dos fios dessa trama em três regiões nodais do planeta – EUA, Japão e Europa Ocidental – com seus pontos cegos nas Bolsas de Valores, principalmente as de Nova York, Tóquio e Londres; criação e integração de grandes mercados regionais (Nafta, Mercosul, Mercado Comum Europeu); operações financeiras fortemente rápidas; informação em tempo real; competitividade; transformação do conhecimento em valor econômico (mercado do conhecimento); e aprofundamento das assimetrias sociais. Jamais o mundo foi tão rico, mas nunca foi tão iníquo como neste fim de século. Os países centrais detêm cerca de 90% do intercâmbio econômico e
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A UNIVERSIDADE NO LIMIAR DO SÉCULO XXI
80% do dinheiro mundial. Os outros, considerados periféricos, ficam com o restante. Esta assimetria global ganha a forma de grandes assimetrias sociais nas regiões não favorecidas pelo desenvolvimento econômico mais acentuado. Assim, no Brasil, considerado uma das maiores economias do mundo, apenas 7% da população desfrutam ou têm condições de desfrutar dos bens produzidos com essa riqueza, 70% situam-se entre os níveis de pobreza e da mais completa miséria. Deste modo não se exagera quando se qualifica essa situação como de iniqüidade. Os países periféricos têm-se tornado fonte de subcontratações ou de alto lucro para as empresas sediadas nos países centrais; mas têm-se tornado também fonte de preocupações, na medida em que o atraso pode irromper em movimentos de rebeldia, em migrações incontroláveis e em retorno a sistemas de governo ultraconservadores. Ao mesmo tempo se propaga a modernização reflexa não apenas nas artes e na literatura, mas nos costumes e na cultura, incluindo aquela parte da cultura que se faz por consumo e que se traduz em valores de vivência e de convivência (esportes, formas de lazer, vestimenta, culinária, música popular massificada etc.). Essa homogeneização denota empobrecimento cultural. Finalmente, muitos países periféricos tentam diminuir a distância científica e tecnológica que os separa dos países centrais. Neste afã de modernização acabam por reproduzir métodos, técnicas, processos e resultados. Daí, o que constitui ativa racionalidade tecno-científica em regiões avançadas, nas demais se torna passiva recepção. Este é um ponto fundamental para as universidades. As universidades estão entre as instituições mais antigas e conservadoras que o Ocidente criou, consolidou, manteve e expandiu. Talvez por causa dessa antigüidade e desse conservadorismo, são as que mais sentem a inversão da ordem que torna o Mercado o princípio que se sobrepõe aos demais princípios da regulação. Por ironia histórica, deveriam estar preparadas para a nova ordem, uma vez que ajudaram a engendrá-la, se não constituem elas mesmas a fonte que lhe deu origem. De fato muitas são as crises por que passam as universidades. Boaventura de Sousa Santos, no livro já citado, sintetizou-as em três: a crise de hegemonia, a crise de legitimidade e a crise institucional. A primeira deriva da tensão entre conhecimentos exemplares e conhecimentos funcionais, e atinge o núcleo da missão constitutiva da universidade. A segunda se origina da tensão entre hierarquização e democratização, perturbando o núcleo de sua destinação. A terceira constitui resultado da tensão entre autonomia e produtividade social, e abala as relações com sua estrutura de sustentação. As universidades, principalmente quando pensadas como uma abstração maiúscula (a Universidade), sempre se qualificaram como templo do saber ou, mais humildemente, como o lugar privilegiado do conhecimento, tanto no sentido de que este ali se produz, quanto no sentido de que ali se
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apresenta-se nas recentes políticas de financiamento, que contrastam com as demandas do Estado e da sociedade. Estas crescem, enquanto os orçamentos encurtam ou, no melhor dos casos, estacionam. Cria-se, por causa disso, a impressão de que as universidades não correspondem aos recursos que o Estado lhes destina, não produzem, isolam-se da comunidade e não atendem, por incompetência ou por elitismo, às exigências da sociedade (que se entende geralmente como o mercado). Esta crise internaliza-se na universidade pública por meio de conflitos distintos e variados, que se revelam tanto nos discursos que representam as instituições quanto nos discursos das corporações, desdobrando-se, por outro lado, no conflito entre estes e sua prática. Um deles se faz presente na inconciliável superposição de concepções coexistentes na identificação da universidade, cuja natureza se pretende seja ora social, ora funcional, ora gerencial. Outro está na defesa da autonomia ilimitada (ou limitada apenas pelo estatuto constitucional) e a rejeição de qualquer tipo de acompanhamento e controle social. Um terceiro consiste em defender (e defender com intransigência) o caráter público da universidade mas aceitar, com conivência ou conformismo, a privatização dos serviços por meio de Fundações de Direito Privado. Enfatizando que a privatização do público constitui a face mais escandalosamente encoberta da crise institucional de algumas universidades sustentadas pelo Estado, e, por esta razão, a fissura mais grave em sua natureza e finalidade, a tensão que lhe é inerente tem outros lados mais visíveis: o da privatização paralela, o da competitividade com as universidades privadas, o da importação de estruturas administrativas e organizacionais forâneas (comerciais, industriais e financeiras, por exemplo), e todas, repito, todas as avaliações de desempenho que preferem os resultados quantificáveis aos processos qualificáveis. Nos países menos desenvolvidos, como o Brasil, as tensões acima resumidas e brevemente comentadas acontecem num grau maior ou mais intensamente. O risco maior para as universidades destes países é o de se transformarem elas em centros de reprodução acrítica de ciência (pode ser assim chamada?) e de tecnologia, que constitui a força mais dissolvente da globalização e do fenômeno da modernização reflexa. Essa adesão ao desenvolvimento fundado no eixo do mercado, verifica-se com muita clareza nos seguintes e principais pontos: 1 “produção” de conhecimentos e de técnicas em função das demandas de mercado; 2 concepção de ensino como adestramento; 3 busca, no mercado científico internacional, de lideranças em pesquisa e, obsessiva e exclusivamente, de padrões internacionais de julgamento; 4 envio, aos países centrais, de lideranças científicas potenciais (conseqüentemente, estímulo à evasão de cérebros); 5 estabelecimento de intercâmbios isolados com núcleos de excelência científica dos países altamente desenvolvidos; 6 arremedo de laboratórios de ponta (de ponta nos países do primeiro mundo).
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Uma adesão irrestrita e não refletida ao fascinante mundo superdesenvolvido, torna a universidade de país periférico semelhante ao herói plano ou superficial que, sob as ordens de um destinador onipotente, cumpre sua missão sem pestanejar, enfrentando todas as dificuldades ogros, dragões, bruxas e feras, inimigos terríveis - sendo favorecido com o casamento com a filha do rei, com parte do reinado ou com o prêmio da riqueza ou do prestígio. Deve comportar-se a universidade brasileira como um herói domesticado? Se adotasse aqui a postura de uma representatividade neutra, diria que a universidade pode sucumbir a essa adesão. Entretanto, vou-me afastar dessa neutralidade, misturando escolha ideológica e um pouco de reflexão realista. Acredito que as universidades do mundo não desenvolvido têm que resistir ativamente contra a situação geral que vivemos no final do século XX, em pleno capitalismo financeiro ou, se quiserem, em plena época de desenvolvimento centrado no eixo exclusivo do mercado. Acho que essas universidades não podem aderir; acho que devem resistir de forma positiva. Advogo, pois, uma resistência positiva. Isto significa para mim que as universidades brasileiras devem ter a percepção realista de que o processo de globalização se fortalece cada vez mais em torno do eixo estritamente econômico e de mercado, não dando sinais de enfraquecimento e causando profundas inquietações regionais e às vezes até turbulências sociais. Todos os acontecimentos recentes que perturbaram a economia mundial, ao contrário de indicarem algum desvio dessa rota desenvolvimentista específica, apenas confirmam o roteiro. As universidades têm de perceber este fato, assim como têm de perceber emergências não previstas nesse processo de desenvolvimento, emergências que dialeticamente contradizem a globalização e os princípios que a fundamentam, a começar da irracionalidade que marca os movimentos da especulação financeira internacional. Emerge uma sociedade civil global, ligada por meio de tecnologias comunicativas, que evoluem com base na informação compartilhada e que possibilitam a crescente consciência de identidades diferenciadas e de culturas locais e regionais. Desse modo, vai-se verificando uma espécie de participação global que, em vez de anular o específico, chama a atenção para este. Ao mesmo tempo, pode-se perceber que hoje se está formando uma nova consciência coletiva - nem sempre crítica -, mais ampla talvez, sobre a importância da natureza, das culturas nacionais, da solidariedade entre os povos e entre as sociedades. Surgem também propostas de novos estilos de vida que visam à distribuição mais justa dos recursos naturais e da riqueza. Sente-se que o sentimento de solidariedade geral pode impulsionar o desenvolvimento humano para formas globais de intercâmbio, para o florescimento de diversas culturas e para o diálogo de culturas excluídas ou marginais com a alta cultura da racionalidade científica e tecnológica. Finalmente, pode-se descobrir, neste final de século, a permanência e o cultivo de utopias conciliatórias: conciliação entre a preservação da autonomia com as exigências da solidariedade, e incorporação de processos de modernização internacionais, por meio de adaptações e transformações,
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para a solução de necessidades locais. Por tudo isso, que perspectivas de resistência positiva se abrem para a universidade brasileira hoje? Ouso responder que as seguintes: l a recepção crítica da ciência e da tecnologia produzida nos países centrais; 2 a reversão tecnológica, ou seja, a desmontagem, transformação ou adaptação das tecnologias em função de nossas carências e realidades; 3 a orientação de nossos esforços de ensino e de pesquisa para as necessidades sociais, sentidas ou não sentidas, o que implica sensibilidade e antena para problemas de pobreza ou de carência material, espiritual, intelectual e ética; 4 diversificação de visões, interpretações e instrumentos de intervenção, por meio de enfoques comparativos, de estudos internacionais e interculturais, de projetos interinstitucionais e inter-regionais, enfim, por meio da recusa à homogeneização. E completo dizendo que essa resistência positiva pede a adoção de estratégias acessíveis, algumas das quais imprescindíveis: o ensino fundado na construção do conhecimento e enraizado na história e na experiência concreta; a criação e o desenvolvimento de programas de pós-graduação abertos, isto é, estruturados em níveis permeáveis e com entradas independentes; o domínio de linguagens, incluindo o domínio da língua portuguesa; a criação de redes regionais, nacionais e internacionais de pesquisa; e a utilização de intercâmbios eletrônicos e educativos. A universidade resistente se configura aqui como um herói problemático, ou seja, como aquela personagem que busca, num mundo inautêntico e degradado, mesmo que seja por meios inautênticos ou degradados, valores autênticos. O destinador desse herói problemático seria o ideal de uma sociedade justa e sua ação incidiria sobre a sociedade iníqua, que deve transformar-se a despeito desse grande e feroz oponente que é a mão invisível e opressiva do mercado. Se acreditarmos nesta possibilidade de resistência positiva, teremos muito que fazer, já que não será fácil gerenciar tensões. Chego assim à terceira e última parte de minha palestra. A do sonho, e que, estando motivada pelas considerações anteriores, contém algo de nostalgia e de mito. Esta parte final parece traduzir o ideologema que se concretizou culturalmente - e por séculos - na fórmula do Brasil, país do futuro; mas também parece comportar a visão edênica num momento - fim de século propício ao florescimento, ainda que camuflado, da imagem da renovação e do começo de uma nova história. Parece ambas as coisas. Mas não é. Pois estamos diante do século XXI. Dois corredores possíveis nos esperam depois que a porta se abrir. Que será o futuro século? Será o da fusão entre utopia e paraíso perdido? Se for assim, que canteiro desse vasto jardim do mundo o Brasil vai ocupar? Será por acaso, o século XXI, um século a tal ponto globalizado que as diferenças regionais e as identidades nacionais emergirão apenas como lembranças de um bárbaro século XX, dividido entre nações e tribos, religiões e seitas, línguas e dialetos, privilegiados e miseráveis, inseridos e excluídos, terras arrasadas e reservas ecológicas? Haverá sentido em falar de Brasil e de universidade nesse país, que estará num mundo indiferenciado e sem tensões
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históricas? Entretanto o tema desse sonho, tal como é imaginado, pressupõe a existência de uma nação chamada Brasil e, implicitamente, as diferenças e os conflitos. Além disso pressupõe, como sonho, o objeto de desejo coletivo, se sonho coletivo. Que Brasil queremos, para saber que universidade seremos? A menos que o individualismo mais solipsista e a competição mais destrutiva tenham levado os homens à total cegueira e ao ceticismo feroz, a resposta a essa interrogação vem sendo dada em todas as entrevistas de rua que se prolongam em outros discursos com maior ou menor aprofundamento, com sutilezas tecno-verbais ou avaliações mais complexas. Queremos um país em que todos possam viver felizes. Um país em que todos se sintam seres humanos de verdade. Eis uma resposta geral e de qualquer tempo e para qualquer tempo, tão universal como uma aldeia. Poetas brasileiros deste século XX, sob o signo do universalismo ou do particularismo, já exprimiram este desejo, sem para isso retornarem aos sonhos românticos ou ufanistas do século XIX. Mário de Andrade idealizou uma terra de convívio fraterno, sem trabalho penoso: uma civilização solar em que a preguiça não tivesse a marca do pecado. Mário Faustino, morto tão jovem, ora projetou a cidade exata, aberta e clara, onde os contrários se conciliam, ora construiu, com imagens visionárias, um lugar de perene manhã, lugar este modelado e sustentado pelo cultivo das artes e das ciências fundidas no mesmo fazer humano. Carlos Drummond de Andrade projetou o país tecido pelo fio da convivência das diferenças regionais, país assinalado pela tolerância das diferenças; sem repressão da liberdade, sem grades e sem fronteiras. Se de fato nossos poetas exprimem o que queremos para o futuro do Brasil, exprimem o universal desejo de realização dos nobres ideais da fraternidade, da igualdade, da liberdade, da justiça e da paz: universalismo, autonomia e individualismo coletivamente sustentado. Poder-se-ia contestar a tais poetas que eles manifestam, sob diferentes cores ideológicas, aspirações vagas demais, mas são aspirações que se traduzem concretamente hoje pelo seu inverso, ou seja, pela exposição de necessidades e de carências de toda ordem. No fundo, os poetas - e nós com eles - desejamos que no século XXI o Brasil seja a negação da não liberdade, da não justiça, da não fraternidade, da não igualdade, da não paz, negação, enfim, de toda negação. Caberia saber quais caminhos trilhados por nós vão-nos conduzir a esse futuro e, nos limites de uma faixa institucional, a faixa da educação superior, saber o que se pode fazer para constituir esse futuro, quer seja carimbado pela marca da produtividade e da competitividade, cuja bandeira é a inserção no primeiro mundo, quer seja ele o resultado possível da busca dentro dos conflitos históricos previsíveis de uma civilização amadurecida por meio de projetos realizáveis e em função de uma sociedade menos hierarquizada, menos dividida, menos fragmentada e iníqua e mais humana. O primeiro caminho tem como ponto-de-chegada o primeiro mundo para onde vai o primeiro corredor após a porta da sala-de-espera em que nos imaginamos estar. O roteiro dessa viagem é conhecido, e se trata de percorrer a trajetória que vai do subdesenvolvimento ao desenvolvimento
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pleno. Assim, o Brasil do século XXI, será o país com os níveis de crescimento econômico e de bem-estar que os países centrais tenham atingido. Está claro que, ao visualizar esse primeiro mundo, se faz uma assepsia. Configura-se um espaço uniforme e limpo, como se todos os viventes desse espaço usufruíssem por igual, e com iguais oportunidades, das riquezas materiais e dos produtos derivados da alta tecnologia. Esquece-se de seu belicismo, de suas sofisticadas estruturas de dominação econômica, de seus nichos de miséria e de preconceito, da desumanização dos aglomerados urbanos, da poluição e da degradação ambiental, da ação destrutiva próxima ou distante sobre outros países e suas condições de vida. Concomitantemente, esse mundo de delícias fica fossilizado no futuro, como se no século XXI não estivesse ele assentado em outras bases. Assim abstrato e suspenso, coloca-se como medida de nosso progresso e de nosso desenvolvimento. Em função dele somos chamados, convidados, incitados, convocados, pressionados e obrigados a aceitar uma nova ordem em que se dá mais valor à produção e à circulação de bens do que aos criadores e aos usuários dos mesmos. O defensor desse modelo desejável de sociedade futura descobre com acerto a importância da educação, tanto fundamental quanto média e superior, embora a conceba como instrumento de produção de recursos humanos, exigidos pelas demandas econômicas do país. Nem se poderia conceber a educação de forma diferente, uma vez que, nesse cenário de desenvolvimento, domina o esquema do desempenho e da produtividade, cuja estrutura determina a elaboração de mensurações, em que os enfoques quantitativos direcionam as avaliações, os planejamentos lineares e as projeções de custo e benefício. Percebe-se hoje com facilidade a multiplicação de discursos, programas e propostas em que se estabelece relação direta de produtividade, competitividade e avaliação quantitativa com os níveis de educação e de instrução da força de trabalho, usando-se exemplos internacionais, inclusive asiáticos. Nossas referências de políticas (ou de falta de políticas) educacionais operam com correspondência de alto grau de escolarização com muito lucro, correspondência entre taxas de investimento em educação e resultados positivos de outros tipos de investimentos. Na prática, as próprias universidades, neste limiar de século XXI, se vêem metidas no campo da competição de quantidades: número de alunos por docente, número de alunos por funcionário, número de trabalhos publicados, número de citações em revistas de circulação internacional, pesquisadores mais produtivos, capacidade de captação de recursos junto a empresas e a órgãos de fomento etc. E tendo em vista que o primeiro mundo não fica esperando o cumprimento de nossa trajetória, as necessidades presentes forçam planificações lineares de curto e médio prazos, gerando um ritmo de constante mudança. Feitos em função das necessidades de mercado, esses planejamentos visam à produção de recursos humanos qualificados pelo sistema formal ou, com outras palavras, exigem do sistema formal de educação um padrão de qualidade medido pelo mercado, dá prioridade à formação de profissionais e técnicos e se organiza por meio de estratégias
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preferencialmente voltadas para carências imediatas de empresas, geralmente privadas. Acontece, porém, que no próprio primeiro mundo, refletindo-se dramaticamente no terceiro, que lhe vai a reboque, os planejamentos lineares e sua prática levam à diminuição da qualidade da educação, pois o sistema formal em que se apóia a fábrica de recursos humanos, incentiva o ganho de prestígio e de sucesso, quando não a posse de certificados, diplomas ou títulos. A esta substituição da busca do conhecimento pela busca de certificados, soma-se outra contradição: a prioridade dada à formação de recursos profissionais e técnicos, para atendimento das necessidades da economia, acaba gerando estoques de recursos que se vão deteriorando e se inutilizando nos armazéns de profissionais. Deste modo assistimos hoje, tanto no primeiro mundo, como no nosso, ao crescimento de profissionais diplomados sem emprego ou de profissionais com diploma empregados em trabalhos para os quais não foram adestrados. Por fim, o ciclo formal de educação que projeta um futuro premido pelas necessidades imediatas, ao durar mais de década e meia, acaba preparando profissionalmente os homens do século XXI, segundo objetivos e necessidades ultrapassados. São essas umas poucas contradições de tantas que nos afetam no plano da educação superior, se agimos em função de um Brasil do século XXI, modelado pela imagem ou forma do primeiro mundo. Voltemo-nos agora a outro projeto futuro - entrando no segundo corredor - a outro Brasil desejado e tendo sempre em mente a natureza instável de qualquer previsibilidade. Sintetizando grosseiramente nosso múltiplo e plural querer, imaginamos um país em que a economia estará organizada em função da justiça social: todos terão igualdade de direitos e de oportunidades, emprego garantido e trabalho não penoso, trabalho que ajudará no provimento de moradia, vestimenta e alimentação adequada e, se houver abundância de bens, isto acontecerá sem que parcela da população sinta alguma falta deles. Serviços públicos, como saúde e educação, serão gratuitos. Estarão em curso algumas superações: superação da divisão entre o produtor e o produto de seu trabalho, superação da ruptura entre as necessidades humanas sentidas e não sentidas, conscientes e inconscientes. De modo geral, na sociedade brasileira do Século XXI, as regras e as condutas de sobrevivência humana se sobreporão e regularão a todo excesso de individualismo; as técnicas estarão subordinadas ao conhecimento e, sob o consenso coletivo de que há limites e constrangimentos reais que garantem a sobrevivência humana e sua harmonia com a natureza, o homem brasileiro será tanto sapiens quanto faber, um autocreator do desenvolvimento tecnológico de um universo globalizado. Trata-se de utopia, porém não de uma utopia regressiva que sublima a nostalgia num paraíso perdido, se contenta com a contemplação e, pessimista, exclui toda esperança, vale dizer, toda ação humana em busca de um bem futuro. Digamos tratar-se de uma utopia concreta que projeta um futuro segundo um conhecimento sem dúvida imperfeito das tensões e das contradições
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históricas presentes e que pede o compromisso de todos. Aqui também a educação superior desempenha um papel central como instrumento que tornará possível o novo país. Uma educação que, todavia, toma os seres humanos completos como eixo do desenvolvimento ou, se quiserem, do progresso. A tarefa consiste em formar o homem no conhecimento de si mesmo e das circunstâncias que o tornam homem: natureza, sociedade e cultura herdada; consiste igualmente em situar esse homem na sua dimensão política de sujeito e objeto de desenvolvimento, integrado ao processo de construção de um novo país, correlacionado, por sua vez e integradamente, a outras nações. Essa educação requer planejamento que, articulando objetivos de curto e médio prazos, integre-se com políticas mais duradouras, ainda que flexíveis, em função de uma ainda-não sociedade. Implica, no presente, ações orientadas para a democratização, para a inovação e para o desenvolvimento autônomo. Cada uma destas orientações demanda estratégias com programas realizáveis dentro de nossas limitações. No caso da universidade orientada para a democratização, pensemos na diversificação e na expansão do sistema com programas de fomento da participação popular e da educação à distância. No caso da orientação para a inovação, pensemos no campo da educação informal com os programas para desenvolvimento das comunidades urbanas e rurais ou, no campo da educação formal com a criação de instituições de educação superior aberta. E no caso da orientação para o JAIR GLASS, coleção particular de Ricardo Teixeira desenvolvimento autônomo, pensemos no estabelecimento da rede de centros nacionais de pesquisa de que participariam as universidades ou, para encerrar esta lista de sugestões, pensemos nas estratégias de cooperação internacional em ciência e cultura. Estes são alguns horizontes do sonho que se abre para a Universidade de hoje, em função do Brasil que podemos imaginar no século XXI, desde este fim de século, seu limiar.
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SILVA, A. M. S. La universidad en el umbral del siglo 21. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999. Teniendo como preocupación central estimular la reflexión sobre el futuro de la universidad en el actual momento histórico de la institución universitaria, el autor pone de relieve ideas de intelectuales que, representando diferentes áreas y tendencias, han sido interlocutores importantes en sus consideraciones personales sobre el tema. En esta "composición de ideas" hace una breve descripción de la situación general de las universidades en diferentes países y, deteniéndose en los llamados países periféricos, levanta las perspectivas que se abren y se cierran para la universidad en el umbral de un nuevo siglo. Concluye exponiendo sueños que ha alimentado sobre el futuro del país y apuntando caminos para la universidad en la construcción de esta utopía. PALABRAS-CLAVE: universidad, educación.
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Globalização, neoliberalismo e universidade: algumas considerações
Marília Freitas de Campos Pires1 José Roberto Tozoni Reis2
PIRES, M. F. C.; REIS, J. R. T. Globalization, neo-liberalism and universities: a few considerations. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999.
This article presents the main signs of the globalization process as well as the basic principles of the neo-liberal project currently being developed all over the world, and assesses the consequences of the subordination of a peripheral economy to the interests of international capital. The process of economic globalization and the progress of neo-liberal ideas impose upon Brazilian society the transformation of public education and health-care services, turning them into vehicles for the private accumulation of capital. This occasionally takes place in a disguised manner, worsening the quality of life of the bulk of the population. KEY WORDS: urban reform, organization and administration, social policy.
Este artigo apresenta as principais marcas do processo de globalização e os princípios básicos do projeto neoliberal em desenvolvimento no mundo atual e considera as conseqüências da subordinação de uma economia periférica aos interesses do capital internacional. O processo de globalização da economia e o avanço das idéias neoliberais impõem à sociedade brasileira a transformação dos serviços públicos de educação e saúde em meios de acumulação privada de capital, algumas vezes de forma dissimulada, em prejuízo das condições de vida da maioria da população. PALAVRAS-CHAVE: Reforma urbana, organização & administração, política social.
1
Professora do Departamento de Educação do Instituto de Biociências de Botucatu - Unesp/SP.
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Professor do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp/SP.
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Ouvimos, hoje, em todos os setores da vida social, falar de uma nova ordem mundial. A conjunção de uma crescente internacionalização e interdependência dos mercados com a formação de áreas de livre comércio e a chamada Terceira Revolução Tecnológica caracterizam atualmente a globalização da economia. A globalização tem aparecido como uma nova diretriz para a organização da economia dos mais diferentes países do mundo, atingindo todos os setores da organização social. As metáforas da globalização estão por aí (Ianni, 1997): fim do Estado, fim da Geografia, fim da História, mundialização, aldeia global, mercado único etc. No entanto é preciso lembrar que o capitalismo sempre foi internacional. O movimento de expansão é uma tendência inerente ao capitalismo. Já em 1848 Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista, entre outros escritos, apontavam a tendência à expansão do capitalismo como uma característica deste modo de organização da produção: ...Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com seriedade suas condições de existência e suas relações recíprocas. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais matériasprimas autóctones, mas sim matérias-primas vindas de regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam, para sua satisfação, os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolve-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal (Marx & Engels, 1968, p.26-7).
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Então a tendência à expansão, à globalização, acompanha o capitalismo desde que este modo de produção substituiu o modo de produção da velha sociedade. A vontade de construir uma sociedade global, racional e harmônica está presente no Iluminismo que sustenta, idealmente, a sociedade capitalista já na sua origem. Então o movimento de expansão é uma característica de sua trajetória em busca de sua finalidade, de sua plena realização e seu estado atual explicita esta tendência histórica. No entanto, a globalização pode ser entendida também como uma nova modalidade de acumulação de capital. Em momentos anteriores a principal estratégia de acumulação capitalista concentrava-se na extensão da produção de valor e de mais valia. Nesta nova modalidade da acumulação, a apropriação de riquezas é resultado, principalmente, de atividades especulativas do mercado financeiro. Este atual momento de expansão do capitalismo tem algumas marcas específicas. A aceleração da automação da produção somada à agilização dos processos de comunicação, os quais possibilitam afetar de forma imediata o mercado financeiro, permitem a troca não de mercadoria, nem de moeda física, mas de informação. O que caracteriza mais claramente o processo de globalização é a revolução tecnológica informacional. Não há, a rigor, troca de mercadorias nem de papel moeda; há, sim, troca de informações sobre dinheiro, há troca de informações sobre papéis que significam dinheiro. Há uma grande abstração da troca. Uma outra marca do estágio do capitalismo atual, globalizado, diz respeito à hegemonia das idéias neoliberais. A dimensão político-ideológica deste atual momento do capitalismo é a associação globalização/ neoliberalismo, apresentada como a ante-sala da realização do sonho iluminista de uma sociedade harmônica e racional. A proposta política neoliberal tem origem na crise teórica, política e econômica do socialismo real e do capitalismo internacional. Essas crises evidenciaram a necessidade de reorganizar o modo de produção capitalista. O modelo neoliberal implantado nos países capitalistas avançados expandese por toda parte (Anderson, 1995). O que aqui se coloca, segundo Anderson, vai além dos aspectos econômicos que parecem predominar nessa discussão; sua expansão pode ser por ora compreendida como um fenômeno internacional de enorme importância: Neste sentido, qualquer balanço atual do neoliberalismo só pode ser provisório. Este é um movimento ainda inacabado. Por enquanto, porém, é possível dar um veredicto acerca de sua atuação durante quase 15 anos nos países mais ricos do mundo, a única área onde seus frutos parecem, podemos dizer assim, maduros. Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguiu nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores originalmente jamais sonharam,
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disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas (Anderson, 1995, p.22-3).
O neoliberalismo é a retomada de alguns princípios do capitalismo liberal do século XIX. É a reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem estar (Anderson, 1995) que se instalou em alguns países no pós guerra, influenciado pela Revolução Soviética em 1917. É a busca de uma política econômica que vigore sem qualquer limitação dos mecanismos do mercado. Friedrich Hayek foi seu principal pensador, com O Caminho da Servidão, publicado pela primeira vez em 1944. Hayek (1990) coloca-se veementemente contra o Estado Previdenciário, argumentando que este tipo de organização da sociedade abate a iniciativa individual que produz a riqueza, da qual toda sociedade se beneficia a médio e a longo prazo. Neste sentido, a desigualdade social é um valor positivo para gerar e manter o desenvolvimento econômico. A desigualdade é importante para a prosperidade, e a concentração de riquezas beneficia toda a sociedade. Esta alternativa ao Estado Previdenciário pode ser entendida principalmente pelo seu descomprometimento com as políticas públicas econômicas e sociais, pela tentativa de implantação do Estado mínimo. Do ponto de vista conjuntural, esta proposta surgiu para o enfrentamento da crise financeira do modelo de Estado Social - Democrata. Esta reestruturação global do capitalismo elegeu o mercado como o grande regulador econômico e social. A moeda estável, a concentração de riquezas, a contenção de gastos com as funções sociais do Estado, o combate ao sindicalismo e a taxa natural de desemprego são traços e, ao mesmo tempo, metas do ideário neoliberal: ...as raízes da crise estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos que havia corroído as bases da acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais (Anderson, 1995, p.10).
A reação contra o Estado intervencionista e o Estado de bem-estar social e a busca do Estado mínimo, emergiram também da crise fiscal do Estado. No entanto, Estado mínimo não significa Estado fraco. O modelo do Estado forte mas desobrigado socialmente é o que se pode chamar da síntese do neoliberalismo (Anderson, 1995). O Estado forte intervém na economia não mais como regulador das relações sociais, mas principalmente para possibilitar o modelo de acumulação neoliberal, que hoje privilegia o capital financeiro. 3 A atual etapa do capitalismo tem caráter extremamente competitivo (Therborn, 1995) e, em sua reestruturação global, situa o mercado como grande regulador econômico (Santos, 1995; Moraes & Duayer, 1995). O Estado tem que ser suficientemente forte para impor políticas que favoreçam a acumulação especulativa, o que necessariamente aumenta o desemprego e a crise.
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3 O recente ajuste fiscal imposto pelo FMI ao Brasil, no enfrentamento da crise no segundo semestre de 1998, expressa este modelo de organização do Estado. O setor público teve, no primeiro semestre de 1998, um superávit primário de meio bilhão de reais, isto é, gastou em atividades próprias do Estado menos do que arrecadou. No entanto, ao pagar 33 bilhões de reais de juros aos grandes bancos, operou um déficit nominal de 32,5 bilhões de reais com previsão de aumento até o final do ano, em função do aumento das taxas de juros. O Estado então intervém na economia, em sua dimensão financeira. O pagamento de juros para 1999 necessitará de mais de 25 bilhões de dólares que serão gerados, segundo diretrizes do FMI, com aumento de impostos e cortes de gastos em todos os setores dos serviços públicos. (Folha de São Paulo, (11/09/98),
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A desregulamentação da economia, pelo Estado, é fundamental para a implantação desse modelo econômico em todo o mundo. Desde o fim da década de setenta e principalmente nas décadas de oitenta e noventa, o neoliberalismo vem se expandindo. Já no Manifesto encontrávamos a relação entre expansão e dominação (Lowy, 1998). Hoje, mais do que então, assistimos ao capital dominando o mundo. O capitalismo é um processo simultaneamente social, econômico e cultural e seu desenvolvimento é desigual e contraditório (Ianni, 1997). O capital exerce um poder ilimitado sobre todo o mundo. As regras do mercado livre e do lucro capitalista controlam todas as esferas da vida humana (Lowy, 1998). Margareth Thatcher na Inglaterra, Reagan nos USA, Khol na Alemanha, entre outros, defenderam políticas neoliberais e de desregulamentação implantadas pelo G-7 e FMI consolidando, nos anos noventa, o atual regime de acumulação de capital. Para o neoliberalismo, a receita para recuperar o crescimento passa pela estabilização da moeda, contendo os gastos com o bem estar social, pela reforma fiscal que concentra riquezas, e com isso possibilita novos investimentos e também pela restauração de uma taxa “natural” de desemprego. O desemprego em massa produzido pelo neoliberalismo em todas as partes do mundo é o componente mais perverso da nova ordem. Partindo do pressuposto de que só o capital concentrado cria riquezas, isto é, aumento de capital significa investimentos, o desemprego, ou melhor, a taxa natural de desemprego, que faz diminuir os salários, garante maior taxa de lucro e, portanto, maior acumulação de capital. Desta forma o desemprego não é uma conseqüência indesejada da economia neoliberal, mas um de seus componentes estratégicos. A utopia da construção do homem pleno pela organização social do trabalho, contida nos escritos de Marx e Engels, pode ainda ser alcançada? Nesta lógica, o domínio da natureza permitiria aos homens a produção dos bens necessários para a vida em menos tempo de trabalho, pelo desenvolvimento tecnológico, liberando parte da vida para o desenvolvimento humano. Estaríamos então perto desta utopia com o desenvolvimento tecnológico que alcançamos neste final de século? O avanço tecnológico hoje permite a realização desta utopia? Não no capitalismo, que se apropria da tecnologia não para liberar - ou libertar - os homens, mas para racionalizar a produção, dispensando o trabalhador com o objetivo de se expandir e concentrar capital. A solução neoliberal para o avanço tecnológico é jogar fora parte da força de trabalho para manter um excedente de reserva que permita manter a concentração, pela taxa de lucro cada vez maior. A globalização da economia, sob o neoliberalismo, atualmente produz o terror pela ameaça do desemprego para os ainda empregados, e a crescente exclusão econômica e social da maioria da população. A desigualdade social é cada vez maior e fica ainda mais evidente quando identificamos a efetiva participação dos países no processo de globalização da economia. Touraine (1995) apresenta dados para explicitar esta situação: 20% da população dos países ricos ficam fora do processo, 50% na América Latina e 80% na África. Desemprego, desigualdade, exclusão social e exploração compõem o cenário
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state, invertendo o fluxo migratório de décadas anteriores, que era do centro para a periferia (Antunes, 1995, p.41).
Estas contradições confirmam a desigualdade entre os homens e entre as sociedades. Neste cenário de reestruturação “parcial” das relações de trabalho, aparece a especialização multifuncional (exigida principalmente pela automação dos processos de produção). A economia mundial, com suas enormes diferenças, tende a exigir trabalhadores qualificados, com nova base técnica e cultural (Dowbor, 1994). Esta exigência, somada ao desemprego estrutural que atinge diariamente todos os países do mundo, inclusive os países de maior estabilidade econômica nos quais o neoliberalismo vem se instalando, traz para as relações de trabalho a competitividade. Kurz (1996) afirma que: Nos anos 80 e 90, a base desse desemprego estrutural, de ciclo para ciclo, tornou-se cada vez maior em quase todos os países; em 1995, segundo números da Organização Internacional do Trabalho, 30% da população economicamente ativa de todo o mundo não possuíam emprego estável (Kurz, 1996, p.14).
O desenvolvimento tecnológico que permitiria o aumento da produtividade sem diminuir o número de empregos não encontra espaço no processo de globalização capitaneado pelo neoliberalismo. A lógica da produção moderna, cujo objetivo principal e praticamente único é originar lucro privado, cria uma situação paradoxal: É por isso que, na história econômica moderna, a jornada de trabalho diminuiu numa proporção muito menor do que o aumento correspondente de produtividade. Hoje em dia, os assalariados ainda trabalham mais e durante mais tempo do que os camponeses da Idade Média. A diminuição dos custos, portanto, não significa que os trabalhadores trabalham menos mantendo a mesma produção, mas que menos trabalhadores produzem mais produtos. O aumento da produtividade reparte seus frutos de forma extremamente desigual: enquanto trabalhadores “supérfluos” são demitidos, crescem os lucros dos empresários. Mas, se todas as empresas entrarem nesse processo, há a ameaça de surgir um efeito com o qual não contavam os interesses obtusos da economia empresarial: com o crescente desemprego, diminui o poder de compra da sociedade. Quem comprará então a quantidade cada vez maior de mercadorias? (Kurz, 1996, p.14).
O desemprego pode vir a ser o limite na expansão do mercado, criando este absurdo paradoxo (destruir o potencial de consumo da enorme massa de desempregados) que o capitalismo vai ter que enfrentar.
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De qualquer maneira, a produtividade como meta, e talvez como mito, difunde nas sociedades modernas a busca da qualidade total em todos os seus níveis de organização. A desregulamentação da economia e as idéias neoliberais no Brasil tomaram corpo no início dos anos noventa. No entanto, foi durante a ditadura militar que começou o processo de dilapidação do Estado, especialmente no que diz respeito aos serviços públicos que garantem direitos sociais, transformando os serviços de educação e de saúde, entre outros, em meios de acumulação de capital. Sua principal estratégia foi a deterioração destes serviços e o financiamento do capital privado, criando, desta forma, condições políticas para o aparecimento da ideologia neoliberal. No governo Collor, o discurso político, inclusive eleitoral, elegeu inicialmente o Estado Empresário como vilão, afirmando ser necessário privatizar as empresas estatais tidas como deficitárias e sugadoras de recursos, para poder garantir as políticas públicas de saúde, educação, assistência social etc. Assim, no discurso - e só no discurso - as propostas de privatização das empresas estatais foram usadas como forma de garantir o Estado de bemestar-social, camuflando o projeto neoliberal em curso. Naquele momento, a ofensiva liberal ainda encontrou alguma resistência por parte da sociedade civil, mas a ameaça de hiperinflação no início do governo Itamar criou as condições definitivas para a implantação de uma política mais acentuadamente neoliberal do presidente (agora reeleito) Fernando Henrique Cardoso (Oliveira, 1995). O desemprego, a desigualdade e a dominação são conseqüências do processo da globalização neoliberal. Podemos sentir aqui, no Brasil, a agudização dos problemas sociais há décadas sem solução. Entre todos os fenômenos e efeitos produzidos pelo neoliberalismo sentimos cotidianamente o desemprego em massa e o agravamento da desigualdade social com o empobrecimento de grande parte da população. Quanto às condições de vida da população, é certo que o Estado de bem-estar nunca conseguiu se estabelecer no Brasil, mas o que se assiste agora, com a proposta neoliberal em curso, é a uma desobrigação ainda mais evidente do Estado com as políticas sociais. Neste contexto, como pensar a educação e, mais especificamente, a educação superior no Brasil? A operacionalização das idéias neoliberais, pressionadas pela globalização - leia-se dependência - da economia mundial, leva à necessidade, segundo seus defensores, da reforma do Estado. A desregulamentação pressupõe a saída do Estado não só do setor de produção mas também dos serviços públicos. Os direitos sociais, tratados como mercadorias, são colocados no setor de serviços, serviços com os quais o Estado vai se desobrigando. Dentre estes direitos sociais encontramse a educação e a educação superior. A educação ocupa um papel estratégico no projeto neoliberal. De um lado, de preparação para o trabalho, garantia da formação do trabalhador sob nova base técnica: automação e multifuncionalidade. De outro lado, a consolidação da educação, inclusive a escolar, com função ideológica, de transmitir as idéias liberais. Assim o processo educativo incorpora as idéias de organização social oriundas do projeto neoliberal como a competição, o
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4 Usamos aqui o termo interessada no sentido que Gramsci lhe dá para definir o papel da educação escolar. Escola interessada em formação para o trabalho, ou seja, o abandono da dimensão de formação integral, plena, formação humana.
individualismo, a busca da qualidade etc. Na educação escolar, as instituições de ensino e, entre elas, as instituições de ensino superior e as Universidades, têm sido alvo das reformas políticas e sociais do projeto neoliberal. O Banco Mundial, organismo internacional que, junto com o BIRD e o FMI, vem impondo programas de estabilização e ajuste da economia brasileira, também tem traçado diretrizes para as políticas de ensino superior no Brasil. A meta, dentro do ideário neoliberal, é a transformação, autorizada, das universidades em empresas econômicas. Autorizada porque a política para o ensino superior pressupõe que as universidades aceitem se reorganizar em busca da qualidade e da eficiência. A estratégia dos governos tem sido o abandono das Instituições de Ensino Superior a sua própria KELLY FREAS, personagem de ficção-científica, 1953 sorte, até que, no esgotamento e estrangulamento, elas procurem - ou seja, aceitem - soluções que, a rigor, descaracterizam sua função de produção e distribuição democrática do conhecimento e, principalmente, da cultura. As orientações gerais do Banco Mundial para a reorganização do ensino superior no Brasil, de caráter fortemente privatista, apontam principalmente, para a diferenciação institucional e a diversificação de fontes de financiamento (Sguissardi, 1998). As reformas para a educação superior não pretendem a privatização explícita das instituições de ensino superior, caracterizando uma política privatista dissimulada. Esta estratégia significa criar instituições diferenciadas de ensino superior, com tarefas diferenciadas no que diz respeito à produção e à transmissão dos conhecimentos, tarefas marcadamente interessadas4 , onde a produção e distribuição da cultura não têm lugar. As instituições de ensino superior, diferenciadas, perdem, nesta proposta, a articulação - a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Assim, teríamos instituições de ensino e instituições de pesquisa (a extensão desapareceria?) de diferentes padrões de qualidade. O que isto pode significar para a pesquisa e a formação dos jovens brasileiros? A diferenciação de fontes de financiamento significa, dentro do ideário neoliberal, a desobrigação do Estado com o financiamento das atividades das universidades públicas. A busca de fontes alternativas de financiamento põe em risco um dos princípios básicos da universidade: a autonomia. A dependência das universidades de setores diretamente inseridos no mercado numa sociedade capitalista como a nossa, pode significar alto risco para a produção, independente de conhecimentos e elaboração da cultura. As decisões sobre a pesquisa, por exemplo, passam agora a ser dirigidas segundo as necessidades do mercado. Esta reorganização do ensino superior significa, operacionalmente, a transformação das instituições de ensino superior em organizações sociais. Do ponto de vista jurídico, organizações sociais são organizações públicas
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não estatais, de direito privado, que, mediante contratos de gestão com o poder executivo, podem fazer parte do orçamento público federal, estadual ou municipal (Sguissardi, 1998). Do ponto de vista político, as diferenças entre organização social e instituição, no caso Instituições de Ensino Superior, dizem respeito a sua forma de inserção na sociedade. Enquanto uma instituição pode incorporar a idéia de construção de uma sociedade mais justa e igualitária, uma organização social tem caráter funcional, ou seja, de adaptação de suas atividades às necessidades já colocadas pela estrutura social vigente. Uma organização difere de uma instituição porque se define por uma outra prática social, qual seja, a de sua instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios particulares para a obtenção de um objetivo particular. Não está referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações definidas como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe compete discutir ou questionar sua própria existência, sua função, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso que para a instituição social universitária é crucial, é, para a organização, um dado de fato (Chauí, 1998, p.27).
