Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa. EDITORES/EDITORS/EDITORES Antonio Pithon Cyrino, Unesp Lilia Blima Schraiber, USP Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/ EDITORAS ASISTENTES Margareth Santini de Almeida, Unesp Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP Charles Dalcanale Tesser, UFSC Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Eunice Nakamura, Unifesp Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Márcia Thereza Couto Falcão, USP Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Túlio Batista Franco, UFF Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ EDITORAS DE CRIAÇÃO /CREATION EDITORS/EDITORAS DE CREACIÓN Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Mariângela Quarentei Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Renata Monteiro Buelau, USP
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE Antonio Fausto Neto, Unisinos António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia Charles Briggs, UCSD, USA Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Elen Rose Lodeiro Castanheira, Unesp Eliane Dias de Castro, USP Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz Geórgia Sibele Nogueira da Silva, UFRN Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Jairnilson da Silva Paim, UFBa José Carlos Libâneo, UCG José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Luis Behares,Universidad de la Republica Uruguaia Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ Magda Dimenstein, UFRN Mara Regina Lemes de Sordi, Unicamp Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Marilia Freitas de Campos Tozoni Reis, Unesp Marina Peduzzi, USP Miguel Montagner, UnB Marli Elisa Dalmaso Afonso D’André, PUCSP Paulo Henrique Martins, UFPE Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Fabrino Mendonça, UFMG Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Passos Nogueira, IPEA, DF Roger Ruiz-Moral, Universidade de Córdoba, Espanha Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Vânia Moreno, Unesp PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Mariângela Quarentei, Unesp Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Identidade visual/Visual identity/Identidad visual Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro Capa/Cover/Portada: Fotos de Ricardo Pozzo
P ES M FA
MÍDIA CA
COMUNICAÇÃO E BAM
NTO
GESTÃO AUTÔNOMA
IDADE N I L U MASC
SAÚDE EDUCAÇÃO
MULHER
COMUNIDADE
ANTROPOLOGIA
SINAIS
CORPO
PASSAGENS
URBE FÁGICA BIOMEDICALIZAÇÃO
LIMITE
VIOLÊNCIA
EMBELEZAMENTO
INA
RISCO
Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fágica, s/d
ISSN 1414-3283
POESIA
ALD EIA S
TRANSUMANISMO
LINGUAGEM COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, out./dez. 2012
Interface - comunicação, saúde, educação/ UNESP, v.16, n.43, out./dez. 2012 Botucatu, SP: UNESP Trimestral ISSN 1414-3283 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I UNESP Filiadaà A
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E
C
Associação Brasileira de Editores Científicos
comunicação
saúde
educação
v.16, n.43, out./dez. 2012 ISSN 1414-3283 867
apresentação artigos
995 A língua brasileira de sinais na formação dos profissionais de Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia no estado da Paraíba, Brasil
Yanik Carla Araújo de Oliveira; Gabriela Maria Cavalcanti Costa; Alexsandro Silva Coura; Renata de Oliveira Cartaxo; Inacia Sátiro Xavier de França
871 Homens, vítimas e autores de violência: a corrosão do espaço público e a perda da condição humana Rejane Aparecida Alves; Lauriza Maria Nunes Pinto; Andréa Maria Silveira; Graziella Lage Oliveira; Elza Machado de Melo
885 Significado da busca de tratamento por mulheres com transtorno depressivo atendidas em serviço de saúde público
Denise Martin; Aline Cacozzi; Thaise Macedo; Sergio Baxter Andreoli
903 Interseções antropológicas na saúde mental: dos regimes de verdade naturalistas à espessura biopsicossociocultural do adoecimento mental Mônica de Oliveira Nunes
917 Avaliação do processo de acolhimento em Saúde Mental na região centro-oeste do município de São Paulo: a relação entre CAPS e UBS em análise Adriano Kasiorowski de Araujo; Oswaldo Yoshimi Tanaka
929 Construção de espaços de escuta, diagnóstico e análise coletiva de problemas de saúde pública com a linguagem teatral: o caso das oficinas de jogos teatrais sobre a dengue
Denise Figueira de Oliveira; Cínthia Cristina Resende Mendonça; Rosane Moreira Silva de Meirelles; Claudia Mara Lara Melo Coutinho; Tania Cremonini Araújo-Jorge; Mauricio Roberto Motta Pinto da Luz
1011 Biomedicalización e infancia: trastorno de déficit de atención e hiperactividad Celia Iriart; Lisbeth Iglesias Ríos
1025 Limites biológicos, biotecnociência e transumanismo: uma revolução em Saúde Pública? Murilo Mariano Vilaça; Alexandre Palma
1039 A dimensão psicossocial na promoção de práticas alimentares saudáveis Bruna Robba Lara; Vera Silvia Facciolla Paiva
1055 As representações da Saúde Bucal na mídia impressa Aline Guio Cavaca; Victor Gentilli; Eliana Martins Marcolino; Adauto Emmerich
1069 Terapia comunitária: prática relatada pelos profissionais da rede SUS de Santa Catarina, Brasil
Cristina dos Santos Padilha; Walter Ferreira de Oliveira
espaço aberto 1087 Poesia concreta em prosa no asfalto: limites da deficiência no espaço urbano Maria do Carmo Castiglioni
1095 Tele-educação para educação continuada das equipes de saúde da família em saúde mental: a experiência de Pernambuco, Brasil
Magdala de Araújo Novaes; Josiane Lemos Machiavelli; Filipe Cesário Villa Verde; Amadeu Sá de Campos Filho; Tereza Roberta Castro Rodrigues
943 A construção da imagem corporal de sujeitos obesos e sua relação com os imperativos contemporâneos de embelezamento corporal
Miquela Marcuzzo; Santiago Pich; Maria Glória Dittrich
957 O processo de alcoolização entre os Tenharim das aldeias do rio Marmelos, AM, Brasil
1107 Desenvolvendo atitudes, conhecimentos e habilidades dos estudantes de medicina na atenção em saúde de pessoas surdas Luiza Santos Moreira da Costa; Natália Chilinque Zambão da Silva
Priscilla Perez da Silva Pereira; Ari Miguel Teixeira Ott
967 Adaptação multicêntrica do guia para a gestão autônoma da medicação
Rosana Teresa Onocko Campos; Analice de Lima Palombini; André do Eirado Silva; Eduardo Passos; Erotildes Maria Leal; Octávio Domont de Serpa Júnior; Cecília de Castro e Marques; Laura Lamas Martins Gonçalves
981 O cuidado ético-pedagógico no processo de socialização profissional: por uma formação ética
Mirelle Finkler; João Carlos Caetano; Flávia Regina Souza Ramos
1119
livros
1123
teses criação
1131 Urbe fágica
Ricardo Pozzo
1135 Reflexões poéticas sobre educação Fausto dos Santos Amaral Filho
1139 Odisseia inacabada
Daniel Rocha Silveira
1143
cartas
comunicação
saúde
educação
v.16, n.43, out./dez. 2012 ISSN 1414-3283
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presentation articles
871 Men, victims and perpetrators of violence: the corrosion of public space and the loss of the human condition Rejane Aparecida Alves; Lauriza Maria Nunes Pinto; Andréa Maria Silveira; Graziella Lage Oliveira; Elza Machado de Melo
885 Meaning of the search for treatment among women with depression attended at a public healthcare service
Denise Martin; Aline Cacozzi; Thaise Macedo; Sergio Baxter Andreoli
903 Anthropological intersections in mental health: from naturalistic regimes of truth to the biopsychosociocultural thickness of mental illness
995 Brazilian sign language in the training of nursing, physiotherapy and dentistry professionals in the state of Paraíba, Brazil Yanik Carla Araújo de Oliveira; Gabriela Maria Cavalcanti Costa; Alexsandro Silva Coura; Renata de Oliveira Cartaxo; Inacia Sátiro Xavier de França
1011 Biomedicalization and childhood: attention deficit hyperactivity disorder Celia Iriart; Lisbeth Iglesias Ríos
1025 Biological limits, biotechnoscience and transhumanism: a revolution in Public Health? Murilo Mariano Vilaça; Alexandre Palma
1039 The psychosocial dimension in promoting healthy dietary practices Bruna Robba Lara; Vera Silvia Facciolla Paiva
1055 Representations of Oral Health in the printed media Aline Guio Cavaca; Victor Gentilli; Eliana Martins Marcolino; Adauto Emmerich
Mônica de Oliveira Nunes
917 Evaluation of the reception process in mental healthcare in the central-western region of the municipality of São Paulo: analysis of the relationship between psychosocial care centers and primary healthcare units Adriano Kasiorowski de Araujo; Oswaldo Yoshimi Tanaka
929 Construction of spaces for listening, diagnosis and collective analysis of problems of public health using theatrical language: the case of workshops of theatrical games relating to dengue
Denise Figueira de Oliveira; Cínthia Cristina Resende Mendonça; Rosane Moreira Silva de Meirelles; Claudia Mara Lara Melo Coutinho; Tania Cremonini Araújo-Jorge; Mauricio Roberto Motta Pinto da Luz
1069 Community therapy: practice reported by professionals within SUS in Santa Catarina, Brazil Cristina dos Santos Padilha; Walter Ferreira de Oliveira
open space 1087 Concrete poetry in prose on the asphalt: handicap limits in the urban space Maria do Carmo Castiglioni
1095 Tele-education for continuing education in mental health for family healthcare teams: an experience in Pernambuco, Brazil
Magdala de Araújo Novaes; Josiane Lemos Machiavelli; Filipe Cesário Villa Verde; Amadeu Sá de Campos Filho; Tereza Roberta Castro Rodrigues
943 Construction of body image among obese subjects and its relationship with the contemporary imperatives for body beautification
1107 Developing medical students’ attitudes, knowledge and skills in healthcare for deaf people
957 The process of development of alcoholism among the Tenharim people in villages along the Marmelos river, state of Amazonas
1119
books
1123
theses
Luiza Santos Moreira da Costa; Natália Chilinque Zambão da Silva
Miquela Marcuzzo; Santiago Pich; Maria Glória Dittrich
Priscilla Perez da Silva Pereira; Ari Miguel Teixeira Ott
967 Multicenter adaptation of the guide for autonomous management of medication
Rosana Teresa Onocko Campos; Analice de Lima Palombini; André do Eirado Silva; Eduardo Passos; Erotildes Maria Leal; Octávio Domont de Serpa Júnior; Cecília de Castro e Marques; Laura Lamas Martins Gonçalves
981 Ethical-pedagogical care in the process of professional socialization: towards ethical education Mirelle Finkler; João Carlos Caetano; Flávia Regina Souza Ramos
creation 1131 Urbe fágica
Ricardo Pozzo
1135 Poetic reflections on education Fausto dos Santos Amaral Filho
1139 Unfinished Odyssey
Daniel Rocha Silveira
1143
letters
apresentação Sempre é um prazer quando mais um número de Interface é finalizado e está pronto para ser compartilhado com nossos leitores. O número 43, último de 2012, traz reflexões sobre questões importantes relacionadas à: pessoa com deficiência, população indígena, saúde mental, entre outras temáticas relevantes e atuais. A Lei nº 10.436/2002 reconhece a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS como o sistema linguístico da comunidade surda brasileira. Dois artigos, um relacionado à formação e outro relacionado à linha de cuidado da pessoa com deficiência, são apresentados. O primeiro discute a presença da LIBRAS nos projetos político-pedagógicos de cursos da área da Saúde, e o outro, a necessidade de habilidades de comunicação desses profissionais no sentido de assegurar a integralidade da assistência e não colocar em risco a saúde dessa população. A pessoa com deficiência e que, também, é moradora de rua é apresentada por meio de histórias individuais, entrelaçadas às histórias sociais, sendo dada visibilidade a esta condição e ao estado de vulnerabilidade dessas pessoas. No que se refere à saúde indígena, a população Tenharim e a questão do alcoolismo são apresentadas a partir de uma visão antropológica, trazendo luz à problematização realizada pela comunidade indígena. Na linha da desmedicalização, discutem-se, em dois artigos, o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e a banalização do tratamento e uso de antidepressivos e ansiolíticos no tratamento de mulheres com transtorno depressivo. Na seção Teses, a mesma temática é ressaltada no resumo do trabalho “A medicalização do social: um estudo sobre a prescrição de psicofármacos na rede pública de saúde”, que aponta para a possibilidade de se colocar em risco a própria autonomia da população ao se promover sua dependência a drogas distribuídas pelos serviços de saúde. No campo da saúde mental, várias questões são discutidas, como: processo de acolhimento, imagem corporal de sujeitos obesos, questões antropológicas e tele-educação. A seção Criação nos brinda com a leitura de uma poesia escrita a partir da história de vida de paciente de psicoterapia portador de transtorno afetivo bipolar e que descreve a vivência da bipolaridade, em suas fases depressivas e eufóricas. No artigo “Homens, vítimas e autores de violência”, a saúde do homem é analisada a partir do método hermenêutico-dialético e à luz da teoria política de Hannah Arendt, sendo a violência interpretada como dominação que perpassa as relações humanas.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.16, n.43, p.867-8, out./dez. 2012
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Utilizando a linguagem teatral, são descritas oficinas sobre a dengue como uma atividade dialógica, para uma análise coletiva de situações ligadas a problemas de saúde pública. A edição que fecha o volume de 2012 brinda-nos, ainda, com um instigante projeto fotográfico baseado em Simmel, Flusser e Baudrillard. Verifica-se, assim, que Interface 43 é entregue ao público abordando diferentes temáticas atuais e alinhadas ao avanço das políticas públicas de saúde e educação, com a reflexão e o fortalecimento das linhas de cuidado a diferentes populações e articulando saberes de diferentes campos de conhecimento. Fica o convite aos nossos leitores para refletirem sobre a diversidade desses temas e a profundidade dos debates apresentados. Vera Lúcia Garcia Editora Assistente
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.16, n.43, p.867-8, out./dez. 2012
presentation It is always a pleasure when yet another issue of Interface is completed and is ready to be shared with our readers. Issue 43, the last one of 2012, provides reflections on important questions relating to people with disabilities, the indigenous population and mental health, among other relevant current topics. Law No. 10.436/2002 recognizes the Brazilian sign language (LIBRAS) as a linguistic system for the Brazilian deaf community. Two articles are presented: one relating to training and the other to the lines of care for disabled people. The first discusses the presence of LIBRAS in pedagogical policy projects for health-related courses, and the other, the need for communication skills among these professionals in order to ensure comprehensiveness of care and not to place this population’s health at risk. Disabled people who are also street-dwellers are presented through individual histories interlinked with social histories, thereby providing visibility to this condition and to these individuals’ state of vulnerability. With regard to the health of indigenous populations, the Tenharim people and the issue of alcoholism are presented from an anthropological viewpoint, throwing light on the problem raised by the indigenous community. The line of demedicalization is discussed in two articles. These deal respectively with attention deficit disorder and hyperactivity and the trivialization of use of antidepressants and anxiolytics for treating women with depressive disorders. In the Theses section, the same theme is emphasized in the abstract of the study “The medicalization of social issues: a study on the prescription of psychopharmaceuticals within the public healthcare system”, which shows that there is a possibility of placing the population’s own autonomy at risk through promoting its dependence on drugs distributed by the healthcare services. Within the field of mental health, several issues are discussed, such as the reception process, the body image of obese subjects, anthropological issues and distance education. The Creation section gifts us with a reading of a poem written starting from the life history of a psychotherapy patient with bipolar affective disorder, which describes the experience of bipolarity, in its depressive and euphoric phases. In the article “Men: victims and perpetrators of violence”, men’s health is analyzed using the hermeneutic-dialectic method, in the light of Hannah Arendt’s political theory, with violence interpreted as the domination that permeates human relations.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.16, n.43, p.869-70, out./dez. 2012
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Using theatrical language, workshops on dengue are described as an activity of dialogue, for collective analysis of situations connected with public health problems. This 2012’ last issue also includes a photographic project based on Simmel, Flusser and Baudrillard. It can thus be seen that Interface 43 is delivered to the public addressing different current topics and is aligned with advances in public health and education policies. It provides reflection on and strengthening of the lines of care for different populations, and brings together different fields of knowledge. Our readers are invited to reflect on the diversity of these themes and the depth of the debates presented. Vera Lúcia Garcia Assistant Editor
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.16, n.43, p.869-70, out./dez. 2012
artigos
Homens, vítimas e autores de violência: a corrosão do espaço público e a perda da condição humana
Rejane Aparecida Alves1 Lauriza Maria Nunes Pinto2 Andréa Maria Silveira3 Graziella Lage Oliveira4 Elza Machado de Melo5
ALVES, R.A. et al. Men, victims and perpetrators of violence: the corrosion of public space and the loss of the human condition. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.871-83, out./dez. 2012. This was a qualitative study conducted in the municipality of Ribeirão das Neves, MG, with the aim of understanding men’s involvement in violence. The methodology consisted of focus groups were organized according to sex, age and administrative region of the municipality. There were 30 groups in total, with 231 randomly recruited participants. For the analysis, the hermeneutical-dialectical method was used and, in light of Hannah Arendt’s political theory, violence was interpreted as domination that permeates human relationships. Men and women were identified as possible perpetrators and victims of violence, and their involvement was defined in accordance with the inequality of relationships established. The numbers of the violence and explanations centered on biological theories may lead to the premature conclusion that men are more violent than women. The theoretical basis and greater depth of contextualization make it possible to throw light on other aspects of this important issue.
Keywords: Men’s health. Violence. Socialization. Masculinity.
Trata-se de estudo qualitativo, realizado no Município de Ribeirão das Neves-MG, com o objetivo de compreender o envolvimento dos homens com a violência. A metodologia consistiu de grupos focais organizados segundo sexo, faixa etária e região administrativa do Município, sendo, ao todo, trinta grupos, com 231 participantes, recrutados aleatoriamente. Para analisar, foi utilizado o método hermenêutico-dialético e, à luz da teoria política de Hannah Arendt, a violência foi interpretada como dominação que perpassa as relações humanas. Homens e mulheres foram identificados como possíveis autores e vítimas de violência, o envolvimento de cada um sendo definido a partir de relações desiguais que estabelecem. Os números da violência, assim como as explicações centradas em teorias biológicas, podem levar à conclusão prematura de que os homens sejam mais violentos do que as mulheres. A fundamentação teórica e a contextualização mais profundas permitem clarear outras faces desse importante problema.
Palavras-chave: Saúde do homem. Violência. Socialização. Masculinidade.
Elaborado com base em Alves (2011); pesquisa financiada pela Organização PanAmericana de Saúde (OPAS), apoiada pelo Núcleo de Promoção de Saúde e Paz do Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais (DMPS/FM/UFMG) e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG. 1 Mestranda, Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, UFMG. Av. Alfredo Balena, 190, sala 810, Santa Efigênia. Belo Horizonte, MG, Brasil. 30.130-100. reaalves@yahoo.com.br 2-4 Núcleo de Promoção de Saúde e Paz, DMPS/FM/UFMG. 5 Programa de PósGraduação em Saúde Pública, UFMG. *
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.871-83, out./dez. 2012
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HOMENS, VÍTIMAS E AUTORES DE VIOLÊNCIA: ...
Introdução Mundialmente, a saúde dos homens apresenta uma situação de desvantagem em relação à das mulheres, evidenciada por maior risco de morte, especialmente, em idades mais precoces (Tong et al., 2011; United Nations, 2010; Gomes, Nascimento, 2006; Laurent et al., 2005; Meryn, Jadad, 2001; World Health Organization, 2000). Apesar de conhecido, esse problema foi tradicionalmente relegado pelas políticas públicas e, só nas últimas décadas, ganhou o interesse do setor da saúde (Smith, Robertson, 2008; Gomes, Nascimento, 2006; Meryn, Jadad, 2001), quando surgiram iniciativas, em diversos países, reconhecendo os homens como sujeitos do cuidado de saúde e portadores de necessidades e abordagens específicas. No Brasil, foi publicada, em agosto de 2009, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (Brasil, 2009a, 2009b). Esse movimento mundial em defesa da saúde do homem sinaliza uma ruptura com a visão parcial que afasta e/ou exclui o homem do papel do cuidado, pautado nas diferenças instituídas pelas construções de gênero (Couto et al., 2010). Dentre as principais causas de morbimortalidade masculina, destaca-se a violência (Tong et al., 2011; World Health Organization, 2010a, 2000; Brasil, 2009a; Melo et al., 2008; Laurent et al., 2005; Meryn, Jadad, 2001). Segundo a World Health Organization (2010a), das mais de 1,5 milhões mortes anuais por causas violentas (homicídios, acidentes de transporte e suicídios), a maioria é de homens, principalmente na faixa etária de 15 a 29 anos. Além disso, muitos sofrem com graves sequelas não fatais (World Health Organization, 2010a, 2000; Melo et al., 2008). Em 2004, homens morreram, aproximadamente, três vezes mais do que mulheres em consequência de acidentes de transporte e de homicídios, e duas vezes mais devido aos suicídios (World Health Organization, 2010b). Das 468 mil mortes por assassinatos no mundo, em 2010, mais da metade eram homens e jovens (United Nations Office on Drugs and Crime, 2011). Em 2009, no Brasil (Brasil, 2011), a razão das taxas de mortalidade por violência entre homens e mulheres foi de 7:1. A expectativa de vida do Brasil poderia ser superior em dois ou três anos à atual se não fosse o efeito das mortes prematuras de homens por causas violentas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2011). Isso mostra que a violência, assim como outros problemas de saúde, não é igualmente distribuída entre os sexos ou grupos etários (Krug et al., 2002). Estudos sobre a estreita relação entre os homens e a violência (Carrington et al., 2010; World Health Organization, 2010a, 2000; Brasil, 2009a; Nascimento et al., 2009; Alvim, Souza, 2005; Schraiber et al., 2005) apresentam explicações vinculadas à socialização dos homens, centrada em um hegemônico modelo de masculinidade instituidor de papéis e de posições sociais desiguais entre os gêneros, além de crenças que propiciam o envolvimento destes sujeitos com a violência, como: a soberania masculina, a valentia, a honra, a dominação, a invulnerabilidade e a força. Este modelo naturaliza a violência como um atributo dos homens e como um instrumento de afirmação do “ser homem”, e os induz à adoção de práticas de risco à vida e de condutas autoritárias, ambas geradoras de relações humanas violentamente conflituosas. O desafio imposto pela violência no âmbito da saúde do homem e a necessidade de novos olhares sobre esta questão geraram este estudo, realizado no Município de Ribeirão da Neves-MG, cujo objetivo foi compreender, à luz dos fundamentos teóricos de Hannah Arendt, o envolvimento dos homens com a violência, seja na condição de vítimas ou autores. Hannah Arendt amplia os horizontes explicativos da violência ao reconhecê-la como um produto da dominação própria das relações humanas desiguais, que trazem como pano de fundo: a instrumentalização do sujeito, a aniquilação da fonte do poder legítimo – as interações humanas em pé de igualdade – e a consequente perda da condição humana. Sendo a dominação o marcador da condição masculina imposto pela socialização do homem, potencializa-se o estreitamento da relação homem-violência.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.16, n.43, p.871-83, out./dez. 2012
ALVES, R.A. et al.
artigos
Ribeirão das Neves Município mineiro integrante da região metropolitana de Belo Horizonte, Ribeirão das Neves contava, em 2010, com uma população de 296.317 habitantes, dos quais, 99% viviam em área urbana (IBGE, 2011). Desde a década de 1950, este município sofre com o intenso crescimento populacional e a ocupação territorial desordenada, em oposição à capacidade administrativa de oferecer uma infraestrutura local suficiente para atender as demandas da população (Ribeirão das Neves, 2008). O setor econômico oferece poucas alternativas de trabalho, há predomínio de atividades informais (Ribeirão das Neves, 2008), consequentemente, a maior parte da população é de baixa renda e vive com renda média de até dois salários-mínimos (IBGE, 2011). A existência de um complexo penitenciário de seis unidades em seu território, que abrigava, em 2006, 3.383 presos (Ribeirão das Neves, 2008), desestimula o crescimento econômico local, pois desvaloriza os imóveis da região, limita a atração de investimentos, prejudica o comércio e agrava o quadro de explosão demográfica pela migração de parentes dos detentos (Ribeirão das Neves, 2008). Estas fragilidades configuram um quadro de vulnerabilidade expressa em desempregos, empregos precários, pobreza, misérias e exclusão social, que acirram os conflitos nos contextos da vida humana e favorecem a instauração da violência como o maior problema para o município, com estatísticas que se destacam no Estado de Minas Gerais (Brasil, 2011; Ribeirão das Neves, 2008). As taxas de morte por violência no município estão concentradas na população masculina, com maior impacto na faixa etária de 15 a 29 anos (Brasil, 2011). Desde 2002, os eventos violentos, especialmente os homicídios, ocupam a primeira posição entre as principais causas de morte dos homens (Brasil, 2011). Em 2009, 85% das mortes violentas foram de homens e geraram taxas seis vezes maiores para os homens em relação às mulheres (Brasil, 2011).
Referencial teórico Inspirada pela Teoria Política de Hannah Arendt (2008, 1994), a violência foi definida como a dominação própria de relações humanas marcadas pela ausência do diálogo e pela instrumentalização do sujeito. Orientada pelos princípios políticos do pensamento greco-romano e em discordância com o pensamento político moderno, essa autora sustenta uma oponente distinção conceitual entre violência e poder, sendo o último definido como fenômeno político, fundado em relações humanas argumentativas, diferentemente do entendimento atual que o identifica com dominação, sinônimo de violência, que se assenta em relações de mando-obediência. Arendt (2008) reconhece três atividades humanas fundamentais: o labor, o trabalho e a ação. A primeira constitui a condição humana da vida, por garantir a realização das necessidades vitais; a segunda constrói o mundo artificial que confere certa durabilidade à fugacidade do tempo humano, e a ação corresponde à atividade que se desenvolve entre os homens e tem como condição a pluralidade, isto é, nossa condição de iguais e diferentes, todos humanos, mas cada um único e distinto de “qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha existir” (Arendt, 2008, p.16), cujo nascimento é sempre a chegada do novo e da possibilidade de mudança no mundo. Essa pluralidade humana, instaurada pela natalidade, é a condição essencial de toda a vida política (Arendt, 2008). A política, tal como na pólis grega, representa a liberdade humana e implica relações sem domínio e sem submissão, portanto, interação horizontal entre as pessoas, mediada pelo agir argumentativo – a ação política que é a única atividade humana mediadora, criadora, reveladora e transformadora. Como seres políticos, as pessoas tornam-se inteligíveis entre si e ficam livres do fardo de comandarem ou de serem comandadas. O espaço de encontro político, na pólis grega, era a esfera pública enquanto o espaço da visibilidade entre as pessoas que se reúnem pela busca do acordo e onde se revela a singularidade, “único lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram” (Arendt, 2008, p.35). Dessa ação política emerge o poder, relativo à “habilidade humana não apenas para agir, mas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.871-83, out./dez. 2012
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para agir em concerto” (Arendt, 1994, p.36). A violência, ao contrário, surge da degradação ou instrumentalização da ação política e significa “o agir sem argumentar, sem o discurso ou sem contar com as conseqüências” (Arendt, 1994, p.48). Possui natureza instrumental e se assenta em relações humanas desiguais de mando-obediência (Arendt, 1994). A esfera pública grega, no entanto, não violava as fronteiras da vida privada, isto porque o suprimento das necessidades da vida no âmbito privado era a condição para que o homem pudesse exercer sua liberdade na esfera pública. O indivíduo passava, então, sua vida transitando entre as duas esferas, na medida em que saía dos limites da sua morada privada, garantidora de um lugar no mundo e de proteção da vida, para adentrar um espaço público em que ele se encontrava com o outro (Arendt, 2008). O advento da era moderna e “[...] a ascensão da administração caseira, de suas atividades, seus problemas e recursos organizacionais [...] do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública” (Arendt, 2008, p.47), alteraram o significado dessas duas esferas da vida humana e representaram a “absorção da família por grupos sociais correspondentes” (Arendt, 2008, p.49), gerando um equacionamento da vida social que “longe de ser uma igualdade entre pares, lembra muito mais a igualdade dos membros da família ante o poder despótico do chefe da casa” (Arendt, 2008, p. 49). A ação da esfera pública é substituída por um comportamento normalizado e o conformismo descarta a possibilidade do novo. Nesse processo de publicização da esfera privada e uniformização da esfera pública, ambas desaparecem, dando lugar ao surgimento de uma nova esfera que a tudo parece consumir e devorar, a esfera social, que integra indivíduos moldados segundo um único interesse - o econômico. A moderna organização social institui o dinheiro como o seu denominador comum e como o fator definidor da posição social ocupada pelo indivíduo - dominador ou dominado. Neste contexto, surge um mundo determinado pela categoria de meios e fins e regido por uma racionalidade mercadológica e utilitarista que burocratiza a vida do homem. A política perde seu significado interativo e assume caráter de meio regulador; o engessamento da vida humana e a instrumentalização das relações entre as pessoas aniquilam a capacidade de ação dos sujeitos - cria-se o espaço ideal para a violência assumir a posição de mediadora das tensões humanas. Neste ideário moderno de domínio absoluto reside o mais eficiente mecanismo de controle humano: a sociedade de massas, que homogeneíza comportamentos, interesses, opiniões, sujeitos, numa engrenagem que aniquila a plural singularidade humana, exclui sua ação inovadora e reduz sua capacidade de julgamento, gera o desinteresse do indivíduo pelo mundo comum e por si, enfim, transforma todas as pessoas em meras cópias humanas, reprodutoras de um modelo de sociedade assimétrico, gerador de superfluidade, individualismo, alienação e desvalorização da vida humana. O dilaceramento do tecido humano produz o ambiente favorável ao estabelecimento de interações humanas mudas e regidas pela negação do reconhecimento das pessoas na sua autêntica posição de igualdade.
Metodologia Trata-se de estudo qualitativo, realizado no segundo semestre de 2009, cuja metodologia consistiu na realização de trinta grupos focais, com residentes do Município de Ribeirão das Neves, organizados por faixa etária, sexo e regiões administrativas do Município – Justinópolis, Veneza e Centro (Quadro 1). Essa organização objetivou apreender as múltiplas faces do objeto estudado, por meio de vários olhares que conversem entre si e, nesta perspectiva de intersubjetividade, alcancem a objetividade do conhecimento (Habermas, 1996) e evitem a absolutização de um só ponto de vista. A média de participantes em cada grupo foi de oito pessoas, somando um total de 231 participantes (119 homens e 112 mulheres). Cada grupo durou, em média, oitenta minutos. Por ser uma pesquisa qualitativa, a amostra, neste estudo, não seguiu orientação numérica, ao contrário, foi definida por saturação dos significados coletivos atribuídos ao objeto investigado (Minayo, 1998). Os participantes foram selecionados aleatoriamente e o recrutamento foi viabilizado com a cooperação de profissionais da rede pública de saúde do município, que propiciou os convites aos 874
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Regiões administrativas Justinópolis Veneza Centro Total
Grupos
10 a 14 anos
15 a 19 anos
20 a 29 anos
30 a 59 anos
> 60 anos
Total
Homens
HJ
HJ
HJ
HJ
HJ
5
Mulheres
MJ
MJ
MJ
MJ
MJ
5
Homens
HV
HV
HV
HV
HV
5
Mulheres
MV
MV
MV
MV
MV
5
Homens
HC
HC
HC
HC
HC
5
Mulheres
MC
MC
MC
MC
MC
5
6
6
6
6
6
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Quadro 1. Composição dos grupos focais, Ribeirão das Neves-MG, 2009
HJ: Homens de Justinópolis; MJ: Mulheres de Justinópolis; HV: Homens de Veneza; MV: Mulheres de Veneza; HC: Homens do Centro; MC: Mulheres do Centro.
moradores por ocasião de suas visitas domiciliares. Os critérios de inclusão foram: residir no município, ser originário de um dos níveis de vulnerabilidade social (baixo, médio e alto), estar na faixa etária de 10 anos ou mais e ter interesse voluntário em participar. A organização dos grupos por região administrativa garantiu a presença de participantes originários de diferentes condições de vulnerabilidade social (níveis de escolaridade, condições de moradia, renda, acesso aos serviços essenciais e a rede de proteção social etc). Informações obtidas com as equipes de saúde da família do Município permitiram seguir o mesmo critério dentro de cada região. A organização dos grupos por faixas etárias e sexo, além de captar diferentes olhares, garantiu a homogeneidade de cada grupo (Minayo, 1998) e evitou influências inibitórias da variável gênero e idade no comportamento dos participantes. Os participantes do estudo ou seus responsáveis assinaram Termo de Consentimento Livre e Informado, contendo informações explicativas sobre a pesquisa. Os grupos foram realizados em escolas de cada região administrativa do município, por serem locais de fácil acesso dos moradores. A condução dos grupos pelos pesquisadores foi orientada e uniformizada por meio de roteiro prétestado, que continha as questões da temática de interesse, e por instrutivo contendo o passo a passo do trabalho de campo. É importante salientar que todos os 17 integrantes da equipe do trabalho de campo participaram da discussão do tema, da organização e estruturação do trabalho de campo e da construção do roteiro de questões. O registro dos dados empíricos foi realizado pela gravação das falas de cada grupo. A etapa da análise foi iniciada pelas transcrições das gravações, seguida por uma leitura exaustiva do material transcrito. A seguir, foram definidas categorias analíticas geradas pela articulação dos pressupostos da teoria condutora do estudo com os dados empíricos coletados e, assim, prosseguiu-se com a análise, realizada por um movimento incessante entre as fontes empíricas e teóricas, característico do método hermenêutico-dialético descrito por Minayo (1998). O entrelaçamento entre teoria e prática gerou três categorias de análise: 1) Violência: dominação nas relações humanas, 2) Sociabilidade masculina: modelo centrado na dominação, e 3) Superação da violência.
Resultados e discussão A percepção da violência entre os moradores de Ribeirão das Neves mostrou-se abrangente e variada, além de ser referida a episódios sofridos, praticados e/ou assistidos pelos próprios participantes ou chegados ao seu conhecimento por meio de relatos da vizinhança. De um modo geral, a violência para eles é algo que, praticada por um ator, traria danos a outros: “seria qualquer ato, tipo assim, visa prejudicar o próximo, eu vejo desta forma. Aí você pode englobar várias formas, a violência financeira, a violência física, a violência com palavras” (HJ). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.871-83, out./dez. 2012
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Violência: dominação nas relações humanas A concentração estatística da violência entre os homens tem gerado a proposição de que os homens sejam mais violentos do que as mulheres e, de um modo geral, os estudos explicam este fato como sendo resultante de uma naturalização construída socioculturalmente (Carrington et al., 2010; Nascimento et al., 2009; Brasil, 2009a; Alvim, Souza, 2005). E seria surpreendente encontrar - caso não se adotasse um referencial teórico cujo postulado central é o de que a violência é antes produto da dominação própria das relações desiguais - que os participantes deste estudo consideraram, de uma forma quase que unânime, que tanto homens quanto mulheres são susceptíveis ao envolvimento com a violência, seja na condição de autores ou de vítimas: “eu acho que os dois são violentos, não é a mulher mais que o homem não” (HV), fala que se repete várias vezes, “os dois são violentos da mesma forma” (HC), é “tudo igual porque a mesma capacidade que um tem o outro também tem” (MV). O que muda, segundo eles, são as características da violência em que cada um se envolve “o homem usa mais da força e a mulher usa mais da sabedoria para praticar a violência...” (HV), porém, isso “não quer dizer que a violência seja pior para um ou pior para outro não, ela é idêntica” (HC). E, no encontro da teoria com o mundo empírico, evidencia-se que o potencial de dominação e a disponibilidade de recursos para exercê-lo são os elementos que regem e diferenciam os modos de agir com violência: para Hannah (2008; 1994), a violência é dominação que perpassa as relações humanas, seja entre homens e seja entre mulheres, onde quer que estejam; para os participantes da pesquisa, é a “questão do poderio, pois isso só tinha na cabeça do homem, aí entrou na cabeça também das mulheres” (HC). É óbvio que essa aproximação entre o pensamento de Hannah e o pensamento dos entrevistados (este compatível, é lógico, com o entendimento atual) exige o devido resguardo da premissa, antes mencionada, de que o entendimento de ambos sobre poder é diferente, praticamente contrário, para ela liberdade, para eles dominação. Coerentemente, um estudo de Rosa et al. (2008, p.156) mostra que as relações assimétricas de domínio, na maioria das vezes orientadas por construções de gênero, propiciam cenários de violência por se configurarem como “relações de força expressas enquanto relações de dominação”. Outra fala não deixa dúvida quanto a isso, “a mulher quer mandar, entendeu o problema?” (MC), clara intuição - ou quem sabe, receio ou recusa - de que, na história de homens e mulheres, a luta contra a dominação, como já aconteceu em outras searas da experiência humana, possa se transformar, ela própria, em dominação (Horkheimer, Adorno,1975). Ora, se a violência é dominação que perpassa as relações humanas, então ela é determinada pela forma como se forjam as relações sociais, dependendo dos papéis sociais e atributos que elas engendram, assim como pelas habilidades específicas de cada envolvido. Juntos, estes fatores definem o tipo de violência, o seu espaço de ocorrência, a vítima, o agressor e os instrumentos utilizados. Não se podem contestar ou ignorar as estatísticas referentes ao envolvimento dos homens com a violência. O conhecimento, porém, do contexto de produção desses números e a compreensão do seu significado trazem nova luz à questão. Segundo os participantes, “o homem é mais violento pela força física” e, além disso, “são eles que mais ficam na rua” (HC). Os números expressariam então as faces visíveis e mensuráveis da violência, referentes a acometimentos físicos graves ou morte, na maioria das vezes, ocorridos no espaço público, e envolveriam, predominantemente, homens, provavelmente em virtude das suas habilidades físicas e de seu papel social que gera maior exposição pública (Schraiber et al., 2005; World Health Organization, 2000). Por outro lado, a face menos visível da violência, que não se explicita tão facilmente ou é de difícil mensuração, por se manifestar de forma simbólica ou velada, foi principalmente atribuída, pelos participantes, às mulheres – “a agressão da mulher pra mim, eu acho que é mais verbal, a mulher não é muito de ... fazer agressão física” (HJ), por isso sua violência é mais “disfarçada” (MC). Ressalta-se que essa face opaca da violência é tão grave como qualquer outra (Caldas, Gessolo, 2008) e, como enfatiza um participante, “tem violência verbal que machuca mais do que um tapa no pé da orelha” (HC). Aliás, muitas vezes, ela desencadeia a violência física (Rosa et al., 2008), fato comentado nos grupos focais: “as mulheres se envolve em violência por questões muitas vezes de uma fofoca ...” (HC), “inclusive se... foi lá e fez uma fofoca de mim, eu vou chegar nela e vou arrumar a maior confusão” (MJ), como no caso; “a minha irmã ...brigou na escola... a menina pegou um negócio da outra, colocou dentro da bolsa dela e falou que foi ela que tinha roubado e não 876
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era. Minha irmã pegou a cabeça da menina, colocou dentro do vaso e deu descarga” (MV). E também acontece “quando os homens exageram na bebida e as mulheres começam a xingar, ... eles ficam agressivos e começam a bater nelas mesmo” (HV). Os perfis descritos de envolvimento com a violência não graduam um ou outro sexo como mais ou menos violento, eles mostram que certos tipos de violências são predominantes, mas não exclusivos de homens ou mulheres. Nesse sentido, Schraiber et al. (2005) argumentam que apesar das diferenças nas inserções sociais, não se devem fixar imagens estereotipadas dos homens como eternos agressores e, das mulheres, como eternas vítimas. Também não se podem excluir as mulheres da prática da violência física, pois ao se considerar o espaço domiciliar, a mãe aparece como a principal agressora contra crianças (Sapi et al., 2009; Brito et al., 2005), mostrando, mais uma vez, a influência das condições assimétricas no exercício da dominação, fato claramente relatado pelos participantes: “A mulher, hoje a mulher é mais violenta através dos pequeninos” (MV), “a violência das mulheres é com as crianças, é violência doméstica, é dentro de casa” (MV); e tem, entre suas motivações, os problemas conjugais: “Tem mulher também que briga com o marido e quer descontar a raiva nos filhos, bate nos meninos, deixa os meninos mau tratado” (MV), “eu mesma tenho uma irmã que faz isso, ela espanca os filhos dela pra chamar atenção do marido” (MC). E episódios mais graves de violência não são raros no contexto da população estudada, “a gente tem casos na área mesmo, caso recente aí, de uma mãe tentar matar a criança (MV), ou casos em que a mãe “batia com ferro, botava de joelho, amarrava no botijão de gás” (MC). No decorrer da dinâmica do grupo, não faltam testemunhos: “eu acho que já pratiquei, naquela revolta danada, batia nos meninos” (MC). Muitas vezes, a mãe e a própria sociedade não consideram tais atos como violência, mas como prática educativa e legítima, sem danos à criança (Barbosa, Pegoraro, 2008; Carmo, Harada, 2006), como se verifica na seguinte fala: “Eu dô uma varadinha na perna também, não é só castigo não... eu dô só uma pancadinha nas pernas pra entender que tem que respeitar o papai e a mamãe” (MV). Para Barbosa e Pegoraro (2008), os maus-tratos cometidos pela mãe contra seu filho estão vinculados à posição ocupada por cada membro de uma família e ao papel social da mulher, sendo um desafio à superação da ideia da agressividade restrita ao homem e da imagem materna como ser generoso, incapaz de causar danos aos filhos. Na relação entre casais, a presente investigação identificou, como outros estudos (Prosman et al., 2011; Caldas, Gessolo, 2008; Krug et al., 2002), o predomínio do homem no papel de agressor e da mulher no papel da vítima - “aqui também tem muito homem batendo em mulher” (HV), “a minha tia... ela casou com um rapaz... e depois que eles casaram ele começou a bater nela...” (MJ). Porém, há outra face, menos frequente e pouco reconhecida, da violência conjugal, em que a mulher aparece como agressora do seu companheiro, “tanto tá tendo violência da mulher contra o homem, quanto do homem contra a mulher” (HC), casos estes de conhecimento deles: “Eu conheço uma mulher que dá varada no homem” (MV), ou vividos por eles: “eu falo que eu posso apanhar, mas ele apanha também. Eu bato nele também, eu bato sem dó... Uma vez assim, que eu tava brigando com o meu marido... eu peguei a tesoura e joguei a tesoura no rosto dele e ele levou vinte pontos... Sempre mais sou eu que agrido ele” (MJ). Casos assim oferecem perigos adicionais, pois além do risco de desencadearem agressão masculina contra a parceira (Rosa et al., 2008), costumam ser – amparados nas teses de autodefesa feminina – aceitos socialmente, sendo raramente denunciados pelos homens, por estarem aprisionados ao ideário da honra (Alvim, Souza, 2005). Fato este enfaticamente expressado nos grupos: “os homens têm vergonha de fazer a denúncia e procurar a polícia” (HJ). Algumas investigações (Zaleski et al., 2010; Alvim, Souza, 2005; Archer, 2000) sobre violência conjugal identificaram os homens e as mulheres como autores e vítimas dos diversos tipos de violência, e taxas de perpetração e vitimização por violência física mais elevadas foram encontradas entre as mulheres. Melo et al. (2008) identificaram mulheres adolescentes como autoras de agressão física contra homens adolescentes. Rosa et al. (2008) identificaram a agressão física, verbal ou psicológica da companheira como uma das causas desencadeadoras da agressão masculina contra sua parceira. Surpreendentemente, os grupos focais, tanto de homens como de mulheres, identificam os traços femininos utilizados para subjugar o homem, por exemplo: a facilidade em usar palavras, a arte da 877
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sedução, posses financeiras ou, mesmo, quando há necessidade do uso da força, a manipulação de outros homens para tal fim: “é a questão do poder... No alto escalão tem empresária aí que pode pagar um pra ceifar o outro, matar e no baixo escalão a mulher pode seduzir um cara aí e falar: mata fulano pra mim ou então dá um pau nele pra mim” (HV). Elementos que também contribuem para a magnitude dos números são as “várias mortes de homens que são encomendas de mulheres” (MV) ou, mesmo, por elas cometidas. Como no caso de “uma mulher que tava fazendo sexo com um cara aí, na hora que ela conseguiu tirar o dinheiro do cara, ela deu uma facada na barriga do cara” (HV). A este respeito, alguns estudos (Krug et al., 2002; Wilson, Daly, 1992) encontraram proporções consideráveis de homicídios masculinos envolvendo a autoria das mulheres. Portanto, mais do que ser coisa de homem ou de mulher, é a lógica de controle nas relações interpessoais que alimenta o cenário de violência, seja no âmbito da vida pública ou privada, sendo sua autoria e vitimização definidas pela possibilidade de exercício de dominação entre os envolvidos. Rosa et al. (2008) afirmam que, numa organização social desigual, todos são atingidos e tornam-se, ao mesmo tempo, vítimas e autores dos diversos tipos de violência. Enfim, em um mundo assimetricamente organizado, onde todos competem pela posição de dominador, a violência aparece como resultante, sendo consenso entre os participantes que a “violência só vira violência” (MV, HV). Em outras palavras, a explicação da violência não se esgota nas informações estatísticas, nos estereótipos culturais (Brasil, 2009a; Nascimento et al., 2009) ou nas diferenças biológicas entre os sexos (Carrington et al., 2010; Imura, Silveira, 2010). Restringir-se a esses níveis seria ignorar a sua complexidade e a sua raiz mais profunda.
Sociabilidade masculina: modelo centrado na dominação Olhada à luz da teoria arendtiana, a socialização do homem pode ser interpretada na perspectiva da massificação humana, segundo um modelo dominador e de dominação, que se assenta na soberania masculina e na subjugação do outro, contrariando o princípio de igualdade e a condição de liberdade das pessoas. Esta forma de socialização, por sua vez, acaba por reforçar os padrões da moderna dinâmica macrossocial, fundada em relações desiguais. Dessa forma, os homens seriam, então, simultaneamente aprisionados nas condições de agentes e de grandes vítimas de um modelo violento de socialização. Reféns dessas exigências sociais muitos deles perdem a vida ou tiram a vida de outras pessoas na busca de afirmação de um sexo social (Diniz et al., 2003). Segundo esse modelo, o ‘ser macho’ - atributo pautado na valentia e na soberania do homem, seja sobre a mulher ou sobre outras pessoas - é o principal requisito para afirmação do ‘ser homem’ (Nascimento et al., 2009; Alvim, Souza, 2005), percepção praticamente unânime dos participantes: “Ser macho é achar que pode tudo... é achar que é o dono da situação..., então eu sou o machão..., por isso eu bato no cê, eu mato ocê” (HC), porque “o homem é quem manda” (MV). Tudo que simboliza dominação e proporciona uma sensação de coragem, de invulnerabilidade, de aumento da força - como, por exemplo, o álcool ou as armas - dá aos homens a impressão de serem mais homens (Nascimento et al., 2009; Alvim, Souza, 2005), como expressa um participante: “É porque são homens, tipo assim, por causa do motivo que eles tá com revolver, tá com a faca, eles se sente mais homem, aí que acontece as coisas” (HV). Questões que ferem ou ameaçam esses tradicionais atributos masculinos são fatores motivadores do envolvimento dos homens com a violência (Carrington, 2010), como ocorre com a suspeita de traição pela mulher, fantasiosa ou de fato, que muito perturba os homens: “Ah, não aceito traição não” (HV), por isso “tem mulher aqui que apanha pra cachorro...” (HV). Neste cenário, a prática da violência contra a companheira assume um caráter punitivo e expressa a forma de o homem afirmar o domínio sobre a mulher ou demarcar sua propriedade frente aos outros homens (Nascimento et al., 2009; Alvim, Souza, 2005). Os grupos focais, especificamente os de homens, possibilitaram perceber que o empoderamento da mulher na sociedade moderno-contemporânea tem gerado sofrimento e insegurança aos homens, e isto provavelmente ocorre em decorrência da perda de sua soberania e dos seus espaços de controle (Nascimento et al., 2009; Alvim, Souza, 2005). Nesse novo cenário das relações humanas, os homens estão confusos e sentem-se ameaçados, fato que se reflete diretamente em suas relações no âmbito 878
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social e da família. Na tentativa de resgatarem sua posição de dominador, demarcarem sua propriedade e de exteriorizarem suas angústias, utilizam a violência, que tem sido o instrumento mais atrativo para se tentar resolver conflitos: “se o homem não fizer nada, ele não vai valer nada e aí vai ser violento” (MC). Se, como diz Arendt (2008), a posição econômica é definidora da posição social ocupada pelo indivíduo, então, nenhuma surpresa há nas falas que mostram, não sem amargura, a vinculação da condição do homem aos aspectos financeiros: “- Hoje em dia quem manda realmente é o dinheiro. Cê tem dinheiro, cê tem tudo. - Cê tem muié, cê tem carro, cê tem moto, cê grava um CD, cê faz o que ocê quiser com o dinheiro. Entendeu? - E quem não tem? - Não tem nada”. (HV)
A impossibilidade de exercer o papel de provedor, como no caso do desemprego ou dos baixos salários, aparece, neste estudo e em outros (Krishnan et al., 2010; Rosa et al., 2008), como fator gerador de violência entre casais e de abandono por parte da mulher, denunciando uma relação entre casais muito atrelada ao fator financeiro: o “desemprego afeta muito o casamento” e “gera violência” (HV). Pois quando “o cara ... tá trabaindo fichado, bonitinho, a mulher trata o cara igual um príncipe, igual um rei. Agora quando o cara tá parado, desempregado, a hora mais difícil que a mulher tem que tá do lado do cara... a mulher vai e manda o cara embora, então vira bagunça, vira guerra mesmo, vira violência” (HV). A ideia da parceira é de que o homem tem que “se virar com as despesas de casa” (MV). Nessa condição, todo obstáculo ao cumprimento das imposições sociais aumenta a vulnerabilidade do homem para o envolvimento com condições violentas, pois na busca de soluções: “Vai traficar, vai roubar... por isso os homens têm mais facilidade de envolver com as drogas, que é uma maneira mais fácil pra conseguir o dinheiro” (HV). Sem contar a adoção de soluções drásticas, como no caso do suicídio (Cleary, 2012): Se “hoje a gente trabalha e temos um salário de dois mil por mês e chega amanhã você é mandado embora ganhando quinhentos reais no mês eu botava uma corda no pescoço e me enforco” (HV).
Superação da violência A desvalorização da vida aparece nas falas dos participantes como uma das resultantes mais graves da moderna dinâmica social desumana e, consequentemente, violenta: “hoje em dia também a vida do ser humano não tá valendo nada não” (HV), “as pessoas matam os outros e quase sempre fica por isso” (HJ). O isolamento, resultante do medo e da insegurança, aparece como um dos pilares perpetradores e perpetuadores dessa dinâmica social: “Eu fico lá na minha casa com a porta, com esse calorão, porta, janela, tudo trancado. De medo. Quando eu saio lá fora eu saio rapidinho, faço o que eu tenho que fazer e volto pra dentro. Então quando eu escuto um tiro, nosso Deus!” (MV). Ora, o isolamento das pessoas impede a ação política, como diz Arendt (2008): “sem a ação para por em movimento no mundo o novo começo de que cada homem é capaz por haver nascido, não há nada que seja novo debaixo do sol”. Entrelaçada ao isolamento humano tem-se a discriminação, apanágio de um modelo de sociedade massificada, criador de estereótipos sociais ideais e excludentes de quem não os segue: “a maioria da violência é isso também a discriminação... igual eu já fui procurar emprego várias vezes, na hora que fala aonde mora, as pessoas não dá emprego, sabe?” (MV), e “às vezes só porque o cara tá andando de bonezinho, o cara tem uma roupa mais ou menos boa e simples... o pessoal fala: é traficante, é bandido, malandrinho” (HV). De imediato, este estudo permite reconhecer a degradação do diálogo e a perda dos encontros no espaço público como elementos propulsores da violência, tal como afirma Arendt (2008, 1994); e, por consequência, o resgate dessa habilidade é o caminho para a superação da violência (Melo et al., 2007): “feliz do homem que acha que dá pra resolver na conversa e resolve” (HC), “eu acho que as pessoas têm que si respeitar mais, conversar mais”, para “chegar num acordo, afinal o acordo serve pra gerar harmonia” (MJ). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.871-83, out./dez. 2012
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Tal iniciativa implica mudanças amplas das relações sociais e das construções de gênero, cujo início, porém, pode ser aqui e agora, à disposição de cada um, pois é no dia a dia onde se engendra a violência, e que se engendra, também, a possibilidade de sua superação, a partir da relação dialética de singularidade e pluralidade, que faz nascer e renascer incessantemente nossas esperanças de relações humanas mais igualitárias, germinadas na inquebrantável certeza, honrosamente compartilhada com Hannah Arendt (2008, 1994), de que “ser homem é uma coisa muito sublime, não é só ser macho não, não, ser macho é muito pouco, qualquer vagabundo é” (HC).
Considerações finais Tanto os homens quanto as mulheres foram identificados pelo estudo como sujeitos vulneráveis ao envolvimento com a violência, e as relações desiguais de dominação ditando a forma do envolvimento de cada um. A vulnerabilidade dos homens é agravada por sua socialização, que os condiciona à posição de dominador, institui a violência como um atributo próprio da sua natureza e os aprisiona na condição de vítimas e autores de violência. Essa condição, por sua vez, reforça os padrões da moderna dinâmica macrossocial de dominação. A superação dessa condição, assim como de qualquer relação de dominação, passaria pelo resgate da ação política descrita por Hannah Arendt, ou seja, pelo resgate da palavra viva e da ação vivida, fontes do poder legítimo, que além de preservarem os espaços públicos de revelação entre os sujeitos, tornam os seres humanos não apenas inteligíveis entre si, mas sujeitos livres e autônomos e, portanto, capazes de construir uma nova ordem no mundo. Dessa forma, será possível remodelar masculinidades mais flexíveis, saudáveis e pautadas no estabelecimento de relações mais igualitárias dos homens junto aos seus pares e ao sexo oposto. Os dados desta investigação problematizam a importante questão de ser a violência um dos principais agravos para a saúde do homem, e revelam, ao buscarem raízes mais profundas do fenômeno, importantes elementos contextuais explicativos dessa estreita relação. Espera-se, com isso, contribuir para o seu melhor entendimento e somar força às inúmeras iniciativas que buscam melhores intervenções com vistas à superação do problema. É importante destacar a limitação própria da metodologia qualitativa de não permitir a extrapolação dos resultados para outras populações, além da estudada. Por outro lado, o cuidado em organizar os grupos focais por sexo e faixa etária permitiu apreender diversos olhares, evitar absolutizações e produzir conhecimento objetivo sobre o tema.
Colaboradores Rejane Aparecida Alves e Elza Machado de Melo realizaram o delineamento da pesquisa, o trabalho de campo, a análise dos dados e a redação do manuscrito. Lauriza Maria Nunes Pinto participou do trabalho de campo e colaborou na redação; e Andréa Maria Silveira e Graziella Lage Oliveira colaboraram na redação do artigo.
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ALVES, R.A. et al.
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ALVES, R.A. et al. Hombres, víctimas y perpetradores de la violencia: la corrosión del espacio público y la pérdida de la condición humana. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.871-83, out./dez. 2012. Estudio cualitativo realizado en la Ciudad de Ribeirão das Neves, estado de Minas Gerais, Brasil, con el fin de entender la implicación de los hombres con la violencia. Se organizaron 30 grupos de discusión, delimitados por sexo, edad y región administrativa con, un total 231 de participantes. Se utilizó el método hermenéuticodialéctico y, a la luz de la teoría política de Hannah Arendt, la violencia fue interpretada como la dominación que impregna las relaciones humanas. Hombres y mujeres fueron identificados como posibles responsables y víctimas de la violencia, la participación de cada uno de ellos definida sobre la base de las relaciones desiguales que establecen. Los números de la violencia y las explicaciones centradas en las teorías biológicas pueden llevar a la conclusión prematura de que los hombres son más violentos que las mujeres. El marco teórico y la contextura más profundos permiten esclarecer otros aspectos de este problema.
Palabras clave: Salud del hombre. Violencia. Socialización. Masculinidad.
Recebido em 08/03/12. Aprovado em 16/09/12.
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Ricardo Pozzo, Ocupação Nova Primavera-CIC/Sabará, 2012
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Significado da busca de tratamento por mulheres com transtorno depressivo atendidas em serviço de saúde público* Denise Martin1 Aline Cacozzi2 Thaise Macedo3 Sergio Baxter Andreoli4
MARTIN, D. et al. Meaning of the search for treatment among women with depression attended at a public healthcare service. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.885-99, out./dez. 2012. The aim of this ethnographic study was to analyze the meaning of the search for treatment among women with depression attended at a psychosocial care center in the municipality of Santos, São Paulo, Brazil. The route to treatment of depression (from referral to attendance), the notions of the illness held by the women and their drug consumption were identified within this context. The trivialization of depression, importance of the psychiatrist and use of antidepressants and anxiolytics in the treatment were evident. The women’s patterns of drug consumption suggested that addiction to medications was occurring. In addition to pharmacological action, use of medicines had symbolic action, towards comfort and care. Our study indicates that there is a need to connect the meanings of the women’s experiences with the therapeutic approaches towards depression in constructing public mental healthcare policies.
Keywords: Depression. Women. Ethnography. Drugs.
O objetivo deste estudo de caráter etnográfico foi analisar o significado da busca de tratamento por mulheres com transtorno depressivo atendidas em um Núcleo de Atenção Psicossocial do município de Santos, São Paulo, Brasil. Foram identificados, neste contexto: o tratamento da depressão no serviço (do encaminhamento ao atendimento), as noções de doença elaboradas pelas mulheres e o consumo de medicamentos. Ficaram evidentes: a banalização da depressão, a importância do psiquiatra e do uso de antidepressivos e ansiolíticos no tratamento. Os padrões encontrados de consumo dos medicamentos pelas mulheres sugerem a ocorrência de uma “toxicomania medicamentosa”. O uso de medicamentos, além da ação farmacológica, possui uma ação simbólica, no sentido de conforto e cuidado. O trabalho aponta para a necessidade de se articularem o significado das experiências das mulheres e as abordagens terapêuticas da depressão na construção das políticas públicas de saúde mental.
Palavras-chave: Depressão. Mulheres. Etnografia. Uso de medicamentos.
Elaborado com base em Martín (2008); pesquisa financiada pela FAPESP (Proc. 08/06460-5). 1,4 Programa de Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade Católica de Santos. Rua Carvalho de Mendonça, 144. Santos, SP, Brasil. 11.070-906. demartin@unisantos.br 2,3 Universidade Católica de Santos. *
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Introdução A depressão se configura, atualmente, como um importante problema de saúde pública. Do ponto de vista biomédico, a depressão maior é um transtorno grave, recorrente e leva o indivíduo à perda importante de sua funcionalidade e qualidade de vida (Ustun et al., 2004). A Organização Mundial da Saúde a considerou como a quarta doença mais importante dentre as doenças que mais causam incapacidades e, consequentemente, dias de vida perdidos com qualidade (Murray, Lopez, 1996). O desenvolvimento da doença, em seus quadros mais graves, compromete o cotidiano da pessoa, seu trabalho, as relações familiares e sociais. Em algumas situações, resulta também em suicídio (Chachamovich et al., 2009). Do ponto de vista médico, trata-se de um conjunto de sintomas e sinais que devem ser identificados e tratados em serviços de saúde. Na nossa sociedade, entretanto, o sofrimento chamado de depressão possui um denominador comum, ou uma etiqueta, na qual se enquadram pessoas num continuum em graus de sofrimento, que englobam a adoção da categoria “perturbações físico-morais”, tratada por Duarte (1998). A depressão pode ser compreendida em vários planos. O que há em comum é a constatação da importância que este termo vem ganhando na sociedade e na vida cotidiana das pessoas.
A mensuração, as doenças referidas e a banalização da depressão Estudos epidemiológicos deixam evidente que os transtornos mentais se expressam de maneira diferente entre os gêneros, e que a depressão é reconhecida como um problema de saúde importante para as mulheres, sobretudo pela prevalência alta. Bromet et al. (2011) estudaram, por meio de entrevistas psiquiátricas padronizadas, a prevalência da depressão em 18 países, incluindo o Brasil. As médias das prevalências na vida e nos últimos 12 meses de depressão maior (segundo o DSM-IV) foram de 14,6% e 5,5% nos dez países de alta renda e 11,1% e 5,9% nos oito países de baixa e média renda. No Brasil (São Paulo), as prevalências na vida e nos últimos 12 meses foram de 18,4% e 10,4%. Os dados de todos os países mostram que as mulheres têm duas vezes mais chance de ter depressão que os homens. No Brasil, a razão é de 2,6. Apesar da ênfase na depressão como problema feminino, alguns autores questionam este recorte da realidade. Alves (2002) mostra que a literatura sobre saúde mental e gênero feminino questiona o fato de as mulheres terem mais distúrbios afetivos, entre eles, a depressão. Maluf (2010) desenvolve uma crítica à visão biologicista do “ciclo de vida” e das fases da vida reprodutiva das mulheres como determinantes de maior ou menor “vulnerabilidade” destas a problemas de saúde mental. Barros et al. (2006) estudaram doenças crônicas referidas a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2003). Entre as 12 doenças pesquisadas, considerando todas as faixas etárias, as mais prevalentes foram: doença de coluna, hipertensão, artrite, depressão, asma e doenças do coração. Com exceção de tuberculose e cirrose, todas as demais são mais prevalentes entre as mulheres. A prevalência da depressão é maior quanto menor a escolaridade. Esta pesquisa mostra que a depressão ocupa um lugar importante como uma doença reconhecida no Brasil; entretanto, por se tratarem de resultados de informações autorreferidas, estes implicam limitações metodológicas. É necessário indagar se as pessoas foram diagnosticadas como tendo um transtorno depressivo ou se estas informações são resultado de uma apropriação indevida do termo, baseada em informações do senso comum. Parker e Brotchie (2009) discutem os problemas referentes à classificação diagnóstica da depressão maior do DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Americana de Psiquiatria). Para estes autores, ocorre uma classificação equivocada entre tristeza normal e transtorno depressivo, o que pode resultar em supernotificação do transtorno. Nakamura (2004) e Soares e Caponi (2011) mostram, por meio de análise de jornais e revistas, que há uma banalização do uso do termo depressão. Para Nakamura (2004), a inclusão e a adaptação do vocabulário médico aos textos de revistas e a artigos de jornais fazem com que a opinião de especialistas da área médica confunda-se com a de repórteres e da própria população. Soares e Caponi 886
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(2011) mostram que há um reforço à terapia medicamentosa (e fortalecimento da indústria farmacêutica); estímulo ao diagnóstico precoce e autodiagnóstico, e que o uso do termo depressão contribui para o processo de medicalização da vida. A depressão, seja ela diagnosticada como um transtorno propriamente dito ou como uma doença autoidentificada pelo senso comum, segue sendo um problema de saúde mental importante, pois resulta em busca de atendimento em saúde e tratamento (o que inclui o tratamento medicamentoso).
Depressão e cultura Vários autores mostraram como a experiência da depressão pode ser compreendida com referência ao segmento cultural no qual as pessoas estão imersas (Hussains, Cochrane, 2004; Rodrigues Cardoso, 1998; Kleinman, Good, 1985). Estudos clínicos sobre depressão, realizados em culturas não ocidentais, apontam a reduzida frequência ou ausência dos componentes chamados psicológicos da depressão (sentimentos de culpa, desespero, autodestruição e ideação suicida) e a dominância de aspectos denominados somáticos (Marsella, 1985). Halbreich et al. (2007) citam que, em culturas não ocidentais, os sintomas que são tratados como distúrbios disfóricos são, sobretudo, somáticos, diferentemente do sistema ocidental centrado nos manuais diagnósticos. Em muitos casos, os critérios destes manuais não são sequer reconhecidos pelos pacientes. Pereira et al. (2007), estudando mulheres de Goa, na Índia, diagnosticadas como deprimidas, identificaram que elas expressam seus problemas de saúde mental especialmente através de uma série de queixas somáticas; localizam a sua angústia na vida através das desvantagens sociais que experimentam em seu dia a dia, e só procuram ajuda médica para queixas somáticas. Estudos em vários países concluem que muitas das concepções correntes sobre depressão poderiam ser altamente etnocêntricas (Marsella et al., 1985). Trata-se de um tema que desafia definições a priori para contextos culturais específicos. No Brasil, o estudo da depressão com enfoque no contexto cultural das mulheres que sofrem com o transtorno ainda é recente. Martin, Mari e Quirino (2007a) e Martin, Quirino e Mari (2007b) estudaram a depressão entre mulheres diagnosticadas com o transtorno e os psiquiatras que as acompanhavam, no Embu, na Grande São Paulo, enfocando o entendimento do transtorno e do atendimento psiquiátrico no município. No estudo, a depressão era um idioma para expressar muitos sentimentos, como a infelicidade num contexto de pobreza e violência. Concluiu-se que o psiquiatra extrapolava as suas funções clínicas e tinha um papel na reorganização do cotidiano dessas mulheres. A depressão expressava o drama social. Em Martin, Mari e Quirino (2007a), a depressão foi tratada como um termo empregado como divisor de comportamentos aceitáveis e criticáveis, o que aponta para um deslocamento de significações. Havia a depressão legítima e a falsa, esta servindo para mascarar eventos e comportamentos pessoais imperfeitos ou localmente indesejáveis. Este estudo revelou percepções de depressão, das mulheres e da comunidade, fortemente ancoradas na cultura em que estavam inseridas: pobre, violenta e desigual. Ficaram patentes, nos resultados, a desigualdade nas relações de gênero e a violência doméstica presente no cotidiano das mulheres com depressão. Maluf e Tornquist (2010) estudaram as questões de gênero, saúde e aflição, no campo da saúde mental, do ponto de vista das políticas públicas, do ativismo político e das experiências sociais. Entre os principais resultados, destacam-se: a necessidade de uma política de saúde mental com a perspectiva de gênero, o consumo de medicamentos psicotrópicos por mulheres, a medicalização na política de saúde mental, e as dimensões físico-morais do sofrimento psíquico e sua ressignificação pelas mulheres. Tornquist, Andrade e Monteiro (2010) estudaram a disseminação do diagnóstico de depressão, com tratamento e medicalização entre grupos populares em Florianópolis. As autoras mostram que a categoria “depressão” era conhecida e usada eventualmente pelas mulheres, indicando um estado comum que qualquer pessoa poderia atravessar. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.885-99, out./dez. 2012
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A depressão - para além dos problemas da identificação de casos de transtorno depressivo, tal como ele é descrito clinicamente, ou de, simplesmente, depressão, como é concebida na sociedade - vem ganhando importância na vida cotidiana das pessoas e na sociedade. Isso porque serve como idioma para expressão de sentimentos, sofrimento, infelicidades ou de condições de vulnerabilidade, mas que, frequentemente, resultam em busca de atendimento em saúde e demandam tratamento (o que inclui o tratamento medicamentoso). O objetivo deste estudo foi analisar o significado da busca por tratamento para depressão, tendo como sujeitos as mulheres diagnosticadas com transtorno depressivo, atendidas em serviço de saúde público.
Percurso metodológico Foi realizada uma etnografia, método no qual a experiência humana é um pressuposto para que se produza o conhecimento antropológico e encontra-se presente em todas as etapas da produção deste conhecimento (Nakamura, 2009). A pesquisa de campo foi realizada no período de maio de 2009 a julho de 2010. No serviço, a pesquisadora realizou a observação no horário da manhã e da tarde, por um período de três meses consecutivos, e esporadicamente para realizar o contato com as mulheres para a entrevista. Esta etapa da pesquisa buscou conhecer o funcionamento do serviço para o tratamento dos casos de depressão. Das 25 entrevistas, 22 foram realizadas nas casas das pacientes e três no NAPS I. Quanto à idade, havia mulheres na faixa dos trinta anos até os 81 anos. A média foi de 52,2 anos. A escolaridade era baixa, predominando o Ensino Fundamental incompleto (12 mulheres). Três mulheres declararam nunca terem estudado. Duas mulheres haviam concluído o Ensino Fundamental, duas possuíam o Ensino Médio incompleto e quatro o completo. Uma mulher havia completado o Ensino Superior e uma outra estava cursando. Quanto ao local de moradia, quinze mulheres moravam em casa própria, e cinco em casa alugada ou cedida. Duas moravam em barracos em palafitas e três em barracos em favelas. Quanto ao local de nascimento, 15 mulheres eram do Nordeste do país, seis eram de Santos, duas do interior de São Paulo, uma do Paraná e uma de Minas Gerais. Todas tinham filhos. Quanto ao trabalho no momento da pesquisa, duas mulheres estavam desempregadas, três aposentadas, seis afastadas por motivos médicos, cinco recebiam aposentadoria do esposo, cinco não trabalhavam, e quatro trabalhavam (assistente de mercado, dona de bar, telemarketing e acompanhante de idosos). Quanto à religião, 14 se declararam católicas, uma umbandista, nove evangélicas e quatro espíritas (algumas frequentavam mais de uma religião). Todas as mulheres possuíam como diagnóstico principal a depressão, segundo critérios da Classificação Internacional de Doenças (Organização Mundial da Saúde, 1997). Foram realizadas cinco entrevistas com profissionais de saúde que trabalhavam no serviço, com o objetivo de conhecer como ocorria o atendimento. As entrevistadas foram contatadas na farmácia no momento em que retiravam suas medicações, e, também, por indicação dos profissionais da unidade. A primeira forma de contato foi a que deu melhores resultados. As entrevistas foram realizadas até a saturação dos conteúdos. Após a leitura exaustiva das transcrições, os dados foram agrupados em categorias e analisados de acordo com os objetivos do estudo. As observações etnográficas do serviço e a entrevistas com os profissionais de saúde também foram objeto de análise. A análise antropológica é resultado de todas as etapas de produção do conhecimento. O olhar (a observação), o ouvir (as entrevistas) e o escrever (a análise e interpretação dos dados), como atos cognitivos, são domesticados teoricamente, ou seja, disciplinados no horizonte da Antropologia (Oliveira, 2006). Todos os participantes foram informados sobre os objetivos do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Santos.
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Local da pesquisa O município de Santos é um local privilegiado para o estudo da saúde mental, pois possui uma rede de assistência bem estruturada, regionalizada e com distribuição equilibrada de serviços. A estruturação desta rede de serviços teve início no ano de 1989, marcada pela mudança do modelo assistencial centrado no hospital psiquiátrico para um modelo centrado em serviços comunitários. A rede de assistência em saúde mental de Santos está estruturada, basicamente, em serviços comunitários, cinco Centros de Atenção Psicossocial - CAPS - (1,2 por cem mil hab.) distribuídos de forma equilibrada pela cidade, e atende pacientes com todas as morbidades psiquiátricas (Andreoli et al., 2004). A zona noroeste é composta por 12 bairros. É uma região residencial na qual não houve crescimento vertical, com exceção dos conjuntos habitacionais. As casas da região, em sua maioria, são de alvenaria. Alguns bairros possuem casas construídas em terrenos espaçosos. Em um dos bairros, embora existam casas de alvenaria, há barracos construídos sob as palafitas na maré. O acesso às moradias localizadas nas palafitas é difícil, pontes estreitas de madeira fazem a ligação entre os barracos. Quando a maré sobe, o lixo e a água invadem as casas. As enchentes são um problema na região.
O serviço de saúde mental
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Em Santos, os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) são chamados de NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial).
O atendimento em saúde mental no Brasil está completamente integrado ao SUS (Sistema Único de Saúde). Está estruturado em uma rede de serviços variados, entre eles os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)5. Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2011), a Política Nacional de Saúde Mental busca consolidar um modelo de atenção à saúde mental aberto e de base comunitária. O NAPS I situa-se no bairro do Jardim Castelo e faz parte do complexo hospitalar da Zona Noroeste, que é composto pelo Ambulatório de Especialidades (AMBESP) e o Hospital da Zona Noroeste. O serviço atende transtornos mentais graves e leves. Observamos a presença de: usuários com transtornos graves que ficam, durante o dia, no serviço, em regime de semi-internação; usuários internados, e outros que utilizam o serviço em função de transtornos leves, para consultas ou retirada de medicamentos. A equipe é multidisciplinar e, no início do estudo, era composta por: três psiquiatras, um enfermeiro, um assistente social, um acompanhante terapêutico, um terapeuta ocupacional, dois psicólogos, um farmacêutico, um técnico de enfermagem e 15 auxiliares de enfermagem. O itinerário do usuário no NAPS I era o seguinte: inicialmente, ocorria a triagem (realizada com qualquer profissional de saúde do serviço, com exceção dos auxiliares de enfermagem) para avaliar se o caso se aplicava às competências do serviço. Após esta avaliação, eram oferecidas duas possibilidades: acompanhamento em clínicas psicológicas de universidades da região ou a consulta psiquiátrica. O tempo médio observado entre a triagem até a consulta era de, aproximadamente, três meses, independente do diagnóstico. Em casos avaliados como graves, como uma crise psicótica, a consulta poderia ser antecipada ou o paciente seria encaminhado ao Pronto Socorro do Hospital da Zona Noroeste. Após a consulta, era iniciado o tratamento. No caso das pessoas diagnosticadas com depressão, além da consulta médica, eram oferecidas, também, a terapia comunitária e a terapia individual realizada por psicólogos do NAPS.
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O tratamento no NAPS As mulheres foram encaminhadas ao NAPS de várias maneiras: algumas já faziam tratamento em outros locais ou foram encaminhadas por clínicos de várias especialidades (ginecologista, clínico geral, pronto-socorro, neurologista), como mostra a seguinte fala: “Foi assim, pra mim ir no psiquiatra da outra vez, aquela época foi a ginecologista que encaminhou, eu contei a história pra ela e ela me encaminhou, e agora dessa segunda vez foi com ela também, ela já sabe a minha história, daí ela viu que eu tava mal de novo e me encaminhou pra cá”. (M14)
Esta integração da sintomatologia psiquiátrica à clínica médica foi identificada, também, por Cardoso (1999) e Maluf (2010). Segundo Cardoso (1999), a doença mental é identificada pelos médicos pela reinterpretação das sensações corpóreas dos pacientes como sintomas neuróticos e observação das condições sociais de vida. A “doença mental” era identificada pela reinterpretação das expressões do “estar doente” que o paciente formulava, como sintomas psicossomáticos. Do ponto de vista clínico, Parker e Brotchie (2009) comentam que a depressão representa mais uma “pseudoentidade”, faltando-lhe especificidade e significando coisas distintas para pessoas distintas. Segundo estes autores, corre o risco de ser promovida a um modelo “com mil e uma utilidades”, no qual os diferentes clínicos aplicam tratamentos bem diferentes para “ela”, com a visão de que “ela” é suficiente por si só para dar forma ao tratamento (Parker, Brotchie, 2009, p. S6). Considerando esta crítica ao conceito de depressão, observa-se que os clínicos distanciavam-se, também, do modelo biomédico, embora pudessem nomear o sofrimento como depressão. Para algumas entrevistadas, o NAPS era um lugar associado ao tratamento de loucos, o que explicava a resistência em chegar ao serviço e as estereotipias relacionadas às pessoas que precisam destes cuidados: “Eu fui, mas depois eu vi que não era aquilo, tá entendendo? Quando eu cheguei lá, aquele pessoal tudo meio doido, no meio dos doidos, achei que tava doida também...”. (M4)
Apesar de o NAPS ser considerado, por algumas entrevistadas, como lugar de loucos ou um local constrangedor, este fato não era um impedimento para a continuidade do tratamento. A avaliação das mulheres sobre o tratamento no NAPS foi variada. Para algumas, que reconheciam uma melhora importante nos seus sintomas e estabeleceram um vínculo com os profissionais de saúde, a avaliação foi positiva, como mostra a seguinte fala: “Ah, eles me atenderam legal, já me encaminharam pra triagem, a psicóloga que me atendeu foi muito boazinha... Tava indo, depois a Dra. também foi muito boa...”. (M22)
No período da pesquisa de campo, dois psiquiatras pediram exoneração do cargo. Um psiquiatra do serviço ficou responsável por todos os casos, graves e leves. O serviço não conseguiu substituir os profissionais e os pacientes em tratamento ficaram mais de um mês6 sem psiquiatra. Dada a complexidade da 890
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No final da pesquisa de campo, ainda havia mulheres aguardando atendimento psiquiátrico.
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situação, foi criado um sistema de rodízio com psiquiatras de outros NAPS, que atendiam uma vez por semana. Todos os pacientes tiveram atraso em atendimentos e medicação, além de perderem o vínculo com os psiquiatras que os tratavam. Desta forma, a maioria criticou o atendimento, sobretudo pela falta de médicos, como mostra a fala abaixo: “Ai ela me disse que eu ia falar só com a assistente porque não tem médico. É uma vergonha não ter médico”. (M15)
Com as dificuldades citadas, as mulheres possuíam estratégias para obter os medicamentos que consideravam necessários. Uma possibilidade era passar no psiquiatra do Pronto-Socorro, ou recorrer a médicos de outras especialidades que poderiam prescrever os medicamentos: “É sempre assim... quando eu tô sem medicamento, quando eu preciso, eu vou no Pronto Socorro”. (M5) “... que nem eu: preciso de um psiquiatra pra me dar uma receita e não tem. Então fica difícil...você vê, eu não tomo remédio porque não tem quem me prescreva. ... como eu tenho consulta marcada agora em agosto, com uma neurologista, eu vou ver se ela me passa algum remédio”. (M16)
Todavia, alguns médicos do Pronto-Socorro não davam a receita por saberem que a mulher era usuária do NAPS. Algumas mulheres foram atendidas por psiquiatras de planos de saúde, mas também sem continuidade ou tendo que buscar o serviço público. O atendimento no NAPS, para os casos de depressão, envolvia, além da consulta médica, a terapia grupal realizada pelos psicólogos. Observou-se que, apesar de todas as críticas à falta de psiquiatras no serviço e à falta de continuidade no tratamento, estes profissionais eram considerados centrais para o tratamento e recuperação. Neste contexto de atendimento em saúde mental, embora houvesse uma proposta de uma diversidade nas formas de cuidar, a psiquiatria ocupava um lugar importante na identificação e tratamento das pessoas com depressão. Os psicólogos eram pouco aceitos ou valorizados na proposta terapêutica: “Eu fiz tratamento até março né, quer dizer, eu estou em tratamento ainda. Mas assim, eu tenho certeza absoluta que hoje eu estou viva por causa deles mesmo (dos médicos), eles me acompanharam, eles foram super legal comigo”. (M15) “É nos grupos, eu não vou me sentir bem me expondo, ...então eu vou me sentir um pouco ridícula de expor o que eu tô sentindo, porque parece que é muito fácil, em vista de outros problemas, entendeu? Então eu prefiro ficar na minha que é melhor...”. (M2)
Ficou evidente, na pesquisa, que – na visão das entrevistadas – a proposta terapêutica para depressão estava focada, sobretudo, no atendimento médico. Segundo Silveira (2000), na consulta médica, é possível se narrarem as queixas, legitimar-se socialmente o sofrimento e resolver-se o problema pragmaticamente com medicamentos. Todavia, este atendimento estava aquém do desejável, destacando-se a falta de continuidade do atendimento no serviço acima citado. O contexto do atendimento médico permitiu situar como estas mulheres compreendiam a depressão.