Assim, os serviços públicos de educação estão totalmente inseridos nas exigências do mercado globalizado, sob a hegemonia das idéias neoliberais. O tom das reformas pretendidas para a educação superior é o da eficiência e racionalidade, desarticulando, com isso, as possibilidades de resistência. Como se opor a reformas que pretendem a eficiência das instituições de ensino superior? As estratégias de caráter administrativo racionalizador escondem a intenção de descaracterização das instituições de ensino superior como instituições sociais de produção autônoma e desinteressada de conhecimento e de cultura, submetendo-as às novas formas de organização do capitalismo, usando-as como mais um instrumento de controle a seu favor. Caminhamos para a transformação dessas instituições em espaços políticos sem autonomia, sem efetiva participação social e sem possibilidade de colaborar para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
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CONY, H. O novo Holocausto. In: FORRESTER, V. O horror econômico. São Paulo: Editora da UNESP, 1997. 2ª capa. DOWBOR, L. Os novos espaços do conhecimento. 1994. (mimeog.) HAYEK, F. A. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990. IANNI, O. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. KURZ, R. O torpor do capitalismo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 11 fev. 1996. Caderno Mais! p.5-14. LÖWY, M. Mundialização e internacionalismo: a atualidade do Manifesto Comunista. In: TOLEDO, C.N. (Org). Ensaios sobre o Manifesto Comunista. São Paulo: Xamã, 1998. p.115-25. MARX, K., ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Escriba, 1968. MORAES, M. C. M., DUAYER, M. A recelebração do mercado: repercussões nas ciências sociais e na história. 1995. (mimeog). OLIVEIRA, F. Neoliberalismo à brasileira. In: SADER, E., GENTILLI, P. (Orgs). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p.24-8. SANTOS, M. A aceleração contemporânea: tempo mundo e espaço mundo. In: SANTOS, M., SOUZA, M. A., SCALARTO, F. C., ARROYO, M. (Orgs). Fim do século e Globalização. São Paulo: Hucitec, 1995. p.16-45. SGUISSARDI, V. Políticas de Estado e de Educação Superior no Brasil: alguns sinais marcantes da dependência. In: MOROSINI, M. (Org). Mercosul/ Mercosul: políticas e ações universitárias. Campinas. Autores Associados; Porto Alegre: Editora da Universidade, 1998. p.7-40. THERBORN, G. A crise e o futuro do capitalismo. In: SADER, E., GENTILLI, P. (Orgs). Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p.39-53. TOURAINE, A. Um mundo em pedaços, a fragmentação progressiva das zonas de influência põe em dúvida o sucesso da globalização. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 ago. 1995, p.5 -13.
PIRES, M. F. C.; REIS, J. R. T. Globalización, neoliberalismo y universidad: algunas consideraciones. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999. Este artículo presenta las principales señales del proceso de globalización y los principios básicos del proyecto neoliberal en desarrollo en el mundo actual y considera las consecuencias de la subordinación de una economía periférica a los intereses del capital internacional. El proceso de globalización de la economía y el avance de las ideas neoliberales imponen a la sociedad brasileña la transformación de los servicios públicos de educación y salud en medios de acumulación privada del capital, algunas veces de forma disimulada, en perjuicio de las condiciones de vida de la mayoria de la población. PALABRAS-CLAVE: reforma urbana, organización & administración, política social.
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Inovação na Universidade: a pesquisa em parceria
Denise Leite1, Maria Isabel da Cunha2, Elisa Lucarelli3, Ilma Veiga4, Cleoni Fernandes5, Ana Maria Braga6, Maria Elly Genro7, Alcindo Ferla8, Adriana Campani 9, Márcia Campos10, Evandro Alves11, Luciane Nolasco12
LEITE, D. B. C. et al. Innovation at universities: research conducted in partnership. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999. In this text, we discuss the experience of the Innovation in universities research project, which is being conducted at four public institutions in two countries: Brazil and Argentina. Our objective was to identify innovative experiences that were occurring in both the micro and the macro arenas of these institutions. We considered that innovation should be identified from within university practices, in the relationship with the paradigmatic orientation of knowledge. This standpoint led us to view innovation as a discontinuous process, which breaks away from the traditional paradigms that are in force in teaching and research, or, alternatively, as a transition process with the reconfiguration of power and knowledge taking place at several universities and in different arenas. Looking into these arenas, we discovered that the most important type of innovation consists of conducting research in a situation of partnership. The present text characterizes this “coming together through differences”, which results in the generation of knowledge. KEY WORDS: university, innovation, methodological organization. Neste texto refletimos sobre a experiência de uma pesquisa sobre Inovação na universidade que se desenvolve em quatro instituições públicas de dois países - Brasil e Argentina. Nosso objetivo foi identificar experiências docentes inovadoras que estivessem acontecendo nos espaços micro e macro institucionais. Consideramos que a inovação deveria ser captada por dentro das práticas universitárias, na relação com as orientações paradigmáticas do conhecimento. Nesta perspectiva, compreendemos a inovação como um processo descontínuo, de rupturas com os paradigmas tradicionais vigentes no ensino e na pesquisa, ou como uma transição com reconfiguração de saberes e poderes que está acontecendo em diferentes universidades e em diferentes espaços. Ao olhar para esses espaços, descobrimos que a inovação mais importante reside em fazer a Pesquisa em Parceria. Este texto caracteriza essa “aproximação pela diferença” que tem como resultado a produção de conhecimento. PALAVRAS-CHAVE: universidade, inovação, organização metodológica.
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Profª. Programa de Pós Graduação em Educação/UFRGS – Pesquisadora CNPq, 2 Profª. Programa de Pós Graduação em Educação/ UFPel – Pesquisadora CNPq, 3 Investigadora do IICE. Profª. Departamento de Ciências em Educação, FFL, UBA, Argentina, 4 Profª Programa de Pós-Graduação da UnB, 5 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação/UFRGS, 6 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação/UFRGS, 7 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação/UFRGS – Bolsista/CNPq, 8 Médico; Assessor técnico na Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e no Conselho Nacional de Saúde; Mestrando do Programa de Pós Graduação em Educação/UFRGS, 9 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação/UFRGS, 10 Cientista Social. Bolsista de Aperfeiçoamento/CNPq, 11 Pedagogo. Bolsista de Aperfeiçoamento/CNPq, 12 Bolsista de Iniciação Científica/CNPq.
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Pesquisa em parceria: um processo inovador? O trabalho na pesquisa "Inovação como fator de revitalização do ensinar e aprender na Universidade" envolveu, desde o início, diferentes grupos e universidades de dois países do Cone Sul: Brasil e Argentina. Tais grupos de pesquisadores concentraram sua busca de conhecimentos na descoberta de experiências inovadoras que estivessem acontecendo na Universidade. O ponto de partida foi o repúdio ao pensamento dominante, mais tradicional, sobre o conceito de inovação. Esse conceito, na literatura, tem como definição:"Inovação é toda tentativa visando consciente e deliberadamente introduzir uma mudança no sistema de ensino com a finalidade de o melhorar" (Organização para o Comércio e Desenvolvimento Econômico/ OCDE, apud Cardoso, 1992). Essa idéia continua presente hoje. Em 1997, por exemplo, o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) definiu inovação como toda a experiência educacional que introduz um determinado tipo de mudança na cultura ou prática escolar, através de uma intervenção intencional ou proposital. A mudança precisa obedecer a uma seqüência lógica de passos para chegar, com sucesso, ao objetivo estabelecido (MEC/ CRIE/CRED,1997). O grupo de pesquisa questionava a idéia de objetivos finalísticos quando da introdução de inovação nos sistemas educativos; questionava a intencionalidade da inovação, na perspectiva da ação político-administrativa da autoridade educacional, que se vale das esferas constitutivas de poder para instituir estratégias de mudança (Canário, 1987). O grupo entendeu que deveria buscar outras possibilidades, pois as mudanças ou inovações produzidas nas bases de um sistema, no interior de um micro espaço educacional poderiam passar desapercebidas. Por outro lado, resistências, tensões e conflitos de um micro espaço social, que também podem gerar pequenas mudanças e construir inovações, não eram destacadas na literatura consultada. Outras possibilidades foram pesquisadas em experiências micro e macroinstitucionais1, muitas vezes anônimas, que se realizam nas universidades. Por isso, foi necessário procurar essas possibilidades e identificar os princípios que nelas germinam e que provocam um embrião de rupturas, pois, para o grupo, inovação e ruptura se ressignificam e se constituem dialeticamente. Ao se deparar com os casos de inovação, nas diferentes universidades, nos distintos países, com suas peculiares circunstâncias, o grupo percebeu estar construindo, por dentro, um novo caminho metodológico, hoje denominado Pesquisa em Parceria. Em princípio, caracterizamos a Pesquisa em Parceria como um processo inovador por se diferenciar da forma usual de fazer pesquisa na Universidade, pois esta segue os cânones da racionalidade da ciência moderna para produzir conhecimento científico. Este ensaio tem por objetivo discutir o processo de Pesquisa em Parceria e refletir a possibilidade de que ele próprio configure uma inovação.
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Vários trabalhos foram publicados com os resultados desta pesquisa, em livros, artigos, salões de iniciação científica e home page. Entre eles, cita-se: Inovação na zona cinzenta de transição (Revista FAE/ UFPel, ano 6, n. 8. Jun/ 97); Universidade futurante; produção do ensino e inovação (Campinas:Papirus, 1997); Home Page: Erro! Indicador não definido.. Eventos: 49ª SBPC; X ENDIPE; IX Salão IC UFRGS; 5ª Jornada Investigación AUGM, Paraguay; Cátedra Unesco, Montevideo, 1997; Congresso Internacional de Educación, 1996, Argentina.
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Produção usual de conhecimentos na Universidade Em geral, a educação, por estar situada entre as ciências humanas e sociais, sofreu a influência do desenvolvimento dessas ciências. “Por muito tempo, elas procuraram seguir os modelos que serviram tão bem ao desenvolvimento das ciências físicas e naturais, na busca da construção do conhecimento científico do seu objeto de pesquisa” (André, 1986, p.3). Nesta busca, a produção de conhecimento seguiu o paradigma da modernidade, cujos traços mais distintivos são: luta contra o dogmatismo e a autoridade do saber aristotélico e medieval; distinção entre conhecimento científico e senso comum; desconfiança com a evidência imediata e com a intuição; poder do homem de intervir e modificar a natureza como se fora um objeto externo a si mesmo (Santos, 1993; 1989). Com base nesses pressupostos, o conhecimento científico, em diferentes áreas do saber, avançou pela observação sistemática e, tanto quanto possível, rigorosa, dos fenômenos naturais. Por isto, a experiência não dispensa a teoria prévia, o pensamento dedutivo e a especulação. Em geral, os modelos que presidem à observação e à experimentação constituem idéias claras e simples: os modelos explicativos GOURMELIN. Encontro do acaso matemáticos. Segundo Santos (1989;1993;1994), a Matemática forneceu à ciência moderna, o instrumento privilegiado de análise, a lógica da investigação e, ainda, o modelo de representação da própria estrutura dos fenômenos observados. Desta percepção, derivaram duas grandes conseqüências para a ciência moderna (e, poderíamos dizer, para a educação em seu primeiro estágio de desenvolvimento de pesquisa). A primeira conseqüência - conhecer significa quantificar - evidencia o rigor científico como resultado da medição. Muitas vezes, a qualidade dos objetos não é devidamente explorada. Só as quantidades em que podem se traduzir, devem ser procuradas. Confirmando a quantificação, Bourdieu (1983, p. 124), ao examinar o campo científico, mostra que aqueles que estão à frente das grandes burocracias científicas só poderão impor sua vitória como sendo uma vitória da ciência se forem capazes de impor uma definição de ciência que suponha que a boa maneira de fazer ciência implica a utilização de serviços de uma grande burocracia científica, provida de créditos, de equipamentos técnicos poderosos, de uma mão-de-obra abundante. Assim, eles constituem em metodologia universal e eterna a prática de sondagens com amplas amostragens, as operações de análise estatística dos dados e formalização dos resultados, instaurando, como medida de toda prática científica, o padrão mais favorável às suas capacidades intelectuais e institucionais.
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A segunda conseqüência - o método científico assenta na necessidade de redução da complexidade - implica conhecer dividindo e classificando, para depois poder estabelecer relações sistemáticas entre o que foi separado (Santos, 1989). Entende-se que o conhecimento científico (Santos, 1989) é um conhecimento causal que aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas, com vistas a prever o comportamento futuro dos fenômenos. Muitas vezes, as leis da ciência moderna privilegiam a causa formal: o como funciona, e não qual o agente ou qual a finalidade das coisas. Para Santos , aqui se dá o rompimento com o senso comum e com o saber prático, em que a causa e a intenção convivem sem problemas2. Esta forma de produzir ciência continua acontecendo na Universidade contemporânea3. Dentro dessa linha de raciocínio, observam-se alguns desdobramentos da pesquisa e procedimentos dos grupos de pesquisadores. Objetivos e finalidades: distanciamento entre sujeito e objeto e entre objetos de pesquisa e necessidades humanas concretas; objetivos circunscrevem o problema e os resultados da pesquisa; o rigor científico é perseguido, durante todo o processo, pela vigilância sobre os métodos, instrumentos e resultados; a pesquisa tem a finalidade de refinar a teoria, em geral previamente existente e partilhada por comunidades acadêmicas definidas. Métodos: valorização da mensuração, constatação, comprovação e generalização, via métodos objetivos; precisão do método pressupõe a neutralidade do pesquisador; rigor científico, na prática metodológica, envolve busca permanente de precisão, de exatidão; dedução tem prioridade sobre indução; instrumentos padronizados privilegiam a quantificação, pretendem apreender o fato/fenômeno, objeto de pesquisa, sob a forma de parcelas, de indicadores da situação observada ou conhecida pela teoria a priori; permitem coleta de dados que são transformados, via procedimentos matemático-estatísticos, em informações confiáveis. Resultados e sua aplicação: devem ser generalizáveis; apropriação dos resultados tem caráter particular, em geral de grupos ou do patrocinador/ órgão financiador; socialização da produção, em geral, ocorre em círculos acadêmicos de mesmo referencial paradigmático. Grupos de pesquisa: em geral, são unitemáticos; têm rígidas hierarquias com centralização de decisões e poder; controle do conhecimento nas mãos do acadêmico de maior prestígio; legitimidade do grupo se dá pela capacidade e status do pesquisador chefe; participantes, estudantes novos, aspirantes à ascensão no grupo de pesquisa, devem seguir os passos do mestre, acadêmico de maior prestígio. O exemplo mais recente e marcante de perpetuação dessa lógica da ciência moderna e do agir dos seus grupos, vem da orientação do órgão máximo de financiamento da pesquisa no Brasil, Conselho Nacional de
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Kuhn, (1978, pp.43 a 45), ao discutir as rotas da ciência normal, diz que, em muitas ciências, a maior parte do trabalho consiste em articular teoria e fenômeno e não “inventar teorias”, em precisar instrumentos ou criá-los e realizar esforços para determinar matematicamente constantes universais ou leis quantitativas ou, ainda, usar a teoria existente para “prever informações factuais”.
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Vide, por exemplo, na área da educação, autores tradicionais como: Hayman (1969); Travers (1971); Van Dallen y Meyer (1971); Oliveira (1986).
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Pesquisa - CNPq. Esta agência de fomento voltou a priorizar a figura do pesquisador líder de grupos, cujo status define os alcances dos resultados e dos meios e recursos da investigação. Sobre este tema, Oliveira (1986, p. 67) diz que a pesquisa em grupo na Universidade pode ser reunida em três tipos: agregação, linhas de pesquisa e atividades interdisciplinares. No primeiro - agregação - as pesquisas e os temas não têm interdependência, “qualquer semelhança, não passa de mera coincidência”. È uma saída organizacional para atender aos órgãos de financiamento. No segundo, diz Oliveira: “só muito raramente as linhas de pesquisa correspondem a uma real interação intelectual entre os membros de um mesmo departamento”. As linhas de pesquisa são próprias da estrutura curricular dos Programas de Pós-Graduação. Constituem objeto de avaliação da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento da Pesquisa no Ensino Superior) e, muitas vezes, realmente não produzem qualquer interação entre seus membros. Já na terceira forma de integração, reúnem-se interesses em torno de um problema ou de uma metodologia e estes favoreceriam a integração entre pesquisadores de diferentes disciplinas. Para o autor, há uma relativa escassez desses grupos pela sua vulnerabilidade frente aos interesses específicos das agências de fomento. Por não ter se filiado incondicionalmente aos paradigmas tradicionais, e não tendo encontrado ainda seu estatuto epistemológico, a educação permanece num estado constante de procura. Ora trabalha com as teorias e instrumentos das ciências naturais; ora insurge contra estes, e procura, em diferentes tempos históricos, em autores e instrumentos da Sociologia, da Psicologia e da Filosofia (por exemplo, em Marx, Bourdieu, Foucault, Piaget, Ricoeur, ...), seu caminho metodológico, para a construção de um conhecimento que dê conta da complexidade educacional. Em geral, esse conhecimento não pragmático, produzido, tem características discursivas e críticas. Porém, nem sempre emerge das necessidades das realidades particulares e concretas. Por isso, muitas vezes, não oferece alternativas para os problemas da prática educacional. E, ainda que esta produção de conhecimento, apoiada por metodologias qualitativas, produza resultados importantes, ela não tem conseguido modificar a dinâmica de funcionamento dos grupos. Estes se mantêm na mesma lógica que patrocinou a ciência moderna - hierarquizados e fechados no seu nicho de proximidade epistemológica e, portanto, de controle do conhecimento. Mesmo com teorias críticas, a pesquisa em educação continua se utilizando de práticas de pesquisa, até certo ponto, conservadoras. Ao apoiar-se em autoridades do campo epistemológico, os grupos de pesquisa perpetuam a corrente paradigmática, legitimando seus apoiadores (foucaultianos, piagetianos, marxistas, ortodoxos e não ortodoxos). A construção de uma outra perspectiva do trabalho de pesquisa em grupo que fuja à lógica dominante, do fazer da “ciência normal”, seria uma possibilidade de inovação na Universidade? Acreditamos em uma resposta positiva. Descobrimos que é possível produzir em parceria para construir conhecimento, para produzir inovação.
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O processo de inovação em construção A construção do projeto de investigação coletiva teve início em 1990, quando pesquisadores da Faculdade de Educação da UFRGS convidaram professores presentes à reunião anual da ANPED (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação), em Belo Horizonte, para a montagem de um projeto conjunto de investigação sobre ensino superior. A idéia original era investigar questões relativas ao ensinar e ao aprender na graduação. Junto com ela, outra idéia fundante: o trabalho seria um passo importante para tirar os pesquisadores do comum isolamento em que trabalham e, acima de tudo, a chance de construir um conhecimento coletivo. Num primeiro momento, das doze universidades que atenderam ao convite, apenas três (Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Universiversidade Federal de Pelotas/UFPel e Universidade Federal do Pará/ UFPA) aceitaram o desafio. A perseverança e seriedade do trabalho do núcleo inicial, no qual permaneceram a UFRGS e a UFPEL, conquistou, aos poucos, outros grupos: da Universidade Católica de Valparaíso, Chile/UCVAL e, mais tarde, da Universidade de Buenos Aires, Argentina/UBA e, depois, a Universidade Federal de Brasília/UnB. O projeto inicial, apoiado pelo CNPq e Fundo de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), chamou-se “Para a revitalização do ensinar e do aprender na Universidade”. Os resultados foram apresentados em eventos nacionais (XV, XVI e XVII ANPED) e internacional (Espanha, 1995), além de publicação de livros e artigos em revistas. A experiência mostrou-se tão rica que o grupo organizou outro projeto: “Inovação como fator de revitalização do ensinar e do aprender na Universidade”. Enquanto a primeira pesquisa mostrava a dificuldade de proceder rupturas com os paradigmas tradicionais do ensino e da aprendizagem, a pesquisa seguinte procurou identificar os espaços, porventura existentes, de procedimentos inovadores na universidade, que evidenciassem um certo grau de ruptura, em diferentes níveis, na produção de conhecimento e nas relações de poder. Esses estudos, desenvolvidos nas quatro Universidades já referidas (UFRGS, UFPel, UBA e UnB) mostraram que, para além da descoberta de experiências micro e macro institucionais, que rompem com o paradigma da ciência moderna e com a lógica de sua construção, o próprio fato de construir a parceria para a pesquisa constitui uma inovação. A articulação entre os conceitos de inovação e ruptura foi o “resorte” fundante da teorização sobre este processo - uma outra maneira de fazer pesquisa. Para o grupo, inovação é um processo descontínuo, de ruptura com os paradigmas tradicionais vigentes no ensino e na pesquisa, ou uma transição paradigmática com reconfiguração de saberes e poderes que está acontecendo em diferentes espaços acadêmicos e em diferentes universidades. Ruptura com os paradigmas tradicionais pressupõe ir além da racionalidade cognitivo-instrumental , sobrepondo-lhe outras racionalidades, como cognitivo-afetiva e, como propõe Santos (1989,1994), a estéticoexpressiva e a moral-prática, reconfigurando os saberes científicos, as
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humanidades e o senso comum, reconfigurando também as relações de poder. A ruptura, no estado germinativo (Lucarelli, 1992), envolve descontinuidades e rompimentos com o status quo e tem um caráter totalizador das variáveis antes vistas como parcelares. Inspirados nesta articulação, os pesquisadores passaram a entender que a pesquisa em parceria busca produzir conhecimento, aproximando pela diferença. Por que a aproximação pela diferença? Porque cada grupo de pesquisa, em cada Universidade, tem todo um entorno peculiar, que o caracteriza como aquele grupo dentro daquela Universidade. O que aproxima esses diferentes grupos dessas diferentes universidades, são deficiências, necessidades, inquietações, descontentamento, desconforto que têm em comum, a ponto de reuni-los numa perspectiva coletiva de (re) construção. O comum se constrói pelas diferenças, pela necessidade de compartilhar, pela tentativa de compreensão do pensamento do outro, pela escuta ao discurso do outro. A partilha do conhecimento se dá na discussão sobre a prática da investigação. O que há de comum na diferença? A aproximação dos diferentes se deu num processo de atração e repulsão, ou, aprendendo com a Física, onda e partícula no processo de parceria, em que a atração se fez pelas deficiências percebidas e necessidades sentidas; porque uma parte do grupo tinha uma prática pedagógica na Universidade e não dominava uma teoria que a explicasse; porque outra parte do grupo tinha aportes teóricos que não estavam ancorados em uma prática universitária mais articulada; porque mais outra parte do grupo tinha uma prática e teoria cerceadas por questões políticas e ausência de condições para a produção do conhecimento na própria Universidade. Entre estas, destaca-se o plano de Pedagogia Universitária no contexto da pesquisa em Educação Superior. A repulsão se deu pelo sentimento comum contra o egoísmo da propriedade intelectual que se desdobra nas individualidades que tentam se sobrepor às outras e contra a luta concorrencial dentro do campo científico, e também no campo burocrático, especialmente no acesso aos recursos. Quais os caminhos da diferença em busca do conhecimento? No processo, a necessidade de sobrevivência foi o marco zero do caminho. As trilhas que foram sendo abertas, se entrelaçando em alguns momentos, se distanciando em outros, para se refundir logo após, se traçaram pela contaminação das idéias e dos conhecimentos em produção. Os nichos construídos pelo processo de investigação não desenraizaram culturalmente, pois cada Universidade mantém seus vínculos, suas diferenças, enfim, sua identidade. O que surgiu foram novas fronteiras, pois não houve invasão da esfera do outro. As novas fronteiras, às vezes, são atravessadas em conjunto e, às vezes, no nível individual, das subjetividades. Para este processo de
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alongamento das fronteiras contribuiu a linguagem, que é a linguagem com que são feitas as perguntas, que incita a construção de conteúdos para as diferenças que evoluem em conteúdos para a transformação. Quais desafios e incertezas se encontram nesse caminho? Este é um caminho avesso aos caminhos já traçados e pavimentados. Ao método único propõe pluralidade metodológica, qualifica a intencionalidade com a complexidade das necessidades sociais e qualifica a vontade de conhecer na relação com esta intencionalidade. Entende que a partilha é mais rica do que a caminhada solitária, favorecendo a auto-descoberta de talentos e disposição para colocá-los no trabalho coletivo. Exige o protagonismo, como a possibilidade de que os sujeitos digam a sua palavra. Assim, orientamo-nos pela única certeza que temos, o caminho se faz ao caminhar, ou como diria um companheiro desta viagem (Santos, 1995, p.479): nós devemos reinventar o futuro pela abertura de um novo horizonte de possibilidades mapeadas por novas alternativas radicais. Criticar meramente o paradigma dominante, apesar de crucial, não é suficiente. Nós devemos ainda definir o paradigma emergente, sendo esta tarefa realmente importante e difícil.
Com as incertezas que escolhemos ter, nosso caminho tem sido de questionar e praticar a crítica, na prática. Se vamos entender a inovação, criar outras possibilidades de conhecimento, não sabemos ... o que sabemos é que a retórica dialógica constrói caminhos teóricos e práticos como nossas investigações vêm mostrando. Contrariando o paradigma orientador do conceito de inovação apontado na introdução deste trabalho, trazemos a possibilidade teórico-metodológica de uma outra maneira de produzir conhecimento. A pesquisa em parceria não se resume a um mesmo tempo, espaço e território. Ela se dá em diferentes espaços interinstitucionais com pesquisadores de distintas qualificações. Ao mesmo tempo que seguem um cotidiano próprio, os grupos rompem com ele para se conflitar e para se complementar com outros cotidianos com os quais interagem. É um movimento local-global, que se faz pelos relatos de cada grupo, de suas práticas de pesquisa, pela crítica solidária entre os grupos, pela busca vigilante do que há de comum. No nosso caso, o contexto interinstitucional se qualifica como fronteira, tanto material e física, representada pelo espaço de cada nação, território, universitário ou de país, ou ainda, no plano simbólico, como fronteira entre diferentes. A criação dessas fronteiras, longe de restringir o trabalho interinstitucional, cria a parceria que é uma inovação porque significa a invenção de novas formas de sociabilidade."Para viver na fronteira é preciso inventar tudo, inclusive o ato de inventar-se" (Santos, 1995, p.153). O quadro a seguir integra o caminho construído.
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Pesquisa em Parceria CONCEITO É uma aproximação pela diferença, tendo como resultado a produção de conhecimento. CARACTERÍSTICAS Aproximação do grupo de pesquisa: tema que atraia, seja de interesse comum e que possibilite a pesquisa em uma perspectiva de construção coletiva. O comum se constrói pelas diferenças, pela necessidade de compartilhar; pela tentativa de compreensão do pensamento do outro, pela escuta ao discurso do outro. A partilha do conhecimento se dá na discussão sobre a prática da investigação. Resorte articulador: as deficiências, necessidades, inquietações, descontentamento e desconforto aproximam as universidades. REPULSÃO E ATRAÇÃO: onda e partícula no processo de parceria. A mola propulsora do trabalho, o resorte articulador, inicial, é importante para o estabelecimento da continuidade e elasticidade do processo. A atração se dá por deficiências percebidas e necessidade sentidas: parte do grupo tinha uma prática pedagógica na Universidade e não dominava uma teoria que a explicasse; parte do grupo tinha aportes teóricos que não estavam ancorados em uma prática universitária concreta; parte do grupo tinha uma prática e teoria cerceadas por questões políticas e ausência de condições para a produção do conhecimento na própria Universidade. A repulsão tem seu desdobramento no egoísmo da propriedade intelectual, que se desdobra nas individualidades que tentam se sobrepor às outras na luta concorrencial dentro do campo científico e, também, no campo burocrático, especialmente no acesso a recursos. PROCESSO: “assim caminha a humanidade” - “El camino se hace al caminar”... No processo, o caminho se constitui pela necessidade de sobrevivência dos grupos científicos. Depois, o processo continua pela contaminação, especialmente das idéias e conhecimentos que se vão produzindo. Os nichos construídos pelo processo de investigação não desenraízam culturalmente; cada Universidade mantém os seus vínculos, mantém as diferenças, ou seja, sua identidade. Criam-se novas fronteiras porque não é preciso invadir a esfera dos outros. No processo de alongamento da fronteira contribui a linguagem, ou seja, trabalha-se com a linguagem com que são feitas as perguntas; constróem-se conteúdos para as diferenças, que evoluem em conteúdos para a transformação. (IN)CERTEZAS Ao método único opõe-se a pluralidade metodológica. A importância da intencionalidade e da vontade de conhecer. Auto-descoberta de talentos e disposição de colocá-los no trabalho coletivo. Desenvolvimento do protagonismo, possibilidade de os sujeitos dizerem a sua palavra. A partilha é mais rica que a caminhada solitária.
Refletindo sobre a trajetória No ato de inventar e romper com o velho modelo de pesquisa tradicionalmente vivido no cotidiano, o medo e a ousadia se incorporam numa mesma dimensão de trabalho, ética e compromisso, fortalecendo a possibilidade de transformar e transformar-se nas construções de parceria no locus universitário, locus este marcado por estruturas cristalizadas de racionalidade única, de verdades absolutas e de poderes centralizados. A ruptura deste velho modelo implica a ruptura de um paradigma que se gesta na constatação da existência de questionamentos, cuja busca de respostas
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Holos, radical de origem grega, que significa totalidade. Totalidade aqui compreendida como a interação de relações entre os homens, com o conhecimento e com uma outra concepção de ecologia e de sociedade - não apenas preservação, mas interação entre os homens e a natureza, a justiça, a ética e a própria Vida.
formulou a teoria da relatividade, a partir da qual a massa de um corpo é também uma forma de energia, evidenciando a equivalência e a intermutabilidade de matéria e energia, abriu à compreensão de que tempo e espaço não são absolutos - dependem de quem os observa, dependem do observador. Estas construções teóricas, tal como ocorreu com Galileu (séculos XVI/XVII), mexem com o mundo social, demonstrando a historicidade do conhecimento, não apenas como processo histórico, mas como conhecimento social, que muda estruturas de relações sociais e de poder e, conseqüentemente, a visão de mundo. Desmistificam, assim, o caráter de neutralidade da ciência como espaço de poder sem dono e de verdades absolutas. O princípio da incerteza de Werner Heisenberg diz que é impossível saber, ao mesmo tempo e com absoluta precisão, a posição e a velocidade de uma partícula. Assim, o determinismo da Mecânica Newtoniana deixa de existir, existem probabilidades, não há leis que possam descrever com segurança o comportamento das partículas sub-atômicas - define-se o indeterminismo (Schenberg, 1985). Isto não significa destruir a teoria newtoniana, mas situá-la como verdade provisória, cujos limites foram fundamentais para que aflorassem novas dúvidas e outros caminhos. A relatividade não é o relativismo, como afirmava Heisenberg. Niels Bohr, na busca de compreender o paradoxo onda-partícula, lançou o conceito de complementaridade, segundo o qual noções de partícula e onda são referências à mesma realidade. Cada uma dessas é parcialmente correta e tem limitado potencial de aplicação, de acordo com o princípio de incerteza. Todas essas questões que afloram na transição em que estamos vivendo, nos remetem para uma radicalidade do holos4, numa outra compreensão de conhecimento, ciência e mundo, que está sendo gestada em espaços que estamos construindo e tentando compreender. Neste sentido é que estamos metaforicamente fazendo intersecções, com a consciência do mutável e com a busca de um conhecimento prudente para uma vida decente (Santos, 1994), que exige compromissos coletivos, que ora se manifestam por ondas, ora por partículas, mas que são complementares à mesma realidade social na qual estamos vivendo e ousando sonhar utopias. Na tentativa da complementaridade das metáforas, procuramos explicitar as idéias que temos encontrado e construído na trajetória da pesquisa em parceria.
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LEITE, D. B. C. et al. Innovación en la universidad: pesquisa en conjunto. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.4, 1999. En este texto discutimos la experiencia de la Pesquisa Innovación en la universidad, que se desarolla en cuatro instituciones públicas de dos países – Brasil y Argentina. Nuestra finalidad fue identificar experiencias innovadoras que ocurrieran en los espacios micro y macro institucionales. Consideramos que la innovación debería ser captada hacia dentro de las prácticas universitarias, en relación con las orientaciones paradigmáticas del conocimiento. Por esta perspectiva, comprendemos la innovación como un proceso no linear de ruptura con los paradigmas tradicionales vigentes en la enseñanza y en la investigación, o como una transición hacia una nueva configuración entre el saber y el poder que está ocurriendo en distintas universidades y distintos espacios. Pasando la vista en estos espacios, descubrimos que la innovación de mayor importancia es la que hace la Pesquisa en Conjunto. Este artículo presenta esta “aproximación por la diferencia”, una metodologia que tiene como resultado la producción del conocimiento. PALABRAS-CLAVE: universidad, innovación, metodología de pesquisa.
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A atualidade do debate sobre autonomia universitária
Renato de Oliveira1
OLIVEIRA, R. The current nature of the debate on university autonomy. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999. Within the present context of the internal and external crisis affecting the institution of higher education, the historical and institutional experience of Brazilian universities is resumed, to debate the issue of autonomy. The fundamental aspects of a public university autonomy project in our country are analysed, contraposing the government project on one hand and the higher education community’s project on the other. KEY WORDS: university, autonomy Retorma-se a experiência histórico-institucional da universidade brasileira para debater a questão da autonomia no contexto atual da crise interna e externa da instituição universitária. Contrapondo o projeto da comunidade universitária ao projeto governamental, são analisados aspectos fundamentais para um projeto de autonomia da universidade pública em nosso país. PALAVRAS-CHAVE: universidade, autonomia.
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Universidade de Brasília (UnB) e presidente da Associação Nacional do Ensino Superior (ANDES) -Sindicato Nacional.
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Diferentemente de há alguns anos atrás, quando a questão da autonomia universitária não ia muito além das palavras de ordem de algumas “minorias ideológicas”, hoje a questão ocupa não apenas a comunidade universitária como também os grandes meios de comunicação e o próprio governo, até então seu grande adversário. O que mudou? Muita coisa. O fato de, há até não muito tempo, a questão da autonomia ser tema de exegeses jurídicas e apanágio de grupos de esquerda e não muito mais do que isto, tem muito a ver com a experiência histórico-institucional do sistema universitário brasileiro. Afinal, com algumas exceções, este surgiu como resultado de iniciativas diretas do Estado (leia-se Poder Executivo), o que marcou profundamente seu perfil institucional, estabelecendo limitações claras à sua capacidade de auto-governo. Se lembrarmos a “velha” experiência universitária brasileira, isto é, o período anterior à reforma imposta pela ditadura militar no início dos anos 70, o dogma da liberdade acadêmica, um dos fundamentos da autonomia universitária, tinha expressão institucional limitada à liberdade de cátedra, não alcançando a instituição universitária como um todo. Liberdade de cátedra, aliás, que dado o universo ideológico em que operavam a imensa maioria dos catedráticos, não ameaçava o conservadorismo reinante. O período posterior a 1970, ao abolir o sistema de cátedra, aboliu também o conceito de liberdade acadêmica. As inúmeras cassações de docentes por razões ideológicas e políticas mostraram que, doravante, não existiriam sequer garantias individuais para o exercício da liberdade de pensamento por parte dos professores. Ora, a herança universitária que temos em mãos tem muito pouco a ver com a universidade anterior a 1970. Temos hoje uma instituição engessada, pretensamente democrática do ponto de vista das suas relações acadêmicas e administrativas internas, mas que, na realidade, é uma instituição na qual o poder real, tanto acadêmico quanto administrativo, não está em seu interior. Entre outras coisas, a substituição da antiga cátedra pelos departamentos, se livrou a instituição do poder discricionário de professores muitas vezes mais preocupados com a preservação de privilégios do que com o avanço e a difusão do conhecimento, longe de significar democratização da vida acadêmica, burocratizou-a e despersonalizou-a. Quando um professor recém-egresso, muitas vezes sem pós-graduação, pode ser “chefe” de professores mais antigos, mais titulados e mais experientes, é porque o “chefe” nada decide. Apenas cumpre um ritual burocrático, liberando seus “subordinados” para, entre outras coisas, negociarem financiamento para seus projetos acadêmicos com instituições externas à própria universidade, sedes do verdadeiro poder no que respeita à pesquisa, por exemplo. Por outro lado, na pretensa democracia colegiada dos departamentos, e mesmo dos órgãos superiores de administração propriamente dita, qualquer dirigente universitário, bem como qualquer representante docente, técnicoadministrativo ou estudantil num órgão colegiado, sabe que o poder de decisão está no Ministério da Educação e Cultura/MEC, (quando não nos ministérios da área econômica ou da administração) e que uma simples portaria, um Aviso Ministerial ou um telefonema de um burocrata de terceiro escalão podem alterar ou determinar os mínimos detalhes da vida
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referência enquanto tal como ainda enfrenta sérios problemas de continuidade do seu projeto. Finalmente, a Unesp, em sua origem, não apresenta nenhuma originalidade: algumas dezenas de unidades isoladas que, encontrando dificuldades de viabilização econômica, passam a ser garantidas pelo Estado, sem que isto represente em sua origem um projeto acadêmico propriamente dito. Por outro lado, e como esperamos demonstrar ao longo deste artigo, a “autonomia” conquistada pelas universidades estaduais paulistas está longe de se configurar numa autonomia propriamente dita, não respondendo à maior parte das questões que se colocam hoje para as universidades públicas brasileiras. Quanto às instituições privadas, seu perfil dispensaria maiores comentários. Caberia apenas referir que, dado o tipo de projeto seguido pelas instituições federais e à exiguidade dos sistemas estaduais em termos quantitativos, coube a elas responder à maior parte da demanda social por ensino superior, bem como às crescentes demandas de mercado por novos profissionais, principalmente no período de expansão econômica que se seguiu ao fim dos anos 60. Deixando de lado as exceções que confirmam a regra, seu perfil “acadêmico” expressa isto: trata-se de instituições que oferecem ensino de baixo custo e baixa qualificação para um mercado que, dada a condição de periférico, apresenta baixo nível de exigência quanto à competência média dos profissionais que absorve. A emergência da questão da autonomia universitária liga-se, então, ao esgotamento do modelo oriundo da reforma de 1970. Esgotamento não apenas político - este, aliás, evidente. Afinal, a contestação ao Estado autoritário levaria compreensivelmente, como de fato levou, à contestação do modelo de universidade por ele gerado. É necessário reconhecermos, no entanto, que a contestação interna ao autoritarismo imanente à universidade pós-reforma não conseguiu ir além de seus aspectos exteriores (os métodos de escolha dos dirigentes, por exemplo), não chegando à crítica programática, a não ser eventual e episódica, dos sistemas internos de tomadas de decisão e divisão de responsabilidades, muito menos a aspectos, comumente vistos como abstratos, relativos à ordenação jurídica de suas relações internas e externas. Mas há sobretudo um esgotamento econômico, configurado numa crescente disfuncionalidade do sistema universitário público. Entenderemos isto mediante um raciocínio simples: não havendo mais um projeto estatal de desenvolvimento, a universidade pensada para ser um dos seus instrumentos perde sua função. Esta disfuncionalidade econômica traduz-se numa crise de muitas facetas. Em primeiro lugar, a crise financeira. Há uma certa lógica no arrocho orçamentário das universidade federais: um governo que se comporta como
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A ATUALIDADE DO DEBATE...