Noções de doença: o que significa ter depressão? De maneira geral, as mulheres aceitavam o diagnóstico de depressão, o que pode estar relacionado à banalização do termo. As causas da depressão, quando identificadas, eram sempre de origem externa. Nenhuma das entrevistadas justificou seu sofrimento devido a características pessoais ou de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.885-99, out./dez. 2012
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personalidade, o que mostra a não-psicologização do sofrimento, mostrada por Duarte (1998). A depressão veio de fora: “Foi desde que eu tive umas descontrariedade muito grande, assim de família viu! Eu tive um desgosto muito grande, que eu nem sei se eu devo explicá... dizê o porquê”. (M2)
Clarke (2006) também observou que a depressão era manifestada, pela maioria de suas entrevistadas, como algo que vem de fora, como um lugar separado de seu próprio corpo. A variedade de justificativas para o sofrimento estava relacionada às questões de parentesco, dando destaque para as questões de gênero, também identificados em Martin, Mari e Quirino (2007a), Martin, Quirino e Mari (2007b) e Tornquist, Andrade e Monteiro (2010). As causas variavam muito, desde a morte de um filho, problemas com consumo de drogas até problemas financeiros, como desemprego ou impossibilidade de realizar uma cirurgia plástica. É interessante notar a plasticidade que o termo depressão recobre, podendo justificar praticamente todas as experiências desagradáveis vividas por estas mulheres. Extrapola a noção patológica definida pela biomedicina e possibilita abarcar toda a negatividade da vida cotidiana (Martin, Quirino, Mari, 2007b). Nas entrevistas com as mulheres, a maioria se queixou dos infortúnios e sofrimentos que viviam ou viveram. A variedade de possibilidades de sofrimentos era muito grande, como por exemplo: a violência do tráfico, a traição do marido, as doenças que sofriam, as doenças na família, o filho homossexual, e a falta de dinheiro. Desta forma, tudo o que era vivido em termos de sofrimento e infortúnios justificava a depressão. Para Ehremberg e Lovell (2001), a depressão se coloca como foco de atração do sofrimento psíquico e designa, com ou sem razão, a maior parte das dificuldades psíquicas e comportamentais que cada um pode encontrar em sua existência. Nesta perspectiva, ficou também evidente a fragilidade epistemológica da categoria depressão, como mostrou Caponi (2009). As causas identificadas, de que maneira as mulheres entendiam o sofrimento que nomeavam como depressão? As mulheres possuíam ideias vagas sobre a depressão, não sabendo definir exatamente do que sofriam (como em Martin, Quirino, Mari, 2007b): “Ah! Eles deram como depressão, né... depressão profunda, né... Dor na alma”. (M3)
Observou-se, também, uma confusão entre sintomas ou causas e definição da doença, como mostra a seguinte fala: “Ah, eu não sabia nem o que era, aí ele falou pra mim que os sintomas que eu tinha era devido a depressão, por causa dos problemas que eu tinha, eu contei tudo da minha vida..”. (M19)
Havia o preconceito de que a depressão comentada por outros era frescura, ou seja, uma maneira de chamar a atenção das pessoas e, ainda, a associação com a loucura, noção também identificada em Martin, Mari e Quirino (2007a): “Mexe muito com a mente, aí eu não sei... eu falo assim...- mas isso não é uma doença -, aí eu acabei crendo que é uma doença. Como o povo tinha, eu falava assim... “é uma doença?”, eu falava assim... Agora eu sei que não é frescura viu! A gente tem que passar pra saber...”. (M4)
Assim, embora a noção de doença fosse, na maioria das vezes, vaga e superficial, havia a preocupação em não ser confundido com os chamados “loucos”. A maioria das entrevistadas não acreditava na possibilidade de cura para a depressão:
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“Eu não controlo mais, eu tenho certeza que a minha cabeça não volta mais como era antes... Eu acho que não!”. (M4)
Para outras, a cura estaria associada a mudanças na vida, pouco prováveis de acontecer, e que, desta forma, limitavam a possibilidade de ocorrer: “Você sabe quando eu ia me sentir curada? Quando eu tiver minha casa, um carro na minha garagem, um marido fiel, cuidando dos meus filhos, todo mundo numa boa, sem aborrecimento. Assim eu seria feliz. Isso seria minha felicidade, porque só foi decepção”. (M23)
Por fim, algumas entrevistadas relacionaram a cura à fé religiosa, como mostra a fala: “Depressão só Jesus que cura”. (M18)
De qualquer forma, a possibilidade de cura não se encontrava na responsabilidade ou vontade individual das mulheres, mas em eventos externos, sejam eles religiosos ou mágicos. Tornquist, Andrade e Monteiro (2010) identificaram, em sua pesquisa, a opção de alívio ou cura para o sofrimento na religião, nas conversas e, também, no apoio psicológico, além dos médicos. Para as mulheres entrevistadas, a religião era também uma opção para diminuir o sofrimento, sem abandonar o tratamento médico. Vale ressaltar que a opção religiosa, para algumas mulheres, foi um impeditivo para a concretização da tentativa de suicídio, pela moral da igreja à qual pertenciam. Quanto aos sintomas, alguns se aproximavam dos critérios diagnósticos biomédicos e outros não, tais como: agressividade, medo, esquecimentos, contato com parentes mortos, estresse, nervoso ou de origem somática. Algumas mulheres relataram pensamentos sobre suicídio (com algumas tentativas), e ideias sobre a morte também eram frequentes. Ficou evidente que os sintomas não se enquadravam nos critérios diagnósticos biomédicos nem nas categorias exclusivamente psíquicas de sofrimento. Duarte (2003) mostra como é necessário tratar o sofrimento como um modo de classificação integrado e holista, sem separar mente e corpo, ou físico e moral. Além do tratamento no NAPS, o uso de medicamentos foi valorizado por todas as entrevistadas, e era um recurso importante para lidar com seus sintomas, como será tratado a seguir.
O consumo do medicamento Os medicamentos mais citados foram os ansiolíticos e os antidepressivos. Seu uso no tratamento da depressão foi valorizado por todas as entrevistadas como um recurso para lidar com seus sintomas: “Como eu falei, ameniza muita coisa. Uma coisa é você viver chorando 24 horas por dia e você querer se matar, com dó de você a vida toda. E você vai aprendendo que o remédio, parece que não, mas, ele mexe muito com a mente da gente, ele mexe muito”. (M12) “... Quando eu ia nos médicos psiquiatras, eu dizia que eu queria um remédio pra me dar alegria, eu fico assim muito... não sei te falar se é triste, mas sem ânimo, então eu sinto essa falta do remédio, pra me dar mais ânimo, mais coragem”. (M16)
Como foi mostrado, algumas mulheres chegaram ao serviço com prescrições de medicamentos para depressão realizadas por outros profissionais da área médica, recomendações de amigas, além dos atendimentos em pronto-socorro e ambulatórios de especialidades além da psiquiatria. O diagnóstico e a medicação haviam sido realizados em outro momento: “O primeiro remédio quem me deu... foi o meu gastro... há mais de 5 anos que eu faço tratamento com o gastro!”. (M4)
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“Por que a senhora começou a tomar Diazepam? - Ó, a médica que não é psiquiatra... É... Neurologista… Porque quando eu comecei a ter aborrecimento...”. (M10)
Como observou Cardoso (1999), o resultado da integração da prática psiquiátrica à clínica médica tem sido o tratamento extensivo de morbidades consideradas, de acordo com a classificação nosológica médica, como psicossomáticas e o consumo em larga escala de medicamentos psicotrópicos. Clarke (2006) mostra que o resultado do sucesso da comercialização de medicamentos antidepressivos e as ênfases em tratamentos psicológicos validados empiricamente é de que as experiências depressivas das mulheres estão em perigo de serem excessivamente medicalizadas e individualizadas. Observou-se, também, que havia variações de consumo em relação à prescrição médica, como mostram as falas abaixo: “Ele perguntou assim: que remédio a senhora tomava? Eu não sabia mais falar pra ele porque eu tinha tomado por minha conta”. (M17) “Foi assim: foi a minha colega que me deu, porque tem gente que pega medicação lá no NAPS e não toma, joga na maré e fica boiando... Oh, judiação!...”. (M5)7 “Eu dou calmante pra uma pessoa, uma amiga minha que tem depressão e tem vergonha de ir no NAPS, mas eu dou pouquinho, dou uma dessa e uma dessa. Mas olha, é tudo guardadinho, separadinho, mas não estou louca de ficar dando remédio. (M24)
Nas duas últimas falas, ficou evidente a banalização do termo depressão. Uma mulher comentou exagerar nos sintomas na consulta psiquiátrica para dar uma parte dos medicamentos para a amiga, por ela diagnosticada também como “deprimida”. Este consumo obedecia a uma lógica na qual havia uma avaliação de necessidade independente da prescrição médica. Revela, desta forma, um deslocamento das necessidades relacionadas ao registro biomédico para o contexto no qual o sofrimento se enquadra. Maluf (2010) mostra que existe uma “demanda por medicação”. Esta autora identifica esta demanda nas falas dos profissionais de saúde, que se queixam das estratégias e formas de pressão dos pacientes para obterem a receita, e, também, nas mulheres diagnosticadas com depressão e consumidoras de medicamentos. Tornquist, Andrade e Monteiro (2010) também observaram uma apropriação pessoal do uso de remédios, incluindo recomendações, sugestões ou, mesmo, estoque dos medicamentos para uso de quem necessite. Relatos de efeitos colaterais também foram frequentes: “Aí você toma e já fica com cara de besta, cara de idiota”. (M5) “Agora sim, to dormindo, mas... eu amanheço dopada quando tomo o remédio”. (M4)
Embora os relatos sobre efeitos colaterais fossem considerados, o consumo de medicamentos psicotrópicos era mantido. Os critérios de uso eram os mais variados, desde aquelas que relatavam usar de acordo com a prescrição médica
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7 Segundo a entrevistada, as pessoas buscam o diagnóstico de depressão em serviços de saúde mental para obterem licenças médicas e aposentadorias, pegam o medicamento prescrito e depois jogam fora. Comentários sobre este uso da depressão foram frequentes tanto no serviço como entre os moradores da região.
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(mas também sujeitas às limitações do serviço e dos psiquiatras) até aquelas que tomavam os medicamentos por recomendação de amigas ou com avaliação pessoal. Reconheciam que o cotidiano ficava diferente com o medicamento, mas de certa forma resolvia. A experiência da depressão, para estas mulheres, evidenciou um caleidoscópio de sofrimentos, justificativas e soluções possíveis para o sofrimento cotidiano. O medicamento era um componente importante.
Uma toxicomania medicamentosa? A fluoxetina, atualmente, é o medicamento antidepressivo mais prescrito no Brasil e no mundo. Os psicofármacos são medicamentos necessários e seguros, mas podem causar dependência física e/ou psíquica (Andrade, Andrade, Santos, 2004). Na cidade de São Paulo, existe uma alta taxa de consumo de tranquilizantes, de 80,4/1.000 habitantes, e o clínico geral foi o líder na prescrição deste medicamento (46,9%), seguido pelo cardiologista (15,3 %) (Mari et al., 1993). Segundo Fleck et al. (2009, p.S9), na revisão das diretrizes da Associação Medica Brasileira (AMB) para o tratamento da depressão: “Os antidepressivos são efetivos no tratamento agudo das depressões moderadas e graves, porém não diferentes de placebo em depressões leves”. Além disso, recomendam-se consultas semanais com monitorização de resposta, efeitos colaterais, adesão ao tratamento e risco de suicídio. Um plano de análise sobre o significado da depressão para as mulheres não pode deixar de considerar a importância e a dimensão da indústria farmacêutica, o mercado de consumo e o lugar da medicina e da psiquiatria na nossa sociedade. É neste contexto maior que se inserem as experiências de sofrimento destas mulheres. Uma possível maneira de abordar esta questão é realizar uma discussão sobre a drogadição nas sociedades ocidentais. Segundo Ehremberg (2010), a drogadição é a alteração dos estados de consciência (inclusive para tranquilizantes e antidepressivos). Para este autor, se drogas tradicionais permitiriam fugir para a irrealidade, os medicamentos psicotrópicos permitem enfrentar a realidade. Os neurolépticos e antidepressivos agem sobre os sintomas, permitem aos pacientes falar, favorecendo, assim, o contato relacional com os médicos (Ehremberg, Lovell, 2001). Estes autores inserem uma nova questão no uso de medicamentos benzodiazepínicos e antidepressivos: quais os limites entre as funções terapêuticas e de «conforto» ou de «performance» dos medicamentos psicotrópicos? Para estes autores, há uso incorreto, prescrições incertas, demandas de bem-estar psicológico que desequilibram a percepção destes medicamentos num conflito entre cuidado, conforto e dependência: hoje, diferenciamos mal o fato de cuidar e o de se drogar (Ehremberg, Lovell, 2001). O tratamento no Núcleo de Atenção Psicossocial, apesar de possuir uma proposta interdisciplinar, resumia-se ao atendimento ambulatorial com o psiquiatra. Este profissional era importante, também, pela prescrição de medicamentos. Pelo que foi exposto sobre o consumo de medicamentos psicotrópicos entre estas mulheres, por sua variabilidade e descontinuidade, é possível pensar que poderia estar ocorrendo uma toxicomania medicamentosa. As mulheres descreveram um cotidiano pobre, por vezes violento, repleto de incompreensões e sofrimentos. De certa forma, os medicamentos consumidos permitiam enfrentar esta realidade considerada tão sofrida. Assim, uma dependência psíquica ou física poderia estar instalada. Se as queixas se referiam a uma necessidade de cuidado médico (incluindo a medicação necessária) ou a uma necessidade de conforto, não foi possível averiguar. O conforto, no caso destas mulheres, poderia ser definido como um alívio na vida, cujas dificuldades não eram fáceis de superar. Em face da condição de imutabilidade de alguns problemas, o medicamento contribuiria, tanto do ponto de vista de sua ação farmacológica quanto simbólica, para um cotidiano menos insuportável. A relação com os medicamentos era ambígua: apesar da preocupação com efeitos colaterais e possibilidade de dependência, sua busca era evidente.
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Considerações finais O ponto de partida do estudo foram mulheres com diagnóstico de depressão atendidas em um serviço de saúde mental. Observou-se que, mesmo no registro biomédico (do diagnóstico, da noção de doença e do tratamento), o significado do sofrimento para estas mulheres extrapolava para o domínio social. É possível analisar estas informações em lógicas distintas. A primeira, na lógica do atendimento em saúde mental. Cardoso (2002) mostra que a dialética entre contexto social e políticas públicas pode elucidar como são manejados os episódios de doença tal como eles são circunscritos tanto pelo significado cultural que lhes é atribuído quanto pelos recursos terapêuticos que são, então, colocados à disposição para o seu controle. Neste plano, a etnografia com mulheres mostrou o contexto do atendimento em saúde mental no NAPS. Mesmo que não ocorressem os problemas de falta de médicos ou quaisquer outras limitações de ordem técnica ou de gestão, o significado da depressão não pode ser reduzido à prática dos profissionais de saúde. O tratamento no NAPS é um recurso possível para o tratamento da depressão – no caso deste estudo, foi identificado como a principal fonte de alivio para o sofrimento relatado pelas mulheres. A segunda lógica é aquela da experiência das pacientes que, complementarmente ao atendimento no NAPS, revelou como a depressão expressa os dramas sociais particulares, sempre mediados pelo significado cultural do sofrimento. Assim, a doença passa a ser mais bem definida como uma condição social com componentes clínicos, e não o inverso, como mostraram Nakamura, Martin e Quirino (2007). A articulação entre estes planos, sempre difícil, pois trata de lógicas diferentes, tornaria possível uma proposta terapêutica mais sensível e talvez mais eficaz. Este estudo possui limitações inerentes ao contexto no qual foi realizado. As críticas das usuárias sobre a falta de médicos foram especialmente potencializadas pela falta de psiquiatras no serviço no momento da pesquisa de campo. O recorte do objeto com mulheres em atendimento não permitiu chegar à população que se queixa de depressão, não tem acesso ao serviço e utiliza outros itinerários terapêuticos para lidar com o sofrimento.
Colaboradores Denise Martin e Sergio Baxter Andreoli responsabilizaram-se pela concepção do estudo, revisão de literatura, análise e redação do manuscrito. Aline Cacozzi responsabilizou-se pela revisão de literatura e Thaise Macedo foi a responsável pelo trabalho de campo. 896
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Palabras clave: Depresión. Mujeres. Etnografía. Utilización de medicamentos.
Recebido em 14/09/11. Aprovado em 05/04/12.
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Interseções antropológicas na saúde mental: dos regimes de verdade naturalistas à espessura biopsicossociocultural do adoecimento mental
Mônica de Oliveira Nunes1
NUNES, M.O. Anthropological intersections in mental health: from naturalistic regimes of truth to the biopsychosociocultural thickness of mental illness. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.903-15, out./dez. 2012. In contemporary psychiatry, a hegemonic transnational project centered on naturalistic discourse about mental illness disseminates a regime of truth based on explanation of its physiopathology and on mastery of its treatment. Despite this diffusion, some studies have demonstrated how this discourse has different repercussions in specific cultural contexts, showing socioanthropological modulations of biotherapeutics in people’s material state of health and the uses and meanings attributed to diagnoses. A second group of studies has analyzed historical constructions of mental illnesses and has defined cultural polarities placing value on certain types of behavior as either perverse or virtuous. A third group has analyzed the uses of cultural resources as a means of negotiating experiences of otherness and has defined cultural contexts that are more open to difference. This article makes a review of these three perspectives, putting emphasis on intersections between history, culture, society and biology that put mental illnesses into context.
Na psiquiatria contemporânea, um projeto hegemônico transnacional centrado em um discurso naturalista acerca das doenças mentais propaga um regime de verdade ancorado na proposta de explicação da sua fisiopatologia e no domínio do seu tratamento. A despeito da sua difusão, um grupo de estudos demonstra como esse discurso repercute diferentemente em contextos culturais específicos, evidenciando modulações socioantropológicas das bioterapêuticas no estado de saúde concreto das pessoas e dos usos e sentidos atribuídos a diagnósticos. Um segundo grupo analisa construções históricas de doenças mentais, definindo polaridades culturais que valorizam enquanto viciosos ou virtuosos determinados comportamentos. Um terceiro grupo analisa usos de recursos culturais de modo a negociar experiências de alteridade, definindo contextos culturais mais abertos à diferença. Este artigo faz uma revisão dessas três perspectivas, enfatizando interseções entre história, cultura, sociedade e biologia na ancoragem das doenças mentais.
Keywords: Anthropology medical. Mental health. Drug utilization. Social construction. Otherness.
Palavras-chave: Antropologia médica. Doença mental. Uso de medicamentos. Construção social. Alteridade.
1 Departamento de Saúde Coletiva, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/n, Campus Universitário do Canela. Salvador, BA, Brasil. 41.10-140. nunesm@ufba.br
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Introdução Observa-se, na psiquiatria contemporânea, um projeto hegemônico transnacional centrado sobre um discurso naturalista acerca das doenças e estados mentais (Jeannerod, 2001). Este propaga um regime de verdade ancorado na proposta de explicação da fisiopatologia dessas doenças, no domínio do seu tratamento e no controle do seu sofrimento. À primeira vista, é inegável reconhecer que esse discurso se sustenta nos benefícios que a perspectiva neurobiológica tem aportado à psiquiatria, uma vez que, aliados aos avanços observados pelos efeitos psicofarmacológicos de controle de sintomas graves, surgem os efeitos sociais positivos desse discurso e prática. Dentre estes, valem ser destacados: a contenção da insegurança e a isenção da culpa de pacientes e familiares, por um mecanismo de genetização e de biologização dos sintomas; a esperança da gestão da incerteza e da falta de esperança de doenças tão complexas quanto dolorosas; além da produção de pontos de ancoragem, ou seja, da possibilidade de, uma vez exteriorizadas as responsabilidades sociopsicológicas na produção do adoecimento, abrir espaço para a relação terapêutica e para o trabalho sobre as relações. Esses efeitos promissores, no entanto, frequentemente têm sido hiperinterpretados em um discurso cientificista mistificador que aparece, constantemente, na mídia, nas indústrias farmacêuticas, ou nos discursos de familiares ávidos por encontrarem alívio para o sofrimento de seus doentes. Grande parte desta mistificação reside, especialmente, nas armadilhas da própria perspectiva teórica ou ideológica da psiquiatria biológica. Dentre estas, salientam-se: o reducionismo ao tratamento exclusivamente medicamentoso, a mitificação das moléculas, a linearidade da relação causa-efeito entre substância e comportamento, a leitura dos sintomas a partir de uma perspectiva impessoal e invariável, observada nos manuais estatísticos das doenças mentais, além da marginalização das interpretações subjetivas e da ancoragem sociocultural dos processos de adoecimento. A despeito da grande difusão desses discursos, um número crescente de estudos tem demonstrado que é muito difícil (se não impossível), e especialmente improdutiva, a separação entre os domínios biológico, psíquico e social quando se quer verificar os efeitos das neurociências fora dos laboratórios, ou seja, das bioterapêuticas no estado de saúde concreto das pessoas. Assim, estudos etnográficos têm observado como esse discurso e a prática biologicista da psiquiatria repercutem diferentemente em contextos culturais específicos, identificando suas modulações socioantropológicas. Estes evidenciam clínicas afetadas por processos sócio-históricos, ciências socialmente (e economicamente) construídas e biologias que ganham colorações particulares e respondem diferentemente de acordo com contextos culturais distintos. De fato, os estudos socioantropológicos têm produzido um acúmulo expressivo de resultados que colocam em questão, relativizam, ou até refutam algumas verdades biomédicas acerca das doenças mentais. No presente artigo, a partir de uma revisão da literatura internacional, apresentaremos três vertentes antropológicas e históricas e as suas diferentes perspectivas de ancoragem sociocultural das doenças mentais, privilegiando os resultados de seus estudos empíricos. O primeiro grupo revela que as doenças mentais guardam uma historicidade forte, descrevendo doenças mentais em mutação (Ehrenberg, Lovell, 2001). Estas são configuradas a partir de valores, significados e dinâmicas sociais dominantes do seu tempo, analisando os processos de produção de novas nosologias psiquiátricas (Young, 2001) e até identificando doenças de aparecimento florido e fim abrupto (Hacking, 1998). Um segundo conjunto de estudos tem se centrado nos processos de estandardização internacional de diagnósticos psiquiátricos e na influência das tradições terapêuticas, dos processos clínicos e dos contextos econômicos sobre as construções e os usos desses diagnósticos. Por fim, um terceiro grupo de investigações tem examinado a fina participação dos processos sociais e culturais no modo como pessoas, que apresentam doenças psiquiátricas graves, se servem de recursos simbólicos e psicossociais nas suas experiências cotidianas desses fenômenos (Good, 2007; Nunes, 1999; Corin, Lauzon, 1992). Esse grupo destaca o agenciamento dos sujeitos na forma de produzir, bricolar e reinterpretar recursos culturais, de modo a valorizar ou fazer sobreviver aspectos fundamentais da alteridade.
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Transformações históricas e atmosferas culturais na tessitura das formas de adoecimento Um grupo de estudos fundamentais na reflexão provocada a partir da virada biológica da psiquiatria tem sido o que examina a relação entre doença mental e história. Alguns analisam as razões que levariam ao aparecimento eventual de certas doenças mentais por um curto período histórico. Aqui, temos o trabalho paradigmático de Ian Hacking (1998), onde ele descreve o caso de Albert Dadas, de origem francesa, conhecido por suas notórias expedições por países longínquos, sendo a primeira pessoa a ser diagnosticada como um viajante louco. Esses estados de fuga, apresentados por viajantes em estados de consciência alterada, duraram entre finais do século XIX e o início do século XX. Segundo o autor, a combinação, naquele período, de um turismo muito em voga com o medo dos crimes associados à vagabundagem pode ter constituído o nicho ecológico que fez desses loucos, que vagavam de um país a outro, o alvo de constituição de uma doença médica particular. Com isso, Hacking apresenta o conceito de polaridade cultural, indicando-o como um dos elementos-chave para se compreenderem as doenças mentais transitórias. Este conceito definiria fenômenos sociais muito prevalentes, mas, ao mesmo tempo, opostos na sua significação cultural: um virtuoso e outro vicioso (virtuous and vicious). Tomando ainda outras doenças mentais epidêmicas, o autor tenta diferenciar afecções «reais» de artefatos culturais, defendendo que a ‘realidade’ de uma doença só encontra resposta se explorado seu nicho ecológico, uma espécie de substância ética de uma cultura, que favorece a sua emergência. O trabalho de Allan Young (2001) segue este argumento, mostrando que o transtorno de estresse pós-traumático se constitui, na clínica contemporânea, como uma nova maneira de trabalhar sobre a infelicidade moral. Ele descreve em que circunstâncias de uma organização sanitária voltada para excombatentes de guerra do Vietnam esse transtorno emerge e mobiliza um extraordinário programa de pesquisas neurofisiológicas em torno de si, o que, por sua vez, também justifica a sua manutenção. Para Young, esse transtorno se inscreve na intercessão de pesquisas biológicas e de interesses sociais, econômicos e políticos. A novidade se encontra especialmente na constituição de um tipo particular de paciente que é pura vítima, condição justificada por explicações médicas que negam qualquer participação de desejos, conflitos e, mesmo, do inconsciente na sua produção. Analisando as condições de produção dessa doença, Young se questiona se ela terá ou não um futuro. Tornar-se ou não uma doença transitória, só a história pode dizer; no entanto, independentemente de uma eventual circunscrição restrita no tempo, todas as doenças mentais têm uma historicidade, na perspectiva em que elas refletem a atmosfera cultural de um tempo. É nessa linha que Davis (2008) analisa a relação entre a obsessão, enquanto traço cultural positivo, e a neurose obsessiva, mais particularmente o transtorno obsessivo-compulsivo, tomando-as como polaridades culturais. Relaciona, na primeira metade do século XIX, na cultura popular, uma tendência a premiar o ideal das paixões obsessivas e a capacidade obsessiva de seguir um objetivo na vida. Vai até o extremo, encontrado no século XX, onde a focalização, a minúcia e a repetição tornam-se traços extremamente requeridos, observados, por exemplo: na necessidade de checar e-mails em períodos mínimos de tempo, na adição sexual, ou na estética obsessiva das artes. Davis sugere que o aumento expressivo do diagnóstico de obsessão na modernidade se relaciona com a presença desse traço obsessivo em uma cultura que, em face das suas mudanças tecnológicas, passa a supervalorizar comportamentos rotinizados e atenções estreitamente focalizadas. Este aumento atinge o seu ápice nos últimos trinta anos, com a sua conformação no diagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Não negando a importância de buscar as bases neuroquímicas dessas doenças, ele argumenta que oferecer aos médicos e aos pacientes a possibilidade de considerá-las na integralidade de seus aspectos sociais, culturais, históricos e políticos aumentaria a chance de resultados favoráveis para os seus tratamentos. Observa-se, portanto, que as polaridades culturais inscrevem e significam sintomas em valores culturais historicizados. Garantem-lhes, assim, uma compreensibilidade coletiva, ao mesmo tempo em que permitem jogos intersubjetivos empreendidos entre as produções diagnósticas, seus usos e os interesses desses usos. Processos históricos, dinâmicas sociais, relações de poder e trajetórias subjetivas se interinfluenciam na definição do destino, incerto e imprevisível, dado aos diagnósticos tanto em seu COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.903-15, out./dez. 2012
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tempo histórico quanto biográfico. Estas interações complexas dificultam previsões lineares, linhas de continuidade e relações de determinação ligadas a doenças específicas. A partir dessas constatações, autores vão tomar por objeto os processos de transformação de doenças de base afetivo-emocional em desordens biológicas. Analisam as mudanças históricas que favorecem o esteio social dessas transformações, ao mesmo tempo em que instauram uma ruptura semântica entre as mesmas. Concluem que novas entidades são produzidas, embora uma estratégia naturalizadora instaure uma linha de continuidade histórica, garantida por um mito de origem que afirma que elas sempre existiram, embora fossem subdiagnosticadas. Pierre-Henri Castel (2008), por exemplo, vai estudar as origens da neurose obsessiva, relacionando-a ao crescimento do protestantismo na sociedade alemã. Religião cujo etos está referido à ideia de que a graça deve preceder as ações, ela inscreve nestas todo tipo de impedimentos, dúvidas e indecisões. A neurose obsessiva seria uma doença da dúvida e surge em um momento onde a culpabilidade se torna um organizador moral no centro da economia psíquica. Transformações históricas vêm ligadas a ideais de construção de pessoa e, com essas, diferentes formas de individualismo produzem formas distintas de objetivação da mente e de afetação psíquica. Segundo Castel, mudanças históricas nos fins do século XX trazem consigo novas representações de constrangimentos morais, e outros ideais substituem a culpabilidade como organizadora da economia psíquica. A autoafirmação dos indivíduos ganha preeminência enquanto valor e se torna uma condição normativa. Com a redução de um estado coercitivo, aumenta a introjeção do controle de si. O transtorno obsessivo-compulsivo, diferentemente da neurose obsessiva, seria, assim, uma doença do escrúpulo, e não da dúvida, sendo as ameaças sentidas mais de dentro de si mesmo do que de fora, do espaço social. Corrobora, assim, o que Gori (2010), em acordo com Hacking, chama a atenção quando fala das psicopatologias “enquanto reveladoras da substância ética da cultura da qual elas emergem e que elas contribuem, em retorno, para recodificar” (Gori, 2010, p.6). De uma outra perspectiva, Lane (2006) vai analisar a patologização crescente de comportamentos humanos antes tidos como diferentes, porém normais e anódinos. Associa a criação de novas patologias a interesses mercadológicos das indústrias farmacêuticas, que dão sustentação a associações em torno dessas patologias e se aliam a grupos de psiquatras, investindo somas estratosféricas no marketing das mesmas. Baseado na virada biológica da psiquiatria, que explica comportamentos patológicos a partir de disfunções cerebrais, verifica-se o crescimento exponencial de comportamentos tornados anormais e categorizados nas nosologias dos DSM, para os quais progressivas descobertas psicofarmacológicas aportariam um tratamento. Esse é, para o autor, o solo social e econômico-científico da transformação, por exemplo, da timidez em fobia social. Surge uma tendência à intolerância aos introvertidos, misantropos, pessimistas, entre outros personagens que povoavam as sociedades, fazendo parte das múltiplas formas de subjetividade humana. Esta intolerância e a patologização destes comportamentos seriam o resultado, segundo o autor, de uma fantasia de que, desenhando o nosso próprio cérebro, seremos capazes de calibrá-lo. Lane (2006, p.408) prossegue afirmando que «[a] psicofarmacologia transforma essa fantasia em uma demanda ética», quando concebe esses ‘transtornos psiquiátricos’ como problemas da vida humana que as drogas podem eliminar. As análises empreendidas por esses autores favorecem a apreensão da atmosfera cultural e do ar do tempo que matizam a experiência coletiva de mal-estares e formas de sofrimento a partir de um campo semântico e pragmático que as circunscreve. Como campo semântico e pragmático, entendemos um conjunto de valores, símbolos, construções de pessoa e modos de fazer compartilhados e produzidos em contextos sociais definidos a partir de uma conjuntura histórica, que envolve relações de poder e econômicas, semelhante ao que Foucault chama de dispositivos ou práticas discursivas. Nesse caso, sintomas e patologias subscrevem valores morais e se situam em relações sociais concretas, refletindo e participando dos jogos de posicionamento social e sofrendo os efeitos dos seus conflitos e dinâmicas sociais.
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Categorias diagnósticas: as tramas antropológicas das suas estandardizações e o manejo do social nas geografias clínicas A relevância do diagnóstico psiquiátrico é um tema extremamente debatido em vários dos seus aspectos: social, pela relação que ele estabelece com a rotulação e a estigmatização das pessoas; clínico, na definição de quadros nosológicos e no que diz respeito às informações relevantes que ele aporta para um tratamento mais eficaz; na pesquisa, no que tange à capacidade de comparar taxas de prevalência de doenças mentais em diferentes países. Menos comum, no entanto, é a problematização dos processos científicos de definição e estandardização desses diagnósticos em suas interfaces com situações sociais concretas. Alguns estudos etnográficos têm se debruçado sobre as neurociências, tanto nos seus processos de descoberta de novas patologias quanto na definição dos seus mecanismos neurobiológicos e genéticos. Esses estudos têm sido importantes ao exporem as malhas pelas quais o biopoder se manifesta. Evidenciam, por outro lado, as formas de negociação social ou entre tradições culturais pelas quais os regimes de verdade são desafiados. Como representante desse grupo de estudos, temos Andrew Lakoff (2005), que se interessa pelo modo como se produzem regimes de estandardização e técnicas transnacionais de regulação de diagnósticos em psiquiatria. Com esse propósito, vai estudar a cooperação científica estabelecida entre uma companhia biotecnológica francesa e uma instituição psiquiátrica argentina que visam a desenvolver um projeto de identificação e patenteamento de genes humanos ligados aos transtornos afetivos bipolares. O autor desenvolve o artigo em torno de temas relacionados à consistência diagnóstica em psiquiatria. Descreve a fragilidade da construção diagnóstica advinda de consultas rápidas, pautadas em protocolos de pesquisa predefinidos. Apresenta o problema conceitual ligado ao reconhecimento do fenótipo de doenças mentais, de cuja definição dependem acordos de que amostras genéticas seriam tiradas de pessoas com um mesmo diagnóstico. Esse aspecto torna-se delicado quando se analisam as doenças mentais historicamente e se observam as variações nas fronteiras que as distinguem entre si. Estas variações teriam um impacto desfavorável na definição de genótipos e de gens dominantes para tipos específicos de doenças. A questão sobre o grau de equivalência entre doenças mentais e somáticas estaria ligada ao modo pelo qual a psiquiatria conseguiria estabilizar os seus objetos, evidenciando múltiplos elementos em jogo. Estandardizar critérios envolve a capacidade da psiquiatria de produzir e difundir artefatos que transcendam condições locais, tais como os manuais diagnósticos, tornando comportamentos patológicos globalmente transferíveis. Além disso, implicariam a definição nacional de normas administrativas que adotem e tornem hegemônicos esses artefatos, tornando-os necessários a fins diversos, dentre os quais os protocolos de seguros e benefícios. Contraditoriamente, segundo o autor, a ecologia da expertise local pode estar (como na Argentina, especialmente pela forte presença da tradição psicanalítica) pautada na resistência a esses critérios, na suspeição dos diagnósticos e em elementos de prestígio profissional diferentes daqueles ancorados na publicação de artigos científicos de base universal. Lakoff conclui evidenciando que as condições locais, de um contexto nacional específico, aportam camadas de complexidade para o debate que precedem as descobertas genéticas e que envolvem o diagnóstico. Elas colocam em movimento, de um lado, relações entre ciência, indústria e administração da saúde, veiculando o que o autor chama de liquidez diagnóstica (sua transferabilidade); de outro lado, uma cultura profissional, com suas bases epistemológicas, além dos modos de autoidentificação de sujeitos em torno de uma determinada doença. Para o autor, ainda que a circulação científica de informações do domínio da genômica seja um aspecto-chave para a sua estandardização, ela, por si só, não garante a transformação da identidade do paciente nem a estabilização da doença. As evidências apresentadas por Lakoff, através da desconstrução do processo pelo qual pesquisas científicas são realizadas, permitem confrontar a naturalização com a qual resultados de pesquisas neurobiológicas são expostos e antecipados. Outros estudos têm se dedicado a compreender os usos clínicos dos diagnósticos e dos tratamentos psiquiátricos, seus efeitos e devires sociais para além do cientificamente previsto.
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Jupille (2011), estudando o tratamento de crianças com transtorno da atenção com ou sem hiperatividade (TDAH), em um serviço universitário de orientação cognitivista em Paris, observa que estabelecer um diagnóstico é fruto de um processo de negociações estabelecido entre vários atores (professores, pais, profissionais, laboratórios). Alguns desses atores apresentam representações divergentes quanto à doença, reflexo de controvérsias na sociedade mais vasta. Jupille descreve o alívio das famílias quando recebem uma explicação neurobiológica para o transtorno e tratamento medicamentoso e psicoeducativo, buscadas através de demandas estereotipadas em fórmulas que agregam os sintomas mais importantes da doença, dirigidas às instituições de cuidado. A despeito dessa unificação da diversidade pelo diagnóstico, o autor observa que o curso do tratamento individualiza as queixas e permite singularizar as situações das famílias. Observa que a satisfação com o medicamento (metilfenidato) é transitória, o que exige permanentes reajustes da sua dose, refletindo o processo de individualização do cuidado. O autor conclui que o papel do medicamento é o de servir como um articulador central das relações socioafetivas que passam a se estabelecer entre os membros das famílias que possuem um(a) filho(a) com esse diagnóstico, produzindo um trabalho sobre a relação, mudando o cotidiano dos mesmos e melhorando a reinserção social das crianças. Por sua vez, as mudanças propiciadas pelo diagnóstico dependem, de um lado, dos acordos, ou desacordos, produzidos pelas formas de dar sentido às dificuldades da criança e, de outro, das táticas de homologação desenvolvidas pelos pais com a ajuda dos técnicos. Esse estudo permite entender que o resultado dessa abordagem clínica é altamente dependente da lógica social das relações, estando muito distante das assertivas essencialmente naturalistas propostas pela neurobiologia quando se refere ao efeito das medicações sobre o controle de comportamentos disfuncionais. A incorporação do social por psiquiatras, no manejo do diagnóstico, é proposta, de modo ainda mais contundente, por Béhague (2009). Seu estudo, realizado no âmbito da clínica psiquiátrica voltada para adolescentes de Pelotas, Brasil, oferece insights acerca da correlação entre o discurso, a prática biopsiquiátrica e seus processos psicossociais. Na parte qualitativa desse estudo, a autora acompanha, durante nove anos, um grupo de adolescentes, com diagnóstico de problemas de conduta, tratados psicoterapeuticamente por psiquiatras em serviços públicos de saúde mental dessa cidade. Busca, entre outros objetivos, discutir a modalidade e o processo de biomedicalização dessa sociedade. Para isso enfoca o aparente paradoxo entre uma psiquiatria que realiza tantos diagnósticos pautados em definições comportamentais (revelado por dados epidemiológicos do mesmo estudo, que mostram um crescimento desses diagnósticos prioritariamente atribuídos a crianças de baixa renda e a jovens do sexo masculino) e uma clínica psicoterapêutica socialmente orientada. O argumento principal da autora se constrói a partir da análise de casos bem-sucedidos de acompanhamento terapêutico, onde as respostas favoráveis dos adolescentes resultaram de uma relação terapêutica centrada na elaboração (psíquica) dos determinante sociais à base dos seus comportamentos, a partir de uma perspectiva terapêutica politizadora. Descrevendo essas terapêuticas, o(a)s jovens evidenciavam um aumento do seu poder de análise dos conflitos da sociedade onde viviam, observando a relação entre suas dificuldades pessoais e os sentimentos que experimentavam quanto às injustiças sociais. Além disso, produziram formas mais legítimas de rejeição às mesmas, tais como o ativismo político, ou outras formas de empoderamento. O resultado, segundo a autora, é uma transformação psi-induzida, onde se produz um deslocamento de uma perspectiva individualizada para outra mais coletiva, acompanhada de mudanças pessoais e estruturais na experiência dos jovens. Na análise de Béhague, esse tipo de terapia encontra-se fortemente enraizado em práticas psiquiátricas política e socialmente sensíveis, fruto de um pensamento desenvolvido a partir de contradiscursos nascidos dos movimentos antipsiquiátricos, no processo da reforma psiquiátrica brasileira. A autora evidencia que profissionais sensíveis às condições sociais nas quais se produzem sofrimentos humanos têm a capacidade de se distanciar do aspecto categorizador dos diagnósticos para fazer emergir as lógicas sociais subjacentes ao mal-estar dos sujeitos. Categorias diagnósticas podem ser também consideradas como pré-textos para comunicar problemas e produzir significados, os quais são fortemente dependentes dos espaços materiais e sociais nos quais eles ganham forma. Das e Das (2007) sugerem que os estudos sobre os significados das doenças têm dado pouca atenção à especificidade das condições sociais nas quais as pessoas experimentam a saúde e a doença. Esse aspecto pode ser explorado no campo da saúde mental, observando-se em que medida 908
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condições de pobreza, marginalidade e desigualdade social encontram eco nas formas pelas quais os terapeutas, mas também os doentes, manejam diagnósticos psiquiátricos. As autoras evidenciam a precariedade da vida cotidiana de certos bairros populares como um complexo que constitui uma ecologia local que engloba circunstâncias políticas e econômicas colocadas em jogo no momento de circulação e de manipulação de diagnósticos, bem como nos sentidos que eles favorecem a elaboração. Em contextos marginais ao próprio enquadramento psiquiátrico, esses usos podem também ser observados. Um bom exemplo é o trabalho de Lovell (2001) que estuda moradores das ruas de Nova York com delírios identificatórios, evidenciando como esses sintomas mentais canalizam imperativos morais e conteúdos identitários sustentados por uma lógica social. A autora descreve a significação social da vida na rua, problematizando a relevância da identidade social em um tal contexto, que a faz adquirir uma qualidade de mediadora das interações sociais. Viver na rua exige o domínio de um verdadeiro teatro de apresentação de si, o que envolve corpo, gestos e palavras na modelagem dos seus contornos identitários. Segundo Lovell, esse trabalho de identificação ganha maior importância quando os sem domicílio são percebidos como «loucos» (Lovell, 2001, p.132). A versão delirante da fabricação de si ocupa, aqui, um lugar fundamental, cujo aspecto fictício é facilitado pelos espaços intersticiais da rua. Esses delírios parecem repousar em situações relacionais, influenciadas por pertencimento étnico ou de gênero, funcionando como estratégia para embelezar o passado de pessoas que romperam seus laços familiares. Diferentemente de diagnósticos comparáveis na psiquiatria, tais como as síndrome de Capgras ou de Fregoli, os delírios da rua parecem mais afeitos a mecanismos de sobrevivência em face da aniquilação social, colocando em jogo questões de racismo envolvidas nos pertencimentos étnicos. Delírios desse tipo são inteligíveis à luz da experiência de discriminação, evidenciam um mecanismo de inversão diante do sentimento de desrespeito, fazendo apelo a um registro de justificação em uma sociedade de direitos e de cidadania. Essas ficções de si funcionam em uma lógica social de comunicação com os outros, uma forma de produção de rede social (verdadeira ou não), enfatizando modelos transacionais. As situações sociais e contextos econômicos de inscrição também influenciam posturas profissionais na utilização e avaliação dos novos recursos etiológicos, diagnósticos e terapêuticos definidos pela biopsiquiatria. Muitas vezes, fascinados pelas promessas anunciadas pelas descobertas científicas e pelas novas tecnologias colocadas à disposição de sociedades de capitalismo avançado, os pesquisadores se esquecem que um sem número de países, ainda que expostos aos regimes de verdade neurobiológicos e às redes de influência das indústrias farmacêuticas, estão à margem do acesso às mesmas. Good (2007), em estudo realizado em Java, Indonésia, verifica, na psiquiatria javanesa, a influência de um projeto de essencialização biológica da doença mental, interpretando-o a partir dos avanços na síntese de novos psicofármacos mais eficazes, aliados aos interesses de ampliação de mercados de medicamentos e de biotecnologia, ao que se associa a vontade do país de desenvolver seu projeto de modernidade. Esse projeto, no entanto, encontra inúmeros obstáculos, diretamente sentidos na prática psiquiátrica, onde um contexto de baixa renda impossibilita o real acesso aos avanços oferecidos pela psiquiatria contemporânea, gerando um sentimento de inadequação. Além disso, os psiquiatras javaneses, segundo Good, não pareciam completamente convertidos a esse projeto e se ressentiam da progressiva racionalização e desencantamento do mundo e dos processos de cura. Alguns destes se diziam capazes de distinguir doenças de causa biológica daquelas de origem espiritual, dentre os quais existiam aqueles que associavam dois tipos de prática: psiquiatria moderna e terapêutica tradicional. Essa soma de precariedade econômica e de valores tradicionais em certas sociedades é importante no incompleto sucesso e complexa configuração do projeto de biossocialidade dos sujeitos nesses contextos. As descrições antropológicas das formas pelas quais essa densa textura do social interage com sintomas psiquiátricos informam acerca da inelutável constituição multifatorial das doenças mentais: na construção histórica do normal e do patológico; nas condições materiais da sua experiência e consequente incorporação das mesmas nos seus sintomas, ou no desvendamento da sua compreensão; na recuperação dos recursos biológicos na (re)tessitura de laços sociais; nos interesses socioeconômicos em jogo na economia das terapêuticas e da produção das doenças. No próximo grupo de estudos, vamos deslocar o foco dos recursos psiquiátricos e seus usos para os recursos socioculturais, naquilo que 909
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eles oferecem de permeabilidade social às experiências de alteridade vividas por pessoas com diagnósticos de psicose, ou ainda nas formas singulares pelas quais as pessoas jogam com os mesmos para conviver, comunicar e socializar a sua diferença.
Subjetividades recessivas: a elaboração e comunicação dos sentidos da loucura pelo trabalho da cultura A cultura psiquiátrica moderna, tendo em vista a sua hegemonia epistemológica e tecnológica, quase inevitavelmente, atravessa os vários campos da saúde e da doença mental; do mesmo modo, o social a ressignifica e modifica. Observam-se que outras dimensões da cultura, tais como o domínio da espiritualidade, da arte etc., também participam da articulação e significação das experiências de alteridade, fazendo parte do que Obeyesekere (1990) chama do trabalho da cultura na elaboração das experiências coletivas e pessoais, em analogia ao que Freud chamou do trabalho do inconsciente na elaboração das questões psíquicas. Uma parte desse trabalho se realiza através do que Corin (2007) identifica como dimensões culturais estruturantes, que inscrevem e contêm tensões que vão orientar o jogo social em relação às suas alteridades, dentre as quais a loucura, favorecendo ou dificultando o seu lugar social. Outra parte, não menos relevante desse trabalho, se realiza através dos múltiplos jogos subjetivos de utilização dos recursos culturais, complexificando e modificando essas relações dinâmicas com a alteridade. Assim, por exemplo, experiências de um mesmo diagnóstico psiquiátrico podem ser vividas de modo diferente em função dos contextos nos quais esse trabalho da cultura se realiza e dos usos da cultura na articulação dessas experiências. O estudo de alguns desses aspectos tem evidenciado a possibilidade que eles abrem a uma posição de maior compreensão, comunicação, respeito, ou acolhimento da diferença. Esses estudos reposicionam sintomas como dimensões da experiência subjetiva e social, restituindo-lhes a possibilidade de fazerem sentido dentro de uma lógica relacional e humana. A partir de estudo realizado em Montreal, Corin e Lauzon (1992) observam que os esquizofrênicos menos frequentemente hospitalizados, pareados por idade e gravidade da doença com os mais hospitalizados, eram aqueles que tendiam a positivar o seu modo mais isolado de estar no mundo. Corin denomina essa experiência de retraimento positivo (retrait positif), usando esse conceito para dialogar com um clássico sintoma negativo da esquizofrenia - o retraimento ou isolamento. Essa positivação poderia se dar: pela valorização de estados de isolamento como formas de marcar uma diferença concebida como positiva; pela mediação estabelecida com as suas relações sociais ou no desempenho dos seus papéis sociais. Para isso, essas pessoas colocavam em ação formas muito particulares de reinterpretação idiossincrática de recursos culturais, de bricolagem com os significantes religiosos, de escolha de espaços mais sintônicos com sua percepção subjetiva do mundo e de jogos relacionais onde uma aproximação distanciada era habilmente construída de modo a garantir para si “um espaço pessoal de proteção às margens do mundo ordinário ‘normal’ “ (Corin, Lauzon, 1992, p.280). Com base em suas investigações na Índia, Corin (2007) complexifica seu quadro conceitual, interessando-se por aspectos estruturantes da cultura que favoreceriam modos de subjetivação dessa ex-centricidade do sujeito. Comparando as experiências dos psicóticos e de seus familiares nesse país, a autora verifica que, se ambos recorriam bastante à religião para lidar com a experiência da esquizofrenia, os primeiros, no entanto, não recorriam aos mesmos significantes religiosos nem os interpretavam da mesma forma que os segundos. Enquanto os pacientes os usavam de modo a tentar nomear, domesticar e, de certo modo, integrar um penetrante sentido de estranheza; “[e assim] deixar a estranheza intacta – e possivelmente até a protege[r]”; do seu lado, os familiares “tentavam apagar e diminuir a esquisitice do comportamento dos pacientes e integrá-los em um quadro coletivo e culturalmente texturizado” (Corin, 2007, p.299, minha tradução). Corin conclui dizendo que essas discrepâncias remetem a uma heterogeneidade presente na própria cultura indiana. Esta diz respeito à religião hinduísta, na qual se observa uma tensão entre ritual e adoração, de um lado, e práticas ascéticas e iluminação, de outro (Madan, 1987 apud Corin, 2007). As primeiras, consideradas importantes no cumprimento das tarefas no mundo, de acordo com a noção de dharma, estariam mais próximas dos usos que os familiares faziam da religião; enquanto as últimas, 910
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extremamente valorizadas na renúncia dos sadhus, sendo considerada o apogeu da vida, estariam mais condizentes com os modos pelos quais os pacientes situavam sua experiência de alteridade. Para Corin (2007), essa heterogeneidade estrutural no interior da cultura abre espaço para que as pessoas joguem com a mesma na perspectiva de construírem trajetórias próprias e, no caso dos psicóticos, explorarem e conterem seus sentidos de estranhamento e articularem um espaço de diferença. Como hipótese, ela sugere que esses jogos teriam um efeito favorável na evolução da doença, uma das razões pelas quais o prognóstico da esquizofrenia seria melhor na Índia quando comparado com os Estados Unidos, como encontrado por Sartorius (1986). Em pesquisa realizada em Cachoeira, Bahia (Nunes, 1999), foi observado que a existência e a utilização do idioma do Candomblé por pessoas psicóticas também eram uma forma importante de lidar com a experiência de alteridade e abria canais de relação com a comunidade, favorecendo uma inserção social, ainda que paradoxal. Além do aspecto de comunicação, o que pareceu mais estruturante e protetor na utilização dos recursos dessa religião foi a sua utilização idiossincrática pelas pessoas psicóticas, de modo a dialogarem com o estranhamento da experiência, o que foi denominado de reescrita do idioma religioso. Essa reescrita dizia respeito ao fato de que as pessoas psicóticas estudadas, apesar de resistirem a um enquadramento religioso enquanto adeptas e a despeito de confessarem um estranhamento acerca do saber fazer do candomblé, desenvolviam formas singulares de utilizá-lo na sua vida cotidiana. Essas utilizações ajudavam-nas a criar relações privilegiadas e diretas com divindades do candomblé, não mediadas pela intervenção de líderes religiosos, nem pelas obrigações rituais tradicionais. Ao contrário, estas eram criadas pela bricolagem desses saberes tradicionais com interpretações próprias, muitas vezes ligadas a um imaginário psicótico, envolvendo ideias de perseguição, de grandeza ou de poderes extraordinários. Outra utilização importante era a de nomear ou significar experiências estranhas e ameaçadoras a partir de explicações religiosas, tais como: escutar vozes malignas como sendo a voz de Exu; ler o pensamento dos outros como uma habilidade de um médium de audição; sentir algo controlando a sua voz como a influência de Preto Velho; apresentar visões de animais peçonhentos como sinal mágico; ou apresentar alterações sensoriais olfativas, o cheiro de coisas em putrefação, como indicação de que algum feitiço tinha sido enviado para lhe fazer um mal. Outros usos seriam aqueles situados a meio caminho entre um saber fazer tradicional e um arranjo ‘estranho’. Como exemplos desse arranjo, observaram-se: a utilização de folhas de mariô, à moda de terreiros de candomblé, na entrada da casa, como uma proteção contra a invasão de males invisíveis; a utilização de flores e de garrafas de bebida, retiradas do lixo, para uma oferenda a Janaína; a receita com pimenta da costa para esquentar a cabeça daquele que detém a guarda de um filho, perdida sob determinação judiciária, para assim fazê-lo voltar. Todos esses usos, encontrados entre as mulheres estudadas, mantinham-nas, paradoxalmente, em contato e em interlocução com seus vizinhos e parentes. Entendidos como bizarrices de quem tinha o ori (cabeça) fraco, esses usos permitiam-lhes, contudo, tornar menos aterrorizadores pensamentos intrusivos, tornar mais sagrados e nobres comportamentos impertinentes e atribuir poder a discursos exaltados. Outros resultados etnográficos que este estudo aporta são as convergências entre as utilizações idiossincráticas de uma cultura pelas pessoas doentes e as brechas coletivamente construídas dessa malha cultural que possibilitam a não-rejeição desses sujeitos. Entre essas importantes construções culturais, destacam-se as sutis possibilidades de resgate de histórias que derraparam dessa trama simbólica, condensadas no conceito de resgate transgeracional da desordem. Por este conceito, o candomblé operaria a partir de uma lógica onde um indivíduo doente é imediatamente inscrito em uma trama social de formato intergeracional. Neste, uma pessoa de segunda ou, principalmente, terceira geração pode resgatar a desordem que caiu sobre os ombros de um dos membros antecessores da sua família, abrindo-lhe a possibilidade de resgatar certa ordem, ou reposicionamento, no mundo social e físico. Para isso, o membro dessa geração sucessora deve reparar o mal, realizando, ele mesmo, os rituais ou cuidados espirituais transgredidos pelo seu familiar. Esse conceito é fortalecido por um outro, a recessividade social da doença, proposto por Zempléni (1977), que informa essa condição não atomizada, ou coletiva, do adoecer, que implica necessariamente outros no reordenamento do mal, incluindo uma série de reorientações sociais e relacionais para além dos atos simbólicos. 911
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O resgate transgeracional da desordem foi, entre outros, um dos aspectos estruturantes do candomblé de Cachoeira, que surgiu como recurso utilizado por algumas pessoas para imaginarem um futuro mais alvissareiro para certos domínios coercitivos da loucura, inclusive o de ser colocado à margem dos laços familiares. Através dele, uma mulher readquire a chance de ter sua neta iniciando-se nos rituais em que ela, num momento frágil da sua história, não pôde se engajar (Nunes, 2000). Outra, por sua vez, compreende sua ‘crise de loucura’ como o chamado de um orixá para reparar o curso desviante de sua família em relação a obrigações rituais diante de uma divindade. Esses aspectos remetem a uma psicologia cultural local (Good, 2007), que oferece recursos mais favoráveis ao acolhimento ou ao manejo de certos aspectos da estranheza da experiência psicótica, ou da sua diferença.
Conclusão As interseções pelas quais tentamos conduzir o leitor neste artigo, situadas entre história, cultura, sociedade e biologia, buscam traduzir a doença mental nos seus nós, dificilmente desatáveis. Elas surgem como os contornos destacados de uma paisagem, de modo a fazer ressaltar, sucessivamente, um ou outro elemento, à moda de uma gestalt. Em certos momentos, o que sobressai são as explicações neurobiológicas, que vêm aliviar fardos e sentimentos de culpa; em outras ocasiões, são as tradições culturais que, na vida concreta de muitas pessoas, vão nuançar os males psiquiátricos, tornando sintomas ‘hard’ mais leves e fáceis de dominar. Onde quer que se situem, na perspectiva de um corpo biológico, ou naquela de um corpo social, as várias dimensões da experiência humana realizam interseções na tentativa de produzirem significados. Esta produção não é espúria ou periférica; ela constitui os fenômenos, atribuindo-lhes densidade. Para compreendê-la, escolhas analíticas são feitas de forma a ultrapassar a armadilha de dispor, de modo apenas sobreposto, as camadas que compõem a existência individual ou coletiva por cujas articulações a experiência do adoecimento se efetua. Este artigo colocou, portanto, como objetivo examinar algumas dessas análises, finamente construídas a partir de diferentes aportes teórico-metodológicos, nas suas evidências empíricas das formas pelas quais se modela a espessura biopsicossociocultural do adoecimento mental. Nesse adensamento, vimos que as polaridades culturais do vício e da virtude podem, como diz Hacking (1998), inscrever as doenças nos seus nichos ecológicos, e essa inscrição pode favorecer a positivação de experiências dolorosas, pela situação do patológico em um continuum mais alvissareiro com os excessos do normal. A compreensão desses nichos ecológicos permite, talvez, aos que sofrem desses males, não estarem sozinhos no desvio da rota, mas perceberem os movimentos do coletivo envolvidos na modulação dos desvirtuamentos de um tempo. Esse movimento pode remeter ao conceito etnográfico de Zempléni, a recessividade social das doenças, mais evidenciado, segundo o autor, em sociedades predominantemente sociocêntricas, onde os males não são apenas de responsabilidade individual ou resultado de heranças genéticas deterministas, mas, necessariamente, envolvem os grupos no seu enlace e desenlace. Na saúde coletiva, isso se aproximaria do conceito de consciência sanitária, tendo este último um sentido maior de positividade e sendo fruto de uma produção mais induzida sobre os grupos do que de uma vivência socialmente incorporada, como os anteriores. Nessa paisagem da saúde mental, observam-se ainda que as tramas do social atualizam as tecnologias e incorporam-nas nas suas formas de produzir lógica, o que a clínica evidencia amplamente, revelando o senso prático da ciência. Daí que os discursos dos progressos científicos estejam sempre um tanto descompassados em relação aos seus efeitos sociais. A não ser que esses efeitos sejam entendidos como os de uma ideologia favorável aos mesmos pela produção de mentalidades mais receptivas e consumidoras de tecnologias e medicamentos, o que justifica tanto investimento midiático e publicitário em novas descobertas. Quanto a isso, Bourdieu (2003) chama a atenção para o fato de que uma determinada ordem social pode ganhar eficácia pelo fato de apoiar-se sobre uma relação de dominação inscrita em uma biologia, 912
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que é, ela mesma, uma construção social biologizada. A configuração de universalidade de certos ordenamentos, que se impõem como autoevidentes e universais, ganhando ares de uma profunda necessidade, pode dissimular possibilidades que escapariam, assim, do reconhecimento da falta de justificativa. Tal como sugerido por Hoy (1999), a própria biologia, quando colocada para uso social, se torna uma categoria socialmente construída, que pode servir para construir possibilidades sociais. Assim, notam-se: mudanças expressivas nas nosologias psiquiátricas contemporâneas, um aumento exponencial de pessoas diagnosticadas com novas patologias e um avassalador consumo de novas drogas. No entanto, modulando a pretensão universalista à base desses saberes, observam-se os contornos locais dessas mudanças, as formas de resistência às mesmas, e as refrações nos seus usos e significados evidenciam o que chamamos de geografias clínicas. O que se vê é que as intempéries e vicissitudes da vida concreta dos sujeitos servem de bússola a partir das quais as pessoas lançam mão dos recursos disponíveis para desatarem os nós que tensionam as relações humanas nas quais estão inseridas. Produzem-se o que chamamos das subjetividades socialmente recessivas, que elaboram e comunicam os sentidos das experiências de sofrimento psíquico pelas dobradiças do trabalho da cultura. A disponibilidade de recursos culturais, no entanto, não é assim tão uniforme, nem são da mesma natureza de uma sociedade a outra. Os usos desses recursos aparecem como formas de nomear, significar, tratar e negociar com os vários sofrimentos da alma, e tendem a problematizar os regimes de verdade naturalistas. Como diz Hoy (1999, p.7, minha tradução): «o ponto é que a invariância não precisa ser completamente negada, mas a real universalidade dessas invariantes pode ser tão diluída a ponto de torná-las desinteressantes, ou rasa demais para responder às mais interessantes e críticas questões» acerca das complexas experiências de pessoas que vivenciam sofrimentos psíquicos.
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NUNES, M.O.
NUNES, M.O. Intersecciones antropológicas en salud mental: de los regimenes de verdad naturalistas a la densidad bio-psico-sociocultural de la enfermedad mental. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.903-15, out./dez. 2012. En la psiquiatría contemporánea, un proyecto hegemónico trans-nacional centrado sobre un discurso naturalista acerca de las enfermedades mentales propaga un régimen de verdad anclado en la propuesta de explicación de su fisiopatología y en el dominio de su tratamiento. A pesar de su gran difusión, un grupo de estudios demuestra como ese discurso repercute de forma diferente en contextos culturales específicos. Un segundo grupo analiza las construcciones históricas de las enfermedades mentales, definiendo polaridades culturales que valorizan como virtuosos o viciosos determinados comportamientos. Un tercer grupo analiza los usos de recursos culturales como un modo de negociar experiencias de alteridad, produciendo contextos más abiertos a la diferencia. Este artículo es una revisión de esas perspectivas, destacando intersecciones entre historia, cultura, sociedad y biología en la base de las enfermedades mentales.
Palabras clave: Antropología médica. Enfermedad mental. Utilización de medicamentos. Construcción social. Alteridad.
Recebido em 16/12/11. Aprovado em 07/07/12.
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Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2012
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Avaliação do processo de acolhimento em Saúde Mental na região centro-oeste do município de São Paulo: a relação entre CAPS e UBS em análise Adriano Kasiorowski de Araujo1 Oswaldo Yoshimi Tanaka2
ARAUJO, A.K.; TANAKA, O.Y. Evaluation of the reception process in mental healthcare in the central-western region of the municipality of São Paulo: analysis of the relationship between psychosocial care centers and primary healthcare units. Interface Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.917-28, out./dez. 2012. This paper reports on experience of evaluating mental healthcare reception in the city of São Paulo-SP, based on interviews with workers at a psychosocial care center and two primary healthcare units. The aim was to understand the reception, through considering the workers’ perceptions and identifying network linkage and connection in this process. Philosophical hermeneutics was used as the method for identifying which of the participating elements in the reception process could be highlighted. The narratives were then analyzed along three lines of argument: linkage, reception and connection of the network. This resulted in four categories: feeling of absence, mixture of models; primacy of hard technologies and inefficiency of comprehensiveness. The discussion indicated that these categories were intertwined, and placed investment in soft technologies at the center of the debate for overcoming the feeling of absence and mixture of models, and for constructing comprehensiveness of care.
Keywords: Evaluation. Mental Health. Reception.
Este trabalho relata a experiência de avaliação do acolhimento em saúde mental na cidade de São Paulo-SP, utilizando entrevistas com trabalhadores de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e duas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Objetivou entender o acolhimento, considerando a percepção dos trabalhadores e identificando o vínculo e a articulação da rede nesse processo. Utilizou-se como método a hermenêutica filosófica, para identificar que elementos participantes do processo de acolhimento poderiam ser destacados. Procedeu-se à análise das narrativas a partir de três linhas de argumentação: vínculo, acolhimento e articulação da rede - resultando em quatro categorias: sensação de ausência; mistura de modelos; primazia em tecnologias duras; e ineficiência quanto à integralidade. A discussão apontou uma imbricação dessas categorias, colocando o investimento em tecnologias leves como centro do debate para a superação da sensação de ausência, da mistura dos modelos e para construção da integralidade do cuidado.
Palavras-chave: Avaliação. Saúde Mental. Acolhimento.
Elaborado com base em Araujo (2012); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, atendendo à Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. 1,2 Departamento de Práticas em Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 715. São Paulo, SP, Brasil. 01.246-904. adrianokaraujo@gmail.com 1
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Introdução Uma investigação, seja ela de qualquer natureza, deve surgir a partir de um incômodo naquele que pretende descobrir algo. A Saúde Mental sempre foi um campo bastante fértil para descobertas, uma vez que se caracteriza como uma área que suscita várias perguntas em quem participa de seu universo. A investigação à qual o trabalho se destina encontra sua fundamentação no próprio processo histórico no qual participam os serviços de Saúde Mental (Brasil, 2001a, 1992, 1988, 1986), pois se trata de uma avaliação dos mesmos. A avaliação em serviços de saúde tem sido cada vez mais exigida no expediente da academia e nos próprios serviços de saúde, por se tratar de uma ferramenta capaz de desvelar problemas e identificar soluções (Onocko Campos et al., 2008). O campo da Saúde Mental, herdeiro de uma história ligada à loucura e às tentativas de se lidar com ela (Foucault, 1978), vem, nos últimos vinte anos, produzindo diversas mudanças nos serviços de saúde mental (Brasil, 2002, 2001b), como consequência de diversos movimentos ocorridos na sociedade brasileira e que têm causado transformações significativas na concepção de sofrimento mental, assim como na prática que o seu cuidado demanda (Brasil, 2004). Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços de saúde que se constituíram como equipamentos substitutivos a um modelo manicomial, centralizam as transformações na área e condensam trabalhadores que pleiteiam por inovações no modo de cuidar (Brasil, 2004, 2002). Com respeito a esta investigação, o incômodo que interpelou o investigador situa-se sobre as práticas dos trabalhadores da Saúde Mental. Estes sujeitos que dedicam suas vidas a cuidar das pessoas que experimentam algum sofrimento psíquico têm suas práticas envoltas sobre ideais e realidades controversos. Entre limites e possibilidades muitas vezes de difícil identificação. Estas dificuldades se apresentam em forma de barreiras que os trabalhadores encontram em superar um modelo antigo, de fugir à lógica que o encerra (Desviat, 1999). Em outras palavras, a investigação pondera sobre a própria transição desses modelos: o manicomial, com seus modos próprios de fazer; e o antimanicomial – também chamado de psicossocial, ou substitutivo, empreendendo diferentes maneiras de produzir saúde (Costa-Rosa, Luzio, Yasui, 2001). Com este incômodo presente, o trabalho dedica-se ao objetivo de promover um diálogo com uma rede de saúde mental na região Oeste da cidade de São Paulo, tentando, com isso, entender como o processo de acolhimento se apresenta na citada região. O acolhimento é tomado por objeto de estudo por se constituir em um dispositivo que expressa as transformações que os serviços de saúde vêm desenvolvendo no tocante às suas práticas. Desta forma, o entendimento sobre o estabelecimento do acolhimento, bem como os processos a ele concernentes e a percepção dos trabalhadores quanto a estes fenômenos, passaram a ser os objetivos desta investigação. Por se tratar de uma avaliação de serviço, torna-se importante delinear qual a perspectiva de avaliação que o trabalho compartilha. A avaliação em saúde pode ser considerada como um processo que visa à medição, comparação e à emissão de um juízo de valor (Tanaka, Melo, 2001). Sendo esta última dimensão a que se apresenta passível de uma intersecção. Mas como se chega a esse juízo de valor? A hermenêutica (Gadamer, 2008) pode contribuir com esta discussão já que atribui à linguagem a característica eminentemente humana de se chegar a tal juízo, através das mediações possíveis que vão acontecer no mundo de compartilhamentos da experiência humana. Isto é, o juízo de valor é presumido a partir da experiência própria que o intérprete estabelece com aquilo que pretende interpretar. Neste sentido, não se trata de confiar o entendimento a uma metodologia, conforme a ciência moderna acostumou-se a fazer, mas identificar os elementos que participam das relações que produzem determinado valor para determinado sujeito, em um contexto também determinado. Assim, o resultado que se pretende com a hermenêutica não visa uma verdade absoluta, mas uma aproximação da realidade. O valor da avaliação, ou, na concepção hermenêutica, a validade do conhecimento que surge, está colocado sobre a relação que o intérprete estabelece com a coisa – seu objeto de análise – partindo de seus conhecimentos prévios num movimento dialético com o enunciado por este objeto. 918
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Conforme esta concepção, busca-se questionar os sujeitos participantes do processo de trabalho acerca do tema investigado, e as possíveis respostas são colocadas em suspensão de sentido, para que o novo, ou o juízo, possa ser emitido, tendo-o sempre como uma aproximação que se dá em um tempo e espaço determinados, e podendo ser “re-questionado” sempre. No entendimento de Ayres (2008), a avaliação em saúde deve enfocar a dimensão prática do cotidiano, ou seja, as relações microscópicas, e não macroscópicas, no acontecer do fazer saúde. Para este autor, avaliar segundo a hermenêutica é considerar que a linguagem é diálogo. Trata-se de um modo de participar do mundo vivido; a essência do diálogo está na dialética da pergunta e resposta; e a verdade seria alcançada por meio da fusão de horizontes. Para tanto, é preciso recorrer ao conceito de aplicação hermenêutica, que, segundo o autor, é o próprio tema da conversa que acontece (Ayres, 2008). No caso específico desta pesquisa, o tema é acolhimento, e este se constitui no elemento precipitador dos questionamentos. Quando se visitam apontamentos sobre o tema aqui proposto, o acolhimento, e o identificam como um processo capaz de operar mudanças no modelo assistencial em saúde (Franco, Bueno, Merhy, 1999), percebe-se que estas características estão presentes e guardam a potencialidade de se aproximar da realidade a partir da aplicação proposta, isto é, chegar à compreensão de como o acolhimento tem acontecido em determinada região, composta por serviços de saúde específicos e prestando atendimentos com características peculiares. Todas essas especificidades oferecem um desenho único, que carrega uma singularidade na apreensão de sua verdade. E, ao mesmo tempo, têm a potência de, a partir desse singular, se abrirem para o universal em forma de linguagem (Gadamer, 2008) e, assim, se chegar à validade da avaliação. O acolhimento tem se mostrado uma palavra bastante frequente no cotidiano dos serviços de saúde, no entanto, quando se verificam alguns trabalhos acerca do assunto, logo se percebe a utilização dessa palavra para designar processos de trabalho que mantêm sua operacionalidade muito próxima do que se conhece por triagem, como pontuam Cunha e Vieira-da-Silva (2010), Souza (2008) e Campos (1998); e, embora o vocabulário entre os profissionais tenha se alterado, o fazer permanece mediado por uma lógica de princípios diferentes. A diferença nos princípios pode ser balizada sobre a discussão com respeito ao que se objetiva com uma ou outra modalidade de intervenção. Isto é, o usuário que busca o serviço de saúde o faz movido por seu problema de saúde. O profissional que o recebe – e, sobretudo, como recebe –, o faz mediado pelo que sabe fazer em saúde. A partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde (Brasil, 1986), estabelecida como marco histórico de construção do SUS, definem-se os princípios de uma saúde pública como direito de todos e em defesa da vida. Estes princípios implicam diretamente alterações operativas quanto ao trabalho em saúde. Cabe apontar que já nesta Conferência é debatido que, para a concretização destes princípios, novos parâmetros devem ser construídos; bem como os paradigmas dos quais a saúde se serve devem ser alterados. É a propósito dessas transformações que se torna importante a discussão sobre as tecnologias relacionadas às práticas que acontecem no interior da rede de cuidados. O conceito de tecnologias adotado se refere a uma ação intencional no mundo e mediada por uma racionalidade (Franco, Merhy, 2003). Segundo esta compreensão, as tecnologias seriam capazes de capturar os objetos e transformá-los em bens/produtos (Merhy et al., 1997); no caso da saúde, a própria sanidade dos agravos seria seu produto, ou os elementos simbólicos oriundos das relações estabelecidas entre os profissionais e os usuários dos serviços. Para Merhy (1997), há uma diferenciação entre o trabalho morto, cujos produtos já estão acabados – por exemplo, as medicações ou os procedimentos – e o trabalho Vivo em Ato, o qual se dá na própria relação estabelecida – seria o trabalho que “acontece acontecendo”, mediado pela atuação dos agentes e se constituindo em trabalho sempre novo e criativo. Conforme esta abordagem, haveria três maneiras de o processo de trabalho se apresentar: as tecnologias duras, que se constituem como equipamentos tecnológicos, normas e estruturas organizacionais; as tecnologias leve-duras, que dizem respeito aos saberes estruturados; e as tecnologias leves, que são basicamente tecnologias das relações, produzindo vínculos, autonomização, e acolhimento. 919
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Desta maneira, a triagem representa uma modalidade específica de fazer saúde, ligada à lógica do saber médico hegemônico (Franco, Merhy, 2005), o qual se tornou, com o avanço do capital, cada vez mais dependente de tecnologias duras, encerrando a assistência em saúde em prescrições medicamentosas, produção de exames, e encaminhamentos a especialistas. Posicionando, assim, os usuários dos serviços como organismos biológicos, e seus problemas de saúde como objetos de saberes cada vez mais segmentados (Ayres, 2002). Por outro lado, o acolhimento, neste panorama, passa a ser discutido como uma diretriz operacional (Franco, Bueno, Merhy, 1999), isto é, potencialmente transformador desses paradigmas, pois tenta concentrar estes princípios na concretude do cotidiano dos serviços, mantendo uma centralidade sobre as tecnologias leves. Franco, Bueno e Merhy (1999) compreendem o acolhimento como um espaço intercessor que produz uma relação de escuta e responsabilização; a primeira garante a formação de vínculo com o usuário e a segunda traduz-se como o compromisso com os projetos de intervenção que surgirão dessa relação. Desta forma, é através desse espaço que o trabalhador utilizará sua tecnologia, seu saber, e onde o usuário se verá como sujeito da produção de sua saúde, e não um mero objeto de um saber impessoal. A penetração desses princípios na realidade dos serviços de saúde, para além da mudança na nomenclatura de velhas práticas, produzindo uma efetiva transformação dos mesmos, converte-se em um processo que precisa ser explorado e entendido. O problema da alteração na linguagem sem a correspondente alteração nas práticas, ou as dificuldades que os serviços atravessam para a implementação do processo de acolhimento, de maneira a produzir saúde de forma mais resolutiva, mais integralizada, mais econômica e mais humanizada, passam a ser uma necessidade premente para a saúde pública.
Método Partindo destas perspectivas, o trabalho construiu um caminho metodológico que estabeleceu três fases, chamadas de giros, em alusão ao círculo hermenêutico que fundamenta o tratamento dos dados. Trata-se de uma pesquisa que lida com dados secundários, isto é, houve um outro momento de coleta de dados, realizados em pesquisa anterior que data de 2006. Os dados foram construídos em forma de narrativa, a partir da seguinte questão: como é o serviço de saúde mental em que trabalha? Esta pergunta foi feita a seis profissionais de três serviços diferentes. Sendo um auxiliar de enfermagem e um médico clínico geral, de uma UBS que não possui equipe de saúde mental; um psicólogo e um médico psiquiatra de uma UBS com equipe de saúde mental; e, finalmente, um psicólogo e um médico psiquiatra do CAPS adulto da região. O Primeiro Giro – a construção das linhas de argumentação. Iniciou-se a partir dos relatos. Foi possível construir três linhas de argumentação. Partindo da noção de fusão de horizontes (Gadamer, 2008), foram questionadas as narrativas acerca do acolhimento. Como se parte do princípio (concepção prévia) segundo o qual acolhimento seria um espaço intercessor (Franco, Bueno, Merhy, 1999), onde há uma relação entre subjetividades, o elemento vínculo se tornou um importante analisador deste aspecto, pois sobre ele se situam as ligações entre os sujeitos envolvidos. Outra faceta do acolhimento foi considerada quando este é descrito como diretriz operacional do serviço (Franco, Bueno, Merhy, 1999), isto é, como ferramenta capaz de reorganizar a rede de cuidados. Dessa forma, se estabeleceu a articulação da rede como outro elemento de análise. Portanto, o primeiro contato com os relatos guia a interpretação por meio dessas três linhas de argumentação: vínculo, acolhimento, e articulação da rede. Uma primeira visita aos dados, enquanto um todo sendo questionado pelas linhas de argumentação, direcionou o trabalho para a reconstrução das narrativas, em um primeiro momento individualizadas, relato por relato. Esta etapa foi eminentemente interrogativa, ou seja, são construídos vários questionamentos aos dados, criando um debate com eles; cumprindo com a premissa segundo a qual a compreensão nunca é 920
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um comportamento meramente reprodutivo, mas, também e sempre, produtivo (Gadamer, 2008). Assim, se promove um choque que produz algo novo a partir das perguntas guiadas pelas linhas de argumentação. Este choque se dá no decorrer do diálogo com os dados, pois a necessidade de contrapô-los com pressupostos teóricos vai se desenhando, o que possibilita às narrativas permanecerem abertas às perguntas que vão sendo levantadas. Isto faz essa fase ser marcada por uma presença bastante frequente dos discursos, tal como são emitidos pelos sujeitos. Segundo Giro – a busca pela univocidade. Este segundo momento foi permitido pela abertura causada pela fase anterior. Nesta etapa do processo de interpretação, o caminho segue para o assentamento das questões apresentadas, em busca do entendimento sobre como os elementos abordados são aplicados à realidade local. Esta fase da interpretação baseou-se na tentativa de responder às diversas questões levantadas na fase anterior. As linhas de argumentação continuaram guiando a análise, mas agora não mais pelas partes, senão na busca por uma univocidade dos dados, isto é, trazendo fala à rede como um todo, e em relação. Com isso, alguns aspectos que foram sendo questionados e contrapostos com teorias tornavam-se mais explícitos, ou – consoante com a hermenêutica – se destacavam no processo. Para Gadamer (2008), conseguir ver além depende da relação em que se colocam os horizontes, a partir deste processo a compreensão se faz possível. O diálogo proporcionado entre os dados e o intérprete produziu o surgimento de pontos não vistos ou percebidos anteriormente. E foram estes pontos considerados aquilo que se conservou no processo de produção do trabalho hermenêutico. Assim, foi possível levar estes novos elementos à discussão dos resultados, de forma a lapidá-los nesta que foi considerada a última fase do processo interpretativo. Terceiro Giro – o destaque. Esta fase recebeu o nome de discussão dos resultados, pois evidenciou aquilo que permaneceu em aberto no decorrer de todo o trabalho. Longe de esgotá-los, o caminho do pensamento erigido no trabalho permitiu trazê-los à luz ou dar-lhes forma. Os resultados foram construídos em forma de quatro categorias, e esta construção se deve à possibilidade de funcionarem como analisadores da rede, isto é, elementos capazes de apontar características semelhantes em outras regiões e serviços. Cumprindo, assim, com o objetivo da interpretação, que é promover uma aproximação com a realidade.