intermediário dos interesses dos grandes conglomerados financeiros nacionais junto ao sistema produtivo nacional certamente não vê muita razão em investir num sistema universitário cuja lógica de funcionamento é, bem ou mal, voltada ao fortalecimento desse sistema produtivo. Mas há também uma crise ideológica difusa, manifestada na frustração das expectativas profissionais de milhares de professores, especialmente daqueles envolvidos diretamente com a pesquisa, que, após investirem anos em sua formação, vêem-se frente a uma instituição que não é capaz de formular uma política clara na qual eles possam se inserir, e frente a políticas governamentais que supõem o desmantelamento da instituição. Mas, há também a crise própria das instituições estaduais de ensino superior. Heterogêneas na sua origem, apresentam capacidade efetiva ou potencial de excelência acadêmica no sudeste e sul do país, autonomizandose, em larga medida, das injunções políticas regionais. Na sua maioria, porém, encontram enorme dificuldade para definirem projetos acadêmicos capazes de orientar a ação institucional. Este é o terreno sobre o qual emerge a exigência da autonomia universitária, implicando em projetos claramente distintos. De um lado, o projeto governamental, para quem autonomia significa, antes de mais nada, a possibilidade de diminuição dos encargos financeiros que o sistema universitário representa, liberando recursos para seus compromissos junto ao sistema financeiro internacional. Recentes declarações de responsáveis do MEC, adotando a tese da "auto-aplicabilidade" do artigo 207 da Constituição Federal reforçam essa proposta. Interpretada ao pé da letra, esta tese implica a supressão da normalização do sistema de ensino superior, liberando as instituições para a auto-gestão administrativa e financeira. Um dos resultados previsíveis, além da mercantilização das atividades de ensino, pesquisa e extensão, seria a regressão de muitas das atuais universidades à condição de Centros de Ensino Superior, tal como previsto na regulamentação do capítulo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação/LDB, que trata de ensino superior. A autonomia neste caso, portanto, seria apenas financeira (com a correspondente autonomia administrativa), mantendo-se o essencial da tutela jurídico-política que caracteriza a relação das universidades com o Poder Executivo. Poderíamos comparar esta proposta com uma espécie de capitalismo à chinesa, no qual a liberdade de iniciativa no plano econômico não tem qualquer correspondência com a liberdade política. De outro, o projeto da comunidade universitária. Mais que projeto, a comunidade universitária expressa hoje um conjunto de proposições, de variável grau de articulação, que demonstram, antes de tudo, o temor quanto ao futuro. Sequer os seus dirigentes têm uma posição comum. Há os que, temendo os riscos de uma autonomia sem compromissos claros por parte do governo, principalmente no que diz respeito ao financiamento, sonham com um sistema no qual possam gerir livremente seus recursos financeiros e humanos mas, na dúvida, defendem o status quo com algumas mudanças cosméticas e, sobretudo, mais recursos. Há também os que, duvidando da capacidade do sistema como um todo de tomar iniciativas em direção à autonomia, assumem o risco de defendê-la para suas respectivas
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universidades, escudados sobretudo na sua capacidade, real ou presumida, de gerar recursos por conta própria, sem os atuais entraves burocráticos e administrativos. Argumentam, não sem boa dose de razão, que suas instituições tocaram o teto da atual normalização jurídico-administrativa do sistema universitário, atingindo o limite possível de realizações neste quadro, o que não seria uma situação comum às demais. Manter esta normalização sobre suas respectivas instituições significaria, pois, regredir em relação ao patamar de qualificação acadêmica já alcançado, o que não seria sentido da mesma forma por instituições de menor nível de qualificação. O corpo docente, por sua vez, certamente também não tem uma posição unívoca a respeito. Há os que, situados no topo da carreira da qualificação acadêmica e trabalhando em universidades melhor situadas do ponto de vista da sua interação com interesses econômicos os mais diversos, associam a autonomia a maiores oportunidades de fazer o que já fazem hoje: assessorias, prestações de serviço e cursos de “extensão” que possibilitam significativos acréscimos de renda pessoal. Para muitos, a autonomia seria uma espécie de realização da utopia do liberalismo econômico: o maior número possível de professores enriquecendo individualmente, pela livre alocação de suas capacidades profissionais e científicas no mercado, levaria ao "enriquecimento" da universidade como um todo. Mas há também os que, seja porque situados nos extratos inferiores da carreira, seja por terem maiores dificuldades de acesso ao sistema de pósgraduação e pesquisa, seja, ainda, porque trabalhando em universidades de regiões periféricas, vêem na autonomia o caminho mais seguro para sua transformação em docentes de “segunda categoria”. Não há dúvidas de que, em se tratando da proposta do governo, esses docentes estão cobertos de razão. Para muitos desses colegas, a manutenção do status quo, em que pese todas as suas mazelas, ainda é a melhor alternativa. Significa não só a garantia de estabilidade funcional, como a possibilidade de alimentarem uma expectativa de carreira e de aperfeiçoamento profissional. Mas a questão da autonomia está posta. Sem qualquer exagero, podemos dizer que ela ascendeu ao status de “necessidade objetiva”. Em outras palavras, se mantido o atual modelo de ensino superior, serão as aspirações mais profundas da sociedade - as aspirações por democracia, por justiça social e por soberania nacional - que estarão comprometidas. Manter o modelo atual de ensino superior significa manter um sistema determinado por uma oferta exígua sem qualquer conexão qualitativa e quantitativa com o perfil da demanda; manter a separação entre um ensino “de elite”, minoritário e subvencionado pelo Estado, e um ensino “de massa” como livre oferta de mercado, reproduzindo o próprio dualismo que caracteriza a sociedade brasileira, uma universidade cuja capacidade de acompanhar o desenvolvimento científico que caracteriza a contemporaneidade resume-se a pequenos grupos, e completamente incapaz, enquanto instituição, de dirigir o esforço intelectual de seus docentes e pesquisadores para os problemas que desafiam a continuidade da sociedade brasileira. Este modelo, enfim, é insustentável. Como enfrentar a questão? Para grandes males, grandes remédios. O
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Estado, bem como uma profunda mudança na política de investimentos dos recursos arrecadados. Mas implica também - e esta seria uma abordagem nova - definir uma política de retorno, para a universidade, dos benefícios diretamente econômicos que os mais diversos segmentos da economia auferem diretamente da sua atividade. A valorização e rentabilidade do capital em setores de alta tecnologia, de produção e distribuição de energia, da agricultura etc., seria infinitamente menor se não fosse a atividade da universidade, tanto em pesquisa quanto em formação de recursos humanos. O que a universidade tem ganho com isto até agora? Nada - salvo em convênios específicos voltados para atividades específicas diretamente ligadas aos interesses de tais setores. Porque não se estabelece um sistema de taxação sobre a rentabilidade do capital em alguns setores da economia, cujos recursos fossem geridos autonomamente pelas universidades, segundo um plano estratégico de expansão de suas atividades? Nesta linha de raciocínio, poderíamos pensar inúmeras formas de obtenção de recursos (por exemplo, um percentual do imposto de renda das pessoas físicas e jurídicas) que, significando o compromisso da sociedade para com a universidade e, portanto, com seu próprio futuro, aliados ao aumento das dotações estatais, garantiriam uma expansão do ensino público e gratuito em níveis aptos a colocar a sociedade brasileira no patamar da “sociedade do conhecimento”, que caracterizará as sociedades desenvolvidas no próximo século. Em terceiro lugar, há o aspecto da gestão e da avaliação. Uma universidade autônoma é uma universidade que, liberada dos entraves burocráticos da administração estatal, é também uma universidade capaz de estabelecer relações vivas com a sociedade que a mantém e a valoriza, integrando os problemas desta sociedade ao seu próprio planejamento. Este é sobretudo um problema de gestão. A sociedade civil organizada, bem como o Poder Público, a ela devem ter acesso direto, como integrantes e responsáveis pelo sistema. Não basta apenas a transparência: o sistema de gestão da universidade (seja de cada instituição isoladamente, seja do sistema como um todo) deve ser um fórum onde os diversos interesses da sociedade civil se encontrem e se submetam a uma lógica mutuamente compartilhada de formulação do interesse público. Assim, atuando no seu campo específico, a universidade autônoma se situará no núcleo mesmo dos processos de formação pública das vontades políticas de uma sociedade democrática, no núcleo de constituição de uma cultura democrática e solidária. É também no âmbito da gestão, assim concebida, que se definirão os mecanismos de avaliação, cujo compromisso não será o da competência abstrata dos padrões científicos primeiro-mundistas, mas a competência intelectual e científica na abordagem e solução dos nossos problemas. Finalmente, é no âmbito da gestão que se definirão os parâmetros da administração financeira e de recursos humanos que, assegurando os direitos da comunidade universitária, sobretudo os inerentes à função pública por ela desempenhada, asseguram também a crítica ao corporativismo. E, "last but not least", é necessário desenvolver mecanismos de controle público sobre o ensino privado. O Brasil não é apenas um dos países com
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Jornal, saúde, doença, consumo, Viagra e Saia Justa
OS G I T AR
Fernando Lefèvre
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LEFÉVRE, F. Newspapers, health care, disease, consumption, Viagra and the "Saia Justa" news column. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999.
The thesis we intend to defend here, concerning newspapers in their role as representatives of the printed media and their function, at present, in Brazil, is that the communication relationship maintained by this medium with its reader is basically determined by the social consumption relationship that the newspaper, being a commercial concern, maintains with readers in general. Through a case study, we will be defending this line of thought, taking as our subject matter the newspaper segment that deals with issues of health and disease, to demonstrate that the consumption relationship, by extension, decidedly contaminates the contents and views on health and disease communicated by the newspaper. KEY WORDS: consumption, health, disease, newspapers.
A tese que pretendemos defender aqui, no que toca ao jornal como representante da mídia impressa e sua função, hoje, no Brasil, é que a relação de comunicação mantida pelo meio com seu leitor é essencialmente determinada pela relação social de consumo que o jornal, enquanto empresa comercial, mantém com o leitor em geral. Buscamos, por meio de um estudo de caso, argumentar nesta linha, tomando como objeto o segmento do jornal no qual são abordadas as questões da saúde e da doença, com vistas a indicar que, por extensão, a relação de consumo acaba contaminando, decisivamente, o próprio conteúdo e a visão de saúde e doença veiculada pelo jornal. PALAVRAS-CHAVE: consumo, saúde, doença, jornais.
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Professor associado do Departamento de Prática de Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. E-mail flefevre@usp.br
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Preâmbulo O que acontece, hoje, em nosso país, quando um indivíduo comum dirige-se a uma banca de jornal, tira da carteira uma nota ou uma moeda de um real e pede para o jornaleiro por um jornal diário como a Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo, O Jornal do Brasil? A resposta mais óbvia é que neste momento estaria se instituindo ou se reproduzindo, pela mediação do jornal como objeto de consumo, uma relação de consumo ou de compra e venda entre o leitor e a empresa produtora do jornal. Isto aconteceria porque o indivíduo em questão estaria obtendo um bem de consumo igual a qualquer outro, já adquirido contra o pagamento de uma determinada quantia em dinheiro; e também porque, no caso, tratar-se-ia de uma empresa essencialmente comercial que estaria buscando, acima de qualquer coisa, vender um jornal (e não difundir uma ideologia, uma determinada perspectiva corporativa ou sindical). Mas qualquer brasileiro razoavelmente informado sabe que esta relação de consumo, apesar de existente, não é tudo porque não é só do preço de venda em banca que os jornais vivem. O que um jornal (do tipo dos acima citados) vende? Digamos, para simplificar, informação. Mas também sabemos que a relação de venda e compra mantida entre a empresa jornalística e o consumidor não se esgota, como relação de consumo, no momento em que o indivíduo, lendo o jornal, consome ou atualiza, no interior do seu sistema cognitivo e afetivo, o valor de uso ”informação”, da mesma forma que um consumidor de hambúrguer atualiza o valor de uso “fome”, no interior de seu aparelho digestivo. Na relação de consumo instituída entre o jornal e o consumidor, a informação e o hambúrguer não se tornam equivalentes, embora ambos sejam comprados pelo mesmo “equivalente universal”. O verdadeiro bem de consumo que o jornal vende não seria então a informação, mas a publicidade e a propaganda porque é disso que os jornais vivem? O que o jornal de fato venderia, adicionalmente, ao consumidor de informação, seria a geladeira, a torradeira, o apartamento, o carro, o emprego, a prostituta disfarçada de massagista e o medicamento contra a impotência real ou imaginada? Diga-se de passagem que esta comercialização essencial, que sempre existiu, hoje em dia parece estar em crescimento na medida em que a matéria explicitamente publicitária parece estar ocupando cada vez mais lugar na área total dos jornais e das revistas.
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O “gás do riso” (óxido nitroso) não foi, no princípio, levado a sério, como ilustra este impresso de 1830. (National Library of Medicine)
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Sem entrar, a fundo, no mérito da questão e sem que se estabeleça uma relação direta entre as coisas, parece claro que os agentes econômicos acreditam que os jornais são importantes instrumentos para que indivíduos comprem geladeiras e casas, aluguem prostitutas, arrumem empregos e consumam medicamentos.
A contaminação da informação sobre saúde e doença pelo consumo Admitindo-se então que, de alguma forma, entre nós, o jornal está fortemente envolvido com o consumo, a pergunta que cabe, quando se trata de saúde e doença é: mediante que processo se dá seu envolvimento com o consumo, na “matéria prima essencial” do jornal que é a informação? Não pretendemos demonstrar, aqui, ‘que’ este tipo de informação, na grande mídia impressa brasileira atual (isto é, em jornais tipo Folha de São Paulo, Estado, Globo etc), é processada de forma a configurar um processo de “consumização” da saúde (Lefèvre, 1995). Pretendemos trabalhar o problema num plano mais “macro” das relações entre os jornais como bens de consumo e a informação sobre saúde e doença. A questão que nos move é, então, mais precisamente, a seguinte: dado empiricamente o processo de “consumização” da saúde, qual a ligação dele com o jornal como bem e meio de consumo? No exame desta questão é preciso admitir, antes de mais nada que, numa sociedade de consumo, na qual literalmente tudo está posto a venda (porque o consumo é um princípio organizador da vida social), viver é consumir, isto é, comprar, nos diversos mercados que, somados, consubstanciam a vida (o pressuposto é que a vida é a soma dos mercados de bens vitais), os produtos que garantam, na escala e da perspectiva do consumidor individual e/ou familiar, a reprodução cotidiana desta vida, dentro de um dado padrão de qualidade. Segundo a lógica da sociedade de consumo, esses bens permitem a reprodução da vida porque proporcionam a satisfação das necessidades vitais (a vida é, por definição, igual à satisfação de todas as necessidades vitais) de saúde, felicidade, lazer, habitação, transporte, cultura, informação, fome, proteção, prazer sexual, aventura, fantasia, enfim, de tudo o que os publicitários puderem inventar para agradar o homem, a mulher, a criança, o idoso, o gay etc. Ora, para que uma sociedade deste tipo possa funcionar (no sentido sociológico do termo) é necessário estar permanentemente reinstituindo o papel de consumidor particular de um dado produto, que é a atualização do papel genérico de consumidor, internalizado por processos básicos de socialização. Esta atualização é feita pelos diversos meios de comunicação, como os out-doors, a televisão, o rádio, os jornais, as revistas, os panfletos distribuídos nos sinais de trânsito. No campo da saúde e da doença, os indivíduos que vivem em sociedades de consumo aprendem e reaprendem que viver é consumir saúde; aprendem por meio de representações de base sobre as quais, segundo a teoria da
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Representação Social (Jodelet, 1989), se ancoram e se inscrevem, na temporalidade do cotidiano, os discursos atualizadores e reforçadores desta aprendizagem. Tomando como exemplo a alimentação, podemos dizer que, pelos processos básicos de socialização, as pessoas que vivem nas sociedades de consumo aprendem e internalizam que comer, ou, mais precisamente, que o ato diário e habitual de comer, implica consumir saúde. Aprendido isto, está criada a base, o “núcleo duro” da representação da saúde como consumo. A partir daí a saúde como valor de uso, valor de troca e valor simbólico, ou mesmo valor fractal (Baudrillard, 1990), a ser obtido no ou por meio do mercado, pode ser completamente explorada para “render “ o que se deseja dela. Ora, um dos modos de fazer “render” a saúde é utilizando, de forma “natural”, isto é, sem fazer apelo ao discurso publicitário explícito, os jornais e a informação que eles difundem. Esta informação não é, explicitamente, uma propaganda, e sim uma notícia do mundo; mas como no mundo das sociedades de consumo, consumir saúde é “a coisa mais natural e habitual do mundo”, esta “notícia do mundo” pode ser, também, no nível pragmático do discurso, uma propaganda de saúde na medida em que produza o efeito concreto de fazer, por exemplo, com que os indivíduos se dirijam a uma farmácia e comprem um comprimido de Viagra.
Mulher teme separação com efeito Viagra: um estudo de caso Analisaremos a seguir alguns aspectos da matéria que, sob este título, aparece na edição de domingo, 7 de junho de 1998, da Folha de São Paulo, na seção “Saia Justa”, com vistas a ilustrar as relações apontadas entre o jornal como meio e bem de consumo, a saúde e a doença.
Descrição geral da matéria A matéria ocupa em torno de 2/3 da metade da página 3/11 da edição da Folha, sendo o restante ocupado por uma propaganda de sapato e uma de cama da casal. Ela figura no jornal sob a rubrica SAIA JUSTA em vermelho bordô, abaixo da qual vem o título: Mulher teme separação com efeito Viagra. Compõem ainda a matéria, a assinatura da repórter, duas colunas de texto com um sub-título “Táticas” e outro texto menor, também em duas colunas, com o título: "Médicos recomendam cuidado”. Ao lado das colunas de texto há uma foto colorida do rosto de uma mulher com a seguinte legenda: “A vendedora ... que se cuida mais com o Viagra na vizinhança" e um quadro em fundo azul e bordô, degradé, com o título “Fique por dentro do Viagra”.
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Que também é sugerida visualmente porque, na foto de seu rosto, a vendedora exibe um sorriso matreiro cujo sentido é de certa forma confirmado pela escolha estratégica, na legenda da foto, da expressão: “que se cuida mais com o Viagra na vizinhança” que, neste contexto sugere claramente coisas do tipo : “garanhão solto no pasto”...
O Viagra e a Saia Justa: idéia central Se pudéssemos resumir a idéia central da reportagem (Simioni et al., 1997) diríamos que seria a seguinte: O medicamento Viagra coloca as mulheres numa “saia justa”. “Elas” estão adotando alguns comportamentos com vistas a fazer face às novas circunstâncias criadas com o surgimento do medicamento e de sua capacidade de despertar ou reavivar “neles” o “gigante adormecido”, isto é, o desempenho sexual - antes medíocre e hoje, graças ao Viagra, competente - medido pela freqüência e pelo tempo de duração da ereção. Estilo jocoso, cauteloso, informativo, científico ou brincando, informando, alertando e... vendendo A matéria é, textualmente, marcada por um estilo composto que envolve a jocosidade2 , a cautela, a informatividade e a cientificidade.
Jocosidade (Elas) Confessam que, assustadas com a erupção daquele “vulcão” que parecia adormecido, já começaram a armar as camas de seus amados. A primeira reclamação de quem já tinha se conformado em conviver com aquele quase objeto de adorno escondido em um flácido pijama é a aceleração do ritmo de uma hora para a outra. Informatividade e cientificidade Todo o box: Fique por dentro do Viagra exala um estilo informativo com componentes de cientificidade. Cientificidade como age: inibe uma enzima que contrai a musculatura do pênis, facilitando a ereção. Informatividade Quando deve ser tomado: de 30 a 60 minutos antes da relação. Onde é vendido: farmácias, mediante receita médica. Cautela Médicos recomendam cuidado. ...Segundo o médico...., cardiopatas, portadores de diabetes severa e usuários de drogas não devem experimentar a pílula. O jornal brinca (evidentemente porque o tema se presta para tanto) para atrair a atenção do leitor; informa com seriedade (fazendo uso da terminologia científica e do apelo a autoridade); orienta (passando um mensagem do tipo: “apesar de tudo não se deve brincar com o assunto ou sair por aí tomando a pílula sem cautela”). Todos esses efeitos pragmáticos do discurso reunidos possibilitam, permitem, orientam, a venda e o consumo da saúde, no caso, sob a forma de recuperação da “potência sexual adormecida”. Mas tudo isso é feito no contexto e no interior da ”Cadeira tranqüilizante” sugerida por Dr. Benjamin Rush em 1810. (National Library of Medicine)
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situação social e comunicativa jornalística, que confere um “alibi” perfeito para a venda da saúde na medida em que o que o jornal está fazendo ao orientar, informar e educar é outra coisa que vender. E, ademais, esta outra coisa implica em ato “desinteressado” (Lefevre,1995) que, por isso, poderia ser visto como oposto ao ato de vender, implícito nos discursos ostensivamente publicitários que, sempre, numa certa medida, são discursos imorais e anti-éticos porque omitem, enganam, mentem, deformam, exageram. O aparente paradoxo então é que esta “anti-venda”, vista como álibi, confere eficácia ao processo de venda da saúde pelos jornais. Em outros termos, o jornal vende saúde justamente porque não está vendendo mas informando sobre saúde. Os pressupostos A reportagem toda pode ser entendida como algumas respostas, sob a forma de depoimentos, à questão: o que fazer para que seu marido ou namorado, como conseqüência do efeito Viagra, não escape pelos lençóis3 . Este tipo de reportagem, com este tipo de mensagem e considerando, ademais, as representações sociais básicas acima aludidas, carrega vários pressupostos encadeados. Eis uma descrição possível desses pressupostos: Saúde é ausência de doença; saúde é um bem de consumo; este bem de consumo pode ser obtido por medicamentos; a impotência sexual é uma doença que tem como sintoma a não (suficiente) ereção do pênis; esta doença pode ser tratada com medicamentos; a impotência é, também, baixo rendimento sexual; a doença-impotência tratada produz potência sexual, isto é, saúde; o Viagra é um medicamento que resolve a impotência, isto é, a não (suficiente) ereção do pênis, isto é, o baixo rendimento sexual, produzindo saúde, isto é, altas doses de ereção, isto é, alto rendimento sexual; a mulher deve se adaptar, isto é, co-responder, à nova situação criada com súbita mudança da competência sexual masculina ocorrida em decorrência do
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3 A frase literal é: “muitas mulheres estão se munindo de todo tipo de artifícios para não deixar os maridos escapar (sic) pelos lençois”
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consumo do Viagra, caso contrário seu homem pode “escapar pelos lençóis”. Ora, todos esses pressupostos, alguns deles embutidos na mensagem, outros, os mais básicos, fazendo parte das condições ou circunstâncias prévias do discurso, que estão sendo sub-repticiamente passados ao leitor, são facilitadores ou “fluidificadores” do processo de venda da “saúde em pílulas”. Em outras palavras, quando a informação explicitamente repassada é o que fazer para segurar “seu” homem, tornado, de um dia para o outro, sexualmente saudável graças ao Viagra, o discurso por meio do qual se repassa esta informação está, ao mesmo tempo, implicitamente, repassando o significativo conjunto encadeado de informação descrito acima, que instrumentaliza o processo de mercantilização da saúde. Além disso, como estamos, discursiva e sociologicamente, no plano do implícito, do pressuposto, do sub-reptício, estamos, psicologicamente, no plano do inconsciente, das fantasias, no caso, da saúde como objeto de desejo de restituição da juventude sob a forma de um falo completa e permanentemente enrijecido. Para consumir o Viagra você tem que saber... O “box” da matéria poderia ter seu título: “ Fique por dentro do Viagra” substituído, com vantagens, por outro como: “Para consumir o Viagra você tem que saber...” Com efeito, esta parte da matéria (que aparece em lugar de destaque pela utilização de um fundo colorido em contraste com o fundo branco do resto do texto) é fundamental para o entendimento das relações entre o jornal e a informação sobre saúde, num contexto de consumo, pois é no “box que aparece mais claramente a informação com a função de facilitadora implícita do consumo. Esta função confere ao jornal um papel específico no processo ou, mais exatamente, na cadeia de ações que compõem o processo de venda da saúde pois o produto que está sendo oferecido ao consumidor do jornal não é, como na propaganda, diretamente, o remédio, nem, como na consulta médica, uma “autorização formal” ou um “passaporte” para o consumo (Lefèvre, 1991), nem, como na bula, um “facilitador explícito” do consumo. Trata-se de um “facilitador implícito” visto que o que se pretende explicitamente é, apenas, informar o leitor sobre o medicamento. Examinemos o conteúdo do “box” mediante a análise dos seguintes subtítulos nele presentes: . . . .
O que é Como age Eficácia Duração
. . . .
Quando deve ser tomado Quem pode tomar Quem não pode tomar Efeitos colaterais
. . . .
Riscos Quanto custa Onde é vendido A impotência por idade
Ora, estes sub-títulos, apenas pelo seu enunciado, sugerem, claramente, estarmos diante de uma espécie de “bula jornalística”, isto é, de um conjunto de informações importantes num processo pessoal de tomada de decisão de consumo. Com efeito, para tomar a decisão de consumir o Viagra, é importante o indivíduo consumidor saber quase tudo (10 de 12 sub-títulos) o que está contido no “box”, com exceção, talvez, da informação, supérflua para
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fins de consumo, sobre como o Viagra age e daquela sobre as taxas de impotência por idade. Caso considerássemos como objetivo do box fornecer informações para uma tomada de decisão de consumo do Viagra, todos os demais dez sub-títulos estariam diretamente relacionados a este objetivo. Conclusão Bourdieu, em seu estudo sobre a televisão (Bourdieu, 1997) coloca, reiteradas vezes, como resposta às críticas a ele dirigidas pelos jornalistas atuando na televisão, o caráter sociologicamente constrangedor das condições estruturais maiores, notadamente da competição pela audiência, que condicionam o fazer televisual, restringindo em muito a capacidade de ação e reação desses jornalistas. O que fala Bourdieu sobre a televisão francesa repete-se, mutatis mutandis, no que toca à mídia impressa brasileira. Ou seja, a “culpa” não é do jornalista que é, no fundo, apenas um funcionário do jornal, ainda que esta condição possa arranhar um pouco sua auto-imagem. A sociedade na qual os jornais existem é uma sociedade em que o consumo é o grande princípio ordenador (que, ademais, com a “modernidade”, vai progressivamente ocupando todos os espaços, produzindo, por exemplo, a medicalização generalizada da vida social). Os jornais fazem parte, obviamente, desta “consumização”, na medida em que vivem da venda de espaços publicitários, uma vez que, nessas sociedades, o meio maior de tornar-se público ou conhecido e, conseqüentemente, “coisa vendável”, é a mídia (Rubin, 1995). Mas é igualmente óbvio que os jornais não são, como uma moldura de um out-door, apenas espaços ou suportes vazios nos quais se inscreve a publicidade do momento. O discurso jornalístico não se confunde com o discurso publicitário, a despeito deste também acontecer no espaço do jornal, porque o primeiro vende informação, que não é, em si mesmo, uma mercadoria, enquanto o segundo vende, explicitamente, mercadorias. Mas a informação, enquanto tal, também pode ajudar a vender mercadorias porque as pessoas, para decidirem comprar algo, precisam estar informadas sobre este algo por um discurso e por um sujeito discursivo “isento”, “não comprometido” – e é este o lugar do jornalista na cadeia de consumo – que não seja funcionário ou formalmente vinculado às empresas produtoras ou comercializadoras da mercadoria. Por isso, na matéria que
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analisamos, o título do “box” é: “Fique por dentro do Viagra” e não: “Para comprar o Viagra você precisa saber...” A primeira fórmula é puramente informativa, isto é, auto-suficiente, tautológica (=informar é informar, ou seja, produzir conhecimento sobre); já a segunda é publicitária, transitiva, “interesseira”; a segunda fórmula desvenda e explicita o que a primeira esconde, sob o manto do princípio jornalístico da informatividade tautológica. Do ponto de vista da cultura midiática, para que serve um jornal? Para informar as pessoas. Mas o que é informar uma pessoa? É deixar esta pessoa informada ou, como aparece no título do “box:” “por dentro”. Ora, o que vimos na análise desta matéria jornalística exemplar é que este raciocínio circular não é vicioso mas viciado, na medida em que esconde aquilo que faz romper o círculo aparentemente fechado da informatividade, ou seja, o consumo. Os jornais não informam por informar mas, entre outras coisas, para preparar ou habilitar o leitor para o consumo. É para isso que estão – pelo menos no campo da saúde e da doença, na maior parte do tempo - servindo os jornais. Referências bibliográficas BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. São Paulo: Papirus, 1990. BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. JODELET, D. Représentations sociales: un domaine en expansion. In:___. Les représentations sociales. Paris: Presses Universitaries de France, 1989. p. 31-62. LEFÈVRE, F. O medicamento como mercadoria simbólica. São Paulo: Cortez, 1991. LEFÈVRE, F. A constituição do sujeito da sua saúde e da sua doença. São Paulo, 1995. 197p. Tese (Livre-Docência). Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. RUBIN, A. A. C. Mídia, política e democracia. In: PITTA, A. M. R. (Org.) Saúde & comunicação: visibilidades e silêncios. São Paulo: Hucitec, 1995. p. 8197. SIMIONI, A.M.C., LEFÈVRE, F., BICUDO PEREIRA, I. Metodologia qualitativa nas pesquisas em saúde coletiva: considerações teóricas e instrumentais. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Departamento de Prática de Saúde Pública, 1997 (série monográfica, 2).
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LEFEVRE, F. Periódico, salud, enfermedad, consumo, Viagra y "Saia Justa". Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v. 3 n.4, 1999. La tesis que buscamos defender, en lo que toca al periódico como representante de los medios de comunicación impresa y su función, hoy, en el Brasil, es que la relación comunicativa mantenida por el “medio” con el lector es esencialmente determinada por la relación social de consumo que el periódico, como institución comercial, mantiene con el lector en general. Buscamos, por medio de un análisis de caso, argumentar en esta dirección, teniendo como objeto el segmento del periódico en el cual son publicados los temas de salud y enfermedad con el objetivo de indicar que la relación de consumo termina por contaminar, decisivamente, el propio contenido y la visión de salud-enfermedad difundida por el periódico. PALABRAS-CLAVE: consumo, salud, enfermedad, periódicos.
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Voces y cuerpos. El consultorio médico radial como espacio discursivo en el Perú*
María Mercedes Zevallos Castañeda
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CASTAÑEDA, M.M. Z. Voices and bodies: radio consulting as an arena for discourse in Peru. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v. 3 n.4, 1999.
The radio consulting room is a virtual location for the meeting of doctor and patient. This being the case, what is revealed in it (the body) becomes a field reconstructed by the assorted lines of discourse voiced as from the position that one occupies in this virtual arena: that of the doctor or that of the patient. In this paper, we describe the various discourse strategies used in the construction of the body in time and in space, as well as the construction of multiple bodies within the arena of airwaves. Two key aspects are broached: the process of making intimate issues public as one of the characteristics of current society, and the consulting room as an arena where discourses concerning the body, from varied sources, meet and blend together, combine or oppose one another and reveal themselves as divergent. KEY WORDS: radio, doctor/patient relationship.
El consultorio radiofónico se presenta como un lugar virtual de encuentro entre médico y paciente. Siendo así lo que es develado en él, el cuerpo, se convierte en un territorio reconstruido a través de los discursos distintos enunciados desde dos lugares: lugar del médico, lugar del paciente. En el artículo describimos las distintas estrategias discursivas utilizadas desde cada lugar en relación al cuerpo en el tiempo y al cuerpo en el espacio, y la construcción así de múltiples cuerpos en el espacio radiofónico. Abordamos dos aspectos importantes: el proceso de publicitación de los lugares íntimos como una característica de la sociedad de nuestro siglo y el consultorio como lugar donde discursos sobre el cuerpo que provienen de distintos lugares se encuentran y se fusionan, se mezclan o se rechazan y se evidencian distintos. PALABRAS-CLAVE: radio, relaciones médico-paciente.
* El trabajo presentado hace parte de la tesis de maestría “Voces y Cuerpos” presentada en setiembre de 1997 a la Escola de Comunicação/ECO da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. 1 Profesora de la Facultad de Ciencias y Artes de la Comunicación de la Pontificia Universidad Católica del Perú; investigadora de la Organización Benéfica Prisma.- Institución sin fines de lucro encargada de la promoción de la salud en el Perú. E-mail:mzevallos@prisma.pe
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MARÍA MERCEDES ZEVALLOS CASTAÑEDA
POYET, Pronúncia de vogais, 1908
Mi relación con la radio está marcada por lo afectivo. Cuando en mi ciudad, Cajamarca, al norte del Perú, no existía aún la televisión la radio era escuchada obligatoriamente en las mañanas en la casa de mis padres. Cerrando los ojos uno podía imaginar, dejar volar, abrir el subconsciente. La radio nos abría a la experiencia de ese lugar sonoro que nos recuerda el espacio interior. Luego, ya formada en comunicación social, mi experiencia con la radio resultaría sumamente gratificante. El trabajo con el proyecto de radio Warmikuna Rimanchis1 en la ciudad de Cuzco y la relación con las mujeres que lo producían implicó abrir una serie de interrogantes en torno al lugar de la radio en los medios de comunicación. En un estudio de recepción realizado sobre el programa nos llamó la atención la manera como las mujeres construían su relación con la radio. Siendo una relación vivida como íntima (a pesar de compartir el espacio sonoro con la familia) se le demandaba información de cómo comportarse en la vida privada: con la familia, con los hijos, la pareja etc. y en la radio las mujeres hablaban de problemas considerados íntimos y del orden de lo secreto: amores prohibidos, sufrimientos, pasiones; paradójicamente compartiéndolos con miles de oyentes. Una de las demandas mayores de información de las mujeres era sobre la salud. Su cuerpo, considerado por nuestra cultura como un lugar secreto (y más aún en la cultura andina) era expuesto y develado en el lugar de lo público, a través de un formato muy difundido dentro de la radio peruana: el consultorio médico radial. Habría aquí dos lugares publicitados, el lugar del cuerpo y el lugar privado del consultorio médico. Dentro de estos consultorios múltiples voces hablaban sobre el cuerpo: la voz de los médicos, la voz de la radio (a través de sus locutores) y la misma voz de los pacientes; para citar algunas. La posibilidad de acercarnos a la comprensión de la relación entre lo público y lo privado que construía la radio y la construcción del cuerpo en el espacio mediático, a través del estudio de este espacio radial nos sedujo e hicimos un estudio sobre las estrategias discursivas utlizadas para la construcción del cuerpo en el lugar de lo público.
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1 Warmikuna Rimanchis es una frase tomada del quechua, lengua hablada en el sur del Perú. La traducción al español sería “Cuando las mujeres hablamos”.
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Nuestro objeto de trabajo empírico son las prácticas discursivas que, sobre el cuerpo, se desarrollan en el caso de los consultorios médicos radiales “Servicio Profesional” emitidos por la emisora Radio Programas del Perú. Elegimos esta emisora al ser una de las cuatro con mayor cobertura en el país y ser un modelo seguido por muchas de las pequeñas emisoras locales. Características de Radio Programas del Perú El nacimiento de Radio Programas del Perú (RPP), al inicio de la década de los setenta, marcaría época en la historia de hacer radio en el Perú. La radio se caracteriza por su dinamismo y su capacidad para transmitir desde cualquier parte del país, recreando su identidad en razón de su capacidad para estar en todas partes y transmitir en el mismo momento que las cosas ocurren; así como por su apertura a la participación del público. Estas dos características pueden ser ejemplificadas con la manera como la radio trabajaba en los momentos en que el país, durante la década de los ochenta, sufría continuos cortes de fluido eléctrico causados por los continuos atentados terroristas. En estos momentos RPP se mantenía al aire, transmitiendo informaciones sobre los atentados que eran enviadas por los reporteros y los oyentes desde distintos puntos del país. Paralelamente el locutor animaba a los oyentes, pasaba mensajes de personas que se encontraban fuera de casa y consolaba a las personas que llamaban a la radio para no sentirse solas. Muchas emisoras a lo largo de todo el país intentaron imitar el modelo propuesto por Radio Programas, resultando sumamente difícil imitar a una emisora con un enorme presupuesto para la producción. Radio Programas del Perú se caracteriza por la transmisión de programas de noticias (aproximadamente 50% de su programación total), por lo tanto el género más usado es el informativo, situándose en segundo lugar el género participativo, usado en los consultorios radiales. Los consultorios radiales basan su dinámica en un juego de pregunta y respuesta; la pregunta es formulada por teléfono, en todos los casos, y es respondida por un especialista sobre el tema que se viene tratando en el programa. En RPP existen consultorios sobre distintas temáticas: jurídico, médico, psicológico y religioso. El consultorio radial que ahora nos ocupa es el dedicado a salud, que tiene una duración de una hora y se trasmite entre las 10 y 11 de la mañana de los días lunes y miércoles. Las estrategias discursivas en la construcción del cuerpo El cuerpo en el tiempo: descripción de la temporalidad de los relatos Escuchando muchas veces el material de análisis (grabación de tres meses de programación) nos llamó la atención la manera como se construye la temporalidad en los relatos o más bien como ellos (los relatos) se construyen en temporalidades distintas para la radio, para los médicos y
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para los pacientes. Por tanto pensamos que la manera de construir la temporalidad en los relatos hace parte de una economía discursiva y tiene que ver con la construcción del cuerpo en el tiempo. Las formas adverbiales son las que delimitan el lugar espacial y temporal en el discurso. En el caso de “Consulta Profesional” el discurso construido por sus locutores como un aquí (adverbio de lugar) y ahora (adverbio de tiempo) a la vez que señalan el lugar desde donde los locutores narran las noticias, también señalan la pluralidad del lugar espacio temporal que la radio construye; por tanto existe una experiencia múltiple del espaciotiempo en virtud de su característica de gran movilidad (varios locutores en distintos lugares del país). En el caso de los participantes del consultorio radial la radio se traslada del lugar central de la cabina a los lugares de las casas para construir también una “aquí y ahora” en el discurso de los participantes. En el caso de los Consultorios médico radiales la radio construye una multiplicidad de lugares y de tiempos que coexisten en el espacio discursivo: el lugar de la casa, de la cabina, de la calle, de la oficina; el tiempo de lo cotidiano casero, de lo cotidiano profesional, el tiempo rápido, urgente de la noticia (de allí que se contemple, dentro de la economía discursiva de RPP espacios en los cuales puede entrar la noticia en cualquier momento). Dentro de esta multiplicidad de lugares espacio-temporales, parte de la economía discursiva del medio, se insertan discursos que siendo parte de esta economía tienen también características propias. Allí es donde ubicamos el discurso del médico y el del paciente. Como vimos, los adverbios organizan las relaciones espacio temporales, en torno al sujeto de la enunciación, más que ello en torno a la instancia del discurso en la cual son producidos. En el caso del discurso del participante asistimos a la construcción de un tiempo que fluye y a un cuerpo que se transforma en el tiempo. Se narra alguna cosa que sucede con el cuerpo, por tanto tenemos una narrativa en la cual el cuerpo es el protagonista. En la acepción que Verón2 da al término diremos que estamos ante un discurso histórico, es decir que el participante produce una narrativa. La narrativa teniendo como característica su centralización en las marcas temporales (ayer, mañana, ahora, hoy, hacen dos meses, hace un ano etc.) como por ejemplo en el siguiente recorte: Participante:... Mire se trata de lo siguiente, soy una mujer de 36 años, voy a cumplir y en junio del año pasado me hicieron una prueba antireumática y de artritis. ¿No? Salió negativo. Yo fui al seguro porque me dolía desde el codo hasta la muñeca, pero hace como dos días sentí un dolor espantoso, me dolía desde el codo hasta la muñeca horrible, en la mañana me he levantado, tomé una aspirina y un desinflamante pero no podía agarrar nada, si tocaba cualquier cosa para sujetar sentía dolor. O sea tuve que esperar varias horas el efecto, parece de la aspirina, y me pasó, todo el día ya no tuve malestar, ni rezagos de dolor.
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Es necesario aquí deslindar la aproximación del término a lo propuesto por Benveniste para quien la narrativa del orden de la historia se opone al discurso. Para Benveniste en la narrativa histórica no se enuncia la primera persona.
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Es una narrativa que discurre fluidamente hasta llegar al tiempo presente, allí hay una parada, la fluidez desaparece para dejar espacios vacíos, invitaciones al interlocutor para completar el discurso, “lugares de discurso abiertos al imaginario del otro” (Verón, 1981, p.212) El paciente anterior contínua así: Ahora yo quisiera saber este dolor ya...primero lo tenía suave pero ahora último....hacen dos días, nunca había sentido el dolor así tan espantoso...
O en el siguiente ejemplo, en el cual también la narrativa está presente: Participante: Bueno, estoy gestando, tengo tres meses, pero no sé cuando llega la hora de comer, después del almuerzo, después de la comida tengo un ligero dolor de, siempre, de estómago y va bajando al vientre y allí un dolor que no se me va.... ¿Por qué será?,...porque yo nunca he sufrido de dolor de estómago...
En el discurso de los pacientes anteriores podemos ver como el relato del paciente normalmente establece una temporalidad: antes, después y hoy. Y el disturbio del cuerpo va evolucionando en el tiempo. La narrativa se produce desde un tiempo lejano hasta llegar a un presente, estableciéndose una especie de hitos en el transcurrir del tiempo (junio del ano pasado, hace dos días, en la mañana). El cuerpo enfermo pasa por un proceso en el tiempo que no es continuo sino marcado por etapas (por hitos). Por ejemplo en el siguiente párrafo: Participante: Aló, buenos días doctor. Primeramente para agradecerle la consulta que le voy a hacer. Mire mi padre tiene 83 años. En el año 87 tuvo un derrame, él había tenido una pérdida auditiva, le vino un glaucoma en el año 88. Ahora se encuentra postrado. Pero el problema que ahorita presenta él es que aparte de su arteriosclerosis, que ya se pierde de la realidad, su vista, los párpados un poco que se le han caído, se encuentran completamente rojos ...
Igualmente en las siguientes participaciones:
Experiência com sons em câmara morta
Participante: Mire doctor, yo a los ocho años he tenido glomerulonefritis, a los 46 años me descubrieron una úlcera traquea-estómago. Pero ahora hace cinco días que estoy con cuarenta de fiebre... Participante: “...el día viernes, el día viernes me desperté....de jueves para viernes, me desperté a las dos de la mañana...” Participante : Sabe que hará más o menos un mes, como por fines de diciembre tuve una
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infección al oído, me dio un dolor fuertísimo y bueno, me vio la doctora, (...) regresé y me dijo que no me había mejorado, me dio un antibiótico de 500, no me acuerdo el nombre, por ocho días más. Regresé, me dijo que estaba un poco mejor y me recetó Ruler, uno cada día por cinco días. Bueno, ya ha pasado menos de un mes y anoche sentí unas punzaditas, como una burbuja, como agua en el oído. Yo me he cuidado para que no me entre agua en la ducha, pero ¿qué será? ¿que no me ha hecho bien el remedio ese?
Es como si el cuerpo fuera sufriendo desórdenes continuamente hasta llegar a un momento de crisis, que coincide, en muchas de las participaciones, justamente con el momento de la llamada. El discurso del médico se construye tanto en el pasado como en el presente, pero enfatiza cuando habla de un cuerpo presente ya desordenado (ya violentado), habla más bien de un estado del cuerpo (estado presente). El paciente, mientras tanto, narra un cuerpo que va sufriendo deterioro en el tiempo, de allí que se narra el pasado, se dice el presente y finalmente se pregunta: ¿qué ocurrirá?. Médico geriatra: Personas similares al papá con relativa frecuencia se nos presentan en casa, o sea por encima de 75, 80 años que han presentado problemas de hipertensión de fondo y que han terminado con una embolia, que han terminado con una hemorragia que conocemos los médicos como accidente cerebro vascular. El drama que se presenta es después de esta circunstancia porque generalmente el paciente entra en un estado de inamovilidad, en un estado de postración que va acelerando una serie de deterioros que se vienen presentando ya en nuestro organismo.