Discussão e resultados A análise possibilitou notar que os profissionais entrevistados se encontram com suas práticas distantes do que vem sendo preconizado para serviços de saúde acolhedores, responsáveis e integralizadores do cuidado dos usuários. E que esta distância está diretamente ligada à ausência ou presença de equipes de saúde mental nos serviços, o que evidencia a contribuição que um modelo diferenciado do hegemônico pode trazer à rede de cuidados. A análise buscou confrontar os paradigmas implícitos nestas características e, desta forma, alguns elementos surgiram a partir da investigação e do diálogo empreendido com os dados, são eles: a) ausência; b) mistura; c) tecnologias; d) integralidade. Optou-se pela exposição em forma de categorias, e estas são dispostas conforme sua ordem de aparecimento no decorrer da discussão; contudo, entende-se que há uma relação entre os fenômenos no cotidiano do serviço, se constituindo, assim, em elementos importantes para se considerar, em termos de aplicação: o vínculo, o acolhimento e a articulação da rede. Ausências. Conforme o trabalho foi avançando na busca pela compreensão do objeto em estudo, a sensação de que nas diversas falas havia uma espécie de ausência relatada pelos profissionais evidenciou-se. Em determinados momentos, se tentou dar forma a esses fenômenos. São expostos abaixo três exemplos extraídos dos relatos de distintos profissionais que apontam para esta tentativa, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.917-28, out./dez. 2012
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cada qual de um equipamento de saúde – a UBS A, sem equipe de saúde mental; a UBS B, com equipe de saúde mental, e o CAPS, respectivamente: “Antes de ter ambulância usava seu próprio carro”. (Aux. de Enfermagem) “Durante o tempo em que trabalhou [...] como contratado de emergência no CAPS, o médico atendeu vários pacientes que moram na região da UBS X e na UBS Y (que não têm Saúde Mental). Continuou a atendê-los quando passou a trabalhar na UBS B. Por isso, sua agenda é aberta também a pacientes dessas unidades. Eles não têm matrícula na UBS B, não têm prontuário, o atendimento é registrado em folhas avulsas, todos os seus outros atendimentos são realizados na unidade próxima à sua residência. (Médico Psiquiatra) “Não há profissionais suficientes [...] para tratar os pacientes de CAPS e os pacientes de Ambulatório. Principalmente o primeiro grupo não recebe a atenção necessária”. (Psicólogo)
Essas tentativas surgem nas falas como ausências de recursos humanos, materiais, dificuldades comunicativas, incoerências entre os profissionais ou unidades etc. Este raciocínio acabou levando ao entendimento de uma ausência estrutural, dizendo respeito à rede que se desenhava conforme as argumentações erigidas. O aporte teórico adotado não possibilitou encontrar elementos correlatos que pudessem ser confrontados, ou mesmo conceitos que pudessem subsidiar o entendimento dessas ocorrências. Neste sentido, o contexto no qual estas ausências são manifestadas diz respeito ao trabalho inserido em uma instituição, um serviço de saúde, composto por profissionais dessa área. Se estes sujeitos passam a ser entendidos como integrantes de um grupo e se recorre à Psicanálise para se pensar essa rede como o lugar da ausência, alguns apontamentos podem ser construídos em busca de uma elucidação do referido fenômeno. Quando se questiona sobre o sentido, o objetivo, ou o motivo de existência de um serviço de saúde, uma resposta bastante comum pode ser expressa: serve para cuidar da saúde. Se as ausências são várias vezes repetidas pelos profissionais, depreende-se daí que sua intenção, de cuidar da saúde, não tem alcançado sua finalidade. Em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, Freud (2006) apresenta como os grupos são capazes de se organizar em função de uma autoridade, podendo esta ser representada por uma pessoa, um setor, ou uma ideia. E mais, esta autoridade tem a função de, por seu caráter ambivalente, oferecer medo e proteção ao mesmo tempo; manter todos os indivíduos sob seu domínio, com o desejo individual inibido em sua finalidade. O desejo inibido não garante que se alcance a satisfação, mas reproduz a promessa que isso seja possível. Em outras palavras, todos agem submetidos à voz da autoridade, permanecendo na falta (ausência) da consecução do desejo, neste caso, a produção do cuidado. As tecnologias duras, assim, se apresentam como a autoridade que oferece a proteção da verdade a priori (Gadamer, 2008), gerando a manutenção/reprodução do modelo centrado no médico e em procedimentos (Franco, Merhy, 2005). Freud (2006, p.139) considera que o indivíduo, quando inserido em um grupo, passa a compartilhar de seu ideal e se submete à ideia ali preponderante, esta “necessitando somente fornecer uma impressão de maior força [...]”. E, neste sentido, o trabalho mostrou como as tecnologias duras ainda mantinham sua força sobre a rede de cuidados, toda organizada em função desse paradigma, identificado nos relatos dos profissionais das diferentes unidades analisadas. Mistura. Assim como no caso das ausências, o termo mistura não se trata de um conceito teórico ou técnico, mas de uma palavra com potencial de representar um fenômeno presente na rede estudada. A concepção de Reforma Psiquiátrica traz, em seu bojo, um processo histórico marcado por uma tentativa de mudança de um modelo de atenção ao sofrimento mental, fugindo da lógica 922
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hospitalocêntrica para a do cuidado ao usuário em sua região, e investindo em sua autonomia e sociabilidade, como se pode verificar no tema da III Conferência de Saúde Mental (Brasil, 2001a), que é “cuidar sim, excluir não”. No entanto, a rede demonstra existir uma verdadeira mistura entre os modelos: o antigo, que mantém primazia sobre o atendimento médico e todos os procedimentos a ele correlatos, e o modelo novo, substitutivo. No CAPS analisado, essa mistura foi mais evidente, não gratuitamente, pois este equipamento foi pensado e empreendido com a finalidade de ser o dispositivo “substitutivo” ao hospital psiquiátrico. Tornando-se, assim, o serviço que carrega os dois modelos misturados, como um momento deste processo de substituição que se pretende aplicar. Esta situação é identificada no relato do profissional do CAPS: “Depois da Portaria 336, o CAPS foi regulamentado como sendo a referência para todos os casos de Saúde Mental. Desde então, a equipe se achou obrigada a manter a ‘porta aberta’, e garantir pelo menos uma primeira escuta à demanda que recebe”. (Psicólogo)
Verifica-se, na passagem, que a “porta aberta” não se constitui como um momento da atenção tendo o usuário como centro do cuidado, mas como uma obrigação jurídica externa que se sobrepôs à dinâmica do serviço. Esta mistura, por vezes, foi debatida como o que teoricamente foi chamado de transição tecnológica, na transformação dos modelos de atenção à saúde mental. Como um produto da luta invisível que acontece entre a visão hegemônica manicomial e a contra-hegemônica antimanicomial. No entanto, a transição tecnológica implica um investimento social, cultural, político e subjetivo sobre o núcleo tecnológico, com o objetivo de torná-lo leve dependente (Franco, Merhy, 2003); e este compromisso não foi verificado na rede analisada. Por este motivo, a mistura foi situada como um fenômeno próprio da convivência de dois modelos, tendo o contra-hegemônico sido empreendido de maneira normativa, e não como um investimento institucional. Tecnologias. A discussão sobre as tecnologias no processo de trabalho analisado importou, do modelo de Defesa da Vida, as concepções para se debaterem as práticas da rede. Esta adoção se deu pelo entendimento de que o referido modelo mantém subjacentes elementos da Reforma Sanitária (Brasil, 1986), da mesma forma que a Reforma Psiquiátrica (Brasil, 2001b). Com esta perspectiva, o trabalho aderiu aos apontamentos teóricos que identificam a necessidade do investimento em tecnologias leves como uma possível solução para questões como a ausência e a mistura acima descritas; no primeiro caso, porque aumentaria a força e a liberdade (com poder de decisão) do trabalhador; e, no segundo caso, porque objetaria a mudança no núcleo tecnológico. Embora as tecnologias leves se apresentem como um instrumento capaz de operar mudanças significativas na rede de cuidados, de forma a aumentar o coeficiente de vínculo e responsabilização, produzir serviços mais acolhedores e trabalhar em favor da integralidade do cuidado (Franco, Bueno, Merhy, 1999); ainda demonstra fragilidades, sobretudo quando se pensa em sua penetração nas práticas de saúde, após mais de uma década da criação do SUS. E há muito a ser desenvolvido para superar as ausências e misturas que sua implementação provoca sobre o modelo de atenção e às práticas nele inseridas. Integralidade. A rede analisada pode ser comparada a um arquipélago, composto por ilhas, e caracterizada apenas por sua localização em uma mesma região, mas sem comunicação entre elas. A apresentação dessa rede pode ser expressa segundo sua distância com relação ao que é preconizado pelas diretrizes da Reforma Psiquiátrica. A unidade mais distante, UBS A, apresenta-se, segundo relatos, como um local onde procedimentos enrijecidos pelas normas e tradição técnica se sobressaem. Por exemplo, quando o usuário chega com queixa de saúde mental, a indicação que se tem é encaminhar ao PS local, lugar onde as decisões são tomadas. Esse procedimento feito a priori foi relatado por ambos os trabalhadores entrevistados: o auxiliar de enfermagem, que reproduz o discurso da ordem: “saúde mental tem que encaminhar para o PS”; e o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.917-28, out./dez. 2012
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clínico geral, que se vale do conhecimento técnico para justificar o procedimento, segundo ele: “o saber sobre saúde mental é atribuído à psiquiatria”. A única rede que se configura a partir dos discursos é o fluxo da UBS A para o PS, sem outras comunicações. Na UBS B, foi identificada uma possível divergência entre o trabalho do médico e de seu colega de unidade, o psicólogo, pois o primeiro mantém presente a primazia do PS, enquanto o segundo direciona-se mais ao CAPS. Contudo, essa divergência é esclarecida quando se entende o processo de trabalho no interior da UBS. Segundo o médico psiquiatra, a UBS B tem o seguinte fluxo: recebe pacientes do Hospital Central e do Hospital Universitário através da marcação de consultas. Após avaliação, se o usuário não for conhecido, encaminha para o PS e esse decide se encaminha para o CAPS ou para hospital fechado. Se for conhecido e conforme a necessidade avaliada pelo médico, encaminha para psicoterapia com o Psicólogo da própria UBS, ou diretamente para o CAPS. Logo, o PS mantém-se como o centro decisório. Quando analisada a fala do Psicólogo, atentou-se para o fato de ele omitir o PS e estabelecer uma comunicação bastante rica com outros recursos, dando a impressão de tentar uma atenção integral. As conversações acontecem com maior frequência nessa unidade, denotando que a perspectiva da Reforma Psiquiátrica tem avançado sobre a rede, não sendo ainda capaz de superar o modelo antigo, mas causando sobre ele algumas alterações consideráveis. O fluxo se mostra da seguinte forma: da UBS para o CAPS, mediante contato telefônico; da UBS para o CAPS ad, quando o caso se tratar de dependência química; da UBS para clínica de psicoterapia da Universidade; da UBS para Ambulatório de especialidades; da UBS para outros recursos da comunidade, como ONGs, CECCO, oficinas etc. Ao contrário da primeira UBS, portanto, a UBS B apresenta-se mais comunicante e ofertando maiores possibilidades de espaços de convivência e produção de saúde com produção de subjetividade. Quando se chega ao CAPS, seu fluxo é descrito da seguinte forma pelo psiquiatra: recebe encaminhamentos do PS local, o centro decisório, como abordado. Recebe também usuários encaminhados por outros PS. Além dos pronto-socorros, as UBSs também encaminham para o CAPS, contudo, pela análise das ausências verificadas, possivelmente daquelas que possuem equipe de saúde mental, pois a UBS A deixa claro que a norma é encaminhar ao PS primeiro. Uma vez no CAPS, existe o que o médico nomeia de triagem, da qual ele participa e, segundo avaliação, oferece encaminhamento. Essa avaliação leva o usuário para o tratamento ofertado pelo próprio serviço, ou, em outros casos, para a clínica de psicologia da universidade, para as UBSs ou outros serviços da região. O psicólogo, por sua vez, define a rede da seguinte maneira: recebe os encaminhamentos e, conforme a gravidade verificada pela descrição do mesmo, direciona o usuário para a recepção, feita em grupo e destinada aos casos mais leves; ou para a triagem, realizada individualmente e reservada a casos mais graves. Essa segunda forma de recepção tem a participação do médico e, possivelmente, se trata do mesmo procedimento descrito acima e com o mesmo nome. Se os usuários não forem inseridos para o tratamento no CAPS, são encaminhados para a UBS de referência, ou para a clínica da Universidade, ou mesmo para outros recursos da região, como CECCO, terapia comunitária, outros locais onde há psicoterapia, ONGs, cursos, oficinas etc. Nessa unidade, percebe-se que ambas as descrições coincidem, e, embora se possa problematizar a maneira como são realizadas e o paradigma que as inspira, essa coincidência denota uma maior comunicação entre os atores envolvidos. Pode-se dizer que a coincidência é produto da comunicação, uma vez que o serviço estabeleceu uma dinâmica que tem sido respeitada pela equipe. Com relação à comunicação e a necessidade do diálogo entre os atores envolvidos, é interessante notar que o fluxo aqui descrito se aproxima bastante da UBS B, que possui equipe de saúde mental. Essa aproximação, quando tangenciada para a questão comunicativa da rede, oferece indícios de que o trabalho de inter-relação entre os serviços CAPS e UBS B, mediado pela linguagem, é responsável pelo trânsito seguro do usuário na rede (Franco, Merhy, 2003). A maior incidência comunicativa coloca o trabalhador como o agente fundamental na constituição do cuidado e na busca pela integralidade do mesmo. Utilizou-se como metáfora da rede analisada sua semelhança com um arquipélago, contendo ilhas separadas pelas especialidades, que apenas 924
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permanecem próximas, mas sem comunicação. Mas quando se volta o olhar para a potencialidade dos trabalhadores em reduzir esse distanciamento por meio da comunicação, percebe-se que ela se apresenta como o elemento condutor, ou a linha que estabelece o laço entre os serviços para buscar a resolutividade. Esse laço comunicativo, exclusivamente entendido como tecnologia leve, surge como o elemento capaz de promover a integralidade dessa rede não comunicante. A visão médica hegemônica, produtora de procedimentos e consumidora de insumos tecnológicos, empobrece a clínica, reduzindo-a à realização de exames, prescrição medicamentosa e encaminhamentos a especialidades. Essa escassez no uso das possibilidades clínicas minimiza a resolutividade na UBS e reproduz, no caso da saúde mental, a lógica manicomial, consoante com o paradigma de busca por especialidades. O CAPS em questão é concebido, pelos outros serviços da rede, como um hospital psiquiátrico, concentrando todos os casos de saúde mental, embora sua equipe tenha apresentado alguns avanços qualitativos. A convivência de mais de um modelo foi apresentada como ponto central nas dificuldades de estabelecimento de vínculos, instituição do acolhimento conforme diretrizes do Ministério da Saúde e articulação da rede baseada na resolutividade e na integralidade. Identificou-se ainda que essa mesma convivência propicia iniciativas contra-hegemônicas ou instituintes, ou, mesmo, de transição tecnológica. Ficou claro o limite que as tecnologias duras apresentam em promover a integralidade dos serviços, uma vez que se baseiam na reprodução de um modelo que não coloca o usuário como centro do trabalho realizado. Ao passo que o investimento na comunicação e nos espaços de diálogo pode se apresentar como a ferramenta capaz de construir as pontes necessárias entre as ilhas da rede em análise e proporcionar o trânsito seguro e cuidador do usuário entre elas. Pessoas são capazes de atingir pessoas através da linguagem. Toda conversação pressupõe uma linguagem comum, ou melhor, toda conversação gera uma linguagem comum (Gadamer, 2008). Se integrar é unir, a linguagem é o meio de união, transformando os diversos serviços que compõem uma rede de cuidados em apenas um emaranhado, cujo objetivo principal seja o cuidado ao usuário. O trabalho mostrou que onde ocorrem mais trocas mediadas pela linguagem entre os profissionais, maior a unidade do serviço e sua comunicação com os demais recursos da rede, isto é, maior a integralidade do cuidado. A linguagem é o que subjaz às tecnologias leves, relacionais, pois estas buscam a criação de espaços de fala e de troca de saberes. Isso reduziria as ausências, pois alcançaria a satisfação do desejo de cuidado; a linguagem comum diminuiria as misturas, já que essas são produto da convivência de, pelo menos, dois modelos, com linguagens diferentes, mas buscando a fusão, a unidade.
Conclusões Partindo da potência identificada sobre o processo de acolhimento, a pesquisa estabeleceu como seu objetivo geral avaliar a aplicação do mesmo em uma região determinada do município de São Paulo. E, por se tratar de um campo específico – a Saúde Mental –, o olhar avaliativo se voltou para as UBS e para o CAPS daquela região. Assim procedendo, tentou-se compreender como os profissionais percebem suas práticas nestas unidades de saúde. A avaliação em serviços de saúde foi tratada como a emissão de juízos de valor, neste caso, com respeito ao processo de acolhimento; e, para isto, empreendeu-se o caminho metodológico da Hermenêutica Filosófica, por esta abordagem se apresentar como uma maneira adequada de se alcançarem os objetivos. No que concerne ao acolhimento nos serviços estudados, este esteve vinculado a um outro processo de trabalho, representante do modelo centrado sobre a figura do médico e de seus procedimentos, trata-se da triagem. Foi realizada uma revisão bibliográfica anteriormente e alguns trabalhos mostraram que estas duas práticas apresentam-se com esta proximidade. A pesquisa mostrou resultados semelhantes com relação a isso, com o complicador que, em algumas unidades, a triagem era aplicada COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.917-28, out./dez. 2012
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e, ao mesmo tempo, levava o nome de acolhimento, sem, com isso, alterar significativamente as práticas, não possibilitando o espaço de fala, não reorganizando a rede de cuidados e não investindo em vínculos com os usuários. Desta forma, a pesquisa partiu da análise das narrativas produzidas pela pergunta primaz: como é o serviço de saúde mental? E trilhou um caminho de pensamento interrogativo aos dados coletados, seguindo os fios condutores: vínculo, acolhimento, e articulação da rede. Este caminho empreendido necessitou ser confrontado com teorias e argumentações sobre as práticas de saúde, produzindo os círculos hermenêuticos, nos quais se transita diversas vezes pelo mesmo objeto. E, neste caminho, alguns destaques puderam ser construídos. Alguns elementos vieram à luz como respostas aproximadas à pergunta primaz. Em resumo, o trabalho pode mostrar que os serviços de saúde da região analisada produzem uma sensação de ausência; convivem com uma mistura de modelos; mantêm tecnologias duras na produção de saúde; e não são eficientes quanto à integralidade. Assim, a pesquisa apresentou um retrato de como o acolhimento e demais elementos participantes deste processo puderam ser aplicados naquela região e naquele momento histórico. É importante frisar que, embora a investigação tenha se fundamentado no princípio ético da pesquisa qualitativa, segundo o qual a descrição dos processos de manejo dos dados deve primar pela clareza e fidedignidade, um limite deve ser pontuado, e diz respeito à época em que os mesmos foram coletados, no ano de 2006; assim como à distância temporal para sua análise. A Hermenêutica Filosófica proporciona um diálogo profícuo com material de qualquer época, mas entende que é, no próprio processo de interpretação, que o objeto pode ser atualizado. Neste sentido, entende-se que os resultados apresentados têm o potencial de serem confrontados em futuros trabalhos; e, da mesma forma, podem ampliar o olhar sobre a temática do acolhimento se forem considerados como elementos participantes do mesmo.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos na concepção, delineamento, análise, interpretação dos dados e redação do artigo. Referências ARAUJO, A. K. Avaliação em Saúde Mental: o processo de acolhimento. 2012. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Sâo Paulo. 2012. AYRES, J.R.C.M. Hermenêutica, conhecimento e práticas de saúde, a propósito da avaliação. In: ONOCKO CAMPOS, R.T. et al. (Orgs.). Pesquisa avaliativa em Saúde Mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Hucitec, 2008. p.27-67. ______. Conceptos y prácticas en salud pública: algunas reflexiones. Medellín: Fac. Nac. Salud Pública, 2002. BRASIL. Saúde Mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. 926
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ARAUJO, A.K.; TANAKA, O.Y. Evaluación del Proceso de Recepción en Salud Mental en Medio Oeste de São Paulo: la relación de UBS y CAPS en analisis. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.917-28, out./dez. 2012. Este articulo relata la experiencia de evaluación de la recepción en salud mental en São Paulo-SP. Fueron utilizadas entrevistas con trabajadores de uno Centro de Atención Psicosocial (CAPS) y dos Unidades Básicas de Salud (UBS). Objetivó comprender la recepción, la percepción de los empleados y la identificación de los lazos y la coordinación de la red. Fue utilizado como método la hermenéutica filosófica para identificar qué elementos de la recepción se destacan. Procedió al análisis de las narrativas partiendo de tres líneas de argumentación: lazo, recepción, y conexión de red. Los resultados llegaron en forma de cuatro categorías: sensación de falta, modelos mixtos, primacía de tecnologías duras, atención integral ineficiente. La discusión mostró una relación entre estas categorías, colocando la inversión en tecnologías blandas como el centro del debate para superar el sentimiento de falta, la mescla de modelos, y para la construcción de una atención integral.
Palabras clave: Evaluación. Salud Mental. Acogimiento.
Recebido em 19/12/11. Aprovado em 07/08/12.
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Construção de espaços de escuta, diagnóstico e análise coletiva de problemas de saúde pública com a linguagem teatral: o caso das oficinas de jogos teatrais sobre a dengue Denise Figueira de Oliveira1 Cínthia Cristina Resende Mendonça2 Rosane Moreira Silva de Meirelles3 Claudia Mara Lara Melo Coutinho4 Tania Cremonini Araújo-Jorge5 Mauricio Roberto Motta Pinto da Luz6
FIGUEIRA-OLIVEIRA, D. et al. Construction of spaces for listening, diagnosis and collective analysis of problems of public health using theatrical language: the case of workshops of theatrical games relating to dengue. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.929-41, out./dez. 2012. The historical, social and ecological characteristics of dengue have motivated a variety of health educational actions aimed at preventive measures. Educational and community actions starting from the context of the population involved have been indicated to be crucial. In the present study, the use of theatrical language as a strategy to characterize the conceptions of educators involved in dengue prevention was investigated through workshops of theatrical games. Theatrical language was chosen because of its dialogical nature, in order to establish a relationship with scientific inventiveness and to stimulate collaboration and spontaneous action among the participants. Analysis on the results showed that the educators have a feeling of professional isolation and that were mistrustful of the credibility of executive authorities. We conclude that it is possible to use theatrical activities for organizing spaces suitable for collective analysis on situations relating to public health problems, through stimulating cooperative actions by educators.
Keywords: Dengue. Education. Health. Theater. Health fairs.
As características históricas, sociais e ecológicas da dengue têm motivado ações de educação em saúde visando medidas preventivas. Ações educativas e comunitárias que partam do contexto da população envolvida têm sido apontadas como cruciais. No presente estudo, investigou-se a utilização da linguagem teatral como estratégia para caracterizar as concepções de educadores envolvidos na prevenção da dengue, por meio de Oficinas de Jogos Teatrais. A linguagem teatral foi escolhida por ser dialógica, estabelecer relação com a inventividade da ciência, estimular a colaboração e provocar a ação espontânea dos participantes. A análise dos resultados evidenciou o relato dos educadores sobre a sensação de isolamento profissional bem como a desconfiança quanto à credibilidade do poder executivo. Concluímos que é possível utilizar experiências teatrais para organizar espaços propícios à análise coletiva de situações ligadas a problemas de saúde pública, estimulando ações cooperativas por parte dos educadores.
Palavras-chave: Dengue. Educação. Saúde. Teatro. Exposições educativas.
Elaborado com base em Figueira-Oliveira (2006). 1,3-5 Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos (LITEB), Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz (IOC/ Fiocruz). Av. Brasil, 4365, Pavilhão Cardoso Fontes, 2º andar, sala 52, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.045-900. denise@ioc.fiocruz.br 2 Produtora teatral. 6 Laboratório de Avaliação de Ensino e Filosofia das Biociências (LAEFIB), IOC/Fiocruz. *
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Introdução A dengue é a principal arbovirose da atualidade, além de ser a que mais rapidamente se espalha, afetando cerca de cinquenta milhões de pessoas anualmente em mais de cem países das regiões tropicais e subtropicais (Guzman, Isturiz, 2010). As limitações ao controle da dengue no Brasil - e no mundo - são muitas: desde ausência de vacinas, à intensidade da circulação e à diversidade de sorotipos do vírus; o favorecimento climático ao vetor, suas modificações genéticas, a capacidade de adaptação do vetor às mais diversas circunstâncias; a urbanização explosiva; a vulnerabilidade socioambiental associada a regiões economicamente frágeis, até a iniquidade social e a debilidade dos sistemas sanitários (Schweigmann, Hernandez-Suares, Cool-Cardenaz, 2009). A ineficácia de ações baseadas em tentativas de controle sistemático de formas adultas do vetor é conhecida desde a década de 1980 (Gubler, Clark, 1996). Estudos empíricos comparativos indicam que ela pode ser menos efetiva do que ações educativas (Espinoza-Gomez et al., 2002). Em contrapartida, a importância da participação comunitária no controle da dengue, mais especificamente na eliminação de criadouros domiciliares e urbanos do vetor, tem sido destacada (Toledo-Roman et al., 2007; Oliveira, 1998), com particular atenção a ações envolvendo escolas e o engajamento de alunos como agentes educativos na comunidade (Jayawardene et al., 2011; Maciel et al., 2010; Madeira et al., 2002). Segundo Gubler e Clark (1996), objetivos relacionados ao controle efetivo da dengue possivelmente só serão alcançados a longo prazo e com a participação da comunidade também nas etapas de planejamento, e não apenas na execução das ações de controle. O controle e prevenção da dengue necessitam de engajamento da população, além de políticas públicas potentes (Valla, 1999; Briceño-Léon, 1996). Talvez o desafio maior das campanhas empreendidas seja a mudança de comportamento (Donalisio, Alves, Visockas, 2001; Buss, 1999), até porque têm sido relatados entraves para o controle da doença que independem do grau satisfatório de informação da população (Araújo et al., 2003). Numerosos estudos alertam para a importância da consideração de outras dimensões além das habituais, ligadas ao simples conhecimento do problema de saúde, e têm reorientado o papel do setor de saúde frente aos seus principais determinantes histórico, social e ecológico, com maior aproveitamento da produção científica no setor, de estratégias atualizadas de comunicação e saúde, bem como de ações pedagógicas (Schweigmann et al., 2009; Araújo, 2003). Ações que envolvem a participação comunitária desde a identificação do problema e o planejamento, e não apenas na execução das ações de controle da dengue, podem alcançar resultados substanciais (Toledo-Romani et al., 2007). Revisões sobre o tema indicam a dificuldade de comparação dos resultados de diferentes ações baseadas na participação comunitária devido a diferenças ou, mesmo, imprecisões metodológicas encontradas em vários deles (Heintze, Garridob, Krolger, 2006), bem como a necessidade de avaliações padronizadas e com metodologias de análises de dados consistentes para uma aferição adequada da efetividade de tais programas (Ballenger-Browning, Elder, 2009; Heintze, Garridob, Krolger, 2006). As ressalvas feitas, no entanto, não se constituem em uma desqualificação de ações, mas, antes, destacam a necessidade de estudos capazes de avaliá-las adequadamente, pois ainda que alguns autores sugiram que somente o desenvolvimento de vacinas possa levar ao controle efetivo da dengue em escala mundial (Guzman, Isturiz, 2010), tal ponto de vista ainda não representa um consenso. Nos campos de ação da Promoção da Saúde se propõe a articulação de saberes técnicos e populares e a mobilização de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados, de diversos setores, para o enfrentamento e a resolução dos problemas de saúde e seus determinantes (Buss, 1999). Tal abordagem tem sido apresentada como uma das estratégias promissoras para o enfretamento de dilemas na prevenção de doenças. Nesse contexto, considerando-se a importância da adesão e participação popular e as dificuldades descritas até o momento para o controle da dengue, torna-se evidente a necessidade de estratégias inovadoras. No desenvolvimento de canais privilegiados de compartilhamento de saberes, é fundamental a atenção para que as práticas pedagógicas evitem repetir modelos de transmissão linear das informações, calcadas em abordagens que se assemelham às pedagogias tradicionais (Sales, 2008; Moreira, 1999). No âmbito da saúde, essa posição se expressa no
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caráter excessivamente prescritivo (“faça isso, não faça aquilo”) e na distância de resultados de pesquisas científicas das práticas de políticas públicas de prevenção. Dentro dessa proposta de inventividade, aproveitamos a potencialidade do diálogo entre Arte e as Ciências da Saúde para elaborar e testar uma Oficina de Jogos Teatrais visando à criação de ambientes favoráveis para a discussão dos determinantes de saúde por educadores. Elegemos a linguagem teatral como estratégia metodológica por ser uma linguagem dialógica, que estimula a colaboração entre as partes e provoca a ação espontânea dos participantes. O presente trabalho discute a proposta de criação de um espaço de fala e escuta coletiva baseado em Oficinas de Jogos Teatrais para educadores envolvidos em ações de combate e prevenção da dengue, visando, ainda, contribuir na investigação sobre os processos que podem evitar a dissociação entre conhecimentos e práticas nas comunidades nas quais aqueles agentes atuam.
Percurso metodológico Sujeitos do estudo: definindo identidades de educadores na prevenção da dengue Em uma articulação entre a Arte, a Educação e as Ciências da Saúde, a proposta das Oficinas de Jogos Teatrais teve por objetivo alcançar os diversos atores sociais identificados como educadores no processo de Promoção da Saúde. Oficinas de diversos formatos têm sido vistas como instrumentos deflagradores de reflexão (Telles, 2006), capazes de apoiar discussões pedagógicas atuais e ratificar a importância de espaços de escuta na educação e saúde (Schweigmann et al., 2009; Teixeira et al., 2009; Gastal, Gutfreind, 2007; Teixeira, 2004). Reconhecemos como educadores não apenas os professores, que atuam na Promoção da Saúde por meio dos temas transversais do ensino formal, mas, igualmente, os agentes de saúde e os agentes de endemia, importantes elos entre a comunidade e os programas de saúde, que atuam em contextos não formais de ensino, essenciais. As Oficinas foram realizadas em municípios nos quais já existia uma parceria entre a instituição de pesquisa responsável e a administração municipal, visando a criação de espaços para discussão da prevenção da dengue. Um total de 104 educadores, entre professores de ciências e agentes de saúde e de endemias, participou de sete Oficinas, seis no município de Itaboraí e uma no bairro de Campo Grande, no município do Rio de Janeiro.
Os caminhos para um espaço de escuta: detalhando as etapas da Oficina A arte, por si, oferece elementos significativos de interlocução, na medida em que utiliza caminhos diversificados, permite a reflexão entre o fazer e o fruir, entre o que se pensa e o que se sente. A linguagem teatral, especificamente, torna possível relacionar o conjunto de vozes que evidencia confrontos e a luta pela legitimação de discursos, naquilo que Bakhtin define como “dialogismo” (Bakhtin, 1992). Optamos pela linguagem teatral, utilizando-a em oficinas, intencionalmente realizadas sem excessivas formalizações ou formação prévia dos participantes. Buscamos, com isso, atenuar, ainda que apenas em parte, o caráter desigual das entrevistas, nas quais, segundo Minayo (2004, p.114), “sua (do entrevistado) chance de tomar a iniciativa em relação ao tema é pouca, é o pesquisador que dirige, controla as digressões e controla a palavra”. Nas oficinas teatrais, mesmo estando o tema predefinido, a palavra é dada aos educadores, para que a utilizem para expressão de conhecimentos resultantes de suas experiências e vivências. Essa maior liberdade pode ser consequência das etapas iniciais, nas quais a confiança mútua e o relaxamento, bem como a possibilidade de expressão coletiva de questionamentos e conhecimentos frente aos pesquisadores, são estimulados, flexibilizando, ainda que por breves instantes, uma divisão de trabalho na qual se atribui ao pesquisador: “o labor do questionamento dos outros, da sociedade e de si mesmo” (Minayo, 2004, p.114). As oficinas foram elaboradas como sequências de jogos teatrais, cada qual com um objetivo específico relacionado a questões importantes do processo de educação e de Promoção de Saúde. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.929-41, out./dez. 2012
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Ao mesmo tempo, buscamos propor atividades que estimulassem a troca de informações entre diferentes segmentos da comunidade envolvida, visando à maior integração dos conhecimentos e práticas. A nossa proposta compreende elementos de uma pedagogia de investigação participativa, incorporando a ideia de “oficinas em saúde” (Souza et al.; 2003; Souza, 2000), associada ao método de “mobilização social” (Toro, 1996), por meio de adaptações das propostas de Boal (2002), Spolin (2001) e Koudela (1984). Elas foram conduzidas por duas mediadoras e comportam até vinte participantes. Detalhamos, a seguir, as etapas que compõem a oficina, bem como seus objetivos: 1 Apresentação: Cada participante faz uma breve apresentação de si mesmo e de sua expectativa em relação à oficina de forma sucinta, por meio da “dinâmica dos fósforos” (Longo, Silva, 1998): Os participantes se colocam em círculo, em pé ou sentados, o primeiro participante acende um palito de fósforo e se apresenta durante o tempo em que a chama permanece acesa. O procedimento é repetido pelos demais participantes. Os tempos de cada um são diferentes, bem como a síntese que cada um faz de si mesmo. 2 Aquecimento: Jogos para construir uma sintonia entre os participantes e oferecer uma preparação corporal e psicológica mínima que os habilitasse para o engajamento nos jogos seguintes. O “aquecimento interno” pretende que o grupo realize exercícios de respiração de forma pausada, seguindo as orientações dos mediadores, ao som de música ambiente suave, seguindo-se um aquecimento vocal adaptado de Till (1988) e composto de uma inspiração profunda seguida por expiração com a vocalização de sons de vogais. A articulação do “aquecimento externo”, composto de cinco exercícios com dois minutos de duração cada, visa à construção de sintonia entre os participantes e do corpo no espaço da sala onde a oficina se realiza. Nessa etapa são propostas atividades de movimentação corporal rápida, gerada pela indicação de um mediador, como, também, por música ambiente instrumental com ritmo dinâmico previamente selecionado. No primeiro exercício, “caminhos pelo espaço” (adaptado de Spolin, 2001), os participantes percorrem toda a sala com passos ritmados e de forma aleatória, sem esbarrar ou olhar para outros participantes, realizando caminhos diferentes e sem retornar aos lugares de origem. Em sequência ao exercício anterior, os participantes são convidados a imprimir ritmo mais forte às suas passadas e, focalizando um ponto no espaço à altura dos olhos, caminham até ele. Ao atingi-lo, o participante é convidado a repetir o procedimento por cerca de dois minutos, considerando desvios e os cuidados para não impedir os movimentos ou colidir com companheiros que realizam a mesma atividade. No exercício seguinte, “reconhecimento do outro”, os participantes observam-se uns aos outros, cumprimentam-se inicialmente apenas com um olhar, depois, também com um aceno de cabeça, mantendo o ritmo de caminhada, finalizando a atividade com aperto de mãos ou abraço. No momento posterior, “caminhar juntos”, repetido cinco ou seis vezes, mantendo-se a música ritmada, todos continuam caminhando, mas, após uma palma ou pausa na música, param o movimento e observam ao redor se a disposição dos participantes com relação ao espaço físico lhes parece homogênea. Em caso negativo, se movimentam até preencherem os espaços. No último exercício desta etapa, “despertando o corpo”, retomando o círculo, os participantes são convidados a realizar movimentos fortuitos, mas ritmados, de partes do corpo, começando pela rotação dos dedos dos pés, pé, perna direita, perna esquerda, cintura, braços e todo o resto do corpo. Sob o apelo da música, os movimentos se tornam mais soltos, facilitando o relaxamento dos músculos, o que espontaneamente resulta em uma dança. 3 Jogos de integração: Para acompanhar e promover maior interação entre os participantes, bem como evoluir para a experiência de jogos em parceria, suscitando ações ou discussões relacionadas aos temas da confiança, cooperação, reformulação de princípios, atenção ao outro e à criatividade. No “jogo do acolhimento”, adaptado de Boal (2002), os participantes formam duplas e estabelecem uma distância de cerca de um metro entre si. Um membro de cada dupla fica de costas para seu companheiro e se inclina para trás, sem se voltar, caindo em direção aos braços do outro. Esse último deve amparar o companheiro com firmeza e erguê-lo, levando-o de volta à posição ereta. O exercício, inicialmente, é exemplificado pelos facilitadores, esclarecendo-se que não se trata do uso ou da necessidade de força física. Após este jogo, os participantes se reorganizam em novas duplas para a realização do “jogo do espelho” (Koudela, 1984). Nele, são orientados a procurar um novo parceiro e, 932
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mirando-se em seus movimentos, repeti-los como se visualizassem seus próprios reflexos. Após cinco minutos, ocorre a troca de liderança e o exercício é repetido. Nessa atividade, espera-se que os participantes percebam a importância da compreensão do outro e a atenção a seus papéis, ou seja, dos parceiros em qualquer ação. Pode-se, ainda, posteriormente, ensejar a discussão sobre o significado da mera repetição das ações sem reflexão ou crítica, transpondo esse questionamento para as práticas educativas. Segue-se o jogo “homenagem a Magritte” (Boal, 2002), de improviso e criatividade, no qual um objeto é apresentado e o participante tem o direito de usá-lo, dando a ele o sentido que desejar, exceto o do próprio objeto (uma cadeira pode ser usada para representar qualquer coisa exceto uma cadeira). Espera-se que esse jogo estimule a criatividade, pelo uso de um objeto para representação de outro, bem como o questionamento da realidade imediata como única e estável. Partimos do princípio de que os educadores são colocados frente a desafios que exigem novas respostas e ações. Um de nossos objetivos, portanto, era que, por meio dos jogos desenvolvidos, fosse estimulado o estabelecimento de respostas inovadoras. 4 Jogos de cena: Aqui mergulha-se na investigação do gesto espontâneo associado a uma situação-problema, numa adaptação do método de Bernardo Toro (1996), que entende a mobilização social como um ato de comunicação, no qual são compartilhados discursos, visões e informações. Os estudos do autor sobre os momentos coletivos de aprendizagem revelam que inúmeras vozes transitam nas práticas de promoção da saúde, no caso da pesquisa: institucionais (Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, por meio de seus profissionais) e não institucionais (da sociedade, dos denunciantes ou da população vítima dos agravos da doença). O método utilizado quis tornar evidentes algumas dessas vozes e, ao mesmo tempo, investigar a potencialidade de os grupos se organizarem na proposição de soluções coletivas. Aliando esse método de trabalho em grupo à criatividade, propomos meios que permitam, aos participantes, uma reflexão ampliada dos fatores que determinam sua saúde, especificamente, sobre o tema da dengue. É proposta a montagem de um breve conjunto de cenas teatrais (esquetes), inspiradas na situação-problema trabalhada (dengue). Cada participante representa um papel elaborado pelo próprio grupo. São distribuídos papéis de diferentes sujeitos de três núcleos representativos relacionados entre si: poder público, familiar e espaço escolar (Quadro 1).
Quadro 1. Núcleos e personagens utilizados nos jogos de cena das oficinas teatrais Núcleos Poder público
Personagens
Familiar
Espaço escolar
Agente de saúde
Dona de terreno baldio
Aluno(a)
Médico
Vizinho de terreno baldio
Professor(a)
Vereador
Mãe ou Pai
Faxineiro da escola
Prefeito
Criança
Diretor
O número de papéis disponíveis em cada núcleo deve ser adequado ao número de participantes de cada Oficina, de modo que os três núcleos estejam sempre representados. Os participantes foram informados que deveriam criar suas próprias abordagens para o tema apresentado e, em cinco minutos, deveriam montar os “jogos de cena”. O pouco tempo disponibilizado para a composição do jogo teatral foi intencional, para evitar, por parte dos participantes, a racionalização excessiva, que, muitas vezes, mascara a realidade (Brook, 1999). Cabe aqui ressaltar que os participantes tiveram liberdade para construir suas falas nos “jogos de cena”, com base na estrutura geral proposta pelo grupo. Nesse sentido, o uso dos “jogos de cena” permite que as concepções de cada participante sejam colocadas espontaneamente. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.929-41, out./dez. 2012
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5 Impressões coletivas: Esta etapa foi desenvolvida a partir da articulação de entrevistas, inicialmente, livres e, posteriormente, semiestruturadas (Bogdan, Biklen, 1997). É possível utilizar variadas entrevistas em uma mesma pesquisa, dependendo de sua meta, desde que cada uma delas considere o fato de os participantes estarem à vontade e falarem desimpedidos sobre seus pontos de vista, revelando suas perspectivas, garantindo-lhes uma escuta meticulosa. A análise dos depoimentos obtidos em cinco oficinas iniciais (oficinas-piloto), realizadas com públicos variados (não-educadores), permitiu a elaboração de um roteiro para as entrevistas semiestruturadas realizadas nas oficinas discutidas aqui, que constituem esta etapa. Nesse espaço de fala e escuta, os educadores têm a oportunidade de discutir o resultado da prática nos “jogos de cena”, relacionando-os às suas experiências e perspectivas, bem como explicitar questões relacionadas às escolhas feitas na montagem da encenação. Nas “impressões coletivas”, as perguntas contidas no roteiro semiestruturado tinham por meta colocar em questão, com os próprios educadores, as conclusões obtidas a partir de nossa análise dos “jogos de cena”. Nessa etapa, espera-se que os participantes assumam seus próprios discursos e que ocorra uma maior racionalização, ao contrário do que aconteceu nos “jogos de cena” quando estavam “protegidos” pela máscara do personagem. Os “jogos de cena” e as impressões coletivas são registrados em áudio, registro este que é complementado por observações feitas no local por integrantes da equipe de pesquisa, de modo a possibilitar a análise qualitativa das falas dos participantes nas oficinas, bem como as estruturas dos diferentes esquetes elaborados por eles.
Resultados e discussão Neste trabalho, analisamos os resultados das etapas dos “jogos de cena” e das “impressões coletivas”, entendendo que as etapas anteriores foram essenciais para sua preparação.
Consciência real versus consciência possível: conhecer para intervir A partir da análise da sequência dramática dos “jogos de cena” e das entrevistas semiestruturadas nas “impressões coletivas”, foi possível perceber uma estrutura recorrente (Figura 1), na qual se destacam, ainda, as visões conflitantes dos educadores a respeito das diferentes instâncias do poder público envolvidas nas ações de saúde. Em primeiro lugar, no conjunto dos “jogos de cena” analisados, os personagens “professores”, quando confrontados com a situação-problema da dengue, demonstravam já terem apresentado, para os seus alunos, as informações gerais sobre a doença e os alertado para os riscos de agravamento. Um processo semelhante ocorreu com os personagens “agentes de saúde”, também representados como instâncias do poder público sob uma visão positiva, como exemplificaremos com duas encenações: (a) um dos agentes de saúde enfrenta dificuldades em realizar a visita a um terreno baldio e consegue mobilizar a comunidade e atingir seu objetivo, fazendo com que todos aceitem fazer parte das condições materiais de prevenção à doença; (b) a mãe de um aluno doente e seu vizinho mobilizam o agente de saúde do bairro e, juntos, partem para resolver a questão, dirigindo-se ao dono do terreno baldio onde havia focos de proliferação do vetor. Ainda nessa estrutura comum, diante de uma situação-problema relacionada à dengue, os personagens recorriam, inicialmente, ao poder público, representado por educadores, estabelecendo parceiras. Na sequência das ações, ou o problema era resolvido localmente (raramente) ou ocorria um recurso ao poder executivo, cujas atitudes eram sempre de descaso ou protelatórias. O uso intenso da ironia, de risos e vaias como meio de expressão durante as representações de personagens do poder executivo é uma forma de registro adicional, possibilitada pela linguagem teatral, que sugere que tal concepção encontra-se integrada ao pensamento desses educadores. Em poucos momentos foram imaginadas novas estratégias de ação centradas na ação comunitária como potencial via de solução do problema (eliminação de criadouros, por exemplo), reveladora de uma dificuldade em se notar um perfil de corresponsabilidade como ação essencial no combate à dengue. O encaminhamento recorrente dos problemas para instâncias superiores do poder executivo remete, em parte, a uma situação na qual ainda não existe a apropriação, pelos indivíduos, da ideia de que a 934
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Figura 1. Estrutura dramática recorrente observada nos jogos de cena.
Personagens do núcleo escolar ou familiar
T
Situação-problema: dengue Recurso
T
Mobilização
T
2. Solução local
Agentes de saúde e/ou professores Mobilização
Recurso
T
Representantes do Poder Executivo local ou regional
T 1. Procrastinação ou indiferença
presença de criadouros em suas comunidades é inaceitável e que o controle da doença é de seu interesse e corresponsabilidade (Gubler, Clark,1996). A discussão da experiência por meio dos “jogos de cena” permitiu também identificar, de modo geral, a mídia como um canal influente na reprodução de comportamento e na relação entre a sociedade civil e poder público, e a questão salarial diretamente relacionada à reduzida motivação associada à falta de valorização dos profissionais envolvidos no processo de combate à dengue, seja nos espaços formais (professores) ou não formais (agentes). Em conjunto, fica patente uma desgastada figura do poder público expressa na precariedade dos serviços que determinam as condições de vida da população.
O isolamento dos educadores nas ações preventivas: reconhecendo impasses e sugerindo estratégias Depoimentos obtidos nas impressões coletivas nos permitiram corroborar, com razoável segurança, a visão negativa que os educadores têm do poder executivo, especialmente em respostas à questão: “vocês representam os personagens da forma que vocês acham que eles são, como eles deveriam ser, ou nada disso?” Alguns comentários de professores, que se seguiram à pergunta, são ilustrativos: a) “só que quando a gente viu a história do prefeito, a única coisa que nos veio à cabeça foi o descaso”; b) “geralmente quem está no poder olha para seu próprio umbigo [...] a verba foi direcionada para calçar a rua daquele [...] amigo dele [...]”; c) “é isso aí, a gente vai reclamar e depois não vai dar em nada”. Percebe-se que, ao tornarem visível a figura do poder executivo sob o caráter de ironia ou fazerem-lhe críticas diretas, os educadores mostravam acreditar que o discurso sobre melhoria da qualidade de vida nas políticas públicas é mais retórico do que substancial. Nesse sentido, as possibilidades de sucesso de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.929-41, out./dez. 2012
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medidas de prevenção e promoção da saúde parecem fortemente comprometidas, uma vez que dependem da integração e da complementaridade das práticas desses dois segmentos do poder público, além de outros atores sociais, percebidos, pelos educadores, como antagônicos. As origens da insatisfação com o poder executivo são, certamente, múltiplas, e identificá-las extrapola o alcance do presente trabalho. Nossos achados corroboram a percepção de Clark (1995), que, com base em sua ampla experiência no campo, aponta a desconfiança popular em relação aos agentes públicos como um dos fatores que contribui para o insucesso de campanhas de prevenção da dengue. Nos “jogos de cena” e nas “impressões coletivas”, esta desconfiança parece focalizar mais os dirigentes investidos de cargos executivos ou legislativos do que os servidores que atuam localmente nas ações de prevenção. Não se pode descartar, porém, que a presença de professores de escolas públicas e de agentes comunitários de saúde e de endemias entre os educadores participantes das oficinas tenha inibido a expressão de desconfianças em relação, também, a esses servidores públicos. As experiências dos grupos estudados e as encenações propostas mostraram aspectos das condições de vida e explicitaram, em comum, o dilema da precariedade de serviços públicos no saneamento básico. Entendemos que, por não conseguir identificar eficácia nas intervenções de órgãos oficiais de assistência à saúde e setores afins, a visão que os educadores têm do poder público torna-se negativa. Além disso, os educadores envolvidos na frustrante estatística da pouca eficácia da reversão da grande incidência da doença, na carência de atualização profissional e de maiores informações acerca das evoluções ou involuções epidemiológicas, reproduziram, muitas vezes, o discurso hegemônico de “culpabilização da vítima” (Valla, 1999). Em algumas cenas, ficou evidente que se atribuía à própria população a culpa pela proliferação do vetor e pela expansão da doença. Os educadores envolvidos na Promoção da Saúde e na prevenção da dengue atuam e se sentem isolados em sua vida profissional. Acreditamos, porém, que, por meio da Oficina, os participantes perceberam seu isolamento e tiveram oportunidade de explicitá-lo e discuti-lo com seus pares, como ficou evidente em depoimentos de agentes de saúde obtidos nas “impressões coletivas”: a) “Essa oficina hoje para mim está sendo surpreendente. Porque toda oficina que eu venho é com agente de endemias ..., estou vendo aqui agente de saúde. Eu acho que a gente tem que se integrar mais, entendeu? ... então nós nunca tivemos esse leque para estar aqui conversando”; b) “...a primeira coisa que eu estou percebendo aqui é essa integração entre nós...Veja bem, eu e o F., nós nos conhecemos há muitos anos, bem uns vinte anos...desde que eu cheguei, há 25 anos, 26 anos atrás, e nós nunca tínhamos parado nem para apertar a mão um do outro, estou mentindo?”. Essas falas corroboram, ainda, a identificação das Oficinas como espaços que estimularam a reflexão sobre o isolamento, e sua potencial superação por meio do estabelecimento de parcerias em ações de educação em saúde. É importante destacar que os personagens dos agentes de saúde foram sempre representados por professores, e vice-versa, o que mostra que os profissionais de cada categoria têm compreensão adequada das funções da outra em relação à prevenção e combate à dengue. A representação positiva nos “jogos de cena” e as reiteradas representações negativas do poder executivo parecem corroborar a interpretação de que tanto a avaliação negativa deste último quanto a constante transferência de responsabilidades fazem parte das representações que povoam o imaginário dos educadores. A transferência de responsabilidades, ou seja, as acusações cruzadas entre sociedade civil e instâncias políticas/públicas parecem ser “cortinas de fumaça” para as verdadeiras raízes do problema: as ações isoladas das diversas instâncias envolvidas nas ações de promoção da saúde. Em face da multiplicação de discursos, o que fica evidente é o equívoco em atribuir a uma única autoria os sucessos e fracassos do combate à dengue. Uma complexa combinação primária de apoios é essencial no processo de prevenção e combate à dengue. O conjunto de falas reunidas nas sessões de “jogos de cenas” e “impressões coletivas” revelou, então, o desejo e a possibilidade de refletir sobre o que os educadores gostariam que as autoridades públicas soubessem. A experiência vivida nas oficinas deu visibilidade à possibilidade de ação colaborativa entre os saberes técnicos e populares, atraindo, para si, a riqueza da imaginação criativa, elemento essencial para que realidades sejam transformadas. Além disso, fomentou novas parcerias entre educadores em
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momentos posteriores, como neste exemplo: um agente de endemias e uma professora, que atuavam no mesmo bairro e não se conheciam, tomaram a iniciativa de elaborar um filme caseiro encenado por eles mesmos. Nesse filme, narraram a rotina do agente de saúde, ressaltando temas tratados nas oficinas, como: dificuldades do agente em realizar visitas domiciliares, a resistência da população em aderir aos programas e a necessidade de maior integração entre os educadores em saúde. Em entrevista aberta, o agente revelou que a oficina representou uma oportunidade de expor ideias que tinham sobre como a prática de prevenção à dengue poderia se aproximar mais da realidade das pessoas. Isso teria contribuído para que um outro olhar fosse lançado sobre os programas de saúde e seus profissionais, e para que pudessem realizar ações complementares e eficientes: “Naquele dia a gente combinou tudo, pensou no que ia fazer. Ela já tinha um trabalho com fotos e a gente pensou em encenar isso, a gente fez o filme.” Identificamos, assim, os primeiros desdobramentos positivos das oficinas como molas propulsoras da criação da integração entre educadores em uma ação preventiva e, também, da apropriação por eles da linguagem teatral, utilizada na representação de personagens no vídeo produzido. A importância de se considerarem as concepções, crenças e práticas existentes em uma comunidade para a eficácia de ações de prevenção e combate à dengue, voltadas para essas comunidades, tem sido objeto de inúmeros estudos. Segundo Teixeira e Barreto (2008), um grande número de estudos sobre educação e comunicação para o controle da dengue se baseia em modelos de comunicação nos quais o conhecimento encontra-se concentrado, sendo necessário desenvolver meios e/ ou técnicas adequadas para sua difusão, na expectativa de que esta se desdobre em mudanças de práticas e atitudes. Claro, Tomassini, e Rosa (2004) analisaram 11 desses estudos, nos quais os conhecimentos e crenças foram investigados sempre com base em questionários e entrevistas, enquanto as práticas eram mais frequentemente inferidas a partir de inquéritos larvares domiciliares e peridomiciliares. Dentre as conclusões de sua revisão, os autores destacaram a frequente dissociação entre conhecimentos suficientes sobre a doença e práticas de prevenção inadequadas dos respondentes (Claro, Tomassini, e Rosa, 2004). Resultados similares foram obtidos, também, em estudos posteriores àquela revisão (Brassolatti, Andrade, 2004). Além disso, estudos realizados no Vietnã mostraram claramente que as barreiras interpostas pelos conhecimentos e práticas populares existentes em uma comunidade podem se mostrar intransponíveis para a implementação de ações de combate, mesmo que elas sejam baseadas na participação da comunidade em sua execução (Phuanukoonnon et al., 2006). De fato, estudos que relataram aprimoramento não apenas de conhecimentos, mas, também, de práticas de prevenção, atribuem seu sucesso, ao menos em parte, ao envolvimento da comunidade desde as etapas de planejamento até a implementação das ações realizadas (Toledo-Romani et al., 2006).
Um papel para a arte na promoção da saúde no caso da dengue? Diante da complexidade da prevenção da dengue e da promoção da saúde, as Oficinas de Jogos Teatrais se justificam ao criarem condições para mapear subjetividades dessas práticas de educação e saúde para futuras atuações na área. Essa mediação configura-se no próprio fim, na interação para a construção de laços sociais, condição fundamental para transformações sociais efetivas. Fisher (2002, p.13) corrobora esse estudo quando afirma que “a arte é o meio indispensável para essa união do indivíduo como o todo, reflete a infinita capacidade humana para associação, para a circulação de experiências e idéias”. As oficinas aqui discutidas vão ao encontro das experiências de Koudela (1984), quando a autora afirma que verificou, em seus trabalhos, uma diminuição da ansiedade, da agressividade e do espírito de competição negativo, além de um aumento da inventividade e do respeito entre os participantes, criando laços de solidariedade. Nos seus estudos sobre a prática do uso de jogos teatrais na escola, Japiassu (1998) assinalou a superação do isolamento cultural e o aumento da qualidade interativa do grupo social estudado. As Oficinas de Jogos Teatrais, portanto, emergem com esse desenho e função, e, de forma inovadora, priorizam facilitar esse agir comunicativo entre os educadores que participaram dos encontros.
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Considerações finais As oficinas de jogos teatrais não buscam simplesmente ser produtos reprodutíveis, e sim estratégias inventivas de ação no combate à dengue, no que se refere a ouvir o que populações ou grupos têm a dizer e que, na complexidade das relações do processo saúde-doença, precisa ser levado em consideração. Os resultados apresentados permitem um avanço na compreensão do modo como as pessoas articulam as mensagens veiculadas sobre saúde e prevenção à dengue por meio de órgãos oficiais, do ensino, ou da mídia, por meio das opiniões expressas de modo implícito nos “jogos de cena” e corroborados explicitamente nas “impressões coletivas”. Com a pesquisa, foram criadas possibilidades de esses educadores se prepararem para iniciativas de ordem social e serem levados à reflexão sobre as contradições a partir de si próprios, deparando-se com a necessidade de uma ação transformadora, conforme proposto por Dewey (2005) quando afirma a importância da conexão íntima da arte com a experiência de vida. Acreditamos que a arte pode oferecer recursos desejáveis, tais como: “descondicionar” comportamentos, educar a sensibilidade e ser acessível a grupos numerosos de interessados, colocando-os em contato com representações de situações de seu cotidiano e, portanto, com questionamentos legítimos a respeito dos fenômenos da vida. Não pretendemos aprofundar o assunto da aproximação dos discursos científico e artístico, mas apresentar uma experiência bem-sucedida da discussão desse tema na prática. Mesmo cientes de certas limitações das oficinas de jogos teatrais aqui discutidas, consideramos lícito concluir que, por sua forma de desenvolvimento e apresentação pouco formais, elas se revelaram instrumentos com potencial para desvendar algumas das possíveis origens da dissociação entre conhecimentos e práticas percebidas pelos educadores entre eles próprios e na comunidade. Propomos que instrumentos diversificados, como, por exemplo, atividades lúdicas como as oficinas, sejam utilizados não apenas para a transmissão ou compartilhamento de conhecimentos sobre agravos à saúde, como tem sido relatado no caso da dengue (Vesga-Gomez, Manrique, 2010), mas, também, como instrumentos adicionais na compreensão profunda das barreiras que se interpõem localmente à efetivação das diferentes ações de prevenção e combate a tais agravos. Sugerimos, portanto, que a operacionalização de oficinas de jogos teatrais pode fornecer importantes espaços de escuta, propícios ao diagnóstico e análise coletiva de situações ligadas a problemas de saúde pública.
Colaboradores Denise Figueira-Oliveira, Tania Araújo-Jorge e Mauricio Luz foram responsáveis pela criação das oficinas, análise e discussão dos dados e elaboração do manuscrito. Tania Araújo-Jorge cuidou da gestão e orientação dos recursos financeiros necessários à pesquisa. Denise Figueira-Oliveira e Cinthia Mendonça estabeleceram parceria intelectual e técnica na escolha dos exercícios da oficina, no trabalho de campo e na execução dos jogos teatrais. Claudia Coutinho e Rosane Meirelles colaboraram na consultoria sobre dengue.
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FIGUEIRA-OLIVEIRA, D. et al. Construcción de espacios de escucha, diagnóstico y análisis colectivo de problemas de salud pública con el lenguaje teatral: el caso de los talleres de juegos teatrales en el dengue. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.929-41, out./dez. 2012. Las caracteristicas históricas, sociales y ecológicas del Dengue han generado varias acciones de educación en salud, dirigidas a su prevención. Las acciones educativas y comunitarias que partan del contexto de la población participante han sido señaladas como cruciales. Se investigó la utilización del lenguaje teatral como estrategia para caracterizar las concepciones de los educadores involucrados en la prevención del Dengue, por medio de Talleres de Juegos Teatrales. El lenguaje teatral fue elegido por ser dialógico, establecer relación con la capacidade de creación de la ciencia, estimular la colaboración y provocar la acción espontánea de los participantes. Los resultados mostraron la sensación de aislamiento profesional entre los educadores, bien como su desconfianza en relación a la credibilidad del poder ejecutivo. Concluimos que es posible utilizar experiencias teatrales para organizar espacios propicios para el análisis colectivo de situaciones relacionadas a los problemas de salud pública.
Palabras clave: Dengue. Educación. Salud. Teatro. Exposiciones educacionales en salud.
Recebido em 28/02/12. Aprovado em 04/09/12.
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Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2010
artigos
A construção da imagem corporal de sujeitos obesos e sua relação com os imperativos contemporâneos de embelezamento corporal * Miquela Marcuzzo1 Santiago Pich2 Maria Glória Dittrich3
MARCUZZO, M.; PICH, S.; DITTRICH, M.G. Construction of body image among obese subjects and its relationship with the contemporary imperatives for body beautification. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.943-54, out./dez. 2012. Body image is identified as the mental representation of the individual’s own body, constructed based on physiological, libidinal and social dimensions. Social factors have the greatest importance, because of the influence of body esthetic values in contemporary society. This affects obese people with particular intensity. The present study aimed to comprehend how the imperatives of body esthetics influence the formation of body image among morbidly obese men and women aged from twenty to 43 years. Focused life history was used as the methodology, and in-depth interviews were the data collection instrument. The results showed that the women were more dissatisfied with their bodies, mainly because of the comparisons with images in the media. It was seen that social structures are built based on the body characteristics of the “average man”. Elements inherent to body image distortion were observed in all their constitutive dimensions.
Keywords: Body image. Obesity. Imperatives of body esthetics.
A imagem corporal é identificada como a representação mental do próprio corpo, construída a partir das dimensões fisiológica, libidinal e social. Os aspectos sociais apresentam maior relevância, haja vista as influências dos valores de estética corporal na contemporaneidade, atingindo com particular intensidade os sujeitos obesos. Este estudo objetivou compreender como os imperativos de estética corporal interferem na constituição da imagem corporal de homens e mulheres obesos mórbidos com idades entre vinte e 43 anos. Adotou-se a História de Vida Focal, utilizando-se como instrumento de coleta de dados a entrevista em profundidade. Resultados indicaram que as mulheres estão mais insatisfeitas com o corpo, sendo o principal motivo as comparações com as imagens midiáticas. Verificou-se que as estruturas sociais são construídas a partir das características corporais do “homem médio”. Observaram-se elementos inerentes à distorção da imagem corporal em todas as suas dimensões constitutivas.
Palavras-chave: Imagem corporal. Obesidade. Imperativos de estética corporal.
* Elaborado com base em Marcuzzo (2011); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). 1 Discente, Programa de Pós-Graduação em Saúde e Gestão do Trabalho, UNIVALI. Rua Justiniano Neves, n. 266, apto. 102. Pioneiros, Balneário Camboriú, SC, Brasil. 88.331-020. miquelamarcuzzo@ yahoo.com.br 2 Departamento de Estudos Especializados em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina. 3 Programa de Pós-graduação em Saúde e Gestão do Trabalho, UNIVALI.
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A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM CORPORAL ...
Introdução A sociedade contemporânea assiste deslumbrada à passagem dos “corpos perfeitos” que invadem progressivamente todos os espaços da vida moderna. Sob a ótica de Poli Neto e Caponi (2007), a expectativa das pessoas em relação a esses padrões de beleza é o que provavelmente interliga uma variedade de fenômenos cada vez mais comuns, como: a maior incidência de distúrbios da imagem corporal, as malhações e as cirurgias plásticas. Neste propósito, menciona-se a repercussão das desordens da imagem corporal nos obesos, diante das facilidades prometidas à exaustão pelo mercado da estética. Quando se adentra no mundo das imagens contemporâneas, fica evidente que as mulheres sentem muito mais do que os homens os efeitos desse processo. A cultura deste país exibe a mulher permanentemente como forma de reforçar seus arquétipos de beleza corporal. Autores como Novaes, Vilhena e Lemgruser (2003), Goldenberg (2006), Goldenberg e Ramos (2002) e Vigarello (2005) consignam que a imagem de mulher se justapõe à de beleza e, como segundo corolário, à de saúde e juventude. As imagens refletem corpos sexuados, respondendo sempre ao desejo do outro, ou corpos medicalizados, lutando contra o cansaço e contra o envelhecimento e as limitações em relação à dimensão corporal das pessoas obesas. Para a mulher, a beleza é representada como um dever cultural. E ser bela é ser magra. O fato de afirmar-se, sem cessar, que as pessoas podem ser bonitas, se quiserem, passa a ser normativo no mundo contemporâneo, a se constituir em um imperativo. Se historicamente as mulheres preocupavam-se com sua beleza, hoje elas são responsáveis por ela. Contudo, em tempos contemporâneos, os imperativos de embelezamento corporal ganham cada vez mais espaço entre o público masculino, universo no qual a figura do “metrossexual” desponta como o ícone de beleza. Neste caso, destacam-se outros atributos, como a definição e desenvolvimento muscular. A publicidade aumenta o desejo que cada um possui de ter um corpo semelhante ao que ela sugere de forma repetitiva, e, portanto, de poder transformá-lo através dos recursos tecnológicos. Consequentemente, a estética corporal torna-se um dos maiores mercados da sociedade de consumo (Montefusco, Severiano, Telles, 2009). Os insumos da publicidade são reforçados pelas vicissitudes dispostas pela figuração oportunizada pela era da tecnociência atual; exemplo disso é a possibilidade de edição gráfica do afamado Photoshop, que, por sua vez, desempenha papel fundamental na construção de imagens midiáticas que expõem corpos belos, e, segundo Sibilia (2005), constituem uma poderosa fonte de imagens corporais no mundo contemporâneo. O papel da mídia digital reforça e divulga os valores e atributos voltados para a busca de instrumentos que permitam a construção do corpo a partir da visualidade de um corpo manipulado e transformado em mercadoria. Esses valores creditam, ao ser imperfeito, a conquista de um corpo belo, jovem, magro e, ao mesmo tempo, reafirmam que, para a conquista do corpo belo no mundo real, o que prevalece é a necessidade de praticar exercícios físicos, desenvolver um cuidado com a alimentação, estabelecer um comportamento e uma consciência dirigida a produtos e serviços adequados à modelagem da aparência (Alves, 2007). A multiplicação das técnicas corporais e a difusão crescente de modelos de beleza provocaram uma pressão ainda mais prescritiva com relação ao autocontrole, suscitando, cada vez mais, o desenvolvimento de distorções da imagem corporal (Novaes, Vilhena, Lemgruser; 2003). Diante disso, se pode dizer que a prática do culto ao corpo se coloca como uma preocupação crescente para os indívíduos com obesidade mórbida, pois veem-se cada vez mais distantes de terem o contorno corporal atrelado aos apelos da mídia. Ademais, a projeção desenfreada de imagens estereotipadas, pelos veículos de comunicação, acaba por submeter os obesos a um processo de descontentamento com o corpo, que, por sua vez, ocasiona em intenso prejuízo ao processo de construção da imagem corporal. Nesse sentido, destaca-se que a obra de Paul Schilder, a qual serviu de pilar para a construção do presente artigo, propõe que a imagem corporal se constitui de três dimensões: a fisiológica, a libidinal e a sociológica ou a sociologia da imagem corporal (Schilder, 1999). Orientou-se o olhar dos pesquisadores concebendo o corpo como uma construção que é produzida no entretecer da história de vida dos indivíduos, com os sentidos e significados presentes no universo social em que eles estão 944
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imersos; nunca reduzido ao plano meramente individual, e tampouco sendo produto tão somente dos determinantes sociais, mas sempre a partir da tensão entre esses polos. Considera-se, assim, o conceito de imagem corporal como um valioso horizonte teórico para balizar este estudo, entendido como o modo pelo qual o corpo se apresenta para a pessoa e ela o apreende não só cognitivamente, mas, também, como uma representação constituída com base em seus desejos, suas emoções e na interação com os outros (Schilder, 1999). Partindo-se da ideia de que, na atualidade, em virtude da força com a qual se impõem os imperativos de embelezamento corporal e os parâmetros normalizadores que caracterizam o “homem médio”, a dimensão sociológica ganha centralidade na configuração da imagem corporal. Em face das conjecturas acima delineadas e, ainda, considerando o impacto sobre a imagem corporal dos obesos causado pelas imposições sociais relacionadas a valores da estética corporal difundidos na alta modernidade, registra-se que este estudo buscou compreender a interferência dos imperativos de estética corporal, veiculados no mundo contemporâneo, na constituição da imagem corporal de homens e mulheres obesos com idades entre vinte e 43 anos. Ainda, os objetivos específicos para a pesquisa foram: identificar as diferentes dimensões constitutivas da imagem corporal; compreender o processo da veiculação dos valores de estética corporal do mundo contemporâneo; e analisar a relação entre a história de vida dos sujeitos obesos e os imperativos de embelezamento corporal na atualidade. O texto trata, primeiramente, sobre o olhar metodológico que estruturou a pesquisa; posteriormente, apresenta a compreensão sobre a imagem corporal, concomitantemente à análise e interpretação dos dados; nas considerações finais, sintetizam-se os resultados alcançados.
O olhar metodológico A fim de contemplar a inferência dos imperativos de embelezamento corporal contemporâneos no cotidiano da amostra analisada, pautou-se o estudo em apreço na pesquisa qualitativa, referenciada pelo método História de Vida Focal, amparado por narrativas em profundidade, que abrangeram as vivências corporais dos indivíduos obesos. A pesquisa qualitativa demonstra-se a mais adequada ao caso, posto que, conforme Spindola e Santos (2003), baseia-se no pressuposto de que os conhecimentos sobre os indivíduos só são possíveis com a descrição da experiência humana, tal como ela é vivida por seus atores; além de se preocupar com os indivíduos e seus ambientes em suas complexidades. O propósito do uso desta metodologia foi investigar a compreensão de uma dimensão histórica da vida dos sujeitos; a constituição da imagem corporal na condição de pessoas obesas. Para o desenvolvimento da estrutura metodológica, recorreu-se às elaborações teóricas de Freitas (2002), Glat e Pletsc (2009), Spindola e Santos (2003); como instrumento de coleta de dados foi utilizada a entrevista em profundidade (Bellato et al., 2008). O quadro de sujeitos deste trabalho compreendeu dez adultos, sendo cinco do sexo masculino e cinco do sexo feminino, com idades entre vinte e 43 anos; os quais apresentavam o quadro de obesidade mórbida - Índice de Massa Corporal (IMC) maior ou igual a 40 Kg/m². Eles foram convidados a participar da pesquisa a partir do acordo de cooperação técnica firmado com uma clínica de fisioterapia da qual os sujeitos da pesquisa eram clientes, que permitiu ter acesso aos sujeitos, e, mediante seu consentimento, ao seu IMC. Optou-se por um número reduzido de casos, a partir dos critérios do método da História de Vida, que propõe que deve ser considerada a primazia das trajetórias biográficas, que precisam ser compreendidas em profundidade, sem a pretensão de generalização dos dados. Cumpre destacar, ainda, que os sujeitos convidados a participar possuíam diferentes condições socioeconômicas, bem como diferentes faixas etárias, que variavam desde a juventude, até a idade adulta. Essa opção se baseou no critério de contar com um amplo leque de possibilidades de trajetórias biográficas. Para a realização desta pesquisa, seguiram-se as normas éticas para pesquisa com seres humanos, estabelecidas pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Submeteu-se o projeto, para apreciação, ao Comitê de Ética da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), sendo aprovado em 29 de outubro de 2010. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.943-54, out./dez. 2012
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Para evocar as características corporais pertinentes à construção da imagem corporal dos pesquisados, foram realizadas entrevistas em profundidade, baseadas em um conjunto de premissas que exploraram temas que objetivavam a revelação da realidade corporal de cada entrevistado na condição de sujeito obeso, relacionando-a com as três dimensões da imagem corporal. Foram elas: Se o peso influencia na percepção corporal e na orientação espacial; Se as práticas corporais influenciam na constituição da imagem corporal; A relação com o corpo e com as zonas erógenas; Se o relacionamento com outras pessoas pode interferir na imagem corporal; Se o sujeito deixa de interagir com os outros por apresentar uma autoimagem negativa; Se o sujeito deixa de frequentar os eventos sociais por imaginar que os outros acham sua aparência corporal depreciativa; Se existem formas corporais consideradas corretas; Se os padrões de estética corporal da atualidade comprometem a maneira como considera sua autoimagem; Quanto a mídia pode interferir na imagem corporal e de que forma. Ressaltamos, ainda, que a entrevista em profundidade é do tipo aberto, sendo permitido ao pesquisador formular as questões norteadoras para o início da aproximação do universo do entrevistado (Bellato et al., 2008). Caracterizam-se aqui os sujeitos da pesquisa com relação ao seu nome fictício, idade, ocupação / profissão, estado civil e momento da vida em que se tornou obeso/a: Alice4, vinte anos, manicure, solteira, obesa desde a adolescência; Júlia, vinte anos, estudante, solteira, obesa desde a adolescência5; Maria, 32 anos, esteticista, casada, obesa desde a juventude; Joana, 29 anos, atendente, separada, obesa desde a infância; Sandra, 35 anos, professora, casada, obesa desde o final da juventude; Roberto, 43 anos, representante comercial, casado, obeso desde a idade adulta; Adriano, 29 anos, desempregado, casado, obeso desde a juventude; Bruno, vinte anos, estudante, solteiro, obeso desde o final da adolescência; Daniel, 25 anos, engenheiro eletricista, solteiro, obeso desde a passagem da adolescência para a juventude; e Guilherme, 33 anos, pastor evangélico, casado, obeso desde a juventude. Os relatos obtidos por intermédio das entrevistas foram analisados com fundamento nos procedimentos de análise de conteúdo referenciados por Bardin (2010). Conforme a orientação da autora, a análise foi baseada em um agrupamento de elementos, considerando-se a parte comum existente entre eles, estágio este chamado de categorização. A par disso, esta pesquisa apoiou-se num modelo misto de construção de categorias; contou com categorias que foram definidas a priori e outras que emergiram no campo estudado. Sendo as categorias a priori compostas pelas dimensões da imagem corporal: fisiológica, libidinal e sociológica. Por outro lado, vinculadas às categorias já estabelecidas, despontaram categorias provenientes dos dados coletados, que reforçaram a instituição e apropriação dos imperativos de embelezamento corporal dos tempos modernos e corroboraram o pressuposto balizador desta pesquisa.
Imagem corporal O estudo é balizado pelo conceito de imagem corporal elaborado por Paul Schilder (1999), que concebe a imagem corporal como a representação do corpo, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para a pessoa. O autor enfatiza em seu estudo que a imagem corporal não é apenas uma construção cognitiva, mas também reflexo de desejos, emoções e interação com os outros (Schilder, 1999). Este conceito abordado por Schilder sugeria uma mudança de perspectiva nos estudos de imagem corporal. É a partir dele que foi possível considerar a 946
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Todos os nomes utilizados são fictícios.
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Usamos aqui os critérios cronológicos definidos pelas normativas e estatutos nacionais (ECA e Estatuto do Idoso) e internacionais para definir as fases do desenvolvimento humano: infância, de zero a 11 anos; adolescência, de 12 a 18 anos; juventude, de 19 a 29 anos; idade adulta, de trinta a sessenta anos; e velhice, a partir dos sessenta anos.
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importância que a cultura, as atitudes e os sentimentos têm em cada comportamento humano (Campana, Betanho, Tavares, 2009). Schilder (1999) caracteriza a imagem corporal em três dimensões que se relacionam entre si: a base fisiológica, a estrutura libidinal e a dimensão sociológica.
Dimensão fisiológica Segundo Schilder (1999), ao se considerar a perspectiva fisiológica da imagem corporal, é possível identificar a percepção do corpo e redimensionar a compreensão do sujeito no processo de autoconhecimento. A imagem corporal é percebida mediante sentidos e envolve figurações e representações mentais. Compreende uma experiência imediata de unidade do corpo, chamada de modelo postural do corpo, cuja denominação visa enfatizar a importância do conhecimento da posição corporal. Nesta direção, Head (1920 apud Schilder, 1999) verificou que esse sistema se relacionava com o sentido postural e demonstrou que ele é responsável por fornecer não apenas uma localização acurada do corpo no espaço, mas, ainda, por permitir a estimativa de todos os movimentos do corpo. De acordo com Head, o conceito de espaço e movimento é determinado por um padrão básico de posturas corporais, intitulado de esquema corporal, que, não obstante seja básico para a consciência do espaço e do movimento, atua, ele próprio, de maneira inconsciente. Constata-se, assim, que o desenvolvimento do esquema corporal dos indivíduos obesos poderá intervir na capacidade de percepção de seu corpo bem como na noção espacial, haja vista o nãoreconhecimento de seu tamanho corporal aliado aos aspectos emocionais inerentes à constituição da imagem corporal. Percebe-se claramente tal fato quando se induz uma reflexão aos sujeitos da pesquisa sobre em qual momento de suas vidas eles se perceberam obesos. O resultado foi a obtenção de respostas que destoaram da realidade: “Engraçado que tem hora que eu me vejo gorda e tem hora que eu acho que eu não tô gorda. Sei lá, na realidade eu acho que é porque eu era magra quando era adolescente. Às vezes eu me sinto como se eu tivesse 65 kg. Então eu acho que tá bom. Engraçado que eu fico com esse pensamento”. (informação verbal fornecida por Maria em entrevista)
A narrativa de Maria reforça as referências apresentadas nesta pesquisa, a saber, de que os indivíduos com obesidade podem, por muitas vezes, apresentar imperfeições quanto ao reconhecimento de seu contorno corporal, caracterizando um quadro de distorção da imagem corporal. Na configuração da sociedade moderna e sob a ótica da unidade fisiológica da imagem corporal, estão presentes, na moda das roupas, algumas das objeções que os indivíduos com obesidade mórbida encontram ao se distanciarem do estereótipo considerado normal. Estes sujeitos se sentem discriminados ao sofrerem situações perturbadoras que os remetem ao desentendimento com seus esquemas corporais: “Em lojas populares, lojas comuns tipo Renner e C&A eu não encontro de jeito nenhum, principalmente por causa do meu peso, altura e estrutura óssea. Como eu fiz natação, tenho ombros largos, então se eu for nesse tipo de loja assim as blusas ficam todas agarradinha. Não consigo nem me mexer, nem se eu pegar o maior tamanho. Têm lojas que eu nem entro, porque eu sei que não vai servir”. (informação verbal fornecida por Daniel em entrevista)
A narração acima confirma a visão que os obesos possuem de si próprios e que é, ao mesmo tempo, difundida pela indústria da moda: a de que os gordos não podem ser bonitos e que devem usar roupas para disfarçar a sua gordura. Isso significa, para Cardoso e Costa (2007), que os obesos não podem desfrutar da liberdade de comprar uma roupa pela qual se apaixonam, mas que têm de se limitar a comprar “trapos que possam lhe servir”. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.943-54, out./dez. 2012
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Além do vestuário, o indivíduo obeso também enfrenta dificuldades na acessibilidade e usabilidade de produtos que são desenvolvidos para a faixa média da população, de acordo com padrões de planejamento e urbanismo de estruturas comuns (Menezes, Paschoarelli, 2009). Pode-se afirmar que os sujeitos deste estudo já experimentaram a situação em que houve o confronto da percepção que tinham do espaço ocupado pelo seu corpo com a real proporção deste no ambiente, tendo como desfecho o embaraço e a vergonha diante da exposição pública da sua forma não adequada aos padrões de normalidade. Observa-se a correspondência disso abaixo: “Uma vez aqui foi no Pizza Deck fui tomar um choppinho. Ali tem uns cadeirões altos. Aí eu sentei, encostei e a cadeira quebrou. E o pior que foi o braço, não foi nem o assento. Daí todos falavam: olha ali o gordinho que quebrou a cadeira. Foi só apoiar ela pra sentar que quebrou o braço. Foi porque era apertada mesmo. Eu me senti horrível, queria fazer igual aquele avestruz que abre um buraco e se enfia dentro”. (informação verbal fornecida por Adriano em entrevista)
Esta situação narrada vai ao encontro de outro problema sentido no íntimo pelos sujeitos obesos, que é a prática cotidiana de atividades corporais. Elas fornecem subsídio para o enriquecimento da consciência corporal. Em contrapartida, tem-se a figura do obeso mórbido, com sua expressão corporal limitada, que, em face disto, pode sofrer “apagamentos” que geram lacunas na imagem corporal (Matsuo et al., 2007). Quando se aborda a temática das práticas corporais, é evidente a elevada prevalência da inatividade física entre os obesos entrevistados. Nenhum dos sujeitos realizava regularmente qualquer prática corporal. Essa ideia fica confirmada na seguinte fala: “Quando eu estava com menos peso até me estimulava uma caminhada. [...] Então a vida de uma pessoa obesa, ela não é..., por mais que uma pessoa diga que é feliz gordinho. É uma mentira para ela mesmo, porque com certeza ela não é, porque quando ela era magra ela estava vivendo uma vida que não está vivendo hoje. Então ainda que eu olhe não pelo lado estético mais o da saúde, não tem comparação quando você está magro. É uma alegria de viver que eu não tenho agora, estar magro é estar livre” [grifo nosso]. (informação verbal fornecida por Guilherme em entrevista)
A prática regular de atividades corporais parece ser um artifício que possibilita o aumento das possibilidades do corpo. Porém os sujeitos relutam em trilhar este caminho, em virtude da elevada insegurança que têm de seus corpos. Essa percepção é ampliada pelos imperativos sociais do corpo jovem e belo. Fato este que tem se apresentado ao longo deste estudo como um dos fatores pelos quais estes indivíduos não conseguem se adaptar às práticas convencionais. Ante estas exposições, é possível inferir uma série de disfunções do reconhecimento corporal, conforme segue: “Eu sou desajeitada, porque eu sou muito gorda. Qualquer coisa eu esbarro e derrubo [mostrou os objetos em uma estante da sala]. Por ser muito grande eu tenho que equilibrar assim, porque eu passo assim e vou levando as coisas, por causa do meu tamanho. Eu de pé sou toda desajeitada, meus braços assim, eu passo e derrubo as coisas”. (informação verbal fornecida por Alice em entrevista)
Nos casos, observam-se características psicológicas que revelam o empobrecimento do reconhecimento do contorno corporal. Assim, os aspectos fisiológicos que emanam da autopercepção das estruturas corporais não alcançam o limite real do corpo e fomentam situações cotidianas que evidenciam aspectos relativos aos distúrbios da imagem corporal.
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Dimensão libidinal O corpo é subjetivamente construído mediante a interação contínua entre as tendências libidinais. Ademais, a influência do fator emocional desempenha um importante papel na personalidade de cada um, uma vez que coordena as tendências dos investimentos libidinais nas diversas partes do corpo, inclusive nos órgãos sexuais. Tais investimentos são decisivos para a emergência de representações intrapsíquicas, que vão constituindo as bases em função das quais irá se desenvolver a imagem corporal de cada um e o consequente vínculo instituído entre o indivíduo e sua sexualidade (Bendassolli, 1998). O investimento que o indivíduo direciona ao seu corpo e que, conforme Schilder (1999), baseia-se num sistema de impulsos, tendências e fantasias, permite encontrar sua expressão na estrutura física do corpo, assim como todo desejo ou propensão de investimento libidinal altera a estrutura da imagem corporal, modificando, também, a percepção do próprio corpo nos seus aspectos físicos concretos, como peso e volume. Um dos aspectos centrais da estrutura libidinal são as zonas erógenas, que constituem o centro da imagem corporal e determinam pontos no corpo para onde são dirigidas as emoções e o desejo. Por meio da identificação destes pontos no modelo postural, o indivíduo tem contato mais íntimo consigo e com o mundo, preenchendo funções em sua vida (Schilder, 1999). De maneira geral, nota-se que os indivíduos obesos têm dificuldade não só em se relacionarem consigo mesmos, como também não conseguem interagir com suas zonas erógenas. Salienta-se que uma característica importante e comum entre os obesos é que estes apresentam sentimentos conflituosos em relação ao seu corpo, os quais se manifestam na forma de um receio explícito de se olharem no espelho, devido à insatisfação corporal. A fala a seguir reforça tal posição, no momento em que Júlia explicita que evita o contato com o espelho. Diz ela: “Só mesmo quando eu saio do chuveiro, quando eu saio do Box. Meu pai fez um Box de concreto, daí o espelho é atrás do Box. Quando eu saio assim, às vezes quando eu vou me arrumar, assim que eu me arrumo no banheiro, daí eu sou obrigada a me olhar, porque se não eu passo correndo. Se não eu só olho depois que eu tô com a roupa né. Pior daí quando eu tô de roupa também acho feio. Olha, quando eu invoco eu não saio, porque não quero que ninguém me olhe”. (informação verbal fornecida por Júlia em entrevista)
Igual situação é vivenciada por Alice, haja vista o desprazer demonstrado em se olhar no espelho: “Nunca gostei de me olhar, tenho vergonha do meu corpo, mas foi mais quando eu cresci. Daí eu não gosto de ficar me olhando né, eu evito porque eu não gosto”. Nesse caso, a depoente, que conta com vinte anos de idade, evoca o despertar da sexualidade em um corpo obeso. Ela, ao iniciar suas relações afetuosas, se diz sentir envergonhada com seu corpo frente à percepção do olhar do outro às suas zonas erógenas. Segue seu relato: “Pelo fato de ser gordinha eu sempre tive dificuldades com minha intimidade né. Atrapalha muito pelo tamanho da minha barriga. Eu nem consigo alcançar direito e ver os meus órgãos. Eu tenho vergonha do meu corpo.” É relevante considerar que esta problemática atinge ambos os sexos e, embora se revele como um tabu entre os homens, aparece de maneira semelhante na hora de exposição dos corpos em ambientes públicos em que o corpo aparece seminu, como na praia. Postula-se, aqui, consoante Amaral (1994), que a imagem corporal, por propiciar a experimentação da sexualidade, é um elemento imprescindível na construção da identidade sexual. Os entrevistados percebem a obesidade como um obstáculo para a sexualidade, diante do descontentamento que há com o corpo e pelos imperativos de beleza da atualidade. Logo, a obesidade acaba repercutindo na autoimagem dos indivíduos, afetando, inclusive, a sexualidade e a qualidade dos relacionamentos consigo mesmo e com o outro. Alice, ao contrário, sente desejo pelo sexo oposto, porém percebe os limites que lhe impõe a sua condição corporal:
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“Eu nunca tive ‘relação’ com nenhum deles. Eles nunca me viram sem roupa porque eu não gosto. Ele, o último, não falava nada, mas eu acho que isso atrapalhava meu namoro. Eu tenho vontade, mas eu tenho vergonha. Se eles quiserem vai ser assim [...]. A minha barriga incomoda bastante né e por isso eu não tinha intimidade com ele. Se eu emagrecesse uns dez quilos acho que ia ser melhor”. (informação verbal fornecida por Alice em entrevista)
A força dos imperativos da magreza prevalece e traz consigo mais uma determinante para o constrangimento do corpo obeso, em que a gordura aparece como um mecanismo para o não-reconhecimento da sexualidade, construindo um muro entre a imagem corporal da pessoa obesa e do outro. Dimensão sociológica Schilder (1999) concebe a imagem corporal como um fenômeno social, em que as emoções se dirigem aos outros e são sempre sociais. Para se chegar à análise consistente da imagem corporal sob o ponto de vista sociológico, se faz necessário o entendimento da formação da identidade corporal. Conforme Giordani (2006), é possível perceber que a formação de uma identidade corporal nasce da intercomunicação e das trocas sociais entre os indivíduos. O “eu” é uma estrutura social que se desenvolve inteiramente numa experiência de comunicação. Num contexto existencial, a autora visualiza a imagem corporal como a revelação de uma identidade, de um sujeito na história e de suas relações concretas. Entretanto, Alberto (2007) faz algumas ressalvas, indicando que emoções, pensamentos e determinadas atitudes estão sempre respaldadas por um aparato social, que dita regras. O afastamento social vivido pelos obesos dificulta sobremaneira a progressão de sua imagem corporal. Para Barros (1990 apud Morais et al., 2002), a pessoa com obesidade não sofre tanto a dor física, mas a dor pelo desejo de um corpo magro. Ela sente que seu corpo é grotesco e sofre por ser vista pelos demais com hostilidade. [...] Muitas dificuldades na participação social acontecem em função de obstáculos, tais como o tamanho das poltronas do cinema, das cadeiras dos teatros e restaurantes, dos espaços das catracas dos ônibus e bancos, assim como das dificuldades que o excesso de peso traz para a realização do ato sexual, a vergonha de se expor em atividades de praia, esportivas e sociais, tornando-se assim reclusa em casa, sedentária, dependente de familiares, ausente do grupo social e afastada do trabalho. (Morais et al., 2002, p.19)
Assim, os obesos reduzem suas experiências corporais por conta de suas dificuldades nos relacionamentos interpessoais e a interação social. Neste ponto, se fazem presentes situações em que os familiares se revelam como influenciadores ativos no processo de compleição corporal dos sujeitos a cada quilo que adquirem, lembrando-os, a todo instante, das representações corporais construídas pela sociedade, que radicaliza os ideais de perfeição corporal. A família aparece mais como uma fonte de apoio na maior parte dos relatos. Inclusive no papel de harmonizadores, quando os obesos entrevistados referem histórias difíceis em que tiveram de passar pelo fato de seu peso parecer importuno aos olhos da sociedade. A esse respeito, Alice relata “Eu era maior que as outras crianças. Eu tinha seis anos nesta foto, as crianças já brincavam comigo. [...] Elas sempre me chamavam de gorda, baleia, um monte de coisa. [...] Eu sempre chorava, sempre falava pra minha mãe, sempre falava pro meu pai. Ele que ficava sempre mais comigo né, quando eu morava lá, só que daí ele dizia pra mim não ligar, pra não dá bola, pra mim não chorar [...]”. (informação verbal fornecida por Alice em entrevista)
Ao se ver insultada pela sua condição de obesa, Alice encontra, em seus familiares, uma referência de amparo e proteção. 950
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Em contrapartida ao amparo familiar, se impõe a entidade midiática, que consegue convencer as pessoas sobre diferentes aspectos que antes pareciam desnecessários, notadamente os de que a aparência física é pautada em medidas corporais quiméricas representadas sob a forma de corpos perfeitos. Falar das possibilidades da mudança física é referir-se a um anseio social. A cirurgia plástica aparece como uma delas, de maneira marcante entre as mulheres. Apesar da severa crítica endereçada a modelos magérrimas, nos discursos femininos o desejo de aderir à moda do bisturi emerge fortemente: “A única coisa que eu queria fazer era silicone. A lipoaspiração eu também já pensei em fazer né, mas eu tenho muito medo assim né [...] Eu seria a pessoa mais operada, a minha mãe vive fazendo cirurgia e olha que ela nem precisa né. Eu ia botar silicone, mas daí começaram a falar pra mim que eu tava louca. [...] Se é uma coisa que eu sempre falo em botar é silicone. Eu tenho o peito grande, mas daí eu ia colocar um pouquinho mais né [...] Quanto maior melhor, claro”. (informação verbal fornecida por Júlia em entrevista)
No mundo das obesas referenciadas neste estudo, uma característica é comum: o desejo de obter resultados sem fazer grande esforço. As entrevistadas enfrentariam todos os tipos de cirurgias plásticas com o objetivo de ostentar uma aparência totalmente diferente da que possuem. Nesta esfera, Poli Neto e Caponi (2007) afirmam que os intitulados médicos da beleza e a mídia criam a definição de um padrão de beleza, que se define por medidas corporais facilmente alcançáveis pelas modalidades cirúrgicas que são comercializadas pela medicina estética e divulgadas pela imprensa. Salienta-se que essas definições da sociedade moderna acerca do corpo perfeito e a validade que o olhar de outrem tem na formação dos corpos imaginários apareceram com um forte peso nas falas dos entrevistados. Ao serem questionados especificamente sobre o pensar dos outros a respeito de si, os sujeitos categoricamente remetem respostas intimamente ligadas à sua aparência física, desconsiderando outro tipo de percepção que se possa ter a seu respeito. É possível confirmar tal percepção na fala de Maria: “Eu acho que as pessoas acham que eu sou feia assim sabe. Nunca me falaram. Mas já falaram - Ela é tão bonita, tinha que emagrecer. [...] Tinha algumas pessoas que achavam que eu era doente. Muitas pessoas perguntam pro meu marido porque que ele continua casado comigo. Elas acham que ele tem que trocar de esposa só porque eu sou gorda, e não foi um, dois, foram vários. Por isso eu tenho menos amigos [...]”. (informação verbal fornecida por Maria em entrevista)
A percepção que Maria tem a respeito de seu corpo somente reforça os arquétipos sociais acerca da idealização do corpo levantados por Gonçalves (2006). Segundo a referida autora, as pessoas gordas são discriminadas na medida em que são tratadas como feias e doentes. Os sujeitos desta pesquisa sustentam este parecer do autor, haja vista que a limitação social se faz evidente em suas falas: “Eu não saio de casa. [...] Eu tenho poucas amigas e a maioria das minhas amigas são casadas. Eu às vezes vou na casa de alguma delas para conversar, mas sair de sair mesmo eu não saio, de noite eu nunca saio. Eu não gosto de sair principalmente por causa do meu peso. [...] Minha rotina é do trabalho para casa e lá de vez em quando eu vou na faculdade, foi até por isso que eu escolhi a modalidade a distância. Ir para boate ou um barzinho assim é bem raro”. (informação verbal fornecida por Joana em entrevista)
O relato de Joana, que denota este empecilho à sociabilidade, encontra-se exclusivamente apartado pela sua condição de obesidade. Cabe mencionar que Joana, ao longo de toda entrevista, parece bastante desmotivada com seu corpo, o que reforça a influência que os imperativos do corpo belo têm sobre aqueles desviantes. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.943-54, out./dez. 2012
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Torna-se importante, ao fim, fazer a ressalva de que, no momento da elaboração da obra de Schilder, não se evidenciava a força do aparato midiático na construção da dimensão sociológica da imagem corporal. Hoje, no entanto, há um maior investimento da mídia nos valores de estética corporal, enaltecendo um tipo de representação corporal baseado nos corpos magros e uma preocupação exagerada com a estética corporal.
Considerações finais Este estudo possibilitou assentar que o conhecimento aprofundado a respeito das condições de vida do grupo estudado foi determinante para concluir que: existem evidências que permitem sustentar a hipótese quanto à decisiva influência dos imperativos de embelezamento corporal e dos parâmetros antropométricos atribuídos ao “homem médio” na construção de cada uma das diferentes dimensões que compõem a imagem corporal do sujeito obeso, de acordo com a perspectiva de Schilder (1999). As expressões de insatisfação com o próprio corpo são enunciadas nas falas de todos os sujeitos, os quais consideram suas formas abstraídas de beleza. Muitos deles, até mesmo, depreciam seu semblante frente à comparação com os corpos da moda, realçando ainda mais as hipóteses levantadas nesta pesquisa, notadamente a de que o universo contemporâneo impõe características físicas que são incompatíveis com a maioria da humanidade, especialmente com a classe dos obesos mórbidos. Convém salientar que a pesquisa, em nenhum momento, teve a pretensão de responder a toda complexidade que envolve o fenômeno da constituição da imagem corporal. Assim sendo, as questões trazidas à tona com o presente estudo dão margem a maiores reflexões, que não se limitam apenas a constatar a correlação entre os possíveis comprometimentos na construção da imagem corporal e a obesidade, mas também possibilitam a ampliação do olhar da saúde pública no que concerne a este mal que a cada dia toma uma magnitude espantosa. Deste modo, para possibilitar o desenvolver dos corpos imaginários dos obesos, é fundamental que os programas assegurem a identidade corporal destes de forma a contribuírem para sua contextualização no mundo em que estão inseridos. Este trabalho aponta, ainda, a necessidade de novas investigações abordarem pormenorizadamente as implicações dos imperativos de beleza da contemporaneidade para com a comunidade obesa. Na forma como foi apresentado nesta pesquisa, o grupo de pessoas com obesidade mórbida é o mais afetado pelas manifestações da sociedade em prol de um corpo magro. Logo, há urgência de se analisarem múltiplos aspectos voltados à distorção da imagem corporal, bem como as consequências deste problema para a saúde dos obesos.
Colaboradores Os autores Miquela Marcuzzo e Santiago Pich participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação, e da revisão do texto. Maria Glória Dittrich participou da revisão do texto. 952
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MARCUZZO, M.; PICH, S.; DITTRICH, M.G.
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A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM CORPORAL ...
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Palabras clave: Imagen corporal. Obesidad. Imperativos de estética corporal.
Recebido em 07/11/11. Aprovado em 12/06/12.
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Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2010
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O processo de alcoolização entre os Tenharim das aldeias do rio Marmelos, AM, Brasil* Priscilla Perez da Silva Pereira1 Ari Miguel Teixeira Ott2
PEREIRA, P.P.S.; OTT, A.M.T. The process of development of alcoholism among the Tenharim people in villages along the Marmelos river, state of Amazonas. Interface Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.957-66, out./dez. 2012. The aim of this paper was to analyze the process of development of alcoholism in villages along the Marmelos river using an anthropological approach. The way in which the Tenharim people drink is related mainly to a rite of passage for males, with rules that are well defined by the families, with protection and control mechanisms. It could be seen that development of alcoholism has been discussed by these indigenous people, but with differences regarding whether it is defined as a problem. This breaks up the actions implemented against the development of problematic alcoholism. The position of liminality taken by those who consume alcohol demonstrates that there is a need for social fortification of the community.
Keywords: Health and Society. Development of alcoholism. Rite of Passage. Tenharim. Amazonas.
O objetivo deste trabalho foi analisar esse processo de alcoolização nas aldeias do Marmelos utilizando o enfoque antropológico. A forma como os Tenharim bebem está relacionada, sobretudo, a um rito de passagem masculino e com regras bem definidas pelas famílias, com seus mecanismos de proteção e controle. Foi possível notar que a alcoolização vem sendo discutida pelos indígenas, mas, com diferenças quanto à definição como um problema ou não, fato que fragmenta as ações desenvolvidas contra a alcoolização problemática. A posição de liminaridade assumida pelos que consomem álcool demonstra a necessidade de fortalecimento social da comunidade.
Palavras-chave: Saúde e Sociedade. Alcoolização. Rito de Passagem. Tenharim. Amazonas.
Elaborado com base em Pereira (2010); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Rondônia e pelo Conselho Nacional de Ética e Pesquisa, sob o registro CONEP 15510, atendendo à Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Financiado pelo Ministério da Saúde/ DECIT/CNPq (Proc. 402532/2008-2 1 Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Rondônia. Campus, BR 364, KM 9,5. Porto Velho, RO, Brasil. 78.900-000. d.pri@bol.com.br 2 Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de Rondônia. *
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Introdução Os Tenharim pertencem a um grupo maior, que se autodenomina Kagwahiva, povo indígena Tupi que teria migrado, no século XIX, do Alto Tapajós para o oeste do Amazonas, devido a conflitos com outros grupos indígenas. As Terras Indígenas (TI) Tenharim estão divididas em três grandes reservas, com um total de 790 indígenas: do Marmelos, do Igarapé Preto e do Sepoti. A população do Marmelos, com 272 indígenas, está distribuída em quatro aldeias. Organizam-se conforme um sistema de metades exogâmicas, que recebem nomes de aves. Essas metades são: Mutum-Nanguera e Kwandu-Tarave. As informações prévias de uma das lideranças é de que a alcoolização entre os Tenharim, em alguns momentos e para alguns, havia tomado proporções consideradas por eles como negativas para a comunidade indígena. Assim, empunha-se o desafio de conhecer as causas e motivações da alcoolização, considerando esse processo como: [...] o conjunto de funções e conseqüências positivas e negativas que cumpre a ingesta de álcool para conjuntos sociais estratificados, e não apenas o estudo dos alcoólicos dependentes, nem os excessivos, nem os moderados, nem os abstêmios, mas sim o processo que inclui a todos e que evita considerar o problema em termos de saúde e/ou enfermidade mental. (Menendez, 1982, p.63)
Portanto, o objetivo deste artigo é a descrição do processo de alcoolização, sendo necessário conhecer o que eles bebem, como e quando. Apenas definir a forma do consumo não fornece subsídios para se compreender o processo como um ato social. É necessário abordar os grupos que fazem parte do universo dessa comunidade indígena e são capazes de valorizar o ato de beber ou não beber, considerando, assim, também o contexto social que envolve os moradores da aldeia Marmelos e do Município de Humaitá. A abordagem qualitativa, com um enfoque antropológico, demonstrou ser o método mais adequado para a descrição do processo de alcoolização entre os Tenharim. A pesquisa de campo foi realizada no período de julho de 2009 a janeiro de 2010, perfazendo um total de 21 dias. Os sujeitos ouvidos na cidade de Humaitá foram: responsáveis pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI); Fundação Nacional de Saúde (FUNASA); Casa do Índio (CASAI); representantes do Conselho Distrital de Saúde Indígena; Secretaria de Saúde; donos de bares e funcionários dos bares e hotéis mais frequentados pelos indígenas; e pessoas da cidade de Humaitá que estavam, no momento da coleta de dados, na praça principal, bares e restaurantes da região ao redor da rodoviária. Nas aldeias, foram entrevistadas todas as lideranças do Marmelos (cacique, vice-cacique, Agente Indígena de Saúde - AIS, Agente Indígena de Saneamento - AISAN, professores, presidente do conselho local de saúde indígena e conselheiros); idosos; representantes das famílias (homens e mulheres casados); e os jovens. Foram utilizadas dez perguntas disparadoras, sendo registradas as respostas em relatórios, dando ênfase às opiniões, comentários e frases que foram analisadas por meio da técnica de paráfrase das ciências sociais – hermenêutica. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Rondônia e pelo Conselho Nacional de Ética e Pesquisa, sob o registro CONEP 15510, atendendo à Resolução 196/ 96 do Conselho Nacional de Saúde.
A Transamazônica e a contribuição para a mudança no estilo de vida dos Tenharim A cultura Tenharim, como se apresenta na atualidade, é intrínseca à história de desenvolvimento da Região Amazônica. O contato marcado por conflitos que haviam se iniciado no século XIX, sobretudo devido ao processo de extrativismo, completou-se efetivamente na década de 1970, com a abertura do garimpo Paranapanema e da estrada Transamazônica (Peggion, 2005).
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A Transamazônica, considerada como a “estrada brasileira para o etnogenocídio” (Davis, 1978, p.7), foi o projeto de desenvolvimento que interferiu de maneira direta nas aldeias Tenharim do Marmelos. Os contatos decorrentes da mineradora e da estrada intensificaram-se e levaram a uma significativa modificação estrutural da aldeia, especialmente na forma de subsistência da comunidade. Os índios Tenharim que viviam na aldeia Nhande’uhu, ao longo do rio Marmelos, se deslocaram para as margens do traçado da Transamazônica, na tentativa de frearem as ações da construção da estrada. Sem muitas opções de sustento e infraestrutura, os índios acabaram aceitando as ações paternalistas da FUNAI: casas, mudança do local das roças, a introdução de novos alimentos manufaturados e de objetos, como roupas (Silva, 2006; Peggion, 2005; Sampaio, 1997). A Transamazônica era um ingrediente importante do milagre econômico e seria construída ao preço que fosse necessário. Afinal, o curso de desenvolvimento da Amazônia atenderia interesses políticos e econômicos, e não seriam os obstáculos naturais, incluindo aí os índios, que inviabilizariam o “desenvolvimento”. A exploração da Amazônia visava atender os interesses, sobretudo, de multinacionais e grandes fazendeiros beneficiados pelos incentivos fiscais e tributários da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) (Davis, 1978).
O uso de bebidas industrializadas pelos Tenharim Na maioria das culturas indígenas, as bebidas fermentadas são consumidas como alimento ou de maneira sagrada, podendo ou não causar desconfortos físicos ou sociais entre os membros da comunidade indígena. A função da bebida fermentada é determinada pelo teor de álcool, podendo ser classificada como fraca ou forte (Souza, Oliveira, Kohatsu, 2003). Na revisão de literatura, foram encontradas três referências aos Tenharim e o uso de cauim - kawy (forma como os sujeitos da pesquisa chamam as bebidas fermentadas produzidas artesanalmente). A primeira, em 1924, refere-se ao consumo da bebida como um ato sem importância entre os Kagwahiva (Nimuendajú, 1924). A segunda, apontada por um funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1926, descreve o uso do cauim após as guerras, em rituais chamados de festa da quebra da cabeça do inimigo, nos quais o objetivo de seu consumo não era embebedar (Freitas, 1926). E a terceira referência era o mito de Bahira - o personagem central da mitologia Kagwahiva, quando, em uma das festas realizadas por Bahira, o cauim de milho foi oferecido como alimento (Silva, 2006). Além das referências anteriores, de acordo com as falas dos sujeitos, não há indícios do uso do cauim com fins de cauinagem, ou seja, a utilização de cauim azedo em grande quantidade durante comemorações (Peggion, 2005; Lima 1996). A bebida fermentada, produzida artesanalmente, e não utilizada para fins de embriaguez não é exclusividade do povo indígena Tenharim. Entre grande parte dos grupos de língua Jê e os índios do alto Xingu, encontram-se exceções para a fabricação e o uso do cauim, como, por exemplo, os Matis (povo indígena da Amazônia Central). Entre eles, o cauim era feito de macaxeira, quase sem teor alcoólico, e era utilizado cotidianamente como alimento (Souza, Garnelo, 2007). Portanto, não houve uma substituição do cauim pela bebida alcoólica industrializada, como encontrado em outras aldeias indígenas. O contato com as bebidas alcoólicas industrializadas foi em função da construção da Transamazônica. Construção esta que proporcionou, aos Tenharim, acesso às bebidas industrializadas e ao dinheiro para compra de produtos variados, entre eles, o álcool. A utilização de cachaça pelos Tenharim foi realizada inicialmente sem normas quanto à idade, sexo, motivo ou forma de utilização. Eles a utilizavam como quem descobre uma fonte poderosa para sensações de relaxamento, desinibição e socialização. Porém, alguns apenas experimentaram e, devido ao gosto que não era agradável, não mais consumiram. O grande fluxo de pessoas que passava na estrada e a presença de transações comerciais próximas aos acampamentos dos trabalhadores facilitavam o acesso, sobretudo, à cachaça. Mas, o ato de beber não permaneceu de maneira descontrolada. Inicialmente, devido à interferência da FUNAI e, posteriormente, com a definição de uma disciplina tradicional pelos próprios membros da comunidade indígena, várias normas foram instituídas na tentativa de controlar ou amenizar os problemas referenciados ao processo de alcoolização. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.957-66, out./dez. 2012
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A alcoolização entre os Tenharim A forma de beber não pode ser considerada universal. Não é possível fazer uma avaliação do uso de bebidas alcoólicas da mesma maneira em todas as populações indígenas. É necessário considerar: o contexto social, ou seja, suas normas de conduta, a forma de punição, as dimensões de positivo e negativo dessa comunidade (Souza, Garnelo, 2007). Para isso, é importante uma contextualização do uso do álcool na cultura indígena até a atualidade. Com quem bebem O consumo das bebidas alcoólicas ocorre na aldeia ou na cidade. Em sua maioria, é de forma coletiva, ou seja, em pequenos grupos de homens de uma mesma faixa etária ou posição social (jovens, liderança, homens adultos), independente da metade exogâmica (Mutum ou Taravé) ou grau de parentesco ao qual o indivíduo pertence. Não há relatos de que mulheres utilizem álcool, pelo contrário, o seu uso está restrito aos homens, que encontram maior liberdade de acesso às bebidas e permissão consensual para o seu consumo. A ingestão de álcool entre os indígenas sempre ocorre de maneira socializada – grupal –, fato este que contribui para o reforço da alcoolização coletiva. Esse fortalecimento numa relação coletiva contribui para que seja utilizado mais álcool, levando, assim, a um estado de exclusão desse pequeno grupo do restante da comunidade indígena (Sztutman, 2008; Acioli, 2002). Este fato pode ser constatado entre os rapazes do Marmelos, que andam juntos e utilizam as bebidas especialmente à noite, quando as famílias estão em suas casas. Fora do ambiente da aldeia, o uso de bebidas também se configura de maneira coletiva. Junto a não-indígenas ou outros indígenas, o uso do álcool está associado ao divertimento, sobretudo após o trabalho ou estudo – “eu já bebi muito, na cidade a gente faz pra se entrosar melhor e na aldeia é só de farra mesmo” (Jovem Tenharim, 17 anos). Os adultos que se encontravam em uma posição de autônomos parecem utilizar o álcool como forma de comprovar essa autonomia, e os jovens a utilizavam, em meio aos não-índios, como forma de autoafirmação e aproximação. Mecanismo apontado, por Dal Poz (2003), como mobilidade social, quando o indivíduo se despoja de costumes do seu grupo étnico para tornar-se membro de outro grupo étnico. Aquele que bebe sozinho e em qualquer momento do dia é considerado, pela comunidade, como doente. Essa individualização no consumo das bebidas e a intensificação do contato com os não-índios, por meio da permanência nos centros urbanos, contribui para que os indígenas assumam um padrão de individualismo (Coloma, 2001). A substituição de um padrão coletivo para individual estabelece uma mudança sociocultural que interfere nos campos da política, economia e cultura. Quando bebem O consumo de bebidas alcoólicas ocorre, sobretudo, em dias de eventos comemorativos ou jogos esportivos, aos finais de semana, à noite ou nas idas à cidade. Nos dias rotineiros marcados pelas atividades, como estudo, trabalhos na casa de farinha, agricultura ou caça, o uso de bebidas se dá com menor intensidade e, geralmente, após o desligamento da energia elétrica. Ocorre em pequenos grupos de jovens enquanto escutam músicas em aparelhos sonoros movidos por energia proveniente de baterias. Onde bebem O consumo ocorre em um determinado espaço que, dependendo da situação, pode ter seus limites ampliados ou diminuídos. As aldeias se configuram em uma região central: escola, campo de futebol, casa de farinha; e área periférica: os rios, roças e mata. Para manter a discrição no ato de beber durante as festas, no período do dia, os índios consomem o álcool embaixo de árvores afastadas, na beira do rio, 960
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em regiões próprias de banho, e em cantos da estrada. Mas, à noite, quando a música já está tocando e a dança iniciada, todos se aproximam do barracão de reuniões. Os que já estão alcoolizados permanecem em grupos, sendo possível observar comportamentos extravagantes, incomuns aos Tenharim em dias normais. Quanto mais a noite adentra, mais fácil é encontrar indígenas utilizando as bebidas alcoólicas, de maneira mais exposta e explícita. Diferente dos dias de festas, em dias de semana, o consumo é discreto – o que tornava o ato praticamente imperceptível. Ocorria entre grupos de jovens, durante a noite e mais próximo às áreas das casas, sobretudo na área do campo de futebol e do pedágio. O que bebem As bebidas alcoólicas utilizadas pelos Tenharim são escolhidas conforme a facilidade no acesso e conservação. Na aldeia, a bebida mais utilizada é a cachaça, devido à possibilidade de consumo sem refrigeração. Nas cidades, além da cachaça, outra bebida consumida é a cerveja. Acesso às bebidas Existem alguns fatores facilitadores para o consumo de bebidas alcoólicas pelos indígenas. Entre eles, os mais importantes são: a proximidade das aldeias de pontos de venda e o baixo custo da bebida. Os fatos determinantes para o acesso às bebidas pelos Tenharim foram: a criação de uma vila chamada 180, que está a cinquenta km do Marmelos, e a aquisição de motos – meio de transporte rápido e barato que proporciona acesso aos pontos de comércio dessa vila e ao longo da Transamazônica.
A idade para o consumo e a relação com o rito de passagem masculino Anteriormente, os meninos tornavam-se adultos após um rito de passagem que consistia em guerrear contra seus inimigos. Mantinham-se fora da comunidade indígena, ficando expostos aos perigos da natureza e à mercê de outros índios. Isolados, eram forçados a se desenvolverem física e mentalmente. Os sujeitos que retornavam à aldeia, vitoriosos por terem vencido o inimigo, estavam renovados sobre quem eram e qual o seu papel na comunidade. Os ritos de passagem são manifestados por símbolos criados pelas sociedades e marcam a modificação de papéis que o indivíduo deverá assumir (Rodolpho, 2004). No conceito de ritos de passagem de Van Gennep, há três fases: a separação, a liminaridade e a incorporação (DaMatta, 2000). O rito de passagem dos meninos Tenharim mantém-se com a característica de reclusão e retorno, porém, a mata não é mais a floresta Amazônica, mas, sim, a “grande mata” do homem não índio. Os entrevistados faziam referências à permissão dos adolescentes para irem à cidade sozinhos ou com os amigos como um marcador de passagem da infância para a vida adulta. Esse distanciamento dos pais representa as duas primeiras fases do rito de passagem da infância para a juventude – a separação e a liminaridade. A ida à cidade, por volta dos 12 anos, significa que o menino vem assumindo sua autonomia enquanto indivíduo, não necessita mais da presença constante dos pais, portanto é responsável por suas atitudes. Essa relação entre a alcoolização e o rito de passagem também foi encontrada entre os Kaingáng (Souza, Oliveira, Kohatsu, 2003) e os jovens do Alto Rio Negro (Souza, Deslandes, Garnelo, 2010). Entre os jovens dessas etnias, no ato de beber estão embutidos atributos como coragem, valentia e força, remetendo à ideia de masculinidade. A possibilidade de ir à cidade sem a presença de um parente responsável e o uso da bebida alcoólica fazem parte do novo ritual de passagem da infância para a vida adulta. Nesta fase, é necessário assumir as responsabilidades, portanto ela é liminar, e, no processo de separação e incorporação, pode haver rupturas, e o indivíduo pode passar a consumir a bebida alcoólica de maneira individual, e ser considerado como um membro da comunidade indígena que não assume seu papel de responsabilidade. Declaram que “para não consumir bebida alcoólica é necessário ter uma opinião firme, quem consome a bebida o faz porque quer” (jovem Tenharim). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.957-66, out./dez. 2012
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A permissividade para o ato de beber não é algo declarado. Mas a dinâmica familiar Tenharim mantém uma característica de emancipação dos rapazes, conseguida anteriormente pela habilidade de caçar, pescar, cultivar a terra e conhecer sobre as questões da natureza. Porém, atualmente, é marcada pelo compromisso com os estudos e autonomia para ir à cidade. A cada membro é aconselhado o que fazer, mas o indivíduo é responsável pelas suas atitudes. Os meninos, ao serem considerados prontos para assumirem responsabilidades, são respeitados como sujeitos. A família passa a interferir se houver extrapolações às regras de condutas, regras estas formuladas com base no consenso familiar. Apesar de pertencerem a uma mesma aldeia, as famílias possuem variações quanto à forma de lidar com os problemas, decisões e tensões.
As regras para o consumo Há duas questões importantes a serem discutidas em relação às normas de consumo de bebidas alcoólicas. A primeira é a descrição das regras definidas pelos Tenharim; a segunda está no fato de que certas regras podem perder a validade quando o indivíduo está em estado de embriaguez (Guimarães, Grubits, 2007). Parece ser consenso, entre os Tenharim, que a bebida alcoólica pode ser utilizada com moderação em dias festivos, como forma de divertimento. Nesses dias festivos, momentos de alegria e descontração são colocados em primeiro plano, diferente dos dias do cotidiano, quando os trabalhos de manutenção e subsistência são prioridade. O que é classificado como moderação não é definido pela quantidade ou tipo de bebidas a serem consumidas, mas, sim, pelo comportamento social assumido. O que torna o uso de álcool um problema é o consumo fora dos dias de festas, e o beber a ponto de ter comportamentos agressivos e provocar brigas dentro da aldeia ou na cidade. Parece claro, também, que é um consenso, entre os Tenharim, que nem todos possuem controle para utilizar o álcool de maneira moderada. De modo geral, as regras para o consumo são quanto à idade, portanto não sendo permitido às crianças. Também há restrições quanto ao sexo, sendo relacionado a um ato para homens, pois as mulheres são consideradas como criadas na tradição; assim, aos homens, é permitido o alívio do controle social sobre os comportamentos. Outro fator que está relacionado à normatização quanto ao ato de beber é o estado de saúde atual do individuo. O estado de doença o torna inapto ao consumo do álcool. O estar doente também pode ser influenciado pelo consumo anterior do álcool, conforme relatado pelos mais idosos. Para eles, manter a abstinência ao álcool é uma forma de contribuir para que o estado de doença não se agrave: “esses jovens não vão conseguir parar de beber depois que envelhecer e vão sentir o peso da bebida depois de velho, isso se antes não receberem o castigo por meio de brigas com os brancos ou entre os próprios parentes. Se eu tivesse seguido os costumes na alimentação, não tivesse gastado dinheiro com bebida não estaria velho e doente como estou hoje”. (idoso, líder Tenharim)
Do ponto de vista econômico, o uso do dinheiro para compra de bebidas alcoólicas e o estado de depreciação física e mental para o trabalho e estudo, advindos do consumo, são considerados como um fator negativo. Um dos problemas apontados pela comunidade Tenharim quanto ao uso do álcool está relacionado ao gasto do dinheiro para compra de bebidas, deixando, assim, de prover à família o necessário para a subsistência. Para alguns dos entrevistados, se o Tenharim utiliza o álcool, mas não deixa faltar nada para sua família, os demais parentes não interferem em sua ação. A influência da alcoolização no desempenho escolar dos jovens também foi apontada. Segundo eles, as bebidas interferem na atenção e aprendizado, tornando-se um efeito negativo para os Tenharim, que valorizam muito a educação, e a maioria dos jovens pretende dar sequência na educação formal visando o nível Superior. O último aspecto em relação às regras para o consumo é a flexibilidade em avaliar a conduta do alcoolizado. Essa observação foi relatada também entre os Kaingáng, que relevam as ações decorrentes de situações de embriaguez em dias de festa (Souza, Oliveira, Kohatsu, 2003). 962
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Em dias de trabalho, considerados como impróprios para o consumo de álcool, os indígenas estão inseridos em um universo de regras de condutas: o falar baixo, o andar discreto dos adultos e as expressões comedidas são comportamentos esperados. Em dias cotidianos, não é comum ver grupos de jovens brincando de empurrar, apresentando gestos extravagantes e manifestações de euforia, mas, em dias de comemorações ou à noite, em pequenos grupos, a severidade dessas regras parece ser afrouxada. Esse fenômeno de se valorizar um mesmo evento de maneira diferente pode ser considerado como remissão e inversão simbólica: “remissão cultural refere-se à maior permissividade social [...] e inversão simbólica diz respeito ao cancelamento da identidade normal e a adoção temporária da identidade de outra pessoa” (Dias, 2008, p.200). A conotação de não saber o que está fazendo, proveniente da alcoolização, ameniza o rigor das regras de conduta. Porém, se houver necessidade de assumir alguma atitude frente a alguma quebra de regras de conduta, essa decisão cabe à família, e a liderança não interfere de modo direto.
O consumo de bebidas alcoólicas e a relação com a doença A questão do alcoolismo em comunidades indígenas é uma problemática que pode ser encontrada em muitas aldeias, porém os estudos que registram esse fato ainda são escassos. Guimarães e Grubits (2007) revisaram as taxas de prevalência de uso de bebidas alcoólicas em comunidades indígenas. Entre os Terena do Mato Grosso do Sul, encontraram uma prevalência de 10,1%, com índice maior entre os índios acima de 15 anos e os que moravam mais próximo da cidade (Aguiar, Souza, 2001). Entre os Kaingáng no Rio Tibagi (PR), encontraram uma prevalência de 29,9% de indígenas que fizeram uso de bebidas alcoólicas no último ano, sendo a maior proporção entre homens (Coimbra Junior, Santos, Escobar, 2003). Mas, existe uma dificuldade em determinar se o uso de bebidas alcoólicas em uma comunidade indígena se configura como um problema para a mesma, devido aos significados sociais e culturais atribuídos ao ato de beber. Buscando um conceito menos pragmático e evitando, assim, rotular os sujeitos que participaram desta pesquisa, considerou-se o processo de alcoolização como um comportamento apreendido, modelado socialmente e que, eventualmente, traz complicações na área da saúde física e do desempenho social (Marlatt, 2004). Um dos objetivos deste artigo, ao abordar os envolvidos no processo de alcoolização entre os Tenharim, era definir o consumo como um problema ou, mesmo, como doença, partindo das concepções da própria comunidade. O conceito sobre o processo saúde-doença como ocorrência de estados de alternância entre equilíbrio e desequilíbrio de fatores pode ser interpretado nas falas dos Tenharim do Marmelos. Os conceitos sobre o uso abusivo de álcool podem ser resumidos de acordo com as frases ditas durante uma conversa na escola: “não bebe porque isso não vai te trazer nada de bom” (Tenharim, 15 anos); “a bebida só estraga a saúde da gente” (Tenharim, 17 anos); “quando você bebe você afasta sua família” (Tenharim, 13 anos); “não pode estudar direito” (Tenharim, 15 anos); “a bebida não leva a nada” (Tenharim, 16 anos). Para eles, o alcoolista doente é aquele que usa o dinheiro para compra de bebidas mesmo após constituir uma família, perde o respeito e sua posição social na comunidade. Também foi apontada, como característica do individuo doente, a permanência na cidade em um estado de ou’yuga (alcoolização), e ser classificado como aquele que denigre a imagem do grupo frente a outros membros. Portanto, nas descrições sobre os Tenharim doentes por causa do consumo de bebidas alcoólicas, são apontados prejuízos nos aspectos sociais, econômicos e relacionados à identidade do índio Tenharim. Assim, é possível constatar o caráter social do consumo de bebidas alcoólicas entre os Tenharim, o que aponta para ações de prevenção e tratamento baseadas nas relações do grupo, e não apenas ações individuais.
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Considerações finais A interpretação dada, pelos Tenharim, ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas está relacionada, sobretudo, à moral, no sentido de boa conduta segundo os preceitos estabelecidos pelo grupo. O consumo socialmente admitido está relacionado a uma fase da juventude masculina, que deve cessar quando o jovem se casa e assume seu novo papel de responsável por sua família. Assim, o ato de consumir bebidas alcoólicas, entre os jovens Tenharim, pode ser relacionado ao rito de passagem da infância para a vida adulta. Porém, os Tenharim que entraram em contato com as bebidas alcoólicas e as utilizam individualmente são como aqueles que iam para guerra e não conseguiam retornar à comunidade, não venciam os desafios do isolamento – não completavam o rito de passagem da infância para a vida adulta. A partir da descrição sobre o consumo de bebidas alcoólicas entre os Tenharim, é momento de refletir sobre quais os possíveis caminhos a serem percorridos visando à prevenção e tratamento do problema envolvendo o álcool. Para pensar em qualquer forma de prevenção e tratamento aos alcoolistas considerados doentes, é preciso considerar que o consumo de bebidas alcoólicas é o resultado entre a interação da substância, a disposição psicológica e o contexto do consumo. Da mesma forma, a prevenção e tratamento não são de responsabilidade apenas da comunidade indígena, mas, sim, de todos os órgãos envolvidos na questão indígena. É inadiável o processo de discussão, entre os profissionais de saúde e os indígenas, para que sejam definidos os papéis de cada um no que se refere a ações relacionadas ao consumo de álcool. É indiscutível que cada setor governamental envolvido nas ações assistenciais considere o significado da alcoolização a partir das referências da cultura Tenharim dos indígenas do rio Marmelos, e não apenas sob a ótica reducionista e individualista do modelo biomédico. Para isso, é importante a elaboração de um instrumento que possa quantificar os problemas relacionados ao álcool, identificando os grupos vulneráveis e o uso racional de recursos de intervenção. Os próprios Tenharim reconhecem a necessidade de se organizar o atendimento às pessoas com problemas com o álcool, apontadas por eles como doentes. Assim, é necessária a realização de capacitação da equipe multiprofissional que compreenda os aspectos socioculturais, para que atuem no tratamento e prevenção de abuso de bebidas. A relação entre o consumo de bebidas e a responsabilidade está presente na grande maioria dos relatos dos Tenharim do Marmelos. Mas, é necessário que os próprios Tenharim reflitam sobre algumas questões do seu universo cultural: como se cria responsabilidade? A responsabilidade está relacionada à identidade? A inserção desse novo grupo – os jovens solteiros –, na sociedade indígena, vem ocorrendo de maneira adequada? Os ritos de iniciação estão contribuindo para a constituição de um adulto que mantém sua identidade Tenharim? Não há, evidentemente, respostas prontas e soluções acabadas. O que se percebe são possíveis caminhos e alternativas que devem ser discutidos e acordados entre todos os atores sociais envolvidos. A colaboração e coesão dos lideres é o ponto inicial para a mobilização de organizações e da comunidade indígena. O trabalho de prevenção e controle das consequências tidas pelos indígenas como negativas não é uma tarefa fácil, e é fragilizada pelo despreparo dos envolvidos em abordarem o tema. Reconhecer a alcoolização como um possível agravo importante à saúde e estabilidade social, compreender as suas diversas interfaces, envolver a comunidade, considerar a sua ocorrência não como individual, mas como parte do todo, são princípios que respeitam as especificidades de cada comunidade, a sua realidade local, e proporcionam o desenvolvimento social sustentável.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas da produção do manuscrito. 964
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PEREIRA, P.P.S.; OTT, A.M.T. El proceso de alcoholización entre los tenharim, indígenas de las aldeas del río Marmelos, Amazonas, Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.957-66, out./dez. 2012. El objetivo de este trabajo ha sido el de analizar el proceso de alcoholización en las aldeas de los Marmelos utilizando como método el enfoque antropológico. La forma como los Tenharim toman la bebida alcohólica está relacionada principalmente a un rito del pasaje masculino y con normas bien definidas por las familias con sus mecanismos de protección y control. Fue posible constatar que la alcoholización está siendo investigada por los indígenas, pero con diferencias en la definición de que sea o no un problema, lo que fragmenta las acciones desarrolladas la problemática del alcoholismo. La posición liminar asumida por aquellos que consumen alcohol demuestra la necesidad de fortalecimiento social de la comunidad.
Palabras clave: Salud y sociedad. Alcoholización. Rito de Pasaje. Tenharim. Amazonas.
Recebido em 11/01/12. Aprovado em 25/08/12.
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Adaptação multicêntrica do guia para a gestão autônoma da medicação Rosana Teresa Onocko Campos1 Analice de Lima Palombini2 André do Eirado Silva3 Eduardo Passos4 Erotildes Maria Leal5 Octávio Domont de Serpa Júnior6 Cecília de Castro e Marques7 Laura Lamas Martins Gonçalves8 ONOCKO CAMPOS, R.T. et al. Multicenter adaptation of the guide for autonomous management of medication. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.967-80, out./dez. 2012. Increasing use of psychotropic drugs and low empowerment among users have been shown to be critical factors in qualifying mental healthcare in Brazil. This study covering three Brazilian cities aimed to develop the Brazilian Guide to Autonomous Management of Medication (GGAM-BR), based on translation and adaptation of a guide developed in Canada, and to evaluate the effects of its use on mental health workers’ training. Intervention groups (IGs) were formed to share experiences relating to drug treatment, starting from topics proposed in the guide. Focus groups were conducted before and after the IGs. Important changes in relation to the original text of the Canadian guide were implemented to take into account Brazilian realities. It was seen that the Brazilian version formed a powerful strategy for promoting users’ active participation in managing their treatment and the mental health clinic, and that it had a positive impact on healthcare workers’ training.
Keywords: Mental health. Mental health workers’ training. Medication. Autonomy. Psychotropic drugs.
O uso crescente de psicofármacos e o baixo empowerment dos usuários mostram-se críticos à qualificação da assistência em Saúde Mental no Brasil. Este estudo, abrangendo três cidades brasileiras, objetivou a elaboração do Guia Brasileiro da Gestão Autônoma da Medicação (GGAM-BR), com base na tradução e adaptação de guia desenvolvido no Canadá; e a avaliação dos efeitos do uso do GGAM-BR na formação de trabalhadores de saúde mental. Constituíram-se grupos de intervenção (GIs) para compartilhamento das experiências com tratamento medicamentoso, a partir dos temas propostos no guia; e foram realizados grupos focais antes e após os GIs. Importantes mudanças em relação ao texto original do guia Canadense foram implementadas, levando em conta a realidade brasileira. Constatou-se que o GGAM-BR constitui estratégia potente de fomento à participação ativa dos usuários na gestão do tratamento e do serviço, incidindo positivamente na formação de trabalhadores.
Palavras-chave: Saúde mental. Formação de trabalhadores de saúde mental. Medicação. Autonomia. Psicotrópicos.
Deivisson Vianna Dantas dos Santos9, Luciana Togni de Lima e Silva Surjus10 , Ricardo Lugon Arantes11, Bruno Ferrari Emerich12 , Thais Mikie de Carvalho Otanari 13, Sabrina Stefanello14 1,8-10,12-14 Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo, 126. Cidade Universitária, Campinas, SP, Brasil. 13.083-887. rosanaoc@mpc.com.br 2,7 Departamento de Psicanálise e Psicopatologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 3,4 Departamento de Psicologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense. 5 Faculdade de Medicina (campus Macaé), Universidade Federal do Rio de Janeiro. 6 Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 11 Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva, UFRGS.
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Introdução No Brasil, a Reforma Psiquiátrica possibilitou uma transição do modelo hospitalocêntrico para um modelo de saúde mental comunitária. Ampliou, assim, o campo da clínica, qualificando a atenção como psicossocial, redefinindo o sentido de saúde na fronteira entre o individual e o coletivo. Entretanto, mesmo nesse contexto, o tratamento farmacológico segue amplamente privilegiado, e de modo acrítico. Muitas vezes, o tratamento em saúde mental está reduzido aos psicotrópicos, e a comunicação entre os profissionais de saúde e usuários sobre o tratamento é deficiente (Santos, 2009). Estes costumam desconhecer o motivo ou o tempo de duração das terapias medicamentosas, além de terem baixo nível de autonomia para decidir sobre seu próprio tratamento. Assim, a qualificação da utilização de psicofármacos e a qualificação de pessoal têm sido pontos sensíveis da expansão da rede de serviços (Furtado, Onocko, 2008). O uso crescente de psicofármacos – maior que o preconizado pela literatura (Hull, Aquino, Cotter, 2005), não apenas em quantidade, mas também em duração – mostra-se inadequado e ligado a fatores socioeconômicos (Maragno et al., 2006), sendo a prevalência de medicação associada aos indivíduos de maior vulnerabilidade social, baixa escolaridade e menor renda per capita (Regier et al., 1984). Igual processo vem sendo observado na atenção primária europeia, com taxas de prescrição de psicofármacos que chegam a 8% da população (Vedia, et al., 2005). Já o INCB (International Narcotics Control Board) (2010) aponta que, em escala mundial, entre 2002 e 2008, a produção de benzodiazepínicos aumentou de 19 para trinta milhões de S-DDD (defined daily doses for statistical purposes) ao ano. Mesmo em municípios equipados com serviços de saúde mental em quantidade e qualidade consideráveis, existem altas taxas de prescrição de psicofármacos. Em Campinas, SP, no primeiro semestre de 2010, apenas na rede pública de farmácias, 65.758 pessoas receberam prescrição de psicofármacos, o que equivale a 6,5% da população (Campinas, 2010). Percebe-se, além da crescente medicação da população, também a sua medicalização, fenômeno de transformação de situações corriqueiras em objeto de tratamento da medicina. Em ambas as situações, um dos efeitos produzidos é a redução das experiências singulares das pessoas a meros fenômenos bioquímicos. Outra faceta deste problema envolve o baixo empowerment que os usuários dos serviços possuem em relação ao seu tratamento, com pouca apropriação de informação e centralização do poder nos profissionais de saúde, o que torna a clínica mais vulnerável à economia de mercado e ao complexo médico-hospitalar. Winter (2007) expõe que apenas 39% dos entrevistados de serviços de atenção primária do Canadá foram informados, pelo seu médico, de efeitos colaterais possíveis da medicação prescrita, e apenas 23% destes foram informados das alternativas ao uso de medicamentos psiquiátricos (Rodriguez, Perron, Ouellette, 2008). Nesse contexto, desde 1993, no Quebec, Canadá, tem sido desenvolvida uma estratégia para resgate da participação ativa nas decisões sobre medicação: a Gestão Autônoma de Medicação (Rodriguez, Perron, Ouellette, 2008). Tal experiência reuniu, em grupos de debate, usuários e técnicos que inicialmente questionavam o uso de medicamentos. A questão logo se deslocou para o reconhecimento de um sofrimento anterior a esse uso e, assim, o eixo de trabalho passou a centrar-se, não mais na suspensão do medicamento, mas na partilha da significação de sua utilização. O Guia pessoal da gestão autônoma da medicação foi elaborado em 2001. Voltado a usuários com transtornos mentais graves, tornou visível a pluralidade de posições em face da medicação, reconhecendo o direito ao consentimento livre e esclarecido para utilização de psicofármacos e a necessidade de compartilhar as decisões entre profissionais e usuários. Seguindo o Guia, a pessoa é convidada a fazer um balanço da própria vida para determinar os aspectos suscetíveis de serem melhorados, com vistas a sua qualidade de vida. A medicação pode ou não se incluir como um desses aspectos, sendo disponibilizadas informações sobre indicações, efeitos colaterais, interações e doses terapêuticas. Na segunda parte, o Guia canadense propõe, para os que assim o desejarem, um método de diminuição progressiva da medicação, a ser empreendido em colaboração com um médico. Estimula, portanto, que as pessoas busquem, com quem prescreve, o acesso à informação e a ajuda necessária ao ajuste, à redução ou à suspensão dos medicamentos. Como forma de acompanhamento desse processo, o Guia inclui ferramentas de auto-observação e de identificação de redes de apoio, 968
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contribuindo para a (re)apropriação do poder decisório por parte dos usuários de psicofármacos. Uma das concepções centrais no Guia é a de que o tratamento em saúde mental é mais do que o uso de medicamentos, e que as pessoas são mais do que uma doença, não podendo ser reduzidas aos seus sintomas. Entendendo que tal recurso possibilitaria o enfrentamento da utilização pouco crítica de medicamentos também no Brasil, este estudo teve por objetivos, por um lado, a elaboração do Guia Brasileiro da Gestão Autônoma da Medicação (GGAMBR), com base na tradução e adaptação do guia canadense, e sua aplicação em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de três cidades brasileiras; por outro, a avaliação dos efeitos do uso do GGAM na formação de trabalhadores de serviços de saúde mental. E, ainda, objetivou estudar se o contexto brasileiro exigiria adaptações importantes do material canadense ou se ele se aplicaria tal qual à realidade brasileira.
Campo do estudo Elaborado com base em Pesquisa avaliativa de saúde mental: instrumentos para a qualificação da utilização de psicofármacos e formação de recursos humanos, de Rosana Teresa Onocko Campos; Eduardo Passos; Erotildes Leal; Analice Palombini; Octavio Serpa; 2008 (Proc. 575197/2008-0, Edital MCT/CNPq/CT-Saúde/ MS/SCTIE/DECIT nº 33/ 2008 - Saúde Mental).
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Este estudo envolveu quatro universidades públicas brasileiras, nas áreas de medicina, saúde coletiva e psicologia, e foi realizado nas cidades do Rio de Janeiro/RJ, Campinas/SP e Novo Hamburgo/RS, escolhidas por suas diferentes trajetórias culturais, regionais e redes de saúde15. Por se tratar de uma pesquisa multicêntrica, em cada campo, contou-se com a participação de pesquisadores responsáveis e suas equipes, incluindo mestrandos, doutorandos, alunos de graduação, residentes (de psiquiatria e multiprofissionais) e profissionais da rede de saúde mental de cada cidade, além de usuários com participação ativa em todas as etapas do processo da pesquisa (Tabela 1).
Tabela 1. Características do campo de estudo.
Campo
População-2010 (IBGE)
Número de CAPS
Serviços Residenciais Terapêuticos
Ambulatórios ou Equipes de Saúde Mental na Atenção Primária
Urgência, Emergência e Retaguarda em Saúde Mental
32 equipes de saúde mental na atenção primária e 2 ambulatórios de psiquiatria
2 Pronto-Socorros, SAMU Psiquiátrico, 30 leitos em hospital geral e um hospital psiquiátrico
CampinasSP
1.080.999 hab.
10 (6 CAPS 24h, 2 CAPS AD e 2 CAPS i)
38 residências com 206 usuários inseridos
Rio de Janeiro-RJ
6.323.037 hab.
16 (11 CAPS, 2 CAPS AD e 3 CAPS i)
31 residências e 16 moradias assistidas com 146 usuários inseridos
53 ambulatórios de psiquiatria
3 Pronto-Socorros e 10 hospitais psiquiátricos
Novo HamburgoRS
239.051 hab.
5 (3 CAPS, 1 CAPS AD e 1 CAPS i)
não existente
Um ambulatório de psiquiatria
10 leitos em hospital geral
Fonte: Secretarias Municipais de Saúde.
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Metodologia Inicialmente, o material produzido no Quebec (Gestion autonome de la médication de l’âme) foi traduzido e adaptado à realidade brasileira, em processo que contou com a participação de todos os segmentos envolvidos com a pesquisa. Essa primeira versão foi utilizada nos grupos de intervenção (GIs), com a participação de sete a nove usuários em cada grupo. Três GIs foram realizados em CAPS – um em cada campo; e um quarto GI ocorreu na Universidade de Campinas, reunindo usuários que exerciam atividades de representação em diferentes CAPS da cidade de Campinas. Os GIs ocorreram simultaneamente nos três campos, por dez meses, por meio de encontros semanais ou quinzenais, perfazendo uma média de vinte encontros em cada GI. Além dos usuários dos serviços, compuseram os grupos: bolsistas de iniciação científica; um a três residentes (multiprofissionais ou de psiquiatria); um trabalhador do CAPS; um ou dois pesquisadores na função de operadores dos grupos – função para a qual se requeria, além do manejo da pesquisa, também a perspectiva de um manejo clínico, próprio ao trabalho grupal com pessoas que sofrem transtornos mentais graves. Os critérios de inclusão dos usuários foram: ser portador de transtorno mental grave, estar fazendo uso de psicofármacos há mais de um ano, manifestar vontade de participar do grupo. Os critérios de exclusão foram: recusa em participar ou em assinar o termo de consentimento livre e esclarecido e presença de limitação cognitiva grave. Para o grupo realizado na Unicamp, foi critério de inclusão, também, a capacidade de circulação pela cidade, pela rede de serviços, e uma trajetória de participação política no campo da saúde mental. Cada participante dos GIs recebeu um exemplar do GGAM. Diversas dinâmicas para leitura e discussão foram utilizadas. A aplicação do GGAM fez-se concomitante à sua apreciação crítica, de forma que sugestões de alteração no texto, na sequência ou no modo de uso do mesmo, foram sendo feitas pelos usuários à medida que se ia percorrendo cada um de seus passos. Sugestões e comentários de usuários e pesquisadores foram registrados em diários de campo e retomados, após a finalização dos GIs, em encontros multicêntricos com a participação de pesquisadores acadêmicos, trabalhadores e usuários, para a elaboração final do GGAM-BR (Figura 1).
Figura 1. Procedimento de elaboração e validação do GGAM-BR
GI Novo Hamburgo
GF.s e E. T1 *
Com sugestões provenientes dos grupos de intervenção
22 encontros, 8 usuários, 2 residentes de multiprofissionais e 2 pesquisadores X
1ª versão
18 encontros, 6 usuários e 2 pesquisadores
GGAM BR X
Reuniões multicêntricas
X 20 encontros, 7 usuários, 3 residentes de psiquiatria e 3 pesquisadores
GI Rio de Janeiro
20 encontros, 9 usuários e 3 pesquisadores T
X
Diários de campo X
GI Campinas CAPS
T
Diários de campo
X
Guia traduzido
GI Campinas Univ.
GI
versão final
GI Diários de campo
X
GF.s e E. TO*
Com sugestões provenientes dos diários de campo
*Em Novo Hamburgo, foram realizados, em T0, GF com usuários e residentes e E com gestores; em T1, GF com usuários e residentes e E com trabalhadores. Em Campinas, foram realizados GFs e E em todas as categorias propostas tanto em T0 como em T1. No Rio de Janeiro, foram realizados, em T0, GF com usuários e familiares e E com gestores e trabalhadores; em T1, GF apenas com usuários.
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Além dos GIs, realizaram-se grupos focais (GF) com usuários e familiares e entrevistas (E) com gestores e trabalhadores, antes (GF0) e depois (GF1) dos grupos de intervenção, buscando aproximar-se à experiência dos participantes com foco nos seguintes temas: uso de medicamentos psiquiátricos na relação com a autonomia e os direitos dos usuários; valorização do contexto do usuário; capacidade de gestão e compartilhamento de decisões (usuário e equipe); direitos do usuário, em especial no que se refere à medicação (acesso, informação, recusa); tomada da palavra (voz do usuário no serviço e na relação médico/paciente); experiência de uso de psicofármacos. Os grupos focais e entrevistas foram audiogravados e transcritos integralmente. Essas transcrições deram origem a narrativas (Onocko, Furtado, 2008). Os diários de campo dos GIs também foram tomados e organizados como narrativas. As narrativas foram construídas por aqueles que haviam sido os condutores de cada grupo e/ou entrevista e validadas, posteriormente, por outro pesquisador. Com os usuários, as narrativas validadas dos GF0 e GF1 foram a eles apresentadas para uma validação final “ o que temos chamado de grupo focal hermenêutico (Onocko Campos, 2012), com base nas formulações de Ricoeur (1990) acerca da função da narrativa (Ricouer, 1997). Os usuários, no encontro com o texto produzido com suas vozes, julgaram se seus relatos estavam ali contemplados, contribuindo para a compreensão dos pesquisadores. As equipes de pesquisa de cada campo produziram uma primeira análise do material oriundo de seu campo, organizando-o por vozes (usuários, trabalhadores, gestores, familiares e residentes). Num segundo momento, foi realizada uma meta-análise de todos os campos por voz e, posteriormente, uma comparação das contribuições dos diferentes campos, cumprindo com o preceito hermenêutico de passar várias vezes pelo mesmo lugar, mas com uma compreensão diferente (Gadamer, 1997). A pesquisa, com aprovação pelo Comitê de Ética, respeitou os aspectos éticos e legais implicados no trabalho com pessoas, sobretudo sendo as mesmas usuárias da rede de saúde mental.
Resultados Apresentamos, inicialmente, as principais modificações requeridas pelo GGAM-BR, como produto final do processo de pesquisa, em relação ao Guia canadense – desde as adaptações introduzidas previamente aos GIs até as modificações acordadas nos encontros multicêntricos. Na sequência, trazemos a interpretação das vozes da pesquisa, sobre a experiência da medicação e da aplicação do GGAM nos grupos de intervenção nos serviços.
GGAM-BR O material canadense, Guía de gestión autónoma de la medicación, é apresentado em seis passos, divididos em duas partes, antecedidas por uma introdução que situa o contexto no qual o Guia foi elaborado e convida o leitor a engajar-se no trabalho proposto. A afirmação “Sou uma pessoa, não uma doença” dá início ao primeiro passo. Na sequência (“Observações de mim mesmo”), o leitor é convidado a observar sua qualidade de vida: o seu dia a dia, as condições em que vive (incluindo relação com as pessoas próximas, com o lugar em que vive, com o dinheiro de que dispõe), as pessoas a sua volta, sua saúde, os medicamentos que toma, por que toma, efeitos positivos e negativos. O passo 3 (“Reconhecendo”) busca reconhecer “necessidades básicas”, bem como recursos e redes de apoio com que se conta para atingi-las. Aborda ainda “meus direitos” e traz informações objetivas sobre os medicamentos (receita, famílias de medicamentos, interações medicamentosas, efeitos desejados e indesejáveis etc). O quarto passo propõe, ao leitor que chegou até essa etapa, uma tomada de decisão, baseando-se em sua auto-observação e nas informações obtidas acerca dos medicamentos, adotando uma postura crítica e participativa em relação ao seu tratamento. Os dois passos seguintes compõem a segunda parte do Guia. No primeiro deles, o objetivo é armar as condições para dar início a um processo de redução ou retirada dos medicamentos (o que inclui contato com o médico, contatos de emergência em caso de crise, levantamento de sua rede social, aquisição de hábitos de vida saudável). No segundo passo, encontram-se orientações objetivas para proceder à COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.967-80, out./dez. 2012
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diminuição gradativa da medicação. Todo o Guia é permeado de perguntas (formuladas em primeira pessoa), informações objetivas e orientações sobre os temas abordados. O processo de produção do GGAM-BR teve início com a tradução do guia canadense. Foram feitas duas traduções independentes, cotejadas nas reuniões multicêntricas, cuja versão final sofreu alterações em função do processo de adaptação preliminar do texto, também levada a cabo nas reuniões multicêntricas, com a participação dos diversos segmentos da pesquisa. A adaptação buscou contemplar o contexto brasileiro da saúde mental (referido ao movimento da Reforma Psiquiátrica e ao Sistema Único de Saúde) e, em especial, os direitos dos usuários dos serviços de saúde e saúde mental no Brasil. Também cuidou de incluir recortes de falas de usuários brasileiros a respeito da experiência com a medicação (Onocko Campos, 2012), no lugar dos depoimentos de usuários canadenses. E, finalmente, tratou de modificar integralmente o teor da segunda parte do Guia canadense, o qual orientava a reduzir ou interromper o uso do medicamento. Entre outras razões, percebeu-se que essa temática não fazia questão para os usuários brasileiros. Pelo contrário, usuários participantes dessa etapa da pesquisa salientavam que o acesso aos medicamentos era o que se lhes apresentava como crucial, e manifestavam o anseio de mais diálogo com seus médicos e maior esclarecimento sobre o porquê da medicação. Assim, a versão brasileira preliminar do Guia (GGAM) deslocou o foco da retirada ou redução do remédio, para o da negociação, e a segunda parte do Guia foi reescrita, visando o incremento da participação do usuário na gestão do seu tratamento. Com efeito, a gestão compartilhada do tratamento vinha ao encontro do conceito de autonomia implicado no movimento da reforma psiquiátrica brasileira, o qual envolve uma perspectiva coletiva, de compartilhamento e negociação entre seus diferentes atores, imbuídos de distintos valores e perspectivas. Quanto mais vínculos e maior rede de relações as pessoas estabelecem, maior sua autonomia (Kinoshita, 1996). Assim, o trabalho de adaptação do Guia canadense ao contexto brasileiro foi orientado pelo entendimento de que a decisão quanto ao melhor tratamento se faz em uma composição entre os saberes do usuário e da equipe de referência, numa gestão compartilhada do cuidado, um exercício de cogestão que engendra processos de autonomia (Campos, Onocko, 2005; Campos, 2000). O mesmo entendimento determinou que a experiência de uso e avaliação do Guia adaptado se desse em trabalho grupal, através dos GIs, em cada um dos campos da pesquisa. A construção da versão final do GGAM-BR realizou-se a partir das modificações propostas para o GGAM em cada campo, debatidas em reuniões multicêntricas com a presença de pesquisadores, trabalhadores e usuários dos três campos. Para o processamento do conjunto das sugestões oriundas dos diferentes campos, dividiu-se o trabalho entre os agrupamentos da pesquisa (Campinas, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul). Cada grupo trabalhou com as memórias dos quatro locais de intervenção referentes a uma parte do Guia e responsabilizou-se em apresentar uma proposta unificada para a parte em questão, para tomada de decisão em reunião multicêntrica. Nessa etapa, agregaram-se, também, às reuniões multicêntricas, usuários de cada um dos campos que haviam passado pela experiência de trabalho com o GGAM nos GIs – até então, as reuniões multicêntricas contavam apenas com a participação dos usuários representantes da AFLORE – Associação Florescendo a Vida de Familiares, Amigos e Usuários de Serviços de Saúde Mental de Campinas. Nesse processo, algumas das palavras e frases constantes no Guia traduzido e adaptado concentraram as atenções, mobilizando intensas discussões e requerendo negociação entre os segmentos envolvidos. Assim, a palavra “guia”, que compõe o título do material em trabalho, foi colocada em questão pela equipe de um dos CAPS participantes, com o argumento de que alguns usuários, pelas características do adoecimento mental, poderiam tomar “guia” como algo absoluto, que fosse determinar de modo imperativo seus caminhos. Em substituição, propunham nomeá-lo de “caderno”, termo recusado por parte dos presentes à reunião multicêntrica, por entenderem que a palavra “caderno” remetia a um contexto tradicional de aprendizagem, não condizente com a proposta do grupo. O impasse apenas decidiu-se com a entrada dos usuários na discussão. A preocupação com a palavra “guia”, expressa por um dos segmentos, não encontrava eco na experiência que haviam tido, e um deles sentenciou: “caderno vem com nada escrito, livro já vem todo escrito, no guia a gente lê, mas também escreve, então é guia.” Também a frase “Eu sou uma pessoa, não uma doença” foi objeto de discussão, pois alguns pesquisadores queriam retirá-la, argumentando que a mesma remetia a uma 972
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dicotomia operada pelos técnicos (trabalhadores e acadêmicos) que talvez não fizesse sentido aos usuários. Ouviu-se, então, o depoimento de uma usuária sobre a importância dessa frase para a reflexão que pôde fazer acerca de si mesma, enquanto outro usuário ponderava que não se pode negar que há uma doença. Entre prós e contras, decidiu-se pela manutenção da frase. Garantir uma certa identidade com o movimento canadense, que a tinha como mote, foi um dos argumentos para mantê-la, mas a seu favor pesou, sobretudo, a defesa dos usuários de que era um dito importante para eles. Outro termo que gerou impasse foi o de “necessidades básicas”. Durante os GIs, os usuários, informados do sentido do termo, tiveram, a partir dele, oportunidade de uma participação ativa no debate proposto. Tratava-se de um trecho do guia em que os usuários indicavam o que entendiam como suas necessidades básicas e quais estavam sendo atendidas ou não. Porém, pesquisadores do grupo têm, há muitos anos, problematizado o uso desse conceito na área da saúde coletiva, pois defendem que há algo além de necessidades quando pensamos a existência humana. A decisão, nesse caso, contemplou especialmente as impressões (o protagonismo) dos pesquisadores. O termo “necessidades básicas” foi substituído por “o que você precisa pra viver” (Marques, 2012). De modo geral, a versão final acolheu sugestões de acréscimos e alterações, simplificação de frases e palavras e formulação de perguntas abertas - a fim de permitir que os usuários viessem a expressar o saber próprio à sua experiência e que, com o aporte das informações pertinentes, se estabelecessem trocas e reflexões entre os participantes de um grupo de intervenção com uso do guia. Chamou atenção a necessidade de adaptação cultural, em especial com respeito a três aspectos: os direitos cidadãos, o impacto da medicação nas relações amorosas e sexuais, e o acesso ao trabalho e à geração de renda. Em relação ao primeiro aspecto, o não-reconhecimento de si como sujeito de direitos exigiu maior detalhamento, para os usuários brasileiros, daquilo que se configurava como seu direito no contexto do tratamento, desde, por exemplo, o direito de acesso à bula do medicamento que lhe era ministrado até o direito de recusa do tratamento proposto. Quanto ao segundo e terceiro aspectos, os usuários brasileiros insistiram na importância desses temas (relacionamento amoroso e/ou sexual e trabalho ou geração de renda) e de sua inclusão de forma destacada no Guia, na medida mesma em que o adoecimento e a medicação lhes privavam da possibilidade de exercício pleno desses aspectos da vida. Em relação ao trabalho, valorizavam não somente a perspectiva de ganho financeiro, mas a experiência de se sentirem úteis. Com respeito aos relacionamentos, levavam em conta tanto a sua dimensão afetiva e duradoura quanto as condições para um desempenho sexual satisfatório. A versão final do GGAM-BR também requereu uma importante adaptação da estrutura escrita, valorizando-se frases curtas e simples, de fácil compreensão. Esse aspecto ressalta a distância entre usuários canadenses e brasileiros no que toca ao perfil educacional.
As diferentes vozes na experiência dos GIs Usuários A falta de informação sobre a medicação perpassou todas as narrativas GF0. Os usuários relataram dificuldades e receio em conversar com os médicos, vistos como quem detém autoridade. Após os GIs (narrativas GF1), demonstraram maior conhecimento sobre o que tomam e para que, e passaram a reconhecer autoridade em si próprios (advinda da experiência), e não apenas nos médicos. Mantiveram, porém, a percepção de que os profissionais seriam superiores e possuiriam o poder de decisão sobre o tratamento. Problematizaram, sobretudo, o modo como são atendidos, identificando razões para as dificuldades que enfrentam, não referidas somente à postura do médico, mas também à dinâmica de trabalho instituída. E, em todos os campos, ao longo dos GIs, houve usuários que, mobilizados pelas discussões nos grupos, buscaram conversar com seus médicos, visando ajustes no uso de algum medicamento. Quanto à experiência pessoal relacionada à medicação, em GF0, os usuários identificaram que o medicamento ajuda a combater as doenças e permite a realização de atividades cotidianas, mas enfatizavam o incômodo com seus efeitos colaterais, bem como a preocupação com a grande quantidade de fármacos de que fazem uso. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.967-80, out./dez. 2012
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Em GF1, foi manifestação corrente que a medicação pudesse ser diminuída, mas não retirada, persistindo a prioridade da prescrição medicamentosa na formulação do projeto terapêutico, mesmo se as narrativas diziam de seus limites e danos. Percebeu-se, em GF1, um interesse pelo tema dos direitos, ausente das discussões em GF0. Apontaram o reconhecimento do direito de participar do tratamento, de ver seu prontuário e de obter informações. Após os GIs, os usuários buscaram mais frequentemente participar da gestão dos seus serviços. E, ainda, afirmaram que o GGAM ajudou a ampliar o leque de discussão sobre os direitos, não ficando restrito à saúde, mas incluindo, também, as condições de vida e acesso à moradia. Os usuários valorizaram o papel da família, dos amigos e do próprio CAPS no suporte ao tratamento. Porém, expressaram enfrentar a estigmatização por parte desses mesmos atores. Dois aspectos apareceram como determinantes das situações de estigma: ser visto como doente psiquiátrico e vivenciar a perda ou redução da capacidade de lidar com situações corriqueiras de suas vidas. Trabalhadores Diferenças entre as categorias profissionais participantes dos GIs tornaram particularmente heterogêneas as vozes deste segmento. Todos os trabalhadores relataram que as decisões sobre o projeto terapêutico são tomadas em equipe e que respeitam o combinado, sustentando este posicionamento perante as famílias e usuários. Porém, também foi referido que a decisão acerca do medicamento adequado é tomada exclusivamente pelo médico e de forma não compartilhada. Os profissionais não médicos declararam falta de conhecimento sobre a medicação e seus efeitos, manifestando, sobre essa temática, dúvidas menos elaboradas do que as dos próprios usuários e familiares. Porém, expressaram alguma crítica ao fato de a relação entre médico e paciente limitar-se à prescrição medicamentosa e ao dever do paciente de aceitá-la. Com relação à inclusão do usuário, seu contexto e território no processo da gestão clínica compartilhada, em um dos campos foi enfatizado que a equipe tem dificuldades em operar essa inclusão. Em outro campo, contudo, o contexto do usuário foi considerado um aspecto essencial a ser levado em conta no tratamento. Os médicos afirmaram que a valorização do contexto – quando pode acontecer – muda a forma de medicar, pois amplia o entendimento sobre a vida do usuário. Em geral, os psiquiatras concordaram que, caso o usuário insista em não fazer uso de psicofármacos, não se deve deixar de atendê-lo. Porém, houve quem discordasse, defendendo a hegemonia médica e o saber da psiquiatria, sob alegação de que apenas o uso dos medicamentos pode evitar as crises. No serviço em que o profissional que fez tal declaração atuava, era vigente uma regra institucional que desligava do serviço o usuário que recusasse a medicação ou a participação em atividades indicadas no seu projeto terapêutico. O tema dos direitos foi pouco comentado pelos trabalhadores, restringindo-se à escolha por tomar ou não os medicamentos, aceitar ou não o projeto terapêutico proposto. Frases como “o direito de não usar medicamento não pode ser encarado como se o paciente pudesse fazer tudo o que quiser” indicaram a dificuldade para lidar com uma população mais consciente e crítica dos seus direitos. Houve o reconhecimento de que, nos CAPS, os espaços coletivos pertinentes às questões sobre os direitos, como as assembleias gerais, contavam com pouca ou nenhuma participação dos seus trabalhadores, de forma que a pauta dos direitos deixava de ser incorporada ao cotidiano dos serviços. Familiares Houve diferenças no modo como este segmento foi acessado nos campos, por contingências de cada local. Em Campinas, o GF0 contou com familiares dos dois GIs. No Rio, ocorreu apenas um grupo no início do processo e, em Novo Hamburgo, os grupos com familiares não foram realizados. As narrativas expressaram o desejo de conhecer melhor e participar mais ativamente do tratamento proposto ao seu familiar. Os familiares ressentiam-se da ausência de espaços de escuta e de
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compartilhamento de decisões. Consideraram que a proximidade entre equipe, usuários e família inibia eventuais reclamações por parte dos familiares quanto aos cuidados despendidos, pois esse cuidado era visto como um favor, não como um direito, o que se pode reportar a um tipo de vínculo, de caráter paternalista, comum na sociedade brasileira. Sobre a experiência da medicação, manifestaram dúvidas e incertezas, seja quanto a sua indicação (“por que esquizofrênico toma remédio para epiléptico?”), seja quanto aos efeitos, na velhice, do seu uso prolongado. Ressaltaram, também, o sofrimento da família em função do transtorno mental que acomete um de seus membros, com anuência quanto à importância da oferta de tratamento psicoterápico ao grupo familiar. Quanto à influência das relações familiares no processo de adoecimento dos usuários, houve desde a negação dessa influência até o seu reconhecimento, passando pela hipótese da hereditariedade da doença. A negação de qualquer correlação entre a qualidade das relações familiares e os transtornos mentais foi recorrente nas narrativas. No que se refere à valorização do contexto de vida, houve concordância quanto à sua importância para o bem-estar dos usuários. Porém, ora a ênfase era colocada num contexto de relações que privilegiava os espaços religiosos (campo carioca), ora fazia-se referência a reuniões e eventos sociais não necessariamente vinculados à religiosidade (campo campineiro), o que pode apontar para diferenças culturais e políticas das cidades-campo do presente estudo. Tais diferenças entre os campos apresentaram-se, também, em relação à temática dos direitos de usuários: enquanto um dos grupos (campo campineiro) revelava conhecimento sobre o assunto, embora enfatizasse que havia uma distância entre saber sobre um direito e poder exercê-lo de fato; no outro grupo (campo carioca), o tema suscitou pouca conversa, revelando falta de interesse sobre o mesmo por parte significativa dos participantes. Gestores O contato com a gestão nos diferentes serviços respeitou a disponibilidade e arranjos de gestão singulares a cada campo: dois grupos focais com o Colegiado de Gestão do CAPS de Campinas; duas entrevistas com a gestora do CAPS de Novo Hamburgo; e, no Rio de Janeiro, uma única entrevista com a gestora do CAPS. Houve consenso sobre a importância de a tomada de decisões do serviço ser construída com a participação dos membros da equipe, embora sem referência a uma participação efetiva dos usuários e de seus familiares. Nesse sentido, reconheceram-se tão somente aqueles direitos dos usuários que não geram grandes confrontos com a equipe: o acesso aos serviços é um direito; a recusa à medicação, nem sempre. As narrativas manifestaram preocupações éticas e clínicas, no sentido de se construírem espaços que potencializem o vínculo com o usuário quando este toma decisões sobre sua medicação sem negociação com a equipe. Apontaram estratégias de manejo nos casos de usuários que suspendem a medicação. Referiram-se seja a usuários que, tendo decidido não usar medicamentos, puderam manterse sob tratamento (sem medicação) pela equipe, seja a usuários para quem a medicação foi imposta como meio de garantir sua integridade física ou a dos que estavam a sua volta. Apontaram, ainda, estratégias para garantir e auxiliar o uso do medicamento para aqueles que não o faziam por dificuldades com o manejo dos comprimidos: doses diárias no serviço, doses individuais para levar para casa etc. Foram valorizados recursos de aproximação dos trabalhadores à realidade dos usuários em acompanhamento, como as visitas domiciliares, apesar de esses recursos serem quase integralmente operados pela equipe de enfermagem. Os gestores avaliaram que um grupo que se destina à discussão sobre medicação favorece o questionamento de formas já naturalizadas na relação com os usuários, ao mesmo tempo em que constitui uma ação no limite entre cuidado e controle.
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Residentes Foram consideradas as narrativas dos GFs de Campinas (quatro residentes em Psiquiatria da Unicamp, do primeiro ano) e Novo Hamburgo (dois residentes do programa de Saúde Mental Coletiva da UFRGS, também do primeiro ano, recém ingressos na Residência). Foi unânime, entre os residentes, a opinião de que, quando o usuário interrompe a medicação, disso não deveria decorrer a interrupção do tratamento. Embora, por um lado, afirmassem que, nesses casos, é necessário repensar o tratamento proposto, por outro, indicaram como direção do trabalho a busca de estratégias junto ao usuário que o levassem a retomar o uso do medicamento. No tema da cogestão do projeto terapêutico, residentes multiprofissionais reportaram-na ao empowerment da equipe, e não do usuário, enquanto os residentes de psiquiatria defenderam a inevitabilidade da assimetria na relação médico-paciente, sustentando que o médico possui um conhecimento (técnico) do qual o usuário carece. Todos apontaram a importância do envolvimento e acompanhamento da família. Os residentes médicos, porém, trouxeram reflexões específicas da prática de quem prescreve e diferenciaram os usuários psicóticos dos demais, no quesito autonomia, condicionada, no caso, à qualidade do “juízo” do paciente. Manifestaram, por outro lado, seu incômodo em relação aos efeitos colaterais que afetavam aspectos importantes da vida do paciente. Afirmaram que, na sua formação, foram levados a considerar o contexto do usuário - família, moradia, modo de vida, cultura e história -, porém de forma pontual ou descolada da experiência. No GF1, residentes multiprofissionais ampliaram a noção de contexto, entendendo que a família e toda a rede de relações do usuário no território fazem parte do processo de saúde-doença; já os residentes em psiquiatria referiram a importância do contexto na prescrição medicamentosa, quando é preciso avaliar se o usuário tem condições econômicas de adquirir algum medicamento específico. Houve discrepância nas narrativas sobre o tema dos direitos em um e outro grupo de residentes. Residentes médicos afirmaram, tanto em GF0 como em GF1, que o médico e a família têm, por lei, direito e obrigação de decidirem contra a vontade do usuário, quando avaliado que esse não tem autonomia e põe em risco sua vida e/ou a de outros. Contudo, ponderaram que o usuário tem direito de reclamar da conduta do médico, sendo que, no GF1, puderam especificar os lugares aos quais dirigir-se para isso. Já os residentes multiprofissionais, embora reconhecendo que os usuários têm direitos com relação ao seu tratamento, não souberam indicar qual legislação trata desses direitos. Todos reconheceram os GIs como lugar privilegiado de escuta, em que acessaram aspectos de vida dos usuários que não conheciam antes e que passaram a levar em conta em sua prática. Os residentes multiprofissionais entenderam as vivências dos usuários como conhecimento a ser incluído no projeto terapêutico. Os residentes médicos, por sua vez, mencionaram que a experiência GAM propiciou-lhes uma escuta mais aberta, atenta ao contexto do usuário, mas sem referência à sua participação na construção do projeto terapêutico (Otanari, 2011).
Discussão Os dois anos de experiência e adaptação do GGAM ofereceram-nos a oportunidade de aprofundar a discussão sobre entraves no uso de psicofármacos nos CAPS brasileiros. Pudemos desvendar algumas formas sutis (outras nem tanto) de controle dos serviços sobre os usuários e seus corpos, e as dificuldades de acesso à cidadania e ao pleno exercício de direitos. No andar da pesquisa, diferenças fundamentais entre o cenário sociocultural canadense e o brasileiro obrigaram-nos a centrar nossos esforços no trabalho de adaptação do Guia à realidade brasileira. Contudo, pudemos comprovar que o GGAM-BR pode vir a ser uma importante ferramenta na qualificação do uso de psicofármacos nos CAPS. As diversas vozes que escutamos revelam diferenças que dizem de seu posicionamento como grupo de interesse, ou posto narrativo (Onocko, Furtado 2008), e a persistência de uma visão estigmatizante sobre a loucura, que perpassa trabalhadores, gestores, familiares e os próprios usuários - estes, em todos os campos, mostraram-se primeiro surpresos e, logo, mais apropriados dos seus direitos, em 976
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consequência do trabalho com o GGAM. A falta de espaços formais, nos serviços, para informação aos usuários sobre a medicação foi naturalizada, em um primeiro momento, pelos próprios usuários. Equipes e gestores naturalizaram também a exclusiva competência do médico sobre essas questões, o que configura um desafio a mais na busca de uma maior qualidade da assistência, de caráter integral. Essa falta de capacitação e, mesmo, de interesse sobre a medicação, por parte dos profissionais não médicos, coloca-se como um entrave à qualificação da assistência, indicativo de um campo temático sobre o qual, no CAPS, não se discute. Isso contrasta com algumas experiências internacionais, inclusive com a que deu origem ao instrumento que traduzimos e adaptamos (Rodriguez, Corin, Poirel, 2001). Considerando que a medicação de que falamos não opera cura e, sim, controle de sintomas, cabe questionar: em que momento o seu uso se tornaria “ótimo” para um dado sujeito em sofrimento? Quais sintomas suprimir ou aliviar e em que grau? Qual a tolerância a efeitos indesejados que um dado sujeito estará disposto a suportar e por quanto tempo? E como responder a essas questões sem a participação do próprio usuário? Como operar adequadamente com o recurso psicofarmacológico sem contar com alguma instância de análise da experiência de seu uso? Como abordar essa experiência, que é do outro, sem se abrir à sua palavra?