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Médico:(...) mientras no tome antistamínicos por un tiempo no se le va a arreglar el problema que usted tiene en el oído, por que siempre va a seguir congestionada la rineo o faringe que es donde drena el agua que viene del oído entonces el líquido que se produce allí siempre va a ser un poco... por eso es que siente, lo que usted siente en el oído cuando por ejemplo pasa saliva, o cuando pasa alimentos, siente como una burbuja, usted bien lo ha dicho. Haga una prueba, suénese la nariz, pero tapándose la nariz, o sea como si quisiera estornudar pero tapándose la nariz, tapando la boca si usted llega a descomprimir los dos tímpanos quiere decir que está permeable pero si no descomprimen al mismo tiempo, quiere decir que uno de ellos no es permeable.
Concluyendo diríamos que existen dos temporalidades distintas cuando se habla del cuerpo en el consultorio radial: la del médico, descriptiva de un estado (por tanto el cuerpo como detenido en el tiempo) y la del paciente, narrativa de un proceso (por tanto el cuerpo que cambia en el tiempo). El cuerpo construído En este acápite nos referimos a las distintas maneras de construcción del cuerpo a través de la voz. Del recorte hecho al objeto vimos que existen múltiples estrategias discursivas utilizadas para referirse al cuerpo, las que evidencian maneras distintas de construcción del mismo. Nuestro interés aquí es registrar cuáles son las principales tendencias que se dan en este sentido. Cuerpo particular y cuerpo tipo En un grupo de enunciados, tanto de participantes como de médicos, la referencia a la edad está presente. Para el paciente el cuerpo es particular, perteneciente a alguien y la edad se refiere a ese alguien, como en los enunciados siguientes: (mi hijo tiene doce años, tiene un año..., yo tengo 36 años). Participante: mi bebé tiene año, cinco meses y su dentadura se ha cariado... Participante : Ante todo muchísimas gracias por la respuesta que me va a dar. Mire mi hijo tiene doce años y come horrores, horrores realmente, pero se mantiene muy delgado, delgadísimo, casi se le puede ver hasta los huesos. Yo no sé a qué se debe eso. Y le gusta la sopa. Participante: Doctor le agradezco de antemano la respuesta a mis preguntas. Quería saber doctor, soy una...bueno tengo 36 años y por primera vez estoy gestando, después de diez años de intentar embarazos. Tengo aproximadamente cuatro meses y medio de gestación y quisiera preguntarle si yo tengo ...si podría tener algún riesgo si yo viajo a Estados.
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Mientras que para los médicos la edad del cuerpo sirve para generalizar y referirse a un cuerpo tipo de una fase etarea, como especies de moldes en los cuales encaja el cuerpo, tal como lo menciona uno de ellos “...cada etapa de la vida tiene sus características...”. Tenemos los siguientes ejemplos: Médico: Sí señora, usted en primer lugar no tiene que preocuparse por que esa es la característica general en los jóvenes a esta edad es la edad en donde se come como nunca. Ojalá le perdure esto, ¿no? pero cada etapa de la vida tiene también sus características, la característica de la adolescencia es precisamente comer bastante, casi incansablemente, ilimitadamente. Él debe también hacer ejercicios, hacer deportes seguramente y en esos deportes gasta todo lo que usted considera que ha sido una sobrealimentación y entonces conserva su forma. Mientras esté activo, mientras esté alegre, mientras tenga ganas de palomillar, de jugar, no debe usted preocuparse. La figura corporal va a permanecer así mientras dure la adolescencia, esto es normal absolutamente en esta época de la vida. Médico:...a toda mujer que pasa de los 28 anos se le llama primeriza añosa, este es un término acuñado por los médicos...”
Si en el primer caso el cuerpo se construye en relación con el participante: mi bebé, mi hijo, tengo...; en el segundo caso el cuerpo es aquello de lo que se habla: ...los jóvenes a cierta edad, ...a partir de los 30. En el primer caso tenemos un cuerpo particular mientras en el segundo caso el cuerpo encaja en cierto tipo. Se postula entonces la existencia de tipos de cuerpo cuyas características los asemejan. En el primer caso se construye una relación de cercanía y en el segundo caso una relación de lejanía con el cuerpo en cuestión. Cuerpo íntegro, cuerpo desmembrado En el caso de los médicos tenemos que un grupo de enunciados se refiere al cuerpo como una estructura que tiene un equilibrio y que está conformada por partes. Como estructura el cuerpo tendrá una armazón central:”...es de la armazón del organismo”; partes centrales y secundarias, como el sistema venoso profundo y las arterias, partes simétricas (mitades, ojos, mamas, articulaciones, miembros), sustancias y tejidos (sustancias que entran, que son expulsadas, impulsadas, que limpian, tejido parenquital) . Pediatra: o sea la vitamina que le está dando y el fierro están muy bien indicadas. Ahora el síndrome de Dow señora, es una enfermedad constitucional, es estructural vamos a decir así, es de la armazón del organismo, en donde algunos de los cromosomas están alterados, esto ya no se puede corregir, no hay tratamientos... Ginecólogo: Cuando hablamos de una gestación estamos hablando de algo que impide el retorno venoso de los miembros inferiores hacia la oblicua derecha, el corazón. Esta sustancia que es la
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sangre nuevamente vuelve a ser impulsada, ser limpiada en los pulmones y expulsada nuevamente al torrente sanguíneo (...) hay que ver si estas venas están un poquito dilatadas porque existe un problema valvular o porque existe un problema obstructivo en el sistema venoso profundo que es el principal. M.A. En el estudio de Midopinido que me han alcanzado se ve que mediante cintografía, que es una forma de marcar glóbulos rojos, se ha determinado que aumenta casi en un 60% la cantidad de sangre que entra al cerebro, al tejido parenquimal, de allí a que vayan a funcionar mejor las neuronas, ese es otro cantar. Ginecólogo: ...Bueno, le voy a responder muy simplemente. El cuerpo humano tiene algunos órganos, por decirlo así, pares, por ejemplo dos ojos, uno puede ver mejor con uno que con el otro, tiene dos mitades de la cara, una no es igual a la otra, así sucede también con la mama, una mama por razones muy particulares, es mucho más sensible a las hormonas que la otra mama... Médico: ...es raro que los problemas reumatológicos se acentúen en verano, son dos cosas en contra, pero también puede pasar. Y como tercer factor es raro que sea solamente en un lado del cuerpo, generalmente los problemas reumatológicos son simétricos, vienen a ambos lados, mismas articulaciones, ¿no? Ya tiene tres factores en contra....
Lo que nos llama la atención en el grupo de enunciados es como la construcción del cuerpo como estructura implica que está compuesto por una serie de partes que, formando parte de ella, son tratadas en el discurso como piezas desglosables. Esta tendencia es mucho más clara cuando se habla sobre uno de los órganos del cuerpo, allí tendremos que éste es aún más seccionado. En el siguiente ejemplo se habla de componentes del cerebro: zonas corticales, vaso-dilatadores, neuronas. Ginecólogo: Claro, mire con respecto a la plasticidad cerebral, yo trabajé con el doctor Esteban Roca y con el doctor Juan Franco en el Servicio de Neurocirugía, hace una barbaridad de años y encontramos que a veces lesiones de zonas corticales, encargadas de ciertas funciones, eran asumidas. Pero con respecto a los vasos dilatadores pueden mejorar la afluencia de sangre, lo interesante es la neurona. La neurona captará esto y mejorará su metabolismo.
Esta sectorización del cuerpo en partes implica también una sectorización del saber médico cuyas especialidades están definidas justamente por este cuerpo desmembrado. Un grupo de enunciados nos sirve como ejemplo:
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Ginecólogo: O sea que tiene un diagnóstico de hepatitis, señora. Hasta yo que soy ginecólogo me permito decir eso y con toda seguridad... Médico General: Yo soy el más afín a lo que es cirugía de tubo digestivo... Pediatra: También yo tengo que ver con todo lo que es el aparato reproductor...
En suma el cuerpo, en el discurso del médico, es un lugar conocido en tanto que es hurgado en sus detalles, se conoce sus componentes y se sabe su funcionamiento. El cuerpo es tratado como el lugar en el cual se trabaja. Esto queda mucho más explicado cuando el médico utiliza frases como “no se invade mucho”, “se puede ver casi todo” que nos recuerdan el discurso de quienes exploran. El cuerpo es entonces también territorio explorado y explorable. Ginecólogo: Tercero, la laparoscopia es un procedimiento de diagnóstico, quiere decir que no se invade mucho y se puede ver casi todo, así que está bien que se lo hayan hecho...
Y como territorio y lugar de trabajo es susceptible de ser manipulado: arrancar, sacar, extirpar, extraer. Médico: ...la magnitud de la caries debe ser bien grande para que quieran extraerlo. Médico: ..cuando los episodios de supuración son muy frecuentes, entonces está indicada la intervención. La extracción de esa glándula que ya dejó de ser glándula y se convierte en un foco infeccioso. Médico: Bueno ya con dos ecografías y con el diagnóstico de saco aniembrionario ya no queda otro recurso que eliminar lo que no ha cuajado, ¿no? Allí no ha habido embrión, no ha habido embarazo, se ha formado placenta, se han unido embrión y óvulo, pero no ha cuajado, no se ha formado un niño, entonces pues hay que mejor sacarlo y esperar que usted en próximo mes o en dos meses quede usted nuevamente encinta.
En el caso del discurso del paciente el cuerpo, como por ejemplo en los enunciados siguientes, se construye como un lugar íntegro. En algunos enunciados referidos al dolor encontramos que éste (el dolor) está en alguna parte del cuerpo y se manifiesta de tal manera que, con su movilidad o por la aparición de otros síntomas, establece conexiones entre las zonas del cuerpo: “...va bajando...” , “...viene...”, “...también...”.
Participante: Buenos días, doctor Zucar. Mire hace cuatro años me ha dado un dolor bien fuerte en la espalda pero el doctor me dijo que era de enfriamiento, pero hasta ahora siento ese dolor, viene
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ese dolor a la espalda y de pronto se me hinchan las manos y se me hinchan los pies. Paciente: Doctor tengo 45 años, la regla se me ha empezado a retirar, se me retira ¿no? pero el dolor más fuerte lo tengo en los tobillos, caminar se me hace muy difícil, las piernas me duelen horrores. También me duelen las manos. Eso ha venido solamente con la regla, no tengo otro problema en cuanto a menopausia que yo sé que estoy dentro de ella, pero los tobillos es algo que...estoy ya dándome un trauma que prefiero quedarme sentada o echada y no puedo caminar.
En otro grupo de enunciados el discurso construye un cuerpo integral en tanto es un todo lo que se nombra: “todos los huesos...”, “...toda la columna...”, “...todo el cuerpo...” Participante: Me fui a hacer ver y me han dado Nervit E pero me duelen ya todos los huesos, parezco una viejita de 80 años... Participante: doctor, cuando tomo alguna cosa con limón me empieza a doler todo el cuerpo... Paciente: ...cuando yo tenía doce años, en un accidente me destrocé toda la columna...
El cuerpo es así construido como un sistema de relaciones, un conglomerado de órganos con conexiones entre ellos, y sobre todo es un lugar que se siente, cuya presencia es exacerbada por el dolor. Sin embargo cuando se habla del cuerpo muerto, que para el caso del recorte hecho, solamente se presentó una vez (en la que se trató de la muerte de un joven cuya familia donó sus órganos); en este caso el paciente toma el discurso médico para desmembrar el cuerpo: “...la base del cráneo...”, “cerebralmente...” (haciendo alusión a la muerte de una parte del cuerpo), “...los órganos “ (y no el cuerpo). El cuerpo muerto, en este caso, ha pasado por un proceso de sectorización real que se traduce en el discurso utilizado. Participante: mire mi hijo tuvo en diciembre un primer derrame cerebral, pero esta operación quedó bastante bien, estuvo recuperándose, con sus controles y todo. Ahora en marzo, el lunes pasado se puso mal lo llevé a emergencia, lo operaron pero ya parece que el derrame había sido en mucha cantidad, la sangre había dañado toda la base del cráneo me dijo el doctor, entonces me dijeron a las 5 de la tarde del martes que cerebralmente mi hijo había muerto, entonces el doctor me dijo en estos casos también se puede colaborar con la sociedad donando los órganos, que les parecería a ustedes (...) justamente cuando le contesté al doctor de mi respuesta que sí aceptaba la donación de los órganos, no solamente el corazón, hemos donado corazón, riñones y córneas; lo acepté...
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Por tanto el cuerpo muerto al ser traducido al discurso médico establece que su lugar ya no es el del paciente, es un cuerpo que, al ya no ser sentido, es cuerpo objeto por tanto posible de ser desmembrado. Cuerpo interno, cuerpo externo En un grupo de enunciados, los participantes cuando se refieren al interior del cuerpo usan el discurso indirecto, marcando la situación de exterioridad del discurso, para lograr un efecto de sentido de transferencia de la responsabilidad a un otro. Vemos entonces cómo hay una separación entre un cuerpo externo, que sería de conocimiento del paciente, y un cuerpo interno ajeno a él. En este último caso la responsabilidad del discurso le compete al médico, de allí el uso del discurso indirecto. En los ejemplos frases como: “...me dijeron...”, “...no me dijeron...”, “...me dicen...”, “...me decían...” y el uso, en el caso del discurso oral, de otro tono de voz (en este caso ese cambio fue simbolizado con el uso de comillas) subrayan la procedencia externa del discurso. También marca la procedencia exterior del discurso el uso de otro registro discursivo, en este caso el discurso utilizado en los partes de análisis médicos o el lenguaje utilizado por los mismos médicos. Participante: Buenos días, con el doctor Zucar. Mire mi pregunta es por que yo estoy en un tratamiento que me dicen que tengo una herida en el cuello del útero, mas antes me ha pasado lo mismo que me decían que tenía unas heridas y me lo cauterizaban, pero de repente me comienza a bajar bastante sangre y esta vez he ido donde la doctora, me he hecho el Papanicolau, me dice “no tú estás bien” pero ahora me ha vuelto a revisar y me dice “tu cuello del útero está de una forma que no es normal y aparte que se está desprendiendo por pedacitos”. Pero en el Papanicolau me dice que todo está bien, o sea que no es nada de cáncer, que es el temor que uno tiene. Participante: pero yo ayer he ido y ella me estaba revisando y me sacó y me mostró “mira” una cosita media blanca, ¿no? Y me dijo “lo voy a mandar a patología Participante: ...Ahora la descripción de la ecografía dice “anteverso flexo de superficie regular aumentado de tamaño contiene saco gestacional de 15 mm. de tamaño, aún no se aprecia embrión”. Eso es lo que me preocupa porque me dijo el doctor que ya debía notarse el embrión para este tiempo...
Se marca así la situación de exterioridad del discurso que se refiere al interior del cuerpo. Por tanto postulamos que el efecto de sentido buscado es de una no pertenencia del cuerpo interno, al ser quien habla de él una voz que viene de otro lado, una voz a quien es transferida la responsabilidad sobre ese cuerpo.
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Cuerpo que se ve, cuerpo que se siente En algunos de los trechos del transcurso de la conversación entre médico y paciente se evidencian dos maneras de construcción del cuerpo: una como sentimiento y la otra como ente físico separado del sentimiento. En el primer caso la ansiedad, la depresión, la tristeza, el miedo son parte constitutiva del discurso del participante y de su construcción de cuerpo, el cuerpo es sentido a través de ellos. Mientras que en el discurso de respuesta de los médicos todas estas sensaciones del cuerpo son relegadas como tales para pasar a ser traducidas como fenómenos de naturaleza física o ser ignoradas como parte del cuerpo. Tendremos entonces en los recortes del discurso a continuación que el miedo desaparecerá por un dosaje de alfa proteína; por tanto existe relación entre el fenómeno físico y la sensación; en el segundo ejemplo tendremos que la depresión está relacionada con falta de litio o con la menopausia y en el último ante el nerviosismo el médico responde con una respuesta esencialmente referida al fenómeno físico sin referirse a la sensación. Participante: Doctor yo tuve un aborto. Doctor y no habría problema por ejemplo yo me he embarazado. Ginecólogo: No, pues por eso, se hace usted un dosaje de alfa proteina y si la cantidad es normal usted olvídese de lo que tuvo con el bebé anterior. Participante 10: Doctor sabe la última citomegalovirus total me ha salido 7.60. Ginecólogo: Usted tiene que olvidarse del citomegalovirus por que ya está embarazada. Participante 10: Disculpe doctor pero tengo miedo que me vuelva a ocurrir lo mismo. Ginecólogo: Bueno, las posibilidades son pequeñas, no es como una gran preocupación, pero yo entiendo el que tiene un trauma va a ser muy difícil quitárselo...y la manera de quitárselo es con dosaje de alfa proteína que le podría decir si hay un problema en el tubo neural. Participante: Yo soy una persona de 37 años y cuando una semana antes de que me vaya a venir la regla se me hincha bastante, pero bastante el seno izquierdo, cuando ya me viene la regla se me va bajando, así como que se va desinflando. Últimamente estoy muy olvidadiza, tengo mucho cansancio, dolor en la espalda y me siento muy depresiva y sensible, también tengo un poco de estreñimiento... Ginecólogo: Ya, pero esto que me refiere usted ¿le sucede conjuntamente con las molestias de la mama o no? Participante: No, eso es antes o después pero cualquier momento me agarra la depresión.
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desarrollan, tanto por los médicos como por los participantes, una serie de estrategias encaminadas a la construcción de lo que nosotros hemos llamado “imágenes sonoras”. El ritual del ver que forma parte del quehacer médico es recreado en el lugar del consultorio sonoro con el uso de comparaciones. Participante: Pero esa persona sigue expectorando y sus expectoraciones son color humo, medias oscuras. Entonces la preocupación es esa, y siempre sigue teniendo esa tos, esto ya va a ser casi cuarenta y cinco días. Médico: Ya, dígame una cosa ¿el esputo que es de ese color es denso o es variado? Participante 11: ...el color es medio blanco, así como la yema del huevo, pero tiene un color plomo. Médico: si la sangre cambia de color y termina negra, negra como brea, negra como carbón, en ese caso quiere decir que puede estar su hijo sangrando de, lo que llamamos los médicos, las vías altas....
En algunos enunciados el médico plantea como imprescindible actuar sobre un cuerpo que es visto, su forma de conocer está afianzada sobre el ver y el medir. El médico por tanto debe ver, tiene obligación de ver; pero el dispositivo no le permite ver, por tanto no es permisivo y esto es enunciado como problema para la construcción del cuerpo. El cuerpo conocido es aquel cuerpo que es visto. Médico: los colegas tienen ventaja sobre mí por que han examinado a su madre. Lo que sí le debo mencionar, señora, es que una sinusopatía en sí es difícil de tratar. Médico: ...habría que mirarlo para darle una indicación precisa si efectivamente son quistes de cebo o si son solamente cicatrices queloideas con una cremita se va, no a desaparecer, pero sí se va a disminuir el proceso. Si son quistes de cebo, si con un pequeño cortesito se evacua y ese es todo el problema... Médico: ...No está bien que un médico indique una pastilla, así sin examinar...
Como conclusión diremos que se evidencian dos maneras distintas de construír el cuerpo. Por un lado es un cuerpo que se ve, de parte de los médicos, y por otro un cuerpo que es sentido, de parte de los participantes. El cuerpo que es y el cuerpo probable Hemos visto ya como el participante habla de un cuerpo que es sentido a través de la sensación de dolor, malestar, ansiedad etc.; en contraposición con esto el médico trabaja, en muchos de los enunciados, con un cuerpo probable, ya que es construido a través de la inseguridad, de la duda, de la probabilidad, que se manifiesta mediante frases como “...probablemente...”, “....me parece que...”, “...hacia un...”.
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Ginecólogo:”...Probablemente las secreciones que usted tiene deben llevar algún elemento que molesta a su esposo y que debe ser tratado y que ninguna de las dos cosas que usted nos ha dicho realmente debe angustiarla...” Médico: O sea hay que encaminar el estudio hacia descartar una gastritis, me parece que eso puede ser...” Médico: “...Eso está más hacia un problema vagal, hacia un problema ácido péptico, hacia un problema ulceroso...”
Hay por tanto desde el paciente un cuerpo que está, sobre todo cuando se manifiesta su presencia insoportable a través del dolor, un cuerpo que es, que existe insoportablemente. Para los médicos en cambio este cuerpo es un lugar de probabilidades, en él no existe ninguna certeza cuando se está enfermo. El cuerpo que escapa a la normalidad (es decir el cuerpo enfermo) es un cuerpo hecho de probabilidades de enfermedades. Secreto a voces El consultorio médico radial es un espacio polifónico construido no solamente con voces distintas sino con lugares múltiples desde los cuales se emite el discurso. Tanto voces como lugares pasan por un ordenamiento propio de la economía discursiva del espacio mediático instituyendo un ritual en el cual cada voz tiene un lugar y una función. En lo referido a las estrategias en la construcción del cuerpo, dos posturas distintas se evidencian dependiendo del lugar desde el cual se emite el discurso. Los participantes-pacientes hablarán de un cuerpo esencialmente distinto al cuerpo del cual habla el médico. En el primer caso el médico describe un cuerpo en el tiempo presente, este es lugar del hacer de los médicos, donde es posible actuar (extraer, colocar, extirpar) y explorar. Como lugar de exploración el cuerpo debe ser visto y así conocido. En el segundo caso el participante-paciente va narrando como el cuerpo se transforma en el tiempo, el cuerpo es el lugar del ser, por tanto es sobre todo sensación, conocido a través de ella y no de la mirada. Ambos cuerpos, ambas construcciones son puestos a disposición del espacio público en el cual se lo presenta a través de una suerte de complicidad. El lugar secreto del consultorio radial es expuesto, el secreto del cuerpo es desvelado. El receptor masivo es construido como el espía que escucha el secreto. En conjunto las voces y lugares sonoros producen una pluralidad de sentidos casi simultáneamente. La radio se construye así como lugar no solamente de encuentro sino de lucha por voces que, viniendo de distintos lugares, dicen su discurso y evidencian el lugar de la radio como lugar de lucha por el sentido. En este caso la lucha se da teniendo como campo la morada más íntima, aquella que habitamos: nuestro cuerpo. Creo que por aquí se nos abre una veta a quienes nos interesamos por el tema de la comunicación y la salud y su espacio en los medios de comunicación.
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Bibliografia ARAÚJO, I. A reconversão do olhar. Rio de Janeiro, 1996. 164p. Dissertação (Mestrado). Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. BAKHTIN, M.M. Estética da criação verbal. São Paulo: Fontes, 1992a. BAKHTIN, M.M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 1992b. BARTHES, R. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral I . 3.ed. Campinas: Pontes, 1991. FAUSTO NETO, A. O impeachment da televisão: como se cassa um presidente. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. NUNES, M.R.F. O mito no rádio: a voz e os signos de renovação periódica. São Paulo: Annablume, 1993. SCHNEIDER, M. Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicoanálise e o pensamento. Campinas: Unicamp, 1990. VERÓN, E. A produção do sentido. São Paulo: Cultrix, 1980.
CASTAÑEDA, M.M.Z. Vozes e corpos: o consultório médico no rádio como espaço discursivo no Peru. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999. O consultório radiofônico apresenta-se como um espaço virtual de encontro entre médico e paciente. Assim sendo, o que é desvelado nele, o corpo, converte-se em um território reconstruído pelos distintos discursos enunciados a partir do lugar que se ocupa neste espaço virtual: o lugar do médico e do paciente. Neste trabalho descrevemos as diferentes estratégias discursivas utilizadas na construção do corpo no tempo e no espaço e a construção de múltiplos corpos no espaço radiofônico. São abordados dois aspectos importantes: o processo de “publicização” dos espaços íntimos como uma característica da sociedade atual e o consultório como espaço onde discursos sobre o corpo, provenientes de lugares distintos, se encontram e se fundem, se misturam ou se opõem e se mostram divergentes. PALAVRAS-CHAVE: rádio, relação médico-paciente.
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Boneca Gertrudes: identidade feminina e práticas educativas em Saúde*
Cláudia Maria Bógus1 Áurea Maria Zöllner Ianni2
BÓGUS, C. M., IANNI, A. M. Z. The Gertrudes Doll: female identity and educational practices in health care. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999.
The 1984 introduction of the Women’s Health Integral Assistance Program, incorporating the female identity issue (i.e., seeking to view women relative to their body and sexuality, as well as the way in which these representations related to the social significance of motherhood), resulted in its becoming essential to rethink the health services practices carried out up to then. With a view to aiding the educational activities of health professionals, a pedagogical tool was devised at the time: the Gertrudes Doll. The present research project, conducted during 1995 and 1996, assessed the reach of this pedagogical tool, taking into account its diversity of uses in educational practices in the health care field and, mainly, whether this variety of uses was the result of the pedagogical properties that constitute the Gertrudes Doll: the expression of a dialogical methodology and the concretization of the female body. This investigation intends to contribute to the discussion on the development of further tools, dealing with gender issues, for assisting educational work in the health care field. KEY WORDS: health education, gender and sexuality, women’s health.
A implantação, em 1984, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, ao incorporar a questão da identidade feminina - procurando ver a mulher em relação ao seu corpo e à sua sexualidade e de que forma estas representações se relacionavam com o significado social da maternidade - tornou fundamental repensar a prática dos serviços de saúde realizada até então. Com o objetivo de auxiliar a atuação educativa dos profissionais de saúde, foi elaborado, na época, um instrumento pedagógico: a Boneca Gertrudes. Esta pesquisa, realizada nos anos de 1995 e 1996, verificou a abrangência deste instrumento pedagógico, considerando sua diversidade de usos nas práticas educativas em saúde e, principalmente, se esta abrangência de usos deve-se ao recurso pedagógico constituinte da Boneca Gertrudes: expressão da metodologia dialógica e concretização do corpo feminino. A investigação pretende contribuir para a discussão da elaboração de novos recursos facilitadores para o trabalho educativo em saúde, que abordem questões de gênero. PALAVRAS-CHAVE: educação em Saúde, gênero e sexualidade, saúde da mulher.
* Projeto desenvolvido pelo Núcleo de Investigação em Educação e Saúde do Instituto de Saúde SES/SP, coordenado pelas autoras do trabalho e equipe técnica formada por Monica Thais Simões Matsukura; Denise Nudel; Claudete Gomes dos Santos; Risodalva Gonçalves; Marli Fernandes Carneiro e Eduardo Peduto (Aprimorando/Fundação do Desenvolvimento Administrativo - Fundap). 1
Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. E-mail: claudiab@usp.br.
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Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Mestranda do Programa de Ciências Ambientais da USP.
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O desenvolvimento da pesquisa “Boneca Gertrudes: Identidade Feminina e Práticas Educativas em Saúde” decorre das inúmeras possibilidades de usos que a Boneca vem tendo, enquanto material didático, e de sua extrema versatilidade no enfrentamento de diferentes questões de prevenção e de educação em saúde. Boneca Gertrudes é um material educativo composto de peças de papelão que, montadas, representam o corpo feminino, em tamanho próximo do natural, em suas várias partes: cabeça, tronco, membros, órgãos genitais e os diversos estágios da gestação. Utilizada, originalmente, em programas de educação em saúde da mulher, foi sendo, aos poucos, incorporada a outros programas educativos, diversificando, assim, seus usos potenciais. Hoje, Boneca Gertrudes é utilizada em diferentes programas e atividades educativas. Por ser um material pedagógico versátil, é utilizada na discussão de diversas temáticas da educação em saúde, em programas dirigidos a diferentes faixas etárias: anatomia e fisiologia do corpo feminino; reprodução; gestação, nascimento e parto; amamentação; sexualidade, práticas sexuais, doenças sexualmente transmissíveis e AIDS; papéis sexuais; prevenção de doenças; prevenção no uso de drogas. Este potencial faz com que seja utilizada tanto por Serviços Públicos de Saúde como por Serviços Públicos de Educação e Promoção Social e, também, por Organizações Não Governamentais (ONG’s) da área social, preocupadas com a capacitação e formação de lideranças voltadas para um trabalho preventivo. Contexto de criação Em 1984, o Ministério da Saúde criou o PAISM - Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (BRASIL. Ministério da Saúde, 1984) - que propunha atividades de assistência integral clínico-ginecológica e educativa a mulheres, voltadas para o aprimoramento do controle pré-natal, parto e puerpério; a abordagem de problemas da adolescência até a terceira idade; o controle das doenças de transmissão sexual, do câncer cérvico-uterino e mamário e a assistência para concepção e contracepção. O conceito de integralidade da assistência, presente nas diretrizes gerais do programa, acima referidas, pressupunha uma prática que permeasse todos os níveis de atenção (educativa, preventiva e curativa) e, conseqüentemente, uma apropriação, pela clientela, dos conhecimentos necessários a um maior controle sobre sua saúde. A mudança do papel social da mulher - sua inserção no mercado de trabalho, conquista de direitos sociais e transformações desencadeadas pelos movimentos femininos e
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feministas - tornava necessária a introdução de práticas até então quase inexistentes, como o acesso a métodos e técnicas de controle da fertilidade, o acompanhamento das repercussões bio-psico-sociais da gravidez não desejada, abortamento, atendimento às adolescentes e aleitamento materno, entre outros. Entretanto, a introdução, na rede de serviços de saúde, de um programa que incorporava a questão da identidade feminina e procurava ver a mulher em relação a seu corpo e sexualidade e as representações que ela estabelecia do significado social da maternidade, tornou fundamental repensar a prática dos serviços de saúde realizadas até então (Barbieri, 1991).O programa veio explicitar a necessidade de se estabelecer uma comunicação com a população usuária, no sentido de socializar a prevenção, alterando, profundamente, a prática educativa em saúde de então: de apenas informativa para desencadeadora de mudanças. Uma prática educativa que possibilitasse, à própria mulher, ter maior domínio sobre as relações de corpo e saúde. Ao colocar em pauta questões como maternidade e contracepção, corpo e sexualidade, verificou-se que as que apresentavam maiores dificuldades de serem discutidas e introduzidas na atenção à saúde da mulher eram as do corpo e da sexualidade porque, somadas aos tabus e preconceitos comuns a todas as mulheres, colocava-se o entrave do discurso, disciplinador e neutralizador do corpo e da sexualidade, biologicamente abstraído de suas outras peculiaridades, dos profissionais de saúde, determinado pela sua formação técnica. Este tipo de discurso era comum na prática dos serviços e dos vários profissionais e estava, também, incorporado pelos serviços de educação em saúde (Barbieri, 1991; Lobo, 1989 ). A introdução das relações sociais de gênero na dinâmica do processo saúde-doença na rede, ou seja, a identidade feminina em sua dimensão corporal da maternidade e da sexualidade, desencadeou a necessidade de novos processos educativos tanto internos à rede, relativos aos recursos humanos, como externos, relativos à interação com a clientela. Neste contexto, constituiu-se, no Estado de São Paulo, um projeto coletivo que integrava representantes do Programa de Saúde da Mulher da Secretaria de Estado da Saúde, do Conselho da Condição Feminina, do Núcleo Materno-Infantil do Instituto de Saúde, além do então denominado Serviço de Educação do Instituto de Saúde, que foi incorporado ao processo, tendo em vista o trabalho que vinha desenvolvendo de releitura crítica dos materiais educativos em saúde. A principal demanda deste coletivo ao Serviço de Educação do Instituto de Saúde, no tocante ao aspecto educativo do programa, era a necessidade de produzir um material que: - não falasse apenas dos órgãos genitais femininos mas sim da mulher como um todo; - se aproximasse o mais possível do corpo físico da mulher (forma, tamanho etc.) a fim de permitir o “encaixe” dos métodos contraceptivos dispositivo intra-uterino (DIU) e diafragma; - pudesse ser manuseado; - fosse construtivo, no sentido de compor partes e todo, montagem e desmontagem; - fosse lúdico.
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Referenciada por estes critérios foi desenvolvida a Boneca Gertrudes, dentre um conjunto de materiais de apoio. A Boneca, além de permitir uma visão integral do corpo feminino, permite também uma ação participativa por meio de técnicas de impressão e expressão corporal. Esta característica peculiar da Boneca Gertrudes acabou por diferenciá-la do restante do material educativo até então disponível na área de educação em saúde. Ela acabou por revelar um potencial inovador, decorrente do fato de expressar a complementariedade entre corpo e identidade feminina, além de propiciar práticas pedagógicas dialógicas, num escopo construtivista. Metodologia Foi realizado um estudo da mobilidade atual do instrumento pedagógico Boneca Gertrudes, concebido como um retrato dos diversos contextos educativos em saúde nos quais ela é utilizada. Tendo em vista que os objetivos da pesquisa diziam respeito essencialmente ao caráter qualitativo do instrumento pedagógico, foi utilizada a entrevista individual como fonte primária de dados. A utilização de documentos técnicos - relatórios e atas de reuniões do Ministério da Saúde, da Secretaria de Estado da Saúde/SP e do Instituto de Saúde/SES/SP, referentes ao PAISM e ao Manual de Gestantes e, também, o próprio Manual de Gestantes e os materiais educativos a ele vinculados possibilitou a reconstrução do contexto de surgimento da Boneca Gertrudes e forneceu os elementos para o delineamento das entrevistas realizadas. Procedeu-se, também, ao mapeamento das atividades educativas, atualmente desenvolvidas, que utilizam a Boneca Gertrudes junto à rede de Centros de Saúde (Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo), Unidades Básicas de Saúde (Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo) e aos diferentes serviços sociais, de educação e informação em saúde (institucionais ou não), além da sistematização de bibliografia e documentação suplementar relativa ao tema. Foram contatados serviços de saúde estaduais e municipais de São Paulo, Grande São Paulo e interior do Estado de São Paulo, procurando-se, dentro das possibilidades, criar um universo mais abrangente e representativo do Estado. Este rastreamento constituiu a fase preliminar da definição do universo de informantes-chave. Na impossibilidade de se entrevistar todo o universo daqueles que se utilizam, atualmente, do instrumento pedagógico estudado, optou-se por entrevistar informantes-chave dos três segmentos básicos (Brioschi & Trigo, 1987; Ludke & André, 1986; Minayo, 1993): a) profissionais da rede básica de serviços de saúde, que se constituíram em informantes naturais, já que a Gertrudes foi idealizada e concretizada em seu bojo, tornando-se o “locus” de principal utilização do material; b) profissionais que atuam em atividades de educação e informação, não especificamente da área da saúde (educação formal, promoção social e outros). Tendo em vista o caráter educativo do material (Boneca Gertrudes), considerou-se importante avaliar sua repercussão nestes serviços que não executam procedimentos médicoclínicos etc) integrantes de movimentos sociais organizados em ONG’s de
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mulheres e adolescentes, inseridos na discussão sobre assistência médica integral, questão feminina, sexualidade e outros, temas estes que estiveram presentes no surgimento e na posterior utilização da Boneca Gertrudes. Cabe ressaltar que a seleção para a amostra dos Serviços de Saúde, Bem Estar e das ONG’s foi feita uma vez que estas instituições expressam, de modo exemplar, o processo educativo informal. A pesquisa foi realizada junto a vinte instituições de três tipos: Serviços Públicos de Saúde - Municipais e Estaduais -, outros Serviços Públicos não ligados diretamente à área de saúde - Educação e Bem Estar Social -, denominados de Diversos, e ONG’s do Estado de São Paulo, agrupadas nas seguintes regiões: Capital, Grande São Paulo e Interior (Tabela 1). TABELA 1 - Distribuição do tipo de instituição, segundo região, julho a dezembro de 1995 e janeiro de 1996. Serviços
Serviços Públicos
Organizações Não
de Saúde
Diversos
Governamentais
TOTAL
Capital
04
02
01
07
Grande São Paulo
06
-
-
06
Interior
06
-
01
07
TOTAL
16
02
02
20
Localidade
FONTE: Pesquisa “Boneca Gertrudes: identidade feminina e práticas educativas em saúde”, Núcleo de Investigação em Educação em Saúde do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (NIES/IS/SES-SP), 1996.
Resultados Como conseqüência da constatação de que Boneca Gertrudes vem tendo grande diversidade de usos, procurou-se verificar as causas de sua ampla utilização, nos diferentes e diversos Programas Educativos em Saúde: de Adolescentes, Prevenção figuras rupestres de mulheres de doenças sexualmente transmissíveis e AIDS, Saúde Reprodutiva em geral e outros. Um dos fatores apontados pelos entrevistados como facilitador do trabalho educativo com a Boneca Gertrudes é a possibilidade de seu uso coletivo. Nos Serviços Públicos de Saúde Estaduais ou Municipais - Boneca Gertrudes é utilizada sempre em atividades grupais, em conjunto com outras técnicas e dinâmicas como dramatização do parto e relaxamento, além de colagens, cartazes, álbuns e apresentação dos métodos contraceptivos (DIU, diafragma,
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preservativo, pílula); a lousa também é utilizada. Também não estão descartados outros recursos audio-visuais como vídeos e slides, por exemplo. Nas atividades com adolescentes é predominante o uso da montagem dos corpos feminino e masculino (uma recriação dos profissionais dos serviços a partir da própria Gertrudes) junto com outras técnicas de dinâmica de grupo que precedem a atividade com Boneca Gertrudes. Em geral, o trabalho é um misto de discussão de sexualidade, corpo e informação biológica: "(...) com os adolescentes há uma fase preliminar onde um menino e uma menina deitam-se no chão e seus corpos são contornados com giz. O grupo é dividido e cada um deve desenhar o aparelho reprodutor masculino e feminino nos respectivos contornos. Depois montam nos Bonecos - a Gertrudes e o Roberto - os aparelhos reprodutores correspondentes. Após a montagem, a equipe vê se a mesma está correta e faz-se uma explanação".
Quando a atividade é expositiva, Boneca é fixada em isopor ou apoiada num cavalete e é feita uma explanação dos aspectos anatômicos e fisiológicos do corpo e as peças são colocadas conforme o andamento das explicações. Em algumas situações, à atividade expositiva acrescenta-se a participação dos membros do grupo: pergunta-se aos participantes se sabem onde estão localizados os órgãos do aparelho reprodutor e como é o processo da concepção e solicita-se que coloquem as peças no lugar, no corpo da Boneca: “(...) as peças internas são distribuídas entre as mulheres e cada uma vai colocando a parte que lhe coube onde acha que é o lugar correto, completando o que as outras já fizeram”.
figuras rupestres de mulheres
No caso dos Serviços Públicos de Promoção Social e da Educação, o trabalho é realizado em grupos, a não ser que haja necessidade de orientação mais detalhada ou esclarecimentos. Este tipo de trabalho caracterizase tanto por uma orientação para as pessoas como por um processo de dinâmicas de grupo em que se discute sexualidade, papéis sociais da mulher e, também, anatomia e fisiologia. Quanto às ONG’s, também existe uma predominância no trabalho desenvolvido em grupo, por meio de oficinas e outras técnicas de trabalho. Outro fator importante, quanto aos múltiplos usos efetivos da Boneca Gertrudes, revelou-se na avaliação dos informantes que lhe atribuíram a possibilidade da concretitude do aprendizado, porque é de tamanho natural e permite a construção da imagem da mulher. Quando as mulheres manuseiam as partes fragmentadas, buscando a construção da Boneca, elas entram em contato com a construção delas próprias, de seu próprio corpo. Ao possibilitar que as peças dos
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órgãos internos sejam visualizadas e colocadas no próprio corpo, Boneca Gertrudes favorece a percepção do todo: “A Gertrudes tem um bom aproveitamento em termos de trabalho educativo, pois as mulheres não têm o hábito de se verem, de mexerem no próprio corpo.” “As pessoas não gostam da nudez explícita. (...) A Gertrudes não parece que está nua e as pessoas não se sentem agredidas quando a montam, o que facilita a apropriação da questão do corpo”. “(...) porque pouco conhecem de seu próprio corpo e têm medo de demonstrar isso. Por exemplo, o ciclo menstrual, o tamanho do útero, elas não conseguem imaginar como é isso”.
O fato de poder trabalhar com as partes e o todo em tamanho natural, permite a apreensão de que o corpo e os órgãos fazem parte de um todo integrado, com ligações entre si e com o resto do corpo. Isto também possibilita a desmistificação de tabus e preconceitos frente ao corpo: “(...) uma das mulheres acreditava que tendo relações sexuais com o marido, machucaria a criança. Ao ver a Gertrudes, convenceu-se de que isto não aconteceria; filme nenhum teria conseguido mostrar isto (...) terão os filhos felizes pois uma das preocupações é o sexo durante a gravidez”.
Outro aspecto bastante valorizado é o fato de ser um recurso de mais fácil utilização do que o vídeo, além de não ser um instrumento que estimule a passividade, pois “não é platônico”: “Com a Gertrudes percebe-se que a participação das mulheres é mais direta e maior, comparativamente a outros recursos. A Gertrudes é muito mais concreta do que um filme. A clientela pode mexer nela”.