Considerações finais Pelo presente estudo, constatamos uma falta significativa de espaços para informação e reflexão sobre a medicação nos CAPS participantes da pesquisa, assim como uma baixa qualificação, em geral, dos trabalhadores desses serviços para apoiarem os usuários em relação a um tema tão relevante e de tamanho impacto no seu dia a dia. Também pudemos revelar a tensão ou contradição reinante nos serviços, com persistência do estigma e manejos tutelares que se ancoram ainda na suposta “falta de racionalidade” dos pacientes graves. O GGAM mostrou-se potente para instituir espaços de fala a respeito da medicação, chamando a atenção da equipe e dos gestores sobre a importância desse tema, cujo enfrentamento não se restringe à clínica, mas tem consequências éticas e políticas. Fez reafirmar os direitos dos usuários, trazendo sua discussão à tona entre usuários, suas famílias e equipes. E, ainda, imprimiu, na relação com o usuário, uma abordagem dinâmica, plasticamente adaptada ao momento singular da vida de cada um. A relevância e abrangência de seus efeitos são indicativas de que a GAM não se reduz ao uso do guia como instrumento técnico, como protocolo de passos a nortear a discussão sobre medicação e direitos dos usuários. O GGAM-BR deve ser entendido como um dispositivo complexo, que envolve o serviço de saúde mental como um todo, em suas várias dimensões, desde a política à gestão, ao cuidado, à ambiência e ao controle social, considerando o cuidado à saúde como processo relacional. Assim, interessa-nos acompanhar o modo como o produto principal desta pesquisa será doravante utilizado, em consonância com as ideias e o processo de trabalho que lhe deram origem. O GGAM-BR resultou de uma construção coletiva, em que se somaram a trajetória do grupo canadense e a dos diversos grupos de pesquisa brasileiros participantes, em interlocução com gestores, trabalhadores, residentes, usuários e seus familiares. Pretendemos que o seu uso siga ocorrendo junto aos serviços e em grupo, na perspectiva de participação ativa de todos os envolvidos, convocando ao diálogo os seus diversos atores. Com esta preocupação, na sequência desta pesquisa, demos início a nova investigação em diferentes CAPS de Campinas, região metropolitana de Porto Alegre e Rio de Janeiro, em grupos de intervenção com uso do GGAM-BR, com vistas à validação desse instrumento e à construção de estratégias para sua disseminação junto aos serviços de saúde mental, preservando seu caráter participativo e cogestivo – dentre estas estratégias, a redação de um manual de uso do guia. Consideramos fundamental, para esse propósito, que o Guia possa ser disponibilizado nos espaços de formação de trabalhadores de saúde, como residências médicas e multiprofissionais e processos de educação permanente. Para concluir, como se tratou de uma pesquisa qualitativa, não nos referimos a seus possíveis vieses e, sim, a suas limitações. Dentre elas, o fato de não termos podido contar com um campo na região Norte/Nordeste do país não nos permitiu abranger uma diversidade maior das trajetórias culturais e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.967-80, out./dez. 2012
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políticas que compõem o território nacional. Também a participação de residentes nos grupos GAM foi menor que a planejada, pela dificuldade de fazer coincidir o cronograma da pesquisa com o das respectivas residências. E, ainda, algumas diferenças entre os campos apontam para a complexidade e o desafio de se realizar pesquisa qualitativa multicêntrica, uma vez que a padronização sucumbe ante as singularidades de cada campo. Assim, as condições de entrada nos serviços, de recrutamento de participantes, entre outras, variaram necessariamente de acordo com a conformação dos serviços em cada cidade e com a capacidade de negociação dos pesquisadores. Contudo, os achados foram tão coincidentes em relação aos aspectos apontados como resultados que consideramos ter atingido um grau de saturação apropriado ao objeto desta investigação. Por último, destacamos que a adaptação de material internacionalmente reconhecido não se faz sem um prolongado processo de elaboração. Meras traduções e testes podem não servir para adequar esses instrumentos à realidade brasileira ou à de outros países em desenvolvimento. Fatores como nível de escolarização e renda, grau de validez dos direitos em termos de cidadania, questões culturais como o valor atribuído à sensualidade, conforme mostrado pelos nossos sujeitos de pesquisa, indicam que as adaptações qualitativas têm um caminho a ser explorado na saúde coletiva. Nesse sentido, cabe considerar que a incorporação de avanços produzidos por nossos colegas de países mais desenvolvidos talvez requeira, sempre, uma certa dose de antropofagia.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas do manuscrito. Referências CAMPINAS. Secretaria Municipal de Campinas. Informações da Secretaria Municipal de Campinas Departamento de Saúde, Saúde Mental. Campinas: SMC, 2010. CAMPOS, G.W.S. Um método para análise e co-gestão de coletivos - a construção do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec, 2000. CAMPOS, G.W.S.; ONOCKO, R.C. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: CAMPOS, G.W.S. et al. (Orgs.). A construção da clínica ampliada na Atenção Básica. São Paulo: Hucitec, 2005. p.86-107. FURTADO, J.P.; ONOCKO, R.C. Participation, knowledge production, and evaluative research: participation by different actors in a mental health study. Cad. Saude Publica, v.24, n.11, p.2671-80, 2008. GADAMER, H.G. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997. HULL, S.A.; AQUINO, P.; COTTER, S. Explaining variation in antidepressant prescribing rates in east London: a cross sectional study. Fam. Pract., v.22, n.1, p.37-42, 2005. KINOSHITA, R.T. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: PITTA, A. (Org.). Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. p.55-9. MARAGNO, L. et al. Prevalence of common mental disorders in a population covered by the Family Health Program (QUALIS) in Sao Paulo, Brazil. Cad. Saude Publica, v.22, n.8, p.1639-48, 2006.
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ADAPTAÇÃO MULTICÊNTRICA DO GUIA PARA A GESTÃO ...
ONOCKO CAMPOS, R.T. et al. Adaptación multi-céntrica del guia para la gestión autónoma de la medicación. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.967-80, out./dez. 2012. El uso creciente de psicofármacos y la baja autorización de usuarios son críticos para la cualificación de la asistencia en Salud Mental. Este estudio, realizado en tres ciudades brasileñas, tuvo como objetivo la elaboración del Guía Brasileño de Gestión Autónoma de la Medicación (GGAM-BR), basándose en la traducción y adaptación del GGAM desarrollado en Canadá; y la evaluación de los efectos del uso del GGAM en la formación de trabajadores de salud mental. Fueron realizados grupos de intervención (GIs), compartiendo experiencias a partir del Guía y grupos focales antes y después de los GIs. Importantes cambios con relación al texto original fueron implementados, considerando la realidad brasileña. El GAM es potente para fomentar la participación activa de los usuarios en la gestión del tratamiento y del servicio en que se atienden e incide positivamente en la formación de los trabajadores.
Palabras clave: Salud mental. Formación de trabajadores de salud mental. Medicación. Autonomía. Psicofármacos.
Recebido em 28/11/11. Aprovado em 21/06/12.
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artigos
O cuidado ético-pedagógico no processo de socialização profissional: por uma formação ética* Mirelle Finkler1 João Carlos Caetano2 Flávia Regina Souza Ramos3
FINKLER, M.; CAETANO, J.C.; RAMOS, F.R.S. Ethical-pedagogical care in the process of professional socialization: towards ethical education. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.981-93, out./dez. 2012. The ethical dimension of dentistry professionals’ training was analyzed. Interviews with teachers, observations on academic activities and focus groups with students were conducted. Triangulation of the data enabled deeper knowledge of the reality, revealing hidden elements of the curriculum that influence ethical training, such as care, which was the focus of discussion in this paper. Some issues relating to this, like university hazing and the high costs of purchasing dental equipment, were taken to be analytical indicators of higher or lower ethical-pedagogical care developed by teachers and institutions. In discussing other ways in which care and lack of care become established, problems that imply a need for reflection on teachers’ actions were also revealed. As well as interest and commitment, capacitation is required. The intention of these reflections is to instigate creation of strategies that optimize the situations experienced, so that they may become conditions for ethical teaching- learning.
Keywords: Socialization. Higher education. Health professional education. Ethics.
Estudo de caso que analisou a dimensão ética da formação de profissionais de Odontologia. Foram realizados: entrevistas com professores, observações de atividades acadêmicas e grupos focais com alunos. A triangulação dos dados possibilitou o conhecimento aprofundado da realidade, revelando elementos do currículo oculto que influenciam a formação ética, como o cuidado, foco de discussão deste artigo. Alguns aspectos relacionados, como o trote universitário e os altos custos para a aquisição de material odontológico, são tomados como analisadores do maior ou menor cuidado ético-pedagógico desenvolvido pelos docentes e pelas instituições. Ao se discutirem as demais formas nas quais o cuidado, e a falta dele, se concretizam, revelam-se, também, problemas que implicam a necessária reflexão sobre o fazer docente, demandando interesse e comprometimento, mas, também, capacitação. Tais reflexões pretendem instigar a criação de estratégias que otimizem as situações vivenciadas, para que sejam condições de ensino-aprendizagem éticas.
Palavras-chave: Socialização. Educação Superior. Formação de profissionais de saúde. Ética.
Elaborado com base em Finkler (2009); pesquisa financiada pela Capes e aprovada pelo CEP/UFSC. 1 Departamento de Odontologia, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina (CCS/ UFSC). Campus Universitário, Trindade, Florianópolis, SC, Brasil. 88.040-970. mirellefinkler@ yahoo.com.br 2 Departamento de Saúde Pública, CCS/UFSC. 3 Departamento de Enfermagem, CCS/UFSC. *
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Introdução Ao longo da década de 1980, os conceitos e as concepções mais atualizadas de socialização foram surgindo, sendo resumidos na expressão “construção social da realidade”. A partir de então, a distinção entre socialização primária e socialização secundária permitiu que o conceito se emancipasse do campo escolar e infantil, sendo aplicado com sucesso ao campo profissional, conectando-se às problemáticas da mudança social. Atualmente, a socialização pode ser definida como o “processo de construção, desconstrução e reconstrução de identidades ligadas às diversas esferas de atividade (principalmente profissional) que cada um encontra durante sua vida e das quais deve aprender a tornar-se ator”(Dubar, 2005, p.XVII). A socialização profissional é um tipo específico de socialização secundária que consiste no processo de interiorização de submundos institucionais e especializados, que são realidades parciais em contraste com o mundo básico da socialização primária que ocorre na infância. Compreende a aquisição de saberes específicos e de papéis direta ou indiretamente arraigados na divisão do trabalho, o que inclui um vocabulário e um universo simbólico, veiculando uma concepção de mundo (Berger, Luckmann, 1985). Merton contribuiu com o início da construção do campo da sociologia da educação médica e da saúde, ao compreender a escola médica como um sistema social, responsável pela socialização da profissão e pelo compartilhamento de seus valores (Nunes, 2007). Segundo o autor, as escolas médicas se tornam guardiãs dos valores básicos para a prática efetiva da medicina ao transmitir a cultura da medicina e desenvolvê-la. Sua tarefa é modelar o novato em um prático efetivo da medicina, dar-lhe o melhor conhecimento e habilidades disponíveis e provê-lo com a identidade profissional, de forma que venha a pensar, agir e sentir como médico. [...] Na interação social com os demais na escola, na troca de experiências e idéias com os pares, e na observação e avaliação do comportamento dos seus instrutores (mais do que meramente ouvindo seus preceitos), os estudantes adquirem os valores que serão básicos para as suas vidas profissionais. Os modos nos quais estes estudantes são moldados, tanto pelas circunstâncias intencionais quanto pelas não planejadas no ambiente acadêmico constituem a maior parte do processo de socialização. (Merton, Reader, Kendall, 1998, p.140)
Também Hughes contribuiu para a abordagem sociológica da identidade profissional. Ao estudar a formação médica, este autor formulou um modelo da socialização profissional, concebido tanto como uma iniciação à cultura profissional quanto como uma conversão do indivíduo a uma nova concepção de si e do mundo, ou seja, a uma nova identidade. Em seu modelo, três mecanismos de socialização profissional foram explicitados: inicialmente, uma “quase alienação” do estudante do seu entendimento leigo sobre a profissão. A formação profissional seria o aprendizado acerca do trabalho profissional, da profissão, das possíveis carreiras a seguir e da imagem de si, considerados como os elementos básicos da identidade profissional. Posteriormente, observa-se o mecanismo de instalação na dualidade entre o modelo ideal da profissão (dignidade, imagem e valor) e o modelo prático (tarefas cotidianas e trabalhos pesados). A seleção de um grupo de referência, antecipando as posições desejadas e legitimando capacidades, é um importante mecanismo desenvolvido na gestão desta dualidade. Isto implica a aquisição, também antecipada, das normas, valores e modelos de comportamento dos membros do grupo de referência. O mecanismo final seria o do ajuste da concepção de Si, ou seja, a tomada de consciência de suas capacidades e gostos, tratando-se primeiramente de identificar as possíveis carreiras a seguir, para, depois, escolher o grupo de referência no qual o indivíduo se inscreverá (Dubar, 2005; Hughes, 1998). Considerando que toda profissão possui uma cultura específica e, portanto, valores específicos, Rego (2003) afirma que o processo de socialização profissional inclui mais do que a educação e o treinamento que ocorrem com o aprendizado direto através de ensinos didáticos. Inclui as “lições do currículo oculto”, que envolvem: as influências de todas as relações sociais estabelecidas no processo 982
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ensino-aprendizagem, as mensagens subliminares que os estudantes absorvem na relação com os professores e na organização das aulas (Cortina, 2003), bem como os efeitos da produção do cuidado para o outro e para si, vinculando-se ao desenvolvimento de atitudes, valores e ideologias. O currículo oculto consiste, portanto, na transmissão de uma cultura particular através de processos de socialização pelos quais o estudante toma para si, como próprios, os modos de comportamento e os valores dominantes no grupo profissional ou social. Trata-se de um processo quase imperceptível e concomitante com a aprendizagem formal, através do qual o estudante incorpora a cultura social/ profissional, identifica os atributos que gozam de prestígio profissional e adquire uma escala de valores (Galli, 1989). Para Appel (1982), a hegemonia – a preservação e o controle de determinadas formas de ideologia – é produzida e reproduzida pelo corpus formal do conhecimento escolar e, também, pelo ensino oculto. Os estudantes aprendem essas normas sociais sobretudo por tomarem parte nos encontros e tarefas diárias da vida na sala de aula; muitas das quais serão empregadas em áreas da vida futura, o que documenta como a escolarização contribui para o ajustamento individual a uma determinada ordem social, política e econômica. A transmissão dos conhecimentos científicos, desvinculada da estrutura da comunidade na qual se desenvolveu e que atua para criticá-lo, leva os estudantes a interiorizarem uma visão que possui pouca força para questionar a legitimidade das suposições tácitas sobre os conflitos interpessoais que dirigem suas vidas e as situações educacionais, econômicas e políticas. Isto reforça seu quietismo e justifica as regras fundamentais de pensamento que fazem com que qualquer outra visão do conhecimento pareça não natural. Estas questões precisam ser exploradas se queremos conhecer como ocorre a formação ética dos estudantes, pois estão intimamente relacionadas com a educação moral e com o desenvolvimento da capacidade de crítica e de reflexão, no âmbito universitário, que tomam parte no processo de processo de socialização profissional. O desenvolvimento moral pode ser entendido como o processo de valoração de atos, comportamentos e características do indivíduo, tais como: a capacidade de refletir sobre aspectos morais e realizar julgamentos pessoais de ordem moral, escolhendo entre o que é certo e errado, justo ou injusto, bom ou mau. É através do desenvolvimento moral do estudante que a dimensão ética da formação profissional se processa, devendo buscar uma capacidade de raciocínio autônomo que contribua para uma atuação profissional capaz de conviver em uma sociedade democrática e pluralista, e direcionada a buscar relações sociais mais justas e humanizadas (Rego, 2003). Por formação ética, ou melhor, pela dimensão ética da formação profissional, entende-se o ensino/ aprendizagem/ vivência da ética em bases não deontológicas, compromissado com o desenvolvimento e a realização de valores humanizadores e com a conformação da identidade profissional durante a graduação. Ou seja, envolve tudo aquilo que contribui para que o profissional pense, aja e reaja às situações profissionais de determinada forma ou com determinado padrão de atitudes (Rego, 2003). A dimensão ética da formação profissional estende-se desde as influências do processo de socialização primária, que se inicia precocemente na infância, até as questões diretamente relacionadas ao desenvolvimento moral, que acontece durante a graduação, passando pelo mundo da profissão e do trabalho em saúde, pelas particularidades da formação profissional em saúde, pelo processo de socialização profissional e pelo currículo formal e oculto. Na interface destes conceitos, o objeto desta pesquisa pôde ser delimitado em um marco conceitual (Finkler, Caetano, Ramos, 2012), direcionando a busca de estratégias metodológicas que possibilitassem compreender como vem sendo desenvolvida a dimensão ética dos futuros profissionais de saúde, mais especificamente, de estudantes de Odontologia. Neste texto, discutem-se achados de pesquisa relacionados à categoria temática “cuidado”, que emergiu da análise dos elementos presentes no currículo oculto que foram investigados, tais como: as relações intersubjetivas (questões de poder, de lideranças e de relacionamentos entre docentes, estudantes e pacientes), os modelos profissionais e as vivências acadêmicas. A reflexão sobre os cuidados necessários com os estudantes, e também com seus professores, pretende sensibilizar para a criação de estratégias humanizadoras do processo de socialização profissional.
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Método Quando, em um contexto de vida real, se busca apreender um fenômeno na sua totalidade, descrevendo, compreendendo e interpretando a complexidade de um caso concreto, a partir de uma variedade de evidências, caracteriza-se a pesquisa como sendo um estudo de caso (Minayo et al., 2005). De fato, este estudo descritivo pode assim ser definido, pois investigou um fenômeno contemporâneo sobre o qual não se possui controle, qual seja a dimensão ética da formação de profissionais de saúde. Para tanto, empregou-se a abordagem qualitativa. Os resultados aqui apresentados fazem parte de uma pesquisa que selecionou 17 cursos ou faculdades, compondo uma amostra equivalente a, aproximadamente, 10% dos cursos de Odontologia brasileiros, em termos de distribuição geográfica e de financiamento (Tabela 1).
Tabela 1. Total de cursos/faculdades de Odontologia selecionadas para a amostra, por financiamento e por regiões. Regiões brasileiras Norte Nordeste Centro-oeste Sudeste Sul Total
Existentes
Selecionados
Públicos
Privados
Total
13 28 22 93 31 176
1 1 2 9 3 17 (±10%)
1 1 1 1 1 5 (± 30%)
1 1 8 2 12 (± 70%)
5 (± 30%) 12 (± 70%) 17 (100%)
Respeitada esta distribuição, a seleção dos cursos foi definida intencionalmente, para que faculdades de relevância destacada no cenário nacional fossem incluídas, bem como algumas participantes do PróSaúde – o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde. Isto porque a amostragem em pesquisa qualitativa deve se esforçar para que a escolha do lócus e do grupo de sujeitos contenha o conjunto das experiências e expressões que se pretende objetivar com a pesquisa, do que decorre que o conhecimento, as experiências e os contatos anteriores do pesquisador são pontos de partida. Nestes casos, a representatividade numérica é menos importante do que a análise da questão-problema sob várias perspectivas, pontos de vista e de observação, sendo que a validade destas amostragens consiste na capacidade de objetivar o objeto empiricamente (Minayo, 1999). Dos 17 cursos selecionados, apenas dois privados da região sudeste se recusaram a participar, ficando a amostra composta por 15 faculdades, sendo cinco públicas (uma de cada região) e dez privadas (uma no nordeste, outra no centro-oeste, seis no sudeste e duas no sul). Deste modo, considerou-se a perda pouco significativa para a composição adequada da amostra. A partir dos primeiros resultados, alcançados por meio de um questionário aplicado aos coordenadores (Finkler, Caetano, Ramos, 2011), elegeram-se os dois cursos cuja classificação inicial demonstrou estarem em situações mais distintas entre si sobre como têm desenvolvido a dimensão ética da formação de seus estudantes (um público e o outro privado, de diferentes regiões, não identificadas para assegurar o anonimato). Vale ressaltar que o objetivo não consistia em realizar comparações entre os cursos selecionados, mas somar evidências para este estudo de caso nacional, a partir de uma aproximação mais concreta com a realidade acadêmico-pedagógica. Para tanto, foram realizados: entrevistas semidirigidas com professores e estudantes, observação direta de atividades acadêmicas, e grupos focais com alunos, permitindo a triangulação dos achados. Em todas estas estratégias, a amostragem foi delimitada pelo critério de saturação dos dados.
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A metodologia desenvolvida permitiu a compreensão dos fatores vivenciados no ambiente acadêmico que tomam parte na formação ética dos estudantes, resultando em três grandes categorias temáticas4, entre as quais a categoria intitulada “cuidado”, que é discutida a seguir.
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As demais categorias temáticas estiveram relacionadas a “modelos profissionais, mercados de trabalho, imagens e posições de poder” e à “ética no processo de socialização profissional” (Finkler, 2009). 4
Resultados e discussão Cuidar possui múltiplos sentidos, assumidos de diversos modos pelas práticas profissionais, com maior ou menor relevância, especialmente quando se trata de produzir cuidado em saúde ou produzir conhecimento e fundamentação acerca do cuidado (Henriques, Acioli, 2004). Aqui, assume-se a perspectiva de cuidado como preocupação, atenção, disponibilidade, escuta e apoio, reconhecendo-se que o bemestar, o crescimento e o viver melhor do outro (no caso, o estudante) são fundamentais nas decisões sobre como agir nas relações. Parte-se da premissa de que o cuidado em si é uma das formas mais relevantes de atuação na formação ética do ser humano, pois quem foi cuidado e se sente cuidado terá mais condições de cuidar dos outros. Ao mesmo tempo, a escola é um espaço de cuidado compartilhado, de intervenções significativas para a construção de vínculos que permitam desenvolver o cuidado nas relações consigo e com os outros (Scortegagna, Alvarez, 2008). O cuidado com os estudantes (e também a falta de cuidado) foi uma das questões mais significativas que emergiram da análise dos dados. Entre os cuidados percebidos, destaca-se a disponibilidade de apoio institucional de caráter psicopedagógico e de assistência social, e a adoção da figura do tutor como um professor que deve se aproximar mais da turma e de cada um dos estudantes, mediando a resolução de conflitos (muito embora este papel requeira uma assessoria psicológica para que possa ir além do bom senso e do senso comum ao adentrar no universo psíquico dos acadêmicos). “Oitenta por cento dos problemas são acadêmico-pedagógicos e uns vinte por cento de ordem pessoal que o tutor interfere [...] ele tenta ter uma postura pró-ativa. Ele percebe quando o aluno está tendo muita falta, ele busca o aluno para saber o que está acontecendo, se ele pode ajudar”. (entrevista com o professor 1 do curso privado)
Outros cuidados com os estudantes incluem a dedicação dos docentes, ou, ao menos, de uma parte deles, traduzida como apoio às iniciativas dos estudantes e compreensão de particularidades. Também se incluem: a adaptação da estrutura física dos cursos às pessoas portadoras de necessidades especiais, ou, mesmo, a não reconhecida, mas relatada empatia de alguns professores que exercitam o colocar-se no lugar dos estudantes para melhor atuar, assim como a preocupação em abordar eventuais questões constrangedoras de forma delicada e respeitosa. “Tínhamos um aluno que tinha um cheiro de corpo muito forte, então o coordenador o chamou e falou ‘você precisa melhorar isso, se você quiser uma ajuda, um dermatologista a gente tem, ele pode te ajudar’”. (entrevista com o professor 2 do curso privado) “Ele se empenhou de um jeito que eu acho que um outro gestor... eu não sei se faria o mesmo”. (entrevista com estudante do curso público)
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- Alguns professores se preocupam no sentido pessoal. Quando você consegue se aproximar do professor, eles são muito abertos a conversar com a gente, tanto é que a gente faz festa e sempre chama os professores, alguns vão. - Quando meu avô faleceu que eu tive que faltar a prática ela podia muito bem não ter deixado vir na outra turma, mas “tudo bem, pode vir”, falou comigo, perguntou como eu estava, se estava tudo bem... (grupo focal no curso público)
Educar e cuidar são termos que se complementam. A construção de vínculo entre quem educa/cuida e quem é educado/cuidado é defendida por diversos educadores, que afirmam que para educar/cuidar é preciso amar, pois só assim é possível compreender e respeitar o outro (Scortegagna, Alvarez, 2008). Contudo, a falta de cuidados, especialmente daqueles que precisam de uma discussão e de uma reflexão coletiva para serem planejados, também foi bastante evidenciada. É certo o conflito moral de alguns docentes, mas nem todos os professores se sentem chamados a lidar com estas situações, como se os problemas que percebem na vida dos graduandos não dissessem respeito à responsabilidade docente, a sua tarefa ético-pedagógica, como se não interferissem na sua formação. “Às vezes um aluno que tem um problema e vai passando de uma turma, para outra, outra... é difícil você reprovar aluno [...] aí quando chega lá no último, na clínica, que os problemas se acumulam, aí ninguém mais sabe o que fazer com aquele aluno... Você questiona “E daí? Você vai ter condições de pôr lá fora como profissional?” Às vezes é um caso de falta de habilidade... às vezes, aluno em crise com a profissão...”. (entrevista com o professor 3 do curso público) “Você nota o comportamento estranho, mas a gente... até que ponto... quem é que...? Tem que ter alguém capacitado que possa abordar esse aluno para, de certa forma, sensibilizá-lo, para ele procurar essa ajuda. Eu não posso chegar e... a pessoa pode me processar por constrangimento! Eu chegar e dizer “olha, eu acho que você esta precisando de ajuda, você tem que procurar esse núcleo de apoio”. Se eu perguntar se ele é dependente químico e ele dizer que não é? Eu vou provar como?” (entrevista com o professor 2 do curso público)
É compreensível a falta de preparo para lidar com os conflitos pessoais dos estudantes, no entanto, é fundamental que os docentes assumam o desafio de pensar e desenvolver estratégias para lidar com tais demandas. Em diversas universidades, a institucionalização de grupos de apoio psicológico5 aos estudantes facilita a assimilação deste papel pelo quadro docente, já que assumem a responsabilidade pela terapêutica específica que o professor não está capacitado a oferecer e pelo que, frequentemente, hesita em se envolver. Outros problemas identificados entre os acadêmicos vão muito além da capacidade de resolução ou encaminhamento que pode ser oferecido no âmbito dos cursos, quando a ampliação da discussão a instâncias universitárias superiores e instituições civis e governamentais faz parte da conduta ética esperada por parte do quadro docente.
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Cabe pontuar a diferença entre grupos de apoio psicopedagógico e grupos de assistência psicológica. Enquanto os primeiros ocupam-se das estratégias de ensinoaprendizagem, podendo ser constituídos por professores do próprio curso, os segundos prestam assistência direta aos acadêmicos em situação de conflito, devendo ser compostos por profissionais externos ao quadro docente, ainda que com ele dialoguem periodicamente. Esta interação deve ser feita, no entanto, sem ferir a autonomia e o sigilo dos estudantes, nem tampouco ser confundida com a realização de avaliações periciais acerca da capacidade psíquica para a atuação acadêmico-profissional.
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“Tem aluno aqui que a gente se pergunta se está aqui para estudar ou para traficar... Eles ameaçam a gente no corredor... Têm casos que se aborda a família, têm casos que a gente deixa passar pela periculosidade [...] a gente deixa se formar rápido para sair”. (entrevista com professor do curso privado) “Um dos professores da direção confirma a identificação do consumo de drogas, tráfico e inclusive prostituição no curso. Diz que encaminham os estudantes para o programa da universidade que trata destas problemáticas”. (observação n.1 no curso privado) 6 O termo “trote” provém do verbo trotar a andadura do cavalo que não é a sua habitual, mas algo que lhe é ensinado (muitas vezes, à base de chicotadas e esporadas). Da mesma forma, o calouro é encarado pelo veterano como algo (mais que um animal, mas menos que um ser humano) que deve ser domesticado, deve aprender a trotar, pelo emprego de práticas humilhantes (Zuin, 2002a). 7 Frequentemente, são empregados argumentos de que alguns estudantes/calouros gostam de participar dos trotes. Deixando a primeira impressão de lado (e toda a ingenuidade que costuma acompanhá-la), é preciso ir além do dito para, nas entrelinhas do discurso de calouros e veteranos, compreender melhor as motivações psicológicas que engendram os trotes. Segundo o estudo de Zuin (2002b), pode-se perceber uma prazerosa identificação masoquista no trote, pois é quando os veteranos gozam a dor que tiveram que reprimir quando foram humilhados como calouros. É quando podem exercer sadicamente os desejos de onipotência do ego por meio da concretização do narcisismo coletivo legitimado, uma vez que a todos está assegurado o direito de projetarem seus desejos agressivos reprimidos, numa situação de verdadeira catarse regressiva.
Igualmente, espera-se uma mudança de posicionamento e atitude das faculdades acerca de outra questão que pode ser compreendida como uma importante falta de cuidado com os estudantes: o trote universitário6 – um rito de passagem às avessas, caracterizado pela violência psíquica (e, frequentemente, física também), justificadas como tradição, brincadeira e integração (Fonseca, 2002a). Para Fonseca (2002a), as três justificativas acima são falsas. Brincadeiras presumem conivência explícita entre os participantes. Não havendo aceitação de um dos lados, já não se trata mais de diversão, mas de coerção. Além disso, um jogo onde as normas são elaboradas para o desfrute exclusivo do mais forte, no caso, o mais graduado, não é legítimo7. A questão da integração também é inverídica, pois acontece na medida em que o calouro aceita a submissão como um fenômeno evidente em si, e os que não aceitam são marginalizados e acabam não integrados, às vezes, até o final do curso. Por último, o autor afirma que os defensores do argumento de que o trote é apenas uma tradição não são sequer capazes de conceituá-la, pois não há qualquer reflexão sobre a prática. Ao fazê-la, percebe-se que o trote, no contexto da nossa sociedade, serve ao mito do direito natural de dominação: os que sabem mais têm o direito natural de subjugar os que sabem menos. Esse aprendizado, que começa nos primeiros dias de universidade, não acaba na formatura, pois quem sofre e depois aplica o trote durante todo o período universitário termina o curso convencido dessa “verdade natural” e continua aplicando o trote nos “calouros da vida”. Uma tradição não se justifica eticamente apenas por ser costume cultural, pois, como conclui Fonseca (2002a), tradições perversas como o trote universitário precisam ser refletidas e contestadas para que novos conceitos sejam erguidos, solidificando-se em novas tradições. Nos cursos estudados, tal reflexão parece ainda incipiente, pois há docentes e dirigentes que aceitam a manutenção do trote, até mesmo com alguma simpatia. “- Eles pintam... Primeiro eles tomam a chave do carro, tomam o celular, tiram os sapatos para eles não poderem ir muito longe [...] e depois eles distribuem essas pessoas nos semáforos mais movimentados da cidade e ali a pessoa tem que [...] arrecadar o dinheiro para a cerveja [...] eles não admitem, não perdoam, então realmente é uma coisa...” “- Mas não tem gerado problemas maiores?” (pesquisadora) “- Não, não, a integridade física ela é respeitada”. (entrevista com o professor 2 do curso público)
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Mas e a integridade moral, o respeito e a autonomia? Como querer a formação de profissionais éticos, que busquem a realização de uma vida mais humana para todos, se a primeira lição que vivenciam nos cursos envolve o contrário disto? Aceitar o trote considerado “leve” (aquele que não envolve agressões físicas), não deixa de ser uma forma de se negar ou diminuir o sofrimento (ao menos psíquico) dos estudantes por conta das humilhações e subserviência a que são submetidos. Ao mesmo tempo, legitima a reprodução da violência no curso, mesmo porque os limites das “brincadeiras leves”, em um contexto coletivo e de frequente abuso de álcool, são facilmente extrapolados. Ademais, o que pode ser “leve” para uns, pode ser agressivo para outros. Como compreender que pretensas brincadeiras possam terminar em mortes eventualmente, como noticiado pela mídia? Não seriam os cursos coniventes com os trotes dos estudantes e, portanto, também com suas consequências desastrosas? Frente aos desfechos trágicos de repercussão nacional, alguns cursos têm proibido a sua realização dentro do campus, indicando uma preocupação pela responsabilidade legal dos fatos antes que decisão de base ética. De qualquer forma, a proibição dos trotes dentro dos muros universitários não exime as instituições de sua corresponsabilidade - se não legal, pelo menos, ética - uma vez que o grupo de estudantes que se reúne para um trote, onde quer que seja, o faz pelo fato comum de serem todos estudantes de um mesmo curso. Carregam consigo, portanto, mais do que o nome da faculdade, seus valores e, neste caso, desvalores. Ao fecharmos os olhos para essa realidade, somos responsáveis por omissão, inclusive porque, se medidas administrativas universitárias fossem sempre executadas, poderiam interromper o círculo vicioso do trote. Cabe então, ao corpo docente, tomar para si a tarefa de se informar sobre o que se passa entre os estudantes, buscando interferir de forma ativa e eficaz neste tipo de vivência acadêmica que compõe o currículo vivido pelos estudantes e que influencia diretamente na dimensão ética da sua formação8. Outra questão relacionada a um maior ou menor cuidado com os estudantes diz respeito ao que se pensa e ao que se faz em relação às dificuldades econômicas enfrentadas por uma parcela cada vez maior de estudantes para manter-se no curso, tendo em vista a grande carga horária curricular que dificulta compatibilizar estudos com um trabalho remunerado, além da exigência de um oneroso instrumental para o desenvolvimento das competências profissionais. Por essas demandas e pela seleção de estudantes através de vestibulares tradicionalmente concorridos, ou pelo seu ingresso facilitado, mas em faculdades privadas de alto custo, os cursos de Odontologia são considerados elitizados. Tal fato sugere os interesses sociais e econômicos daqueles que orientaram a seleção e a organização curricular dos cursos, como denunciava Apple (1982) acerca da função tradicional do currículo de controle social, gerador de desigualdades, das escolas, como um meio de reprodução cultural das relações de classes, e da ciência como uma capa retórica para ocultar decisões sociais e educacionais conservadoras. Mas tal realidade vem se alterando à medida que a relação candidato/vaga nos vestibulares de Odontologia vem decrescendo e pela institucionalização da política de cotas nas universidade. Contudo, apenas alguns docentes se mostram sensibilizados com esta questão que constitui um conflito ético. “Não tem nenhuma lista que ultrapasse três mil reais de compra de instrumental. Antes tinha semestre que entrava da dentística, cirurgia e endo no mesmo semestre, daí a lista custava 9 mil reais. Hoje não 988
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Ainda acerca do tema, vale comentar sobre os “trotes solidários” como alternativa aos trotes tradicionais: o caráter eminentemente assistencialista das ações que costumam envolver doação de sangue, roupas, alimentos etc não tem sido capaz de mobilizar e integrar os estudantes, pois não há uma vinculação direta entre as habilidades dos cursos e as atividades realizadas. Além disto, o assistencialismo deve ser visto com ressalvas, pois ainda que bemintencionado, deve ser emergencial e de curto prazo, para não gerar uma dependência que, além de não resolver o problema essencial, possa desestimular as comunidades a criarem, elas mesmas, de acordo com sua história e seu contexto, suas soluções permanentes (Fonseca, 2002b). Cabe também considerar que a bandeira do altruísmo destas ações solidárias não pode nunca desrespeitar a autonomia dos calouros sobre suas ações, sob pena de invalidá-las eticamente ao manter a lógica dos trotes tradicionais acobertada.
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se faz mais isso. A gente tenta fazer o mais enxuto possível”. (entrevista com o professor 1 do curso privado)
O Projeto de Lei 3627/2004, se aprovado, forçará a tomada de outras medidas, pois prevê a reserva compulsória de, no mínimo, 50% das vagas das universidades federais para estudantes que tenham cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas, incluindo proporcionalidade para grupos étnicos/ raciais de acordo com a proporção em cada unidade federada (Brasil, 2004). Se o conflito ético, engendrado até então pela presença de alguns estudantes de menor renda, não produziu mudanças significativas nos cursos, a crise que a entrada de um maior número destes alunos provocará não dará alternativa aos cursos exceto pensar em estratégias urgentes para lidar com a questão, como idealiza um dos estudantes: “O meu sonho era montar um banco de materiais aqui na Faculdade. Que o centro acadêmico pudesse emprestar (materiais) e conversar com os professores para rever a lista”. (entrevista com estudante do curso público)
Mas para além das preocupações meramente técnicas acerca de como possibilitar a conclusão do curso por estes estudantes, será preciso, também, enfrentar o desafio ético que se coloca – uma vez que é possível ouvir, entre docentes, uma crítica ao “empobrecimento” dos cursos e da própria profissão pela inclusão de estudantes de mais baixa renda, o que parece querer legitimar a ordem social vigente e a manutenção do status quo de determinados interessados, ao menosprezar o conflito latente e as mudanças que se fazem necessárias. Esta visão hegemônica e interessada, que se revela descomprometida com a função da universidade enquanto instância de transformação da sociedade a que deveria servir, remete-nos a uma avaliação também insatisfatória sobre a formação ética de nossos professores. Se, para aprenderem a cuidar, nossos estudantes precisam ser cuidados, o mesmo se pode afirmar em relação aos seus docentes. A capacitação, o interesse e o desempenho dos professores influenciando a dimensão ética da formação profissional foi outro ponto bastante evidenciado na coleta de dados. Evidentemente, há uma grande variação no quanto os docentes se dedicam, havendo professores que se entregam ao curso, engajando-se no planejamento das atividades acadêmicas, buscando uma participação ativa e coletiva e atuando de forma autocrítica, enquanto outros demonstram menos interesse e comprometimento. “Parecem assim... que é uma seita, porque eles vendem a alma para a faculdade, ou seja, se dedicam demais [...] os professores na aula tem uma postura de seriedade muito grande”. (entrevista com estudante do curso público) “Isso aqui é minha vida e a minha vida não pode ser de qualquer jeito [...] Eu não tenho aquela coisa de ensinar só para quem quer, sabe? Eu tento ainda sensibilizar quem não quer. Eu dou aula e quero que todo mundo preste atenção! Eu quero que todo mundo esteja lendo... eu sei que é querer demais. Às vezes, falo: “gente eu tenho que lutar para ser professora, eu tenho que lutar para ensinar!” [...] Tem professor que vem pegar um salário”. (entrevista com o professor 4 do curso privado)
Uma vez que os professores são tomados como modelos de atuação profissional (Martínez, Estrada, Bara, 2002) – suas condutas, mais ou menos responsáveis e comprometidas, e o cuidado que exercem com os pacientes das clínicas odontológicas de ensino e com os próprios estudantes –, acabam por influenciar a formação de seus estudantes, seu julgamento do que é certo ou errado, do que é normal, enfim, do que é aceitável. Além disto, a maior ou menor dedicação dos professores também repercute no entusiasmo da instituição frente às mudanças curriculares e nas possibilidades de avanços, à medida que o corpo docente se conscientiza e se empenha na tarefa. Pode-se, assim, compreender os diferentes níveis de mudanças na formação realizadas pelos cursos de Odontologia, ou seja, porque, em algumas faculdades, as mudanças têm sido mais superficiais, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.981-93, out./dez. 2012
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enquanto, em outras, têm ocorrido de forma mais significativa. Mas também as diferentes visões e interesses, às vezes favoráveis à manutenção do status quo, são relevantes. “É interessante ver o seguinte: a reforma curricular foi querida por todos... Efetivamente participaram, mas não com a mesma visão [...] determinados professores, determinadas disciplinas, mais tradicionais, dentro da clínica, aquela coisa toda... não tinha essa visão [da importância do trabalho multidisciplinar e integrado] e eu achei que elas também não modificaram a visão”. (entrevista com o professor 4 do curso público) “Teve professor que pediu a demissão porque não conseguiu se adequar a esse novo estilo: é mais flexível, é mais interdisciplinar, você conversa mais, você põe mais o pensamento...“. (entrevista com o professor 4 do curso privado)
Por outro lado, os estudantes (quase todos ainda adolescentes) comportam-se, de um modo geral, de forma indisciplinada e desrespeitosa, demonstrando pouco interesse, além de desmotivação. Determinadas atitudes parecem querer desafiar o professor, de um modo parecido com o que fazem as crianças quando testam os limites estabelecidos pelos pais. É preciso lembrar que a socialização profissional não deixa de ser um processo de educação ou de desenvolvimento moral, como é também a socialização primária na infância precoce, onde a passagem da coerção à cooperação, ou seja, da submissão às ordens externas (heteronomia) para a autonomia, é um ponto essencial. Embora Piaget considerasse que a socialização era limitada à infância e que a adolescência seria o período biográfico de conclusão deste processo, Dubar (2005) alertou para a necessidade de se considerar a socialização como um processo permanente e mais complexo, pois se prolonga por toda a vida. Quando os estudantes demonstram que ainda não são autônomos, que ainda não interiorizaram as normas sociais pelos processos de assimilação e acomodação, como explicava Piaget, é preciso que os docentes efetivamente cuidem deste processo, estimulando-os a refletir (consigo mesmos, e, ao mesmo tempo, com os demais) para que desenvolvam sua autonomia moral. No entanto, os estudantes - ávidos por alguém que os ajude a se estruturarem e a se desenvolverem - estão acostumados, predominantemente, com a educação paternalista da socialização primária, aquela em que “o pai” decide pelo bem do filho, mas sem sua participação ou concordância. Talvez isto também explique por que os professores que cobram mais, que são mais paternalistas e menos abertos ao diálogo e à negociação, são frequentemente os mais valorizados pelos estudantes. O comportamento docente reforça a situação problemática ao permitir a indisciplina dos estudantes, tanto por ignorá-la quanto por não tomar atitudes que efetivamente interrompam o círculo vicioso que se estabelece entre o seu mau comportamento e a atitude do professor. Tudo isto remete ao fundamental papel do docente na dimensão ética da formação profissional, porque, se ele desestimula o respeito a si e aos colegas que querem aprender ao ser permissivo, contribui para que isso passe em branco na vida estudantil: mais uma oportunidade perdida, já que muitos não “trazem” esta educação de casa. O professor, por sua vez, por não ter tido a oportunidade ou o interesse de fazer uma reflexão aprofundada sobre os aspectos ético-pedagógicos do fazer acadêmico, emprega apenas o seu bom senso no que deveria ser uma atitude pedagógica refletida e intencional. Assim como aprendeu a ensinar a sua matéria, o docente deveria, também, ter aprendido a trabalhar com valores e comportamentos. Uma vez que esta intencionalidade colaboraria na construção da personalidade dos estudantes de forma integral, tratar-se-ia de uma tarefa pedagógica em seu sentido mais completo (Martínez, Estrada, Bara, 2002). A realidade observada demonstra que muitos professores sentem-se perdidos: demonstram saber que devem fazer algo, mas não sabem o que ou como fazê-lo. Ainda que possam estar bemintencionados, sua disposição não é suficiente: é preciso que se preparem para tanto. Neste sentido, o Modelo de Aprendizagem Ética na Universidade, apresentado por Martínez, Estrada e Bara (2002), que propõe que a aprendizagem universitária seja em si uma aprendizagem ética pode ser de grande valia. Indo além, é preciso que os professores (e os demais envolvidos nos cursos, como seus funcionários) se sintam respaldados institucionalmente para tomarem atitudes mais firmes frente aos comportamentos 990
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imaturos ou não éticos dos estudantes, pois a autonomia reduzida favorece a postura daqueles que fecham os olhos ou ignoram os problemas como uma forma de autoproteção, e incrementa o desgaste psíquico dos envolvidos. Por fim, é preciso assumir o desafio de cuidar dos cuidadores/ formadores, qualificando-os para a formação de pessoas com os mesmos atributos. Isto exige que cada um dos envolvidos leve a cabo, em si mesmo, todo um processo de humanização, que inclui: a aquisição de conhecimentos sobre o amplo mundo dos valores, o desenvolvimento de certas habilidades, como a comunicação interpessoal, o autocontrole emocional, a capacidade de escuta e a empatia, e, sobretudo, o aprimoramento de atitudes e de traços de caráter, com o amadurecimento psicológico e humano (Gracia, 2004).
Considerações finais Se, durante o processo de socialização profissional, as interações entre socializando e socializadores passarem a ser mais observadas, e se as consequências de suas ações estiverem mais conscientes por parte do corpo docente, então, suas atitudes poderão ser intencionais e planejadas, o que contribuiria, significativamente, para uma vivência acadêmica mais ética, cuidadosa e humanizada. Nesse sentido, compreender os cuidados que se têm com os estudantes, para evidenciar os que lhes faltam; observar a dedicação dos professores e as dificuldades que percebem; distinguir permissividade de tolerância e flexibilidade no fazer pedagógico, e identificar as orientações e os cuidados que faltam aos próprios docentes, são exercícios de crítica e reflexão que permitem a otimização das situações vivenciadas no processo de socialização profissional que podem favorecer uma maior autonomia docente, e que, por sua vez, poderá facilitar a construção de uma maior autonomia discente. Frente ao exposto, conclui-se pela necessidade de se buscarem tais estratégias, porém não apenas para serem trabalhadas com os estudantes, mas, também, com os professores, no intento de contribuir com sua reflexão e capacitação ético-humanista, para melhor lidarem com o desenvolvimento moral necessário à autonomia e à dimensão ética da formação profissional de seus estudantes. As discussões levantadas no presente artigo referendam os resultados de outras publicações, mas não se aplicam apenas à formação em Odontologia. Tais reflexões podem ser analisadas nos contextos específicos das demais áreas profissionais da saúde, que compartilham, atualmente, inúmeros desafios na construção dos novos projetos político-pedagógicos e dos currículos acadêmicos. Um desses desafios abarca, exatamente, o desenvolvimento da excelência do cuidado - dos sujeitos de nossas ações de saúde e dos sujeitos do processo de ensino-aprendizagem, estudantes e professores.
Colaboradores Mirelle Finkler idealizou o trabalho, coletou e analisou os dados e redigiu o texto. João Carlos Caetano e Flávia Regina Souza Ramos orientaram a pesquisa e aprovaram a redação final do artigo.
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Palabras clave: Socialización. Educación superior. Formación de profesionales de salud. Ética. Recebido em 03/02/12. Aprovado em 06/08/12.
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Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2011
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A língua brasileira de sinais na formação dos profissionais de Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia no estado da Paraíba, Brasil Yanik Carla Araújo de Oliveira1 Gabriela Maria Cavalcanti Costa2 Alexsandro Silva Coura3 Renata de Oliveira Cartaxo4 Inacia Sátiro Xavier de França5
OLIVEIRA, Y.C.A. et al. Brazilian sign language in the training of nursing, physiotherapy and dentistry professionals in the state of Paraíba, Brazil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.995-1008, out./dez. 2012. The aim was to analyze the pedagogical projects for undergraduate nursing, physiotherapy and dentistry courses regarding inclusion of Brazilian sign language and the parameters that guide this educational action in professional training, in order to ensure comprehensiveness and humanization of care. This was a cross-sectional study on documents, with a qualitative approach, conducted on 25 courses in Paraíba, Brazil. The pedagogical projects of the courses were analyzed, and 24 course coordinators answered a questionnaire. The data were analyzed in accordance with Bardin. The results indicated that 58% of the courses offered Brazilian sign language, but that it was unavailable in teacher training courses. The course content covered topics such as the deaf community’s culture, sign language and its linguistic structure, practical approaches to communication and inclusive policies and legislation. However, this reality existed alongside imprecise responses regarding organization of this component and professional education in sign language and its attributions.
Keywords: Sign language. Health human resource training. Nursing. Dentistry. Physiotherapy.
Objetivou-se analisar os projetos pedagógicos de cursos de graduação em Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia, quanto à inclusão do componente Libras e aos parâmetros que norteiam esta ação educativa na formação dos profissionais, para assegurar a integralidade e humanização da assistência. Trata-se de estudo transversal e documental com abordagem qualitativa, realizado em 25 cursos da Paraíba, Brasil. Foram analisados os projetos pedagógicos dos cursos e 24 coordenadores responderam um questionário, sendo esses dados analisados à luz de Bardin. Os resultados indicam que 58% dos cursos oferecem a Libras e que os de licenciatura não a disponibilizam. Os conteúdos das ementas abordam temas como: a cultura da comunidade surda, a Libras e sua estrutura linguística, a abordagem prática de comunicação, política e legislações inclusivas. Porém, essa realidade segue paralela a respostas imprecisas no tocante à organização do componente, formação do profissional em Libras e suas atribuições.
Palavras-chave: Linguagem de sinais. Capacitação de recursos humanos em saúde. Enfermagem. Odontologia. Fisioterapia.
Programa de PósGraduação em Saúde Pública, Universidade Estadual da Paraíba. AE 04, módulo J, Residencial Sports Club, torre II, apto. 2003. Guará II. Brasília, DF, Brasil. 71.070-704. yanikaraujo@ yahoo.com.br 3 Programa de PósGraduação em Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 1,2,4,5
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A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS NA FORMAÇÃO ...
Introdução No Brasil, a preocupação com a inclusão social dos grupos vulneráveis passou a ser consistente no final do século passado. Dentre esses grupos, as pessoas com algum tipo de deficiência enfrentam dificuldade para realizar algumas atividades da vida diária e para usufruir de bens e serviços de saúde (Souza, Porrozzi, 2009). Um tipo de deficiência que causa muitas adversidades no processo de socialização é a limitação auditiva (Souza, Porrozzi, 2009). A pessoa surda vivencia um grave problema sensorial que resulta em dificuldade de comunicação através da linguagem oral tradicional, gerando a necessidade do desenvolvimento de habilidades em outro canal de expressão, como a Língua Brasileira de Sinais (Libras) (Quadros, 2004). Essas pessoas formam, linguística e culturalmente, um grupo minoritário, no entanto, grande parte dos cursos de saúde desconsidera essa faceta social, enfocando a deficiência auditiva apenas no âmbito da patologia (Chaveiro, Barbosa, Porto, 2008). O censo demográfico brasileiro realizado em 2010 contabilizou 5.735.099 pessoas com problemas relacionados à perda auditiva. Esse fato chama a atenção para a necessidade do desenvolvimento de estratégias que assegurem a comunicação do surdo com a sociedade plural e, em especial, com os profissionais de saúde. Isto porque, quando os surdos procuram os serviços de saúde, se deparam com condições que interferem de maneira negativa na qualidade do processo de comunicação e, consequentemente, na assistência prestada (Oliveira, Lopes, Pinto, 2009). Na tentativa de atender às demandas das pessoas com deficiência auditiva, o Estado sancionou a Lei nº 10.436/2002, que reconhece a Libras como sistema linguístico da comunidade surda brasileira (Brasil, 2002c), e o Decreto nº 5.626/2005 que estabeleceu Art 3o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. § 2o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto. (Brasil, 2005, p.1)
O Conselho Nacional de Educação (CNE) e as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos (DCNs) de Graduação em Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia elencam as recomendações a serem observadas na organização curricular das Instituições do Sistema de Educação Superior do país, objetivando garantir os conhecimentos gerais e específicos requeridos para o exercício da profissão com competências e habilidades. Apesar de tais recomendações não citarem diretamente a Libras, mencionam que o projeto pedagógico deve formar um profissional dotado dos conhecimentos requeridos para o exercício das competências e habilidades gerais, dentre elas a comunicação. Além disso, as recomendações do CNE e as DCNs objetivam garantir uma formação que atenda às necessidades sociais da saúde, com ênfase no Sistema Único de Saúde (SUS), assegurando a integralidade e humanização da assistência (Brasil, 2002a, 2002b, 2001), tendo em vista que o processo comunicacional é “um dos desafios enfrentados na humanização em saúde” (Deslandes, Mitre, 2009, p.641). De acordo com Sacristán (2000), um currículo é um conjunto de conteúdos teóricos e práticos selecionados, e criteriosamente organizados, para promover o desenvolvimento de habilidades e competências intelectuais e profissionais nos alunos. Esse processo deve ser permanente e estimular a autonomia dos discentes, considerando as demandas e necessidades prevalentes no processo saúde/ doença do cidadão, da família e da comunidade. Logo, a matriz curricular precisa estar integrada à realidade epidemiológica e profissional da região e do país, contribuindo para a integralidade das ações do cuidar. Nessa perspectiva, se tem em vista a considerável prevalência de pessoas surdas no Brasil, em especial na Paraíba, que se apresenta em segundo lugar no ranking dos estados com a maior proporção 996
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artigos
de indivíduos com deficiência, com mais de 48 mil pessoas tendo relatado grande dificuldade ou incapacidade de ouvir (IBGE, 2010). Portanto, torna-se necessária a discussão sobre o oferecimento da Libras aos estudantes de graduação da área de saúde, sendo a justificativa para tal necessidade de ordem epidemiológica. Destarte, selecionou-se o objeto “inserção da Libras no projeto pedagógico dos cursos da área de saúde”, com apoio nas seguintes indagações: As Instituições de Ensino Superior (IES) já inseriram a Libras na matriz curricular das graduações em Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia? Se já inseriram, que parâmetros norteiam esse componente na perspectiva da integralidade e humanização da assistência? A comunicação efetiva, por meio do uso adequado das técnicas da comunicação interpessoal, é condição imprescindível para que o profissional, especialmente o enfermeiro, possa ajudar o paciente a atender suas demandas em saúde (Silva, 2006). O estudo se justifica pela lacuna de investigações relacionadas com as dificuldades do surdo para acessar os serviços de saúde devido às barreiras da comunicação. E, também, pela valorização do processo de ensino-aprendizagem da Libras, com o objetivo de formar recursos humanos capacitados a proverem o cuidado humanístico aos surdos. Nessa perspectiva, este estudo pretendeu analisar se, nos projetos pedagógicos dos cursos de graduação em Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia, está incluso o componente Libras na matriz curricular, e quais parâmetros norteiam esta ação educativa na formação dos profissionais, com vistas a assegurar a integralidade e humanização da assistência.
Metodologia Trata-se de um estudo transversal com abordagem qualitativa, realizado no período de novembro de 2010 a junho de 2011, em IES localizadas no Estado da Paraíba e credenciadas pelo Ministério da Educação (MEC), que oferecem cursos de graduação em Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia. Para o levantamento dessas IES, foi acessado o site http://emec.mec.gov.br/, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Identificaram-se 16 cursos de Enfermagem, dez de Fisioterapia e quatro de Odontologia, distribuídos em trinta IES localizadas em quatro cidades do estado: João Pessoa, Campina Grande, Patos e Cajazeiras. Utilizou-se um diário de campo, em todas as fases da pesquisa, para anotação de observações e possíveis intercorrências. Primeiramente, realizou-se análise documental para averiguar quais projetos pedagógicos dessas IES ofereciam a Libras como componente da matriz curricular dos cursos selecionados. Após a identificação dos 24 projetos pedagógicos com resultado positivo para a oferta da Libras, procedeu-se o acesso à ementa desse componente curricular em cada projeto, com vistas à elaboração de um questionário composto por questões abertas e fechadas que versassem sobre a compreensão dos coordenadores quanto à utilidade dos objetivos do componente Libras no processo ensinoaprendizagem nas IES. Em seguida, e após convite, os 24 coordenadores dos cursos das IES que ofertam a Libras em seus projetos pedagógicos responderam o questionário produzido pelos pesquisadores. Os coordenadores foram identificados pelas iniciais do curso (E – Enfermagem; F – Fisioterapia, O – Odontologia) seguidas do número sequencial de coleta. Cada curso também foi identificado com essas mesmas letras, seguidas de um numeral crescente. Exemplo: E1... E16; F1... F10; e O1... O4. O processo de análise fundamentou-se na análise de conteúdo temática (Bardin, 2004), que consiste em três etapas: 1) Pré-Análise – Realizou-se uma leitura flutuante dos projetos pedagógicos em que foram identificadas as unidades de registros que permitiram a delimitação de unidades de codificação e a padronização dos elementos de interesse para o estudo. 2) Exploração do Material – Nesta fase, procedeu-se à releitura do material, em associação com o uso de técnicas como: fichamento, levantamento quantitativo e qualitativo de termos e assuntos recorrentes, e foram criados códigos para facilitar o controle e o manuseio do material. Dessas ações COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.995-1008, out./dez. 2012
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resultaram os Quadros 1 a 3 (Adequação dos projetos pedagógicos às suas respectivas Diretrizes Curriculares Nacionais, Distribuição dos cursos por instituição e oferecimento do componente curricular Libras e Perfil do componente curricular Libras nos cursos de Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia da Paraíba, respectivamente). A relação entre a ementa do componente Libras, constante nos 24 projetos, e os dados informados pelos coordenadores dos cursos possibilitou a elaboração do Quadro 4. Categorias emergidas da relação entre as ementas e os objetivos do componente Libras nos cursos. Da padronização obtida com a exploração do material, emergiram quatro categorias temáticas: C1) Compreensão cultural na construção da relação profissional/paciente; C2) Legislação aplicada: bases para atuação profissional; C3) Libras nas ciências da saúde: uma prática aplicada; e C4) Libras: uma nova língua, uma nova estrutura.
Quadro 1. Adequação dos projetos pedagógicos às suas respectivas Diretrizes Curriculares Nacionais Recomendações das DCNs para o perfil de egressos nos projetos pedagógicos dos cursos de Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia
Cursos com DCN em comum
Comum às três DCNs E1; E2; E3; E4; E5; E6; E7; E8; E9; E10; E11; E14; E15; F1; F2; F3; F5; F6; F7. O1; O2; O3.
Formação generalista, humanista, crítica e reflexiva.
Enfermagem Profissional qualificado para o exercício de Enfermagem com base no rigor científico e intelectual.
E1; E2; E3; E4; E5; E6; E10; E11; E12; E13; E14; E15. E4; E5; E7; E10; E11; E14; E15.
Pautado em princípios éticos. Capaz de conhecer e intervir sobre os problemas/situações de saúde/doença mais prevalentes no perfil epidemiológico nacional, com ênfase na sua região de atuação, identificando as dimensões biopsicossociais dos seus determinantes.
E4; E11; E12; E14.
Capacitado a atuar com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano.
E4; E6; E7; E11; E12; E13; E14; E15.
Capacitado para atuar na Educação Básica e na Educação Profissional em Enfermagem.*
-
Fisioterapia Visão ampla e global, respeitando os princípios éticos/bioéticos e culturais do indivíduo e da coletividade.
F2; F7.
Capaz de ter como objeto de estudo o movimento humano em todas as suas formas de expressão e potencialidades, quer nas alterações patológicas, cinético-funcionais, quer nas suas repercussões psíquicas e orgânicas, objetivando preservar, desenvolver, restaurar a integridade de órgãos, sistemas e funções, desde a elaboração do diagnóstico físico e funcional, eleição e execução dos procedimentos fisioterapêuticos pertinentes a cada situação.
F2; F7.
Odontologia Capacitado ao exercício de atividades referentes à saúde bucal da população. Pautado em princípios éticos, legais. Compreensão da realidade social, cultural e econômica do seu meio, dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em benefício da sociedade. *Para cursos de licenciatura.
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O3. O1; O3. O1.
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Codificação
Curso
Situação da IES
Titulação
Oferecimento de LIBRAS - Início
E1
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Sim – 2011
E2
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Sim – 2011
E3
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Não
E4
Enfermagem
Pública
Bacharelado e licenciatura
Não
E5
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Sim – 2010
E6
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Sim – 2009
E7
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Sim – 2011
E8
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Sim – 2010
E9
Enfermagem
Pública
Bacharelado e licenciatura
Não
E10
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Sim – 2009
E11
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Sim – 2006
E12
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Sim – 2010
E13
Enfermagem
Pública
Bacharelado
Não - 2012 (previsão)
E14
Enfermagem
Privada
Bacharelado
Não
F1
Fisioterapia
Pública
Bacharelado
Sim – 2011
F2
Fisioterapia
Privada
Bacharelado
Sim – 2011
F3
Fisioterapia
Pública
Bacharelado
Não
F4
Fisioterapia
Privada
Bacharelado
Sim – 2007
F5
Fisioterapia
Privada
Bacharelado
Não
F6
Fisioterapia
Privada
Bacharelado
Sim – 2010
F7
Fisioterapia
Privada
Bacharelado
Sim – 2010
O1
Odontologia
Pública
Bacharelado
Não
O2
Odontologia
Pública
Bacharelado
Não
O3
Odontologia
Privada
Bacharelado
Sim – 2009
artigos
Quadro 2. Distribuição dos cursos por instituição e oferecimento do componente curricular LIBRAS
3) Tratamento dos Resultados Obtidos e Interpretação – Nesta fase, as categorias foram analisadas e interpretadas em confronto com os resultados obtidos em outros estudos, por outros pesquisadores. O estudo seguiu a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Portanto, assegurou-se o anonimato das instituições e sujeitos colaboradores, além de se garantir ao informante a participação voluntária, após instrução sobre o objetivo da pesquisa e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias.
Resultados Na análise dos projetos pedagógicos, observou-se a adequação às respectivas Diretrizes Curriculares Nacionais no tocante ao perfil de egressos dos cursos de Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia, como disposto no Quadro 1. No Quadro 2, observa-se a classificação dos cursos quanto ao tipo, situação, titulação e oferta do componente curricular Libras. Desse modo, participaram do estudo: 14 cursos de Enfermagem, sete de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.995-1008, out./dez. 2012
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Quadro 3. Perfil do componente curricular LIBRAS nos cursos de Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia da Paraíba; *C = codificação dos coordenadores C*
Semestre
Classificação do componente curricular
Carga horária
E2
A partir do 2º
Optativo
60h
E5
Qualquer um
Optativo
60h
E6
7º e 8º
Optativo
40h
E7
8º
Não respondido
40h
E8
2º
Optativo
60h
E10
2º
Complementar
45h
E11
Qualquer um
Optativo
40h
E12
Qualquer um
Optativo
40h
F1
Qualquer um
Optativo
40h
F2
Qualquer um
Optativo
40h
F4
3º
Optativo
54h
F6
4º
Optativo
22h
F7
-
Optativo
40h
O3
Qualquer um
Optativo
60h
Quadro 4. Categorias emergidas da relação entre as ementas e os objetivos do componente LIBRAS nos cursos Categorias expressivas da relação entre as ementas e os objetivos do componente libras
Cursos
(C1) Compreensão cultural na construção da relação profissional/paciente
E5; E6; E7; E8; E10; E11; F2; F4; F6; O3.
(C2) Legislação aplicada: bases para atuação profissional
E8.
(C3) LIBRAS nas ciências da saúde: uma prática aplicada
E6; E7; E8; E10; E11; F4; O3.
(C4) LIBRAS: uma nova língua, uma nova estrutura
E5; E6; E7.
Fisioterapia e três de Odontologia. Destaca-se que este componente não é ofertado por nove cursos, sendo seis de IES públicas e três de instituições privadas. Em relação aos cursos de Enfermagem, 11 são de instituições privadas e três são de públicas. A maioria deles (n=8) oferece o componente curricular Libras. Já os cursos de Fisioterapia, cinco são de instituições privadas e dois são de públicas, dentre os quais, cinco oferecem esse componente curricular. Quanto aos cursos de Odontologia, um é de instituição privada e dois são de públicas, e somente um oferece a Libras. Dentre as IES pesquisadas, apenas duas (E4, E9) possuem o curso de licenciatura, ambas são públicas e o componente curricular Libras não está sendo oferecido. Os cursos E11 e F4 oferecem o componente curricular Libras desde 2006 e 2007, respectivamente. Além da Libras inserida na matriz do currículo, o E10 tem um projeto de extensão em relação à Libras em um hospital público de João Pessoa; e o E11 oferece, aos alunos, inserção em um centro de referência para o atendimento em saúde de pessoas surdas na capital do estado. Os coordenadores dos cursos E2, E7 e F2 responderam que o componente Libras já consta no currículo, entretanto ainda não foi disponibilizado aos estudantes. Os demais cursos (n=12) incluíram a Libras no currículo a partir de 2009. 1000
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No Quadro 3, são destacadas as características do componente curricular Libras dos cursos (n=14), indicando-se: curso, disponibilidade semestral do componente, classificação e carga horária. Os coordenadores dos cursos E8, E10, E11, E12, F2, F4 e F6 citaram a vinculação de professor qualificado com especialização e experiência na interpretação da Libras; o coordenador de O3 afirmou a qualificação de mestre de seus docentes. Esses docentes desenvolvem atividades acadêmicas e pedagógicas, atuando como facilitadores do processo ensino-aprendizagem desse componente. Neste estudo foi encontrado um quantitativo expressivo (58%) de oferecimento da Libras como componente curricular optativo entre as IES pesquisadas, com cargas horárias que variaram de 22 a 60 horas, bem como ementas que tratam dos aspectos cultural, legal, linguístico, prático, e com aplicações ao atendimento em saúde. Porém, essa realidade seguia paralela a respostas imprecisas quanto à organização do componente, formação do profissional de Libras e suas atribuições. Em relatos dos coordenadores cujos cursos ofereceram a Libras a partir de 2010, registrados em diários de campo, constatou-se ainda que a “exigência” do MEC foi condição determinante para a implantação ágil do componente no currículo dos cursos de saúde. Os conteúdos das ementas investigadas abordam temas como: a cultura da comunidade surda, a Libras e sua estrutura linguística, a abordagem prática de comunicação, política e legislações inclusivas. No Quadro 4, constam as categorias temáticas emergentes da relação entre a ementa do componente Libras e o objetivo do processo ensino-aprendizagem da Libras informado pelos coordenadores, destacando-se os cursos em que houve essa relação.
Discussão No Quadro 1, a “Formação generalista, humanista, crítica e reflexiva” apareceu como recomendação das DCNs comum aos projetos pedagógicos dos cursos estudados. Outrossim, a graduação em Enfermagem destacou-se como o curso de maior consenso em relação à inserção das DCNs no perfil do egresso. A constatação supracitada é relevante, pois, a partir de 2001, as DCNs dos cursos de graduação em saúde indicaram novos caminhos e estratégias para inovar e transformar a orientação e organização dos cursos, correspondendo às necessidades reconhecidas como relevantes ao SUS e à população (Ceccim, Feuerwerker, 2004). Afirma-se que a formação do profissional de saúde deve contemplar o sistema de saúde vigente no país, o trabalho em equipe e a atenção integral à saúde (Brasil, 2002a, 2002b, 2001). Em relação aos cursos de Enfermagem, Odontologia e Fisioterapia, as DCNs expõem, no art. 4º, que, na interação com outros profissionais de saúde e o público em geral, os profissionais devem ser acessíveis, lançando mão de um processo de comunicação verbal, não verbal e/ou habilidades de escrita e leitura; além do domínio de tecnologias de comunicação e informação, e de manter a confidencialidade das informações recebidas (Brasil, 2002a, 2002b, 2001). No entanto, as DCNs constituem apenas uma recomendação, já que, no Brasil, as universidades têm autonomia, definida, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), como prerrogativa de criação, expansão e modificação de cursos e programas de Educação Superior, e, também, de fixação dos currículos de seus cursos e programas. Nesse sentido, acredita-se que o processo de aproximação e construção de compromissos entre a universidade e os serviços/sistema de saúde favoreça a ampliação da responsabilidade pública e da relevância social da universidade (Ceccim, Feuerwerker, 2004). Gonzalez e Almeida (2010) recomendam enxergar a realidade além dos limites disciplinares e conceituais do conhecimento. Ito et al. (2006) ressaltam a necessidade do compromisso da Educação Superior com a formação de profissionais competentes, crítico-reflexivos e de cidadãos que possam atuar não apenas em sua área de formação, mas também no processo de transformação da sociedade. Relativamente à formação dos profissionais, as DCNs abrem a possibilidade de as IES definirem diferentes perfis de seus egressos e adaptarem esses perfis às transformações das ciências contemporâneas e às necessidades sociopolítico-econômicas da sociedade (Ito et al., 2006). A construção de um novo modelo pedagógico deve ter como perspectiva o equilíbrio entre excelência técnica e relevância social, como princípios para nortear o movimento de mudança, que deve estar COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.995-1008, out./dez. 2012
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sustentado: na integração curricular, em modelos pedagógicos mais interativos, na adoção de metodologias de ensino-aprendizagem centradas no aluno como sujeito da aprendizagem, e no professor como facilitador do processo de construção de conhecimento (Campos, 2001; Feuerwerker, Sena, 1999). No concernente à oferta do componente curricular Libras apresentada no Quadro 2, destaca-se o crescente interesse das instituições em disponibilizá-lo aos alunos. Essa prática corrobora com a opinião de Souza e Pozzori (2009), que ratificam a importância da formação em Libras para os profissionais de saúde, citando experiências de cidades que oferecem esse tipo de capacitação para seus profissionais. E mostram que há grande relevância tanto no âmbito do relacionamento interpessoal com os usuários, imperativo nas relações de cuidado/atendimento em saúde, quanto no aprimoramento da nova língua que aprenderam, uma vez que a língua dos sinais necessita de prática e desenvolvimento, aumentando, assim, a capacidade de comunicação entre seus usuários (Souza, Pozzori, 2009). Por outro lado, foi preocupante a constatação da lacuna do oferecimento de Libras nos cursos de licenciatura de instituições públicas, pois, além de os profissionais formados necessitarem de tal conhecimento em sua prática, esse dado descumpre o Decreto nº 5.626/05, que recomenda a inserção da Libras como componente curricular obrigatório nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior. Diante do oferecimento da Libras posto como compulsório em alguns cursos, é necessário salientar que a qualificação do professor de Libras é muito importante, pois tal componente curricular exige do profissional a fluência na língua de sinais. E, no caso do Brasil, da língua portuguesa, para que as mesmas tenham concordância, prestígio e rigor. Porém, devido aos poucos profissionais na área, torna-se difícil o cumprimento da legislação e a formação de educadores e profissionais bilíngues (Martins, 2008). No Quadro 2, observou-se que a desproporção quanto à oferta do componente Libras entre as instituições públicas e privadas demonstra que as instituições privadas estão mais atentas às recomendações do Decreto nº 5.626/05 do que as instituições públicas inseridas nesta investigação. O desinteresse nesse tipo de formação, verificado no estudo de Souza e Pozzori (2009), indica a não-existência de uma disposição reflexiva sobre o tema, tampouco preocupação com a realidade social. Nesse sentido, as ementas do componente curricular Libras deveriam permitir uma aprendizagem concreta da língua e sua aplicação no âmbito profissional. Autores relatam que o ensino de Libras tem baixo status porque não existem sistematização e avaliação do processo de ensino-aprendizagem, não há conteúdos definidos por série, nem a exigência de avaliação que permita diagnosticar o nível de aprendizagem e desenvolvimento da Libras por parte dos alunos (Cavalcante et al., 2004). A Libras é uma língua, portanto aprendê-la vai além do momento em sala de aula, exigindo um contexto e contato com a cultura em questão. Nesse aspecto, Martins (2008) frisa que é preciso cuidado, tanto por parte do MEC como das IES, para que o ensino da Libras não se torne superficial. Entende-se que a inserção da Libras deve buscar promover uma aproximação maior com o tema e discussões entre discentes e docentes da área da saúde, sensibilizando-os a rever suas práticas de cuidado, para a promoção da integralidade e humanização na assistência aos surdos. Assim, para atenderem às recomendações dos perfis desejados e poderem realizar um atendimento integral, Souza e Porozzi (2009) trazem como elementar que os profissionais da saúde sejam capazes de se comunicar de maneira eficiente com os usuários surdos, dando ainda um destaque para aqueles que atuam na Atenção Básica. Isso poderia ser viabilizado, inicialmente, pela inclusão e fortalecimento do componente Libras para todos os cursos, com obrigação legal de disponibilizá-lo, sendo a oferta desse componente no próprio currículo um importante passo para um melhor atendimento desse tipo de usuário. Em seu estudo, Souza e Pozzori (2009) apontam quão é importante os cursos de saúde terem uma visão mais acolhedora na implantação do componente Libras em seus currículos, sugerindo até que, a médio e longo prazo, o referido componente se torne obrigatório em todos os cursos da área de saúde. Tal opinião se embasa na não-atração que esse componente curricular, como optativo, provoca nos estudantes, que podem não ter noção da importância do mesmo em suas vidas profissionais.
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Na análise da categoria Compreensão cultural na construção da relação profissional/paciente, destacam-se os seguintes trechos extraídos das ementas: “Aspecto histórico da comunidade surda, aspectos clínicos, educacionais e sócioantropológicos da surdez.” (E11) “Posicionamento crítico e interativo quanto à importância da utilização da Libras no atendimento às pessoas surdas.” (F4) “[...] estudo da língua de sinais, para a comunicação no cotidiano com o surdo.” (O3)
Esses recortes, representativos da maioria das ementas dos cursos investigados, focam a atuação direta do profissional para com o paciente, compreendendo seu contexto biológico, social e cultural. Para Santos (2003), uma instituição educacional ressignificada dentro do paradigma inclusivo necessita compreender que não é a quantidade de conteúdos que garante uma boa formação, mas, sim, todo um conjunto de fatores: pedagógicos, culturais e sociais. Nessa perspectiva, as ementas coletadas apresentam a preocupação das IES em contextualizar o tema em questão, bem como de contribuir para o entendimento da cultura dos surdos. Em seu estudo, Santos e Shiratori (2004) desvelam as necessidades de saúde da comunidade surda e revelam a comunicação como a maior barreira enfrentada por estes usuários em serviços de saúde. Segundo seus entrevistados, o estabelecimento da comunicação profissional/paciente facilitaria bastante o esclarecimento de suas dúvidas durante o atendimento. Salienta-se que o acesso ainda é um problema que vem sendo enfrentado na implantação plena e no funcionamento de serviços de saúde, pois algumas barreiras dificultam a entrada do usuário na atenção à saúde. No caso da comunidade surda, a barreira de comunicação com profissionais não conhecedores da Libras influi diretamente na utilização dos serviços e na resolução dos problemas (Freire et al., 2009). Nesse sentido, Santos e Shiratori (2004) evidenciam que o entendimento do contexto social e de vida do surdo, bem como o relacionamento com o profissional de saúde ficam extremamente comprometidos, devido à não-construção de “elos” acarretada pelo despreparo dos serviços e profissionais de saúde para atender esta clientela. Em relação à categoria Legislação aplicada: bases para atuação profissional, as ementas expressaram: “Lei 8.213/91 e o acesso do surdo ao trabalho.” (E6) “[...] conscientizando os alunos sobre o uso da Libras sobre responsabilidade social de atender os surdos em Libras de acordo com a legislação vigente.” (E7)
Os recortes possibilitam a compreensão de que os cursos reconhecem a utilidade prática da Libras nos serviços de saúde; e, ao citarem a Lei 8.213/91, demonstraram-se conhecedores dos benefícios do auxílio-doença, estabilidade no emprego, aposentadoria e regime de previdência social que essa lei assegura aos surdos. Entretanto, apenas o coordenador do curso E8 afirmou a abordagem de legislações inclusivas nos objetivos do componente Libras de seu curso. As normas em defesa de mais inclusão das pessoas surdas vêm sendo publicadas e devem ser de conhecimento geral. Assim, as IES precisam se preocupar com o conhecimento das leis e portarias que norteiam a formação do profissional de saúde, que garantem a inclusão social da comunidade surda e o direito dos surdos a uma comunicação eficiente nos serviços de saúde. O conhecimento dessas peças jurídicas é importante, pois a barreira de comunicação afeta o cuidado em saúde, desde o acesso ao atendimento clínico, comprometendo, sobretudo, a formação de vínculo profissional/usuário, colocando em risco a assistência integral (Chaveiro, Barbosa, Porto, 2008).
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Nesse sentido, a categoria Libras nas ciências da saúde: uma prática aplicada enfoca a valorização atribuída pelos cursos ao uso da Libras pelos profissionais de saúde: “A aprendizagem, compreensão, análise e uso da língua de sinais brasileira e os movimentos do corpo e mãos envolvidos em cada sinal.” (F7) “Recepção e emissão da língua de sinais.” (O3) “[...] sinais específicos para trabalho.” (E11)
Os recortes expressam a preocupação com a aprendizagem dos sinais da Libras próprios para atuação no trabalho, refletindo a importância da comunicação eficaz entre profissionais de saúde e a pessoa surda. Sendo a Libras uma língua de expressão de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, faz-se necessário um entendimento prático de sinais do seu sistema linguístico para transmissão de ideias e fatos (Brasil, 2002c). Essa necessidade também é citada por Cardoso, Rodrigues e Bachion (2006), quando afirmam que a tentativa de comunicação dos profissionais de saúde com essa clientela se dá por meio de formas rudimentares e, frequentemente, há necessidade de que um acompanhante esteja presente para fazer a intermediação. Outro ator de destaque neste processo de intermediação entre pessoas surdas e os profissionais de saúde são os tradutores/intérpretes de Libras, que se comunicam com os pacientes surdos e buscam repassar as informações da maneira mais precisa, evitando a presença de uma terceira pessoa que não seja profissional. Esses profissionais podem minimizar as dificuldades enfrentadas pelos surdos, os quais apresentam necessidades específicas e, por isso, encontram barreiras para participar plenamente de várias atividades sociais regulares, devido ao obstáculo da comunicação (Olah, Olah, 2010). Todavia, existem algumas críticas e limitações para a atuação dos intérpretes. Sua presença durante o atendimento pode aumentar o constrangimento, colocar maior risco ao direito de sigilo e privacidade, bem como à qualidade das informações repassadas (Chaveiro et al., 2010), já que na saúde há conhecimentos e uma linguagem técnica específicos da área, e que podem ser desconhecidos pelo intérprete, comprometendo a transmissão da informação ao paciente. Outra crítica à participação de intérpretes está relacionada com o estabelecimento dos vínculos. Freire et al. (2009) destacam a dificuldade de formação de vínculo profissional/usuário quando não se estabelece a comunicação direta entre os mesmos. Uma estratégia para minimizar tal problemática pode ser o estabelecimento de sinais padronizados. Souza e Pozzori (2009) ressaltam a necessidade da Libras no âmbito da saúde para popularizar e padronizar sinais específicos e passíveis de identificação pelo surdo. Citam ainda que novas palavras estão sendo incorporadas no dicionário de Libras, através da criação de uma apostila com sinais específicos apropriados referentes à área da saúde. Portanto, a utilização da Libras deve tornar-se uma prática aplicada, pois os profissionais da saúde relatam que não se sentem preparados para atender pacientes surdos por não conseguirem estabelecer uma comunicação efetiva, fator que causa desconforto tanto aos profissionais quanto aos pacientes (Oliveira, Lopes, Pinto, 2009; Pagliuca, Fiúza, Rebouças, 2007). Assim, no caso específico do surdo e da assistência em saúde, acredita-se que a capacitação de recursos humanos para estabelecer uma comunicação eficaz com esse paciente possibilita que o profissional entenda as suas necessidades, compreenda-o como ser holístico e preste assistência adequada, minimizando seu sofrimento (Pagliuca, Fiúza, Rebouças, 2007). Nesse contexto, é importante que haja um entendimento, por parte de estudantes e profissionais, sobre a importância de se estudar Libras como língua que pode melhorar sua atuação laboral. Além de reconhecer a relevância da Libras para a assistência em saúde, na categoria Libras: uma nova língua, uma nova estrutura, as ementas destacaram as características da estrutura da Libras:
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artigos
“[...] morfologia da língua de sinais, datilologia e alfabeto manual. O nome próprio [...] Libras em contexto versus língua portuguesa falada e escrita. [...] partículas de negação e textos para interpretação.” (E6) “[...] estrutura gramatical; análise textual [...]; sinais gerais; tempo; verbos; substantivos, adjetivos.” (E11) “Aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos da língua de sinais brasileira.” (F7)
Como relata Martins (2008), ainda há uma incompreensão sobre o reconhecimento da Libras como a língua oficial da comunidade surda. Ela possui uma estrutura diferente dos padrões tradicionais e clássicos da linguística. A compreensão dessa estrutura foi uma citação unânime nas ementas estudadas, evidenciando a importância dada ao conhecimento da construção do signo (significante e significado) na composição verbal e gramatical próprias da língua, porém em apenas três cursos (E5; E6; E7) os objetivos corroboram as ementas. Dessa forma, considerando o momento de incorporação da Libras no currículo dos profissionais de saúde, é importante que haja uma constante avaliação de como está se dando seu planejamento e implantação, devido à necessidade da formação de profissionais com visão integral do cuidado em saúde, inclusive para a comunidade surda, compreendendo seu contexto social, conhecendo a legislação vigente e estabelecendo uma comunicação eficiente para a construção do vínculo profissional/paciente.
Considerações finais A comunicação é um processo de interação no qual se compartilham mensagens, ideias, sentimentos e emoções. Na assistência em saúde, somente a partir de uma boa comunicação estabelecida se poderão identificar e resolver as necessidades dos pacientes de forma humanizada e integral. Constatou-se que as instituições, especialmente as privadas, têm buscado atender à determinação legal e às recomendações do MEC quanto à adequação da matriz curricular dos projetos pedagógicos, inserindo a Libras como componente optativo, para atender ao perfil de profissionais humanistas, críticos e com uma atuação inclusiva. A adoção do componente curricular Libras, por meio da elaboração de ementas e conteúdos com ênfase na inclusão social de pessoas surdas, aliada à contratação de profissionais qualificados em Língua de Sinais, foram observadas como parâmetros para as ações educativas e inclusivas das instituições. Desse modo, nessas instituições, a formação dos profissionais de saúde contribui para o atendimento integral e equânime a todos os cidadãos. Contudo, observou-se que as instituições com cursos de licenciatura relataram não haver previsão de cumprimento da lei que estabelece a obrigatoriedade do componente curricular Libras. Tal fator é preocupante, pois tais instituições também estão formando educadores, e a ausência de discussão acerca desse tema pode afetar negativamente o desenvolvimento de competências e habilidades profissionais comprometidas com a realidade social, com vistas a uma prática humanizada, acolhedora e integral. Além de retardar o processo que amplia a inclusão de pessoas surdas também na área da educação. O processo de mudança na formação do profissional de saúde ainda precisa ser acompanhado e avaliado, portanto sugere-se investigar a percepção dos estudantes (surdos ou não) sobre a discussão da inclusão social das pessoas e da cultura dos surdos. E a realização de outros estudos na área, objetivando avaliar a qualidade da oferta do componente Libras, para tornar efetiva e eficiente a contribuição desse novo e importante conhecimento para os profissionais de saúde.
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Colaboradores As autoras Yanik Carla Araújo de Oliveira e Renata de Oliveira Cartaxo responsabilizaram-se por: coleta de dados, análise, escrita e aprovação final do artigo. Os autores Alexsandro Silva Coura, Gabriela Maria Cavalcanti Costa e Inacia Sátiro Xavier de França responsabilizaram-se por: concepção, desenho, revisão crítica e aprovação final do artigo. Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. Trad. Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. Lisboa: Edições 70, 2004. BRASIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Brasília: Ministério da Justiça, 2005. ______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 3, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia. Brasília: Ministério da Educação, 2002a. ______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 4, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Fisioterapia. Brasília: Ministério da Educação, 2002b. ______. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Brasília: Ministério da Justiça, 2002c. ______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 3, de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Brasília: Ministério da Educação, 2001. CAMPOS, F.E. et al. Caminhos para Aproximar a Formação de Profissionais de Saúde das Necessidades da Atenção Básica. Rev. Bras. Educ. Méd., v.25, n.2, p.53-9, 2001. CARDOSO, A.H.A; RODRIGUES, K.G; BACHION, M.M. Perception of persons with severe or profound deafness about the communication process during health care. Rev. Latinoam. Enferm., v.14, n.4, p.553-60, 2006. CAVALCANTE, K.S. et al. Elaborando Proposta Curricular para o Ensino de Libras e Língua Portuguesa no Ensino de Surdos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, 2., 2004, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: 2004. Disponível em: <https://www.ufmg.br/congrext/Educa/Educa77.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2011. CECCIM, R.B.; FEUERWERKER, L.C.M. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cad. Saude Publica, v.20, n.5, p.1400-10, 2004. CHAVEIRO, N. et al. Atendimento à pessoa surda que utiliza a Língua de Sinais, na perspectiva dos profissionais da saúde. Cogitare Enferm., v.15, n.4, p.639-45, 2010. CHAVEIRO, N.; BARBOSA, M.A.; PORTO, C.C. Revisão de literatura sobre o atendimento ao paciente surdo pelos profissionais da saúde. Rev. Esc. Enferm. USP, v.42, n.3, p.578-83, 2008. DESLANDES, S.F.; MITRE, R.M.A. Processo comunicativo e humanização em saúde. Interface - Comun. Saude Educ., v.13, supl.1, p.641-9, 2011. Disponível em: <http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832009000500015 &lng=en&nrm=iso>. Acesso: 3 jul. 2011.
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OLIVEIRA, Y.C.A. et al. La lengua brasileña de señales en la formación de profesionales de Enfermería, Fisioterapia y Odontología en el estado de Paraiba, Brasil. Interface Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.995-1008, out./dez. 2012. Este trabajo analiza proyectos pedagógicos de graduación de Enfermería, Fisioterapia y Odontología, acerca de la inclusión de Lenguaje de Signos de componentes (LIBRAS) y de los parámetros que rigen esta actividad en la formación de profesionales de salud, asegurando la integridad y humanización de la asistencia. Es un estudio transversal y documental con planteamiento cualitativo realizado en 25 cursos de Paraíba además del análisis de proyectos educativos, 24 coordinadores respondieron a un cuestionario, y los datos analizados de acuerdo con Bardin. Los resultados indican que 58% de los cursos ofrecen LIBRAS y que para los de licenciatura no está disponible. Los contenidos abarcan temas como cultura de comunidad sorda, LIBRAS y su estructura lingüística, y enfoque práctico de políticas inclusivas de comunicación y legislaciones inclusivas. Esta situación sigue paralela a respuestas vagas con respecto a la organización del componente, la formación profesional en LIBRAS y sus asignaciones.
Palabras clave: Lenguaje de signos. Capacitación de recursos humanos en salud. Enfermería. Odontología. Fisioterapia.
Recebido em 10/11/11. Aprovado em 10/07/12.
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Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2011
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artigos
Biomedicalización e infancia: trastorno de déficit de atención e hiperactividad
Celia Iriart1 Lisbeth Iglesias Ríos2
IRIART, C.; IGLESIAS RÍOS, L. Biomedicalization and childhood: attention deficit hyperactivity disorder. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1011-23, out./dez. 2012. This article critically analyzes the increasing number of children diagnosed with and treated for Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD). The analysis links this growing phenomenon with the strategies of the pharmaceutical industry for attaining leadership in conceptualizing the health-illness-care process as well as in the healthcare market. We utilized analytical and interpretive methods to study primary and secondary data and conducted an extensive literature review. In the light of the concept of biomedicalization, we analyzed the ideological and subjective mechanisms that facilitated institutionalization of this discourse as a new truth concerning this disease as well as its legitimization by governmental and civic organizations. The biomedicalization of children’s distress facilitates the concealment of deeply rooted socioeconomic, political, ideological and cultural changes that have radically transformed our societies over the past few decades.
El artículo analiza críticamente el aumento de los niños diagnosticados y tratados por el Trastorno de Déficit de Atención e Hiperactividad (TDAH). Los análisis vinculan este creciente fenómeno con las estrategias de la industria farmacéutica para reposicionarse en el liderazgo de la conceptualización del proceso saludenfermedad-atención y en el mercado de salud. Utilizamos métodos analíticointerpretativos para estudiar datos primarios y secundarios, y realizar una extensa revisión bibliográfica. A la luz del concepto de biomedicalización analizamos los mecanismos subjetivo-ideológicos que facilitaron que este discurso se instituya como una nueva verdad sobre este trastorno y sea legitimado por los organismos gubernamentales y las organizaciones de la sociedad civil. La biomedicalización del sufrimiento infantil dificulta que se pongan en evidencia los profundos cambios socioeconómicos, políticos e ideológico-culturales que han transformado radicalmente nuestras sociedades en las últimas décadas.
Keywords: Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD). Biomedicalization. Healthcare consumer. DSM. Medical industrial complex.
Palabras clave: Trastorno por Déficit de Atención con Hiperactividad (TDAH). Biomedicalización. Consumidor de salud. DSM. Complejo médico-industrial. Utilización de medicamentos.
Department of Family and Community Medicine, Public Health Program, University of New Mexico. MSC09 5060, 1 University of New Mexico, Albuquerque, NM 87131-0001, USA. ciriart@salud.unm.edu 2 Public Health Program, University of New Mexico. 1
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Presentación del problema Si bien el TDAH es un trastorno definido hace varias décadas, su más reciente redefinición y la extensa difusión de la que está siendo objeto desde finales de la década del noventa nos indica un cambio que requiere ser analizado. De acuerdo a documentos oficiales y artículos científicos, la cantidad de niños diagnosticados y tratados con el Trastorno por Déficit de Atención con o sin Hiperactividad (TDAH) aumentó considerablemente en los países latinoamericanos desde comienzos de la década del 2000, con un acentuado crecimiento hacia finales de la misma (Ortega et al., 2010; Frenk Mora et al., 2002). Estos datos de aumento en la prevalencia del TDAH no se basan en investigaciones epidemiológicas nacionales en países latinoamericanos, sino en estudios parciales generalmente basados en casos clínicos, en extrapolaciones de las prevalencias publicadas en la bibliografía anglosajona, o en datos de aumento del consumo de las drogas usadas para tratarlo. Este proceso acompaña la tendencia que se consolidó en los Estados Unidos, país donde primero se difunde la idea de que el TDAH está subdiagnosticado (Center for Disease Control and Prevention, 2011). El aumento de niños diagnosticados parece correlacionarse con las estrategias que el complejo médico-industrial, especialmente la industria farmacéutica, generó para contrarrestar las reformas que el capital financiero desarrolló, a partir de la década del noventa, con su entrada como administrador de programas de salud y planes de cobertura de atención médica. Estas reformas se desarrollaron primero en los Estados Unidos y luego se exportaron a numerosos países de América Latina, Asia, y Europa. Ambos procesos han sido extensamente estudiados por Iriart junto a otros colegas (Iriart, Franco, Merhy, 2011; Iriart, Merhy, Waitzkin, 2000). Aquí presentamos una breve síntesis basada en esas investigaciones para contextualizar los análisis relacionados con el TDAH. Durante las décadas previas a la implantación de las reformas sectoriales bajo la hegemonía de los grupos financieros, la industria farmacéutica dirigió sus estrategias promocionales a los médicos. Así fue como la utilización de servicios y productos biomédicos estuvo determinada en gran medida por la oferta de los mismos a través de estos profesionales. La comprensión de esta situación por parte de los grupos financieros que instalaron las reformas denominadas de atención gerenciada, generó estrategias de contención de gastos basadas en el control del uso de servicios y tratamientos. A partir de estos cambios en la administración de coberturas médicas, el complejo médico-industrial, especialmente la industria farmacéutica, inició una serie de estrategias para restablecer su liderazgo en la conceptualización del proceso salud-enfermedad-atención y en el mercado de salud. Una de las estrategias estuvo centrada en radicalizar a su favor el concepto de consumidor que las reformas basadas en la atención gerenciada habían cooptado de sus promotores iniciales, los grupos que cuestionaban el poder médico en los setentas (Critser, 2005). Con el objeto de utilizar para sus fines comerciales el concepto de consumidor, la industria farmacéutica utilizó diversos mecanismos para establecer una relación directa con los potenciales usuarios de sus productos que analizaremos en la siguiente sección. Sin embargo, como veremos las estrategias de la industria farmacéutica para dirigir sus mensajes al público tienen implicaciones mucho más profundas en nuestras sociedades ya que se inscriben en procesos de creación de nuevas subjetividades que radicalizan la medicalización, y que siguiendo a otros autores vamos a denominar biomedicalización (Clarke et al., 2010). Consideramos que el concepto de biomedicalización ofrece una mejor interpretación de los profundos cambios operados en la década del noventa en la conceptualización del proceso salud-enfermedad-atención. La medicalización implica la expansión del diagnóstico y tratamiento médico de situaciones previamente no consideradas problemas de salud, como por ejemplo, la reproducción humana. La biomedicalización, por su parte, supone la internalización de la necesidad de autocontrol y vigilancia por parte de los individuos mismos, no requiriendo necesariamente la intervención médica. No se trata, solamente, de definir, detectar y tratar procesos mórbidos, sino de estar alerta de potenciales riesgos e indicios que pueden derivar en una patología. En el caso del TDAH, por ejemplo, la disponibilidad de sencillos métodos de diagnóstico y la extensa información en internet y otros medios puestos al servicio de padres, maestros y profesionales no especializados facilita la difusión del mismo, el autocontrol y la vigilancia. En base a lo previamente introducido, el objetivo del artículo es aportar una lectura crítica desde la salud colectiva sobre el TDAH contextualizándolo en los procesos antes descriptos. Para ello, primero 1012
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sintetizaremos los principales elementos de la reforma relacionados con el tema, luego examinaremos el concepto de biomedicalización en relación al TDAH, posteriormente presentaremos una reflexión crítica acerca de la construcción del TDAH como un problema de salud pública y, finalmente, analizaremos los cambios en las definiciones diagnósticas y las diferentes clasificaciones utilizadas que determinan el número de niños incluidos en este diagnóstico.
Método Para esta investigación usamos metodología analítica para reinterpretar datos secundarios e investigaciones desarrollados por otros autores que analizan el aumento de la prevalencia de niños diagnosticados con TDAH en las últimas dos décadas. Partimos de la premisa de la existencia de una anomalía en la forma en que se define, cuantifica y trata este problema desde las corrientes hegemónicas de la psiquiatría basadas en concepciones neurobiológicas. Sin esto no es posible explicar el aumento de niños diagnosticados y tratados por este trastorno en un corto período de tiempo en el cual no han surgido nuevos métodos diagnósticos considerados “objetivos”, tal el caso de marcadores bioquímicos, pruebas neuropsicológicas o genéticas, o estudios de neuroimágenes Recurrimos a fuentes primarias de información tales como portales en la red y blogs para ejemplificar la información que el público recibe y los debates existentes. Los estudios de los que participara una de las autoras (Iriart) fueron utilizados para contextualizar los análisis sobre el TDAH en los procesos de reforma sectorial. Revisamos las bases de datos Scielo, PubMed, JSTOR y PsycINFO cubriendo el período enero 1990 a mayo 2011 usando los siguientes términos en español, inglés y portugués: “trastorno por déficit de atención e hiperactividad (TDAH)”, “DSM”, “Clasificacion Internacional de Enfermedades (CIE)”, “industria farmacéutica”, “mercadotecnia”, y “medicalización”. También usamos como fuente la literatura citada por los autores analizados cuando consideramos que era útil para profundizar el análisis. Sin embargo, queremos destacar que este artículo no usa la metodología de revisión sistemática, por lo cual seleccionamos aquellas fuentes que aportaban al análisis que nos proponemos desarrollar en este artículo. Por ello la lista de referencias en el artículo incluye solo las más relevantes de la extensa revisión realizada, cuidando de incluir autores de diversos campos y las más recientes en cada tema descripto. Usamos la revisión bibliográfica para seleccionar materiales que describen el proceso histórico, político y económico que permitió dar mayor visibilidad al trastorno, y para describir cómo, en la actualidad, se están usando los medios de comunicación por parte de grupos no profesionales, como así también por organismos gubernamentales, y compañías farmacéuticas para expandir el conocimiento sobre este trastorno y proveer instrumentos no científicos a la población para realizar un primer diagnóstico del problema. Asimismo, la revisión bibliográfica nos permitió analizar los cambios en la definición del TDAH y las diferencias en la prevalencia según la clasificación usada. Analizamos críticamente los datos de prevalencia oficialmente publicados en los Estados Unidos por ser la fuente más utilizada por los medios de comunicación y por los investigadores al informar sobre la prevalencia del trastorno también en los países latinoamericanos.
Biomedicalización de la infancia y TDAH La transformación de la medicalización en biomedicalización fue posible por la confluencia de diferentes aspectos entre los cuales destacamos la masiva entrada del capital financiero en el sector salud y los reacomodamientos que el complejo médico-industrial realizó para recuperar liderazgo ante esta nueva situación. Estos procesos aumentaron exponencialmente la privatización del sector salud en manos de corporaciones nacionales o multinacionales, así como la masiva mercantilización de sus productos y servicios (Iriart, Franco, Merhy, 2011). En el caso de enfermedades y trastornos ya conocidos y medicalizados como el TDAH, lo que las farmacéuticas hicieron fue expandir el mercado desarrollando mecanismos comunicacionales para que se internalice el problema como un trastorno subdiagnosticado y que puede ser controlado con fármacos. Estos procesos fueron favorecidos por la transformación del COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1011-23, out./dez. 2012
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modelo de negocios que la industria farmacéutica desarrolló. La industria pasó de un modelo centrado en la “educación” de los profesionales de salud, en especial los médicos, para que prescriban sus productos, a otro en que el consumidor directo ocupa un papel central en las campañas de comercialización (Iriart, Franco, Merhy, 2011). Estas campañas de comercialización pueden ser explícitas como en los Estados Unidos, donde los medicamentos bajo prescripción pueden ser publicitados a través de la prensa escrita y oral; o encubiertas como en los países latinoamericanos, donde la legislación para la publicidad de medicamentos bajo prescripción lo impide. En los países latinoamericanos hemos observado la utilización de las campañas de concientización de enfermedades usando los medios masivos de difusión pero sin nombrar la medicación, y presentaciones en ámbitos educativos o en programas de radio y televisión donde “expertos” en el tema “educan” a la audiencia para que sean capaces de identificar los síntomas del TDAH. El internet se ha convertido en otra herramienta útil, ya que ofrece fácil acceso a incontables espacios dedicados a la identificación y tratamiento del TDAH incluyendo sencillos cuestionarios para detectar los síntomas (Associação Brasileira do Déficit de Atenção, 2011; American Academy of Pediatrics, 2010)3. Estos espacios de información son mantenidos inclusive por organizaciones gubernamentales como los Centros para el Control de Enfermedades y Prevención (CDC, por su sigla en inglés). Desde su sitio, el CDC ofrece a los usuarios, incluyendo a los hispanohablantes, suscribirse para recibir noticias y actualizaciones sobre el TDAH, y el acceso a herramientas comunicacionales para difundir información entre familiares y amigos (CDC, 2011). La industria farmacéutica también brinda apoyo financiero a asociaciones de pacientes para que difundan el trastorno y sus posibles tratamientos a través de sus sitios en la red (Moynihan, Cassels, 2005). Estos mecanismos comunicacionales han facilitado la redefinición de la medicalización como biomedicalización (Clarke et al., 2010). El concepto de medicalización fue descrito por varios autores en los setentas como la definición y captura, para fines diagnósticos y de tratamiento médico, de aspectos de la vida previamente fuera de la jurisdicción médica (Illich, 1975). Para entender las transformaciones operadas en décadas recientes, Clarke y colegas desarrollaron el concepto de biomedicalización basándose en la teoría foucaultiana del biopoder y en desarrollos más reciente realizados por Rabinow (1995). Mientras la medicalización se centra en el padecimiento, la enfermedad, el cuidado y la rehabilitación; la biomedicalización se enfoca en la salud como un mandato moral que internaliza el auto control, la vigilancia y la transformación personal. La biomedicalización implica un cambio en relación al concepto de medicalización, en tanto se pasa de un creciente control de la naturaleza (el mundo alrededor del sujeto) a la internalización del control y transformación del propio sujeto y su entorno, transformando la vida misma. La disponibilidad y masiva accesibilidad a tecnologías biológicas, incluyendo medicamentos, instrumentos diagnósticos y otros equipamientos, así como el acceso a enormes cantidades de información sobre enfermedades y trastornos (nuevos, viejos y redefinidos), crean nuevas subjetividades, identidades, y biosocialidades. En el caso del TDHA una nueva subjetividad emerge cuando se identifica al niño inquieto y/o distraído como portador de un trastorno, ya no como un niño travieso, o con necesidades diferentes, o que está llamando la atención sobre situaciones que lo afectan (Miller, 1999). Las relaciones sociales se transforman y el niño pasa a ser etiquetado como un niño con una discapacidad para el aprendizaje o la sociabilidad. Esto es internalizado por el niño, la familia, los amigos y los maestros, creándose así una nueva identidad en torno al 1014
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Una simple búsqueda usando Google poniendo las siglas en inglés obtiene más de 55 millones de posibles entradas, poniendo sus siglas en español más de dos millones y poniendo sus siglas en portugués más de 55 mil. Esta búsqueda no pretende ser exhaustiva y sabemos que numerosas entradas son repetidas o erróneas, pero lo que pretendemos mostrar es la enorme cantidad de información sobre este tema en la red.
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padecimiento. A su vez, la existencia de grupos informales y de asociaciones de pacientes o familiares con el trastorno posibilita nuevas formas de sociabilidad que están determinadas por el padecimiento, de ahí que las denominemos biosociabilidades. Internet ofrece una gran oferta de herramientas, tales como, portales, redes sociales (facebook, twitter) y blogs, para intercambiar o debatir acerca de temas específicos como el TDHA. Estos fórums en la red están muchas veces promovidos por la industria farmacéutica o por asociaciones de pacientes o profesionales (Children and Adults With AttentionDeficit/Hyperactivity Disorder, 2011). Sin embargo, es importante destacar que no todas estas nuevas identidades implican la aceptación de los discursos y las prácticas biomedicalizadoras. Algunos de estos grupos/fórums cuestionan el mandato moral y otras formas de biomedicalización (Death from Ritalin, 2011; The Natural Child Project, 2011). El proceso no es unidireccional y diferentes tipos de discursos son creados por una multiplicidad de individuos y organizaciones. Sin embargo, al identificarse en base a la biosocialidad creada alrededor del TDHA o los medicamentos utilizados, estos grupos si bien con un mensaje cuestionador, no escapan a esta construcción de agrupamientos biosociales, que, como señala Ortega (2004), sustituyen progresivamente los agrupamientos tradicionales de clase, religión u orientación política. Nuevos desarrollos organizacionales y regulaciones pueden cambiar la situación que, en la actualidad, hegemoniza el complejo médico-industrial en torno a procesos de salud-enfermedad. Más acceso a información sobre temas de salud favorece la democratización de este campo, el problema es qué tipo de información se trasmite, quién genera los datos, cómo se construyen y difunden los mismos, y qué intereses movilizan su circulación. La diseminación descontextualizada de información sobre salud reproduce la biomedicalización y genera un sentido común en el cual, en el caso del TDAH, padres y maestros se ven compelidos a actuar según esta ideología de control individual. Esto genera una profunda mercantilización del sufrimiento infantil, ya que los padres, convertidos en consumidores, buscarán los servicios de los profesionales recomendados en los sitios, o si recurren a otros, irán muñidos de información que les permitirá describir más precisamente signos y síntomas conducentes al diagnóstico del TDAH y posiblemente a la medicación. En esta sección ubicamos el problema de la creciente difusión del TDHA en los procesos estructurales que crearon las condiciones de posibilidad para que emerja un nuevo discurso sobre este trastorno y analizamos los procesos de subjetivación que la biomedicalización genera. A continuación analizaremos cómo los datos son producidos, interpretados y difundidos, facilitando que se instituya una nueva verdad sobre el TDHA, y sean utilizados para legitimar los discursos biomedicalizadores por parte de organismos gubernamentales y organizaciones de la sociedad civil.
La construcción del TDAH como un problema de salud pública Según las definiciones más recientes, el TDAH es un trastorno psiquiátrico neuro-conductual que se caracteriza por el desarrollo de niveles inapropiados de inatención y/o hiperactividad, los que resultan en incapacidad de funcionar adecuadamente en espacios escolares, familiares y sociales (CDC, 2011). La forma de diagnóstico más difundido se basa en la detección de los siguientes síntomas: hiperactividad, falta de atención e impulsividad. El diagnóstico del TDAH se realiza solo en base a observaciones del comportamiento de los niños, ya que no existen pruebas definidas como objetivas (marcadores bioquímicos, pruebas neuropsicológicas o genéticas, o estudios de neuroimágenes) capaces de detectar los supuestos desequilibrios bioquímicos (Wannmacher, 2006). La disminución de síntomas en los niños diagnosticados con TDAH cuando se les administra psicoestimulantes ha sido difundida como la forma de confirmar el diagnóstico (Mayes, Rafalovich, 2007). Sin embargo, como estos mismos autores muestran, Judith Rapaport, una de las primeras investigadoras en recibir fondos de los Institutos Nacionales de Salud de los Estados Unidos para investigar el TDAH, demostró ya en la década del setenta, que la administración de psicoestimulantes tenía similares efectos en niños diagnosticados y no diagnosticados con el trastorno. A partir de la década del sesenta el gobierno federal de los Estados Unidos otorgó los primeros subsidios para investigación básica y epidemiológica sobre el TDAH con la finalidad de entender tanto la COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1011-23, out./dez. 2012
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etiología del trastorno, como las dimensiones del problema, los grupos más afectados y los efectos de la medicación (Mayes, Rafalovich, 2007). Esto generó una mayor visibilidad del trastorno que poco a poco pasó de los ámbitos de la salud a los ámbitos educacionales desde donde se demandó reconocer a los niños diagnosticados con TDAH como discapacitados y elegibles para recibir educación especial. En 1991, el Departamento de Educación de los Estados Unidos implementó la ampliación del Acta de Discapacidades Individuales en la Educación (Individuals with Disabilities Education Act) para incluir a los niños con TDAH. Esto facilitó la aceptación social del TDAH dentro de las escuelas, así como un influjo de fondos y recursos humanos destinados a las mismas, ya que más niños fueron identificados para recibir educación especial (Davila, Williams, MacDonalt, 1991). Los procesos descriptos anteriormente generaron un creciente aumento de niños diagnosticados y tratados en los Estados Unidos a partir de los noventas, fenómeno que se expande a otros países a partir de la década del 2000. América Latina no es la excepción; en esa región se puede observar una creciente proliferación de sitios en la red de asociaciones de profesionales, de familiares, de educadores y de empresas farmacéuticas que mimetizan los desarrollados en los Estados Unidos (ABDA, 2011; Fundación TDAH, 2011; Janssen-Cilag, 2010). En los últimos años, América Latina también ha visto el crecimiento de la divulgación del TDHA a través los medios de comunicación (Ortega et al., 2010). Asimismo, ha crecido el número de artículos sobre el trastorno publicados en revistas científicas latinoamericanas4. Las campañas de concientización sobre este trastorno financiadas por asociaciones de pacientes y de profesionales que se ocupan del tema y por las farmacéuticas que producen los medicamentos para el tratamiento del TDAH han aumentado en las escuelas, hospitales y otros ámbitos comunitarios (Faraone et al., 2010). El argumento de quienes defienden la necesidad de que padres, educadores y la población en general se concienticen sobre este problema es que el aumento de casos diagnosticados y tratados muestra el éxito y la necesidad de estas campañas para identificar niños que padecen el trastorno (AAP, 2010). Este argumento, así como el difundido uso de los datos de prevalencia generados en los Estados Unidos para presentar el problema en otros países, pone de manifiesto la importancia de desarrollar un análisis crítico de cómo se construyen y reportan los datos de prevalencia del TDAH que presenta el CDC en su sitio de la red (CDC, 2011). El CDC establece la prevalencia del TDAH en los Estados Unidos en base a la información recolectada en la Encuesta Nacional de Salud de los Niños (NSCH, por sus siglas en inglés). Esta encuesta se toma a una muestra al azar de números de teléfonos fijos. La encuesta es respondida por el adulto más informado sobre las condiciones de salud del niño seleccionado para integrar la muestra. La pregunta que se les hace en la encuesta telefónica es “si un médico u otro profesional de salud le ha informado alguna vez que su hijo tiene TDAH”, si la respuesta es afirmativa, se les pregunta “si el niño actualmente toma medicación para el TDAH” (énfasis agregado). La metodología, como el mismo CDC lo señala, tiene importantes limitaciones (Visser et al., 2010 ). Por un lado, se excluyen domicilios donde no hay teléfono fijo y aquellos entrevistados que no aceptan participar. Por otro, el tipo de preguntas supone la capacidad de los padres de recordar el diagnóstico, no confundirlo con otro, reconocer la severidad del problema y ser veraces en la respuesta. En la encuesta del 2007 se agregaron tres preguntas: “si el niño tiene en la actualidad TDAH”, “la severidad del caso (leve, moderado, y severo)”; y “si el niño toma medicación para el trastorno”. 1016
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Las estadísticas que presenta Scielo, por ejemplo, al realizar una búsqueda usando la sigla TDHA o desglosándola, muestra que entre 1995 y 2003 el número de artículos que se encuentran llegan a un máximo de 6 en el 2003, en el 2004 aumentan a 16 y llegan a 31 en el 2010. Reconocemos que estas estadísticas no son exactas, pero nos permiten ver la creciente tendencia en el número de artículos publicados sobre el tema.
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La prevalencia de TDAH en la población infantil reportada en la página sobre este trastorno en el sitio del CDC corresponde a la encuesta del 2007 (Visser et al., 2010 ). Esta encuesta nacional recolectó datos de salud de 91.642 niños de 4 a 17 años de edad. El número de entrevistas con información completa en relación al TDAH fue de 63.123 casos. Usando las respuestas a la pregunta de si el niño alguna vez fue diagnosticado con TDAH, el CDC reporta en su página principal sobre el TDAH, un aumento del 22% de los casos entre el 2003 y el 2007, ya que las respuestas afirmativas a esa pregunta aumentaron del 7,8% al 9,5%. Sin embargo, si se considera la pregunta agregada en el 2007, de si el niño tenía el trastorno al momento de la entrevista, las respuestas positivas fueron considerablemente menos, ya que el 7,2% de los niños padecían el trastorno según los entrevistados. Asimismo, de los niños cuyos padres informaron que tenían TDAH al momento de la entrevista, en casi la mitad de los casos (46,7%) la condición fue reportada como leve, en el 39,5% moderada y solo en el 13,8% de los casos severa. El 66,3% de los niños cuyos padres reportaron que tenían TDAH recibía medicación al momento de la entrevista, de los cuales, el 56,4% eran casos considerados leves, el 71,6% moderados, y el 85,9% severos. Hasta aquí los datos que se pueden analizar e informar sobre el TDAH con la encuesta realizada en los Estados Unidos. Esto nos lleva a preguntarnos si es correcto que se priorice informar al público que hubo un aumento en la prevalencia de casos reportados por los padres del trastorno entre el 2003 y el 2007, como lo hace el CDC en su página y lo indica el título del artículo oficial donde se reportan los datos en mayor detalle. Usando la definición de prevalencia como el número de casos de una enfermedad o evento en una población en un momento dado, el dato que debería publicarse para el 2007 es el de 7,2% (casos actuales de niños con el trastorno reportados por los padres). Asimismo, si el CDC quiere reportar alguna comparación con años anteriores debería aclarar que para propósitos comparativos se ven obligados a usar la pregunta de “si el niño alguna vez fue diagnosticado con TDAH” y no la agregada en el 2007 “de si el niño tenía el trastorno al momento de la entrevista” debido a la falta de información para esta pregunta en años anteriores. Los medios de comunicación, aun los que ofrecen análisis críticos del problema, recurren a estos sitios generados por organismos gubernamentales cuando precisan información para encuadrar noticias o sus propias investigaciones sobre el TDAH (Democracy Now, 2011). Estos datos se toman como verdades incuestionables y facilitan la circulación de un discurso alarmista e incorrecto que se difunde por los medios de comunicación, y construye el sentido común alrededor de este problema. La utilización de generalizaciones estadísticas dificulta, por un lado, el entendimiento de las reales dimensiones del problema y, por el otro, favorece su rápida difusión. La creación de la preocupación colectiva alrededor de un tema lleva, muchas veces, a que los gobiernos inviertan fondos escasos en tratarlos o difundir información, que deberían destinarse a otros problemas que afectan a un número mayor de niños. Pero tal vez, lo más grave es que al facilitarse la difusión de la concepción del TDAH como una disfunción biológica del niño que puede ser tratada con medicación, se genera una sensación de alivio social ya que nadie es responsable y no hay nada que revisar a nivel de la vida social y familiar. Este alivio sería menor si se comprende cómo estos procesos favorecen la internacionalización del control y regulación de los cuerpos que responde a una forma de gobernabilidad biomédica. Gobernabilidad entendida en el sentido foucaultiano de formas particulares de poder, generalmente definidas por saberes especializados que implican monitorear, observar, medir, y normalizar individuos y poblaciones. Este poder no descansa en una coerción forzada, sino en mecanismos difusos, tal el caso de los discursos que prometen felicidad o salud a través de ciertas formas de conducta personal que requieren, entre otras cosas, autovigilancia y autorregulación (Clarke et al., 2010). En el caso del TDAH la promesa es un niño tranquilo, atento, y sociable que obtenga buenos resultados escolares y no problematice el espacio educativo, familiar y social. Por esto consideramos importante analizar a continuación como se realiza la construcción histórica y social de la definición y del diagnóstico del TDHA, ya que estas dos variables determinan la cantidad de casos diagnosticados y el tratamiento adoptado que conlleva a formas particulares de regulación social.
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Antecedentes y subjetividad del diagnóstico La mayoría de los diagnósticos psiquiátricos se definen y redefinen en torno a un clima histórico sociocultural. De esta forma, diferentes categorías diagnósticas aparecen y desaparecen con el tiempo, lo cual refleja en muchos casos las ideologías científicas predominantes de la época. Las definiciones de los trastornos psiquiátricos no son necesariamente un indicador de condiciones clínicas objetivas, sino en muchos casos, el producto de un proceso influenciado primariamente por factores socioeconómicos, políticos, culturales, e ideológicos (Conrad, Potter, 2000; Cooksey, Brown, 1998). En los Estados Unidos, la mayoría de los trastornos psiquiátricos se compilan en el Manual Diagnóstico y Estadístico (DSM por sus siglas en inglés), elaborado por la Asociación Americana de Psiquiatría (American Psychiatric Association, 2000). Este manual es el documento oficial donde se describen todos los cuadros psiquiátricos reconocidos en ese país por la ciencia hegemónica en un período específico. Esta guía es usada ampliamente por profesionales de la salud mental en sus prácticas clínicas, pero también por investigadores de diversas disciplinas. El uso de este manual diagnóstico se ha difundido internacionalmente en el campo de la psiquiatría, siendo en la actualidad más utilizado que la Clasificación Internacional de Enfermedades en su décima edición (CIE-10) (World Health Organization, 2009). Uno de los motivos por el cual el DSM se ha difundido tan ampliamente puede estar relacionado con el hecho de que las revistas de gran impacto científico en el campo de la salud mental requieren que los investigadores usen el DSM para que los manuscritos sean considerados para publicación (Dalal, Sivakumar, 2009). Asimismo, en los Estados Unidos y en otros países, la seguridad social médica y los seguros privados no pagan los servicios psicológicos o psiquiátricos a menos que el tratamiento esté incluido en un código diagnóstico del DSM aunque la persona consulte por problemas emocionales o relacionales no patológicos (Kutchins, Kirk, 1997). Algunos autores argumentan que uno de los principales problemas del DSM es que fue desarrollado y es actualizado por una disciplina, la psiquiatría, que incluye diversas corrientes de pensamiento sustentadas en diferentes paradigmas, tales como: conductismo, psicoanálisis y neurobiología. Como resultado, la clasificación de los trastornos psiquiátricos varía dependiendo de la corriente de pensamiento que hegemonice la conceptualización de salud mental en un determinado período (Lee, 2002). Por ejemplo, las definiciones del TDAH han cambiado notablemente en las sucesivas revisiones del DSM desde su publicación en 1952. La caracterización del TDAH ha pasado de “infancia con neurosis” a “neurosis compulsiva” de acuerdo al discurso psicoanalítico, para luego transformarse en “ansiedad” de acuerdo al discurso psiquiátrico y finalmente se le ha definido como “trastorno de déficit de atención con o sin hiperactividad” según los discursos neurobiologistas (Rafalovich, 2005). Los diagnósticos basados en estos paradigmas tienden a desestimar las variaciones histórico-contextuales. Por ejemplo, en las últimas décadas se han producido profundos y acelerados cambios en todos los niveles de la vida individual y colectiva, que afectaron las condiciones de vida y trabajo de la mayoría de los grupos humanos y consecuentemente las formas en que las personas han respondido a estos cambios (Timimi, 2005). Sin embargo, la respuesta mayoritaria desde los servicios de salud a, por ejemplo, la ansiedad, la depresión, y la angustia generada por estos cambios ha sido la negación de estos como procesos sociales y su diagnóstico como desajustes individuales químico-biológicos que son tratados con fármacos (Jablensky, 1999). Esto ha exacerbado la respuesta medicalizadora a los problemas emocionales, relacionales y sociales en la mayoría de los países (Lee, 2002; Conrad, Potter, 2000). Asimismo, varios estudios reportan diferencias claras entre la perspectiva europea y la estadounidense con respecto al diagnóstico del TDAH (Reid, Maag, 1997). Estas diferencias pueden deberse al uso de diferentes clasificaciones para realizar los diagnósticos, en Europa es más común el uso de la CIE-10, mientras que en los Estados Unidos se usa el DSM. El uso de la definición de TDAH de la última versión del DSM IV publicado en 1994, genera más casos diagnosticados de este trastorno que el uso de la definición de la CIE-10. Los criterios diagnósticos del DSM IV generan una prevalencia de este trastorno en la población general que varía entre 5% y 10%, mientras que usando los de la CIE-10 la prevalencia fluctúa entre 1% y 2% (Swanson et al., 1998). También se ha demostrado que las prevalencias de TDAH son más altas cuando se emplean los criterios diagnósticos del DSM-IV en 1018
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comparación con las versiones anteriores del mismo manual (DSM III y DSM III-R), independientemente del país donde se haya llevado a cabo el estudio (Polanczyk et al., 2007). El diagnóstico del TDAH usando la CIE-10 es más restrictivo y requiere una mayor precisión sintomatológica (Tripp et al., 1999). La CIE-10 requiere que el niño muestre síntomas en las tres dimensiones del TDAH (inatención, hiperactividad e impulsividad) y estos síntomas deben observarse tanto en la escuela como en el hogar. En contraste, usando el DSM-IV se pueden diagnosticar con TDAH niños que muestran síntomas en una sola dimensión, por ejemplo, inatención, y requiere que solo alguno de los síntomas se presente tanto en la casa como en la escuela. Asimismo, el DSM-IV permite diagnosticar TDAH junto con otros trastornos psiquiátricos concomitantes, lo que no está aceptado por la CIE-10 (Moffitt, Melchior, 2007). También se ha reportado que la aplicación del criterio del DSM IV y su énfasis en los subtipos de TDAH parece incrementar la frecuencia con que se diagnostica este trastorno (Skounti, Philalithis, Galanakis, 2007). A pesar de los avances científicos en las áreas de neurociencias, la mayoría de los diagnósticos psiquiátricos permanecen intrínsecamente ligados al juicio subjetivo del clínico y a la forma en que el paciente pueda comunicar sus síntomas (Strauss, 1996). Asimismo, los criterios del DSM-IV no toman en cuenta diferencias de género, socioculturales o variaciones en las etapas del desarrollo de los niños, lo que puede llevar a diferentes observadores a interpretar el mismo comportamiento de manera distinta (Rohde et al., 2005). Jablensky (1999) argumenta que el DSM está basado en la suposición de que los trastornos psiquiátricos forman categorías discretas. El DSM requiere juicios categóricos de “si/ no” con respecto a si el paciente muestra un comportamiento específico de los síntomas listados para un determinado trastorno. Esto dificulta la consideración de relaciones complejas entre los aspectos culturales y sociales con relación a la salud mental (Mezzich, Fabrega Junior, Kleinman, 1992). La evidencia que se requiere para hacer un diagnóstico con el DSM es primariamente fenomenológica y de descripción del comportamiento. Otro elemento controversial del DSM-IV son los lazos financieros de sus autores con la industria farmacéutica. Un estudio publicado en 2006 demostró que de los 170 miembros del panel del DSM, 95 (56%) tenían uno o más lazos financieros con la industria farmacéutica. El estudio indica que las relaciones financieras entre los autores del DSM-IV y las compañías farmacéuticas son especialmente fuertes en aquellas áreas diagnósticas donde los medicamentos son la primera línea de tratamiento. (Cosgrove et al., 2006) Asimismo, la industria farmacéutica ha sido eficaz en convencer a los seguros médicos de que los tratamientos con medicamentos son menos costosos que las terapias psicológicas y los ha llevado en muchos casos a negar este tipo de cobertura a sus asegurados (Horwitz, 2010). Hasta aquí hemos analizado que tanto los datos de prevalencia del TDAH como las definiciones del trastorno usadas para el diagnóstico, no son elementos objetivos o verdades inmutables en el tiempo y espacio. Estas son construcciones elaboradas por determinados grupos profesionales e investigadores influenciados por el discurso científico que hegemoniza una época, país o región y que se instala como la verdad acerca de un saber en salud. Asimismo, las definiciones de las categorías diagnósticas están, en muchos casos, influenciadas por los intereses económicos y las relaciones financieras que los grupos que lideran las organizaciones profesionales, así como las de pacientes, mantienen con el complejo médico-industrial. El problema es que el común de la población, muchos investigadores y profesionales de salud desconocen estos procesos y el discurso hegemónico se transforma en la verdad sobre el saber en salud, en este caso en torno al TDAH. Esto legitima las formas diagnósticas, los tratamientos, y la construcción y circulación de los datos estadísticos, así como la creación de nuevas biosocialidades.
Conclusiones En este artículo presentamos un análisis que contextualiza la problemática del TDAH en los procesos de reacomodamiento que el complejo médico-industrial ha realizado para mantener o acrecentar su participación económica. Estos procesos los encuadramos en la profundización de la medicalización, definida como biomedicalización y analizamos cómo la forma en que el problema del TDAH se define, cuantifica y presenta al público contribuye a la biomedicalización de la infancia. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1011-23, out./dez. 2012
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No pretendemos proveer respuestas unívocas, sino reinterpretar la situación conectando diversos procesos que aparecen desconectados en torno a la problemática del TDAH. Para esto realizamos una relectura de las transformaciones desplegadas por la industria farmacéutica para revitalizar su papel en el liderazgo del complejo médico-industrial y en el mercado de salud, a la luz de las modalidades que adquieren la construcción y utilización de los datos estadísticos, la difusión de la información, la elaboración de los manuales diagnósticos, y otros discursos que intervienen en la producción y reproducción del sentido común en torno al TDAH. Con estos análisis esperamos ayudar a contextualizar estos fenómenos en el intenso proceso de gobernabilidad biomédica que supone la internalización del control y la regulación de los cuerpos. Estos procesos están en pleno desarrollo en el campo sanitario y afectan la vida de millones de seres humanos con resultados impredecibles. Asimismo, deseamos contribuir a expandir el pensamiento crítico sobre el TDAH, favoreciendo la multiplicación de voces que analizan el problema desde distintos ángulos. Numerosos investigadores y profesionales de salud están creando y difundiendo información que ofrece otras miradas sobre estos y otros padecimientos catalogados como problemas de salud mental. La biomedicalización del sufrimiento infantil facilita el encubrimiento de los profundos cambios socioeconómicos, políticos, e ideológico/ culturales que han transformado radicalmente nuestras sociedades en las últimas décadas. Como sociedad, deberíamos preguntarnos si las conductas disruptivas y antisociales de algunos niños no nos están alertando de un malestar con una forma de producción y reproducción de las sociedades donde, por un lado se les ofrece más posibilidades tecnológicas y educativas, pero por otro se los aliena desde muy pequeños de lo lúdico, lo solidario, y lo afectivo. Cerramos este artículo parafraseando la respuesta de un paciente de 10 años a su médico: El TDAH no es un problema de desbalance químico, es un problema de desbalance en las formas de vida (Miller, 1999 p.78).
Colaboradores Las dos autoras, Celia Iriart y Lisbeth Iglesias Ríos participaron igualmente de la elaboración del artículo en lo que hace a revisiones bibliográficas, análisis y redacción del manuscrito. Celia Iriart contribuyó con el diseño del estudio, y análisis e interpretación de fuentes de información primarias y secundarias. Las dos autoras leyeron y aprobaron la versión final. Referencias AMERICAN ACADEMY OF PEDIATRICS - AAP. ADHD. Disponible en: <http://www.aap.org/healthtopics/adhd.cfm>. Acceso en: 30 nov. 2010. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION - APA. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. Arlington: American Psychiatric Association, 2000. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO DÉFICIT DE ATENÇÃO - ABDA. Disponible en: <http://www.tdah.org.br/>. Accesso en: 9 mayo 2011. CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION - CDC. Attention Deficient/ Hyperactivity Disorder (ADHD). Disponible en: <http://www.cdc.gov/ncbddd/adhd/ data.html>. Acceso en: 23 abr. 2011. CHILDREN AND ADULTS WITH ATTENTION-DEFICIT/HYPERACTIVITY DISORDER CHADD. Welcome to CHADD’s e-communities. Disponible en: <http:// www.chadd.org/AM/ Template.cfm?Section=Online_Communities_Guidelines&Template=/CM/ HTMLDisplay.cfm&contentID=9970>. Acceso en: 9 mayo 2011.
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IRIART, C.; IGLESIAS RÍOS, L. Biomedicalização e infância: transtorno de déficit de atenção de hiperatividade. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1011-23, out./dez. 2012. O artigo analisa criticamente o aumento das crianças diagnosticadas e tratadas por Transtorno de Déficit de Atenção de Hiperatividade (TDAH). As análises vinculam este crescente fenômeno às estratégias da indústria farmacêutica para se reposicionarem na liderança da conceituação do processo saúde-doença-atenção e no mercado de saúde. Utilizamos métodos analítico-interpretativos para estudar dados primários e secundários, e realizar uma extensa revisão bibliográfica. À luz do conceito da biomedicalização, analisamos os mecanismos subjetivo-ideológicos que facilitaram que este discurso se institua como uma nova verdade sobre este transtorno e seja legitimado pelos organismos governamentais e organizações da sociedade civil. A biomedicalização do sofrimento infantil dificulta que se revelem as profundas mudanças socioeconômicas, políticas e ideológico-culturais que têm transformado radicalmente nossas sociedades nas últimas décadas.
Palavras-chave: Transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). Biomedicalização. Consumidor de saúde. DSM. Complexo médico-industrial. Uso de medicamentos.
Recebido em 29/01/12. Aprovado em 07/07/12.
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Ricardo Pozzo, Ocupação Nova Primavera-CIC/Sabará, 2012
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Limites biológicos, biotecnociência e transumanismo: uma revolução em Saúde Pública?*
Murilo Mariano Vilaça1 Alexandre Palma2
VILAÇA, M.M.; PALMA, A. Biological limits, biotechnoscience and transhumanism: a revolution in Public Health?. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1025-38, out./dez. 2012. The biotechnology development provides advances in biotechnology that may initiate a revolution. In theory, there will be radical changes in the understanding, manipulation, and promotion of human life. It is possible that the so-called biological limits are exceeded, for example, freeing us from the disease process. Like the transhumanists, some are betting in the benefits, others, however, point out their hypothetical and serious harm, and it’s the case of bioconservatives. In this paper the concepts of biotechnoscience and biotechnology are defined, analyzing critically their potential; the general aspects of transhumanism are described, contributing to the development of incipient debate about this controversial movement in Brazil; and we speculate on some implications of biotechnologytranshumanism interface, analyzing if it revolutionize completely the field of Public Health or if there is continuity and discontinuity.
Keywords: Biological limits. Biotechnoscience. Transhumanism. Ambiguities. Public Health.
O desenvolvimento da biotecnociência tem propiciado avanços biotecnológicos tidos como capazes de instituir uma revolução. Hipoteticamente, haverá mudanças radicais quanto à compreensão, manipulação e promoção da vida humana. A perspectiva é de que os chamados limites biológicos possam ser superados, libertando-nos, por exemplo, do processo do adoecimento. À semelhança dos transumanistas, alguns apostam nos benefícios disso; outros, contudo, ressaltam seus hipotéticos e graves malefícios, como é o caso dos bioconservadores. No presente artigo, definem-se os conceitos de biotecnociência e biotecnologia, analisando-se criticamente seus potenciais; descrevem-se os aspectos gerais do transumanismo, contribuindo para o desenvolvimento do ainda incipiente debate, no Brasil, sobre esse polêmico movimento; e especula-se sobre algumas implicações da interface biotecnociência-transumanismo, analisando-se se ela revolucionará completamente o campo da Saúde Pública ou se haverá continuidades e descontinuidades.
Palavras-chave: Limites biológicos. Biotecnociência. Transumanismo. Ambiguidades. Saúde Pública.
* Elaborado com financiamento da Capes. 1 Programa de Pósgraduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo de São Francisco de Paula, n.1. Centro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.051-070. contatoacademico@ hotmail.com 2 Programa de Pósgraduação Stricto Sensu em Educação Física, Escola de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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O humano nos limites da biologia: considerações iniciais O humano pode ser considerado como apenas mais um tipo de ser vivo terrestre (Savulescu, 2009). Ainda que soe reducionista, a natureza humana pode ser concebida meramente pela dotação de faculdades cognitivas e emocionais, conforme defende Pinker (2002), associadas a outras características (por exemplo, bioquímicas, físicas, comportamentais) compartilhadas pelos espécimes sadios do Homo Sapiens, o que apontaria, exclusivamente, para os chamados universais biológicos, bem como para dada concepção de normalidade. Tal questionável perspectiva apoia-se em aspectos numéricos e normativos. Aqueles referem-se à observação de traços fenotípicos mais comuns na espécie; estes concernem àquilo que constituiria um indivíduo não defeituoso, que desfruta de um ‘bom’ funcionamento das funções biológicas tidas como mais importantes, o que, hipoteticamente, favoreceria o florescimento humano. Malgrado haja uma relação inextrincável entre biologia, diferenças culturais, ambientais e individuais, criando uma interdependência biologia-ambiente (Dupré, 2001), o humano seria, fundamentalmente, a expressão daquilo que a biologia permite. A biologia delimitaria, inclusive, como a interação do humano com o meio ambiente pode influenciá-lo. A biologia humana é ambígua, conferindo à espécie certas capacidades de alta complexidade (linguagem, raciocínio etc.), mas, também, impingindo certos limites. Deficiências, doenças e a morte são exemplos. Estas poderiam ser interpretadas como índices de precariedade e vulnerabilidade igualmente inerentes à condição humana, isto é, fariam parte da normalidade biológica humana, o que contestaria a perspectiva supracitada. Um ponto que deve ser sublinhado é que, contígua aos juízos de fato, há a presença de juízos de valor a partir dos quais é escolhido o que deve constituir a natureza humana, distinguindo o que deve ser combatido ou promovido, o ‘mal’ e o ‘bem’. Assim, ainda que doenças e deficiências façam parte da natureza humana, a humanidade vem travando uma luta incessante contra elas (Porter, 2004), expressando um juízo de valor acerca dessas facetas da condição humana. Sem analisar o polêmico debate sobre a natureza humana, tampouco endossar um reducionismo biológico (Dupré, 2001; Goldsmith, 1991), para nós, o mais importante é ressaltar que, embora qualquer ser vivo tenha limites biológicos, o humano é o único que os problematiza, o que sugere uma valoração negativa deles. Os meios criados para contorná-los ou, no limite, superá-los - por meio dos quais o humano parece tencionar tornar a sua vida ‘melhor’, mais ‘segura’, ‘feliz’, longínqua ou, quiçá, ilimitada - são indícios disso. Como identificadoras do humano, ainda que parcialmente, são essas características/capacidades de julgar e manipular que ressaltamos neste artigo, as quais se traduzem em duas iniciativas que serão examinadas quanto às suas características e efeitos para o campo da Saúde Pública, a saber: o par biotecnociência-biotecnologias e o pensamento transumanista. Nossos objetivos são: (1) definir os conceitos de biotecnociência e biotecnologia, analisando criticamente seus potenciais; (2) descrever os aspectos gerais do movimento transumanista, refletindo sobre suas controvertidas ideias; (3) especular sobre algumas implicações da biotecnociência associada ao transumanismo para o campo da Saúde Pública.
A odisseia humana da automanipulação O controle, promoção e melhoramento da vida parecem ser uma obsessão exclusivamente humana (Bostrom, 2005a; Porter, 2004). Isto pode ser constatado em iniciativas individuais ou de conjunto, de cunho científico ou não, para: prevenir e curar doenças e deficiências; promover a ‘saúde’; contornar o processo de envelhecimento; aperfeiçoar capacidades; ou alcançar, no limite, a imortalidade. Dentre as formas que os humanos inventaram para buscar esses fins, as biociências possuem grande destaque. Uma parcela bastante representativa dos humanos tem investido nelas, subescrevendo a ideia de que a vida pode ser racional e artificialmente manipulada.
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No tocante ao processo saúde-doença e ao seu controle técnico-político, as biociências formam, com a noção de Saúde Pública, um conjunto de medidas historicamente relevante. Como uma miríade de estratégias governamentais de esquadrinhamento, vigilância, prevenção e tratamento voltadas para uma população – que não está restrita ao determinante biológico, mas também atenta aos sociais –, ela desponta, pelo menos desde o século XVIII, como uma das mais intensivas e extensivas medidas de promoção da vida (Foucault, 2007) e de construção da subjetividade humanas (Ferreira Neto et al., 2011). Os recentes avanços biotecnocientíficos são interpretados, por alguns, como capazes de revolucionar os modos como a vida humana tem sido compreendida, manipulada e promovida. Expandindo-se para além da terapia, eles aguçam, sobremaneira, a imaginação acerca do ‘aperfeiçoamento’ humano. Conforme Vilaça e Palma (2011) analisam criticamente, as possibilidades de alteração associadas a ele ampliam-se, suscitando transformações importantes no que tange ao poder do homem sobre si mesmo. Isto suscita dilemas epistemológicos, éticos e políticos que não são propriamente novos, uma vez que os sonhos de perfeição são, há muito, criticados. Entre riscos e benefícios, bem como ameaças e promessas, estamos perenemente diante de ambiguidades desconcertantes que impõem uma constante reflexão crítica. Quanto aos possíveis benefícios que a biotecnociência já tem oportunizado e poderá disponibilizar, especialmente em razão dos avanços da genética, destacam-se: o tratamento de ‘males’, como deficiências e doenças, e a promoção de ‘bens’, como a saúde e o bem-estar. Embora não saibamos se tal interpretação ou percepção é universal, parece-nos razoável considerar doenças e deficiências como características naturais, logo, inerentes à condição biológica do humano. Todavia, elas são tidas como índices de precariedade e imperfeição, sendo consideradas males. Aqui, elas serão compreendidas como expressões dos limites biológicos humanos com os quais não lidamos, no mínimo, de modo confortável. Em nível diverso, elas representam empecilhos à existência humana, pois impingem restrições, dor e sofrimento. As propaladas revolução biotecnológica e Era genética inaugurariam, hipoteticamente, um novo e promissor estágio quanto aos meios de tratamento desses males. Supõe-se que ingressaremos numa fase marcada pela maior eficácia dos seus tratamentos (Buchanan et al., 2001) ou, no extremo, até mesmo pelo seu desaparecimento, haja vista a superação dos limites biológico-estruturais humanos (Bostrom, 2005a). A radicalização da previdência pelas terapias genéticas pré-nascimento; os fármacos individualizados e sem reações adversas; a cura de males ou sua absoluta erradicação; o aperfeiçoamento de capacidades físicas, mentais, psicológicas e morais estão no horizonte biotecnocientífico de possibilidades e metas. Entretanto, se, por um lado, as biotecnologias são consideradas como algo sobre o qual deveríamos investir; por outro, elas vêm sendo alvo de críticas. Uma das vertentes filosóficas que têm refletido sobre essa ambiguidade, sobretudo no que se refere às consequências das novas biotecnologias para o futuro humano, é o chamado transumanismo. Os transumanistas, grosso modo, creditam à biotecnociência o poder de ‘melhorar’ a vida humana, ainda que isso implique uma nova forma de vida: a pós-humana. Esta seria marcada pela superação dos limites humanos biologicamente estruturados (físicos, mentais, psicológicos, comportamentais) e pela consequente maximização de capacidades, visando ao prolongamento da vida, à elevação dos níveis de ‘saúde’ e ‘bem-estar’, evitando dor e sofrimento desnecessários e involuntários (Bostrom, 2003). O transumanismo defende um amplo, mas normativamente responsável, desenvolvimento de biotecnologias, investindo nas ideias de Human Plus (humanos ‘mais’, ‘positivados’) e Human Enhancement (‘aperfeiçoamento’ humano). Na interface biotecnociência-transumanismo está, então, uma ambígua e controvertida forma de lidar com a vida humana. A seguir, encetamos o cumprimento dos nossos objetivos para responder à questão central deste artigo.
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Biotecnociência contra os limites biológicos: o humano numa fronteira ambígua A biotecnologia tem uma história secular, sendo aplicada a diversos âmbitos (Morris, 2006). Contudo, as gerações da metade do século XX em diante têm assistido a um inédito aceleramento das transformações da ciência e da técnica, incluindo o impressionante desenvolvimento da biotecnologia. Fukuyama (2003), que defendera o fim da história e o último homem, chega a afirmar que tal desenvolvimento é capaz de reiniciar, noutras bases, a história da humanidade. Os potenciais biotecnológicos geram dilemas éticos relativamente novos acerca da relação entre ciência e técnica, especialmente no tocante à manipulação e instrumentalização da vida humana (Habermas, 2004). Conforme ressalta Jonas (1997), uma indiferenciação entre ciência e técnica, pautada por fins pragmáticos, tem estreitado o horizonte da reflexão especulativa. É como se a reflexão tivesse sido colonizada pela razão instrumental-calculadora de tipo meios-fins, dando especial lugar à tecnociência. Típica da modernidade, essa modalidade de razão e seus efeitos possuem críticos. Jürgen Habermas, ao analisar a racionalidade moderna, afirma que o capitalismo tardio é caracterizado por uma união indissociável entre ciência e técnica (Habermas, 1997). No contexto da ideologia capitalista, como há uma tecnicização da ciência e uma cientificação da técnica, “cria-se assim uma perspectiva na qual a evolução do sistema social parece estar determinada pela lógica do progresso técnico-científico” (Habermas, 1997, p.73 – grifo do autor). A medicina parece influenciada por essa lógica. É importante, assim, compreendê-la no contexto biotecnocientífico. A relevância dos saberes e práticas médicos, por exemplo, sobre o discurso de verdade acerca da saúde e do bem-estar, repercute fortemente sobre a prescrição e proscrição de estilos de vida, exercendo poder medicalizador e normalizador sobre indivíduos e populações (Foucault, 2007). Sob um enfoque pragmático, o que está na mira da biotecnociência são os fins práticos, como o tratamento ou cura de doenças, o alívio da dor e do sofrimento, ou a promoção da saúde. Segundo Schramm (2005), a biotecnociência pode ser entendida como um conjunto de ferramentas teóricas, técnicas, industriais e institucionais que visa a pesquisar e transformar seres e processos vivos, conforme o parâmetro da saúde, objetivando, grosso modo, promover um genérico bem-estar de indivíduos e populações. Ela é um neologismo que indica a interação entre sistemas complexos nos quais se constituem os seres e os ambientes vivos, a fim de agir sobre eles, por meio de um sistema técnico e informacional, bem como de dispositivos que objetivam orientar tal intervenção (Schramm, 2010). Como “[...] um paradigma científico, que cria as condições de possibilidade e orienta o conhecimento dos fenômenos e processos vivos, assim como as intervenções que visam a seu controle e transformação”, a biotecnociência “refere-se, em particular, às atividades da medicina e da biologia amplamente entendidas, dos sistemas de informação e comunicação, da biopolítica, e a suas interações” (Schramm, 2010, p.191). Conforme Schramm (2010), tecnociência e biotecnociência diferenciam-se. Concluindo sua análise sobre o temor relativo à biotecnociência, ele aduz o paradoxo inerente à tecnociência, a saber, que ela pode gerar novos riscos ao tentar superar antigos, para afirmar que [...] a biotecnociência tem algo a mais, pois é a tecnociência aplicada a organismos vivos, inclusive aos organismos humanos. Assim sendo, a diferença entre tecnociência e biotecnociência reside no fato de que a biotecnociência manipula sistemas vivos que, contrariamente aos sistemas não vivos, são sistemas autopoiéticos, em princípio “renováveis”, graças ao metabolismo [...] e à reprodução [...]. (Schramm, 2010, p.195-196. Grifo no original)
Ainda que não fique claro o porquê de a biotecnociência lidar com recursos renováveis e autopoiéticos seria suficiente para não a temermos; Schramm (2010, p.196) assevera que A biotecnociência permite contornar o problema da penúria em prol de nossos interesses de consumo e bem-estar. Portanto, a biotecnociência permite abrir novos campos de
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saber-fazer, com potencialidades praticamente infinitas representando, dessa forma, uma verdadeira revolução cognitiva, técnica e prática.
Desse paradigma biotecnocientífico, derivam as biotecnologias, no plural, aplicadas a vários campos. Embora o conceito seja relativamente impreciso, pode-se estabelecer um consenso mínimo, segundo o qual a biotecnologia seria o conjunto de técnicas de manipulação de seres vivos, completa ou parcialmente, para obter bens ou fornecer serviços, técnicas e instrumentos. Quer dizer, ela produz meios de intervenção tanto sobre a constituição genética de dado ser vivo, o que interferiria, em princípio, sobre ‘toda’ a sua configuração orgânico-biológica, quanto sobre a alteração de uma característica especificamente. Uma ressalva é necessária para esclarecer o nosso entendimento sobre o polêmico determinismo biológico. Para nós, o determinismo biológico é relativo, referindo-se, exclusivamente, à estrutura biológica básica, determinando apenas as condições de possibilidade fundamentais. Esta estrutura é condição necessária, mas não suficiente, daquilo que resultará em uma vida individual. Quer dizer, há um determinismo de fundamentos concernente a como dado organismo biológico se ordena, mas a relação com o meio ambiente é igualmente determinante, como argumenta Dupré (2001). Inobstante, ainda que não se possa antever todo o futuro com a ‘leitura do genótipo humano’, já que diferentes parâmetros podem gerar distintas configurações vitais, os princípios já estão definidos de antemão na biologia, sendo condição de possibilidade de toda configuração vital. Em suma, os princípios (base biológico-genético-estrutural) regulam como os parâmetros (aspectos socioambientais) influenciarão a constituição individual. Feita a observação, retornemos à análise da biotecnociência. Há uma multiplicidade de aplicações, todas envolvendo dilemas: na agricultura, com a produção de transgênicos, e o que isso pode acarretar para ‘bem’ e para ‘mal’ em termos ecológicos e alimentício-nutricionais; na medicina e farmacologia, cujos potenciais beneficentes e maleficentes são semelhantemente alardeados; no controle social, cuja intervenção pode se apoiar em medidas pré-nascimento (Morris, 2006), o que nos coloca entre a terapia e o fascismo. Polarizações à parte, parece consensual que a revolução biotecnológica, intimamente ligada à denominada Era genética, representará mais um ponto de inflexão na história da humanidade (Fukuyama, 2003; Buchanan et al., 2001; Victorino, 2000; Rabinow, 1999). A biotecnociência e as biotecnologias afetam e afetarão, cada vez mais, as pessoas, tendo um impacto global, modificando, até mesmo, o modo como nos compreendemos e socializamos (Rabinow, 1999). Como vimos naquela definição de biotecnociência, esta seria promotora do bem-estar e da saúde. Considerando que ambos são tidos como ‘bens‘ na atualidade (Ortega, 2008), tudo que os promove tende a ser normativamente aprovado. Se a noção (imprecisa, por sinal) de saúde – que, pelo menos, desde o século XVIII, tornou-se um imperativo (Foucault, 2007), assumindo traços de moralidade na contemporaneidade (o Healthism ou ‘moralidade da saúde’) (Ortega, 2008) – e a igualmente vaga noção de bem-estar desfrutam do estatuto de um bem, não promovê-las pode ser considerado um mal. Assim, a associação argumentativamente estratégica da biotecnociência à promoção de tais vagos ‘bens’ parece querer persuadir sobre o seu caráter benfazejo. A lógica supracitada pode ser traduzida silogisticamente: (premissa 1) se, e somente se, doenças e deficiências impingem dor ou sofrimento a um ser senciente e isso é um mal; (premissa 2) e se, e somente se, podem ser evitadas; (conclusão) não evitá-las seria um ato de profunda e injustificável insensibilidade moral, indiferença ou sadismo. Em suma, ao passo que causar ou permitir que sejam causados dor e sofrimento seria um mal, poder evitar, mas não fazê-lo, seria igualmente um mal, e, portanto, moralmente reprovável. Consequentemente, a escolha seria menos de usar ou não, aprovar ou não as biotecnologias do que de fazer um bem ou um mal. Em tese, a biotecnociência e as biotecnologias primam pela beneficência. Contudo, na prática, isso não está absoluta e aprioristicamente garantido. Os motivos são diversos. Por um lado, podemos citar os limites (epistemológicos) próprios de uma ciência tipicamente experimental, como as biomédicas, que estão diretamente ligados à variabilidade dos corpos sobre os quais intervêm.
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A equivocidade científica merece atenção. As ciências erram, conforme a provocativa epistemologia histórica de Canguilhem (2010). São conhecidos e, por vezes, desastrosos os casos em que uma descoberta (ou invenção) científica, além de não ter cumprido todo o benefício prometido, sequer foi capaz de prever ou foi previdente o suficiente para evitar malefícios maiores do que os males que pretendia tratar (como exemplo, reportamo-nos à conhecida ‘geração de bebês talidomida’). Os saberes e práticas biomédicos, tidos, prima facie, como os protagonistas da promoção da saúde e do bem-estar, não asseguram eficácia ou beneficência a priori. Essa questão está diretamente ligada a aspectos - se é possível falar nesses termos - não exclusivamente epistemológicos, mas éticos, sociopolíticos e econômicos. Um deles é uma precária formação acadêmica em ética relacionada à pesquisa, o que pode levar os profissionais a uma acriticidade, por vezes até mesmo ingênua, acerca dos determinantes e das consequências de dado estudo ou técnica. Há, ainda, a má-fé deliberada de pesquisadores inescrupulosos, que, ante as investidas sedutoras e, em certa medida, deterministas dos ‘mecenas moderno-contemporâneos’ da ciência – quais sejam, as agências de fomento, e, sobretudo, as indústrias farmacêuticas –, desconsideram ou subestimam os males que podem ser causados em nome de interesses particulares. A relação das biociências e seus produtos (modos como as pesquisas são desenvolvidas, originando técnicas, fármacos, modelos de diagnose e tratamento etc.) com interesses políticos e econômicos é um exemplo de quanto se pode oferecer riscos e causar danos aos indivíduos. Elliott (2010), Miguelote e Camargo Jr. (2010) e Angell (2004) são alguns exemplos de estudos que analisaram os meandros da complexa e problemática influência da megaindústria farmacêutica sobre as pesquisas científicas e práticas médicas. Que doenças são estudadas; como as pesquisas são feitas; quais, onde, quando e a que preço os fármacos são disponibilizados, são decisões fundamentais, que parecem passar necessariamente pelo crivo daquela indústria. Em suma, aquele conjunto de ferramentas pautado na lógica da biotecnociência é dubitável, ambíguo, falível. Isto justifica que preservemos, ao lado da confiança, certa desconfiança prudente. É fato que as ciências, não apenas as biológicas, têm a ambígua possibilidade de fazer o bem e/ou o mal. Assim, cabe a quem faz ciência, a quem produz técnicas assumir uma postura diligentemente cuidadosa com a guarda dos procedimentos inerentes à pesquisa científica, sendo constantemente crítica e humilde diante das (im)possibilidades da ciência, e intransigentemente voltada para a beneficência ou, no mínimo, a não-maleficência, dois princípios que a bioética consagrou. Em que pesem tais observações, é fato, também, que confiança e esperança justificadas e difusamente compartilhadas no tocante às biociências permanecem fortalecidas. Isto é, ao passo que uma confiança irrestrita seria desaconselhável, uma incredulidade completa seria irracional. Em razão da sua eficácia e benefícios comprovados, é razoável recorrer a elas para cuidar da ‘saúde’, ter ‘bem-estar’ e ‘melhorar’ a vida. Neste sentido, elas preservam o seu lugar privilegiado no horizonte eugênico. A eugenia é uma ideia bastante antiga e controversa, traduzida por uma miríade de iniciativas humanas para promover o ‘melhoramento’ da raça humana (Diwan, 2007). Ela não se restringe à ideia de ‘aperfeiçoamento’ biológico de cunho científico, mas se estende a um amplo espectro de meios (por exemplo, educacionais) e de traços humano-existenciais perfectíveis (comportamentais, relacionais, estéticos, éticos, políticos). Todavia, a sua face mais proeminente e nefasta é a biológico-científica. Não são raros os exemplos de atrocidades cometidas contra alguns humanos, que, especialmente pela sua situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica, são usados como cobaias humanas, até mesmo por parte de regimes ditos democráticos3. Contudo, tal histórico não nos tem afastado dos ideais de ‘melhoramento’ da condição humana. A eugenia costuma ser desmembrada em duas modalidades, a negativa e a positiva. A distinção entre eugenia negativa e eugenia positiva – por sinal, questionável quanto à sua clareza e razões justificadoras (Dias, Vilaça, 2010) – pauta-se pela separação entre intervenções terapêuticas e aperfeiçoadoras, respectivamente (Habermas, 2004). Para os chamados bioconservadores, um grupo de pensadores variados, incluindo Habermas, Fukuyama, Kass, McKibben, que, grosso modo, têm se posicionado contra a manipulação genética para o aperfeiçoamento humano, enquanto a negativa é moralmente justificada, a positiva é reprovável. Resumidamente, eles creditam ao ‘aperfeiçoamento’ 1030
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biotecnocientífico o poder de solapar a dignidade, a autenticidade e a autonomia humanas. Diante do potencial biotecnocientífico, é razoável surgirem questões, tais como: devemos apostar em um novo estágio da evolução humana, fruto da manipulação racional do patrimônio genético humano? Os riscos potenciais, que sequer são integralmente previsíveis, não seriam um chamado à prudência e ao bioconservadorismo? É razoável levar a meta do ‘melhoramento’ humano em frente, buscando a superação da dor, do sofrimento e dos limites biológico-estruturais-estruturantes do humano? Contrariamente aos bioconservadores, os transumanistas, grupo igualmente variado de pensadores, apostam em um futuro biotecnocientífico e pós-humano, em que a fronteira terapia-eugenia seja superada. O transumanismo defende o amplo desenvolvimento da biotecnociência e das biotecnologias, o que o torna controvertido e digno da abordagem a seguir.
artigos
Um caso recentemente publicado refere-se a pesquisas estadunidenses na Guatemala, envolvendo a deliberada contaminação de guatemaltecos por doenças sexualmente transmissíveis.
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Transumanismo e human plus: para além dos limites humanos O avanço da biotecnociência é visto de forma assustadora, por alguns, e promissora, por outros. Do lado promissor, destaque-se a promoção de uma vida pós-humana, fruto da superação dos limites biológicos humanos. Segundo Jotterand (2010, p.617), “o desenvolvimento de biotecnologias emergentes está à beira de redesenhar as fronteiras da existência humana”. Interfaces cérebro-computador (BCIs), neuroaperfeiçoadores, membros biônicos etc. são exemplos de biotecnologias de aperfeiçoamento humano. Doenças incuráveis e deficiências que impingem dor, sofrimento e sérias limitações funcionais poderiam, prospectivamente, ser definitivamente erradicadas. Defendendo a validade dessa aposta no futuro (pós)humano, temos os transumanistas. De acordo com Nick Bostrom (2005a, 2003), o transumanismo é um movimento vagamente definido, desenvolvido gradualmente nos últimos vinte anos, que aborda interdisciplinarmente a compreensão e avaliação das oportunidades para melhorar a condição humana, o organismo humano, aperfeiçoando capacidades físicas, mentais e emocionais através da biotecnologia disponível ou em desenvolvimento. Ele ressalta que a extensão da saúde e da vida (longevidade), erradicação de doenças e incremento do bem-estar, bem como a eliminação da dor e sofrimento involuntários e/ou desnecessários, tanto na perspectiva da liberdade morfológica quanto da reprodutiva, são objetivos do transumanismo (Bostrom, 2005b). Um importante pensador que contribuiu para a formulação da filosofia transumanista moderna é Max More. Em 1990, ele definiu o transumanismo como uma corrente filosófica que busca nos guiar à condição pós-humana, num processo perpétuo de superação dos limites (biológicos) do humano, com um emprego escrupuloso da razão, da ciência, da lógica e do pensamento crítico, visando à valorização da existência humana (More, 1990). Complexo, com variantes internas importantes – por exemplo, o extropianismo, o abolicionismo, o transumanismo libertário, democrático e o anárquico – o transumanismo, como um movimento filosófico, intelectual, cultural e científico, pode ser compreendido como uma consequência do humanismo secular e do Iluminismo (Bostrom, 2003). Os transumanistas, em sentido amplo, consideram que a humanidade está perante a possibilidade de ampliar o potencial humano, dando lugar a uma nova espécie, a pós-humana. De acordo com Savulescu (2009), pós-humana é a forma de vida desfrutada por “seres originalmente ‘evoluídos’ ou desenvolvidos a partir de seres humanos, mas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1025-38, out./dez. 2012
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significativamente diferentes, de tal modo que não são mais humanos em qualquer aspecto significativo” (p.214). Segundo Bostrom (2005b, p.203), os pós-humanos são “seres que podem ter saúde sem fim, faculdades intelectuais muito maiores do que as dos seres humanos atuais – e, talvez, sensibilidade ou modalidades de sensibilidade inteiramente novas – assim como a habilidade de controlar suas próprias emoções”. Tal estágio seria alcançado pela aplicação de técnicas de manipulação e artificialização da vida, o que é visto pelos transumanistas como uma possibilidade promissora e tangível. Uma espécie de abertura otimista ao horizonte biotecnocientífico para dar um plus na humanidade (torná-la mais ‘feliz’, mais longeva, mais ‘saudável’ etc.) pode estar suscitando uma perigosa simplificação do pensamento transumanista. Segundo seus críticos, ele seria absoluta e acriteriosamente favorável ao irrestrito uso das biotecnologias, colocando o humano à disposição delas. Mas, segundo argumentam os transumanistas, o objetivo seria justamente o oposto, quer dizer, subordinar a biotecnociência aos interesses dos humanos. Os transumanistas não são ingênuos e inconsequentes tecnicistas. A lista de valores reguladores da biotecnociência sugerida por Bostrom (s./d.) comprova isto. A biotecnologia deve vir associada a uma preocupação crítica permanente. Quer dizer, deve existir uma gama de meios tanto para avaliar presumivelmente as consequências quanto para criteriosamente indisponibilizar certas técnicas, caso apresentem, concretamente, algum malefício ao humano (Bostrom, s./d.). Para Bostrom (2003), embora as biotecnologias (nanotecnologia molecular, inteligência artificial, neurofarmacologia etc.) possam gerar benesses, os transumanistas estão atentos aos riscos e malefícios, uma vez que eles “reconhecem que algumas dessas tecnologias podem causar grande dano à vida humana, oferecendo riscos até mesmo à sobrevivência da nossa espécie” (Bostrom, 2003, p.5). Como se vê, os conceitos de malefício e benefício, ambos relativamente vagos, norteiam o debate. Portanto, cabe problematizá-los. Por exemplo, pode-se considerar que tornar as pessoas mais longevas, vivendo cento e cinquenta anos ou mais, com a saúde preservada, sem doenças ou sofrimento, seja algo benéfico. Mas, em contrapartida, o resultado deste ‘bem’ poderia ser um ‘mal’, pois um aumento demográfico poderia acarretar problemas em termos, por exemplo, de oferta de recursos necessários à sobrevivência, como alimentos, água, trabalho e espaço. Ou seja, uma mesma intervenção pode gerar efeitos ambíguos, relativamente benéficos e relativamente maléficos, cabendo, portanto, avaliá-los ampla, diligente e criticamente. Inobstante a importante observação, em suma, o transumanismo é um humanismo de cunho tecnocientífico, que visa a promover a disponibilização de recursos, para que os sujeitos, no uso da sua liberdade e baseados em informações, usem novas formas de tratamento, decidindo sobre o (auto)aperfeiçoamento, bem como sobre a seleção da descendência. Suas prioridades envolvem o combate às doenças e deficiências, bem como a promoção da saúde e o bem-estar através das biotecnologias, quer isso represente uma terapia quer um aperfeiçoamento, coadunando-se com a opção de tratar as doenças e deficiências como males. Nesse sentido, as iniciativas de evitá-las ou curálas seriam um bem à humanidade. Vejamos, então, alguns argumentos que ajudam a ratificar esse entendimento. Glover (2006) analisa a deficiência como uma limitação funcional, não sendo mera desvantagem socialmente construída. Deficiência não envolve qualquer forma de limitação funcional, mas apenas aquelas que comprometem capacidades indispensáveis ao florescimento humano, o qual, por sua vez, está relacionado à normalidade biológica. Para ele, a deficiência compromete a normalidade, envolvendo uma limitação funcional que, por si mesma ou na combinação com alguma desvantagem social, prejudicaria a capacidade de qualquer ser humano exercer o estado pujante atinente à espécie. Carmichael (2003) afirma que uma deficiência gera, seguramente, um intenso sofrimento tanto à família quanto ao indivíduo que foi vitimado, por exemplo, por um ‘acidente genético’. Citando a Fragile X Syndrome, relativa a uma deficiência intelectual que compromete a capacidade de aprendizagem do indivíduo, ela argumenta que o acesso a biotécnicas decorrentes do Projeto Genoma Humano, como, por exemplo, o Diagnóstico genético pré-implantacional, pode ser a forma mais confiável de prevenir deficiências até o presente estágio do conhecimento humano. Parece-lhe, e também a nós, completamente aceitável e, sobretudo, moralmente justificável que os pais utilizem técnicas disponíveis para evitar uma deficiência ou, mesmo, diagnosticar futuros males, e decidir levar 1032
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ou não uma gestação adiante, caso não haja possibilidade de cura. Caso haja, seria praticamente uma obrigação moral aplicá-la. Se a deficiência impõe um encurtamento do horizonte humano de florescimento e impinge dor e sofrimento ampliados, parece-nos racional, razoável e beneficente buscar evitá-la, quer tratando, quer evitando o nascimento. Em ambos os casos, os pais, assessorados por médicos e outros profissionais da saúde, tomariam a decisão – complexa, por sinal – de evitar seu próprio sofrimento, assim como o da sua descendência. Numa expressão partilhada pelos transumanistas, deve-se garantir a oportunidade da escolha genética, até mesmo como uma forma de promover a justiça, pois as deficiências e doenças constituem uma forma de desigualdade entre os humanos (Bostrom, 2005b; Buchanan et al., 2001). Para Glover (2006), a deficiência e a doença devem ser compreendidas em contraste com a normalidade, o que expressa dada concepção de normalidade biológica. Esta é compreendida como um conceito numérico, mas também normativo. Segundo ele, por exemplo, ainda que a maior parte dos humanos seja infectada com o HIV/Aids, continuaremos a vê-lo como causador de uma doença, algo anormal. Indubitavelmente, o campo da fronteira entre o normal e o patológico é tenso. Em que pesem diferentes cientistas ou filósofos utilizarem a noção de doença, a ausência de uma definição precisa ou consensual faz com que ele se refira a ideias, objetos e interpretações distintos. Caprara (2003) desenvolve, à luz da hermenêutica filosófica, uma argumentação no sentido de que há uma diversidade considerável de significações de doença. Há divergência, por exemplo, em relação ao que a constitui e/ ou causa; a que tipo de experiência ou fenômeno refere-se; que simbolismos a caracterizam; e qual a sua relação com a saúde. Isso poderia levar a inferir que algo identificado como doença por um indivíduo ou sociedade, provocando, em tese, dor e sofrimento não apenas físicos, mas de outras ordens (psicológica, social, mental), poderia não ser assim percebido em outros casos, não causando tais sensações. De fato, essa conclusão é plausível, pois, como está vastamente argumentado na literatura sobre o tema, a fenomenologia da doença compreende múltiplos fatores. Contudo, parece-nos que o termo doença remete-se, via de regra, à percepção de um mal, de algo indesejável. A fim de corroborar tal entendimento, mencionaremos, apenas, alguns aspectos antropológico-semânticos e etimológicos atinentes à doença. Gomes, Mendonça e Pontes (2002), a partir da análise antropológica de Laplantine, explicam que este autor destacava que a língua francesa possui uma só palavra para designar doença: maladie. A língua inglesa, entretanto, dispõe de três vocábulos: disease, que poderia significar como a doença é compreendida pelo conhecimento médico; illness, que designaria, de um modo, a doença como é experimentada subjetivamente pelo doente, e, de outro, como tem sido vivenciada pela sociedade através dos comportamentos socioculturais associados à doença; e, por fim, sickness, que diz respeito a algo menos grave e mais incerto, como o mal-estar. Em português, os termos doença ou enfermidade têm sido empregados sem distinção. A origem etimológica do vocábulo doença deriva de algumas palavras latinas (dolentia, de dolens) que significam ‘dor’; ‘que se aflige e causa dor’; ‘doer, sentir dor, sofrer física e moralmente’. Por outro lado, enfermidade (infirmitas, atis, de infirmus) tem suas origens em algo que exprime ‘fraqueza, debilidade, compleição fraca’. Em resumo, ainda que haja variâncias hermenêuticas, sociais, culturais e fenomenológicas, a expressão doença, desde a sua origem, envolve a atribuição de um sentido negativo, não definindo algo bom, ‘positivo’ ou ‘desejável’, um bem. Assim, a promoção do ‘bem saúde’ pode ser comprometida pela ocorrência de deficiências, de modo que é criada uma espécie de ‘círculo maléfico’ que a biotecnociência pode interromper. Quanto à responsabilidade de evitar o ‘mal doença’, em síntese, para o posicionamento da Nova Saúde Pública, especificamente após a Carta de Ottawa, os sujeitos adoecem porque ‘são fracos de vontade’ e merecem o seu sofrimento, uma vez que seriam capazes de cuidar de sua própria saúde e, portanto, responsáveis pelo seu destino e alvo justificado de repulsa moral, caso adoeçam. Assim, o foco no autocuidado tornou-se a armadilha do higienismo (Gaudenzi, Schramm, 2010; Ortega, 2003). Cumpre sublinhar, porém, que o novo paradigma instituído pela Nova Saúde Pública (Gaudenzi, 1033
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Schramm, 2010) tem de pressupor o gozo de certas capacidades humanas básicas (físicas, mentais e psicológicas) ligadas, por exemplo, à ‘autonomia’. Quanto a isso, é pertinente aduzir uma observação de Carmichael (2003). Segundo ela, os indivíduos acometidos por aquela síndrome são incapazes de prover a própria saúde, ficando completamente dependentes do cuidado alheio. Ou seja, algumas deficiências são capazes de minar certas funções biológicas fundamentais, comprometendo a sobrevivência de dado indivíduo, tornando-o radicalmente dependente dos outros para prover a sua saúde. Assim, o paradigma do autocuidado enfrentaria um grande óbice. Esse caso mostra como a biotecnologia pode – isto é, carrega em si o potencial de –, contribuir para certa concepção de melhoramento vital, qual seja, gerar uma vida ‘mais autônoma’, que goze de certas condições de possibilidade da promoção da saúde. Como argumenta Bostrom (2005b), em nome da dignidade pós-humana, seria amplamente justificável o incentivo de pesquisas que possam produzir novas técnicas de diagnose e terapia, ampliando, assim, a possibilidade de escolha humana sobre o que fazer da sua existência, visando à melhor vida possível, o que pode alterar alguns paradigmas do campo da Saúde Pública.