Sua forma também estimula o conhecimento, sem necessitar da habilidade de leitura e escrita, o que a torna adequada para o uso com uma população eventualmente iletrada ou semi-alfabetizada, geralmente excluída de outras atividades em que o saber ler e escrever é requisito básico. Como o trabalho com Gertrudes se dá em nível visual e tátil não requer, necessariamente, que a população-alvo seja alfabetizada: “(...) as pessoas querem tocá-la, ver com as mãos”. Mesmo tendo por objetivo principal a aprendizagem de aspectos anatômicos e fisiológicos do corpo humano, a utilização do material também permite a abordagem de outras questões como valores e sentimentos relacionados com a sexualidade humana. É muito fácil a “interação” entre os participantes e os bonecos e, muitas vezes, os participantes atribuem a eles características humanas, fazendo com que dialoguem entre si, conversando sobre suas dúvidas com relação às questões de sexualidade, como: órgãos sexuais masculinos e femininos, relação sexual, virgindade, desejo sexual,
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“tesão”, homossexualidade, “travesti” e outros: “Quando se está falando do aparelho reprodutor, é muito importante que o cérebro apareça, porque você deseja, e pode intervir na questão de ter ou não ter filhos”. Os bonecos também oferecem a possibilidade de uma “dramatização” representando a aproximação entre um homem e uma mulher e uma relação sexual. Estes aspectos são mais presentes nos trabalhos desenvolvidos com adolescentes. A possibilidade de abordar questões relativas ao corpo, de um modo mais concreto e participativo, “traz um encanto para o grupo, traz a vontade de brincar, de conversar”. Para os participantes, então, não se coloca a questão de acertar ou errar; eles trabalham, através da Boneca Gertrudes, a “desinformação com descontração”. Para os educadores, os usuários reagem e interagem com a Boneca de forma bastante positiva. As pessoas se identificam com ela, e isso é percebido pela satisfação que demonstram em manuseá-la, solicitando-a com freqüência no decorrer das atividades. Em relação ao material em si, os educadores manifestaram-se positivamente quanto à possibilidade que Boneca Gertrudes oferece de estimular a participação dos membros do grupo, pela sua mobilidade - o que facilita o manuseio - e por criar um clima lúdico, descontraído. Para os entrevistados, estes são fatores que contribuem para a retenção do conhecimento por parte dos educandos, uma vez que o aprendizado se dá no plano do real, do concreto. Conclusões O potencial coringa deste material didático chamado Boneca Gertrudes foi o responsável pela sua adaptabilidade a públicos diferenciados em sexo e faixa etária e a diferenciados riscos e agravos à saúde (saúde da mulher, prevenção de drogas e doenças sexualmente transmissíveis e AIDS). Ela resulta em uma solução simples para o enfrentamento de questões complexas como a idéia da integralidade da atenção. Por isso, Boneca conseguiu contemplar a amplitude e multiplicidade de questões em saúde da mulher que haviam sido postas originalmente pelo PAISM. Ao permitir a concretização do corpo feminino, Gertrudes facilita a abstração capacitando para o aprendizado. Ao educando é permitido um espaço e uma atitude própria para estruturar os conceitos adquiridos a seu modo. Boneca possibilita, ainda, a participação ativa dos educandos numa relação de troca de experiência e conhecimentos entre educadores e educandos e entre educandos entre si, pelas técnicas de expressão e impressão. O fato de ser manipulável, de as pessoas “poderem colocar as mãos” nas peças, suscita a discussão entre as partes, facilitando a interação de todos os envolvidos no processo educativo. Ela estimula a ação e não a passividade. Também no sentido de concretizar a representação que as mulheres, os adolescentes e outros grupos têm da sexualidade e do corpo, Boneca é um instrumento bastante adequado pelo fato de reproduzir o tamanho adulto, ser um jogo de montagem de peças e permitir a reprodução do
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funcionamento biológico interno da mulher. Isto constitui um fator que facilita a visualização, a abstração e a memorização - elementos fundamentais para a representação concreta do aprendizado. O manuseio (pegar, ver e colocar partes) propicia que as mulheres se vejam na Boneca, comparem e diferenciem os órgãos internos (que não se vêem), o que permite que as pessoas “olhem com as mãos, pois falar é uma coisa e fazer é outra”. Outro aspecto que merece ser destacado e, também está relacionado com seu formato, que reproduz em tamanho natural o corpo feminino com o detalhamento dos órgãos internos, é a possibilidade que isto oferece de permitir a visualização do corpo feminino adulto e a percepção dele de modo concreto. Nisto é contemplado o outro aspecto relevante do potencial educativo da Boneca Gertrudes, que é a possibilidade de identificação do material com o usuário, tão importante para que qualquer material pedagógico seja incorporado pelo grupo que se pretende atingir, enquanto população-alvo Figura feminina do Neolítico encontrada em jazida de de uma atividade educativa. mineração em Norfolk, Inglaterra. Boneca Gertrudes facilita, entre as mulheres, a compreensão de si mesmas (física e organicamente) e, conseqüentemente, a interação educativa entre elas - que, mesmo sendo adultas, não conhecem o próprio corpo e seu funcionamento. Outro elemento, intrínseco à própria Boneca, é seu potencial dialógico enquanto material didático, que pressupõe como passos da aprendizagem: 1º) a codificação da situação, no sentido de sua percepção global; 2º) a decodificação da situação, enquanto decomposição em partes para exame, estudo e análise; 3º) problematização da situação, contextualização da vivência a partir da análise crítica. Neste sentido, o principal foco de uma ação pedagógica dialógica não é a criação de igualdade entre educadores e educandos, mas sim a construção de um espaço democrático em que as diferenças não sejam antagônicas. O diálogo deve ser a confirmação conjunta de educadores e educandos no ato de conhecer. Este processo torna explícita a necessidade de uma re-organização/reconstrução da atuação dos recursos humanos. Boneca Gertrudes exige, do profissional envolvido, sua desconstrução/desmontagem, para uma reconstrução/ montagem coletiva, em conjunto com o usuário. A utilização da Boneca Gertrudes, ao estar presente em atividades educativas não inseridas nos processos de educação formais (escolares) e desenvolvidas em instituições de serviços públicos, entre técnicos e usuários com faixas etárias, geralmente, da adolescência para cima - reforça o aspecto já destacado de propiciar a troca de experiências e conhecimentos entre os participantes e, assim, o diálogo. É contemplada, também, a aprendizagem pela via da psicomotricidade, como um estágio facilitador, principalmente quando se trata das populações-alvo atingidas pelos trabalhos desenvolvidos pelas instituições e/ou entidades escolhidas para compor esta investigação,
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geralmente grupos excluídos dos processos mais formais de instrução. Todos esses pressupostos estão presentes nas situações em que Gertrudes foi utilizada. A presença do diálogo foi uma condição. Tratava-se de falar e refletir sobre o vivenciado. Do conjunto dos entrevistados, a grande maioria considerou como um dos aspectos mais significativos deste material a possibilidade de concretitude do aprendizado, em função de seu tamanho, próximo ao real, e na agilidade construtiva, pela mobilidade das partes. A pertinência da elaboração de instrumentos pedagógicos, na área de educação em saúde, é uma justificativa para a pesquisa que foi realizada, na medida em que a utilização de instrumentos pedagógicos como recursos facilitadores ou objetos intermediários da/na prática educativa é bastante difundida na área de educação como um todo e também na área de educação em saúde, e tem sido apontada como uma estratégia que pode trazer bons resultados (Chiesa & Westphhal, 1995; Vargas & Romeiro, 1992). Os instrumentos pedagógicos podem ser representados e figurativos, o que possibilita a concretitude de conteúdos abstratos. A experiência pedagógica de se deparar com um objeto intermediário que configura a idéia, a representação, permite um aprendizado mais completo, pela similaridade e identidade. Referências bibliográficas BARBIERI, T. Sobre la categoría género: una introducción teóricometodológica. In: AZERÊDO, S., STOLCKE, V. (Coords.) Direitos reprodutivos. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1991. p.25-45. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Assistência integral à saúde da mulher: bases de ação programática. Brasília, Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1984. BRIOSCHI, L., TRIGO, M.H.B. Relatos de vida em ciências sociais: considerações metodológicas. Ciênc. Cult., v.39, p.631-37, 1987. CHIESA, A.M., WESTPHAL, M.F. A sistematização de oficinas educativas problematizadoras no contexto dos serviços públicos de saúde. Saúde em Debate, v.46, p.19-22, 1995. LOBO, E.S. Os usos do gênero. In: Relações sociais de gênero X relações de sexo. Departamento de Sociologia - Área de PósGraduação/Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero, 1989. p.76-87. LUDKE, M., ANDRÉ, M.E.D.A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. . MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: HUCITEC/ABRASCO, 1993. VARGAS, E.P., ROMEIRO, E.A. (Coord.). Práticas de educação em saúde: programa de assistência integral à saúde da mulher..Rio de Janeiro, Centro de Saúde-Escola Germano Sinval Faria, Escola Nacional de Saúde Pública, 1992.
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Diversidade de usos da Boneca Gertrudes, segundo o tipo de instituição, julho a dezembro de 1995 e janeiro de 1996.
PROGRAMA EDUCATIVO
POPULAÇÃO-ALVO
TEMÁTICAS ABORDADAS
Programa de Saúde da
Mulheres e casais de
-anatomia e fisiologia do corpo feminino;
Mulher
qualquer faixa etária
-anti e contracepção; -desenvolvimento da gestação; preparação para o parto e amamentação; -informações sobre recém nascidos; -informações legais sobre a maternidade; -câncer ginecológico.
Programa de Adolescen-
Ambos os sexos
-reconhecimento do corpo humano;
tes
de 12 a 17 anos
-conhecimento dos aparelhos reprodutores feminino/masculino; -mudanças de comportamento; -sexualidade; -métodos contraceptivos; -DST/AIDS; -drogas.
Prevenção de DST/AIDS
Comunidades organizadas (Escolas,
-práticas sexuais; -prevenção de doenças.
Sociedade Amigos de Bairro, etc) Formação e Capacitação
Professores, Assistentes
em Recursos Humanos
Sociais, Pagens e Auxiliares
-anatomia e fisiologia dos corpos masculino e feminino; -sexualidade; -prevenção das DST/AIDS e drogas.
Formação e capacitação
Adolescentes, Direção
de lideranças
de Entidades ou Movimentos, Pais, Profissionais
-papéis sexuais e sociais; -sexualidade; -prevenção das DST/AIDS; -drogas.
interessados FONTE: Pesquisa “Boneca Gertrudes: identidade feminina e práticas educativas em saúde”, NIES/IS/SES-SP, 1996.
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BÓGUS, C. M., IANNI, A. M. Z. Muñeca Gertrudis: identidad femenina y prácticas educativas en salud. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 n.4, 1999. La implementación, en 1984, del Programa de Asistencia Integral a la Salud de la Mujer, al incorporar la cuestión de la identidad femenina – buscando ver a la mujer en ralación a su cuerpo y sexualidad y el modo en que estas representaciones se relacionaban al significado social de la maternidad -–volvió fundamental repensar la práctica de los servicios de salud realizada hasta entonces. Con el objetivo de apoyar la acción educativa de los profesionales de salud se elaboró, en la época, un instrumento pedagógico: la Muñeca Gertrudis. Esta investigación, realizada en los años 1995 y 1996, verificó el alcance de este instrumento, considerando la diversidad de su uso en las prácticas educativas en salud y, principalmente, si este alcance de usos se debía al recurso que constituía pedagógicamente la Muñeca Gertrudis: expresión de la metodología dialógica y concreción del cuerpo femenino. Se pretende contribuir en la discusión de la elaboración de nuevos recursos facilitadores del trabajo educacional que aborden cuestiones de género. PALABRAS-CLAVE: educación en salud; género y sexualidad; salud de la mujer.
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Saúde e Educação: a discussão das relações de poder na atenção à saúde da mulher
Ana Flávia P. Lucas d’Oliveira1
D'OLIVEIRA, A. F. L. Health care and education: a discussion of power in women's health care. Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999.
This paper discusses issues that surround educational actions in the health field, based on the proposal included in the materials from the PAISM - Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Complete Attention to Women’s Health Program), published during the eighties, which was developed and implemented with substantial articipation of the feminist movement. The advances brought about by the participation of the social movement in the development and implementation of health policies are discussed, as well as those impasses in providing assistance that resulted from participation. The conclusion reached is that the program did not fail to confront and to indicate risks and possibilities in the integration of the question of power within health-care services, whether through reference to male-female issues in society, or whether through reference to the relationship between health care and women, raising important ethical and political issues with regard to the internal operation of the services. The potential technical interpretation of this matter - a possibility given both socially and historically - revealed itself, however, pretermitted by conflicts and dilemmas, from the ethical and political to the scientific and technological, such as the difficulty in balancing quality and quantity, technical knowledge and folk wisdom, as well as in questioning the power relations within institutions acknowledged by society to hold great technical and moral authority. KEY WORDS: women’s health, community health service, health education. Busca-se discutir algumas questões acerca das ações educativas em saúde a partir da proposta contida no material do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), publicado na década de 80 e elaborado e implementado com importante participação do movimento feminista. Abordam-se os avanços trazidos pela participação do movimento social na elaboração e implantação de políticas de saúde, ao lado dos impasses assistenciais que esta mesma participação acaba por colocar. Conclui-se que o programa não deixou de enfrentar riscos e possibilidades na incorporação das questões do poder, seja por referência às questões homem-mulher na sociedade, seja por referência às relações medicina-mulheres, no interior dos serviços de saúde, trazendo uma importante questão ético-política para o interior dos serviços. A possível tradução técnica dessa questão - possibilidade histórica e socialmente dada - mostrou-se, contudo, perpassada por conflitos e dilemas entre o ético-político e o científico-tecnológico, como a dificuldade de compor qualidade e quantidade, saber técnico e saber popular e de questionar as relações de poder no interior de instituições de grande autoridade técnica e moral na sociedade. PALAVRAS-CHAVE: saúde da mulher, serviços de saúde comunitária, educação em saúde.
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Doutoranda em Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/USP/SP. E-mail: afolive@usp.br
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ANA FLÁVIA LUCAS D'OLIVEIRA
“Como feministas nos oponemos totalmente al sistema médico por su condicion de fuente de ideologia sexista. Pero al mesmo tiempo dependemos totalmente de la tecnologia médica para acceder a las más básicas y elementales libertades que precisamos como mujeres: libertad de los embarazos no deseados, libertad de las dolências físicas crónicas. Puede repugnarnos el descarado sexismo de algunos médicos y puede enfurecernos el sexismo sofisticado que nos quieren hacer pasar como teoria médica, pero son nuestra unica possibilidad de conseguir abortos, diafragmas, antibióticos e intervenciones quirúrgicas essenciales” (Ehrenreich & English, 1981, p. 81).
No início dos anos 80 o Ministério da Saúde lança, no Brasil, uma proposta de atenção que até hoje é referência para o movimento de mulheres e para responsáveis pela implantação de políticas públicas na área de saúde da mulher, o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Diversas correntes de saber e práticas sociais têm influência na formulação do PAISM, especialmente nos aspectos aqui analisados: o chamado movimento sanitário, que tem como expressão institucional a proposta da Reforma Sanitária, e o feminismo, mais visível na proposta educativa que permeia os documentos do programa. Formulado por uma articulação entre feministas e/ou sanitaristas, o PAISM deu ênfase aos cuidados básicos de saúde, e talvez por isto as “ações educativas” se destacam na proposta. Procuramos aqui analisar alguns aspectos do Programa sob o foco de sua dimensão educativa, que traz a maior novidade e a marca diferencial deste em relação a outros programas: a politização, pela tentativa ousada de incluir a discussão acerca das relações de poder no interior dos serviços de saúde, possibilitada pela inclusão do movimento social, representando os interesses dos “sujeitos” (participantes e submetidos aos) programas, que chegam tematizando as relações de gênero, classe e etnia. A ilustração a seguir, que faz parte de uma série de cartilhas intituladas “Esse sexo que é nosso” , produzidas pela Fundação Carlos Chagas como material educativo a ser utilizado nos serviços de saúde pelo PAISM (Esse sexo que é nosso, 1990) demonstra de forma clara esta pretensão: Poder - a tomada de consciência dos diferentes papéis que a mulher exerce leva ao questionamento do poder e autoridade que a sociedade confere a determinados papéis sociais, como a filha, mãe, profissional, gestante, médico etc...
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SAÚDE E EDUCAÇÃO: A DISCUSSÃO DAS RELAÇÕES...
Compartilhar - recuperar o próprio poder de autoridade sobre si mesma é um dos efeitos de pertencer a um grupo no qual sua fala é ouvida e respeitada e onde se pode interagir, compreender e compartilhar histórias de outras mulheres.
A politização, que chama atenção no PAISM por sua força, está hoje bem incorporada nas ações de saúde pensadas em termos coletivos, como o demonstram mais evidentemente o caso da luta contra a AIDS e a área de saúde mental. Trabalhamos aqui algumas idéias que fazem parte da dissertação de mestrado na qual o Programa é apresentado de forma mais ampla (d’Oliveira, 1996). As ilustrações são parte do material educativo consultado, e algumas são trazidas aqui a título de exemplo. Nunca é demais lembrar que trabalhamos com as potencialidades abertas da proposta tal como foi formulada, e não estamos fazendo a análise da implantação do PAISM, mas sim levantando questões acerca das possibilidades expressas nos documentos oficiais. Sabemos da existência de múltiplos PAISMs concretos pelo país, e dedicamos este texto a todas as pessoas que batalham cotidianamente nesta construção. Oxalá ele possa contribuir de alguma forma para esta prática cotidiana cheia de riscos, conquistas, decepções e questionamentos. Os antecedentes No final da década de 70 o feminismo brasileiro floresce e apropria-se de experiências do feminismo internacional, criando diversos grupos e instituições não governamentais que trabalhavam na área da saúde, alguns inclusive realizando atendimento em clínicas feministas. Por outro lado, um amplo movimento popular de bairro, com grande expressão na saúde, é composto principalmente por mulheres, com maior ou menor influência de idéias feministas. No debate populacional então vigente, o feminismo coloca uma nova posição alternativa tanto ao "natalismo" quanto ao "controlismo", passando a conceber, no início dos anos 80, o exercício dos direitos reprodutivos como condição de cidadania, enfatizando a responsabilidade social na extensão destes direitos e a necessidade de uma atenção ampla à saúde reprodutiva como essencial a essa extensão (Corrêa, 1993). As mulheres pediam o
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direito à autonomia como indivíduos sociais e à escolha individual contextualizada. A noção norte-americana de direito ao próprio corpo é relida na América Latina em um novo marco de direitos, que busca afastarse da concepção liberal e individualista e pretende entender esses direitos como também imediatamente sociais. Mais recentemente, este mesmo movimento abriu espaço e colocou a necessidade de estudo e questionamento, também, da experiência masculina com a reprodução e a sexualidade, o que deve enriquecer e complexificar ainda mais esta questão. Se a contracepção era reconhecida como uma necessidade para as mulheres brasileiras, as condições em que a opção contraceptiva era realizada deixavam muito a desejar. A noção de que o direito à escolha de ter ou não filhos estava contextualizado em uma ampla rede de direitos sociais, tanto no espaço público como privado, e que envolvia a educação, a sexualidade, a gravidez indesejada e o aborto, a qualidade da assistência gineco-obstétrica, a divisão social e sexual do trabalho, e o apoio social à maternidade, fez com que as questões de contracepção se recolocassem neste marco ampliado de direitos reprodutivos e sexuais (Corrêa & Petchesky, 1994). As feministas viriam propor, entretanto, uma nova visão da integralidade: a integralidade do sujeito mulher, que deve ser encarada como indivíduo e sujeito de direitos e percebida como uma totalidade, e não reduzida a um corpo reprodutivo, individual ou populacional. Em um mesmo movimento, as mulheres pediam a democratização do saber médico e a consideração do saber das mulheres, questionando, internamente, o poder dos serviços de saúde. (Labra, 1989) e, ao mesmo tempo, reivindicavam o direito ao acesso universal à saúde e aos cuidados médicos. Por outro lado, em 1986, a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) coroaria um amplo processo de mobilização nacional, levado a cabo na primeira metade dos anos 80, que consagraria os princípios de um “verdadeiro programa de implantação da Reforma Sanitária”. A institucionalização dessa proposta consubstanciou-se mais tarde na proposta do Sistema Único de Saúde (SUS) (Teixeira, 1989). O PAISM surge neste mesmo movimento e sua implantação exigia uma rede de serviços de saúde com acesso universal, hierarquizada e regionalizada, que prestasse ações de controle de doenças e riscos de adoecimento, em um momento em que a rede de serviços de saúde pública incorporavam definitivamente a assistência médica individual a doentes como sua atividade principal. Note-se que na composição destas duas fontes (Feminismo e Reforma Sanitária), das quais se alimentaria o PAISM, há uma tensão. Entre os critérios médico-sanitários, por um lado, e a consideração do saber das mulheres e o resgate de sua condição de sujeito, por outro, existe complementariedade, mas também contradição. A priorização, elemento essencial para a proposta médico-sanitária, e a integralidade, ponto básico do feminismo, tinham em comum o estímulo à ampliação da cobertura assistencial, mas com lógicas diversas. Enquanto as mulheres pediam o acesso ampliado a serviços com nova qualidade e renovadas relações de poder, a Reforma Sanitária pensava em um acesso ampliado com racionalização das ações do ponto de vista médico sanitário, o que implicaria,
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em tese, em priorização, com escolhas baseadas sobretudo no saber médico. Como garantir a universalidade e integralidade em um contexto de racionamento de recursos e acelerada medicalização, com custos e ofertas cada vez maiores, que virtualmente impossibilitam o acesso de todas a tudo e colocam a necessidade de priorização? E como garantir a democratização do poder no interior de instituições com tradição de exercício de poder de forma bastante autoritária e grande legitimidade social neste exercício? São dilemas da organização de serviços de saúde que o PAISM recoloca com agudeza. O PAISM Em 1983, foram elaboradas, por um grupo que reunia sanitaristas, pesquisadores, feministas e representantes do Ministério da Saúde, as bases programáticas do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Pela primeira vez um programa dirigido às mulheres tinha as próprias mulheres organizadas como interlocutoras privilegiadas, interferindo no seu planejamento, implantação e fiscalização. O Programa da Atenção à Saúde da Mulher (PAISM), lançado em 1984, tem como documento base o texto: “Assistência Integral à Saúde da Mulher: bases de ação programática”. O primeiro parágrafo já deixa clara a intenção do PAISM de realizar uma importante mudança na maneira de apreender a mulher, por referência à política de saúde já tradicional nesta área: O atendimento à mulher pelo sistema de saúde tem-se limitado, quase que exclusivamente, ao período gravídico-puerperal, e, mesmo assim, de forma deficiente. Ao lado de exemplos sobejamente conhecidos, como a assistência preventiva e de diagnóstico precoce de doenças ginecológicas malignas, outros aspectos, como a prevenção, detecção e terapêutica de doenças de transmissão sexual, repercussões biopsicossociais da gravidez não desejada, abortamento e acesso a métodos e técnicas de controle da fertilidade, têm sido relegados a plano secundário. Esse quadro assume importância ainda maior ao se considerar a crescente presença da mulher na força de trabalho, além de seu papel fundamental no núcleo familiar (BRASIL. Ministério da Saúde, 1984, p.5).
A crescente presença da mulher no mercado de trabalho e a urbanização do país, mudavam gradativamente o padrão de família e geravam novas necessidades em relação aos programas de saúde dirigidos à mulher. O apoio do movimento feminista ao PAISM não foi unânime nem imediato. Visivelmente incomodado com a situação de ter seus desejos atendidos por um governo militar e autoritário, (Gen. Figueiredo) o movimento dividiu-se entre acusar mais uma vez o Programa de controlista, desconfiado da oferta contraceptiva enfim assumida pelo Estado, ou engajarse em sua implantação, tentando garantir a contextualização desta oferta no sentido dos “ direitos reprodutivos” . A parte mais expressiva do
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movimento parece ter aderido a esta última opção, entendendo-a como uma possibilidade de interferir mais efetivamente nos rumos das políticas públicas destinadas à saúde da mulher. Nas linhas gerais do programa, o controvertido tema do planejamento familiar se coloca nos termos que postulam as correntes mais progressistas da sociedade: não pretende ser uma solução dos problemas sociais e econômicos do país, forma parte de um sistema de assistência integral à saúde, não tem caráter coercitivo e, principalmente, está ligado a uma prática educativa dirigida a assegurar a apropriação por parte das pacientes sobre os conteúdos necessários para alcançar um maior controle sobre sua saúde. É necessário reconhecer abertamente que nos encontramos frente a um fato incômodo. Um governo que não merece nem um pouco de nossa simpatia apresenta um programa que corresponde a nossas necessidades e aspirações. Se não tivermos coragem de assumir francamente nosso incômodo frente a essa situação, continuaremos paralisados, incapazes de uma ação política eficaz”
(Isis, 1985, p. 49).
Bem recebido por amplos setores da sociedade, o PAISM passa a constituir o modelo assistencial tido como capaz de atender às necessidades globais da saúde feminina. Incorpora, além da tradicional assistência ao pré-natal, parto e puerpério, a detecção precoce de neoplasias de mama e colo de útero, a detecção, o tratamento e a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, a contracepção e a atenção à esterilidade, a assistência à adolescente e à mulher idosa, a prevenção da gravidez indesejada, a educação em todas as ações dirigidas à mulher e o cuidado à saúde da mulher trabalhadora e às patologias clínicas mais comuns. Todas essas ações deveriam estar integradas e ser oferecidas a cada contato da mulher com o serviço. Além de ampliar quantitativamente, o PAISM tinha o potencial de alterar também qualitativamente o trabalho realizado. Pensado enquanto estratégia de implantação de uma racionalização da organização de serviços, o PAISM foi pensado também como programa de saúde que buscava reorientar o trabalho médico e de toda a equipe de saúde. Assim, o PAISM constitui um modelo tecnológico de trabalho que busca ampliar a cobertura com uma nova qualidade no trabalho, racionalizando-o no sentido de um maior impacto nas condições de saúde e incorporando a dimensão educativa na assistência. Os conteúdos programáticos listados no documento intitulado “Assistência integral à saúde da mulher: bases de ação programática” (BRASIL, 1984) estão distribuídos em três atividades nucleares do PAISM: a assistência clínica ginecológica, a assistência pré-natal e a assistência ao parto e puerpério imediato. Nessas atividades, os conteúdos mesclam ações clínicas, educativas e de controle de riscos ou detecção precoce de doenças. Observando as atividades e o conteúdo da assistência pretendida pelo PAISM
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fica evidente que ele mantém nas atividades propostas o recorte da mulher como corpo reprodutivo. Entretanto, a proposta busca ampliar esse recorte em várias direções. Além da mulher-mãe, a mulher-sexual, de qualquer idade, passa a ser também alvo das ações do serviço de saúde, quando se estimula o planejamento familiar, o controle do câncer ginecológico e das doenças sexualmente transmissíveis. A atenção para as adolescentes e idosas amplia essa atenção para além da idade fértil. Todas essas ações buscam, ainda, absorver e ampliar as questões relativas à reprodução e sexualidade para além da dimensão puramente biológica, incorporando a vida social na abordagem dessas questões. Por último, a idéia de sujeito integral, bio-psicosocial, exigiria uma atenção também para além da reprodução e da sexualidade, abrangendo a saúde mental, a saúde no trabalho e as patologias clínicas mais prevalentes, bem menos desenvolvidas. O PAISM teve, pois, como objeto, uma mulher reprodutiva e sexual, assumindo a especificidade feminina tal como foi historicamente constituída, mas localiza essa diferença mais uma vez, como há mais de um século, no aparelho reprodutivo sexual do corpo humano. Assim, ainda que não abandone seus pressupostos de origem, mas busque também a construção social dessa diferença, procurando tecnologias inovadoras, o PAISM acata a priorização dos aspectos reprodutivos e sexuais da saúde feminina, o que expressa uma realidade. As relações de gênero, tais como atualmente constituídas, colocam para as mulheres inúmeras necessidades de saúde reprodutiva e sexual que não podem ser desconsideradas. Complementarmente, e talvez ainda mais importante, o trabalho em saúde dirigido às mulheres tradicionalmente oferece respostas a necessidades recortadas como reprodução biológica. Essa demanda, assim estabelecida, é como já vimos ponto crucial da crítica feminista e de amplos setores da área da saúde. Em novembro de 1984 ocorreu o 1o Encontro Nacional de Saúde da Mulher, um marco na área. As mulheres presentes, feministas e trabalhadoras da saúde, definiam, no documento final do encontro, que ficou conhecido como Carta de Itapecirica: O papel sexual e reprodutor imposto à mulher pela sociedade, que a exclui das decisões sobre o seu próprio corpo, faz com que tenhamos problemas específicos de saúde. Por isso exigimos um programa de saúde integral para a mulher envolvendo todos os seus ciclos biológicos: infância, adolescência, juventude, maturidade, menopausa e velhice; concretizados na sua especificidade sexual (menstruação, contracepção, gravidez, parto, aleitamento, infertilidade, doenças venéreas, prevenção do câncer ginecológico e de mama, saúde mental e algumas doenças mais comuns), tudo isso integrado com a prevenção e tratamento das doenças relativas à sua inserção concreta no sistema produtivo, seja como trabalhadora e/ou dona de casa (LABRA, 1989, p.299).
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que repõe o papel sexual e reprodutor que esta mesma prática e muitas outras a ela articuladas criaram. Ao mesmo tempo, ao estender a demanda por assistência, as mulheres reivindicam a extensão da medicalização, tanto em seu aspecto positivo de extensão de direitos de consumo de serviços e tecnologias eficazes como no sentido negativo de renúncia ao juízo privado, alvo das críticas das próprias mulheres aos serviços. Dilema inscrito no interior do próprio programa, o PAISM não pára de refletir sobre si próprio, transformando a prática médica e as mulheres e correndo os riscos inerentes à abertura de novos papéis sexuais, reprodutores e assistenciais. A partir de 1985 inicia-se a publicação de numeroso e variado material destinado a regulamentar e operacionalizar as ações propostas, agora com mais detalhes. Esse material é composto por dois grandes conjuntos de documentos: o primeiro consiste de diversas normas e manuais técnicos (assistência prénatal de baixo e alto risco, ao parto, puerpério e recém-nascido, controle do câncer cérvico-uterino e mamas, planejamento familiar e doenças sexualmente transmissíveis), e o segundo em um extenso material educativo. No conjunto denominado “Normas e Manuais Técnicos” existe uma detalhada padronização de cada atividade, normatizando ações de orientação clínica e/ou epidemiológica. A dimensão educativa está presente aqui geralmente para lembrar da importância de algum exame ou consulta de rotina ou seguimento, ou para recomendar determinadas atitudes (aleitamento materno, por exemplo), ou ainda como lembrança da necessidade de explicar o que se faz, passar informações e escutar a mulher. Percebe-se aqui o cuidado de colocar conteúdos educativos a respeito do auto-cuidado e a inclusão, em todas as atividades, da busca de um maior vínculo e aderência das usuárias às diversas atividades oferecidas, muitas delas de detecção precoce e controle de riscos. Cada contato da mulher com o serviço de saúde deve servir para que ela seja lembrada de alguma outra eventual necessidade sua, ou de que ela deva retornar para o seguimento em alguma outra ação. A educação tem um papel fundamental nessa reiteração. Se essas ações continuam sendo cruciais para evitar mortes e adoecimentos para uma grande parte da população, especialmente quando dentro de uma racionalidade epidemiológica, suas repercussões em termos da reprodução das relações de gênero não podem ser desprezadas. Observando o conjunto do material a que tivemos acesso, percebemos a intencionalidade de articular os saberes e as ações clínicas (geral e ginecológica-obstétrica) e epidemiológicas, em conjunto com a dimensão educativa, e podemos perceber quão específico e transformador foi o modo pelo qual valeu-se o PAISM, sobretudo, da dimensão educativa. Esse modo, porém, não se esgota nas propostas educativas internas às normas e aos manuais técnicos. Os discursos registrados no PAISM são múltiplos e contraditórios, e a educação aqui não significa apenas prescrições normativas a respeito do correto uso dos serviços de saúde e do correto uso e cuidado com o próprio corpo. Os documentos analisados pertencentes ao conjunto que denominamos
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de educativo mostram um impacto pretendido de outra ordem, para além da potencialização do controle clínico, da detecção precoce de doenças e do controle de riscos à saúde, e essa ordem pretendida é a característica que o distingue de outras propostas. É o eixo da “educação participativa” que parece ser a especificidade da integração sanitária nesse modelo particular de programação, o PAISM. Nele aparece de forma mais evidente a polaridade aqui já apontada: disseminar e ampliar a legitimidade do conhecimento técnico científico e, por outro lado, questioná-lo, ampliando as bases para a presença da mulher e para o fortalecimento de sua autodeterminação. O PAISM publicou variado material educativo, contendo um documento com as bases para uma ação educativa, ainda em 1983: folhetos informativos, cartilhas, manuais de coordenadores de grupo de pré-natal e planejamento familiar, cartazes e slides. Nos manuais são sugeridas dinâmicas para desenvolver os grupos, e as cartilhas tratam de corpo, métodos contraceptivos, sexualidade, educação dos filhos, gravidez e parto. Essa variedade possui um sentido ainda mais invulgar quando verificamos que uma boa parte dessa produção foi produzida por ONGs feministas (especialmente SOS Corpo, IDAC e Fundação Carlos Chagas) em conjunto com o Ministério da Saúde. Essa inusitada e produtiva parceria não se deu sem conflitos. Uma série de cartilhas intitulada “Esse sexo que é nosso” chegou a ser distribuída e apreendida pelo Ministério da Saúde em nova conjuntura política, gerando inúmeros protestos (Brasil, 1987, p.45). No material educativo do PAISM está a vocação mais potencialmente fecunda expressa em seu discurso. A transformação da crítica feminista ao saber/poder médico e às relações de gênero em material de difusão educativa para ser utilizado pelos serviços de saúde, além dos intensos e extensos treinamentos que tiveram lugar durante a primeira metade dos anos 80, realizados por feministas adotando-se a chamada metodologia de trabalho feminista, tem um “impacto” coletivo imprevisível, no sentido epidemiológico. Essa metodologia, realizada por meio de oficinas e vivências, parte da experiência pessoal para a coletivização dessa experiência, capaz de despertar uma consciência coletiva, no caso, de gênero. Aplicada a profissionais de saúde da rede pública, os treinamentos representaram papel crucial na implantação do PAISM, para sensibilização das equipes para a questão de gênero e treinamento do pessoal nos novos conteúdos propostos. A metodologia utilizada tem grande influência da pedagogia feminista, que é explicitada no texto a seguir, no qual se define o “espaço educativo” que caracterizaria essa pedagogia: Trata-se mais de desmontar a “educação” do que estabelecer novos princípios normativos. Não importa apenas refletir sobre as contradições que emergem das relações, mas revelar o próprio movimento dos sujeitos, de forma que cada situação possa ser percebida enquanto totalidade. Um processo educativo que pretende a “integralidade da saúde” deve estar, portanto, atento às flutuações entre corpo e mente,
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fisiologia e sintoma, energia e anomia, saúde e doença. Nessa perspectiva, tem ainda um lugar fundamental a relação que se dá entre os “promotores” e os “beneficiários da saúde”. Ela contém esses vários binômios e também articula saber estruturado e experiência vivida. Se, efetivamente, os sujeitos sociais “se educam entre si, mediatizados pelo mundo”, o encontro entre o profissional e o usuário do sistema de saúde pode tornar-se um espaço “educativo”, desde que seus dispositivos sejam trabalhados coletivamente. Isso implica em repensar a própria instituição na perspectiva de torná-la um lugar de mudança e não mais de normatização (Xavier et al., 1989).
Essa proposta política, expressa por militantes feministas, ecoa na proposta educativa do PAISM, obviamente transformada pela sua incorporação institucional. Mas ainda mantém muito de sua virulência, e expõe claramente suas contradições no texto intitulado “Bases para uma ação educativa”(Brasil, 1983), que pretende fornecer os princípios filosóficos e doutrinários de todo o programa. Na primeira e segunda parte deste documento é realizada uma recuperação da relação das mulheres com o saber e a prática médica. Aqui se critica a expropriação do saber sobre o corpo feminino e a construção médica de uma mulher-mãe pelos serviços de saúde. Ao mesmo tempo, constata-se uma insuficiência desses mesmos serviços para impactar os indicadores de saúde, pois mesmo a notória priorização da atenção à gestação e ao parto não tem significado à correlata cobertura e impacto populacional que se desejaria. O dilema entre a expropriação do saber e do controle sobre o corpo realizado pela prática médica e, ao mesmo tempo, as possibilidades de controle e autonomia que a tecnologia proporciona, ainda que pela tutela médica, é ressaltada quando se abordam as tecnologias contraceptivas que se tornam cada vez mais acessíveis pelos serviços de saúde. Constatando um “fracasso” dos serviços de saúde, demonstrado pelo abandono de seguimento das mulheres e pela frustração dos profissionais de saúde, o documento propõe as bases para uma nova prática. Essa constatação embasa a exortação a uma nova forma de trabalho e de relação com a mulher e seu corpo. Falando sobre o medo que as mulheres têm do médico e do exame ginecológico, e de seus sentimentos negativos em relação ao próprio corpo, conclui-se, na primeira parte do documento: Assim, cada vez mais, parece que as representações que as mulheres têm de seu próprio corpo, do que acontece com ele e de quem cuida dele, têm necessidade de serem faladas e conhecidas, pois podem ser desfeitas. Tem que ser permitido o necessário relaxamento e confiança em alguém que têm um saber especializado e pode colocá-lo a seu serviço, no sentido de lhe ser favorável. Pois, mais importante que oferecer conteúdos objetivos (informações sobre sexualidade, maternidade, menstruação, aborto, etc) é precisar uma forma de relação com a mulher e com
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o corpo dela, e isto implica num método diferente do usual nos serviços de saúde (Brasil, 1983, p.6).
Essas bases norteariam não só as ações educativas, mas, conforme já colocado, todas as ações do PAISM, e dizem respeito a um ponto crucial para a contradição aqui apontada: as relações de poder internamente ao trabalho em saúde, tematizada pela participação: A participação se realiza em uma ação que, desde o momento em que é concebida até seu término, é feita a dois, numa situação em que o sujeito/ator da ação é coletivo, seja serviço/clientela ou profissional/ cliente. Significa um novo tipo de relação paciente/instituição onde as questões referentes ao corpo e às práticas que sobre ele incidem passam a emergir: o que se visa, se sente e pensa em relação ao próprio corpo deve ter seu espaço de expressão assegurado (Brasil, 1983, p.14).
Essa proposta, básica para o PAISM, apesar de tocar no ponto crucial do poder médico, é de difícil implantação e encerra riscos. Ao estimular a fala no interior dos serviços de saúde, em situações de grande assimetria de classe, gênero e etnia, o poder médico pode acabar por simplesmente criar formas demagógicas de “participação” que terminam por quebrar as últimas resistências ao processo de medicalização, trazendo todo o mundo da vida para ser submetido aos conselhos “superiores”, porque ditados com autoridade técnica e moral dos serviços de saúde, descaracterizando a proposta inicial. A educação, proposta no PAISM em todas as atividades, tinha os grupos como seu espaço privilegiado. Os grupos podem ser organizados por qualquer profissional de saúde, sendo um espaço potencialmente mais igualitário e tendo como fundamento a metodologia “participativa”. Seja qual for a metodologia utilizada, é de fundamental importância que as práticas educativas tenham um caráter participativo, permitindo a troca de informações e experiências baseadas na vivência cotidiana das mulheres (Brasil, 1987b, p.13). Note-se o estímulo à fala e à organização de formas de trabalho para atender a demandas cada vez mais variadas, dado o estímulo ao “emergente”. Deve-se lembrar aqui que o emergente possível já é por assim dizer absolutamente “contaminado” pelo saber médico. Habituado a considerar o saber científico como a verdade, o próprio saber popular é ele mesmo pleno de uma releitura do discurso médico, ou do que lhe é possível compreender desse discurso. Mescla de antigos conhecimentos com o moderno discurso científico, a percepção do corpo e suas manifestações já são permeadas fortemente pelo discurso médico, que determina inclusive as formas antecipadas de satisfação aos sofrimentos decorrentes dessas manifestações (Boltanski, 1989; Leal,1995). A proposta educacional do PAISM buscava implodir o poder médico pelo acesso a este mesmo poder por todas as mulheres, ao mesmo tempo que esse acesso se dava por intermédio dos próprios serviços médicos, lugar de exercício desse poder. Simultaneamente, buscava resgatar uma vivência autêntica, estimular a fala daquilo que se pensa, se visa e se sente. Sendo realmente
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possível estimular o debate crítico acerca de concepções diversas, estimulando a reflexão emancipadora, esta visibilidade pode também ser uma forma de controle e disciplinarização dos corpos e da sexualidade (Foucault, 1993). Sabemos da enorme dificuldade das mulheres falarem sobre suas coisas íntimas e das dificuldades que homens e mulheres têm de discutir questões sexuais. Esperamos que os serviços de saúde possam criar o espaço indispensável para a reflexão de questões atinentes à sexualidade humana, visando obter mais respostas que dúvidas, mais clareza que incertezas (Brasil, 1987b, p.5).
Essa clareza pretendida pelas instituições de saúde em assunto tão privado e obscuro é exercício de poder, ou seja, medicalização de relações sociais. Mas é, ao mesmo tempo, sinal de uma esperança na democratização do saber e da prática em saúde, repensando as relações de poder no interior das próprias práticas. A proposta de educação apresentada, portanto, questiona as relações de poder instalada desde uma posição de poder, que tem que ser explicitada para ser transformada no “espaço pedagógico” proposto. No mesmo movimento, tem uma direcionalidade médico-sanitária, com objetivos estratégicos sobre a saúde feminina.
POR QUE NÃO CONHECEMOS NOSSO CORPO?
Em nossa sociedade, fomos educadas para desconhecer o corpo porque a ignorância é vista como sinal de pureza: menina "sem maldade" é a que não conhece seu corpo.
Mas a ignorância é ruim, porque não deixa a gente ser dona do nosso nariz. Para isso acontecer é preciso transformar muitas coisas na sociedade.
Você não acha que conhecer melhor o nosso corpo pode ser uma delas?
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Para viver o amor com mais tranquilidade é preciso conhecer bem o próprio corpo...