Biotecnociência e Saúde Pública: uma completa revolução? Como em um futuro cenário biotecnocientífico podem ocorrer importantes mudanças quanto aos modos de promoção da saúde e do bem-estar, um dos campos afetados seria o da Saúde Pública. Petersen e Luptom (2000) afirmam que, apesar do âmbito de aplicação da Nova Saúde Pública e de seu impacto sobre um desmesurado número de aspectos da vida cotidiana, surpreendentemente, ainda tem ocorrido pouca análise crítica a respeito de determinadas questões. Pouca atenção tem sido dada à análise dos princípios fundamentais, dos conhecimentos, dos discursos de verdade e das práticas que cercam as intervenções relativas ao campo, bem como às potenciais mudanças frente àquele futuro cenário. As mudanças relativas à Saúde Pública são uma constante na história. Em seu clássico “Uma História da Saúde Pública”, Rosen (1994) sustenta uma periodização marcada por acontecimentos históricos de grande magnitude que permitiram determinadas guinadas nas formas de lidar com a saúde das populações. Por exemplo, se, na Idade Média, apregoava-se um conhecimento sobre a saúde baseado em preceitos religiosos; no Renascimento, foi possível observar, especialmente por conta das obras de Vesálio e Harvey, a construção das bases médico-científicas da anatomia e fisiologia; nos séculos XVIII e XIX, por sua vez, tornou-se oportuno o uso das estatísticas oficiais, através de uma espécie de ‘política aritmética’. Por seu turno, as descobertas de Pasteur e Koch, principalmente, deram início à Era Bacteriológica, cujo elemento específico da doença foi descoberto. A causa, decorrente da presença de microrganismos (vírus, bactérias, bacilos etc.), pôde, enfim, ser conhecida e eliminada ou prevenida. Em que pesem algumas dessas ideias terem sido superadas, outras permanecem, mesmo em essência. A ideia do determinismo de causa e efeito, presente na Era Bacteriológica, por exemplo, expandiu-se de tal modo que, mesmo quando o elemento não é suficiente e/ou necessário, como na associação entre sedentarismo e doenças cardiovasculares, o conhecimento científico não se esquiva de estabelecer esse nexo. O mesmo poderia ser afirmado em relação aos cálculos estatísticos que, cada vez mais, fortalecem as associações entre determinados eventos e tornam-se imprescindíveis na construção das análises sobre saúde. Talvez se possa asseverar que o momento atual seja regido por um pensamento fundamentado nos comportamentos de risco. A transição epidemiológica que os países desenvolvidos e, quiçá, os em desenvolvimento experimentaram, alterou o curso das doenças mais prevalentes. Se outrora as doenças infectocontagiosas eram aquelas de maior ocorrência, atualmente, nos grandes centros, preponderam as crônico-degenerativas. Esse é o novo foco da Saúde Pública. Os discursos, agora, dizem respeito às prescrições de ‘estilo de vida’ e ‘comportamentos’ estabelecidos a partir do conhecimento dos ‘fatores de risco’ (Ortega, 2008). Ocorre que a responsabilidade pelo cuidado da saúde já não mais pertence somente ao Estado, e, sim, ao próprio sujeito, que, diante das inúmeras informações médico-científicas
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disponíveis, deve ser capaz de alterar seus hábitos de vida, não importando se há uma confusão entre os achados e as probabilidades de um evento. É nesse sentido que as condutas moralmente responsáveis são aquelas opostas aos comportamentos arriscados à saúde e à vida, e, portanto, não se prevenir é considerado um ato social negativo (Gaudenzi, Schramm, 2010). Desse modo, Petersen e Luptom (2000) advogam que a Nova Saúde Pública pode ser vista como a mais recente de uma série de regimes de poder e conhecimento que se estabeleceram com vistas a regular e vigiar os corpos individuais e sociais. Porém, possivelmente, o desafio agora seja outro. No campo da saúde, as técnicas e conhecimentos biotecnocientíficos têm criado as condições de possibilidade para se conhecerem, com maior profundidade, os fenômenos e processos vivos, orientando as intervenções de um modo relativamente novo. Schramm (2010) destaca que a incorporação dessas transformações necessita vir acompanhada, igualmente, de novos questionamentos a respeito das intervenções humanas sobre a vida, tanto em seu sentido orgânico quanto em suas dimensões simbólicas e imaginárias. O próprio significado de saúde e seus determinantes podem adquirir (ou deveriam) nova roupagem, em razão dos incontestáveis avanços em áreas como nanotecnologia, tecnologia da informação, genética e robótica, as quais permitirão alterar o corpo humano para além dos limites típicos da espécie (Wolbring, 2006). Ao que parece, contudo, traços característicos presentes na Nova Saúde Pública deverão permanecer: a noção medicalizante de saúde, que induz a acreditar que todas as dificuldades relacionadas à saúde são problemas médicos; a ideia de que a saúde é caracterizada pelo funcionamento do sistema biológico; o pensamento de que é o indivíduo quem deve cuidar de si apropriadamente, diante dos recursos científicos e tecnológicos disponíveis e, portanto, capaz de desencadear uma obsessão pela ‘boa’ saúde; e a ideia de que a vida humana está sob constante risco, que pode e deve ser controlado. Por outro lado, é possível que se encontre um sistema de promoção da saúde e prevenção de doenças baseado em intervenções de outro tipo, personalizada, individualizada, ou seja, um modelo de serviço pessoal de saúde (Buchanan et al., 2001). Esta noção pode vir acompanhando a nova genética, um dos mais importantes empreendimentos desse cenário biotecnocientífico, e a farmacogenética, um de seus possíveis desdobramentos. Este campo diz respeito à possibilidade de se descobrirem e produzirem medicamentos específicos para um determinado sujeito, o que lhe garantiria uma terapia individualizada com menor risco de reações adversas (Golstein, Tate, Sisodiya, 2003). Pode haver, outrossim, um recrudescimento e uma matização da responsabilização do indivíduo. Quanto ao primeiro aspecto, o indivíduo não teria como se eximir, visto que ele poderia, se quisesse, usar sobre si mesmo (liberdade morfológica) as biotecnologias para sanar quase quaisquer problemas para a sua saúde. Caso não o fizesse, por escolha, e não por impossibilidade, a sociedade julgaria seu ato, a despeito de ser preciso maior debate, como moralmente inadequado. Quanto ao segundo, porque o indivíduo que não aplicasse as biotecnologias na constituição da sua descendência (liberdade reprodutiva), e caso esta desenvolvesse algum problema de saúde evitável, sua condenação moral seria quase que incontornável, pelo mesmo motivo supracitado. Em resumo, não nos parece que possamos dar uma resposta positiva à questão de se a biotecnociência representará uma completa revolução no campo da Saúde Pública. Ainda que haja novidades, elas não representarão, de acordo com a presente análise, uma guinada radical que deixará para trás todos os elementos que a constituíram até então. Ao contrário, parece-nos que a lógica mais adequada para especular sobre as mudanças que, indubitavelmente, serão geradas é a da continuidade/ descontinuidade, conforme apontamos. Quer dizer, aquilo que a biotecnociência representará insere-se num continuum epistemológico, histórico, político etc., ao mesmo tempo em que cria cisões nele, oferecendo novas possibilidades e apresentando novos dilemas.
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VILAÇA, M.M.; PALMA, A. Límites biológicos, bio-tecno-ciencia y trans-humanismo: ¿una revolución en Salud Pública?. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1025-38, out./dez. 2012. El desarrollo de la bio-tecno-ciencia ha propiciado avances bio-tecnológicos considerados capaces de instituir una revolución. Hipotéticamente habrá mudanzas radicales cuanto a la comprensión, manipulación y promoción de la vida humana. La perspectiva es de que los llamados límites biológicos puedan ser superados, libertándonos, por ejemplo, del proceso de enfermar. Semejante a los transhumanistas, algunos apuestan en los beneficios del proceso, otros, con todo, resaltan sus hipotéticos y graves maleficios, como es el caso de los bio-conservadores. En el presente artículo son definidos los conceptos de bio-tecno-ciencia y bio-tecnología, analizando críticamente sus potenciales; son descritos los aspectos generales del transhumanismo, contribuyendo para el desarrollo del todavía incipiente debate en el Brasil sobre ese polémico movimiento; se especula sobre algunas implicaciones de la interfaz bio-tecno-ciencia y trans-humanismo, analizando si ella revolucionará radicalmente el campo de la Salud Pública o si habrá continuidades o discontinuidades.
Palabras clave: Limites biológicos. Bio-tecno-ciencia. Trans-humanismo. Ambigüedades. Salud Pública.
Recebido em 16/12/11. Aprovado em 20/07/12.
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A dimensão psicossocial na promoção de práticas alimentares saudáveis* Bruna Robba Lara1 Vera Silvia Facciolla Paiva2
LARA, B.R.; PAIVA, V.S.F. The psychosocial dimension in promoting healthy dietary practices. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1039-54, out./dez. 2012.
This paper critically examines how the psychosocial dimension is dealt with in promoting healthy dietary practices. A search was carried out in Lilacs and in Medline’s multipurpose mode, from 2000 to 2011, using the terms intervention, health promotion and psychosocial, and all terms relating to nutrition. It was observed that during this last decade, sociocognitive approaches and models of rational belief still predominated in this field. Intervention studies focusing on the individual prevailed, with less attention paid to the broader social context that produces dietary practices. It can be concluded that for healthy dietary practices to be promoted within the context of comprehensive healthcare, the debate about what can be called psychosocial needs to be broadened to incorporate the recent contributions from healthcare approaches based on human rights, with awareness of the multidimensionality of the health-disease-care process.
Este artigo analisa criticamente como é abordada a dimensão psicossocial na promoção de práticas alimentares saudáveis. Realizou-se busca no Lilacs e no modo multipurpose do Medline, de 2000 a 2011, utilizando os termos intervenção, promoção da saúde, psicossocial e todos aqueles correlatos à nutrição. Observou-se que nesta última década as abordagens sociocognitivas e modelos de crença racional ainda predominam nesse campo, prevalecendo trabalhos de intervenção focados no indivíduo e pouco críticos ao contexto social mais amplo que produz práticas alimentares. Conclui-se que para a promoção de práticas alimentares saudáveis no contexto de assistência integral, o debate sobre o que chamamos de psicossocial deve ser ampliado para incorporar as contribuições recentes das abordagens em saúde com base nos direitos humanos, atentas à multidimensionalidade do processo saúde-doença-cuidado.
Keywords: Health promotion. Psychosocial. Care. Dietary and nutritional education. Human rights.
Palavras-chave: Promoção da saúde. Psicossocial. Cuidado. Educação alimentar e nutricional. Direitos Humanos.
Elaborado com base em Lara (2010) 1 Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids (NEPAIDS). Av. Prof. Mello Moraes 1721, Bloco A-Sala 117, Cidade Universitária. São Paulo, SP, Brasil. 04.560-012. brunarl@usp.br 2 Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. *
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Introdução A promoção de práticas alimentares saudáveis se configura como relevante questão de saúde global, preocupação de instituições governamentais e profissionais de saúde assim como de indivíduos que sofrem com os efeitos de uma alimentação inadequada. No Brasil o Ministério da Saúde (Brasil, 2010) destaca o crescimento do número de brasileiros com excesso de peso e permanência da desnutrição e doenças por carências de micronutrientes, o que demanda renovar as ações no Sistema Único de Saúde (SUS) nesse campo, em especial na atenção básica. Ao nos debruçarmos sobre os desafios no campo das práticas alimentares no Brasil, é quase intuitivo compreender que a trajetória pessoal na família, a cultura, como as crianças são socializadas para comer ou deixar de comer e o acesso à mídia são dimensões que participam do processo. São domínios e processos típicos do campo psicossocial, que certamente é um tema caro à promoção de práticas alimentares saudáveis. Em trabalho anterior (Lara, 2010), observou-se que havia mais de uma forma de compreender a dimensão psicossocial na promoção de práticas alimentares saudáveis, diferenças alinhadas a propostas distintas de promoção da saúde. O termo “psicossocial” é amplamente utilizado na literatura em saúde, embora não seja autoexplicativo. Normalmente, refere-se a ações de atenção ao indivíduo, com uma compreensão de que esse indivíduo participa de, ou está inserido em, um contexto social. Raramente, entretanto, se especifica de que maneira esse termo está sendo utilizado ou a partir de que referencial teórico. Expressões como “suporte psicossocial”, “atenção psicossocial”, “aspectos psicossociais” são utilizadas sem mais explicações em relação ao posicionamento do autor sobre o que é “psicossocial”. Embora seu uso ressalte que o indivíduo vive em sociedade, a interpretação dos problemas e as possibilidades de intervenção dependerão da visão que se tem dessa relação entre indivíduos e sociedade. Ao mesmo tempo, a dimensão psicossocial em estratégias definidas como de promoção da saúde será compreendida e abordada de maneira diferente se estiver referida às concepções filiadas ao modelo de História Natural da Doença (HND) ou ao que se nomeou como nova ou moderna promoção da saúde (MPS). Em comum, essas duas propostas de promoção da saúde implicam em uma compreensão da multidimensionalidade do processo saúde-doença-cuidado – porque outras dimensões, que não a biológica, estariam envolvidas nos processos de adoecimento. Além disso, ambas requerem um abordagem interdisciplinar das questões de saúde e ações para além do setor da saúde. Por outro lado, enquanto a promoção da saúde no modelo de HND tem uma visão mais naturalizada do processo saúde-doença3, a MPS está mais fortemente atenta à dimensão política e social desse processo. Mais ainda, no modelo de HND a promoção da saúde é um dos momentos da prevenção de doenças, consistindo na melhoria geral das condições de vida de indivíduos, famílias e comunidades, beneficiando a saúde e qualidade de vida e tornando-os mais resistentes a processos patogênicos (Ayres, 2009, grifo nosso), ou seja, a saúde é concebida como ausência de doenças, e as estratégias de promoção da saúde adotadas por esse modelo propõem, em geral, “medidas gerais, educativas, que objetivam melhorar a resistência, o bem-estar geral dos indivíduos [...] para que resistam à agressão dos agentes” (Westphal, 2006, p.641), não alterando de fato as condições de vida de indivíduos e comunidades. A MPS, em comparação, deixa de ser um momento na organização de ações de prevenção e passa a ser utilizada como norte de um movimento de renovação das práticas de saúde e da própria 1040
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Nos anos 1970 a promoção da saúde do modelo de HND passou a ser duramente criticada: a multicausalidade e os determinantes sociais e políticos do processo saúde-doença-cuidado teriam sido mal incorporados ao modelo – a própria noção de HND implicaria em um curso “natural” da doença, o que impediria uma compreensão mais politizada dos determinantes do processo saúde-doença-cuidado (Ayres, 2009).
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LARA, B.R.; PAIVA, V.S.F.
4 WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO. Health promotion glossary. WHO: Geneve, 1998. Disponível em: <http://www.ldb.org/vl/ top/glossary.pdf>. Acesso em: 9 jun. 2012.
artigos
definição de saúde, referindo-se a todas as fases e níveis do modelo de HND, reconstruindo suas bases filosóficas e métodos (Ayres, 2009). Em 1998 a OMS definiu saúde na perspectiva da promoção da saúde como recurso à vida individual, social e econômica4 (Traverso-Yépes, 2007). Ou seja, não se trata apenas de prevenir e evitar doenças, porque a saúde deixa de ser um fim em si mesmo, para compor um recurso da vida cotidiana. A MPS traz uma compreensão dinâmica dos determinantes do processo saúde-doença-cuidado (Sícoli, Nascimento, 2003): determinantes sociais, econômicos, ambientais e biológicos compõem um processo sinérgico, complexo, e sua ação só pode ser compreendida em suas interconexões. Além disso, evocando processos de transformação social para além de atividades educativas voltadas para a prevenção de doenças, o princípio da equidade é incorporado, bem como a participação social, empoderamento individual e coletivo e a sustentabilidade das ações. Quando a MPS procura envolver as pessoas como parceiros na busca por melhores condições de vida, altera-se o sentido da promoção da saúde no modelo de HND, em que as pessoas são “público-alvo” de ações focadas na prevenção de doenças. Assim, embora tanto a promoção da saúde no modelo de HND como no da MPS permitam falar em uma dimensão psicossocial do processo saúde-doençacuidado, essa dimensão será abordada de maneira diferente em cada uma dessas propostas de promoção da saúde. Cientes dessas diferenças, as autores do presente trabalho fazem uma revisão de intervenções que levam em conta a dimensão psicossocial na promoção de práticas alimentares saudáveis indexadas no Medline e Lilacs a fim de identificar as diferentes concepções de dimensão psicossocial presentes nessas intervenções. Finalmente, são feitos alguns apontamentos em relação aos modelos de promoção da saúde com os quais cada uma dessas concepções dialogam.
Duas vertentes para pensar a dimensão psicossocial Spink (1992) discutia que os estudos que mais frequentemente abordam a dimensão psicossocial no campo da saúde poderiam ser categorizados em duas grandes vertentes, uma que enfatiza o estilo de vida na cadeia multicausal responsável pelo surgimento da doença e outra, construcionista, que compreende o processo saúde-doença-cuidado como um fenômeno psicossocial, historicamente construído. Ainda hoje a leitura de livros clássicos do campo da psicologia da saúde, por exemplo, permitiria identificar que há predomínio da primeira dessas vertentes, que tem por foco o indivíduo e busca promover alterações cognitivocomportamentais para favorecer comportamentos que poderiam deter ou atenuar processos de adoecimento. Destacam-se nessa vertente os modelos “Health Belief Model” – HBM (ver Strecher, Rosenstock, 2002), “Theory of Planned Behavior e Theory of Reasoned Action” – TPB e TRA (ver Montaño, Kasprzyk, Taplin, 2002) e o “Transtheoretical Model” – TM (ver Prochaska, Redding, Evers, 2002). Esses modelos baseiam-se no pressuposto de que as percepções, crenças e conhecimentos dos indivíduos contribuem – em graus variados – para comportamentos ou hábitos que expõem ao risco em saúde (Tunala-Mendonça, 2005; Crossley, 2000). Valorizam crenças e pensamentos relacionados à saúde e à percepção sobre o risco, bem como a motivação para a mudança, autoconfiança, a aquisição de estratégias, conhecimentos e habilidades que favoreçam a adoção de comportamentos protetores. A segunda vertente, a vertente de inspiração construcionista (Paiva, Ayres, Gruskin, 2010; Paiva et al., 2010; Benzaken et al., 2007; Paiva, 2005; Paiva, Ayres, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1039-54, out./dez. 2012
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França-Jr, 2004; Spink, 1992) e que se aproximou do referencial dos Direitos Humanos em saúde (Ayres, Paiva, França Júnior, 2011; Santos, 2011; Paiva, 2010; Ayres et al., 2006; Mann, Tarantola, 1996), tem desenvolvido programas de promoção da saúde integral junto a diferentes comunidades e segmentos da população, e aparece fortemente em artigos e capítulos no campo da chamada Resposta Brasileira à Aids ou do Programa de Atenção à Saúde da Mulher (PAISM) (Berkman et al., 2005). Não discriminação e participação de usuários são princípios centrais dessas abordagens, assim como o princípio do acesso universal, da aceitabilidade e qualidade das ações em saúde, assegurando que as populações socialmente mais vulneráveis consigam ser atendidas em suas necessidades de saúde (Gruskin, Tarantola, 2008). A vertente focada na mudança de estilos de vida dialoga com a promoção da saúde característica do modelo de HND, uma vez que se baseia principalmente em medidas educativas e tem como finalidade evitar o adoecimento. A segunda vertente, construcionista, alinha-se à MPS. Essa vertente busca transformar as condições objetivas de vida, concebendo saúde como recurso à vida cotidiana, e não como ausência de doença. Mais ainda, reconhece a necessidade de transformações sociais e políticas, considerando que o processo saúde-doença não é natural, mas atravessado por essas questões, ressaltando a necessidade de ações programáticas e sustentáveis para enfrentar a iniquidade e garantir melhores condições de vida para a população. Assim como na proposta da MPS, que compreende os determinantes do processo saúde-doença de maneira dinâmica, a vertente construcionista também compreende a dimensão psicossocial desse processo como interação entre dimensões mutuamente implicadas: a dimensão individual, social e programática. Como proposta de ação, essa vertente atua capacitando indivíduos e comunidades para que reconheçam necessidades e aspirações e atuem no sentido de buscar as modificações necessárias, de maneira semelhante ao que propõe a MPS.
A literatura sobre promoção de práticas alimentares saudáveis A maior parte dos artigos disponíveis sobre a promoção de práticas alimentares saudáveis se alinhava à vertente focada na mudança de estilos de vida, propondo intervenções de base sociocognitiva e comportamental, que assumem que as percepções, crenças e conhecimento contribuem em graus variados para a performance (ou não) de determinado comportamento (Crossley, 2000) ou ainda, concebendo estágios de mudança, que combinam psicoterapia e estratégias de modificação de comportamento. Localizamos um artigo alinhado aos modelos ecológicos de promoção da saúde (Goh et al., 2009), modelos que, ao proporem mudanças comportamentais, destacam a interação entre o indivíduo e o seu ambiente social e físico (Parker et al., 2004). Os trabalhos na perspectiva da primeira vertente adotavam diferentes construtos como “fatores psicossociais”, como se pode observar no Quadro 1. Exceto nos dois últimos, a referência é o indivíduo. Além dos construtos elencados na primeira coluna do Quadro 1, como “determinantes psicossociais”, mencionam também preferências alimentares (Anderson-Bill et al., 2011; Tuuri et al., 2009; Van Duyn et al., 2001), resiliência (Clark et al., 2011), depressão (Clark et al., 2011; Zemper et al., 2003), problemas de ajustamento relacionados a perdas no trabalho e casamento e satisfação com a vida (Zemper et al., 2003). Um dos artigos mencionava aferição de fatores psicossociais em seu resumo, sem maior detalhamento (Rimmer et al., 2000). Os trabalhos de intervenção analisados podem também ser categorizados de acordo com o seu alcance e modalidade: intervenções individuais que utilizam estratégias de promoção da saúde realizadas a distância, por computador, correio e/ou telefone (Anderson-Bill et al., 2011; Robroek et al., 2010; Elder et al., 2009; Portnoy et al., 2008; Van Keulen et al., 2008; Van Duyn et al., 2001), intervenções face a face realizadas com grupos específicos (Clark et al., 2011; Bonnel, 2003; Zemper et al., 2003; Langenberg et al., 2000; Rimmer et al., 2000), intervenções com base na família ou escola (Chen et al., 2010; Pearson et al., 2010; Goh et al., 2009; Tuuri et al., 2009; Burgess-Champoux et al., 2008; Haerens et al., 2008; Saksvig et al., 2005; Verheijden et al., 2003; Parcel et al., 2003) e, finalmente, intervenções de base comunitária (Gittelsohn et al., 2010; Mead et al., 2010; Campbell et al., 2007). 1042
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artigos
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Quadro 1. Construtos psicossociais nos trabalhos analisados Construto
Descrição
Modelo*
Attitude 6 trabalhos
Atitude: é determinada pelas crenças individuais quanto a resultados ou atributos da adoção de determinado comportamento
TM TPB TRA
Awareness 1 trabalho
Consciência: fator que influencia a motivação para a mudança de comportamento e está relacionado à consciência sobre as causas de determinada doença ou agravo em saúde, suas consequências e cura
TM
Knowledge 8 trabalhos
Conhecimento: sobre os riscos e benefícios de diferentes práticas
SC TM
Perceived health threat 2 trabalhos
Risco percebido: combinação da percepção de suscetibilidade com a percepção de severidade de determinada doença ou agravo em saúde
Positive outcome expectations/negative outcome expectations 4 trabalhos
Expectativas de resultados positivos e negativos: estimativa pessoal de que o comportamento irá gerar certos resultados
Perceived benefits 2 trabalhos
Benefícios percebidos: opinião quanto à eficácia da ação aconselhada na redução de riscos para a saúde.
HBM
Perceived barriers 4 trabalhos
Barreiras percebidas: opinião da pessoa sobre os custos materiais e não materiais da ação aconselhada
HBM SC
Subjective norm 1 trabalho
Normas subjetivas: expectativa em relação à aprovação (ou não) de outras pessoas e desejo de aprovação (ou não). Também conhecido como suporte social percebido.
TRA
Social norms 3 trabalhos
Normas sociais: comportamentos valorizados e observados pelos indivíduos em seu convívio social
SC TM
Self-efficacy/self efficacy expectation 17 trabalhos
Autoeficácia e expectativa de autoeficácia: confiança na capacidade de realizar a mudança proposta. Afeta não só as metas que a pessoa propõe para si mesma como outros determinantes, como os resultados que as pessoas esperam de sua ação.
HBM SC TM
Intention 6 trabalhos
Intenção: é determinada pela atitude e normas sociais
TM TPB TRA
Self-regulation 3 trabalhos
Autorregulação: capacidades autorreguladorasdas pessoas em afetar os seus processos de pensamento, de motivação, de estados afetivos e de ações, por meio da influência autodirigida.
SC TM
Skills (habilidades) 4 trabalhos
Habilidades: habilidades presentes ou que serão desenvolvidas para a mudança de comportamento
SC
Family support 1 trabalho
Suporte familiar: hábitos e comportamentos da família que ajudam a sustentar uma alimentação adequada
SC
Social support 8 trabalhos
Suporte social: encorajamento e apoio para o desenvolvimento de hábitos saudáveis por pessoas da convivência do indivíduo
SC TM
HBM SC
TRA = Theory of Reasoned Action – Teoria da Ação Racional; TPB = Theory of Planned Behavior – Teoria do Comportamento Planejado; TM = Transtheoretical Model – Modelo Transteórico; HBM = Health Belief model – Modelo de Crenças em Saúde * Modelos identificados a partir da abordagem explicitada nos artigos analisados e descrições dos construtos em Montaño, Kasprzyk e Taplin, (2002), Prochaska, Redding e Evers (2002), e Strecher e Rosenstock (2002)
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Nesses trabalhos que visam promover mudanças no comportamento dos indivíduos, não questionam as condições sociais que tornam determinados indivíduos ou comunidades mais vulneráveis a piores condições de alimentação. Em intervenção descrita por Verheijden et al. (2003), por exemplo, que ofereceu aconselhamento nutricional familiar, os participantes avaliavam se alimentos com pouca gordura eram caros. Esse item do instrumento aferia a “atitude” dos indivíduos diante da proposta de mudança de comportamento. Como descrito no Quadro 1, a “atitude” dos indivíduos estaria relacionada às suas crenças. Nessa perspectiva a desigualdade de acesso aos alimentos com menos gordura que fundamenta essa crença deixa de ser abordada – apenas a crença é objeto da intervenção. Alternativamente, uma abordagem psicossocial construcionista, baseada em uma concepção de saúde implicada na proteção dos direitos humanos, essa questão diria menos sobre crenças do indivíduo e mais sobre o contexto objetivo que torna os indivíduos mais vulneráveis a piores condições de alimentação. Acredita-se que, ao não observar as condições concretas de produção da desigualdade, se corre o risco de responsabilizar o indivíduo que não adere às práticas propostas e perder de vista que aquele indivíduo vive em um contexto que não favorece que a saúde seja um recurso cotidiano. O estudo-intervenção de Langenberg et al. (2000) com mulheres de baixa renda atendidas pelo Special Supplement Nutritional Program for Women (WIC) nos Estados Unidos, visava aumentar o consumo de frutas e vegetais, transformando os “fatores psicossociais” que impediriam a mudança do comportamento alimentar que seriam: a “atitude” das mulheres diante de frutas e vegetais, seu “nível de conhecimento” sobre as recomendações nacionais para o consumo desses alimentos, “barreiras percebidas” para o aumento do consumo e “sentimentos de autoeficácia” para fazer mudanças. A educação por pares (mulheres que já tinham participado do programa ou eram étnica ou socialmente do mesmo grupo das participantes) indica preocupação com a adequação e a especificidade do grupo abordado. Por outro lado, a condição de pobreza dessas mulheres não era tratada como um problema da ordem do social, mas como uma barreira que seria superável pela orientação. Se alimentos saudáveis eram caros, as educadoras deveriam fornecer estratégias para comer de maneira saudável mesmo em situação de pobreza. Assim, as “barreiras percebidas” não ajudavam a desvelar uma situação de vulnerabilidade social a piores condições de alimentação, mas eram abordadas com táticas para a mudança de comportamento individual, sem que sua existência fosse eticamente questionada. Para aquelas participantes, obter receitas e informações sobre frutas e vegetais mais acessíveis era importante e possível porém, quando os autores fazem apontamentos para as políticas públicas, sua proposta fundamenta-se na transmissão de informação, sem levar em conta a dificuldade de acesso a determinados alimentos. Focaliza-se a mudança das crenças, conhecimentos e, consequentemente, dos comportamentos, e as questões sociais não são abordadas. Em estudo sobre efeitos de uma intervenção para um grupo de mulheres afro-americanas sobreviventes de derrame, Rimmer et al. (2000) observaram barreiras importantes aos objetivos de sua intervenção: custo elevado do programa, falta de transporte e de lugares em que as participantes pudessem se exercitar. No contexto do estudo essas barreiras foram eliminadas: o programa era gratuito, bem como o transporte para o local do estudo, onde as participantes fariam os exercícios com todos os recursos necessários, mas não se questionaram suas origens estruturais ou a necessidade de lidar diretamente com esse fato depois da intervenção. Ou seja, nessa perspectiva o fato de obstáculos socioestruturais impedirem a promoção da saúde no cotidiano das participantes não se transforma em desafio teórico-metodológico central, nem se discute o futuro do programa, sua institucionalização e sustentabilidade. Indivíduos em situação de pobreza e vulnerabilidade social específica – sem trabalho, com baixo nível educacional, com filhos pequenos, pertencentes a grupos em que para superar essa condição enfrentam processos de discriminação adicional de direitos como as mulheres negras estudadas (ou ainda deficientes físicos ou homossexuais, como a literatura construcionista tem demonstrado) devem ser apoiados como pessoas concebidas como sujeitos de seu cotidiano e com direito a uma vida saudável para si e seus entes significativos. A compreensão da dimensão psicossocial com um olhar mais denso para a dimensão social permitiria aos profissionais envolvidos com a intervenção tratar dos limites estruturais, programáticos/institucionais que sustentam a maior probabilidade de alimentação inadequada desses segmentos. Essa vertente de intervenções não inclui a noção de que essas pessoas 1044
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devem ser acolhidas e cuidadas como sujeitos do direito à alimentação adequada5 – direito não garantido nos Estados Unidos, país em que a maior parte desses modelos foi testada, apesar de sua equiparação aos demais direitos do homem e reconhecimento de que todos os Estados têm de respeitar, proteger e realizar esse direito (Belik, 2003). A questão da desigualdade social e seus efeitos objetivos não é abordada nem na discussão dos limites das intervenções. Anderson-Bill et al. (2011), por exemplo, realizaram uma intervenção a distância, pela internet, e excluíram de sua amostra pessoas com contraindicação para a realização de atividades físicas (idade avançada, problemas de saúde e obesidade mórbida). Os autores destacam que a maior parte dos interessados excluídos do estudo eram negros, aspecto não analisado no artigo apesar de a literatura norte-americana, mais até do que a brasileira, discutir com frequência como raça e etnia estão implicadas no processo saúde-doença, reconhecendo uma história social, e não apenas uma história individual ou natural, atribuível à cor da pele (Ayres, Paiva, França Júnior, 2011). Já no caso das intervenções realizadas em escolas (Tuuri et al., 2009; Haerens et al., 2008; Saksvig et al., 2005; Parcel et al., 2003), partiu-se da necessidade de abordar a instituição e, portanto, membros da comunidade escolar foram incluídos na proposição e avaliação das intervenções, mostrando clara preocupação com a dimensão programática e com a participação da comunidade. Nessa direção, chama a atenção o estudo de Haerens et al. (2008), realizado na Bélgica, que considera relevante a sustentabilidade do programa, preparando os funcionários da escola para realizá-lo, algo fundamental para a efetiva transformação programática. Porém, o limite da intervenção é ainda apenas o espaço escolar e as avaliações são feitas com base em dados individuais (com aferição de “determinantes psicossociais”) e dentro do espaço escolar (“clima” da escola), não se considerando o necessário imbricamento dinâmico de questões socioeconômicas e políticas (estruturais e programáticas) que ampliaria a compreensão dinâmica da comunidade para além do espaço próximo. Trabalhos realizados com famílias (Chen et al., 2010; Pearson et al., 2010; Burgess-Champoux et al., 2008; Verheijden et al., 2003) expressam essa mesma perspectiva. Justificam-se intervenções no ambiente familiar para que crianças possam ter um ambiente no qual a alimentação saudável é estimulada: frutas e vegetais ficariam à disposição e pais atuariam como modelos para que a criança aprenda aqueles comportamentos. Porém, será que os pais dessas crianças têm, eles mesmos, acesso a frutas e vegetais? Teriam consciência da ação cotidiana dos fortes interesses políticos e econômicos que, pela televisão, produzem a cultura do “valor” de seus produtos industrializados? O contexto social mais amplo não é abordado e, mais importante, não se introduz como parte das informações a serem discutidas a noção de que o meio social é resultado da produção de homens e mulheres ao longo da história. Na concepção da vertente psicossocial construcionista, por outro lado, o “meio” não pode ser tratado como um meio natural, mas algo a ser também modificado por indivíduos concebidos como sujeitos portadores de direitos. Os trabalhos de base comunitária, de qualquer modo, demonstram maior cuidado na adaptação da intervenção à cultura local dos participantes e ressaltam a importância de envolver efetivamente a comunidade da qual esses participantes fazem parte. Não são, entretanto, muito diferentes quando definem determinantes “psicossociais” como características da dimensão individual e naturalizam (porque não questionam) as suas determinações macrossociais. Alguns pesquisadores usam a noção de “empowerment” (Clark et al., 2011; Goh et al., 2009) que, especialmente nos EUA, significa empoderamento COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1039-54, out./dez. 2012
artigos
5 O “direito à alimentação adequada” implica garantir aos indivíduos e grupos que estejam impossibilitados de usufruir o direito à alimentação adequada a provisão desse direito diretamente pelos Estados.
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individual, fortalecer o poder da vontade, com pouca referência à história de produção da desigualdade social (Paiva, 1996). Um agente externo, um profissional de saúde, empodera indivíduos e comunidades oferecendo informações e treinamento para que possam promover mudanças em suas vidas e pretende que a intervenção transforme indivíduos em senhores de sua vida cotidiana, adotando práticas alimentares, ou atividades físicas pré-definidas como mais saudáveis, desconsiderando as desigualdades sociais, de gênero e raciais que atravessam as práticas e cotidianos dos participantes – e dos profissionais de saúde – nas ações de promoção de práticas alimentares saudáveis. Avalia-se que indivíduos que não adequam seus comportamentos durante a intervenção não estariam preparados para a mudança (estariam em estágio inicial) ou que não aprenderam como deveriam, ou ainda, que não há nada a fazer – a não ser criar condições ideais, controlar fatores que atrapalham a eficácia da intervenção sem maior preocupação com sua sustentabilidade ou institucionalização. Poucos artigos enfatizam o contexto mais amplo da intervenção que realizaram ou a impossibilidade de generalização de seus achados (Gittelsohn et al., 2010; Pearson et al., 2010; Elder et al., 2009) e consideram de maneira mais interessante a dimensão social na análise, indicando certa elaboração quanto a obstáculos que excedem o plano individual. Elder et al. (2009) incluem na discussão sobre intervenção com mulheres latinas vivendo nos Estados Unidos a consideração de que barreiras econômicas, sociais e outras “barreiras ambientais” poderiam ter desencorajado as mulheres a manter as mudanças comportamentais introduzidas pela intervenção. Reconhecem barreiras que são limites do contexto e não de “capacidades” ainda não desenvolvidas pelo indivíduo. Pearson et al. (2010), em trabalho de promoção da saúde com pais e jovens, têm o cuidado de mencionar que sua intervenção, baseada no envio de material impresso, atingiu pessoas com bom nível educacional, e que seus resultados não podem ser generalizados. Finalmente, entre os trabalhos mais atentos à dimensão estrutural e programática, destacamos a intervenção de Gittelsohn et al. (2010), que procurou provocar alterações nos fatores psicossociais dedicando-se ao contexto: os autores promoveram mudanças na oferta, preços e divulgação de alimentos mais saudáveis em lojas e supermercados de uma comunidade de baixa renda, acompanhadas de intervenções pontuais com o público que frequentava essas lojas. Não conseguiram medir alteração significativa nos fatores psicossociais avaliados pelo estudo (“conhecimento”, “autoeficácia” e “intenção”). Destacamos que, apesar da relevância de intervenções como essa, a comunidade não participou da construção da intervenção e, aparentemente, a relação entre os indivíduos e contexto social, mediada por crenças (na perspectiva da abordagem sociocognitiva), é naturalizada: não são considerados sentidos e significados intersubjetivamente construídos, alteram-se preços e divulgação de alimentos mais saudáveis e espera-se que os indivíduos passem a conhecer mais, se sintam mais capazes e fortaleçam a intenção de consumir esses alimentos.
Discussão Como na crítica ao modelo de HND na década de 1970, as ações de promoção de práticas alimentares saudáveis analisadas no presente trabalho apresentaram, em geral, uma concepção da dimensão psicossocial do processo saúde-doença que naturaliza processos sociais e políticos que coproduzem a vulnerabilidade a piores condições de alimentação. Os determinantes sociais e psicológicos do processo saúde-doença são considerados, mas o indivíduo ainda é concebido e abordado como unidade biológica-comportamental, sem que se interpele a construção social dos determinantes do processo saúde-doença (Paiva, 2009, 2006). O contexto social é importante enquanto informa predisposições, hábitos, pensamentos e intenções individuais com influência mensurável sobre os comportamentos indicados como adequados, mas não é visto como uma construção históricopolítica. Assim, quem deve mudar é o indivíduo. Ou o ambiente, tomado como espaço esvaziado de intenções e disputas políticas, deve ser alterado para favorecer comportamentos específicos. O foco na mudança individual de comportamentos, pressupondo que a adoção de práticas alimentares mais saudáveis depende apenas de ações individuais, não é exclusiva dos modelos que compreendem a dimensão psicossocial dessa forma. Essa concepção é frequente e está disseminada 1046
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entre profissionais de saúde e entre as pessoas que gostariam de se alimentar melhor. Lara (2010), em trabalho com um grupo de ajuda mútua para a discussão de peso, alimentação e saúde, relata que as mulheres que participavam do grupo acreditavam que emagrecer só dependia delas e de sua força de vontade, bem como alguns profissionais de saúde que atendiam essas mulheres demonstravam esse tipo de posicionamento. Não há intenção de enfrentar dificuldades impostas pelo contexto, como, por exemplo, a má qualidade da merenda servida na escola. Pelo contrário, diante de inadequações do contexto, é o indivíduo que deve ser “criativo” e se adaptar. Nos trabalhos analisados, mesmo quando se levavam em conta construtos como “barreiras percebidas”, o enfoque era adaptativo: o indivíduo é ensinado a conviver com as barreiras e contorná-las da melhor maneira possível, sem que sua existência seja questionada, como se as barreiras fossem naturais e inevitáveis, e não resultado de ação humana. Seguindo essa linha, os trabalhos que abordam a dimensão psicossocial nessa vertente dos estilos de vida enfatizam que as pessoas podem mudar suas práticas alimentares se tiverem o conhecimento e habilidade necessárias, o que sabemos não ser suficiente quando se trata de alimentação. Pessoas que aprenderam como deveriam se alimentar e estratégias para manter uma boa alimentação podem enfrentar dificuldades das mais diversas ordens, mas seu conhecimento e habilidades não garantirão a manutenção de uma boa alimentação. Esse tipo de compreensão de processo psicossocial pode levar à culpabilização e, eventualmente, à desesperança especialmente aqueles que não têm condições sociais de realizar as mudanças precisas desenhadas pelos programas. Lara (2010) discute que algumas pessoas sentiam vergonha por não estarem conseguindo mudar suas práticas alimentares e isso fazia com que faltassem às reuniões do grupo ou desistissem de participar. Assim, embora esses modelos de abordagem da dimensão psicossocial reconheçam que disposições, cognições e crenças dos indivíduos são influenciadas por determinantes sociais e psicológicos, não avançam na compreensão de que as pessoas participam ativamente da construção dos contextos. Sem essa compreensão, os contextos continuam sendo compreendidos à maneira ecológica, como ambientes que podem ser alterados para promover saúde mas que, em última instância, não guardam qualquer vestígio das relações sociais, políticas e econômicas sobre as quais historicamente se estruturaram. Não é por outro motivo que as estratégias são fundamentalmente psicoeducativas, voltadas a ampliar o conhecimento a respeito dos riscos e benefícios de seus comportamentos e desenvolver habilidades específicas, melhorar a atitude, apoiar intenções e promover melhora da autoeficácia, como observamos nas principais estratégias de promoção da saúde do modelo de HND. Um limite do presente trabalho é o fato de que o caminho que a busca pela literatura seguiu privilegiou a literatura norte-americana (especialmente estudos realizados nos Estados Unidos) ou de países desenvolvidos, como Reino Unido, Bélgica e Holanda, onde encontramos estudos que declaradamente faziam referência a aspectos ou a uma dimensão psicossocial. Outros estudos são necessários para avaliar se há outros enfoques para a dimensão psicossocial em intervenções promotoras de práticas alimentares saudáveis que não necessariamente utilizem o termo “psicossocial”. Talvez outras nomenclaturas estejam em uso em diferentes correntes teóricas, de maneira que essa avaliação se faz necessária. Para o presente trabalho, interessava conhecer a concepção de dimensão psicossocial que estava fundamentando intervenções promotoras de práticas alimentares saudáveis, mas há trabalhos que não utilizam o termo “psicossocial” e que certamente pensam o indivíduo em sociedade, sendo necessário realizar uma revisão mais ampla de estratégias de promoção da saúde no campo da alimentação para avaliar como outras abordagens têm abordado a interação entre indivíduo e sociedade.
Uma outra possibilidade: fortalecer a vertente construcionista Para trabalhar com a promoção de práticas alimentares saudáveis no paradigma da MPS, a vertente psicossocial construcionista parece mais interessante para a intervenção no processo saúde-doençacuidado. A vertente psicossocial construcionista reconheceu a virada epistemológica validada desde o século XX, que concebe a vida social como produzida historicamente pelos homens e mulheres que nele habitam; e reconhece que o “meio” é atravessado por desigualdades sociais de diversas ordens até então naturalizadas (de gênero, de raça, de idade); reconhece que relações desiguais são sustentadas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1039-54, out./dez. 2012
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por uma rede de significados, sentidos e práticas discursivas que, assim como foram construídos pela ação humana, podem ser reconstruídos e resignificados. Mais importante, tem demonstrado em outros campos que essa é uma referência conceitual e ético-política relevante para informar as técnicas e práticas, e a ser disseminada também para participantes de programas de promoção da saúde. Caminha para uma mais forte politização de suas ações, em contraposição ao modelo de HND, no qual predomina, como vimos, uma leitura mais técnica e individual dos problemas e de suas soluções (Ayres, 2002). Mais especificamente, entre as possibilidades dessa vertente, destacamos a compreensão da dimensão psicossocial no quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos, concebida como sinergia de três dimensões mutuamente implicadas na produção do adoecer e na promoção da saúde: a dimensão individual, a social e a programática da vulnerabilidade ao sobrepeso, por exemplo (Paiva, Ayres, Gruskin, 2010; Paiva, 2009, 2006; Ayres et al., 2006; Ayres et al., 2003; Berkman et al., 2005), como ilustrado na Figura 1. Figura 1. Dimensões individual, social e programática de vulnerabilidade à insegurança alimentar - dimensões necessariamente implicadas Cenas e cenários programáticos Interação entre profissionais & usuários Realização ou não dos princípios do SUS de universalidade, equidade e participação no âmbito da segurança alimentar com controle social dos usuários & do governo local
Intersubjetividade Pessoa em interação nas cenas de comensalidade cotidiana Pessoa como sujeito de direito à segurança alimentar Nível informação sobre alimentação saudável e sobre obstáculos sociais e programáticas para acesso a ela
Programático
Cenários institucional, cultural e político que produzem a segurança ou insegurança alimentar Contextos de interação social, relações de gênero, étnico-raciais geracionais que produzem contextos intersubjetivos para realização de direitos e mobilização
Soc
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In
id div
ua
l
Adaptado de Paiva, Ayres e Gruskin (2010).
O plano individual é definido como o plano intersubjetivo e da pessoa que é sujeito de direitos, não existindo separado do plano social ou programático, assim como a pessoa não existe fora de seu contexto (Paiva, 2009). A abordagem psicossocial nesse quadro desafia-nos a reconhecer que, para a pessoa em condições de grande vulnerabilidade social e individual, a presença e ação de um programa de qualidade são fundamentais, como pudemos observar em programas brasileiros nos campos da aids e da saúde da mulher. A desigualdade é considerada elemento central na produção do processo saúde-doença, estabelecendo-se estreito diálogo com o quadro dos direitos humanos (França Júnior, Ayres, 2003), observável nas existências intersubjetivas dos usuários com programas de saúde ou em sua vida cotidiana. Como discutiram Kalichman e Diniz (2009), seu sucesso depende da validação do direito à saúde como direito universal, como se fez no caso da aids, algo mais difícil de ser compreendido em países nos quais a reforma sanitária não consegue se estabelecer. 1048
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A concepção de indivíduo dessa perspectiva significa a pessoa como sujeito do direito à saúde integral e à alimentação adequada. O desenho de uma intervenção psicossocial no campo das práticas alimentares nesse quadro valorizará o saber prático dos sujeitos da intervenção, porque usuários são os maiores especialistas em sua vida cotidiana e contexto específico, contexto que pode mudar para além do espaço próximo. No Quadro 2 estabelecemos uma comparação entre os princípios da MPS e a proposta de abordagem da dimensão psicossocial no quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos. Essa perspectiva alinha-se mais adequadamente à MPS do que os modelos classificados na vertente psicossocial focada em estilos de vida. Em condições concretas de desigualdade na realização de direitos fundamentais como o direito à alimentação adequada, saúde integral, ao cuidado e à prevenção, é responsabilidade de programas de saúde e seus profissionais (e não do indivíduo apenas) garantir menor vulnerabilidade social e individual à obesidade ou à desnutrição. Especialmente em contextos de desigualdade extrema, abordagens focadas em estilo de vida e mudança de comportamento dos indivíduos terão pouca efetividade.
Quadro 2. Princípios da moderna Promoção da Saúde e estratégias compatíveis de redução da vulnerabilidade a partir de uma abordagem psicossocial construcionista baseada no quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos Promoção da Saúde
Redução de Vulnerabilidade
Concepção holística de saúde voltada para a multicausalidade: são incorporados, para a compreensão do processo saúdedoença, os determinantes sociais, econômicos, ambientais, e não só os biológicos, que não agem isoladamente, mas interagem uns com os outros.
O processo saúde-doença tem múltipla causalidade e três dimensões a serem enfrentadas: individual, social e programática, que interagem na produção de contextos de maior vulnerabilidade ao adoecimento e/ou ao agravo de saúde.
Equidade: garantir o acesso universal à saúde e eliminar as diferenças desnecessárias e injustas que restringem as oportunidades para se atingir o bem-estar.
Proteção e promoção dos direitos humanos/ Pessoas concebidas como sujeitos de direito
Intersetorialidade: ao lidar com a multicausalidade dos problemas de saúde reconhece a limitação do setor saúde e coloca a necessidade de múltiplos olhares e saberes.
Intersetorialidade das ações, que dependem de diferentes saberes e do envolvimento de outros setores além do setor saúde.
Ações multiestratégicas: pressupõe o envolvimento de diferentes disciplinas e combinação de métodos e abordagens.
Ações que dependem da intersetorialidade e da multidisciplinaridade
Participação social: pessoas como colaboradoras diretas e com direito a participar das decisões envolvendo sua saúde.
Atitude construcionista/ processo colaborativo desde a identificação do problema e necessidades até a avaliação conjunta dos resultados das ações
Empoderamento: processo de capacitação dos indivíduos e comunidades para assumirem maior controle sobre os fatores pessoais, socioeconômicos e ambientais que afetam a saúde.
Autonomia/Favorecer a capacidade de resposta/ Emancipação de uma situação de vulnerabilidade
Sustentabilidade; iniciativas que estejam de acordo com os princípios do desenvolvimento sustentável e que garantam um processo duradouro e forte.
Sustentabilidade das ações pensada a partir do compromisso e responsabilização de governos pela proteção e promoção de direitos
Referências: Ayres (2009); Paiva (2009, 2006, 2002, 1999); Ayres et al. (2006, 2003); Westphal (2006); Sícoli e Nascimento (2003).
Considerações finais Na literatura analisada (2000-2011), que cobriu intervenções promotoras de práticas alimentares saudáveis atentas à dimensão psicossocial, buscou-se descrever como concebiam essa dimensão muito citada e pouco definida. Os modelos cognitivos e sociocognitivos foram mais frequentes, e sua compreensão da dimensão psicossocial do processo saúde-doença os classificaria na vertente COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1039-54, out./dez. 2012
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psicossocial que enfatiza os estilos de vida na cadeia multicausal dos processos de adoecimento. Suas ações visam comportamentos individuais e o contexto social é concebido como “ambiente” no sentido de uma ecologia e geografia sem pessoas, cujos sentidos e significados são naturalizados. Tal como são manejados, os construtos utilizados nesses modelos têm uma concepção mais estreita do que necessário da dimensão psicossocial do processo saúde-doença-cuidado. A dimensão social é levada em conta como formadora de comportamentos e cognição, predisposições e obstáculos que serão trabalhados apenas no âmbito individual. Na maior parte dos trabalhos analisados, sua construção social, política e histórica não é abordada. Embora em alguns trabalhos haja referência à necessidade de ação por meio da organização social, a leitura dos problemas e soluções resulta em passos a serem seguidos para obtenção de êxito técnico no plano individual, contemplando especialmente atividades educativas e comportamentais, aproximando as intervenções propostas às práticas de saúde no modelo de HND. Finalmente, para aprofundar o diálogo com a MPS, a vertente que aborda a dimensão psicossocial desde uma perspectiva construcionista e que pensa o processo saúde-doença baseada no quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos parece mais interessante para pensar na promoção de mudanças sustentáveis em contextos objetivos e intersubjetivos marcados pela desigualdade e desrespeito aos direitos humanos, em especial o direito à saúde integral.
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LARA, B.R.; PAIVA, V.S.F. La dimensión psico-social en la de promoción de prácticas alimentarias saludables. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1039-54, out./dez. 2012. Este artículo analiza críticamente como la dimensión psico-social es abordada en la promoción de prácticas alimentarias saludables. Se realizó una búsqueda en LILACS y en el modo multi-propósito de la Medline, de 2000 a 2011, utilizando los términos intervención, promoción de la salud, psico-social, y todos los términos correlatos a nutrición. Se observó que en esta última década los enfoques socio-cognitivos y modelos de creencia racional predominan en este campo, prevaleciendo trabajos de intervención focalizados en el individuo y poco críticos en relación al contexto social que produce prácticas alimentarias. Se concluyó que para la promoción de prácticas alimentarias saludables en el contexto de la atención integral, el debate sobre lo psicosocial debe ser ampliado para incorporar las contribuciones recientes de los enfoques en salud basados en los derechos humanos, atentos a la multi-dimensión del proceso salud-cuidado.
Palabras clave: Promoción de la salud. Psico-social. Cuidado. Educación alimentaria y nutricional. Derechos humanos.
Recebido em 30/09/11. Aprovado em 01/08/12.
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As representações da Saúde Bucal na mídia impressa*
Aline Guio Cavaca1 Victor Gentilli2 Eliana Martins Marcolino3 Adauto Emmerich4
CAVACA, A.G. et al. Representations of Oral Health in the printed media. Interface Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1055-68, out./dez. 2012.
This study aimed to understand how information on oral health is carried in the printed media in the state of Espírito Santo, Brazil. This was a qualitative study using content analysis on 66 articles relating to the subject that were carried in the newspapers A Gazeta and A Tribuna between March 2004 and June 2009. The empirical material originated seven analytical categories: accountability of the individual, extreme realities, popular image of dentists and their offices, pathologization of halitosis, aesthetic valuation, determinants of oral health and prevention and habits. The media’s approach towards oral health cuts across a complex of social, cultural, political, biological and economic factors. This highlights the importance of communication in context with the interests of society. Thus, the communication may be interactive, with dialogue, and its critical power in education and health promotion may be explored, thereby consciously relaying consumerism in Oral Health.
Buscou-se compreender como as informações sobre Saúde Bucal são veiculadas pela mídia impressa no estado do Espírito Santo – Brasil, por meio de uma pesquisa qualitativa, com análise de conteúdo de 66 matérias relacionadas à temática, veiculadas no período de março de 2004 a junho de 2009, nos jornais A Gazeta e A Tribuna. O material empírico originou sete categorias analíticas: responsabilização do indivíduo; realidades extremas; imaginário popular do dentista e do consultório dentário; patologização da halitose; valorização estética; determinantes da saúde bucal; prevenção e hábitos. A abordagem midiática da saúde bucal perpassa uma complexidade de fatores sociais, culturais, políticos, biológicos e econômicos, que destaca a importância de uma comunicação contextualizada com os interesses da sociedade, que seja interativa e dialógica e explore sua potência crítica na educação e promoção da saúde, veiculando, de maneira consciente, o consumismo em Saúde Bucal.
Keywords: Oral Health. Healthcare communication. Mass media. Public Health.
Palavras-chave: Saúde Bucal. Comunicação em saúde. Meios de comunicação de massa. Saúde Pública.
Elaborado com base em Cavaca (2011); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo. 1 Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/ Fiocruz). Rua General Roca, n.38, apto. 102. Tijuca, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.521-070. alineguica@hotmail.com 2 Departamento de Comunicação Social, Universidade Federal do Espírito Santo. 3 Laboratório de Comunicação e Saúde, Saúde, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fiocruz. 4 Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Espírito Santo. *
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Introdução O tema “saúde bucal” envolve uma reflexão que perpassa os limites da cavidade bucal. Pode ser entendida a partir de suas dimensões funcionais e estética, e, também, do contexto social, seus condicionantes e necessidades coletivas (Kovaleski, Freitas, Botazzo, 2006). Acrescenta-se a isso a concepção de bucalidade, a qual diz respeito à expressão dos trabalhos sociais da boca humana e sua articulação aos modos como se vive e atua na sociedade (Botazzo, 2006, 2000). Sabe-se que os meios de comunicação têm, hoje, um grande papel na determinação dos pensamentos e comportamentos dos indivíduos, sendo uma das instituições mais eficazes de manutenção da hegemonia dos valores e práticas da sociedade atual (Bydlowski, Westphal, Bicudo Pereira, 2004). Entretanto, a comunicação de massa concebe uma importante função educativa, uma vez que grande parte dos conhecimentos indispensáveis à vida, como, por exemplo, as informações em saúde pública, chegam aos cidadãos de forma mediada (Gentilli, 2005). Desse modo, a informação jornalística tem suma relevância no suprimento da necessidade social da informação. Porém, compreende-se que a notícia é um produto e, por conseguinte, é estruturada e comercializada como tal. Sendo assim, as matérias de saúde e saúde bucal não fogem a essa regra e, para potencializar essa lógica, são produtos que vendem consideravelmente bem e que, além disso, estimulam o consumo de outras mercadorias, bens e serviços (Bydlowski, Westphal, Bicudo Pereira, 2004). Entende-se que um enfoque consumista compromete o desenvolvimento do potencial de promoção da saúde dos meios de comunicação, ao se distanciarem tanto dos problemas que realmente afligem a população quanto de sua causalidade múltipla (Xavier, 2005; Bydlowski, Westphal, Bicudo Pereira, 2004). Alguns estudos abordam a divulgação midiática da saúde bucal identificando, no padrão de noticiabilidade da temática, uma subutilização do potencial educativo da mesma, além de uma persuasão quanto ao padrão estético ideal do sorriso, gerando um processo de alienação necessário ao estímulo ao consumo (Amorim, Beatrice, Vicente da Silva, 2006; Sinhorini, Garbin, Oliveira, 2005; Carvalho, Bicudo Pereira, 1994; Noguerol et al., 1992). Diante do exposto, este estudo objetiva compreender como as informações sobre saúde bucal são veiculadas na mídia impressa do Espírito Santo - Brasil, a fim de analisar se a potência midiática está explorando de forma crítica a educação, a promoção da saúde e o consumismo em saúde bucal.
Metodologia Trata-se de uma pesquisa exploratória documental, com abordagem qualitativa, a qual considera o contexto do problema de estudo e ocupa-se mais com significados do que com a frequência dos fatos (Tobar, Yalour, 2001). Além disso, é o tipo de pesquisa indicada para estudos de comunicação com análise de documentos (Rozemberg, 2006). O material pesquisado foi composto por todas as matérias relacionadas à saúde bucal veiculadas entre março de 2004 e junho de 2009, nos jornais impressos diários de maior circulação no estado do Espírito Santo: A Gazeta e A Tribuna, onde a pauta de saúde bucal é frequente (Cavaca et al., 2012). O período selecionado, de cinco anos, possibilita a verificação do panorama de noticiabilidade da saúde bucal no estado e corresponde a uma época de muitos investimentos na área de saúde bucal no Brasil, tendo se destacado pelo desenvolvimento da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB – comumente chamada de Brasil Sorridente) do governo federal, iniciada em 2004 e desenvolvida até os dias atuais (Brasil, 2004). Realizou-se um levantamento retrospectivo das matérias que apresentavam, em seu conteúdo, as seguintes palavras-chave: dentista, odontologia e saúde bucal. Tais descritores foram escolhidos por abrangerem significativamente a seleção de matérias que abordam, de alguma maneira, a saúde bucal em seu conteúdo. Para coleta de dados do jornal A Tribuna, utilizou-se o banco de dados digital fornecido pelo jornal, enquanto a seleção das notícias foi feita por intermédio de um Programa de Busca Inteligente
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artigos
desenvolvido pelo Laboratório de Recuperação Inteligente da Informação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Tal programa utiliza a busca de informações baseada não apenas em palavraschave, mas considerando a semântica subjacente à consulta feita pelo usuário, resgatando a informação mediante sucessivas aproximações, o que facilita o processo de busca (Azevedo et al., 2005). Em relação às matérias do jornal A Gazeta, estas foram selecionadas por meio de programa de busca do próprio jornal, com as palavras-chave correspondentes à temática.
Organização do material Totalizaram 392 as matérias publicadas acerca do foco em questão. Destas, 178 foram selecionadas no jornal A Gazeta e 214 no jornal A Tribuna. Tendo sido selecionados, os textos, após impressos em papel A4, foram identificados e numerados de acordo com o jornal veiculado e respectiva data de publicação. Uma vez organizado, o material empírico foi submetido à análise de conteúdo temática, a qual consiste “[...] em descobrir os <<núcleos de sentido>>que compõem a comunicação e cuja presença, ou frequência de aparição, podem significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido” (Bardin, 2009, p.131, grifo da autora). A análise de conteúdo tem capacidade para produzir inferências de um texto focal para seu contexto social de maneira objetivada (Minayo, 2008). Pode, além disso, ser utilizada para detectar tendências e modelos na análise de critérios de noticiabilidade, enquadramentos e agendamentos na pesquisa jornalística, estabelecendo alguns parâmetros culturais implícitos e a lógica organizacional por trás das mensagens (Herscovitz, 2007; Shoemaker, Reese, 1996). Dessa maneira, como preconizado por Bardin (2009), organizou-se a análise de conteúdo em três etapas básicas: A pré-análise: é a fase de organização, a qual permite considerar as intuições e sistematizar as ideias iniciais. Iniciou-se pela leitura flutuante dos 392 documentos, por meio da qual se estabeleceu contato com o material e deixou-se invadir por impressões e orientações. Com base nisso, foram selecionados 95 textos. O corpus, composto pelos documentos eleitos para serem submetidos aos procedimentos analíticos, foi definido pela seleção das matérias dotadas de caráter educativo, atendendo-se às regras de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência – defendidas por Bardin (2009) – totalizando 66 matérias (Figura 1). A exploração do material: trata-se da aplicação sistemática das decisões tomadas na pré-análise, composta pela codificação e pela categorização do material. A unidade de registro selecionada foi “tema”, que, em sua pluralidade, foi identificado no corpus, recortado dos textos dos periódicos e transcrito em uma grade de análise, sendo então classificado em categorias definidas com base nas peculiaridades das matérias. O tratamento dos resultados, inferência e interpretação: emergiram da análise 14 categorias empíricas, que foram agrupadas por questões metodológicas e conceituais em sete categorias analíticas estruturantes dos resultados (Quadro 1). Assim, a análise dos materiais obtidos permitiu a interpretação das mensagens latentes dos artigos e as suas inferências, baseadas nas teorias propostas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da UFES. A autorização formal para a realização da pesquisa foi concedida pelos jornais selecionados para tal fim.
Resultados e discussão Verificou-se, com base nos resultados, uma grande variedade de assuntos relacionados à saúde bucal abordados nos periódicos capixabas. Tais temas foram extraídos do material empírico e agrupados em categorias, as quais foram segmentadas em subcategorias, sistematizadas e definidas de acordo com o Quadro 1. Cada uma delas será discutida, com o fim de se obter uma compreensão mais aprofundada da temática.
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Figura 1. Pré-análise do material empírico
PRÉ-ANÁLISE Leitura flutuante 392 matérias Primeiras impressões
T
T
T
T
Formulação das hipóteses e objetivos
T
T
T
Escolha dos documentos 95 matérias
T
Elaboração dos indicadores Maneira como os assuntos são abordados
T
Constituição do corpus 66 matérias
Referenciação dos índices Temas de saúde bucal
T
Dimensão e direção de análises
T
Regras de recorte Categorização Codificação
T
Preparação do material Nova numeração, ordenação e seleção de temas
T
Testar as técnicas T
T
T
T
EXPLORAÇÃO DO MATERIAL Administração das técnicas no corpus
TRATAMENTO DOS RESULTADOS E INTERPRETAÇÕES
Quadro 1. Categorias, subcategorias e suas definições baseadas na análise de conteúdo das matérias dos jornais A Gazeta e A Tribuna, veiculadas no período de 2004-2009, Espírito Santo, Brasil Categoria
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Subcategoria
Definição
Responsabilização do indivíduo pela sua Saúde Bucal
Abordagem que responsabiliza e culpabiliza o “Você sabe escovar os dentes?” ”Você pode ser a maior cárie do seu dente” indivíduo pelo seu estado de saúde bucal
Realidades extremas
“Pra quem pode pagar, o céu é o limite” ”Sem dentes e sem opção”
Retrata realidades sociais dicotômicas em relação à saúde bucal
Imaginário popular do dentista
Medo de dentista Imaginário popular do consultório dentário
Imagem do dentista e do tratamento dentário relatada por pacientes e jornalistas
Patologização da Halitose
“Fantasma do mau hálito” ”Novas armas contra o mau hálito”
Trata da patologização da halitose e as novas tecnologias para lidar com o “problema”
Valorização estética
Sorriso perfeito, beleza e autoestima Tecnologia a serviço da estética
Divulga a valorização da estética bucal e as novas tecnologias odontológicas
Determinantes da Saúde Bucal
Determinantes sociais da Saúde Bucal Problematiza os determinantes sociais da A saúde começa pela boca? – Saúde bucal/ saúde e a relação saúde sistêmica-saúde bucal saúde sistêmica
Prevenção e hábitos
Hábitos alimentares e de higiene bucal Prevenção de doenças bucais
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Discute hábitos alimentares e de higiene bucal e aborda a prevenção de doenças bucais.
CAVACA, A.G. et al.
artigos
Responsabilização do indivíduo Constataram-se, em algumas matérias, discursos de responsabilização e culpabilização do indivíduo pelo seu estado de saúde bucal, como os que seguem: (G127a) “Você sabe escovar os dentes? [...] Todo mundo sabe que é importante escovar os dentes, mas será que todos estão alfabetizados com as lições corretas para fazer isso?”
Neste exemplo, chama atenção o pressuposto de que toda a população esteja ciente da importância da escovação dental, associado ao questionamento da existência de uma alfabetização geral sobre as boas práticas de escovação. Além disso, após considerar que o indivíduo, ao executar a técnica de forma errada, pode ficar com o “sorriso amarelo”, a matéria traz uma advertência imperativa: (G127b) “[...] Se isso acontecer, não vá botar a culpa só na coitada da escova. Segundo os dentistas, a maior ‘cárie’ dos dentes pode ser quem escolheu a escova na prateleira: você”.
Essa abordagem “responsabilizante” com certa conotação “ameaçadora” também é discutida por Lefévre (1999), ao afirmar que, na mídia brasileira atual, verificamos a prevalência de matérias de saúde que responsabilizam o indivíduo pela “sua” saúde individual e estimulam o consumo de produtos “redutores do sofrimento” ou “melhoradores” do desempenho físico e mental. Isso gera um processo de alienação, em vez de trazer um impacto positivo. Paralelamente, Castiel e Diaz (2007) argumentam que os discursos sobre a saúde não dizem respeito tão somente a dimensões de saúde. Outrossim, incorporam modos de pensar, escrever e abordar a saúde a partir de um contexto histórico, legitimado pela ordem econômica, política e social pelos quais são sustentados. Dessa forma, percebe-se, atualmente, a existência de discursos culpabilizantes e autoritários sobre a saúde, que se estende também à saúde bucal, em que são ressaltadas as responsabilidades individuais quanto à adoção de comportamentos saudáveis e a priorização de condutas preventivas. Apesar do entendimento de que não se deve isentar o indivíduo das responsabilidades sobre a sua saúde e suas escolhas, uma perspectiva responsabilizante unilateral é considerada inadequada, devido ao seu caráter individualista, parcial, e pela desconsideração da complexidade dos determinantes sociais da saúde. Isso porque nem sempre a adoção de comportamentos de risco ou de situações de vida insalubres se dá por escolhas pessoais, mas, sim, por falta de opção da população e pela ausência de acesso a serviços de saúde adequados, as quais configuram as iniquidades sociais (Bydlowski, Westphal, Bicudo Pereira, 2004). Além disso, a excessiva repetição dessa abordagem, que reforça certa culpabilização do indivíduo em relação à sua própria saúde, pode fazer com que as pessoas decidam “parar de ouvir” as questões de saúde discutidas na mídia, causando um desestímulo aos sujeitos (Xavier, 2005).
Realidades extremas Nesta categoria, buscou-se discutir as distintas e distantes realidades sociais divulgadas pela mídia. De um lado, encontramos a expressão da parcela da população “Sem dentes e sem opção” (G155) e, de outro, é retratada a realidade de que “Para quem pode pagar, o céu é o limite” (G156). Essa dupla abordagem do tema, adotada pelo objeto de estudo, por meio de matérias consecutivas em uma mesma edição, retrata a desigualdade social em saúde presente na sociedade brasileira: (G155a) “Nunca tive condições de pagar dentista particular. Quando cheguei ao posto me disseram que o jeito era arrancar meu dente, não questionei. Depois disso, foi um atrás do outro”. Observa-se, nessa fala, o retrato de uma realidade odontológica presente em grande parcela da população, como se observa no seguinte trecho: (G155b) “[...] Como ele, outros 460 mil capixabas – quase meio milhão de pessoas – vivem sem um único dente na boca”.
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Dados divulgados pela Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (Brasil, 2011) corroboram com essa afirmação, indicando que mais de três milhões de idosos necessitam de prótese total nas duas arcadas, e outros quatro milhões necessitam de prótese total em uma das arcadas (Brasil, 2011). Cabe ressaltar que a perda dentária é um dos mais graves problemas da saúde bucal dos brasileiros. Admite-se que a extração dentária representa uma atividade marcante da prática odontológica ao longo da história, todavia, constitui uma mutilação bucal, pois perder os dentes não é natural do envelhecimento e nem uma fatalidade biológica, devendo ser encarada como um problema a ser enfrentado mediante o estabelecimento de estratégias políticas e tecnologias para preservação dental adequadas (Narvai, Frazão, 2008). A questão perpassa também um certo posicionamento acrítico da Odontologia, para deixar bem claro, da ação política de seus principais atores. Esses atores apresentam uma dificuldade de interação interdisciplinar e política, quanto ao entendimento da implicação social da Odontologia como prática, demonstrando, por exemplo, pouca capacidade de entendimento da cárie (e das doenças bucais de uma forma geral) como socialmente produzidas e determinadas. Além disso, percebe-se que o desenvolvimento científico e tecnológico da profissão acontece historicamente sem interferir muito na doença (Kovaleski, Freitas, Botazzo, 2006; Freitas, 2001). Outro ponto embutido nessa problemática é a discriminação e as dificuldades enfrentadas pelos mutilados bucais no mercado de trabalho, como descrito a seguir: (G156b) [...] “Ser aceito no mercado de trabalho é um desafio que os desdentados têm de enfrentar. E não é preciso ser completamente ‘banguela’ para se sentir excluído. Dependendo da localização, um dente a menos pode significar a perda de emprego”.
Tais flagelos, tão veiculados nos jornais, ilustram as desigualdades sociais em saúde e as iniquidades em saúde bucal. As primeiras são entendidas como as diferenças no estado de saúde entre grupos definidos por características sociais, tais como: riqueza, educação, ocupação, raça e etnia, gênero, condições do local de moradia ou trabalho (Barata, 2009). Já as iniquidades dizem respeito às diferentes distribuições de condições de saúde bucal e do acesso a bens e serviços odontológicos (Moysés, 2000). De acordo com Moreira, Nations e Alves (2007), a condição bucal não permite apenas um registro quantitativo, mas, também, uma história vivida. Sujeitos pobres, com baixa escolaridade e menor inserção no mercado de trabalho, carregam marcas dentárias que expressam uma realidade objetiva e outra subjetiva, velada, as quais representam chagas da injustiça impressas na dentição. Ser pobre e ter aparência bucal precária amplificam as desigualdades existentes, contribuindo para a continuação do círculo vicioso do estigma e da discriminação social. A outra face das condições bucais é abordada com base no seguinte depoimento: (G156) “Se por um lado quem depende dos serviços públicos tem dificuldades até para manter os dentes na boca, quem pode pagar por um dentista especializado tem o céu como limite. Implantes, facetas de porcelana, clareamentos, são alguns dos recursos da odontologia estética para garantir um sorriso perfeito”.
Esse determinante econômico configura o que há de mais injustamente taxativo, em se tratando de acesso a tratamento odontológico: sua (falta de) opção ou o “céu como limite”, pois, quando o Estado falha no cumprimento de seu dever – o de garantir saúde à população de forma universal, igualitária e equânime –, o mercado determina a “alternativa possível” a partir de sua lógica capitalista.
Imaginário popular do dentista Em algumas matérias analisadas, vincula-se a imagem do cirurgião-dentista e do consultório dentário à dor e ao desconforto, como se pode perceber:
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(G17) “Você já entra na sala desconfiado. Minutos depois, o dentista ‘cega’ seus olhos com uma luz intensa. Os pés suam frio. Na hora da anestesia, as mãos se agarram firmes no ‘braço’ da cadeira. Mas nada é pior do que quando ele liga aquele terrível ‘motorzinho’ e se aproxima com a broca”.
Entende-se que o tratamento odontológico pode ser desconfortável em alguns casos, porém tais significações sociais, amplamente exploradas pela mídia, são influenciadas pelo imaginário da corporação odontológica brasileira, a partir das configurações históricas e na produção social do cirurgião-dentista e do dentista prático, herdeiros das tradições empíricas do cirurgião-barbeiro. Esses profissionais desenvolveram seus procedimentos cotidianos impregnados de conexões simbólicas e tendo como elemento dinamizador do imaginário popular o ato odontológico original: a extração dentária. Esta, quando não indicada corretamente, caracteriza-se como mutilação humana, contribuindo para a associação do tratamento dentário ao sofrimento e à angústia (Emmerich, 2000). Esse imaginário popular da figura do dentista associado ao medo e à dor é frequentemente explorado pela mídia (Henriquez, 1993), o que alimenta a perpetuação desse estigma relacionado com a Odontologia, sendo um verdadeiro flagelo para os indivíduos. Outra questão identificada no estudo foi a divulgação do “enfrentamento” desse medo de dentista perante a motivação estética de um sorriso bonito e do uso de novas tecnologias odontológicas, como se pode notar: (T168) “Não que o consultório dentário tenha repentinamente virado um programa prazeroso, mas como o desejo dos clientes é chegar ao sorriso ideal, é a partir dele que se inicia a consulta”.
Constata-se, assim, a valorização estética e “biotecnológica” nessa divulgação midiática, priorizando a perspectiva mercadológica da Odontologia em detrimento da exploração de seu papel social.
Patologização da halitose Os odores bucais são fatores de preocupação para os indivíduos e carregam consigo fortes valores culturais (Elias, Ferriani, 2006). A halitose, conhecida popularmente como “mau hálito” ou “bafo”, representa um fenômeno que acompanha o homem na sua trajetória social-histórica e pode possuir etiologias múltiplas, tanto por razões fisiológicas, como por razões patológicas, locais ou sistêmicas, devendo todas as possíveis causas serem investigadas e o tratamento direcionado de acordo com cada causa (Emmerich, Castiel, 2012). Contudo, identifica-se, na sociedade contemporânea, um clima paranoide de preocupação aliado a uma divulgação midiática ostensiva em relação ao “risco de estar com mau hálito” e sobre as “formas mais eficazes de preveni-lo”. Neste estudo, tal questão foi identificada nos seguintes trechos: (G21a) “Cerca de 60% dos brasileiros convivem diariamente com ele, mas ninguém gosta de falar sobre o assunto que, muitas vezes, causa situações constrangedoras”. (T135b) “Para evitar o ‘bafão’ o segredo é caprichar na higiene bucal”.
Verifica-se que essa inquietação quanto aos maus odores bucais é abordada a partir de uma estigmatização do mal-estar social inerente ao problema. Reflete-se, entretanto, que essa espetacularização desnecessária da questão está, subliminarmente, associada à tentativa biopolítica de tornar os sujeitos mais sociáveis e, também, à comercialização de “mercadorias” para melhor aceitação no mercado de trabalho, à autoaceitação e ao maior “conforto” social (Emmerich, Castiel, 2012). Além disso, verificou-se a divulgação de uma gama de produtos “aliviadores das mazelas” provocadas pela halitose, como por exemplo: (G91a) “Pessoa com mau hálito pode ser avisada por e-mail [...] O nome do serviço é SOS Mau Hálito”. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1055-68, out./dez. 2012
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É evidente que se devem buscar maneiras eficazes de tratar o desconforto provocado pela halitose, bem como identificar possíveis problemas sistêmicos que estejam provocando o mau odor bucal. Entretanto, o que se questiona são as motivações midiáticas na divulgação do controle do problema (para não afetar os relacionamentos e a ascensão social), priorizando a busca de produtos com eficácia rápida e impactos afetivos bombásticos, em vez da valorização da saúde bucal como um todo (Emmerich, Castiel, 2012). Além disso, essa patologização da halitose pode se tornar um fator de autocontrole socialmente incutido, totalmente desconexo do contexto social em que se insere o indivíduo, podendo significar “precariedades do excesso” de preocupações com o corpo, destituindo-o de características humanas, por essência, e reforçando o discurso autoritário de culpabilização do sujeito pela sua saúde (Castiel, Diaz, 2007; Castiel, Vasconcellos-Silva, 2006).
Valorização estética Verificou-se, a partir dos resultados, uma acentuada valorização midiática da estética do sorriso, como se confere nos trechos seguintes: (G74) “[...] Ter um sorriso perfeito é hoje quase uma obrigação no meio social e no mercado de trabalho”. (T84) “Em busca do sorriso perfeito [...] A busca por um sorriso perfeito tem levado mais pacientes aos consultórios de dentistas do que cáries, canais e dores de dentes”.
Além disso, percebeu-se a menção explícita da prescrição midiática da busca de “saber estético” especializado, assim como a exaltação dos custos de um belo sorriso, como se vê a seguir: (G156) “A gerente de vendas ‘X’ se orgulha de exibir um sorriso perfeito. E não era para menos. Nos últimos anos, ela gastou mais de R$ 10 mil para ficar com os dentes bonitos e branquinhos”.
Essa divulgação midiática ostensiva de questões estéticas reflete os valores sociais relacionados aos desejos e vaidades, os quais contribuem para a produção de um padrão estético utópico e de uma Odontologia sem fronteiras, sem crises nem recessão econômica, com mercado aberto e crescente (Emmerich, Castiel, 2009a; Amorim, Beatrice, Vicente da Silva, 2006). Percebe-se que até mesmo o nome fantasia “Brasil Sorridente”, da Política Nacional de Saúde Bucal (Brasil, 2004), caracteriza simbolicamente o “sorriso” como um elemento da saúde bucal, mas pode contribuir para fomentar o imaginário da aparência estética facial idealizada. Além disso, o direcionamento midiático, com extrema valorização consumista, aos potenciais clientes de tratamentos estéticos odontológicos, perpetua a imagem do objeto odontológico de seus sonhos – perfeito, extraordinário, “global ou hollywoodiano” –, levando à procura de cirurgiõesdentistas (muitas vezes anunciados na própria mídia) com essa demanda estética estereotipada.
Tecnologias a serviço da estética Em relação às biotecnologias odontológicas, a mídia também contribui na sua divulgação e, consequentemente, pauta na sociedade a demanda (real ou não) de tratamentos odontológicos cada vez mais “modernos” e “tecnólogo-dependentes”, como sugerido nos trechos abaixo: (T136a) “Tecnologia a serviço do sorriso [...] Novas técnicas e a evolução dos materiais ajudam os profissionais da odontologia a garantirem sorrisos mais perfeitos”. (T136b) “Se depender dos avanços tecnológicos e da evolução técnica da odontologia brasileira, não há mais boca sem salvação”. 1062
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A influência midiática no consumo e nos valores estéticos da população pode ser entendida por meio do modelo teórico de mercado simbólico, desenvolvido por Araújo (2004), no qual se admite que a comunicação opera à maneira de um mercado, em que estão presentes múltiplos e heterogêneos discursos que disputam o poder de fazer prevalecer determinada visão da realidade. Dessa forma, mediante a propaganda e a publicidade implícitas no conteúdo midiático, difundem-se determinados discursos (no caso, o estético-dependente) em detrimento de outros (que problematizam a saúde integral, por exemplo), constituindo-se hegemonias de sentidos, sobre modos de vir e intervir na realidade (Rangel-S, 2007). Nesse caso, parafraseando Castiel e Vanconcellos-Silva (2006), convertemse excessos em escassez, na ausência de sentidos. No caso, excesso de estética em escassez de percepção crítica das reais demandas em saúde bucal.