Aqui está a expressão mais fecunda das possibilidades e riscos de incorporação da questão de gênero. A mesma proposta crítica que estimula o auto-conhecimento como caminho de emancipação, cristaliza a única visão possível no espelho: A visão médica da anatomia feminina... A “educação participativa”, se pode ser extremamente fecunda, também corre um sério risco: sob a capa da “explicitação de relações de poder” e da igualdade entre as mulheres, ela pode tornar-se facilmente uma forma demagógica de borrar as relações de poder, tornando todas “mulheres iguais” facilitando, assim, a inculcação de modelos de feminilidade nas usuárias, quebrando mais eficazmente as resistências culturais, apesar da insistência dos documentos no respeito às diversidades regionais. Implantado em serviços nos quais a história de um outro modelo de educação (a educação sanitária) não está tão afastada no tempo, o PAISM corre o grande risco de ser reduzido a uma passagem de informações e conhecimentos científicos para a mudança de comportamentos, ainda que esses novos comportamentos tenham um conteúdo moral politicamente correto. A idéia de insistir imperativamente para que as mulheres “ sejam livres” está presente em muitos serviços e profissionais bem intencionados, e acaba em frustração e ressentimento contra a falta de interesse e reconhecimento da população pelo esforço bem intencionado dos técnicos em saúde, reiterando preconceitos. Além disso, o convite à fala e à incorporação de novas questões para os serviços - como é o caso da sexualidade, por exemplo - pode correr o risco de reduzir essa participação a um relato de vivências tido como mera informação bruta, cuja explicação e normalização é técnica e científica, reforçando o poder moral e cultural do médico. A proposta do PAISM será tanto melhor quando os serviços, ao invés de
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forjarem, ou moldarem, a mulher ideal (sexualmente liberada, conhecedora de seu corpo anátomo-fisiológico e de seus direitos, ou usuária de métodos de barreira), permitirem a desconstrução da figura de mulher e a reconstrução de novas, diversas e inusitadas mulheres, que se constróem a si mesmas em comunhão com os outros. Para isso, é essencial que se leve em conta que a proposta do PAISM foi elaborada a partir de críticas de mulheres de classe média às atuais relações de gênero. Sua implantação radical exige que se possa ouvir as concepções e necessidades de mulheres díspares, cujas questões e concepções podem ser algumas vezes muito distantes da concepção embutida no PAISM. Em 1988, foi realizado em Olinda um seminário de metodologia de práticas em saúde da mulher, com a participação de profissionais de saúde e ativistas de grupos feministas, patrocinado pelo Conselho Nacional da Condição Feminina. Este seminário retratou uma certa desilusão e muitas dúvidas sobre o rumo da implantação do PAISM, e especialmente de sua metodologia educativa. As mulheres presentes avaliaram as dificuldades de institucionalização dessas práticas, suas origens teórico-metodológicas diversas e sua imprecisão conceitual como alguns dos principais problemas. O relatório do encontro realizou uma breve análise de conjuntura, resgatando a imensa mobilização e penetração das idéias feministas no movimento social e partidos políticos da primeira metade da década, que permitiram uma proposta como o PAISM. Detectou-se, porém, uma inflexão nesse aspecto, com a própria transição do sistema de saúde apontando para os Estados e Municípios como novos interlocutores privilegiados, ao invés do governo federal. As mulheres presentes, em sua maioria de orientação feminista, estavam fortemente engajadas em treinamentos e capacitações dos profissionais de saúde para a implantação do PAISM.. A necessidade de pensar como estavam sendo trabalhadas as vivências e emoções colocadas tanto em termos políticos como técnicos foram levantadas. Em relação à incorporação dessa metodologia pelas instituições foi: A escala institucional “suscitando risco de massificação das práticas” e instaurando um confllito entre quantidade e qualidade. As práticas feministas teriam o papel de levantar e aprofundar a questão da qualidade, mas seria também importante resgatar a função de alguns parâmetros quantitativos. A divisão de trabalho e classe no interior da instituição com rebatimentos entre as relações de hierarquia e poder. Nesse terreno observou-se um conflito agudo com os “princípios igualitários do feminismo” e a necessidade de repensar o tema (II SEMINÁRIO “PRÁTICAS EDUCATIVAS NA IMPLANTAÇÃO DO PAISM", 1988).
A questão das diferenças internas na hierarquia dos serviços de saúde se colocava aqui, e também “o conflito entre o conteúdo terapêutico ou educativo (político) das metodologias”. A própria composição do plenário, quase exclusivamente de pessoas já identificadas com o feminismo, assim
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como as diversas reclamações de dificuldades e falta de prioridade no processo de implantação das práticas educativas, apontam para o relativo isolamento e secundarização desse processo no conjunto dos serviços. Os obstáculos para a implantação radical da proposta do PAISM são realmente importantes. Além das questões já vistas aqui, as transformações mais recentes da prática médica, com a incorporação acentuada de novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas, caracterizando a medicina tecnológica, fazem com que a relação intersubjetiva, na nova forma de trabalho médico, seja em grande parte dispensada pelos métodos diagnósticos, que falam pelo paciente com muito maior objetividade. (Schraiber, 1993; 1995). Na atual situação de saúde da população brasileira, se algumas poucas medidas de detecção precoce de doenças e controle de riscos fossem implementadas de maneira conseqüente já teríamos um avanço considerável em termos de indicadores de mortalidade. Mas nos atrevemos aqui a pedir ainda mais respostas porque perguntamos à educação e à prática política, que se escondem no interior da ação técnica como sua sombra perfeita, como transformar a prática, explicitando as normas envolvidas e incluindo as mulheres nas decisões sobre o próprio corpo? Qual o caminho para colocar o saber e as normas em discussão, e reintroduzir a mulher paciente como sujeito social? Como ver a vida social como fonte do sofrimento e prazer, dando um passo no sentido de sua transformação, e recriando as próprias normas, refazendo as relações de gênero? E qual seria a eficácia da intervenção nesse possível novo modelo? Essas são questões colocadas para todos aqueles que tentam implementar o PAISM, em sua radicalidade. Não obstante esta dificuldade, no plano de seu discurso fica patente a penetração das questões ético-políticas trazidas pelo feminismo. Vale dizer, as questões de gênero. A possível tradução técnica desta questão - possibilidade histórica e socialmente dada - mostrou-se, como visto, perpassada por conflitos e dilemas entre o ético-político e o científico-tecnológico. Contudo, não se pode dizer que o programa deixou de enfrentar e mostrar riscos e possibilidades na incorporação das questões do poder, seja por referência às questões homem-mulher na sociedade, seja por referência às relações medicina-mulheres, no interior dos serviços de saúde. Estas questões mostram-se fecundas até hoje e continuam convidando à reflexão, como mostra com bom humor a figura ao lado, presente em material educativo do Programa. Referências bibliográficas BOLTANSKY, L. As classes sociais e o corpo. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. BRASIL. Ministério da Saúde Assistência integral à saúde da mulher: bases de ação educativa. Brasília: Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1983. BRASIL. Ministério da Saúde. Assistência Integral à Saúde da Mulher: bases para uma ação programática. Brasília: Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1984. BRASIL. Ministério da Saúde. Conferência Nacional de Saúde e Direitos
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da Mulher, 10 a 13 de outubro de 1986 - Relatório Final. Brasília: Centro de documentação do Ministério da Saúde, 1987a. BRASIL. Ministério da Saúde. Assistência ao planejamento familiar. Brasília: Centro de documentação do Ministério da Saúde, 1987b. CORRÊA, S., PETCHESKY, R. Reproductive and sexual rights: a feminist perspective. In: SEN, G.,GERMAIN, A., CHEN, L.C. Population politics reconsidered - Health, empowerment, and rights. Boston: Harvard University Press, 1994. p.107-26. D’OLIVEIRA, A F.P.L. Gênero e violência nas práticas de saúde: contribuição ao estudo da atenção integral à saúde da mulher. São Paulo, 1996. 193p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. EHRENREICH, B., ENGLISH, D. Dolencias y transtornos: politica sexual de la enfermedad. Barcelona: Dones, 1984. FOUCAULT, M. História da sexualidade. 11.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993. v.1. FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS - Entendendo nosso corpo. São Paulo, 1990 (Esse sexo é nosso, 1). FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS - Será que eu quero ser mãe. São Paulo, 1990 (Esse sexo é nosso, 2). FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS - Quando os filhos perguntam certas coisas . São Paulo, 1990 (Esse sexo é nosso, 3). FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS - O exame ginecológico. São Paulo, 1990 (Esse sexo é nosso, 4). FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS - Muito prazer. São Paulo, 1990 (Esse sexo é nosso, 5). ISIS. INTERNACIONAL. Las feministas y el PAISM: la experiencia de Brasil: reflexiones y acciones internacionales. Santiago del Chile: Ediciones de las mujeres, 1985. p.48-9. LABRA, E. (Org.) Carta de Itapecirica. In: ________ Mulher, Saúde e Sociedade no Brasil. Petrópolis: Vozes,1989. p.297-302. LEAL, F.O. (Org.) Corpo e significado. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1995. OSIS, M.J.D. Atenção Integral à Saúde da Mulher, o conceito e o programa: história de uma intervenção. São Paulo, 1994. 183p. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas. SCHRAIBER, L.B. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec, 1993. SCHRAIBER, L.B. Desafios historicos en salud: lo individual y lo colectivo en los modelos de trabajo y asistencia. Cuad. Med. Soc., v.72, p.47-60, 1995. SEMINÁRIO “PRÁTICAS EDUCATIVAS NA IMPLANTAÇÃO DO PAISM”, 2, 1995, Salvador. Salvador, Coletivo Feminista Sexualidade Saúde,1995. TEIXEIRA, S.F.(Org) Reforma Sanitária: em busca de uma teoria. São Paulo: Cortez/Abrasco, 1989. XAVIER, D., ÁVILA, M.B., CORRÊA S. Questões feministas para a ordem
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médica: o feminismo e o conceito de saúde integral. In: LABRA, M.E. (Org). Mulher, saúde e sociedade no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1989. p.203-22.
D'OLIVEIRA, A. F. L. Salud y Educación: discusión de las relaciones de poder en la atención a la salud de la mujer. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v.3, n.4, 1999. Se plantea la discusión de algunas cuestiones acerca de las acciones educativas en salud a partir de la propuesta contenida en el material del Programa de Atención Integral a la Salud de la Mujer (PAISM), publicado en la década de 80, elaborado e implementado con importante participación del movimiento feminista. Se abordan los avances traídos por la participación del movimiento social en la elaboración e implantación de políticas de salud, al lado de las dificultades asistenciales que incluso esta participación al fin y al cabo suscita. Se concluye que el programa no dejó de afrontar y demostrar los riesgos y posibilidades en la incorporación de las cuestiones del poder, sea por referencia a las cuestiones hombre-mujer en la sociedad, sea por referencia a las relaciones medicina-mujer, en el interior de las instituciones de salud, trayendo una importante cuestión ético-política al interior de las instituciones. La posible traducción técnica de esa cuestión – posibilidad histórica y socialmente planteada – se demostró, sin embargo, rozada por conflictos y dilemas entre el ético-político y el científico-tecnológico, como la dificultad de componer calidad y cantidad, saber técnico y saber popular y de cuestionar las relaciones de poder en el interior de las instituciones de gran autoridad técncica y moral en la sociedad. PALABRAS-CLAVE: salud de la mujer, instituciones de salud, educación en salud.
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Ensino médico e o perfil do profissional de saúde para o século XXI *
DEBATES
Marcio José de Almeida1
Introdução A proximidade do final do Século XX faz com que se passe a viver, no dia-adia, o clima de reflexões, expectativas e projeções que caracterizam a semana entre o Natal e o Ano Novo. O título deste artigo e o tema do Painel que o motivou refletem esse clima. Há uma certa “mística” em torno de abordagens desse tipo e seria difícil escrever algo sobre “o perfil do profissional de saúde para o próximo século” sem cair num certo exercício de futurologia. Nada contra os futurólogos. Mas prefiro um terreno mais palpável e exercitar algumas análises acerca dos “anos iniciais do Século XXI”. Afinal, esses anos estão próximos e será durante os mesmos que as diretrizes das políticas para o ensino médico, para a saúde e para a educação serão executadas pelos Governos recentemente eleitos. Além de algumas idéias apresentadas por ocasião do Painel realizado em Botucatu, entendo ser pertinente incluir no artigo alguns conteúdos que abordei em estudo recentemente concluído (Almeida, 1997) e também outros elementos que constam da “Contribuição para as novas diretrizes curriculares dos cursos de graduação da área de saúde” (REDE UNIDA, 1998), de cuja sistematização participei diretamente.
* Tema do “Painel de Debate” promovido, em agosto de 1997, pelas disciplinas de Pedagogia Médica e Didática Especial dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP. As anotações da exposição feita no painel foram complementadas com análises registradas na tese de doutoramento do autor, defendida em dezembro de 1997, na Faculdade de Saúde Pública da USP. 1
Vice-reitor da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: almeida@inbrapenet.com.br
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DEBATES
O título do artigo interliga duas dimensões da problemática da educação médica: o ensino e a prática profissional. São duas das três dimensões centrais do marco teórico-conceitual da educação médica com o qual me identifico e que orienta meu pensamento e minha ação no campo da formação e capacitação de recursos humanos em saúde. A terceira dimensão deste marco é constituída pelas relações internacionais que existem nos processos de produção dos serviços de saúde e de formação de profissionais de saúde. O marco teórico-conceitual da Educação Médica Entendendo o marco teórico-conceitual como a apresentação da educação médica em suas linhas ou características mais significativas, permitindo um certo nível de generalidade que a torna aplicável a distintas situações, é imprescindível considerar dois estudos produzidos no contexto do movimento da educação médica latino-americana: o de Garcia (1972) e o de Andrade (1979). Para Garcia (1972), a educação médica, entendida como processo de produção de médicos, constitui-se de dois componentes inseparáveis: o processo de ensino e as relações de ensino (Figura 1). Figura 1 - Esquema do marco teórico da educação médica
Fonte: Nunes (1989)
O processo de ensino pode ser definido como o conjunto de momentos sucessivos que envolvem atividades, meios, conteúdos e objetivos de ensino pelos quais o estudante passa até transformar-se em médico. As relações de ensino são as conexões ou vínculos que se estabelecem entre as pessoas
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participantes do processo de produção de médicos e são resultantes do papel que esses indivíduos desempenham no ensino médico. Estas relações podem ser de dois tipos: a) as que se estabelecem entre os agentes de ensino e todo o processo de ensino; b) as que se instituem entre os próprios agentes de ensino. O primeiro tipo configura o que se chama relações técnicas e o segundo, relações sociais. Os agentes de ensino são indivíduos que, ao participar da educação médica, ocupam determinadas posições, variáveis conforme o modo de produção do médico. Atualmente, o professor universitário é o mais característico dos agentes de ensino. O estudante de medicina, embora considerado também um dos agentes, na forma dominante de produção de médicos na América Latina está numa posição dependente que o define mais como objeto do que como sujeito da educação médica. Segundo García (1972, p.4): “la categoria de “estudiante” implica una serie de concesiones con respecto a otros grupos de la sociedad como, por ejemplo, el eximirse de realizar un trabajo productivo. Esta disociación entre estudio y trabajo constituye uno de los problemas más importantes de la educación actual, y su superación, junto con cambios en las relaciones de enseñanza, llevará a profundas transformaciones en la formación de médicos”.
A ordem institucional da educação médica, ou seja, a escola de medicina com suas características internas, tais como sistema de governo, estrutura administrativa, articulação que estabelece com o ensino médio, emerge do processo de produção de médicos, isto é, do processo de ensino e das relações que se produzem no interior do próprio processo. A forma institucional que um determinado modo de produção de médicos adquire constitui a superestrutura do processo; o processo e as relações de ensino, sua infra-estrutura. Com base nos resultados do estudo que realizou, García (1972, p.241) registra que “(...) parece confirmar la teoria que dá importancia a la estructura de las relaciones que surgen en el proceso de enseñanza (...) las relaciones en la enseñanza constituyem el fundamental de todo cambio educacional profundo”. Uma vez que o modo de formar médicos determina2 a ordem institucional, é esperado que mudanças no primeiro levem a transformações substanciais na forma de organização da educação médica.
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A palavra determinação, cujo uso já está consagrado nas Ciências Sociais, é portadora de uma desvantagem, pois leva a um raciocínio de que “isto causa aquilo”. Na verdade, o conceito de determinação refere-se à existência de inter-relações dialéticas e ao estabelecimento de causalidades com base em análises históricas.
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Esta concepção não implica o desconhecimento da influência que as características da escola (a superestrutura) possam ter, ainda que de forma limitada, sobre o processo de produção de médicos (a infra-estrutura). É possível que mudanças produzidas no processo de ensino possam ser limitadas (no tempo e no espaço) ou anuladas porque a estrutura interna, acadêmico-administrativa, da faculdade e/ou da universidade não permite sua aplicação. Mas o processo de produção de médicos não é um processo isolado, relaciona-se intimamente à estrutura econômica predominante na sociedade, na qual se desenvolve e estabelece relações com outros processos e, em especial, com a prática médica. A prática médica está ligada à transformação histórica do processo de produção econômica. A estrutura econômica determina, como acontece com todos os demais componentes da sociedade, a importância, o lugar e a forma da medicina na estrutura social. Semelhante determinação não corresponde a uma causalidade simples, mas a outra, de tipo estrutural: a determinação em última instância. Esta consiste na abertura de espaços fora do alcance do econômico, ou seja, permite uma autonomia relativa do objeto (no caso, a prática médica) possibilitando a entrada em jogo de novas causas e novos efeitos. Entre esses estão os provenientes das relações de força estabelecidas entre os distintos grupos sociais e o Estado em torno de demandas relativas à problemática da saúde. O segundo estudo a ser considerado é o de Andrade (1979), para quem o marco conceitual da educação médica encontra-se no centro de uma intrincada rede de relações e resulta da interação entre os diversos elementos que dela participam, dentre os quais se destacam, por sua importância: a estrutura social, econômica e da prática médica em cada país; o currículo; as relações internas do processo de produção de médicos, a ideologia dominante no âmbito profissional e a estrutura de poder internacional (Figura 2). Figura 2 –
Relações externas do marco conceitual da educação médica em países dependentes
Fonte: Andrade (1979)
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pela Associação Latino-americana de Faculdades e Escolas de Medicina, ALAFEM, e outras entidades, com apoio da OPS; d) convocação e realização, em 1988, da 1ª Conferência Mundial de Edimburgo, precedida da realização de estudos que a preparariam, realizados pela FEPAFEM, com apoio da Fundação Kellogg. Com a realização dos eventos internacionais, verifica-se que os dilemas do ensino médico fazem parte das preocupações dos organismos internacionais, não sendo uma realidade somente brasileira. Esta abrangência fica mais evidente nos anos 90. Em 1991, a coordenação do Programa para a América Latina e o Caribe, da Fundação Kellogg, comunicou e convidou instituições universitárias da área da saúde detentoras, no mínimo, de cursos de graduação de Medicina e de Enfermagem, a participar de Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde: União com a Comunidade, referida mais comumente pela sigla UNI. Em 1992, a OPS difundiu, por intermédio das Associações Nacionais de Educação Médica e da FEPAFEM, um documento de referência com o título “As Mudanças na Profissão Médica e sua Influência sobre a Educação Médica”, especialmente elaborado para as discussões preparatórias da 2ª Conferência Mundial de Educação Médica. Esta realizou-se em 1993, em Edimburgo; no mesmo ano, foi realizada a 8ª Reunião Bianual da Network of Community - Oriented Educational Institutions for Health Sciences, em Sherbrook (Canadá). Em Edimburgo foi apresentada, pela Organização Mundial de Saúde, a proposta “Changing medical education and practice: an agenda for action” e com a Reunião de Sherbrook a proposta da Network passou a ter maior visibilidade no Brasil e nos demais países da América Latina. Em 1994, durante o Encontro Continental de Educação Médica, promoção conjunta da FEPAFEM e da ALAFEM, realizado em Punta del Este (Uruguai), a OPS apresentou a proposta "Gestão de Qualidade na Educação Médica".
TRAJANO SARDENBERG, 1998
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As características fundamentais dessas propostas estão apresentadas abaixo. Quadro 1 – Características das propostas de mudança na Educação Médica nos anos 80 GESTÃO DE QUALIDADE
UNI
CHANGING
NETWORK
Origem
América Latina
Europa e América do Norte
Europa e América do Norte
América Latina
Área de atuação
América Latina
Mundial
Mundial
América Latina
IDA, EMA, Edimburgo 1988
Edimburgo 1988
Alma-Ata 1978
Havana 1991, Edimburgo 1988
Promoção
Fundação Kellogg
OMS
Network
OPS
Financiamento
Fundação Kellogg
OMS e Fundação Kellogg
Governo da Holanda, Fundação Rockefeller, Fundadção Kellogg e OMS
OPS
Principais atores institucionais
Instituições universitárias da área de saúde, órgãos públicos de serviços de saúde, organizações comunitárias e Fundação Kellogg
OMS, entidades médicas, órgãos públicos e privados de serviços de saúde e instituições universitárias da área de saúde
Instituições universitárias da área de saúde, organizações comunitárias e Network
OPS, ALAFEM e FEPAFEM
Principais sujeitos sociais
Professores e estudantes universitários, gestores dos serviços de saúde e líderes comunitários
Professores universitários e profissionais dos serviços de saúde
Professores e estudantes universitários, líderes comunitários
Professores universitários e profissionais dos serviços de saúde
Situação atual
Implantada, com processos em andamento e resultados parciais/ intermediários
Em implantação
Em implantação
Antecedentes imediatos
Interrompida na fase de concepção
Fonte: Almeida (1997)
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Uma análise acerca da concepção teórico-metodológica, do desenvolvimento e dos resultados dessas propostas foram objeto de estudo específico (Almeida, 1997). Em síntese, o estudo permitiu caracterizar a iniciativa UNI como a mais consistente e estruturada. Apesar de conter algumas debilidades, combinando em graus variáveis elementos das outras propostas, ela tem sido a responsável pelos processos de mudança mais avançados. A construção de um novo perfil profissional Hoje, e com maior ênfase nos próximos anos, portanto já no Século XXI, a diversidade e a complexidade dos campos de atuação dos profissionais de saúde que decorrem do contínuo desenvolvimento científico-tecnológico e dos novos quadros demográfico-sanitários exigem novos delineamentos para o âmbito específico de cada profissão. Ainda assim, os profissionais de saúde deverão, nos próximos anos, estar dotados de competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) que possibilitem a sua interação e atuação multiprofissional, promovendo e executando ações integrais de saúde que beneficiem indivíduos e comunidades. Recentemente, no contexto das discussões provocadas pelo Edital 04/97, da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (SESU/MEC), os projetos UNI de Salvador, Botucatu, Marília, Brasília, Natal e Londrina, refletindo sobre suas práticas e processos de mudança, apresentaram sua contribuição para as novas diretrizes curriculares dos cursos da área de saúde (REDE UNIDA, 1998), documento que apresenta um novo perfil para o médico a ser formado: - estar estimulado e capacitado para a prática da educação permanente, especialmente para a auto-aprendizagem; - exercer a medicina utilizando procedimentos diagnósticos e terapêuticos validados cientificamente; - dominar as técnicas de leitura crítica indispensáveis frente à sobrecarga de informações e da transitoriedade de conhecimentos; - dominar os conhecimentos científicos básicos de natureza biopsico-social subjacentes à prática médica; - ter domínio dos conhecimentos de fisiopatologia, procedimentos diagnósticos e terapêuticos necessários à prevenção, tratamento e reabilitação das doenças de maior prevalência epidemiológica e aspectos da saúde ao longo do ciclo biológico: saúde individual da criança, do adolescente, do adulto e do idoso com as peculiaridades de cada sexo; saúde da família e da comunidade; doenças crônicodegenerativas; neoplasias malignas; causas externas de morbimortalidade; doenças mentais e psicossociais; doenças infecciosas e parasitárias; doenças nutricionais; doenças ocupacionais; ambientais e iatrogênicas; - ter capacitação para utilizar recursos semiológicos e terapêuticos contemporâneos, hierarquizados para atenção integral à saúde, no primeiro, segundo e terceiro níveis de atenção; - utilizar procedimentos semiológicos e terapêuticos conhecendo
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critérios de indicação e contra-indicação, limitações, riscos, confiabilidade e sua validação científica; - atuar dentro do sistema hierarquizado de saúde obedecendo aos princípios técnicos e éticos da referência e contra-referência; - saber atuar em equipe multiprofissional, assumindo quando necessário o papel de responsável técnico, relacionando-se com os demais membros em bases éticas; - exercer a medicina com postura ética e humanística em relação ao paciente, família e à comunidade, observando os aspectos sociais, culturais, psicológicos e econômicos relevantes do contexto, baseados nos princípios da bioética; - ter uma visão social do papel do médico e disposição para engajase em atividades de política e de planejamento em saúde; - informar e educar seus pacientes, familiares e comunidade em relação à promoção da saúde, prevenção, tratamento e reabilitação das doenças, usando técnicas adequadas de comunicação; - conhecer as principais características do mercado de trabalho onde deverá se inserir, procurando atuar dentro dos padrões locais, buscando o seu aperfeiçoamento considerando a política de saúde vigente; - utilizar ou administrar recursos financeiros e materiais, observando a efetividade, visando a eqüidade e a melhoria do sistema de saúde, pautada em conhecimentos validados cientificamente.
Pelo que se acompanha do debate que vem ocorrendo nos vários fóruns nacionais e internacionais do ensino médico, não há divergências de fundo em relação ao perfil profissional necessário para os anos iniciais do próximo século. O problema central reside nas estratégias de mudança dos atuais modelos acadêmicos. Para isso é fundamental compreender adequadamente os limites e as possibilidades das inovações e das reformas da educação médica frente ao perfil das práticas médicas hegemônicas e frente às estruturas sociais no contexto dos processos de globalização. Também implica compreender as contradições entre tecnologização, custo da atenção médica e eficácia; entre disciplinas e interdisciplinaridade; entre prática uniprofissional e multiprofissional; entre ética profissional e bioética e assim por diante. A transformação das políticas públicas de educação médica e de saúde depende do correto entendimento das contradições e da vontade política das escolas e dos educadores médicos em superar o estágio da insatisfação e enfrentar os desafios de construção do novo modelo de formação.
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Ademais, é decisivo reconhecer que os agudos problemas atuais do processo de formação de médicos são paradigmáticos no campo da saúde, da educação, e fazem parte também de uma crise mais ampla da universidade. Como apontou Belaciano (1998, p.2) durante o recente 36º Congresso Brasileiro de Educação Médica e 8º Fórum Nacional de Avaliação do Ensino Médico, A sobrevivência da universidade depende de sua reinserção na sociedade, da construção de novas relações e de um novo papel socialmente mais relevante e a mudança da formação do médico tem que se dar ancorada nessas novas necessidades (...) devemos fazer uma articulação estratégica das Escolas com os sistemas locais de saúde. A mudança da Escola Médica não pode ser gerada, construída apenas com os atores internos à Universidade e tampouco a mudança da saúde prescinde da ação articulada com a Universidade (qualificação de recursos humanos, humanização da atenção, custos etc). A parceria é estratégica para os dois e pode ser fundamental para gerar força política e até os recursos necessários para a implementação do processo de mudança.
Referências bibliográficas ALMEIDA, M.J. Educação médica e saúde: limites e possibilidades das propostas de mudança. São Paulo, 1997, 316p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. ANDRADE, J. Marco conceptual de la educación médica en la America Latina. Washington: OPS, 1979. (Desarrollo de Recursos Humanos, 28). AROUCA, A.S.S. O dilema preventista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. Campinas, 1975. 261p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. BELACIANO, M.I. Considerações gerais a respeito do Projeto CINAEM – III FASE . Recife, 1998. (versão agosto de 1998). (Mimeogr.) DONNANGELO, M. C. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira, 1975. FEUERWERKER, L.C.M. Mudanças na educação médica e residência médica no Brasil. São Paulo, 1997. 229p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. GARCIA, J.C. La educación médica en la America Latina. Washington: OPS, 1972. NUNES, E.D., Juan César García: pensamento social em saúde na América Latina. São Paulo: Cortez, 1989. REDE UNIDA. Contribuição para as novas diretrizes curriculares dos cursos de graduação da área de saúde. Olho Mágico, v.4, p. 11-35, 1998. SCHRAIBER, L. B. Educação médica e capitalismo: um estudo das relações educação e prática médica na ordem social capitalista. São Paulo: Hucitec, 1989. 132
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Formação dos conceitos científicos e práticas pedagógicas*
Cleide Nébias1
Todos nós organizamos as informações que internalizamos para garantirmos nossa sobrevivência e nossa permanência em um grupo social. Segundo Smith (1991), para compartilharmos da cultura de um grupo social devemos compartilhar de uma mesma base categórica que organiza nossa experiência; isso significa desenvolvermos uma “teoria de mundo” que dá sentido ao que somos expostos e nos impede de enfrentarmos o novo com perplexidade. Em outras palavras, vemos o mundo e tentamos compreender seu funcionamento, com “óculos conceituais”. Inicialmente com conceitos cotidianos, alternativos, espontâneos, ou pré-conceitos, que vão dando lugar aos conceitos científicos. Pelo papel que os conceitos desempenham, sua aprendizagem tem sido objeto de muitas investigações, principalmente quando se pensa na instrução formal e no papel da escola de facilitadora na construção do conhecimento científico por parte de seus alunos. Vygotsky foi um dos estudiosos desse tema, desenvolvendo alguns estudos experimentais para observar a dinâmica do processo de formação de conceitos. Mais de trezentas pessoas foram estudadas crianças, adolescentes e adultos. As principais conclusões a que chegou foram:
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Trabalho apresentado em mesa-redonda no IX Endipe - Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, Águas de Lindóia, SP, 1998. 1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos e professora visitante do Programa de PósGrduação em Educação da Universidade Estadual Paulista - Unesp - campus de Marília.
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. a percepção e a linguagem são indispensáveis à formação de conceitos; . a percepção das diferenças ocorre mais cedo do que a das semelhanças porque esta exige uma estrutura de generalização e de conceitualização mais avançada; . o desenvolvimento dos processos que resultam na formação de conceitos começa na infância, mas as funções intelectuais que formam a base psicológica do processo de formação de conceitos amadurece e se desenvolve somente na adolescência; . a formação de conceitos é o resultado de uma atividade complexa, em que todas as funções intelectuais básicas (atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar) tomam parte; - os conceitos novos e mais elevados transformam o significado dos conceitos inferiores (Vygotsky, 1991). As pesquisas do autor demonstraram que há três fases básicas na trajetória da formação de conceitos: 1 Agregação desorganizada - amontoados vagos de objetos desiguais, fatores perceptuais são irrelevantes; predomínio do sincretismo. Vygotsky chama a atenção para o fato de que uma criança de três anos e um adulto podem se entender porque partilham de um mesmo contexto e utilizam um grande número de palavras com o mesmo significado, mas baseadas em operações psicológicas diferentes (características concretas/ significações abstratas); isso significa que o conceito no sentido real não está desenvolvido. “(...)Vygotsky conclui que o conceito em si e para os outros existe antes de existir para a própria criança, ou seja, a criança pode aplicar palavras corretamente antes de tomar consciência do conceito real” (Der Veer & Valsiner, 1996, p.291). Essa afirmação, mais uma vez, explicita a concepção de Vygotsky de que todo conhecimento é primeiramente interpsicológico para depois tornar-se intrapsicológico. 2 Pensamento por complexos - os objetos associam-se não apenas devido às impressões subjetivas da criança, mas também devido às relações concretas e factuais que de fato existem entre esses objetos, podendo, entretanto, mudar uma ou mais vezes durante o processo de ordenação. Essas características selecionadas podem parecer irrelevantes para os adultos (Der Veer & Valsiner, 1996). Num estágio avançado dessa fase, Vygotsky identifica a combinação de objetos em grupos com base em alguma característica que os torna diferentes e, ao mesmo tempo, complementares entre si, que se assemelham a coleções. Na passagem para os conceitos propriamente ditos, há um último tipo de complexos, o pseudoconceito, estágio no qual a criança generaliza fenotipicamente, mas psicologicamente seu conceito é muito diferente do conceito propriamente dito do adulto. O pensamento por complexos é característico dos povos primitivos, para os quais uma palavra não é portadora de um conceito, mas do “nome de família” para grupos de objetos concretos,
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associados factualmente; é também “característico dos esquizofrênicos, que regridem do pensamento conceitual para um nível mais primitivo de intelecção, rico em imagens e símbolos” (Vygotsky,1991, p.62). 3 Na terceira fase da formação de conceitos, o grau de abstração deve possibilitar a simultaneidade da generalização (unir) e da diferenciação (separar). Essa fase exige uma tomada de consciência da própria atividade mental porque implica numa relação especial com o objeto, internalizando o que é essencial do conceito e na compreensão de que ele faz parte de um sistema. Inicialmente formam-se os conceitos potenciais, baseados no isolamento de certos atributos comuns, e em seguida os verdadeiros conceitos. Essa abstração vai ocorrer na adolescência. “No entanto, mesmo depois de ter aprendido a produzir conceitos, o adolescente não abandona as formas mais elementares; elas continuam a operar ainda por muito tempo, sendo na verdade predominantes em muitas áreas do seu pensamento. A adolescência é menos um período de consumação do que de crise e transição” (Vygotsky,1991, p.68). Por seus experimentos, Vygotsky conclui que a capacidade do adolescente de formar conceitos antecede em muito sua capacidade de defini-los. Contudo, se considerarmos as situações escolares, muitas vezes o aluno é capaz de definir um objeto, quando sabemos que ainda não formou o conceito. Outro aspecto bastante relevante sobre formação de conceitos, tratado por Vygotsky (1991), diz respeito aos processos cotidianos, à experiência pessoal da criança e à instrução formal, à aprendizagem em sala de aula, que, em seu entender, desenvolvem dois tipos de conceitos que se relacionam e se influenciam constantemente. Nesse aspecto, contesta Piaget, por ter sobre esse assunto um ponto fraco na sua teoria, uma vez que para Piaget os conceitos "espontâneos", que constituem as idéias da criança acerca da realidade, são independentes dos conceitos "nãoespontâneos", decisivamente influenciados pelos adultos e que vão gradativamente substituindo os primeiros. Vygotsky acredita que os conceitos espontâneos e os conceitos não-espontâneos não estão em conflito; fazem parte de um mesmo processo, ainda que se formem e se desenvolvam sob condições externas e internas diferentes e motivados por problemas diferentes. Para Vygotsky (1991), esses conceitos cotidianos e científicos envolvem experiências e atitudes diferentes por parte das crianças e se desenvolvem por caminhos diferentes; “a ausência de um sistema é a diferença psicológica principal que distingue os conceitos espontâneos dos conceitos científicos” (p.99). Um conceito espontâneo é definido por seus aspectos fenotípicos, sem uma organização consistente e sistemática, enquanto o conceito científico é sempre mediado por outros conceitos. Os conceitos científicos foram objeto de vários estudos porque, com seu sistema hierárquico de inter-relações - um conceito supra-ordenado e uma série de conceitos subordinados -, “parecem” constituir, para Vygotsky, o meio no qual a consciência reflexiva se desenvolve. Desde o início, eles contêm relações de generalidade, por suas características essenciais. Mereceram atenção especial, também, porque a aprendizagem escolar exerce
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papel importante em sua aquisição. Segundo ele, nas experiências cotidianas, a criança centra-se nos objetos e não tem consciência de seus conceitos (por ex. usa corretamente a conjunção porque, mas não é capaz de fazê-lo numa situação experimental), ao passo que nos conceitos aprendidos na escola, em colaboração com o adulto, consegue resolver melhor problemas que envolvem o uso consciente do conceito. No entanto, seus estudos confirmaram a hipótese de que os conceitos espontâneos e os conceitos científicos, inicialmente afastados porque se desenvolvem em direções contrárias, terminam por se encontrar. A criança adquire consciência dos seus conceitos espontâneos relativamente tarde; a capacidade de defini-los por meio de palavras, de operar com eles à vontade, aparece muito tempo depois de ter adquirido os conceitos. Ela possui o conceito (...), mas não está consciente do seu próprio ato de pensamento. O desenvolvimento de um conceito científico, por outro lado, geralmente começa com sua definição verbal e com sua aplicação em operações não-espontâneas (...) Poder-se-ia dizer que o desenvolvimento dos conceitos espontâneos da criança é ascendente, (indutivo) enquanto o desenvolvimento dos seus conceitos científicos é descendente (dedutivo) (Vygostsky, 1991, p.93).
Contudo, Vygotsky afirma que é necessário que o conceito espontâneo tenha alcançado um certo nível para que o conceito científico correspondente seja internalizado (por ex. conceitos históricos dependem da utilização de passado nos acontecimentos cotidianos). Eles dependem e se constróem a partir dos conceitos cotidianos. A comparação que Vygotsky estabelece entre a aquisição de conceitos científicos e aprendizagem de uma língua estrangeira é bastante elucidativa; na língua materna, aprendemos a partir da nomeação direta dos objetos enquanto, para uma língua estrangeira, a mediação da língua materna substitui o objeto. A aprendizagem dos conceitos científicos ou da segunda língua na escola baseia-se num conjunto de significados da palavra, desenvolvidos previamente e originários das experiências cotidianas da criança. Este conhecimento espontaneamente adquirido medeia a aprendizagem do novo. Assim, os conceitos cotidianos estão ‘entre o sistema conceitual e o mundo dos objetos’ exatamente da mesma maneira que a primeira língua de cada um medeia os pensamentos e a segunda língua (Panofsky et al., 1996, p.245-6).
Vários estudos vêm sendo realizados após os trabalhos experimentais de Vygotsky. Alguns também experimentais, mas outros etnográficos e, principalmente, na área biológica, confirmam e ampliam alguns resultados obtidos por ele e refutam outros (como a inexistência de conflitos entre os
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conceitos espontâneos e científicos). Panofsky et al. (1996), em seu trabalho sobre conceitos científicos, mencionam uma pesquisa evolutiva desenvolvida por Katherine Nelson e colaboradores e emprestam deles o termo "scripts" como representações de eventos generalizados que se desenvolvem espontaneamente a partir das primeiras experiências cotidianas da criança, que vão sendo generalizadas e contextualizadas por seus aspectos perceptivos e funcionais, numa seqüência de eventos que se agrupam, formando o roteiro de eventos significativos que, com o tempo, vão sofrendo um processo de análise ou parcelamento, deles derivando os conceitos. Segundo Panofsky et al., a pesquisa de Nelson, baseada na observação da cognição cotidiana, avança sobre a pesquisa experimental de Vygotsky, na medida em que para ele os conceitos espontâneos não constituem um sistema, ao passo que para Nelson "as crianças constróem regularidades, conexões e sistematicidades na seqüência das atividades diárias, muito embora tais construções não sejam tão sofisticadas como serão posteriormente no domínio dos conceitos científicos" (Panofsky et al., 1996, p. 248). Nos estudos de Panofsky et al., uma criança agrupa pássaro e borboleta porque os dois voam (agrupamento por script) e, alternativamente, pássaro e avestruz porque, num sentido taxionômico, eles são pássaros. Segundo essas autoras, a combinação de categorias de script e taxionomia representa uma fase de transição de conceitos ligados à experiência dos conceitos sistematicamente organizados. Shiff (apud Der Verr & Valsiner,1996) realizou suas investigações com conceitos ensinados pelo movimento comunista na União Soviética, como exemplo de conceitos científicos, seguindo o procedimento de Piaget com frases interrompidas para serem completadas (por ex: para conceitos cotidianos: A menina lê mal, embora... e O piloto caiu com o seu avião porque... e para os conceitos científicos:. A polícia atirou nos revolucionários porque... e Ainda há trabalhadores que acreditam em Deus, embora ...). Os sujeitos, crianças de sete a doze anos, responderam de forma mais correta as frases de conceitos científicos, embora esteriotipadas. Shiff mostrou-se inclinada a interpretar esse fenômeno de forma positiva. Em sua opinião, a necessidade de repetir o material científico na classe, a necessidade de responder a perguntas sobre esse material e de explicar essas respostas levavam a criança à tomada de consciência dos conceitos científicos. Era a falta dessa tomada de consciência que levava as crianças a darem respostas tautológicas no teste cotidiano (...) (Der Verr & Valsiner, 1996, p.298).
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Antes do ingresso na escola, a criança já construiu um conjunto de conhecimento informal, produto do desenvolvimento ontogenético a partir de suas experiências e que constitui o seu sistema de crenças sobre o mundo, a influenciar profundamente a obtenção do conhecimento formal, que se dará de forma planejada pela aprendizagem escolar. Segundo Pines & West (1984), as situações de aprendizagem escolar podem ser de vários tipos: 1 Situação de conflito, quando os conceitos espontâneos e científicos se confrontam; isso implica no abandono de idéias que prevaleceram por um período de tempo, o que pode ser difícil para o sujeito, mesmo quando isso se dá com adultos. Para Duarte (1996), realizando várias investigações na área de Biologia, um grande número de estudantes, de diferentes graus de ensino, mostram uma “persistência desconcertante” das idéias alternativas, quando essas diferem das idéias científicas veiculadas pela escola, funcionando como verdadeiros obstáculos epistemológicos na aprendizagem do conhecimento científico (p.22). 2 Situação congruente, quando os conceitos se integram e não há necessidade de abandonar os conhecimentos espontâneos, que se integram em um todo maior. Cita-se um exemplo dado por Ausubel da concepção da criança quanto ao corpo humano ser um saco cheio de sangue. De fato, o corpo sangra quase sempre e em quase todo o lugar espetado, devido à extensão da rede de capilares. 3 Situação formal-simbólica/zero-espontânea, quando existe pouco conhecimento espontâneo para interagir com o conhecimento formal apresentado na escola. Por exemplo, algumas reações de química orgânica. 4 Situação espontânea/não instruída, quando o conhecimento espontâneo é extenso, rico e suficiente e não há conhecimento escolar correspondente a ser apresentado. É o caso das crenças e das metáforas culturais que têm poderosa influência na aquisição conceitual. Considerando, então, que o aluno traz uma riqueza de conhecimentos sobre o mundo e seu funcionamento, que na maioria das vezes entram em conflito com o que é imposto pela escola e tem de ser aprendido, como o professor pode agir para que os estudantes não rejeitem esses conhecimentos, não tenham dificuldades em assimilá-los ou, ainda e principalmente, não dêem "respostas corretas" apenas para cumprir tarefas escolares sem sentido e inúteis? Para os professores, esta tarefa não é fácil, porque implica uma revisão, tanto de conteúdos quanto de metodologias. Diversos estudos têm demonstrado que as próprias crenças dos professores exercem grande influência na implementação do currículo. Por essa razão, os próprios professores devem ser investigadores em sala de aula. Entretanto, mudanças na escola são muito difíceis como práticas individuais, mas possíveis se assumidas pelo grupo de professores ao refletirem sobre sua ação (Duarte, 1996). Para Talízina (1988), um novo conceito pode ser assimilado pelo contacto com objetos a ele relacionados. Para dirigir esse processo o professor deve organizar, desde o princípio, com seus alunos, as ações com os objetos orientadas aos aspectos que interessam. Por suas experiências,
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afirma que a ação mais adequada é a orientada para as propriedades que constituem o objeto da assimilação propriamente dita, ou seja, denominar uma característica por vez e ir identificando, no objeto, a característica indicada; quando há dúvida ou o objeto não tem a característica, já não se pode afirmar se pertence ao conceito. "Para que um conceito se forme, não como um conhecimento isolado, mas como um elemento estrutural da ciência, é muito importante introduzir os conceitos não sucessivamente, um após o outro, mas em um sistema" (p.199). Para que as práticas pedagógicas sejam mais adequadas à formação de conceitos científicos, algumas sugestões são apontadas: - As idéias que o aluno traz para a escola são necessárias para a construção de significados. Suas experiências culturais e familiares não podem ser negadas. Essas idéias devem ser aceitas para progressivamente evoluírem, serem substituídas ou transformadas. - A resistência para substituir alguns conceitos só é superada se o conceito científico trouxer maior satisfação: for significativo, fizer sentido e for útil. Os conceitos científicos com maior grau de aplicabilidade, que explicam um maior número de situações e resolvem um maior número de problemas, facilitam a mudança. - O diálogo com os alunos possibilita o diagnóstico de suas idéias em vários momentos da aprendizagem. Da mesma forma, a interação entre parceiros e a observação dos diálogos travados entre eles. - Provocar conflito com contra-exemplos pode gerar dúvidas e insatisfação, levando os alunos a testarem suas concepções. - Resolver problemas com um plano de atividades cognitivas deve ser estimulado, uma vez que a simples nomeação das características essenciais e a repetição de definições não garantem a formação de conceito. Deve-se estimular o aluno a considerar soluções alternativas para um mesmo problema. - Deve-se possibilitar ao aluno retomar seu processo de trabalho, explicando suas idéias e analisando a evolução das mesmas. - No processo de formação de conceitos, é desejável desenvolver ações de inclusão -estabelecer se um objeto dado refere-se ao conceito indicado, e de dedução- reconhecer as características necessárias ou suficientes para incluir ou não os objetos em um conceito dado. - Nem todo conceito é passível de experimentação, daí o valor de meios variados: filmes, explorações de campo etc. - A construção de mapas conceituais (Ausubel) é um recurso valioso para o desenvolvimento conceitual. É importante lembrar que o ensino sistemático e explícito na escola deve levar o aluno a reconceitualizações e, principalmente, desenvolver formas de pensar que se estendam para outras áreas e para situações que transcendem a sala de aula.
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Árvores de Saúde uma conversa com Pierre Lévy1
Em maio de 1998, Pierre Lévy, filósofo e conhecido “antropólogo do ciberespaço”, esteve no Brasil, realizando palestras em diversas capitais. Em sua rápida passagem por São Paulo, realizou três conferências no quadro do seminário Ética e Semiótica, organizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade (do Curso de Pós-Graduação de Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica/SP). Nessas conferências, surpreendeu não falando sobre redes eletrônicas ou ciências cognitivas, mas sobre seu “sistema filosófico da imanência, intrinsecamente hipertextual, icônico e interativo”... Apesar da apressada estada em São Paulo e de uma agenda já inteiramente tomada, foi com bom humor e generosidade que concedeu, em suas últimas horas na cidade, numa manhã de domingo, uma entrevista não programada à revista Interface.
Entrevista realizada em 31 de maio de 1998 por Ricardo Rodrigues Teixeira, que também responde pela tradução (com a colaboração de Frédéric Petitdemange) e edição.
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Lévy nos falou sobre comunicação, ciência, saúde, particularmente sobre as relações entre autonomia e saúde, e sobre como imagina algumas possíveis aplicações nesta área do software Árvores do Conhecimento, por ele desenvolvido, em colaboração com Michel Authier. Transcrevemos, a seguir, os principais trechos desta entrevista que, com descontração, o entrevistado transformou numa instigante e bem humorada conversa, marcada por um intenso brilho intelectual e pontuada por um riso solto, que, nitidamente, denota o imenso prazer do nosso interlocutor com as idéias que vai expondo e, de um modo visível, a sua alegria espontânea de pensar. Vale a pena chamar um pouco mais a atenção do leitor para esse singular estado de espírito - e não apenas porque ele traduz intensamente o “estado de espírito” da nossa conversa, mas também porque introduz adequadamente ao “humor” dominante no pensamento e na obra deste autor. Para reencontrar o tom de uma conversa apresentada apenas por escrito, este “estado” é, sem dúvida, a melhor pista. E é para acentuá-lo que citamos, como uma epígrafe à entrevista, um dos mestres de Lévy, também filósofo e historiador das ciências, o francês Michel Serres: “Para mim, pensar é como um vasto e unitário êxtase, feliz, que explode em pequenas gargalhadas, desconexas e, no entanto, reunidas sob a imensa superfície em movimento. Acima dos incontáveis Anjos, bochechudos e sopradores, em caótico alarido, avança um grande Arcanjo, vento por trás das asas, cuja vontade me empurra para onde desejo ir.”
(A Lenda dos Anjos. SP, Aleph,
1995, p.33)
Para um melhor conhecimento do autor entrevistado e de sua obra, incluímos alguns dados biográficos sumários, quase todos extraídos do site na internet do IIIº Mundial da Comunicação, realizado em Quebec, de 31 de março a 16 de abril de 1998, no qual Pierre Lévy foi um dos convidados especiais. (http://www.crim.ca/APIIQ/formatio/ mondial/invites.htm) Pierre Lévy nasceu em 2 de julho de 1956, em Tunis. Completou inicialmente estudos de História e, a seguir, de História das Ciências. Tem sua vocação de pesquisador definitivamente despertada, ao seguir os cursos de Michel Serres na Sorbonne. Em 1983, defende uma tese de Sociologia sobre a idéia de liberdade na Antigüidade, orientada por Cornelius Castoriadis, na Ecole de Hautes-Etudes en Sciences Sociales. Em seguida, passa a freqüentar os cursos noturnos de Informática do Conservatoire National des Arts et Métiers. Convencido do papel fundamental desempenhado pelas técnicas de comunicação e pelos sistemas de signos na evolução cultural em geral, logo assumiu como sua principal tarefa pensar a “revolução numérica”
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contemporânea nos planos filosófico, estético, educacional e antropológico. Trabalha por dois anos (1984/1985) na Ecole Polytechnique, em pesquisa sobre o nascimento da Cibernética e da Inteligência Artificial. Em 1987, publica sua primeira obra, A Máquina do Universo – criação, cognição e cultura informática. (Porto Alegre, Ed. ArtMed, 1998; ed. francesa de 1987), sobre as implicações culturais da informatização e suas raízes na história do Ocidente. A seguir, participa da equipe reunida por Michel Serres para redigir os Elements d’histoire des sciences (1989), escrevendo o capítulo sobre a invenção do computador. De 1987 a 1989, é professor convidado de Comunicação na Universidade do Quebec. Durante este período, aprofunda seus conhecimentos de Ciências Cognitivas e descobre o mundo nascente do hipertexto e da multimídia interativa. Essa experiência na América do Norte rende o seu segundo livro, o mais conhecido do público brasileiro: As Tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na era da informática. (São Paulo, Ed.34, 1993; ed. francesa de 1990). De volta à Europa, começa a imaginar um sistema de escrita icônica e interativa: a escrita que agora poderíamos inventar, dispondo de suportes dinâmicos e interativos como as telas de um computador, ao invés de um suporte fixo, como tem sido, até aqui, o papel. Sistematiza um tal sistema de signos em A ideografia dinâmica – rumo a uma imaginação artificial? (São Paulo, Loyola, 1998; ed. francesa de 1991). De 1989 a 1991, ensina Tecnologias para a Educação e Ciências Cognitivas em Nanterre. A partir de 1990 passa a dirigir, em colaboração com Michel Authier, pesquisas e reflexões sobre as novas formas de acesso à informação que se tornam possíveis com os instrumentos numéricos. Juntos, formulam o conceito de “cosmopédia”: enciclopédia em forma de mundo virtual que se reorganiza e se enriquece automaticamente, segundo as explorações e interrogações daqueles que nela mergulham. Já no quadro da chamada “Mission Serres” (de pesquisa e formulação de propostas de ensino à distância, lançada pela primeira-ministra francesa Edith Cresson - 1991/1993), Pierre Lévy e Michel Authier desenvolveram uma aplicação particular da “cosmopédia”: o sistema das “árvores de conhecimento”. Em 1992, co-assinam um livro com o mesmo nome, prefaciado por Michel Serres, descrevendo o projeto: As Árvores de Conhecimentos. (Escuta, 1998; ed. francesa de 1992). No mesmo ano, Lévy publica De la programmation considerée comme un des beaux-arts. (Paris, La Découverte, 1992), que analisa os atos cognitivos e sociais operados por programadores, mostrando que a Informática não é exatamente uma técnica “fria”, como habitualmente se imagina. Desde 1993, é professor do Departamento de Hipermídia da Universidade de Paris-8, em St-Denis.
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Interface - Buscando estabelecer uma primeira ponte com o campo da Saúde, é preciso dizer que neste campo a Comunicação é, com grande freqüência, tomada de um modo excessivamente instrumental, quase sempre reduzida a um conjunto de práticas, objetos, meios e tecnologias que podem auxiliar ou mesmo garantir o cumprimento de determinados objetivos colocados pelas instituições médico-sanitárias, tais como a prevenção de doenças, a educação em saúde, a mudança de comportamento etc.. Nos seus trabalhos, contudo, a comunicação aparece com um sentido muito mais amplo, como um autêntico conceito filosófico. Para começar, gostaríamos que você nos falasse um pouco mais sobre esse conceito mais amplo de Comunicação.
Comunicar é partilhar o sentido...
Pierre Lévy – Evidentemente, é um conceito enorme, já que há tantos sentidos possíveis para essa palavra... Se eu forneço alguns desses sentidos, isso só pode ser uma orientação deliberada e não uma definição objetiva. A primeira coisa que se pode dizer é que comunicar não é de modo algum transmitir uma mensagem ou receber uma mensagem. Isso é a condição física da comunicação, mas não é a comunicação. É certo que para comunicar, é preciso enviar mensagens, mas enviar mensagens não é comunicar. Comunicar é partilhar o sentido. E isso já é mais difícil... (risos) Já que isso quer dizer partilhar um contexto comum, partilhar uma cultura, partilhar uma história, partilhar uma experiência etc., progressivamente... Não é alguma coisa que se possa fazer imediatamente; é preciso já ter alguma coisa em comum para poder se comunicar. E pode-se dizer que comunicar é tentar ter alguma coisa em comum. Portanto, é, necessariamente, um verdadeiro encontro, a comunicação. Não é só transmitir uma mensagem. É alguma coisa que se constrói. Que se constrói no tempo. O que não quer dizer que não seja algo que possa se dar muito rapidamente ou que não possa ser algo muito, muito, muito demorado... (risos) Não é um tempo que se meça pelo relógio ou pelo calendário. É um tempo que é interno à comunicação. É o tempo que se leva para ter alguma coisa em comum, para partilhar alguma coisa. Bom, essa, então, seria uma primeira aproximação da comunicação, digamos, humana. Há, entretanto, uma espécie de paradigma da comunicação que tende a ver fenômenos de comunicação em toda parte e não somente entre os seres humanos.
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Essa tendência apareceu nos anos 30-40-50 do século XX, quando as principais máquinas passaram a ser máquinas de comunicar: o telefone e, bem rapidamente, o computador. Houve, então, um grande movimento científico interdisciplinar, chamado Cibernética, que procurou ver tanto os fenômenos vivos quanto a Engenharia, quanto a Psicologia, quanto a Antropologia, em termos de estruturas de informação e comunicação. E, especialmente, começou-se a ver o vivo, não como substância viva ou fluido vital ou qualquer coisa assim, mas como uma certa complexidade, uma certa configuração de sistemas de comunicação. Quer dizer: como sistemas de comunicação abertos, alimentados pela variedade, com alças de retroação etc.; e por isso eles são finalizados, e por isso eles têm uma certa estabilidade, enfim... Este movimento interdisciplinar durou uns 20-30 anos e se dissolveu, exceto talvez na Rússia, onde subsistem algumas sociedades científicas em Cibernética... (risos) De qualquer forma, ele marcou profundamente a ciência contemporânea, em particular a Biologia. Se observamos, por exemplo, a Biologia Molecular: todo o seu vocabulário – o que, aliás, é totalmente criticável – é um vocabulário da informação e da comunicação: o código, a decifração etc.. Nesse caso, pode-se dizer que vivemos num paradigma “comunicacional”. Pode-se dizer que a comunicação é alguma coisa que é constitutiva dos objetos: da Biologia ou da Sociologia ou da Psicologia. O que é um psiquismo? É uma espécie de sistema de comunicação, ele mesmo composto de microssistemas de comunicação etc.; o mesmo para o corpo, o mesmo para a sociedade etc. Essa idéia me parece interessante, uma vez que ela vem abalar a noção de substância. Se olharmos de perto um objeto que tem a aparência de um objeto substancial ou individual (com um interior, com um exterior etc.), se olharmos bem o que é este objeto, se o olharmos finamente, veremos que são elementos em comunicação, uns com os outros, e há entre eles... Bom... (risos) Entre eles existem interfaces. Como eles estão em comunicação, uns com os outros, evidentemente eles possuem uma interface, uns com os outros; e esta interface é sempre uma interface de
A comunicação é alguma coisa que é constitutiva dos objetos...
... Entre eles existem interfaces.
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é sempre uma interface de transformação, de tradução, de complicação
transformação, de tradução, de complicação, ela pode ser um semicondutor (que às vezes deixa passar, às vezes não) etc. etc.. E se você olhar bem como é feita a interface, se você faz um zoom nela, o que verá serão ainda interfaces em comunicação com outras etc.. Olhando o corpo humano, isto me parece bastante evidente. O sistema respiratório: é evidente que se trata de uma interface entre o ar e o sangue. Mas, se a gente vai ver como é feito o pulmão, a gente descobre o tecido. E o tecido, ele é feito de várias camadas. Depois, a gente descobre as células; e depois a gente descobre... E assim por diante, em abismo, de uma maneira fractal. A substância, digamos, se dissolve em direção ao interior, mas também se estende indefinidamente em direção ao exterior. Pelas próteses, mas também pelo fato de que nós comemos, é claro... (risos) O corpo é feito entre outras coisas daquilo que se come, entre outras coisas daquilo que se respira; a pele é assistida pela roupa... Você entende o que quero dizer? Por exemplo, certamente nós tocamos com a ponta do dedo. Há um receptor do nervo lá, na pele da ponta do dedo. Quando eu toco com a unha, eu toco mesmo que nela não haja diretamente receptores nervosos. E quando um cego toca com a sua bengala, há evidentemente menos ainda, mas, de todo modo, com a sua bengala, ele toca. A bengala faz parte dele ou não? É ou não é a minha orelha que está na ponta do telefone? Então, eu escuto à distância. E na televisão, eu vejo. E, assim, progressivamente, a gente vai se dando conta que, de uma certa maneira, o corpo se estende indefinidamente, porque, olhando bem as coisas, a gente não sabe bem onde ele começa e onde ele acaba... (risos) Quem sabe, por exemplo, quem sente? (Passando o dedo no tecido do sofá) Sou eu que sinto o tecido ou é o meu sistema nervoso que sente a forma pela qual minha pele é afetada? Ou será que sou eu que recebo as mensagens do meu sistema nervoso? E quem sou eu? (risos)
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A primeira interface de nosso corpo é a pele, estanque e porosa, fronteira e local de trocas, limite e contato. Mas o que esta pele envolve? No nível da cabeça, a caixa craniana. E nesta caixa? O cérebro: uma extraordinária rede de comutadores e fios entrelaçados, eles mesmos conectados por inúmeros (neuro-) transmissores. A função reprodutora faz com que se juntem (interfaceia) os dois sexos e constitui o corpo inteiro enquanto meio, canal ou recipiente para outros indivíduos. O aparelho circulatório: uma rede de canais. O sangue: um veículo. O coração: um trocador. Os pulmões: uma interface entre o ar e o sangue. O aparelho digestivo: um tubo, um transformador, um filtro. Enzimas, metabólitos, catalisadores, processos de codificação e decodificação moleculares. Sempre intermediários, transportadores, mensageiros. O corpo como uma imensa rede de interfaces. (As Tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Ed. 34, 1993; p.182)
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– Esse modo de ver as coisas parece apontar para uma superação das divisões tradicionais das ciências, particularmente daquelas que separam as ciências naturais e as ciências humanas. Isso tudo não apontaria para uma ciência pós-disciplinar ou, pelo menos, para uma profunda reorganização disciplinar do saber? Pierre Lévy – Sim, mas cuidado: as disciplinas são essencialmente constituídas em torno das relações de poder nos locais de ensino. Isso não tem nada a ver com o conhecimento. São organizações microterritoriais nas universidades, as disciplinas... (risos)
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- Colocando a questão de outra forma: não poderia haver uma certa tendência da atual base de constituição das identidades disciplinares, centralmente fundada nos métodos, vir a se deslocar em direção a um outro tipo de base identitária, desta vez tendencialmente fundada nos problemas?...
Pierre Lévy – (sobrepondo-se às últimas palavras do entrevistador) ... em objetos ou em problemas, sim, certamente. Bom, isso porque o método é uma racionalização do poder. Não é a verdade... (risos) Isto é, não há nenhum método puro, neutro, perfeito. Na minha opinião, o método é sempre uma aparência enganosa, uma vez que as verdadeiras descobertas jamais se fazem seguindo um método, elas sempre se fazem transgredindo um método. Como se fez uma descoberta usando um método novo, acredita-se que foi esse método novo que permitiu a descoberta e que este é o método. Mas a
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descoberta é sempre, ao mesmo tempo, a descoberta de um método. É evidente que existem algumas regras de base: o fato de que uma experiência possa ser reprodutível, por exemplo, ou que, entre colegas se possa exercer a crítica e trocar argumentos. Mas isso, eu quero dizer, é o método universalmente válido, já que, quanto ao resto, não há método algum. Bom, quanto a isso, eu não sei se nós estamos provavelmente de acordo, mas eu não sei como deve se organizar o conhecimento... Em torno de objetos? Em torno de problemas? Sim, é uma boa idéia, enfim... Eu sei que é assim que eu, pessoalmente, trabalho. Quero dizer, que se há um problema que me interessa ou um objeto que eu desejo compreender, eu apelo, bom, do exterior, se diria a conhecimentos e a metodologias advindas de diferentes campos disciplinares – mas, do interior do próprio esforço de compreender, isso obedece à necessidade de uma pesquisa e é totalmente coerente. Isso só é eclético se visto do ponto de vista da divisão disciplinar. Se visto do interior do esforço de conhecimento, nada tem de eclético.
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– Na área da Saúde, creio ser marcante esta tendência à interdisciplinaridade e ao avanço do conhecimento em torno de problemas...
Pierre Lévy – Sim, no caso da Saúde é de tal modo evidente que as dimensões sociais, culturais, dietéticas, tecnológicas, epidemiológicas etc., que tudo contribui para fazer com que as pessoas estejam em boa saúde ou em má saúde e mesmo para a definição do que é a boa e a má saúde. E mesmo para a idéia, que é aparentemente uma idéia política e que nada tem a ver com a saúde, de que a saúde tem a ver com o fato de que as pessoas sejam autônomas na gestão de sua própria saúde... Percebe o que quero dizer? Isso quer dizer que se eu ponho minha saúde nas mãos de algum aparelho que me é exterior (a medicina, por exemplo), são grandes as chances para que eu me encontre em má saúde... (risos) Uma vez que, se eu sou responsável por minha própria saúde, se eu não penso que é o médico que deve cuidar de mim, eu estou convencido que sou eu que devo me manter em boa saúde e me cuidar quando eu estou doente, eventualmente apelando a conselhos ou coisas assim, de pessoas que sabem mais sobre tal ou tal assunto, que podem ser médicos ou que podem ser outros doentes ou outras pessoas que têm o mesmo problema que eu ou que podem ser nutricionistas ou que podem ser...
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Interface – E, neste caso, poderíamos considerar a Medicina e suas técnicas como uma interface, ou melhor, como um conjunto de interfaces (certamente privilegiado, mas ainda assim um conjunto de interfaces entre outros), a mediatizar minha relação comigo mesmo?
Pierre Lévy – Especialmente, minha relação de saúde comigo mesmo. Porque nada como pequenas coisas, que não parecem dizer nada, mas que são muito importantes. Por exemplo, aquilo que comemos: eu sei que quando eu como certas coisas, quando eu bebo certas coisas, isso me faz mal; meu vizinho, ele come a mesma coisa, ele bebe a mesma coisa, e isso não lhe faz nenhum mal. Simplesmente, esta capacidade de escutar e de saber aquilo que nos faz bem e aquilo que nos faz mal, ao invés de comer a mesma coisa que os outros, só porque é isso que se deve comer... Você entende o que eu quero dizer? (risos) Portanto, eu penso a educação em saúde, entre outras coisas, como uma educação à sensibilidade a si mesmo e ao seu próprio corpo, como uma atenção ao corpo.
Interface – Este me parece um ponto fundamental, que gostaria que você desenvolvesse um pouco mais, introduzindo, de uma certa forma, o problema do “coletivo”. Por exemplo, do mesmo modo que você afirma, em O que é o virtual?, que “o hipercorpo faz eco ao hipercórtex”, eu creio que também podemos afirmar que a “saúde coletiva” faz eco à “inteligência coletiva”...
Pierre Lévy – Ah sim, certamente.
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Eu penso a educação em saúde... como uma educação à sensibilidade...
– Mas de que modo você equaciona esta abordagem da autonomia dos sujeitos com a “coletivização” do corpo e da inteligência?
Pierre Lévy – A autonomia em matéria de saúde passa pela inteligência coletiva. Entre outras, não somente. Há toda esta dimensão de escuta de si mesmo etc.. Mas quando você tem grupos de pacientes com a mesma doença na internet – diabéticos, por exemplo -, se eles trocam informações uns com os outros – “eu tentei isso”, “se você fizer assim, a coisa anda melhor” etc. -, quando a coisa é compartilhada desta forma, eu penso que é mais fácil conquistar a autonomia. Portanto, a autonomia não é de modo algum se fechar sobre si mesmo. Autonomia quer dizer se escutar, mas também escutar os outros. E não apenas um especialista, mas aqueles que estão na mesma situação que nós estamos. Donde uma certa idéia de ajuda mútua etc...
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Interface - Comunic, Saúde, Educ
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ÁRVORES DE SAÚDE
Interface – Há um paralelo possível dessa idéia com outra encontrada na obra de Foucault. Trata-se da noção grega de hypomnemata, que ele toma da obra de Platão e compara com os computadores pessoais de hoje em dia, numa conversa com Paul Rabinow, nos Estados Unidos. O paralelo é evidente. Foucault afirma que a escrita, sobretudo este gênero de caderno de anotações – que Platão, é claro, criticava, como ele criticava todo tipo de escrita que levaria, segundo ele, a uma perda de memória – teria sido fundamental na constituição de um sentido de “cuidado de si”. A hypomnemata, esta espécie de notebook pessoal dos antigos gregos, teria sido uma interface favorecedora de um autogoverno, teria facilitado aos cidadãos gregos se autogovernar...
Numa entrevista a Rabinow e Dreyfus (Michel Foucault - Uma Trajetória Filosófica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), Foucault faz uma síntese de seus estudos sobre esta “escrita” tão fundamental na formação do si que é a hypomnemata... “É um caderno de anotações. Exatamente este tipo de anotação estava em voga na época de Platão para uso pessoal e administrativo. Esta nova tecnologia era uma espécie de ruptura tanto quanto a introdução do computador na vida privada hoje em dia. Parece-me que a questão da escrita e do si deve ser colocada em termos de uma estrutura técnica e material onde surgiu. (...) Deste modo, se quisermos, o aspecto que liga de maneira surpreendente a questão da hypomnemata e da cultura de si é o fato de que a cultura de si tem como objetivo o perfeito governo de si - uma espécie de relação política permanente entre o eu e o si. Os antigos desenvolveram esta política de si através de anotações exatamente do mesmo modo que os governos e aqueles que gerenciavam empresas administravam através de registros. É deste modo que a escrita me parece estar relacionada ao problema da cultura de si. (...) No sentido técnico, a hypomnemata poderia ser livros de apontamentos, registros públicos, cadernos de anotações pessoais que serviam como memória. Seu uso como livro de vida, guias de conduta, parece ter se tornado alguma coisa corrente entre o público culto. Neles apareciam citações, fragmentos de trabalhos, exemplos, ações testemunhadas, descrições, reflexões ou arrazoados que tinham sido ouvidos ou que tinham vindo à mente. Ela constituía uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas - um tesouro acumulado para ser relido e para meditação posterior. Também formava uma matéria-prima sobre a qual tratados mais sistemáticos podiam ser escritos, onde eram apresentados os argumentos e as formas de lutar contra algum defeito (tal como a raiva, a inveja, a maledicência, a bajulação) ou de ultrapassar alguma situação difícil (um luto, um exílio, uma depressão, uma desgraça).”
Foucault nos faz perceber a articulação de um dado uso da mediação escrita, enquanto um verdadeiro treinamento de si, com os modos de subjetivação moral centrados na idéia de um si que deveria ser criado como “obra de arte”: uma ética que é uma “estética da existência”. Um uso de uma mediação técnica que corresponde a um “uso da vida”: interface especial da relação consigo.
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ÁRVORES DE SAÚDE
Bom, isso talvez seja difícil de se compreender, sem conhecer os sistema das Árvores de Conhecimentos. Mas logo nós imaginamos esse uso e eu sempre tive muito medo de falar disso, porque - eu pensava - se alguém, algum dia e em algum lugar, põe um sistema desses para funcionar, as pessoas praticamente não terão mais necessidade de medicamentos e nós seremos fuzilados pelas indústrias farmacêuticas... (risos) Eu, pessoalmente, tive experiências muito dolorosas com a Medicina. Quando eu percebi que a metade dos meus problemas vinha dos tratamentos que eu seguia e decidi tomar em minhas próprias mãos a minha saúde, passei a ficar muito menos doente, a gastar muito menos dinheiro, as coisas começaram a andar muito melhor... E eu disse a mim mesmo: no fundo, todo mundo deveria fazer o mesmo. Portanto, o que eu estou dizendo é algo vivido, não é só uma teoria, é algo que eu mesmo experimentei.
Interface – Pode-se dizer que foi uma mudança ética. Pierre Lévy – Ah sim, sim, absolutamente. Porque se trata de uma tomada de autonomia, de liberdade.
Interface - Como já não temos mais tempo, recorremos, para encerrar, a uma imagem. Ela retoma uma idéia do início da nossa conversa, sobre a possibilidade de se ver fenômenos de comunicação em toda parte. O nascimento, por exemplo, ele também pode ser visto como um acontecimento eminentemente “comunicacional”. É uma questão de passagem...
Pierre Lévy – Sim, transpõe-se uma interface... (risos)
Interface – A morte também pode ser vista como um fenômeno de passagem. O nascimento seria uma passagem do não-ser ao ser e a morte uma passagem do ser ao não-ser. E o meio?
Pierre Lévy – É a passagem... (risos) Do não-ser ao não-ser.
Interface – Nesse percurso e no que diz respeito à Saúde, a Medicina e outras técnicas do vivo (que, em conjunto, inspirados nos seus trabalhos, poderíamos denominar o “hipertexto sócio-técnico da saúde”), seriam travessias de interfaces?
Pierre Lévy – O que é a vida humana? Nascemos. Sofremos. Morremos. A medicina poderia ser alguma coisa que contribuísse para sofrermos menos entre o nascimento e a morte. E, especialmente, no momento do nascimento e no momento da morte. (risos)
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ENTREVISTA
Um pouco mais sobre as Árvores de Conhecimentos
SAINT-PIERRE-aux-NONNAINS, L'Arbre de vie, s.VII
O interesse de Lévy pelas transformações do “dispositivo sócio-cognitivo”, sob as condições dadas pelo desenvolvimento das redes eletrônicas e pela digitalização do signo, culmina com sua proposição de novos modos de expressão, de representações dinâmicas não-transcendentes aos saberes repartidos pelas comunidades e de novos agenciamentos tecno-políticos de aprendizagem e avaliação dos saberes e das competências coletivas. Desenvolve, dentro desta linha de investigação, em colaboração com Michel Authier, um programa denominado Arbres de Connaissances. Suas principais características e dimensões encontram-se descritas no livro Les Arbres de Connaissances. (Paris, La Découverte, 1992). Quem se interessar também pelos antecedentes do trabalho, deve ler o artigo, de Lévy e Authier, “La cosmopédie, une utopie hypervisuelle.” (In Culture Technique, avril 1992, consacré aux “Machines à communiquer”, 1992; pp.236-244). Para uma discussão do projeto político subjacente às Arbres de Connaissances, um trabalho mais recente, que alguns críticos interpretam como um manifesto por uma “nova humanidade”: A Inteligência Coletiva – por uma antropologia do ciberespaço. (São Paulo, Loyola, 1998; ed. francesa de 1994). Uma outra página na internet com um artigo online de Pierre Lévy, onde há uma síntese interessante a respeito das Arbres de Connaissances, publicado em 1994 pela revista eletrônica Solaris, dossier anual do GIRSIC (Groupe Interuniversitaire de Recherches en Sciences de l’Information e de la Communication). A referência e o endereço completos do artigo são: “Vers une nouvelle économie du savoir” (In: Solaris, nº1, Presses Universitaires de Rennes, 1994); http:// www.info.unicaen.fr/bnum/jelec/Solaris/d01/1levy.html. Este conjunto de referências sobre as Arbres de Connaissances não ficaria completo sem pelo menos algumas indicações sobre o software propriamente dito. Trata-se do Gingo, uma marca registrada da Société TriVium S.A., uma empresa francesa de desenvolvimento de tecnologias para o tratamento e a representação de sistemas de informações complexas. Foi desenvolvido para a construção e administração de sistemas de informações complexas (gestão de conhecimentos, competências, informações etc.), privilegiadamente nas áreas da educação, saúde, comunitária e organizacional. Ele faz com que as informações apareçam de modo transparente e articulado sob a forma de um mapa hipertextual (a imagem da Árvore de Conhecimentos), que possui funções de mapeamento, comunicação e simulação de diferentes cenários hipotéticos. Para mais informações sobre o software e seus usos: http://www.ddic.com.br
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Interface - Comunic, Saúde, Educ
“Como se lê esta árvore? Em primeiro lugar, ela se parece com um mosaico ou com uma árvore pintada por Cézanne...” Pierre Lévy, descrevendo as Árvores de Conhecimento
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LIVROS O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza PRIGOGINE, I. (com a colaboração de Isabelle Stengers) São Paulo: EDUNESP, 1996, 199 p.
Novamente temos Ilya Prigogine tratando da flecha do tempo? Sim, mas, segundo suas palavras, aqui de maneira mais radical que as anteriores. Isso não é de se estranhar, uma vez que o próprio autor indica um claro encadeamento entre seus livros dedicados a um público mais amplo, em que os desenvolvimentos sobre a questão do tempo, - fundamental às idéias de Prigogine sobre a natureza - vêm sendo abordados. Assim, um texto que pretendia apresentar os desenvolvimentos das perspectivas abertas por A nova aliança1 elaborado em conjunto com I. Stengers - projetado inicialmente para ser algumas páginas introdutórias a uma coletânea de artigos - transformou-se no livro Entre o tempo e a eternidade2. Da mesma forma, o preparo de versões para a tradução deste último mostrou a necessidade de escrever O fim das certezas. De fato, seu interesse pelo tempo, que já se manifestava na adolescência, viria a assumir o papel de eixo condutor de suas pesquisas numa produtiva carreira universitária. Os estudos de termodinâmica de não-equilíbrio, com as estruturas dissipativas e o conceito de auto-organização, mostravam já o autor preocupado com o papel da irreversibilidade. Dessa forma, para Prigogine, pensar a
natureza em sua complexidade - e não idealizada como requerem os modelos tanto da física clássica quanto da física quântica - levaria a considerar os processos instáveis a que está associada uma flecha do tempo. Ou seja, a negar a possibilidade de simetria entre passado e futuro, decorrente da abordagem dos fenômenos enquanto sistemas isolados no equilíbrio. O sucesso da aplicação dessas idéias a processos físicos e químicos tornaram Prigogine muito otimista ao propor sua extensão a outras áreas como a biologia, a sociologia e a economia. Assim, esses estudos se tornam importantes ao se pretender pensar o fenômeno da vida, pois, "é graças aos processos irreversíveis associados à flecha do tempo que a natureza realiza suas estruturas mais delicadas e mais complexas. A vida só é possível num universo longe do equilíbrio" (p. 30). Em O fim das certezas Prigogine se propõe a estender a mecânica clássica assim como a mecânica quântica para sistemas dinâmicos instáveis, o que levaria a uma nova formulação das leis fundamentais da natureza. Para isso, o elemento essencial seria "a ruptura da equivalência entre a descrição individual em termos de trajetória e a descrição em termos de conjuntos estatísticos" (p. 94). Dessa forma, as leis da natureza ganhariam um novo sentido, exprimindo possibilidades no lugar de certezas. A argumentação que fundamenta essa proposta de Prigogine se desenrola ao longo do livro pela apresentação de desenvolvimentos da física e das matemáticas do caos e da instabilidade, com
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Prigogine & I. Stengers A nova aliança: a metamorfose da ciência, trad. bras., Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1984.
2
Prigogine & I. Stengers Entre o tempo e a eternidade, trad. bras., São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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LIVROS
destaque para suas aplicações à física newtoniana, à mecânica quântica - incluindo aqui uma nova abordagem da questão do observador-, mas também procurando abranger a relatividade e, por fim, a cosmologia. Nesse ponto, ao abordar a ousada indagação sobre se o tempo teria uma origem definida ou se seria eterno, Prigogine mostra-se receoso de abandonar o terreno dos conhecimentos positivos para mergulhar na ficção científica. Mas, mesmo reconhecendo que a dúvida estará sempre de pé, o autor acrescenta: "temos que unificar relatividade e teoria quântica, levando em conta a instabilidade dos sistemas dinâmicos. A partir daí, a perspectiva muda. A possibilidade de que o tempo não tenha começo, de que o tempo preceda a existência de nosso universo, se torna uma alternativa razoável"(p. 191-2). Apresentado pelo autor como um livro de divulgação "sob uma forma legível e acessível a todos os leitores interessados" O fim das certezas expõe, entretanto, o leitor a incursões em que o conhecimento matemático é fundamental quando se quer participar da discussão. É verdade que Prigogine, em capítulos separados, procura, ora considerar os fenômenos no "sentido intuitivo" ora defini-los "de maneira mais
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GOURMELIN, Habitados pelo acaso
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precisa", abordando, então, com certos detalhes, o sofisticado instrumental matemático que fundamenta e expressa suas idéias sobre a natureza. De qualquer forma, em diversos pontos de seu texto encontramos a expressão: "como mostra qualquer manual", substituindo a demonstração matemática, indicando o direcionamento da obra a um público pelo menos familiarizado com conceitos matemáticos mais avançados. Com a nova formulação das leis da natureza em termos de probabilidades e não de certezas, Prigogine pretende nos colocar não diante de uma "derrota do espírito humano", mas sim vivenciando um "momento privilegiado da história das ciências". A física longe do equilíbrio teria mesmo ensinado a decifrar a "atividade humana, criativa e inovadora [...] como uma amplificação de uma intensificação de traços já presentes no mundo físico" (p.74). A ciência teria deixado de ferir o homem em suas mais caras convicções - destruídas ao longo do tempo como aquela de estar no centro do universo ou de se diferenciar dos animais. Márcia J. H. M. Ferraz Maria Helena Roxo Beltran Programa de pós-graduação em História da Ciência - PUC - SP
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LIVROS
Fragmentos...
CIÊNCIA COM CONSCIÊNCIA Edgard Morin. Mem. Martins: Publicações Europa-América, s. d., 268p. A ciência não é somente uma acumulação de verdades verdadeiras. Digamos mais, continuando Popper: é um campo sempre aberto onde se combatem não só as teorias mas também os princípios da explicação, isto é, também as visões de mundo e os postulados metafísicos. (p. 20)
O conhecimento científico não é o reflexo das leis da natureza. Traz com ele um universo de teorias, de idéias, de paradigmas, o que nos remete, por um lado, para as condições bioantropológicas do conhecimento (porque não há espírito sem cérebro), por outro lado, para o enraizamento cultural, social, histórico das teorias. (p. 21)
É, pois, necessário que toda a ciência se interrogue sobre as suas estruturas ideológicas e o seu enraizamento sociocultural. Aqui, damo-nos conta de que nos falta uma ciência capital, a ciência das coisas do espírito ou noologia, capaz de conceber como e em que condições culturais as idéias se agrupam, se encadeiam, se ajustam umas às outras, constituem sistemas que se auto-regulam, se autodefendem, se automultiplicam, se autoprogramam. Falta-nos uma sociologia do conhecimento científico que seja não só poderosa mas também mais complexa que a ciência que examina. (p. 21)
COMPLEXIDADE A problemática da complexidade permanece marginal. Tanto no O segundo mal-entendido consiste em pensamento científico como no confundir a complexidade e a completidão. ... pensamento epistemológico como O problema da complexidade não é o de estar no pensamento filosófico ... completo, mas sim do incompleto do Curiosamente, a complexidade só conhecimento. ... o pensamento complexo apareceu numa linha marginal tenta ter em linha de conta aquilo de que se entre o engineering e a ciência, desembaraçam, excluindo-o, os tipos na cibernética, a teoria dos mutiladores de pensamento a que chamo sistemas. ... Como a complexidade simplificadores e, portanto, ela luta não só foi tratada marginalmente, ou contra o por autores marginais, incompleto mas O primeiro mal-entendido consiste em conceber como eu próprio, ela sim contra a a complexidade como receita, como resposta, suscita mutilação. em vez de a considerar como desafio e como necessariamente mal(p. 138) incitamento para pensar; acredita-se ... que a entendidos complexidade deve ser um substituto eficaz da fundamentais. (p. 137) simplificação, ... que vai permitir programar e esclarecer. Ou ... concebe-se a complexidade como inimiga da ordem e da clareza. (p. 137)
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Se tentarmos pensar o fato de que somos seres simultaneamente físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, é evidente que a complexidade reside no fato de se tentar conceber a articulação, a identidade e a diferença entre todos estes aspectos, enquanto o pensamento simplificador ou separa estes diferentes aspectos ou os unifica através de uma redução mutiladora. (p. 138)
Não é possível chegar à complexidade através de uma definição prévia; é-nos necessário seguir caminhos de tal forma diversos que podemos perguntar a nós próprios se há complexidades e não uma complexidade. (p. 138) A ambição da complexidade é relatar articulações que são destruídas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento. De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento multidimensional. Não se trata de dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas de respeitar as suas diversas dimensões; (p. 138) Devo, pois, indicar previamente e de uma forma não complexa as diferentes avenidas que conduzem ao ‘desafio da complexidade’. (p. 139)
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A primeira avenida, o primeiro caminho é o da A segunda avenida da complexidade é irredutibilidade do acaso ou a transgressão, nas ciências naturais, da desordem. O acaso e a dos limites daquilo a que poderia desordem brotaram no chamar-se a abstração universalista universo das ciências físicas que eliminava a singularidade, a inicialmente com a irrupção localização e a temporalidade. Assim, do calor, que é agitaçãoa biologia atual já não concebe de colisão-dispersão dos forma nenhuma a espécie como um átomos ou moléculas; quadro geral do qual o indivíduo é um depois com a irrupção das caso singular. Ela concebe a espécie indeterminações viva como uma singularidade que microfísicas, e, finalmente, produz singularidades. A própria vida na explosão originária e na é uma organização singular entre os dispersão tipos existentes de atual do organização físicoA terceira avenida é a da complicação. O cosmos. química. (p. 139) problema da complicação surgiu a partir do (p. 139). momento em que se viu que os fenômenos
ACASO/DESORDEM
Singularidade, Localização, Temporalidade
DESAFIO DA C O M P L E X I D A D E
biológicos e sociais apresentavam um número incalculável de interações, de inter-retroações, um fabuloso enredo que não podia ser informatizado nem mesmo pelo computador mais poderoso, donde o paradoxo de Niels Bohr que diz: ‘As interações que mantêm em vida o organismo de um cão são as que é impossível estudar in vivo. Para as estudar corretamente, seria necessário matar o cão’. (p. 140)
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INTERAÇÕES
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Outro princípio de complexidade (a sexta avenida) é o princípio da organização recursiva. A organização recursiva é a organização cujos efeitos e produtos são necessários à sua própria provocação de efeito e à sua própria produção. Trata-se rigorosamente do problema da autoprodução e da autoorganização. Assim, uma sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas estas interações produzem um todo organizador, o qual retroatua sobre os indivíduos para os co-produzir na sua qualidade de indivíduos humanos, o que eles não seriam se não dispusessem da educação, da linguagem e da cultura. Assim, o processo social é um elo produtivo ininterrupto em que, de alguma forma, os produtos são necessários à produção do que os produz. (p. 142)
AUTOPRODUÇÃO
A sétima avenida em direção à complexidade, a avenida da crise dos conceitos delimitados e claros (sendo delimitação e clareza complementares), quer dizer, a crise da clareza e da separação na explicação. Aí, De qualquer forma, a complexidade surge efetivamente, como dificuldade, como incerteza e não há ruptura como clareza e como resposta. com a grande ... Vemos atualmente que existe uma crise idéia da explicação simples nas ciências cartesiana de biológicas e físicas: desde então, o que que a clareza pareciam ser os resíduos não científicos e a distinção das ciências humanas, a incerteza, a das idéias são desordem, a contradição, a pluralidade, a um sinal da complicação etc., fazem hoje parte de uma sua verdade, problemática geral do conhecimento isto é, que científico. (p. 138) não pode haver verdade que não possa ser expressa de forma clara e nítida. (p. 143) fevereiro, 1999
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Crise de clareza
A quarta avenida abriu-se quando se começou a conceber uma misteriosa relação complementar e, ORDEM/DESORDEM/ORGANIZAÇÃO contudo, logicamente antagônica entre as noções de ordem, de desordem e de organização. É mesmo esse o princípio ‘order from noise’, formulado por Heinz von Foerster em 1959, que se A quinta avenida da complexidade é a da organização. opunha ao princípio clássico ‘order from Aqui surge uma dificuldade lógica; a organização é o order’. O princípio ‘order from noise’ significa que constitui um sistema a partir de elementos que fenômenos ordenados (eu diria diferentes; nela constitui, portanto, uma unidade e, organizados) podem nascer de uma agitação simultaneamente, uma multiplicidade. A complexidade ou de uma turbulência desordenada. Assim, lógica da unitas multiplex exige-nos que não os trabalhos de Prigogine mostraram que dissolvamos o múltiplo no uno, nem o uno no estruturas em turbilhão coerentes podiam múltiplo. (p. 140) nascer de perturbações que deveriam aparentemente resolver-se em turbulências. É UNIDADE/MULTIPLICIDADE neste sentido que emerge perante o nosso entendimento o problema de uma relação misteriosa entre a ordem, a desordem e a organização. (p. 140)
LIVROS
que é a reintrodução da incerteza num conhecimento que tinha partido em triunfo à conquista da certeza absoluta. É preciso pôr luto por este absoluto. Mas o aspecto positivo, o aspecto progressivo que pode dar a resposta ao desafio da complexidade é o ponto de partida para um pensamento multidimensional. (p. 147)
VERDADE ABSOLUTA/
A tudo isso acresce um problema-chave, que é o problema da contradição. A lógica clássica tinha valor de verdade absoluta e geral e, desde que se chegasse a uma contradição, o pensamento devia fazer marcha atrás; a É necessário, por fim e especialmente, contradição era o sinal de encontrar o caminho de um pensamento alarme que indicava o erro. dialógico. (p. 147) Ora, Bohr notou, a meu ver, um acontecimento de ... significa que duas lógicas, dois princípios importância epistemológica estão unidos sem que a dualidade se perca fundamental quando, não por nesta unidade. (p. 148) fadiga mas por consciência dos limites da lógica, suspendeu o grande jogo entre a concepção corpuscular e a concepção ondulatória da partícula, declarando que era necessário aceitar a contradição entre as duas noções tornadas complementares, visto que as experiências levavam racionalmente a esta contradição. (p. 145-146) 164 Interface - Comunic, Saúde, Educ 4
CONTRADIÇÃO
Pensamento dialógico
observador/observação
A oitava avenida da complexidade é o retorno do observador à sua observação. Nas ciências sociais, era de uma forma absolutamente ilusória que se julgava eliminar o observador. O sociólogo não está apenas na sociedade; de acordo com a concepção hologramática, a sociedade também está nele; ele está possuído pela cultura que possui. ... O observadorconceptor deve integrar-se na sua observação e na sua concepção. Deve tentar conceber o seu hic et nunc sociocultural. ... O problema do observador não se limita às ciências antropossociais; As diversas complexidades que evoquei (a complicação, a doravante, diz respeito às ciências desordem, a contradição, a dificuldade lógica, os físicas; de forma que o observador problemas da organização etc.), tudo isto tece a perturba a observação microfísica complexidade: complexus é o que é tecido em conjunto; (Heisenberg). (p. 144) é o tecido obtido a partir de fios diferentes e que se transformaram num só. Por outras palavras, tudo isso se cruza e volta a cruzar, se tece e volta a tecer, para formar a unidade da complexidade; mas a unidade do Certeza/Incerteza complexus não destrói a variedade nem a diversidade das complexidades que a A complexidade parece teceram. (p. 147) negativa ou regressiva, visto
LIVROS
A própria ciência obedece à dialógica. ... Caminha com a pata do empirismo e com a pata da racionalidade, com a da imaginação e com a da verificação. Ora, há sempre dualidade e conflito entre as visões empíricas que, em última análise, são puramente pragmáticas e as visões racionalistas que, em última análise, se tornam racionalizadoras e lançam para fora da realidade o que escapa à sua sistematização. Assim, Parte/Todo racionalidade e empirismo mantêm uma dialógica fecunda entre a vontade da razão de agarrar todo o real O princípio dialógico e a resistência do real à razão. Ao mesmo tempo, é ... o confronto existem complementaridade e antagonismo entre a com a dificuldade imaginação que faz as hipóteses e a verificação que as do combate com o seleciona. Por outras palavras, a ciência fundamenta-se real. Ao princípio na dialógica entre a imaginação e dialógico deve verificação, empirismo e racionalismo. (p. 148) juntar-se o princípio hologramático, em CONFLITO que, de certa forma, como num A complexidade não nega as holograma, o todo formidáveis aquisições do que está na parte que puderam ser, por exemplo, a está no todo. Assim, unidade das leis newtonianas, a de alguma maneira, unificação da massa e da energia, a a totalidade da unidade do código biológico. Mas nossa informação estas unificações não são genética está em suficientes para conceber a cada uma das extraordinária diversidade dos nossas células e a fenômenos e o devir aleatório do sociedade enquanto mundo. (p. 149) ‘todo’ está presente nos nossos espíritos via a cultura que nos formou e ESTRATÉGIA informou. (p. 148) O problema da complexidade não é formular programas que os espíritos podem instalar no seu computador mental. .. A complexidade faz apelo à estratégia. Só a estratégia pode ajudar a avançar no incerto e no aleatório. ... A estratégia é a arte de utilizar as informações que surgem durante a ação, integrá-las, formular subitamente esquemas de ação e ser capaz de reunir o máximo de certezas para defrontar o incerto. (p. 149) O imperativo da complexidade, neste sentido, é a utilização estratégica daquilo a que chamo dialógica. ... (p. 150)
Princípio Hologramático
Imaginação/Verificação
Empirismo/Racionalismo
Texto selecionado por Angelina Batista Departamento de Educação Instituto de Biociências - Unesp - Botucatu
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FRANTZ WALTHER, Espaço de possibilidades ou distribuição de probabilidades "49 elementos/sol", 1963
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T E S E S
Corpo e Sexualidade através das imagens em vídeo Este estudo teve por objetivo analisar as imagens do corpo vinculadas ao comportamento sexual e reprodutivo nos processos de comunicação mediados pelos chamados vídeos educativos. Buscou-se caracterizar, na relação do sujeito com a tecnologia, os discursos e a direção do olhar que conformam, na atualidade, práticas educativas em saúde. Enfatizando as possibilidades de relações que o vídeo apresenta entre os sujeitos que compõem o texto (enunciador e representado) e profissionais de saúde, por meio dos discursos nas interações com as mensagens, procurou-se identificar questões de natureza social e subjetiva que conformam a base de uma determinada visão do corpo, da sexualidade e das relações de gênero. A partir de três videotecas governamentais e seis não governamentais constituiu-se um banco de Imagens de sessenta títulos. O desenho do estudo teve como sujeitos profissionais de saúde da rede pública do Rio de Janeiro, no período de 1996-1997. A análise, apoiada nos conceitos corpo, sexualidade, identidade social e imagem, voltou-se para a abordagem dos fenômenos educacionais e de comunicação em seus aspectos relacionais, com relevância aos elementos culturais, subjetivos e simbólicos vinculados à clientela/público receptor. Observaram-se concepções de sexualidade generalizantes e de relações de gênero pouco relativizadas quanto ao significado atribuído à experiência sexual e, conseqüentemente, indiferenciação de grupos, culturalmente definidos, na atribuição de significados ao corpo. Eliane Portes Vargas
O saber da experiência docente na formação inicial de professores - o estágio na sala 14 A compreensão de que reformulações necessárias no processo de formação inicial de professores exigem atribuição de um papel mais significativo à experiência docente e aos saberes dela oriundos durante esse período gerou a investigação de um estágio supervisionado, conhecido como Sala 14, que priorizava essa experiência. Esse estágio foi realizado durante quinze anos no curso de Pedagogia - Habilitação em Educação Especial - área Deficientes Mentais, na Faculdade de Filosofia e Ciências/Unesp - Campus de Marília. A análise dos dados obtidos a partir de observações, entrevistas, questionários e análise de documentos permitiu a identificação dos saberes elaborados pelas estagiárias - saber do ser, saber do seu ser e saber ser - e de condições do estágio que favoreceram essa elaboração - ação, reflexão e supervisão, revelando a possibilidade, e não apenas a necessidade, da formação inicial de professores reflexivos a partir da experiência docente refletida e assistida. Luciana M. Lunardi Campos
Dissertação de Mestrado, 1998
Tese de Doutorado, 1998
Universidade Federal do Rio de Janeiro/Núcleo de
Programa de Pós-Graduação em Educação
Tecnologia Educacional para a Saúde
Faculdade de Filosofia e Ciências Unesp - Marília
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TESES
O idealismo de Hegel e o materialismo de Marx: demarcações questionadas
EDOUARD MANET, O filósofo
Hegel e Marx têm sido relacionados na História da Filosofia pela redução de um ao outro, pela exclusão de um em relação ao outro e ainda pela completitude entre eles. O que é investigado aqui é precisamente a relação que afirma a complementaridade entre eles. Não se busca anular a diferença que distingue um do outro, mas recuperar a aproximação que a mesma diferença viabiliza. A mencionada aproximação entre Hegel e Marx é procurada na dialética idealismomaterialismo. Hegel é marcadamente idealista e Marx, por sua vez, materialista, mas até que ponto ambos encontram-se enclausurados em si mesmos e afastados da posição do outro? Da análise do que Hegel pensava sobre o idealismo e sobre o materialismo e do que Marx pensava sobre o idealismo de Hegel e sobre o materialismo depreende-se que tanto um quanto outro invadem o campo alheio. Se isso não atesta a assunção dos posicionamentos do outro, também não
possibilita uma desconsideração cabal do contrário. Em outras palavras, Hegel não evitou o materialismo e o mesmo não fez Marx com o idealismo. O momento da passagem do idealismo pelo materialismo e vice-versa é um momento de superação, que ocorre necessariamente por esse caminho. Procurando aprofundar e oferecer sustentação a essa tese, realizou-se a busca do materialismo na ontologia, na epistemologia e na história em Hegel e, por outro lado, as indicações da presença do idealismo na ontologia, na epistemologia e na história em Marx. Obviamente, a ontologia, a epistemologia e a história não são vistas em separado nem por Hegel nem por Marx. Por isso a abordagem empreendida intenciona uma exposição para efeito de melhor compreensão. A consideração dos textos de Hegel permite apontar para a materialidade do Espírito mesmo que ela seja resultante deste, pois a exteriorização do Espírito nas diversas formas de matéria é o que garante o ser em-si. Não há em-si sem o para-si. O infinito depende do finito. A dependência é uma necessidade, mas é o único fundamento da liberdade. A obra de Marx insiste na primazia da materialidade e essa insistência abre espaço ao Espírito, à idealidade, ao constituir a premência de uma explicitação. Esta não acontece sem referenciais postos antes e que projetam o depois. A realidade dada não se abre por completo, posto que o dado é também um em-si que precisa ser tomado no para-si da idéia para ser atingido. Hegel e Marx também são um sem o outro, mas enquanto empenharam-se em buscar o real parece que, unidos pela diferença, compõem melhor o todo tão perseguido. Pedro Geraldo Novelli Tese de Doutorado, 1998 Programa de Pós-graduação em História e Filosofia da Educação Faculdade de Educação, Unicamp
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Investigou-se, no período de 1988 a 1993, o que o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, HC-FMB, ofereceu à população em termos de atenção à saúde, na área das doenças do aparelho circulatório, e quem foram os pacientes atendidos. O prontuário médico serviu como fonte de informação para análise dos dados referentes ao processo de atendimento-tratamento. A prática de atendimento e tratamento, no âmbito de um hospital geral, público e universitário, constitui uma das principais estratégias pedagógicas que estruturam a formação do profissional de saúde. Os dados contidos nos prontuários médicos registram a participação da comunidade universitária alunos, médicos-residentes, médicos e docentes - no processo de atendimentotratamento, trazendo informações que permitem refletir o processo de ensinoaprendizagem na área de saúde. A pesquisa utilizou três grupos de pacientes. O GRUPO 1, composto pelo conjunto de pacientes acompanhados pela instituição, revela o que o HC-FMB vem oferecendo à população em termos de atenção à saúde voltada para as doenças do aparelho circulatório. O GRUPO 2 expressa o conjunto de pacientes que foi a óbito. Submetidos à necropsia, a análise dos dados, por meio da relação entre o diagnóstico definitivo e o da causa básica de morte, evidencia a concordância dos diagnósticos no processo de atendimento e tratamento. O GRUPO 3,
integrando todos os pacientes, permite caracterizar as doenças do aparelho circulatório e conhecer o perfil dos pacientes atendidos no HC/FMB no período estudado. A análise dos dados levantados a partir do prontuário médico possibilitou apreender as relações de sentido que envolveram a construção do diagnóstico definitivo pela aplicação de saberes frente às doenças do aparelho circulatório, colocando em evidência os processos de atendimento e tratamento e de ensino-aprendizagem voltado para a formação médica na área das doenças do aparelho circulatório.
Reinaldo Ayer de Oliveira Tese de Doutorado, 1998 Programa de Pós-Graduação em Patologia Faculdade de Medicina de Botucatu/UNESP
FRIDA KHALO, O coração, 1937
Estudo de pacientes portadores de doenças do aparelho circulatório atendidos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu: período 1988 - 1993
fevereiro, 1999
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Imagens veladas, imagens re-veladas: narrativas da aids nos escritos do jornal Folha de São Paulo Rosana de Lima Soares (ECA-USP)
Resenha Desde o título, essa dissertação de mestrado, orientada por Jeanne Marie Machado de Freitas e defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP, deixa clara a opção teórica subentendida pela pesquisa: o caráter autônomo das significações, das qualidades do mundo sensível, que se manifestam como categorias discursivas, alimentando os processos de reconhecimento do vivido. Nesse sentido, não se apresenta como mais uma reflexão sobre a Aids – tema atual e recorrente de investigação – mas como uma proposta sobre o modo pelo qual a própria doença é elaborada e reelaborada pelos sujeitos a partir das mensagens veiculadas pelo jornal paulista Folha de São Paulo, entre 1994 e 1995. Para desenvolver o modo de elaboração da Aids, a autora parte do pressuposto de que o jornalismo não pode ser considerado como forma espontânea de organização da escrita, que se vale da linguagem como instrumento. Reconhecer, ao contrário, que tal atividade se desenvolve no universo da linguagem induz necessariamente a admitir que seu produto – a notícia – não é apenas um dado informativo que se esgota em si mesmo. Fato e informação não gozam de autonomia, não cabendo, portanto, indagar como o fato – no caso, a Aids – é veiculado e a informação é transmitida. De maneira específica, ao introduzir o jornalismo no âmbito das Ciências da Linguagem, a presente pesquisa procura determinar não só o modo de construção do dito mas também suas articulações internas, responsáveis pela exposição do simbólico. O jornalismo, neste sentido, define-se como ação simbólica, que se caracteriza prioritariamente por “fabricar” realidades. O discurso jornalístico, ao exercer a ação assinalada, institui simultaneamente os sujeitos do ato comunicativo e a realidade, permitindo 170
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que se entenda com maior precisão o objetivo da pesquisa, qual seja o de determinar o modo pelo qual a Aids se propõe como realidade. Trata-se, então, de analisar o modo de manifestação dessa doença no jornal, isolandose o percurso narrativo de sua história, que não se confunde – como podem pretender os desavisados – com a análise do modo pelo qual o jornal criou o discurso da Aids. Essa não é, porém, uma diferença circunstancial, pois evidencia de maneira inequívoca que a investigação irá acatar, com todas as conseqüências provenientes dessa opção, o fato de que a existência da doença encontra-se indissociável da linguagem que a enuncia. Verifica-se objetivamente este aspecto desde sua nomeação até a elaboração da rede narrativa das notícias, que responde não só pela realidade discursiva da doença mas também e principalmente pelas configurações simbólicas que fazem com que a Aids seja vivida de um certo modo. Em suma: a Aids existe porque participa de uma realidade discursiva. Organizada em dois volumes (o segundo volume apresenta os anexos – íntegra das matérias e páginas do jornal), a dissertação, nos seus dois capítulos do primeiro volume, apresenta, de maneira clara, o quadro teórico de referência de que se vale, argumentando sobre a importância que tem para os estudos da comunicação a articulação do fato à ordem social, o que permite defini-lo em sua dimensão simbólica, isto é, como construção no interior da linguagem. Este pressuposto, que problematiza a autonomia da informação, relaciona a pesquisa ao conjunto de investigações empreendido pelo Núcleo de Estudos da Linguagem do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, confirmando que o resultado obtido pela investigação individual tem sua qualidade potencializada pela dimensão coletiva da construção teórica que o alicerça. O referencial teórico elaborado apresentase como sistema conceitual híbrido cujos elementos encontram-se perfeitamente harmonizados para compor o trajeto que desloca o jornalismo das ciências sociais para as ciências da linguagem. A pesquisadora opera este deslocamento com extrema habilidade, inspirando-se nas teorias lingüísticas de natureza saussureana, na semiótica
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greimasiana, na etnologia de Lévi-Strauss e na psicanálise freudiana a partir da leitura de Lacan. A partir daí, monta o sistema conceitual que concebe o jornalismo como uma atividade criadora. Isto é, o jornalismo não pressupõe uma realidade pré-existente ao ato narrativo (especificamente o ato de tornar público o que por direito é de domínio público), que será objetivada pela notícia. Baseando-se em Gans, que atribui ao jornalista a função, entre outras, de elaborar imagens representativas e compreensivas da realidade, a pesquisadora, concordando com Schudson, defende a substituição da idéia de notícia como ato informativo por aquela que a associa a produto cultural. A idéia em questão é a de que o núcleo caracterizador da atividade jornalística é o estabelecimento de uma ordem simbólica da realidade, um arranjo da vida social na e pela linguagem. Essa não é uma afirmação destinada a ter um efeito de sentido qualquer. Ao contrário, ao adotá-la, identificam-se com clareza os equívocos provenientes das concepções usuais que consideram atos comunicativos aqueles destinados prioritariamente a tornar disponíveis informações. Inserem-se aí, por exemplo, as inúmeras discussões relacionadas ao pequeno efeito prático das campanhas de prevenção, embora sejam consideradas altamente informativas. De fato, a observação isolada da informação – do dado, portanto – pouco acrescenta ao entendimento que os segmentos sociais têm sobre a Aids porque não considera a ordem simbólica que regula as representações da doença. O capítulo 3 apresenta sinteticamente a história da Aids a partir da década de 80, caracterizando-a como doença singular, com forte componente “moral”, de início associada à categoria, pouco usual até então, de “grupo de risco”, o que permitiu relacioná-la aos comportamentos desviantes ligados à homossexualidade, primeiramente, e aos usuários de drogas injetáveis, mais tardiamente, compondo um universo privilegiado para a instalação do preconceito. Entende-se, também, nessa perspectiva, algumas dificuldades para a transmissão de determinados dados de caráter preventivo da doença, tais como a universalização das formas de contágio e a latência do vírus, que pode se
instalar no organismo humano e ficar oculto durante anos. Nesse capítulo, fica igualmente evidente que a singularidade da doença não possibilita integrá-la aos quadros interpretativos consensuais de “doença”, que vigoraram até então. O modo de tratar esta singularidade encontra-se explicitado nos desvios narrativos de diferentes ordens: enfatiza-se o doente e não a doença (ao hepatético não se pergunta como contraiu a doença, ao “aidético” essa é uma pergunta infalível), outras vezes a Aids não é mencionada claramente mas sua presença é reconhecida pela enunciação de suas associações próximas: o sexo e a morte. Os capítulos 4 e 5, intitulados respectivamente Primeiras leituras, temáticas da aids: narrativas e Segundas leituras, recorrências da aids: escritos, destinam-se à análise do corpus, composto por 31 matérias que tratam do tema Aids presentes no jornal Folha de São Paulo, publicadas em 1994 e 1995. Sua constituição respondeu aos critérios de amostragem propostos por Curran e Staton e ao critério de atualidade, que responde pelo estado atual das configurações narrativas da doença. A primeira análise, de cunho descritivo e quantitativo, trata as matérias a partir das edições em que aparecem, estabelecendo uma subdivisão dos textos narrativos nas seguintes categorias: Estado (legislação, saúde pública, convênios médicos), Pessoas (soropositivos, homossexuais, pessoas afetadas ou não pela doença), Ciência (descobertas científicas, informações médicas, medicamentos, testes de novos remédios) e Questões Sociais (grupos organizados, eventos, drogas). Por essa primeira organização quantitativa do corpus, são propostas as distribuições das freqüências dos grupos temáticos nos jornais. Confirmando que o doente é mais importante que a doença, verifica-se que em termos absolutos a maior freqüência entre os temas assinalados é o de Pessoas. A seguir aparece o Estado, seguido por Ciência e Questões Sociais. Tematicamente, portanto, são privilegiados o doente e o tratamento. Para proceder à segunda análise do corpus (capítulo 5), de natureza qualitativa, intervém o referencial teórico já desenvolvido, enfatizando-se de maneira direta o conceito de “aparelho formal da enunciação” tal como é fevereiro, 1999
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proposto por Benveniste. A partir dele determina-se o quadro de realização do discurso jornalístico segundo seus elementos constitutivos: o ato de produção em si mesmo, as condições do fazer jornalístico e os instrumentos de sua realização. A análise empreendida não dá conta apenas das marcas da enunciação que parecem próprias do jornalismo, mas enfatiza também o modo como se dá a construção do mecanismo de referência no próprio ato de enunciação, argumentando-se que o mesmo não se apresenta a priori ao discurso. Assim, os temas já reconhecidos não são dados da realidade, mas referências construídas discursivamente que passam então a funcionar como aspectos da realidade, ou como realidades. Justifica-se, portanto, a hipótese inicial do trabalho: a Aids é o que significa discursivamente. De modo específico, as intermediações referenciais – restritas agora às categorias Estado, Ciência e Homossexualidade – estabelecem a relação entre o leitor e o jornal, determinando os lugares dos protagonistas: o narrador-jornalista, a doença, o doente, o leitor. Tais lugares encontram-se, quaisquer que sejam as estratégias utilizadas, subsumidos pela oposição geral entre o bem e o mal, que acaba introduzindo grande parte das configurações imaginárias da doença nos universos religioso e mítico, relacionando-a, desse modo, aos traços de transcendência próprios da remissão do pecado, aos modos de salvação. As narrativas da Aids seguem o modelo clássico: a Aids é um dano que necessita ser reparado. Como a fonte do simbólico é a linguagem, as representações originadas no imaginário encontram suas motivações nas significações e não no fato. Sob o ponto de vista de sua institucionalização, o discurso jornalístico torna pública a narrativa da Aids, isto é, faz pública a narrativa passível de socializar a doença de modo que seja reconhecida pelos indivíduos singulares – os leitores. Nesse sentido, os quadros de referências produzidos narrativamente, no discurso institucional tal como aqui se encontra caracterizado, permitem que os indivíduos se integrem à malha social, adaptando-se às condições que regulam os modos de convivência. Entende-se, desse modo, que tornar público é uma tarefa que exige associar à narrativa da Aids a função de 172
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introduzir e desenvolver os operadores de sentido necessários para reconhecê-la e vivenciá-la não só em sua significância mas também em sua simbolização. Ambos os planos – o primeiro necessário porque introduz o contrato que regula a doença e o segundo importante para revelar os mecanismos que funcionam na sociedade – individualizam o que é a doença, determinam o modo como é vivida e se encontram materializados na notícia. Em suma, dando conta de que a existência da doença não se encontra circunscrita ao que é comunicado por meio de fórmulas rotineiras e previsíveis, a presente pesquisa desloca o jornalismo como atividade de registro para a ação de dizer, isto é, da organização descritiva para a produção. Ao explorar os processos inerentes do ato enunciativo, evidencia que o discurso não reflete estados já dados mas constrói estados de coisas, isto é, tematiza situações cujos atores não podem ser concebidos e conhecidos antecipadamente. Dito isto, é natural reconhecer a importância do simbólico e de sua influência no imaginário, e vice-versa, para a constituição da realidade cujo fundamento é dado pelas formas significantes. Finalizando a dissertação, as conclusões – qualificadas de provisórias – apresentam uma “releitura das leituras empreendidas”, introduzindo a Aids no universo temático das narrativas contemporâneas. Nesse quadro, a Aids tem seu sentido relacionado aos nossos tempo e espaço específicos. Escapa a uma organização prévia, promovendo transformações e mudanças sociais. Participa do conjunto de narrativas que reformulam nossos universos imaginários e possibilitam aos indivíduos se reconhecerem através de referências inusitadas que deixam à mostra a distância entre o que se conhece e o que se sabe. É nesse intervalo produzido pela desproporção entre os dois universos, que se desenvolvem os valores míticos. É por causa dele também que nenhuma narrativa encontrase finalizada, o que nos coloca inevitavelmente frente a frente com a provisoriedade, traço determinante da atividade intencional, porque humana, da produção de sentido. Maria de Fátima G. Moreira Tálamo Departamento de Biblioteconomia Escola de Comunicações e Artes USP
NOTAS BREVES
O projeto vide.o.parto, uma parceria entre o Departamento de Enfermagem do Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo e o Centro de Saúde Escola (CSE) Samuel Barnsley Pessoa (Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) teve início em março de 1998 e tem o seu fim (o lançamento do produto final) previsto para março de 1999. Seu objetivo principal é a realização de um vídeo sobre o parto, tal como ele costuma se dar no Hospital Universitário da USP, cuja maternidade pública presta assistência a diversas comunidades do bairro do Butantã, na cidade de São Paulo. Trata-se de um trabalho de cunho documental, próximo de uma abordagem etnográfica, mas de caráter bastante particular, uma vez que propõe a algumas gestantes, num dado período
de suas gestações, a realização de uma pesquisa comum sobre as imagens do parto. Como meio básico, utiliza-se a fotografia. O vídeo registra o desenvolvimento da pesquisa fotográfica e mais toda a experiência com as imagens, que deve, em princípio, alimentar a discussão a respeito de quais as “melhores” imagens do parto. É no transcorrer dessa pesquisa que as fotógrafas poderão partilhar conosco, através do vídeo, um pouco de suas vivências da gestação e do parto. A realização desta proposta de trabalho tem como pré-condição a existência de um autêntico interesse comum, estabelecido como acordo entre realizadores do vídeo e gestantes/parturientes, de se pesquisar sobre as imagens do parto, tendo como objetivo mais imediatamente colocado para cada gestante a pesquisa sobre as melhores condições de captação das imagens do seu próprio parto. Pretende-se, com isso, encontrar não apenas as “melhores”, mas também as mais legítimas condições de registro em vídeo do nascimento de seres humanos ou, mais precisamente, do momento do parto e das algumas semanas que o antecedem e sucedem.
fevereiro, 1999
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NOTAS BREVES
Finalidade A finalidade primária do vídeo está dada no âmbito de um outro projeto, mais amplo, também promovido pela mencionada parceria HU/CSE, que visa a uma maior integração da assistência à gestação, parto e puerpério, prestada pelas duas instituições. Com este fim, pretende-se a elaboração de um conjunto articulado de meios (folder, visitas guiadas à maternidade e vídeo). Contudo, entre todos os meios propostos, o vídeo desempenha um papel especial, já que dele se espera a realização de uma singular modalidade de integração do processo assistencial: aquela capaz de se dar através das imagens. Para realizadores de vídeo realmente interessados em tratar com seriedade as intervenções que tocam a comunicação e a cultura, esse problema mais geral das imagens como mediadoras da experiência humana assume uma importância central. Mais ainda, quando se trata de estar captando imagens do parto. Questões Com que imagens “falar de”, descrever, mostrar tal acontecimento? O objetivo não é o de meramente registrar em vídeo um parto no HU, mas o de problematizar, desde o princípio, os sentidos da produção de tais imagens: para que? para quem? por que? como? Trata-se, particularmente, de se interrogar a respeito de “quais” as imagens para representar o parto. Não apenas enfrentar as dificuldades inerentes à realização de um vídeo sobre o parto, qualquer que seja o ponto de vista adotado, mas assumir como questão de primeira grandeza a própria realização de um vídeo do parto, no sentido de se estar produzindo uma visão do parto humano. A realização de um vídeo com tais objetivos e compromissos já é, por si só, uma tarefa difícil. Tem-se ainda, como dificuldades adicionais o seu equacionamento no exíguo tempo fixado pelas demandas administrativas
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que justificam o projeto maior, além dos problemas “de observação” colocados pelo fato dos realizadores diretos do vídeo pertencerem aos quadros das instituições de saúde envolvidas. Com intuito de responder a este conjunto de desafios, formulou-se uma estratégia em três tempos. Estratégia Está fundada num simples princípio: o estabelecimento de um diálogo sistemático com os diversos atores envolvidos com o acontecimento em foco. Consiste, fundamentalmente, na criação de algumas oportunidades de encontros - ou no aproveitamento de oportunidades de encontro já criadas, como as visitas à maternidade, realizadas pelas gestantes durante o pré-natal no CSE -, para se aprofundar a discussão sobre as imagens e, cada vez mais concentradamente, sobre as imagens do parto. Nestes encontros, a imagem poderia ou não estar presente, a depender de propostas que pudessem emergir dos diferentes grupos em interação ou das negociações e autorizações quanto ao uso de imagens no processo. Foi, então, proposta a seguinte série de encontros e/ou intervenções em encontros, que correspondessem a fases sucessivas de uma aproximação gradual do acontecimento, que ganhariam intensidade na medida em que se aproximassem as datas dos partos a serem gravados. 1) Encontros preliminares com os trabalhadores das instituições de assistência: nestes encontros, a proposta geral do projeto foi apresentada ao conjunto dos profissionais das duas instituições que estão mais diretamente envolvidos com a atenção às gestantes e às parturientes, abrindo-se para as críticas e sugestões ao projeto, bem como para as experiências destes profissionais no lidar com este processo sócio-vital e suas práticas de saúde correlatas. Nestes encontros, não só foram discutidas as expectativas das equipes em
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relação ao produto final do projeto (isto é, o vídeo), mas também foram apontadas as primeiras pistas na busca das imagens. (Etapa cumprida entre março e maio de 98) 2) Visitas de grupos de gestantes à maternidade, com a realização de fotografias: foi a primeira etapa em que se previu a participação das gestantes e o uso de imagens, no caso, a fotografia. Valendo-se das visitas programadas das gestantes à maternidade do HU, que já fazem parte das atividades regulares do pré-natal no CSE, foram distribuídas máquinas fotográficas de uso simplificado com filme de 24 poses às gestantes participantes de três grupos de visita. Um encontro subsequente com estas gestantes para a discussão das imagens produzidas foi agendado e, àquelas que se dispusessem, foi proposta uma entrevista individual gravada sobre a experiência com as fotos. (Etapa cumprida em junho e julho de 98, com a participação de 24 gestantes) 3) Proposta de pesquisa fotográfica sobre as imagens do parto feita a um pequeno número de gestantes, que concordassem em ter seus partos gravados e realizar encontros gravados nas semanas finais da gestação: trata-se, evidentemente, da etapa principal, por incluir a gravação dos partos e dos encontros que se deram nas semanas que o antecederam. Para esta etapa, foi selecionado um pequeno número de gestantes dos três grupos com os quais já havia sido feito contato nas visitas fotográficas à maternidade. Os principais critérios para esta seleção foram: a) data esperada do parto que se adequasse ao cronograma do projeto; b) sensibilidade e perspicácia quanto à proposta de investigação sobre as imagens; c) desejo efetivo de participar do projeto e anuência às condições exigidas (conforme “consentimento informado” por escrito). (Etapa cumprida entre agosto e outubro de 98, envolvendo três gestantes/parturientes. Cumpre destacar, por seu caráter extremamente auspicioso, que as gestantes selecionadas para esta etapa do projeto manifestaram espontaneamente o desejo de
participar, antes de qualquer convite direto por parte dos coordenadores). Resultados Cumpridas as três etapas, tem-se em mãos o material bruto para a edição final do vídeo e mais alguns subprodutos interessantes deste processo de produção de imagens. Primeiramente, passa-se a contar com um amplo acervo de imagens fotográficas produzidas pelas gestantes, tanto no HU, quanto em seus espaços de vida cotidiana, tendo como temática focal o parto. Outro subproduto interessante é o website do projeto (http://members.xoom.com/ videoparto) que, além de funcionar como uma espécie de relatório da sua execução em “tempo real”, serve também como mais um veículo de divulgação de imagens, informações e outros produtos intelectuais acumulados ao longo da confecção do vídeo. É pelo website que o leitor poderá saber mais sobre o projeto e seus produtos, para além do que está contido nesta “nota breve”. Poderá também entrar em contato com a equipe de produção. O resultado principal deste projeto – o vídeo – tem sua conclusão prevista para março de 1999, contando-se os últimos meses de trabalho para: - discussão do material produzido com as gestantes e obtenção do seu aval final para a inclusão na edição definitiva; - minutagem dos copiões, decupagem técnica e edição propriamente dita; - digitalizações para eventuais tratamentos gráficos e geração de caracteres; - produção e inclusão de trilha sonora original.
Ricardo Rodrigues Teixeira Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa Depto. de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)
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TLAZOLTEOLTL, deusa asteca da fertilidade, parindo
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AIDS (por exemplo) : o que quer dizer "eu tenho informação"? Fernando Lefévre1
No que toca à AIDS (não por ela, em si, mas porque a síndrome dá mais visibilidade ao tema) ouve-se e lê-se, com freqüência, de bocas e penas supostamente autorizadas, que a população, aqui e alhures, já tem informação, que já sabe o suficiente; mas que, a despeito disso, a epidemia não pára de crescer. Daí tiram-se conclusões: é preciso fazer mais e outras coisas, como por exemplo, distribuir gratuitamente ou vender camisinhas a baixo custo etc. Não se costuma parar para pensar no quanto de arrogância sanitária ou epidemiológica tais afirmações e conclusões carregam: para essas cabeças emissoras o mundo saudável é e só pode ser aquele dirigido por e/ou integralmente submisso à lógica sanitária ou epidemiológica do: se não me obedecer, morre. Graças a Deus, que (como atesta o mito bíblico - não o televisual - da Torre de Babel) nos fez diferentes, o leigo não-sanitárioepidemiólogo além de saber que não se pega AIDS na piscina ou no aperto de mão e, sobretudo, usando camisinha, também sabe (para a infelicidade do sanitarista epidemiólogo) que a camisinha, com sua inevitável plastificação da carne, é um inequívoco signo de desconfiança que, além de inviabilizar, necessariamente macula uma relação humana como a conjunção carnal, que só pode ser decente se baseada justamente na confiança. Mas será esta última informação considerada, oficialmente, um saber? Qualquer que seja a resposta oficial a esta questão resta o fato de que a camisinha é, também, doença. Afinal, podem os homens ser
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considerados sadios quando, em atividade sexual, tiverem, sempre, em todas as circunstâncias, usando camisinha e, portanto, sempre e em todas as circunstâncias, como se preconiza, desconfiando uns dos outros? É este o mundo sadio dos sanitaristas e epidemiólogos? A partir do exemplo da AIDS, cabe, então, a pergunta: quando se trata de saúde e doença, o que quer dizer: informação ou estar informado? Uma resposta adequada a esta questão, creio, tem a ver com o modelo de informação adotado. Nesta linha parece que podemos confrontar dois modelos antagônicos: a) o modelo que pressupõe uma comunicação vetorizada, do centro, locus do saber técnico científico, em direção à periferia, locus do não saber ou do saber desqualificado; b) o modelo onde a informação não é vetorizada mas trocada, nas diversas “arenas” existentes (na Internet por exemplo, porque não?) e vista como insumo imprescindível para que se possa enfrentar, sem hipocrizia, como em uma psicanálise coletiva, as chagas, os problemas, as dificuldades que, como todos sabemos, estão na raiz de quase todos os nossos males, do corpo e do espírito. O que nos une como seres humanos são nossas mazelas coletivas, das quais jamais conseguiremos dar conta enquanto as sociedades forem baseadas no poder (da grana, do “tresoitão” ou do saber sanitário, pouco importa) de uns sobre outros. Em matéria de informação para a saúde, ou todos sabemos, sem qualquer prejulgamento sobre nossos respectivos saberes, ou estaremos entrando, de cheio, na era da barbárie hightech.
Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - USP.
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NOTAS BREVES
COCTEAU, Desintoxicação, 1929
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Projeto Internos: a fotografia no hospital Haná Vaisman
É impossível ficar três meses lidando com uma pessoa todo dia e falar que ela é só paciente e você só médico. Você acaba tendo preocupações maiores. Quer que ela saia de lá, que volte para a cidade onde vive, que se dê bem. Você não quer apenas que ela fique curada.
HANÁ VAISMAN
“O mundo é um imenso Narciso ocupado no ato de se pensar: onde ele se pensaria melhor que em suas imagens?” (Gaston Bachelard a respeito de Joaquim Gasquet, em “A Água e os Sonhos”)
Todos nós já nos divertimos com essa cena: num local de interesse turístico, um grande ônibus pára. Descem, então, quarenta apressados indivíduos que sacam suas câmeras fotográficas e registram uma imagem. Entram novamente no ônibus, que arranca deixando atrás de si a paisagem vazia. Como não há tempo, a fotografia surge como um recurso para a contemplação tardia, uma prova de que se esteve lá, permitindo ao autor que se detenha e observe com distanciamento aquilo que o impressionou. Fazer uma foto é uma tentativa de se apropriar do mundo, de ter consigo um pedaço dele. De posse da fotografia é como se descobríssemos detalhes e expressões que seriam invisíveis a “olho nu”. Não apenas a imagem produzida tem valor. Fotografar inclui uma ação que freqüentemente valoriza o acontecimento que é objeto da atenção do fotógrafo. Muitas das películas impressionadas não são jamais entregues para serem reveladas e entre as que são confiadas a um laboratório, uma proporção considerável não é retirada. O ato de fotografar contribui, sozinho, para transformar o acontecimento em algo excepcional e aquele que fotografa ganha um lugar especial no seio do acontecimento. Diane Arbus, fotógrafa americana com um trabalho pioneiro na década de setenta, ao fotografar tipos considerados “bizarros”, dizia: “há um tipo de poder em uma câmera. Todos sabem que você tem alguma vantagem. Você está carregando uma mágica suave, que lhes faz alguma coisa. É como se os arrumasse.” Tendo como pilares essas duas conceituações a respeito da fotografia, idealizei o projeto “Internos”. Propus-me a acompanhar, durante o estágio em Clínica Médica que fariam no Hospital das Clínicas, um grupo de alunos de quinto ano da Faculdade de Medicina da USP. O Internato é um momento fundamental na formação do médico. Representa um aumento de “status” e de responsabilidades; há uma grande carga de informação, nem sempre suficientemente assimilada; o contato com o paciente passa a ser constante e a vivência no ambiente hospitalar, central. Durante três meses fiz visitas às enfermarias e ao ambulatório, fotografando momentos diversos dessa vivência. Fazia uma primeira edição do material e procurava um horário na agenda repleta dos alunos para discutirmos o resultado das imagens. Foram eles que fizeram a segunda edição das fotos, escolhidas para exposições periódicas. As reações às imagens eram quase sempre coletivas, carregadas de risadas e comentários divertidos. Uma mistura de encanto e admiração, a surpresa de descobrir-se nos registros. Alguns verdadeiramente conversavam com as fotos, explorando cada detalhe e expressão. Nessas ocasiões pudemos conversar a respeito de temas que as fotos evidenciavam, geralmente negligenciados na formação do aluno, como
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PROJETO INTERNOS
A descontração é legal, mas é uma descontração nossa, né?
questões éticas, emocionais e subjetivas a respeito desse momento de suas vidas. A fotografia propiciou ao aluno um distanciamento do dia-a-dia, trazendo a representação da realidade que vive mas sobre a qual tem poucas vezes oportunidade ou possibilidade de refletir. Assim, criou-se uma abertura para que emoções e sentimentos cotidianos ligados à prática médica pudessem ser percebidos e compartilhados de uma maneira original e espontânea. Formou-se um corpo de imagens de uma experiência que permanecia, até agora, apenas na memória daqueles que a vivem intensamente. Os próprios personagens das fotografias foram convidados a formular as legendas, o que se revelou a essência do projeto “Internos”: resgatar, externar e compartilhar o que fica escondido. Enxergar o que não se vê e escutar o que não se fala. O resultado dessa experiência está em mais de 300 imagens e outros tantos depoimentos que deverão em breve ser publicados em um livro. Como alguns povos primitivos já nos diziam, fotografias podem, sim, capturar a alma dos retratados.
Haná Vaisman é médica psiquiatra da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e fotógrafa.
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Esta é a famosa cara de dúvida. Você explica, explica, explica, dá o papel, o paciente olha e não entende. Aí você explica, explica, explica, ele finge que entende... Mas é só para você parar de falar.
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Às vezes mostra o interno e os pacientes na mesma situação. Cansaço, dúvida. Às vezes mostra mais do que a posição da gente, paciente ou médico. Dúvida na cara do paciente, dúvida na nossa cara .
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4 Parece que o raio-x é mais um apêndice do paciente, já é um órgão dele.
Eu achava que o médico curava as pessoas, trabalhava com a cura. De repente, aquilo que eu ouvia antes - que também é para amenizar o sofrimento -, agora é muito mais importante do que curar.
Não tem como ser médico sem tocar no paciente. A gente tem liberdade para isso. Você hesita muito em tocar nos outros, mas quando o paciente chega, a gente segura, levanta o braço, levanta a perna. Você percebe que ele espera que você faça isso.
Eu fico tocada, mas tento não levar para fora. No começo eu levava. E você não vive. A gente fica dentro do hospital o dia todo. É doença, é doença, é morte. Quando sai da morte é o que? Três comprimidos de higroton, capoten, prozac ou corticóide, como é em dermato. E vai passar corticóide para o resto da vida porque não vai melhorar. Se eu não deixar isso dentro do hospital, não tenho como viver.
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