Determinantes da saúde bucal Os resultados apresentados nessa categoria foram divididos em subcategorias relacionadas aos determinantes sociais da saúde bucal e à relação entre saúde geral e saúde bucal. Os determinantes sociais da saúde são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população, segundo a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS) (Buss, Pellegrini Filho, 2007). Entende-se que os problemas de saúde bucal estão para além das questões fisiológicas, sendo também determinados por questões sociais, devendo se considerar, além dos dados epidemiológicos, os aspectos de natureza sociocultural e antropológica que determinam as atitudes em saúde bucal da população (Moreira, Alves, 2006). Os seguintes trechos contextualizam essa discussão: (G147) “A cárie e o jeito de morar [...] Quem diria...o surgimento da cárie dentária na infância também está atribuído a fatores sociodemográficos, como o número de pessoas por quarto de dormir”. (G156) “Como priorizar a saúde bucal quando não se tem nem o que comer direito?”
Essa articulação do adoecer bucal com as condições sociais da existência foi discutida nas Conferências Nacionais de Saúde Bucal (CNSB). No relatório da 3ª CNSB foi apresentada a análise de que as imagens do corpo humano, dentre elas as da boca e dos dentes, são expressões e símbolos da chaga da exclusão social. Seja pelos problemas de saúde localizados na boca, seja pela dificuldade de acesso aos serviços assistenciais, dentes e gengivas revelam o resultado das condições de vida precárias de milhões de pessoas em nosso país (Brasil, 2005). Outro trecho representativo, referente ao determinante social relacionado ao ambiente em que a pessoa vive e a saúde bucal, é assim descrito: (G45) “No caso dos capixabas, principalmente os moradores da área urbana da grande Vitória, o respirador oral sofre ainda mais. Isso porque essa é uma região muito poluída, com grande incidência de pó de minério vindo das fábricas”.
Entende-se que o local de moradia (tomando o espaço geográfico como indicativo de condições de vida da população que nela reside) e os fatores ambientais (urbanização, poluição atmosférica e dos corpos hídricos) também influenciam nos eventos de saúde e, consequentemente, de saúde bucal (Brasil, 2008). Em um contexto mais amplo, a posição social dos indivíduos e grupos sociais, medida por indicadores de classe social, como escolaridade e classes ocupacionais, ou a partir das condições de vida em determinados espaços geográficos, são poderosos determinantes do estado de saúde das populações, atuando sobre o perfil de morbidade e de mortalidade e também sobre o acesso e utilização dos serviços de saúde (Barata, 2009). Nesse contexto, percebe-se uma abordagem bem fundamentada da mídia, uma vez que as matérias apontam fatores que estão para além da responsabilidade individual, ou seja, as questões geográficas e ambientais que interferem diretamente no processo de adoecimento do cidadão. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1055-68, out./dez. 2012
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Saúde bucal/saúde sistêmica Sabe-se da estreita relação da saúde bucal com a saúde geral dos indivíduos. Entretanto, a prática odontológica não exercita uma interdisciplinaridade, expondo seus limites de compreensão dos fatores externos à boca, sobretudo no que diz respeito aos determinados ou potencializados pela sociedade (Kovaleski, Freitas, Botazzo, 2006). Sendo assim, os fragmentos seguintes problematizam essa questão: (G54) “Tem-se o péssimo hábito de desvincular a boca do resto do corpo”. (G56) “Falta de cuidado com a boca afeta saúde”. (G156b) “A saúde começa pela boca”.
Ampliando essa discussão, o conceito de bucalidade expande o entendimento da “boca” como um órgão da fala e da mastigação, desvendando suas expressões sociais, como: a manducação (apreensão, trituração, salivação e deglutição dos alimentos), a linguagem e a erótica (Botazzo, 2006). Revela, então, que a boca não se encontra isolada, mas, sim, que esta compõe um corpo conformado de dimensões biológicas, psíquicas e afetivas. Isso reforça a necessidade de uma prática odontológica não alienada que dê conta da boca como objeto coletivo. Portanto, ao se analisar o discurso midiático de que “a saúde começa pela boca”, recomenda-se parcimônia e olhar crítico, para não se incorrer num distanciamento e na fragmentação da percepção do objeto odontológico. Isso porque, uma vez que, ao se considerar que a cavidade bucal seria “onde tudo começa” no processo saúde-doença, a integralidade da saúde, as relações intersubjetivas entre os indivíduos e as condições socioeconômicas, amplamente discutidas neste trabalho, poderiam ser colocadas em segundo plano na problematização da questão (Emmerich, Castiel, 2009b).
Prevenção e hábitos Questões relacionadas aos hábitos de higiene e alimentares e à prevenção das doenças bucais foram destacadas no estudo, como se pode atestar: (G131) “Arroz e feijão podem prevenir cárie [...] O consumo dos alimentos proporciona dose diária de flúor, que ajuda no controle da doença”. (G169) “A cárie de mamadeira está relacionada, também, com outros hábitos introduzidos pelas mães, como por exemplo, chupetas com mel, açúcares e xaropes, e o uso da mamadeira por tempo prolongado”. (G127) “Questão de hábito. Não basta usar a escova. Para preservar os dentes, é preciso higienizar do jeito certo”.
Percebe-se, nos textos jornalísticos, a preconização da adoção de hábitos de higiene e de alimentação ideais, de acordo com o conhecimento científico, aliado a uma responsabilização do indivíduo na adoção de condutas preventivas. Essa abordagem preventiva está presente na atuação histórica da Odontologia e da saúde como um todo, tendo importância capital na manutenção da saúde bucal da população (Freitas, 2001). Contudo, ao se indicarem hábitos de higiene e alimentares dirigidos à população, deve-se considerar a questão do papel das estruturas sociais na determinação das escolhas subjetivas pelas possibilidades objetivas, as quais representam, segundo Bourdieu (1996), o principal fomentador de estilos de vida e de consumo. Sendo assim, almeja-se, do jornalismo, um modo inteligente e criativo de informar a sociedade, uma vez que uma relação “professoral” mídia-população, descontextualizada de suas demandas, de suas crenças e saberes populares em saúde bucal, determina uma comunicação arbitrária e ineficiente (Xavier, 2005). 1064
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Nessa acepção, a matéria que privilegia práticas alimentares triviais, como o consumo do arroz e feijão, que se configura como a dieta básica da maioria dos brasileiros, denota uma sensibilidade do discurso jornalístico com o contexto socioeconômico da população. Também é importante salientar que reportagens que apontam hábitos equivocados e que podem comprometer a saúde trazem significantes contribuições para a prevenção e a promoção da saúde bucal, desde que problematizados de maneira crítica. A divulgação midiática da prevenção na saúde bucal teve destaque, ainda, nas seguintes falas: (G79) “A palavra-chave na odontologia é prevenção”. (T11) “Dentistas defendem que, mesmo com amostras de maior eficácia em cremes dentais, o principal para evitar as cáries é a escovação”.
A Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) contém diretrizes que apontam para a reorganização da atenção à saúde bucal em todos os níveis de atenção. Dentre suas ações efetivas de promoção da saúde e prevenção, propõe a articulação com diversos atores sociais na identificação e difusão de informações sobre fatores de proteção à saúde (Brasil, 2004). Ressalta-se o significativo papel da mídia, mediante seu potencial de pautar o tema saúde bucal no cotidiano da população (Wolf, 1999), propagar essas informações relevantes por intermédio de seu potencial educativo (Gentilli, 2005) e de influenciar a opinião pública. Cria, assim, uma doxa coletiva, entendida como uma opinião consensual, a qual é permanentemente reestruturada e construída na sociedade pelos meios de comunicação (Xavier, 2006). No entanto, para que a mídia exerça esse papel educativo de maneira efetiva, deve-se atentar para que o discurso adotado não determine uma “mercadorização” do cuidar de si, sob o imperativo da autorresponsabilização da saúde, uma vez que o papel dos governos, das empresas e da sociedade, na prevenção e na promoção da saúde, deve ser também considerado (Vasconcellos-Silva et al., 2010).
Considerações finais A compreensão de como as matérias sobre saúde bucal são divulgadas na mídia impressa capixaba perpassou a problematização de diversos fatores sociais, culturais, políticos, biológicos e econômicos. Tal rede, multifatorial, destaca a determinação social como fator peremptório da saúde bucal, constatandose, assim, a importância de se buscar uma comunicação midiática que considere essas dimensões sóciohistóricas na abordagem da temática. Além disso, pôde-se refletir e concluir que a mídia, ao veicular uma valorização estética exacerbada, perpetua um mercado simbólico centrado nos desejos e vaidades, ancorados numa filosofia consumista, que não só distancia a percepção do objeto odontológico como um objeto coletivo e determinado socialmente, como também fomenta, no imaginário popular, uma demanda estética utópica descontextualizada das reais necessidades e possibilidades da saúde da população como um todo. Dessa forma, almeja-se uma divulgação midiática que exerça sua potência de educação e promoção da saúde bucal de forma interativa e dialógica, considerando as diversas realidades existentes naquele contexto social e incitando a conscientização crítica dos indivíduos, em vez de responsabilizá-los e culpabilizá-los pela sua saúde. O discurso midiático poderia, assim, contribuir para uma conscientização do indivíduo, fundamentando-se nos princípios da corresponsabilidade, sendo o cidadão e o Estado corresponsáveis pela promoção da saúde para que se possa estabelecer uma relação de alteridade. Além disso, espera-se um esclarecimento popular sobre a assistência pública de saúde bucal no SUS, o acesso e a organização desses serviços no estado do Espírito Santo e no Brasil. Cabe ressaltar que, como assevera Foucault (2007), o poder é exercido por meio das microrrelações sociais presentes em instituições, como a escola, a família, a religião e a mídia. No entanto, onde há poder há resistência, sendo cada um de nós titular de determinado poder e, portanto, ‘veiculador’ desse poder. Nesse sentido, as relações interativas entre os sujeitos desenvolvem suas estratégias de exercício de tal poder em prol de suas necessidades, de suas opiniões e de seus desejos, podendo se contrapor à mídia em seus interesses. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1055-68, out./dez. 2012
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Portanto, para garantir a qualidade das informações em saúde bucal, torna-se indispensável o aprimoramento de um olhar crítico da sociedade para a divulgação midiática, assim como também se faz necessário que se exerça um controle social efetivo na luta por uma comunicação em saúde contextualizada e em conformidade com os interesses sociais. Afinal, o comprometimento com uma comunicação em saúde de qualidade exige, basicamente, coragem para encontrar soluções, e não, simplesmente, se apontarem culpados.
Colaboradores Aline Guio Cavaca responsabilizou-se pela coleta, análise e interpretação do material empírico e pela redação do artigo. Victor Gentilli responsabilizou-se pela análise e interpretação dos dados e pela revisão crítica e aprovação da versão final do artigo. Eliana Martins Marcolino responsabilizou-se pela revisão crítica e pela aprovação da versão final do artigo, e Adauto Emmerich responsabilizou-se pela análise e interpretação dos dados, revisão crítica e aprovação da versão final do artigo.
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CAVACA, A.G. et al. Las representaciones de la Salud Bucal en los medios impresos. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1055-68, out./dez. 2012. Fue realizada una investigación qualitativa para entender como las informaciones sobre la Salud Bucal son difundidas por los medios de comunicación impresos en el estado del Espírito Santo – Brasil, utilizando análisis del contenido de 66 reportajes publicados de marzo 2004 a junio 2009, en los periódicos A Gazeta e A Tribuna. Los materiales empíricos originaron siete categorias: responsabilización del indivíduo, realidades extremas, imaginario popular del dentista y de consultorio, su patología de la halitosis, valoración estética, determinantes de la salud bucal, prevención y hábitos. El planteamiento em los medios de comunicación de la salud bucal tiene una complejidad de factores sociales, culturales, políticos, biológicos, económicos, que pone de relieve la importancia de una comunicación contextuada con los intereses de la sociedad, interactiva y dialógica que explore su potência crítica en la educación y promoción de la salud, transmitiendo de manera consciente el consumismo en Salud Bucal.
Palabras clave: Salud Bucal. Comunicación en salud. Medios de comunicación de masas. Salud Pública. Recebido em 02/11/11. Aprovado em 20/06/12.
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Terapia comunitária: prática relatada pelos profissionais da rede SUS de Santa Catarina, Brasil
Cristina dos Santos Padilha1 Walter Ferreira de Oliveira2
PADILHA, C.S.; OLIVEIRA, W.F. Community therapy: practice reported by professionals within SUS in Santa Catarina, Brazil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1069-83, out./dez. 2012. The aim of this exploratory and descriptive study was to describe the community therapy practices reported by 27 healthcare professionals within the Brazilian National Health System (SUS), in Santa Catarina, Brazil. The data were gathered through individual semidirected interviews, and content analysis was used for categorical themes. The results were grouped into five categories: community therapy practices; implementation strategies; difficulties; facilitative elements; and benefits. It was concluded that community therapy can contribute towards construction of expanded clinical action and improved value for territory resources. However, community therapists’ actions need to be extended to a multidisciplinary team, have dialogue with other entities, receive support from service management and be allied to other public policies, in order to expand their field of action from healthcare to other sectors.
Keywords: Community therapy. SUS. Healthcare professionals. Healthcare practices. Psychosocial intervention.
O objetivo deste estudo, de natureza exploratória e descritiva, foi descrever as práticas de Terapia Comunitária relatadas por 27 profissionais de saúde da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) de Santa Catarina, sul do Brasil. Os dados foram coletados por meio de entrevistas individuais semidirigidas, empregando-se a Análise de Conteúdo como temática categorial. Os resultados foram agrupados em cinco categorias: práticas de terapia comunitária; estratégias de implantação; dificuldades; elementos facilitadores; e benefícios. Conclui-se que a Terapia Comunitária pode contribuir para a construção de uma clínica ampliada e para a valorização dos recursos do território. No entanto, é necessário que a atuação do terapeuta comunitário seja estendida a uma equipe multidisciplinar, dialogue com outros dispositivos, receba o apoio das gestões dos serviços e se alie a outras políticas públicas, ampliando seu campo de ação da saúde para outros setores.
Palavras-chave: Terapia comunitária. SUS. Profissionais de saúde. Práticas de saúde. Intervenção psicossocial.
1 Departamento de Psicologia, Universidade do Oeste de Santa Catarina. Rua Clevelândia, 32 D, apto. 703, Centro. Chapecó, SC, Brasil. 89.802-410. padilha.psico@gmail.com 2 Departamento de Saúde Coletiva, Universidade Federal de Santa Catarina
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TERAPIA COMUNITÁRIA: PRÁTICA RELATADA ...
Introdução A Terapia Comunitária (TC), desenvolvida pelo Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará e sistematizada desde 1987, é definida como uma metodologia de intervenção em comunidades, por meio de encontros interpessoais e intercomunitários. Seu objetivo é a promoção da saúde através: da construção de vínculos solidários, valorização das experiências de vida dos participantes, do resgate da identidade, da restauração da autoestima e ampliação da percepção dos problemas e possibilidades de resolução a partir das competências locais (Andrade et al., 2009). Esse instrumento se propõe a auxiliar a construção de redes solidárias e tem como alicerce cinco eixos teóricos: Pensamento Sistêmico, Teoria da Comunicação, Antropologia Cultural, Pedagogia de Paulo Freire e conceito de Resiliência. Esses enfoques teóricos legitimam algumas premissas e posturas adotadas pelos terapeutas comunitários, tal como o reconhecimento da importância de perceber o sujeito em seu contexto, como parte indissociável de uma rede de relações. As trocas intersubjetivas são mediadas pela linguagem, daí a necessidade de se contextualizar culturalmente as diversas palavras e significados, valorizando conhecimentos, crenças e manifestações populares imprescindíveis para a transformação do indivíduo em sujeito agente de sua própria história. As experiências de vida e o conhecimento delas advindo devem ser partilhados de forma horizontal e circular. Acredita-se que indivíduos e grupos sociais dispõem de mecanismos próprios para superar as adversidades contextuais (Camargo, 2005). A aprovação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) em 2006 dá subsídios para estender a TC – prática que já acontece há mais de vinte anos em Fortaleza – a outras regiões do país. Em 2008, é firmado um convênio entre o Ministério da Saúde (MS) e a Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura para implantar a TC na Rede de Assistência à Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). O projeto visa desenvolver, nos profissionais de saúde e nas lideranças comunitárias, as competências necessárias para lidar com os sofrimentos e demandas psicossociais e promover redes de apoio social, ampliando a resolutividade da Atenção Básica (Brasil, 2006c). A inserção da TC no SUS responde às demandas expressas na Política Nacional de Atenção Básica, entre elas: a implementação das diretrizes da Política Nacional de Humanização (PNH) através do acolhimento, da realização da escuta qualificada das necessidades dos usuários e do estabelecimento do vínculo (Brasil, 2008; 2006a). Responde, também, aos interesses da Política Nacional de Promoção da Saúde, que tem como uma de suas diretrizes fortalecer a participação social, entendendo-a como fundamental na consecução de resultados de promoção da saúde, em especial, a equidade e o empoderamento individual e comunitário, privilegiando as práticas de saúde sensíveis à realidade do Brasil (Brasil, 2006b). Em Santa Catarina, em 2009, foram selecionados profissionais de saúde para a realização de um curso de formação em TC, financiado pelo MS e pela Secretaria de Saúde do Estado. A relevância de tal proposta ancora-se na visão de que são necessários novos sujeitos com tecnologias apropriadas para encontrar respostas satisfatórias construídas coletivamente. A necessidade de se implantar um modelo de atenção à saúde mental com base comunitária, priorizando-se a promoção da saúde e a prevenção do adoecimento, coincide com a proposta da TC de criar redes de apoio solidárias a indivíduos e famílias que vivenciam situação de sofrimento emocional ou psíquico. O presente trabalho resgata essa experiência de capacitação e objetiva descrever as práticas de TC relatadas pelos profissionais de saúde da rede SUS de Santa Catarina.
Práticas de TC no contexto da saúde coletiva As pesquisas sobre a TC no contexto da saúde coletiva têm se voltado para as repercussões desse instrumento na vida do usuário. Alguns estudos abordam a realidade da Atenção Básica, nos grupos específicos de TC ou nos grupos temáticos que ocorrem nas unidades de saúde, como grupos com gestantes ou idosos, e que incorporam essa metodologia (Andrade et al., 2010; Filha et al., 2009; Guimarães, Vala, 2009; Rocha et al., 2009; Souza et al., 2007; Victor et al., 2007; Guimarães, 2006; 1070
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Holanda, 2006). Outros estudos se voltam para o contexto dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), indicando a TC como um instrumento capaz de fomentar a construção da rede e explorar os recursos do território (Filha, Carvalho, 2010; Mota, 2007; Machado, 2006). Alguns autores discorrem ainda sobre a necessidade de capacitação dos profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF) para a promoção de um atendimento integral, o que requer lidar, também, com as demandas de saúde mental, apontando a TC como um instrumento que pode responder parcialmente a essa demanda profissional (Silva, 2010; Soares, 2008; Fukui, Machetti, 2004). A TC praticada no âmbito do SUS traz inovações às práticas grupais: importa mais a experiência de vida das pessoas do que o saber técnico, todos detêm conhecimento, sem hierarquizações das relações interpessoais, sendo desejável que as pessoas compartilhem sentimentos. Nesse espaço, a identidade do terapeuta comunitário prevalece sobre a identidade do profissional de saúde, essa é a essência da proposta que pretende fortalecer vínculos e humanizar as relações entre a comunidade e os profissionais. Tal forma de atuar é congruente com a proposta da clínica ampliada e com o enfoque transdisciplinar em saúde. De acordo com Campos (2005), a clínica ampliada, uma das diretrizes da PNH (Brasil, 2008), requer que o profissional construa vínculos duradouros com os usuários e se aproxime das redes familiares e sociais dos mesmos. Através da elucidação dos aspectos orgânicos, subjetivos e sociais de cada sujeito, é possível respeitar a singularidade de cada caso. O enfoque transdisciplinar (Lopes, 2009), por sua vez, faz dialogar diversas formas de saber e vários níveis de realidade, trazendo importantes contribuições para a prática clínica, já que, filosoficamente, todo membro da equipe é considerado um parceiro de igual para igual, e suas habilidades profissionais, qualidades pessoais, valores, tradições culturais, emoções, conhecimento, treino e experiências de vida são atributos valiosos para o funcionamento do grupo, incluindo o doente. O acolhimento, uma das diretrizes da PNH, é percebido, por Tesser, Poli Neto e Campos (2010), como uma proposta para a melhoria das relações dos serviços de saúde com os usuários, concretizado no encontro do usuário que procura o serviço espontaneamente com profissionais de saúde e caracterizado pela escuta, processamento da demanda e busca de resolução. Essas formas de atenção à demanda espontânea propõem-se a servir de elo entre as necessidades dos usuários e as várias possibilidades de cuidado. A ideia é retirar do médico o papel de único protagonista do cuidado, ampliar a clínica realizada pelos outros profissionais e incluir outras abordagens e explicações, além das biomédicas, para os adoecimentos e demandas. Daí a necessidade de se ampliar a oferta de serviços e de cuidados, sendo desejável a oferta e invenção de rituais de encontro, espaços terapêuticos individuais e coletivos, o que requer estímulo institucional e um processo de educação permanente e capacitação clínica para os profissionais. O acolhimento pode chegar a auxiliar a desmedicalização quando, além da habilidade clínica, houver: trabalho conjunto em equipe, construção de projetos terapêuticos e avaliações de riscos/vulnerabilidades individuais e coletivas, e consideração de elementos da vida familiar e social, para uma abordagem ampliada dos problemas. Gomes e Merhy (2011), através de revisão de artigos sobre Educação Popular em Saúde e discorrendo sobre as redes de apoio social no território, afirmam que a TC pode integrar ações de prevenção e promoção à saúde que tomam como foco o sujeito, e não as doenças. No entanto, os autores defendem que tais práticas não podem ser desenvolvidas de forma desarticulada de outros modos de luta social, para evitar que seu resultado seja mera resignação ou culpabilização dos sujeitos. Por isso, o terapeuta comunitário deve: reforçar vínculos entre as pessoas, mobilizar recursos e competências locais, respeitar as distintas culturas, promover redes de proteção e inclusão, e favorecer a conscientização social. Articular atividades dentro da comunidade e entre esta e a rede mais ampla auxilia não só a divulgação da TC, mas a resolução de problemas e a realização de encaminhamentos necessários. A criação de uma equipe de trabalho comunitário pode auxiliar nas articulações necessárias, sendo o trabalho orientado para o incremento da autonomia de indivíduos, grupos e redes (Luisi, 2006). Somente essas articulações intersetoriais do terapeuta comunitário são capazes de proporcionar o empoderamento psicológico e comunitário. Segundo Carvalho (2004), o empoderamento psicológico é um sentimento de maior controle sobre a própria vida que os indivíduos experimentam através do pertencimento a distintos grupos, e que pode ocorrer sem que as pessoas participem de ações políticas 1071
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coletivas. Já o empoderamento comunitário (Carvalho, Gastaldo, 2008) demanda novos modos de fazer saúde, nos quais os usuários sejam percebidos na sua singularidade de sujeitos portadores de direito, implicando o enfrentamento das causas da iniquidade social, a legitimação de grupos marginalizados e a remoção de barreiras que limitam a produção de uma vida saudável para distintos grupos sociais. O empoderamento comunitário é um enfoque congruente ao de promoção da saúde tal como enunciado por Buss (2003), para quem, inicialmente, a promoção caracteriza um nível de atenção da medicina preventiva e evolui para um enfoque político e técnico em torno do processo saúde-doençacuidado. Tal enfoque está associado a valores como: vida, saúde, solidariedade, equidade (distribuição de renda e acesso a bens e serviços), democracia, cidadania, desenvolvimento, participação e parceria, sendo complementar ao enfoque da prevenção. A promoção da saúde identifica e enfrenta os macrodeterminantes do processo de saúde-doença e busca transformá-los na direção da saúde, tendo como objetivo contínuo um nível ótimo de saúde. Para tanto, fazem-se necessários: o protagonismo de indivíduos não técnicos e de movimentos sociais, ações combinadas de políticas públicas, modificações de estilos de vida e intervenção ambiental. Saúde é sinônimo de bem-estar e qualidade de vida, estado dinâmico socialmente produzido. O pensamento de Paulo Freire é um dos eixos teóricos da TC e a base da Educação Popular, caracterizada por Vasconcelos (2004) como um saber importante para a construção da participação popular, servindo não apenas para a criação de uma nova consciência sanitária, como, também, para uma democratização mais radical das políticas públicas. Não é apenas um estilo de comunicação e ensino, mas, também, um instrumento de gestão participativa de ação social. É, ainda, o jeito brasileiro de fazer promoção da saúde. O autor ressalta a importância de que a Educação Popular deixe de ser uma prática social que acontece de forma pontual no SUS, por meio da luta heroica de alguns profissionais e de movimentos sociais, para ser generalizada amplamente nos diversos serviços de saúde. Uma das estratégias apontadas para isto é o apoio a iniciativas de formação profissional que busquem reorientar as atitudes dos trabalhadores de saúde na relação com a população, de forma a problematizar vivências, compartilhar iniciativas de enfrentamento e busca de soluções, e valorizar a curiosidade na busca de entendimento das raízes das questões sociais mais importantes. Na visão de Albuquerque e Stotz (2004), apesar de a educação popular se destacar dentre as formas alternativas de educação em saúde, podendo constituir-se um instrumento auxiliar na incorporação de novas práticas por profissionais e serviços de saúde, no dia a dia pouca ou nenhuma importância é dada às ações educativas. Trabalhos em grupos são, muitas vezes, marginalizados, profissionais envolvidos desacreditados e desestimulados, a infraestrutura escassa e de difícil acesso. São grandes as dificuldades das equipes de saúde para efetivarem uma prática cotidiana de promoção através de ações educativas. Quando isso acontece, dá-se, muitas vezes, de acordo com o interesse individual dos profissionais, dificilmente estimulando a autonomia e a conscientização das comunidades. Os relatos de experiências de educação popular em saúde nos serviços frequentemente referem-se à “falta de apoio” das coordenações ou das secretarias municipais e estaduais, refletindo o sentimento dos profissionais de estarem solitários no desenvolvimento deste trabalho. A educação para a saúde tem enfrentado grandes desafios criados pelas suas próprias e contraditórias proposições, em que assumem lugar de destaque: a promoção da livre escolha e, simultaneamente, do ditar de escolhas saudáveis; a necessidade de compatibilizar a livre escolha com as opções ditadas pela medicina; a promoção da autonomia; o advogar de determinadas racionalidades, e a aceitação de escolhas individuais, mesmo se não forem compatíveis com uma vida saudável. A maioria das ações de educação para a saúde continua centrada na prevenção de doenças e na responsabilização individual, não considerando as causas sociais da falta de saúde com a ênfase desejada. As práticas de educação para a saúde têm privilegiado a informação, assumindo ser possível modificar o comportamento individual pela comunicação de mensagens e através de múltiplas estratégias de argumentação, onde se acentuam os efeitos nocivos sobre a saúde, se contrapõem estilos de vida mais saudáveis, se apela à responsabilidade social do portador de determinado risco (Mendes, 2009).
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.16, n.43, p.1069-83, out./dez. 2012
PADILHA, C.S.; OLIVEIRA, W.F.
artigos
Método Este estudo caracterizou-se como exploratório e descritivo. Participaram 27 profissionais de saúde, capacitados em um curso de Terapia Comunitária, oferecido pela Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina, em parceria com o MS. Realizado entre 2009 e 2010, o curso disponibilizou 35 vagas e priorizou capacitar trabalhadores da saúde e da assistência social da região do Vale do Itajaí, devido às enchentes e desastres ambientais ocorridos em 2008. O critério de inclusão dos sujeitos nesse estudo foi atuação profissional em serviços vinculados às Secretarias de Saúde dos municípios contemplados com o curso. Dos 28 profissionais que foram contatados, apenas um recusou-se em participar do estudo. Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas individuais semidirigidas, gravadas e, posteriormente, transcritas. As questões do roteiro, pelo fato de suscitarem um discurso direto e simples, permitiram uma análise por categorias, desmembrando o texto em unidades temáticas. Tomando como referência o trabalho de Bardin (1977), a análise de conteúdo temática categorial seguiu três etapas: Pré-análise; Exploração do material textual; Tratamento dos resultados, inferência e interpretação. A sistematização dos resultados foi pautada por procedimentos propostos por Oliveira (2008) e está expressa no Quadro 1.
Resultados e discussão Caracterização dos participantes Participaram deste estudo 27 profissionais de saúde da rede SUS de Santa Catarina, dos quais 17 (62,97%) são da região do Vale do Itajaí, das cidades de Apiúna, Blumenau, Gaspar, Indaial, Itajaí, Rodeio e Timbó. Dez (37,03%) profissionais são da região do Litoral, das cidades de Florianópolis e Palhoça. Dentre os participantes, 20 (74,07%) são do sexo feminino e sete (25,93%) do sexo masculino, a maioria na faixa etária de trinta e 39 anos (12 - 44,44%), seguidos por participantes com idade entre vinte e 29 anos (7 - 25,93%), entre quarenta e 49 anos (5 - 18,52%), sendo somente três (11,11%) participantes pertencentes à faixa etária de cinquenta a 59 anos. Em relação à renda familiar, 15 (55,56%) profissionais enquadram-se na categoria que compreende entre cinco e dez salários-mínimos, seis (22,22%) têm renda familiar até cinco salários-mínimos, e seis (22,22%) têm renda familiar superior a dez salários-mínimos. A maioria dos sujeitos tem especialização latu sensu (17 - 62,96%), seguidos por profissionais com curso Superior completo (9 - 33,33%), e por um (3,71%) profissional com curso técnico. Em relação aos cargos ocupados, a maioria atua em equipes técnicas (21 - 77,78%) e o restante na gestão (4 - 14, 81%) e em coordenações de serviços (2 - 7,41%). A maioria dos profissionais tem experiência no cargo entre um e cinco anos (15 - 55,56%), seguidos por profissionais com experiência entre seis e dez anos (6 - 22,22%), com experiência menor que um ano (4 - 14,81%) e superior a dez anos (2 - 7,41%). Dentre os serviços a que estão vinculados, encontram-se serviços da Atenção Primária, onde atuam dez (37,04%) sujeitos, serviços da Atenção Secundária (basicamente os CAPS), onde atuam 13 (48,15%) entrevistados, e instituições de gestão dos serviços de saúde, onde atuam quatro (14,81%) profissionais.
TC praticada na rede SUS de Santa Catarina A partir da Análise de Conteúdo temática categorial (Bardin, 1977), foram obtidos 29 temas, compostos de trezentas e dez unidades de registro, que se agruparam em cinco categorias: Práticas de TC, Estratégias de Implantação, Dificuldades, Elementos Facilitadores e Benefícios. A seguir, serão detalhados os conteúdos de cada categoria, bem como alguns aspectos relevantes emergentes no processo de categorização do conteúdo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1069-83, out./dez. 2012
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TERAPIA COMUNITÁRIA: PRÁTICA RELATADA ...
Quadro 1. Demonstrativo do processo de construção das categorias temáticas – operacionalização proposta por Oliveira (2008) Cód.
1074
Temas/unidades de significação
Total UR
Total entrev.
01
Grupos na atenção básica
17
13
02
Grupos no caps
14
13
03
Aplicação de preceitos da tc a outras práticas
07
07
04
Grupos na comunidade
05
05
05
Grupos com profissionais de saúde
05
05
06
Realização de grupos com profissionais do serviço
05
05
07
Auxílio dos ACS para divulgação
05
05
08
Elaboração de projeto para a gestão local
03
03
09
Capacitação de ACS para atuarem como coterapeutas
02
02
10
Divulgação através de cartazes
01
01
11
Resistência dos usuários a trabalhos grupais
22
10
12
Sobrecarga de trabalho
18
11
13
Decorrentes do formato metodológico
17
12
14
Decorrentes da estrutura e do processo de trabalho
09
09
15
Falta de apoio da gestão local
08
04
16
Falta de apoio dos demais profissionais do serviço
03
03
17
Problemas pessoais
03
03
18
Receptividade dos usuários e demais profissionais do serviço
05
05
19
Vinculação prévia dos usuários ao serviço
04
04
20
Presença de profissional que auxilie a condução do grupo
01
01
21
Apoio da gestão local
01
01
22
Efeito terapêutico
38
22
23
Fomento das práticas grupais
28
18
24
Atenção às demandas de saúde mental
25
18
25
Fomento às redes sociais
21
17
26
Acolhimento
12
11
27
Autonomia
09
07
28
Atenção humanizada
09
08
29
Congruência com a realidade do SUS
07
07
30
Empoderamento
06
05
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Categoria
Total UR
%
Práticas de TC
48
15,48
Estratégias de implantação
16
5,16
Dificuldades
80
25,81
Elementos facilitadores
11
3,55
Benefícios
155
50,00
PADILHA, C.S.; OLIVEIRA, W.F.
artigos
Práticas de TC Essa categoria contém 48 (15,48%) unidades de registro, agrupadas em cinco temas que expressam os diferentes usos que os profissionais relataram ter dado à TC a partir de sua realidade concreta de trabalho, englobando práticas decorridas (27 grupos) e práticas perpetuadas até o momento da coleta de dados (vinte grupos). A TC é predominantemente aplicada no contexto da Atenção Básica, sendo também utilizada nos CAPS, em grupos específicos ou aplicando seu formato metodológico a outros grupos temáticos oferecidos nos serviços. Outro uso que os profissionais relatam fazer dessa metodologia é aplicar algum de seus preceitos a outras práticas por eles desenvolvidas. Nesse caso, a TC não é realizada tal como proposto pela formação, com todas as suas etapas e regras, mas alguns aprendizados que os profissionais consideram relevantes passam a ser norteadores de outras práticas desenvolvidas no âmbito da saúde coletiva, como o preceito da horizontalidade: “Na verdade, a seqüência eu não utilizo, mas tiro bastante coisas da TC para passar para eles (usuários). Tudo o que eu aprendi no grupo, da simplicidade, de estar junto com eles, de não achar que é profissional e que está acima, então eu procuro sempre olhar por esse lado. Eu já vinha tentando fazer isso, mas a TC me ensinou a mostrar para eles esse lado, que para mim é muito importante, mais importante do que qualquer outra teoria”. (Sujeito 01)
Os profissionais de saúde utilizam a TC também nas comunidades, desvinculando esses grupos da estrutura física dos serviços de saúde. Esse uso está mais atrelado à proposta de Adalberto Barreto, de valorização do contexto comunitário e, embora considerado desejável pelos profissionais, exige outro nível de articulação com o território e demanda o deslocamento dos serviços onde atuam, o que, na prática, dificilmente ocorre. Tal resultado evidencia que os profissionais de saúde encontram obstáculos para fazerem articulações com as comunidades e para que a TC possa integrar aquilo que Gomes e Merhy (2011) consideram como ações de prevenção e promoção à saúde articuladas com outros modos de luta social. Foi também relatada a realização de grupos de TC com profissionais de saúde, como um espaço destinado ao cuidado dos cuidadores. O cuidado do cuidador é um dos módulos da capacitação em TC, bastante valorizado pelos profissionais entrevistados, que se sentiram cuidados. É possível que, a partir dessa capacitação, os profissionais de saúde tenham se sensibilizado para a necessidade de cuidar dos demais profissionais da rede, como uma forma de valorização profissional.
Estratégias de implantação Essa categoria contém 16 (5,16%) unidades de registro, agrupadas em cinco temas relativos aos procedimentos adotados pelos sujeitos com a finalidade de efetivar a prática da TC em seu cotidiano de trabalho. Dentre as estratégias utilizadas, foram relatadas: realização de grupos com profissionais dos serviços, para que conhecessem a proposta e pudessem divulgá-la para os usuários ou, até mesmo, para que pudessem fazer encaminhamentos para esse espaço coletivo; auxílio dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS’s), para divulgarem o grupo nas áreas de abrangência dos serviços; elaboração de um projeto para a gestão local, para formalizar a nova proposta e obter autorização para aplicá-la; capacitação de ACS’s para atuarem como coterapeutas, e divulgação através de panfletos e cartazes. Tais estratégias de implantação restringiram-se ao setor saúde, pois, como já relatado, os sujeitos encontram dificuldades para fazerem articulações com instituições comunitárias e movimentos sociais. Os profissionais que têm mais condições para realizar essa articulação, por conta das práticas diárias de visitas domiciliares, são os ACS’s, daí a importância de capacitar essa categoria para a condução de trabalhos grupais. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1069-83, out./dez. 2012
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TERAPIA COMUNITÁRIA: PRÁTICA RELATADA ...
Dificuldades Essa categoria contém oitenta (25,81%) unidades de registro, agrupadas em sete temas que classificam as dificuldades percebidas pelos profissionais de saúde para inserir a TC na rede SUS de Santa Catarina. Um dos temas presentes nessa categoria é a resistência dos usuários a trabalhos grupais, característica atribuída à predominância de um modelo biomédico que se reflete na expectativa por atendimento individual. E, num grupo que se propõe a acolher sofrimentos e dificuldades, tal expectativa faz-se ainda mais notável já que os usuários têm receio de expor suas fragilidades e vulnerabilidades no contexto coletivo, diante de pessoas conhecidas. Além disso, a proposta da TC é nova, ainda pouco difundida, e esse desconhecimento a nível social traz prejuízos para a adesão dos usuários. Conforme os profissionais relatam, parece ainda não haver uma cultura de grupo entre os usuários e seus familiares, o que corrobora a dificuldade de adesão aos encontros de TC, apontada por Filha e Carvalho (2010). Para tal impasse, pode-se buscar respaldo na reflexão que realiza Mendes (2009) a respeito da preponderância de modelos de educação em saúde caracterizados por relações grupais hierarquizadas e centrados na prevenção de doenças e na responsabilização individual, sem considerar as causas sociais de saúde com a ênfase desejada. É preciso apontar, também, a necessidade de se avaliarem os usuários previamente ao encaminhamento aos grupos de TC, de forma que os critérios do encaminhamento não se restrinjam à oferta de tal atividade grupal e visem, prioritariamente, os benefícios advindos de tais encontros. Além disso, tal avaliação prévia garante certa vinculação entre usuário e profissional de saúde, potencializando a adesão ao grupo. A sobrecarga de trabalho é outro fator apontado como dificuldade, já que a TC precisa ser agregada às várias demandas profissionais, o que nem sempre é possível. Como existem poucos terapeutas comunitários capacitados, muitas vezes, não existe auxílio para planejar e executar as dinâmicas dos grupos, sobretudo quando desvinculados dos serviços de saúde, em instituições da comunidade. Foram relatadas dificuldades decorrentes do formato metodológico da TC, pois algumas padronizações em relação à sua condução não responderam às demandas de contextos grupais específicos. Em determinados contextos, os usuários não conseguem seguir as regras do grupo, têm dificuldades com sua proposta mais lúdica ou têm dificuldades para entender o papel do profissional de saúde quando ocupa o lugar de terapeuta comunitário, conforme evidencia a seguinte passagem: “Por mais que o terapeuta e o co-terapeuta ficassem mais livres, como mediadores mesmo, que é o que a proposta traz, algumas pessoas colocaram que queriam ir para lá para ouvir mais, queriam saber mais da gente já que estavam acompanhadas de duas profissionais. Aquilo ficou tão marcado, porque a gente discutia tanto essa questão de sair do lugar, e a gente tentou tanto sair desse lugar para depois ouvir do usuário ‘eu estou aqui com duas profissionais e vocês não trazem nada a mais do que eu já sei? Eu não quero ouvir os meus vizinhos, eu queria saber mais sobre a depressão, sobre os transtornos de ansiedade’. Eles queriam o saber técnico e não o saber popular, por mais que a gente explicasse a proposta”. (Sujeito 10)
Os profissionais revelam sentimentos de frustração decorrentes da falta de corresponsabilização dos usuários pelos processos de saúde-doença, o que caracteriza uma postura de pouco envolvimento na busca de resoluções dos problemas. Nesse emaranhando de expectativas, os profissionais parecem acreditar que a corresponsabilização dos usuários é o elemento que irá efetivar os objetivos das práticas de saúde; e, por outro lado, os usuários esperam dos profissionais soluções para seus problemas, estando o setor saúde praticamente desarticulado das demais esferas e instituições sociais. Aqui vale resgatar as premissas da promoção da saúde propostas por Buss (2003), cujo objetivo seria o enfrentamento dos macrodeterminantes do processo saúde-doença e a busca contínua de um nível ótimo de saúde, entendida como um estado dinâmico e socialmente produzido. Para tanto, se fazem 1076
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PADILHA, C.S.; OLIVEIRA, W.F.
artigos
necessários: a ação intersetorial, o protagonismo de indivíduos não técnicos e de movimentos sociais, ações combinadas de políticas públicas, modificações de estilos de vida e intervenção ambiental. Também geraram dificuldades fatores classificados como decorrentes da estrutura e do processo de trabalho dos profissionais. A falta de espaços apropriados para trabalhos grupais nos serviços, contraditoriamente às demandas da saúde coletiva, constitui um fator que dificulta e, em alguns casos, inviabiliza a realização da TC. Outras situações decorrentes do processo de trabalho, tais como férias e mudança de serviço dos profissionais, interrompem provisória ou definitivamente os grupos, prejudicando a vinculação entre os usuários e destes com os profissionais que são referência naquele contexto grupal. Esse tema inclui, ainda, a resolução do Conselho Federal de Assistência Social (CFESS 569, de 25 de março de 2010) que dispõe sobre a vedação da realização de terapias associadas ao título e/ou ao exercício profissional do assistente social. A falta de apoio da gestão local também dificulta a prática da TC pelos profissionais de saúde. A difusão dessa prática integrativa de cuidado requer investimentos em novas capacitações e incentivos para que os profissionais capacitados possam fazer um trabalho que não se limite aos serviços onde atuam, envolvendo e integrando as comunidades de forma mais ampla. Finalmente, a falta de apoio dos demais profissionais do serviço, atribuída ao desconhecimento dessa tecnologia de cuidado, e problemas pessoais são também apontados como obstáculos para a efetivação dessa nova proposta. As dificuldades relatadas corroboram a desvalorização das ações educativas no cotidiano dos serviços, elucidada por Albuquerque e Stotz (2004), segundo os quais se evidencia: na marginalização do trabalho grupal, na falta de estímulo aos profissionais envolvidos, na ausência de infraestrutura adequada, e na falta de apoio das secretarias municipais e estaduais de saúde. As práticas de promoção através de ações educativas são, assim, delegadas ao interesse individual daqueles que persistem e que sozinhos, dificilmente, conseguem estimular a autonomia e a conscientização das comunidades.
Elementos facilitadores Essa categoria contém apenas 11 (3,55%) unidades de registro, agrupadas em quatro temas que expressam os fatores que auxiliaram a inserção da TC no contexto da saúde coletiva. Dentre os temas apresentados, encontram-se: receptividade dos usuários e demais profissionais do serviço; vinculação prévia dos usuários ao serviço; presença de um profissional que auxilie a condução do grupo, e apoio da gestão local.
Benefícios Essa categoria contém 155 (50,00%) unidades de registro, agrupadas em dez temas relativos aos benefícios proporcionados pela TC na percepção dos profissionais de saúde. O benefício mais frequente na análise das entrevistas é o efeito terapêutico dos grupos, proporcionado pela configuração de um espaço para a expressão da fala e dos sentimentos e para a troca de experiências, com ênfase nas estratégias de enfrentamento relatadas. Os profissionais percebem que esse espaço coletivo proporciona qualidade de vida para seus integrantes. De acordo com Guimarães e Valla (2009), essa metodologia favorece a troca de estratégias de enfrentamento dos problemas e fortalece as redes de apoio familiar e social. Além disso, a legitimação do conhecimento produzido a partir das experiências de vida possibilita o empoderamento dos participantes. A TC também contribui para o fomento das práticas grupais, otimizando vínculos entre os usuários e desses com os terapeutas comunitários, o que reflete positivamente nas dinâmicas e reforça a importância do trabalho com grupos para os demais profissionais dos serviços. Os profissionais capacitados a consideram uma metodologia de fácil aplicação, uma ferramenta de trabalho que proporciona segurança para a condução de grupos e que pode ser ajustada de acordo com a experiência de quem está conduzindo e de acordo com as peculiaridades dos diversos coletivos. As inovações que fazem parte desse novo formato grupal, com destaque para o apelo ao lúdico, são também percebidas como um incentivo à participação dos usuários, essencialmente porque a TC é um espaço inclusivo que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1069-83, out./dez. 2012
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não restringe a participação de ninguém, como expressa um dos entrevistados: “ah, não é só para gestante, não é só para hipertenso, e sim ter essa riqueza de possibilidade foi muito legal” (Sujeito 04). Tendo como um de seus eixos teóricos o pensamento de Paulo Freire e pautada pelo preceito de horizontalidade das relações grupais, a TC pode contribuir para aquilo que Vasconcelos (2004) considera a redefinição da prática médica, através da valorização dos saberes e práticas dos sujeitos, usualmente desconsiderados devido à sua origem popular. Essa metodologia de trabalho com grupos possibilita aos profissionais problematizarem vivências, compartilharem iniciativas de enfrentamento e buscarem entendimento das raízes das questões sociais. Essa atuação diferenciada se aproxima do enfoque transdisciplinar elucidado por Lopes (2009), em que, além das habilidades profissionais, são valorizadas qualidades pessoais, valores, tradições culturais, emoções, conhecimentos, treino e experiência de vida, como atributos valiosos para o funcionamento do grupo. Outro benefício da TC é a atenção às demandas de saúde mental sem que lhes seja imposto um viés medicalizante. Esse espaço de escuta e de ajuda mútua é por si só resolutivo para algumas demandas, prevenindo que se cronifiquem, além de facilitar o encaminhamento de demandas que necessitam de atenção especializada. Os profissionais relatam sentir mais segurança para abordar questões relativas à saúde mental e passam a conhecer melhor e a valorizar o contexto de vida dos usuários. O estudo de Filha et al. (2009) aponta a aprendizagem de estratégias de promoção de saúde mental e de prevenção de transtornos decorrente da participação em grupos de TC. Para os autores, tal prática tem facilitado o trabalho dos profissionais da equipe de saúde da família no sentido de melhorar seu relacionamento com a comunidade e entender suas necessidades. Também Soares (2008) afirma que a TC confere, aos profissionais, compreensão e paciência para lidarem com as demandas de saúde mental. Consideravelmente frequente é, também, o fomento às redes sociais que a TC promove. A leitura que os profissionais fazem da realidade em que estão inseridos e do atual modo de vida é que as pessoas estão muito solitárias, sem vínculos comunitários e, muitas vezes, sem vínculos familiares. O grupo de TC é uma oportunidade de resgatar vínculos interpessoais e de se sentir mais integrado à comunidade, conforme aponta um dos sujeitos desse estudo: “[...] a globalização desmancha isso, o comunitário. Ela desmancha a convivência das pessoas e tudo aquilo que existiu durante muito tempo, que é o apoio mútuo, de um bairro, de uma comunidade, com a aceleração vivida nos últimos 30, 40 anos, esses vínculos comunitários se explodem. Então a necessidade de alguma coisa que possa trazer novamente. E isso é bastante congruente com a Reforma, porque se você tira lá do hospital você vai mandar para onde, só para a família? Porque às vezes a família é uma pessoa só, é uma mãe com 5 filhos. Quer dizer, todo o tema da territorialização, novamente, porque a tendência atual, do capitalismo mais corporativista é desterritorializar total. A pessoa mora lá, trabalha não sei onde, mora num prédio e não conhece o vizinho. Isso foi muito bom para as pessoas nos grupos. Elas gostavam bastante do grupo”. (Sujeito 05)
O fortalecimento das redes de apoio familiar e social, a melhoria dos vínculos familiares e comunitários e das redes de apoio e solidariedade são resultados comuns a outros estudos já realizados sobre a TC (Andrade et al., 2010; Silva, 2010; Filha et al., 2009; Guimarães, Valla, 2009; Guimarães, 2006; Holanda, 2006). A proximidade com redes familiares e sociais dos pacientes e a construção de vínculos duradouros com os usuários contribuem para a eficácia das intervenções clínicas, possibilitando a construção de uma clínica ampliada, que alcança aspectos subjetivos e sociais de cada sujeito e respeita a singularidade de cada caso (Campos, 2005). Além disso, o conceito de território aplica-se à questão manicomial. Territorializar é uma proposta central para transformar, efetivamente, a realidade manicomial, propiciando condições para que os indivíduos possam estabelecer relações de troca. A partir do paradigma da desinstitucionalização, a
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participação da comunidade passa a ser fundamental para a ação de saúde mental, oferecendo uma infinidade de recursos e de possibilidades para os sujeitos (Mota, 2007). O empoderamento dos integrantes da TC parece estar relacionado com a horizontalidade das relações, configurando um grupo que se constrói, se gerencia, se corresponsabiliza pelas mudanças que precisam ser operadas e que valoriza as contribuições de cada pessoa. As pessoas são valorizadas por sua experiência de vida, o que faz com que a identidade predominante no grupo não seja a de doente, como manifesta um dos profissionais entrevistados: “Então as pessoas já não vêm por conta disso, às vezes mesmo tendo a acessibilidade não acessa o serviço porque não se reconhece como doente [...] E na TC, mesmo acontecendo no posto mas eles vinham lá para conversar com os amigos, conversar sobre algum outro tema, de um outro sofrimento. Esse ponto foi muito interessante. Então é mais ou menos isso que eu atribuo, um outro tipo de laço distinto do que um conteúdo programático educacional da unidade de saúde”. (Sujeito 20)
É possível entender o empoderamento descrito pelos profissionais participantes desse estudo como um empoderamento psicológico, tal como explicitado por Carvalho (2004), como um sentimento de maior controle sobre a própria vida que os indivíduos experimentam através do pertencimento a distintos grupos, e que pode ocorrer sem que participem de ações políticas coletivas. Derivam do empoderamento psicológico (Carvalho, Gastaldo, 2008) estratégias de promoção que buscam fortalecer a autoestima e a capacidade de adaptação ao meio, e que procuram desenvolver mecanismos de autoajuda e de solidariedade. Essas estratégias de promoção se assemelham aos benefícios advindos dos encontros de TC, cuja proposta, segundo Camargo (2005), parte do entendimento de que indivíduos e grupos sociais dispõem de mecanismos próprios para superarem as adversidades contextuais. O princípio da horizontalidade também promove acolhimento, pois todos têm a capacidade de ajudar, de ensinar e de aprender, gerando um sentimento de igualdade que estimula a participação. Como o terapeuta comunitário não tem a função de transmitir conhecimento, ele se coloca numa relação de igualdade com os demais integrantes do grupo, preocupando-se apenas em conduzir algumas etapas metodológicas para que o grupo siga um formato. Esse lugar ocupado pelos profissionais de saúde promove uma atenção humanizada, que se contrapõe a um olhar técnico. Para Tesser, Poli Neto e Campos (2010), o acolhimento busca ampliar a clínica e incluir outras abordagens e explicações além das biomédicas para os adoecimentos e demandas. Para garantir a resolubilidade dos problemas de forma multidisciplinar e intersetorial, no entanto, a habilidade clínica não é prescindível, deve estar atrelada ao trabalho em equipe, à construção de projetos terapêuticos e de avaliações de riscos/vulnerabilidades individuais e coletivas, que considerem elementos da vida familiar e social, o que permite concluir que a TC deve somar-se a outros dispositivos para que, realmente, possa acolher as demandas de saúde da população. Para finalizar, outro benefício da TC é a congruência com a realidade do SUS, já que pode ser aplicada em diversos contextos, com um objetivo focado e brevemente atingido e requerendo poucos recursos para a sua implantação. Além disso, permite trabalhar algumas demandas sem necessidade de encaminhamento a profissionais especializados.
Considerações finais Tendo como um de seus eixos teóricos o pensamento de Paulo Freire e pautada pelo preceito de horizontalidade das relações grupais, a TC pode contribuir para a redefinição da prática médica, através da valorização dos saberes e práticas dos sujeitos usualmente desconsiderados devido à sua origem popular. Essa metodologia de trabalho com grupos possibilita aos profissionais problematizarem vivências, compartilharem iniciativas de enfrentamento e buscarem entendimento das raízes das
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questões sociais, aproximando-se essa atuação diferenciada do enfoque transdisciplinar, caracterizado pela valorização das qualidades pessoais, valores, tradições culturais, emoções, conhecimentos, treino e experiência de vida, como atributos valiosos para o funcionamento do grupo. O fortalecimento das redes de apoio familiar e social e a melhoria dos vínculos familiares e comunitários são benefícios decorrentes dos encontros de TC que podem contribuir para a construção de uma clínica ampliada e para a valorização dos recursos do território. Além disso, o princípio da horizontalidade promove acolhimento, atenção humanizada e empoderamento dos integrantes da TC, configurando um grupo que se constrói, se gerencia, se corresponsabiliza para com as mudanças que precisam ser operadas. No entanto, as dificuldades enfrentadas para inserir essa tecnologia de cuidado no cotidiano dos serviços de saúde evidenciam a desvalorização das ações educativas, ficando tais práticas, muitas vezes, delegadas ao interesse individual daqueles que persistem com esses grupos, e que sozinhos dificilmente conseguem estimular a autonomia e a conscientização das comunidades. Daí a necessidade de que a atuação do terapeuta comunitário seja estendida a uma equipe multidisciplinar, dialogue com outros dispositivos, receba o apoio das gestões dos serviços e se alie a outras políticas públicas, ampliando seu campo de ação da saúde para outros setores. A existência de pouco material bibliográfico e poucas pesquisas publicadas sobre a TC coloca-se como fragilidade neste estudo. Para amenizar tal dificuldade, foi realizada uma revisão minuciosa em bases de dados da área da saúde.
Colaboradores Os autores Cristina dos Santos Padilha e Walter Ferreira de Oliveira participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação, e da revisão do texto. Referências ALBUQUERQUE, P.C.; STOTZ, E.N. A educação popular na atenção básica à saúde no município: em busca da integralidade. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.8, n.15, p.259-74, 2004. ANDRADE, F.B. et al. Promoção da saúde mental do idoso na atenção básica: as contribuições da terapia comunitária. Texto Contexto Enferm., v.9, n.1, p.129-36, 2010. ANDRADE, L.O.M. et al. O SUS e a Terapia Comunitária. Fortaleza: UFC, 2009. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BRASIL. Ministério da Saúde. Humaniza SUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4.ed. Brasília: MS, 2008. ______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília: MS, 2006a. ______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: MS, 2006b. ______. Ministério da Saúde. Portaria n.o 971, de 03 de maio de 2006. Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Brasília: MS, 2006c. BUSS, P.M. Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C.M. (Orgs.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. p.11-32.
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PADILHA, C.S.; OLIVEIRA, W.F. Terapia comunitaria: práctica relatada por los profesionales del SUS de Santa Catarina, Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1069-83, out./dez. 2012. El objetivo de este estudio, de naturaleza exploratoria y descriptiva, es describir las prácticas de la Terapia comunitaria relatadas por 27 profesionales de la red del Sistema Único de Salud (SUS) de Santa Catarina, Brasil. La recolección de datos utilizó la entrevista individual semi-dirigida y empleó el análisis de contenido categorial temático. Los resultados fueron agrupados en cinco categorías: Prácticas de terapia comunitaria; estrategias de implantación; dificultades; elementos facilitadores; y beneficios. Se concluye que la Terapia comunitaria puede contribuir con la construcción de una clínica ampliada y la valorización de los recursos del territorio. Sin embargo, es necesario que la actuación del terapeuta comunitario sea extendida a un equipo multidisciplinario, dialogue con otros dispositivos, reciba el apoyo de las gestiones de los servicios y haga alianzas con otras políticas públicas, ampliando su campo de acción para otros sectores.
Palabras clave: Terapia comunitaria. SUS. Profesionales de salud. Prácticas de salud. Intervención psico-social.
Recebido em 19/01/12. Aprovado em 25/07/12.
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be[m] Samsara
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Urbe[m] Samsara
Urbe[m] Sam
sara urbe[m] Samsara Urbe[m] Samsara www.poeteias.blogspot.com.br/2012/02/urbem-samsara.htlm
Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2011
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Poesia concreta em prosa no asfalto: limites da deficiência no espaço urbano*
Maria do Carmo Castiglioni 1
Introdução O texto apresenta resultados de uma investigação mais abrangente “Pessoa com deficiência em situação de rua: trajetórias e estratégias de sobrevivência”, cujo objetivo era conhecer e compreender os caminhos traçados por esse grupo social no contexto urbano, que vive uma situação de dupla exclusão: a pobreza e as limitações físicas advindas da deficiência. Primeiramente, fez-se um estudo sobre o Albergue Z, como referência para a população-alvo do estudo e como estratégia de política social. Em seguida, aprofundou-se a problemática por meio de histórias individuais. Na coleta de dados, utilizaram-se várias fontes e instrumentos: revisão bibliográfica; observação simples e participante, como estratégia fundamental para a compreensão de práticas sociais; entrevista semiestruturada, como coleta de informações qualitativas e forma privilegiada de interação social. Esse albergue fica na região Norte da cidade de São Paulo, com trezentos leitos – sendo cento e cinquenta para os usuários 12 horas, que se enquadram no pernoite, e cento e cinquenta para os usuários 24 horas, onde estão previstas pessoas com transtorno mental ou com deficiência. Essa população com diferentes trajetórias encontrou, como estratégia de sobrevivência, em determinadas circunstâncias da vida, a ida para o albergue. Pode-se afirmar que essa prática, como proposta de uma política pública, tem permitido o ocultamento da pobreza manifesta nas ruas, ou seja, atua no campo das necessidades da sociedade. É urgente a transição para o campo dos direitos, para dar fim à institucionalização do assistencialismo. Trata-se, portanto, de compromisso ético-político e responsabilidade do Estado. Ainda sobre as pessoas do Albergue Z, pode-se dizer que foram rompendo seus laços afetivos, seus nexos sociais, enfim, perderam suas raízes: a moradia, o espaço familiar, o trabalho, sua comunidade. Cabe ressaltar que, nesse processo de pauperização, o corpo sofre danos, adoece e limita o cotidiano, que, por si só, é bastante precário. Muitos não puderam participar da pesquisa e contar sua história, uma vez que estavam imersos numa dor profunda, prostrados e indefesos, no limite da não-existência.
* Elaborado com base na pesquisa “Pessoa com deficiência em situação de rua: trajetórias e estratégias de sobrevivência”, de Maria do Carmo Castiglioni, no Programa de PósDoutorado na área de Concentração: Psicologia da Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp), entre 02/01/2006 e 02/12/2008 (supervisão de Ana Luiza Bustamante Smolka, Departamento de Psicologia Educacional, FE/Unicamp), que implicou intensa interlocução desde o trabalho de campo até a escritura do texto. Aprovado pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 1 Curso de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo. Rua Cipotânea, 51. Butantã, São Paulo, SP, Brasil. 05.360-160. centroto@usp.br.
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Alguns entrevistados relataram um enredo semelhante, que incluía traumas físicos e psíquicos, num contexto de intenso sofrimento, com histórias descontínuas, desconexas, interrompidas por uma internação ou pelo desligamento do equipamento de assistência, em razão de um suposto “comportamento antissocial”. Entre os usuários, o senhor E foi uma indicação da terapeuta ocupacional (TO) do albergue Z, mas foi difícil encontrá-lo, pois ele só voltava à noite para aquele equipamento de assistência. Certa vez, quando, em aula, eu explicava a alunos da graduação o trabalho de pesquisa e a dificuldade de localizar alguém que estivesse em condições de tomar parte das entrevistas, estagiários do Metuia2 comentaram que havia uma pessoa muito interessante e que provavelmente contribuiria na investigação. Comprometeram-se a conversar com ele e, se aceitasse, me passariam seu celular e/ou seu e-mail. Resolvidas essas questões, obtive os dados para entrar em contato com ele e constatei que se tratava do senhor E, de Campo Grande, do Albergue Z – o mesmo senhor E indicado pela terapeuta ocupacional.
Pontos de ancoragem Na perspectiva histórico-cultural vygotskiana, o desenvolvimento humano resulta em desenvolvimento cultural do sujeito, que se constitui com uma história pessoal articulada às práticas culturais e à história humana. Assim, cabe indagar de circunstâncias que resultam em (im)possibilidades de realização humana (Smolka, 2000). Essa matriz de princípios também permite conceber o sujeito como processo inacabado, e as condições materiais de existência como determinantes, mas, de modo algum, absolutas.
Modos de ser/modos de dizer Para Bakhtin (2006), a fala está conectada às condições da comunicação, que, por sua vez, estão ligadas às estruturas sociais. Ou seja, o meio social interfere na enunciação do sujeito. Assim, cada palavra da enunciação exige um processo para compreendê-la, constituindo uma réplica, um diálogo, sem, contudo, eliminar os conflitos e as tensões produzidas no discurso e na relação, uma vez que evidencia a polifonia e pressupõe lugares sociais distintos, pautados por valores diversos que se confrontam. Cumpre notar que o conceito bakhtiniano de exotopia foi imprescindível na realização deste trabalho, na medida em que esclarece que eu procedo à investigação a partir de um lugar exterior e, portanto, devo contar o relato dos outros como alguém de fora. E é a palavra que tem a capacidade de produzir a interação entre quem fala e quem ouve, estabelecendo uma ponte.
Senhor E – o caso Transcrevemos, aqui, excertos da entrevista textualizada em que o interlocutor se apresenta e narra sua vida. Os trechos selecionados estão nomeados de acordo com o que consideramos os pontos nodais de sua história. “Meu nome é E. N., tenho 48 anos, sou natural de Campo Grande. Estou aqui há dois anos e meio, aproximadamente, em São Paulo. Vim ao albergue Z, por ter sido mantido por uma família de lá, onde fui bem recebido, onde havia a Casa de Cuidados para deficientes físicos, 1088
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Metuia: grupo interinstitucional de estudos, formação e ações pela cidadania de crianças e adolescentes e adultos em processos de ruptura de rede sociais de suporte.
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com todas as instalações apropriadas. Eu era gerente administrativo de uma empresa [em Goiânia], alto salário, de bem com a vida e [...]”. (senhor E, 2008)
A produção da deficiência Para o senhor E, a etiologia do diabetes inclui determinadas circunstâncias da vida e sua inserção social, além de fatores biológicos. “Em 87, com aquele advento do [...] acidente nuclear com o césio-137. Foi a primeira vez que se manifestou a diabete. Isso daí puxou meu tapete. No Japão, em 2000, mais ou menos, com uma fagulha de metal [...] perdi a visão parcial. Fiquei, acredito, com uns 30% de visão em um olho. E isso prejudicava, porque eu operava máquinas, empilhadeira, máquinas pesadas, com grande responsabilidade. Isso tudo me afetou o psíquicoemocional [sic] e, novamente, a diabete se manifestou. E, ah, um pequeno ferimento no pé, que eu estou tratando em casa. Quando eu fui internado com alto grau de diabete – quase em coma. Aí, normalizou a diabete, e começou o tratamento desse ferimento. E os médicos fazendo exames, devido a esse, porque não encontravam a causa dessa diarreia. Dentro do hospital, permanecia com isso daí. E houve a primeira amputação. Ah, deu trombose. Ou amputava, ou eu morria. E eu também não estava me alimentando. Com o psíquico-emocional muito abalado, eu não estava querendo saber de nada. A segunda perna também feriu, levando o alimento para minha mãe, na cama, um tombo no Congresso do Sebrae que levei, terminou de [ri] resultou na amputação. Alguns erros médicos, algumas coisas que [...] e tive a segunda perna amputada”. (senhor E, 2008, grifos nossos)
As rupturas Os vínculos afetivos, de trabalho e de propriedade se afrouxam; o senhor E se vê solto, solitário, e, como forma de resistência, torna-se um nômade. “Perdi emprego, perdi minha posição social, me afetou meu psíquico-emocional. Voltei para Campo Grande, fiquei uma época desempregado, porque minha carteira constava Goiânia – minha carteira de trabalho –, então, era discriminado, quer queira, quer não. Alterou meu modo de vida – o casamento, inclusive. Isso até 94. Falecimento do meu pai, Plano Real e uma festa que não teve o êxito esperado, devido a um forte temporal que arrasou – e, no ramo de eventos, é igual a eleição: você trabalha para um dia só. E isso alterou novamente o psíquico-emocional; o segundo casamento já estava meio abalado [...] o Japão foi a minha solução”. (senhor E, 2008)
Modos de sobrevivência Ligando-se a um modo possível para atender suas necessidades, rearticula sua capacidade para a reorganização do trabalho. “Voltei a trabalhar numa firma como vendedor autônomo; eu cobria uma região do Mato Grosso do Sul. Viajava o mês inteiro, com as despesas todas pagas, carro da firma, hotéis, e isso aí, para você fazer um controle, já é difícil, mas, em compensação, o psíquico-emocional alto, a autoestima subiu, e desapareceu a diabete. Levei minha vida normal. Casei-me pela segunda vez. Montei uma nova firma. Voltei a ser empresário [...] no ramo de vinho. Lá [Japão], trabalhando com atividades diárias e diversas. Além de fábrica, eu transportava pessoas. Ah, fazia, escrevia para jornais locais destinados a essa colônia latino-americana. Frequentando programas de rádio. Escrevendo com esse diferencial que eu tenho, que é humor, irreverência e criatividade. Permaneci nesses sete anos. O último ano de permanência
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também foi afetado devido a uma fagulha de metal que entrou no meu olho”. (senhor E, 2008)
A construção de sentido Atribuir sentido, ou seja, buscar explicação para os fatos da vida, incluindo-os numa narrativa com significado é da condição humana, é uma dimensão constitutiva do sujeito. “Sei do dinamismo, sei da potencialidade, o que representa São Paulo no contexto mundial. Isso aqui é o centro da América Latina. E Campo Grande é pouco, Mato Grosso do Sul é pequeno para mim, pelos meus objetivos. Vou querer a prótese. Vim atrás da prótese. Esse é o meu maior objetivo, né? Voltar a andar. Hoje, eu utilizo a cadeira”. (senhor E, 2008) “Segundo ele próprio, não era morador de rua ou albergado, estava albergado, pois era a única estratégia viável para esse momento da vida”. (anotações do diário de campo, 2007)
Ficou clara a preocupação com o reconhecimento, com os direitos sociais, com os amigos, com o desejo de confiar em alguém, com a saúde, em fazer uma roda de samba, com uma comida bem temperada, em poder alugar um quarto. Enfim, apresentou as diferentes nuances e matizes que constituem uma identidade complexa.
O vínculo com a pesquisadora Já no primeiro dia, houve entre mim e o senhor E uma empatia que favoreceu a naturalidade de nossos encontros. No fim da entrevista, o senhor E se ofereceu para me apresentar a outras pessoas que também haviam sido usuárias do Albergue Z. Na verdade, me propôs uma troca, pois precisava de uma assessoria para a elaboração de um projeto cultural que pretendia inscrever a partir de um edital da Secretaria Municipal de Cultura (SMC). Assim, estabelecemos um ritmo de trabalho, e o senhor E assumiu que estávamos fazendo uma pesquisa e ele era um colaborador, um verdadeiro auxiliar de pesquisa. Escolhia as pessoas, localizando-as na cidade, pois, desde o fechamento do albergue, houve grande dispersão dos usuários que optaram por não ficar em outros albergues. Acompanhou-me várias vezes à praça da República, à estação Armênia do metrô e ao outro albergue. Por outro lado, apresentava suas demandas de toda ordem – uma cadeira de rodas adequada para andar na rua, a gravação de um CD com suas músicas, que seria enviado à produção do programa de certa rádio, o projeto para a SMC, a ida a São Carlos para participar de um evento sobre Esporte Adaptado organizado pelo SESC3. Tudo isso implicava muitos telefonemas, troca de mensagens eletrônicas e algumas tarefas. Nesse período, ele perdeu o celular, comprometendo suas atividades – o que o deixou muito ansioso. Como saída, dava meu telefone como contato. Com relação às demandas do senhor E, indicamos e o acompanhamos na avaliação de adequação postural em cadeira de rodas em loja especializada, colaboramos com a gravação do CD e orientamos alguns itens do projeto. 1090
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Ao lado do Serviço Social da Indústria (Sesi), do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e de outras instituições, o Serviço Social do Comércio (Sesc) integra o chamado Sistema S, iniciativa do empresariado brasileiro que há 60 anos se dedica à formação de mão de obra para a indústria e o comércio. Desde a década de 1980, o Sesc introduziu novos modelos de ação cultural e sublinhou a educação como pressuposto da transformação social, propósito que procura concretizar por uma intensa atuação no campo da cultura e de suas diferentes manifestações, destinadas a todos os públicos, de diversas faixas etárias. Disponível em: <http:// www.sescsp.org.br/sesc/>. Acesso em: 21 mar. 2012.
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No entanto, o senhor E é o outro sobre quem é importante pensar, e a questão que se coloca é a da alteridade, pois é sempre sobre a relação com o outro que se está a falar e, portanto, pode ser entendido como problema central. Além disso, tem-se a concepção de que a vida é vivida nas fronteiras entre a particularidade de nossa experiência individual e o social. O “outro” era encarnado na figura do senhor E, que, dadas as determinações sociais, históricas e culturais, se materializava naquele sujeito e naquela linguagem, definidos ambos num contexto de luta pela sobrevivência. O outro foi sujeito múltiplo inserido na história, na sociedade e na cultura pela linguagem. Diversas vezes, o senhor E contou suas histórias conscientemente, dando ênfase a determinados episódios, mudando a entonação e enfatizando seu “psíquico-emocional” abalado. Tudo isso deu um rumo aos nossos encontros, sem, contudo, provocar tensão. Afinal, qual é o lugar da pesquisadora?
A tensão do drama Depois de algum tempo sem contato com o senhor E, recebi a notícia de sua morte. Ele esteve internado na Santa Casa por cerca de dez dias, com gastroenterocolite difusa e broncopneumonia. No hospital, estava sem documentos, e constava apenas que vinha de determinado albergue. Frequentemente, em caso de óbito, o morador de rua é destinado para estudo em laboratórios de anatomia de cursos de medicina, e isso quase aconteceu com o senhor E. No entanto, uma amiga e agente educacional do Albergue Z, ao procurá-lo, soube do ocorrido, foi até a Santa Casa e, depois de um trâmite intrincado, conseguiu liberar o corpo. A mesma amiga chamou a filha mais velha do senhor E, que mora em Goiânia, e ligou para as pessoas que constavam da agenda dele. O enterro ocorreu depois de três dias de sua morte, no cemitério de Vila Formosa, na região Leste da cidade, na ala gratuita. O procedimento fúnebre geralmente consiste em o corpo ser levado por um carro da funerária do necrotério do hospital até o cemitério, onde é velado por, pelo menos, dez minutos e, depois, enterrado. No caso do funeral do senhor E, houve inúmeros intervenientes; por exemplo, não se dispunha, na ocasião, de uma viatura que o levasse ao túmulo, resultando num “velório” de três horas. Isso se deveu ao fato de que as dez pessoas que compareceram ao funeral exigiram uma solução alegando que o caso era passível de denúncia na mídia.
Considerações finais Do ponto de vista da história individual, a interferência de um meio socioambiental desfavorável pode acarretar danos imprevisíveis ao sujeito, a ponto de estabelecer quadros de deficiência, como a amputação de membros em decorrência de diabete não tratada, imputando-lhe a pecha social definida numa situação de dupla exclusão: social e física. Em outras palavras, o senhor E estava sob influência de leis biológicas e, também, sob limites impostos ou necessidades estabelecidas pelo meio social. Não é fácil traduzir em palavras o que vivi e cogitei durante a investigação. Neste texto, estão colocadas minhas escolhas e as aproximações que procurei fazer com os teóricos Bakhtin e Vygotsky, com a finalidade de organizar uma teia conceitual que tivesse um caráter abrangente; e, além disso, fosse uma possibilidade de apreensão e compreensão sociopolítica de aspectos da realidade estudada, sustentando a dimensão crítica desejada na discussão. Mas, para além da crítica, meu olhar buscou encontrar semelhanças e ressonâncias do humano naquela condição existencial limite. Ouvindo a história contundente do senhor E – que mescla privação, escolha, ruína, bom humor, resiliência, preservação do eu, desencontros, desejos, necessidades e projetos –, foi possível contemplá-lo em suas relações, ressaltar sua participação na dinâmica da vida, o acesso aos direitos e suas possibilidades de estar no mundo. Constatamos a necessidade de E explorar um sentido para a própria existência sem negar suas utopias ou seus sonhos: conseguir um financiamento para seu projeto. Sua narrativa, predominantemente na adversidade, delineia uma sucessão de catástrofes, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1087-93, out./dez. 2012
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configurando o signo da dor. Com a ferida exposta no próprio corpo, condensa a contradição, apresentando o trágico como lugar de resistência. O senhor E concebia o albergue como recurso e direito. Sua participação na organização material e simbólica do lugar em que vivia favorecia sua validação como ator social. Sua trajetória não linear, conflitiva, aberta ao acaso, buscava, em cada signo ou pessoa, ponte de acesso para o mundo do tamanho de seus projetos. Encontrar modos de superação implica estabelecer uma rede social, ou, na expressão vygotskiana, ser incorporado à vida comum, pois, quando as pessoas se juntam, assemelham-se e aumentam sua potência para encarar as adversidades. As redes sociais imprimem uma nova ordem igualitária e concorrem para a sustentabilidade da vida cotidiana. Foi isso que mais ouvi nas entrevistas: romperam com a família, perderam o emprego, mas continuaram abertos a outras possibilidades de vinculação. A ética certamente sustenta essas redes, na medida em que estão atreladas à necessidade mais urgente do momento – entrar em relação com os outros a ponto de sensibilizá-los. Além disso, se ocupam de situações de um cotidiano traduzido por um comportamento responsável, em que criam, decidem e desenvolvem ações para enfrentar a lógica excludente do sistema. São sobreviventes que resistiram às condições desfavoráveis e tentam recuperar a vida, sair da passividade para a atividade na construção/ transformação da realidade por meio de processos miúdos e pela produção de sentido para suas experiências. A competência imaginativa do senhor E tornou-se uma estratégia de sobrevivência, na medida em que lhe possibilitava uma expansão de horizontes e de convivência. Contudo, a sobreposição de acometimentos – doença crônica, pobreza, deficiência, isolamento, lentidão e negligência do serviço público de saúde – acarretou a irreversibilidade das condições desfavoráveis de vida do senhor E. Embora a verdadeira estrutura da vida seja narrativa, dramática e inteiriça, essa realidade foi muito além – a provisoriedade, a descontinuidade, a precariedade, a contradição e a inconclusão se tornaram as características por excelência deste trabalho. Na dinâmica interativa e discursiva tecida nos encontros, fui inteiramente absorvida pelo que vi. Fiquei sem palavras, também. Na busca de conhecer a realidade escondida, nas palavras de Smolka, dei visibilidade ao underground. A morte do senhor E não é um fato isolado, é emblemática de uma prática decorrente de uma política pública. Sua história traz subsídios para a discussão e o enfrentamento da pobreza, bem como da produção da deficiência.
Referências BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. SESC - Serviço Social do Comércio. Disponível em: <http://www.sescsp.org.br/sesc/>. Acesso em: 21 mar. 2012. SMOLKA, A.L.B. O impróprio e o impertinente na apropriação das práticas sociais. Cad. Cedes, v.20, n.50, p 26-40, 2000. VYGOTSKY, L.S. Fundamentos de defectologia. Habana: Pueblo e Educación, 1984 (Obras Completas, Tomo V). 1092
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Este artigo trata do segmento populacional urbano identificado como morador de rua, que é também pessoa com deficiência. É um contingente que pode ser considerado duplamente excluído: pela pobreza e pela deficiência, cujas consequências sociais marcam e comprometem profundamente a vida dessas pessoas. Esse contexto adverso acarreta questões que merecem aprofundamento, assim como ganhar visibilidade. A relevância do tema inspirou um arranjo de investigação que procurou conhecer, compreender e refletir sobre demandas por meio de histórias individuais entrelaçadas na história social.
Palavras-chave: Pessoa com deficiência. Pobreza. Institucionalização. Política pública. Concrete poetry in prose on the asphalt: handicap limits in the urban space This article deals with the urban population segment identified as homeless and disabled that is also. This contingent can be considered to be doubly excluded: through poverty and through disability. The social consequences of these factors deeply scar and compromise these people’s lives. This adverse context gives rise to issues that deserve to be explored and gain visibility. The relevance of this subject inspired an investigative arrangement that sought to get to know, understand and reflect upon demands through individual stories that are intertwined with social history.
Keywords: People with disabilities. Poverty. Institutionalization. Public policy. Poesía concreta en prosa en el asfalto: límites de la discapacidad en el espacio urbano El artículo trata del segmento poblacional urbano identificado como persona sin hogar que es también persona con discapacidad. Es un contingente que se puede considerar doblemente excluido: por la pobreza y por la discapacidad, cuyas consecuencias sociales marcan y comprometen profundamente la vida de estas personas. El contexto adverso acarrea cuestiones que merecen tratamiento detenido y más visibilidad. La relevancia del tema inspiró un arreglo de investigación que buscó conocer, comprender y reflexionar sobre demandas por medio de historias individuales entrelazadas en la historia social.
Palabras clave: Persona con discapacidad. Pobreza. Institucionalización. Política pública. Recebido em 04/07/11. Aprovado em 11/03/12.
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Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2010
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Tele-educação para educação continuada das equipes de saúde da família em saúde mental: a experiência de Pernambuco, Brasil* Magdala de Araújo Novaes1 Josiane Lemos Machiavelli2 Filipe Cesário Villa Verde3 Amadeu Sá de Campos Filho4 Tereza Roberta Castro Rodrigues5
Introdução A World Health Organization (WHO) define saúde como um estado de completo desenvolvimento físico, mental e bem-estar social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade (WHO, 1946). Portanto, a saúde mental está intimamente ligada à saúde física e ao comportamento. A saúde está relacionada à promoção do bem-estar, à prevenção dos transtornos mentais, ao tratamento e à reabilitação das pessoas acometidas por transtornos mentais (WHO, 2007). Estimativas internacionais e do Ministério da Saúde indicam que, no Brasil, aproximadamente cinco milhões de pessoas (3% da população) apresentam transtornos mentais severos e persistentes, necessitando de cuidados contínuos; e nove milhões (12% da população) apresentam transtornos mentais menos graves, necessitando de cuidados eventuais. Em relação aos transtornos decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, a necessidade de atendimento regular atinge cerca de 6 a 8% da população, embora existam estimativas ainda mais elevadas. Esses números demonstram que é grande o desafio para os serviços de saúde, especialmente para a atenção primária, porta de entrada do usuário na rede assistencial (Brasil, 2003).
O modelo assistencial em saúde mental brasileiro Durante anos, o modelo hospitalocêntrico foi hegemônico na assistência em saúde mental (Facundes et al., 2010; Dimenstein, Galvão, Severo, 2009). Na década de 1960, mais precisamente, as mudanças políticas favoreceram a privatização da assistência em saúde, particularmente da assistência psiquiátrica. Priorizou-se a hospitalização em detrimento da assistência ambulatorial, o que fez aumentar consideravelmente o número de hospitais psiquiátricos no Brasil (Facundes et al., 2010). Porém, na década de 1940, surgiam propostas na Europa e nos Estados Unidos que buscavam transformar o cuidado psiquiátrico. Tais propostas incluíam as comunidades terapêuticas, psicoterapia de grupo e institucional, psiquiatria de setor, comunitária e preventiva, e a desinstitucionalização (Facundes et al., 2010). A desinstitucionalização não significa apenas desospitalização, mas considerar o
Elaborado com base no subprojeto de pesquisa Telessaúde Mental, com coordenação de Magdala de Araújo Novaes, vinculado ao edital: MCT/CNPq No 015/2008 - Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia; pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O projeto de pesquisa foi aprovado pela Comissão de Ética para Análise de Projetos da Diretoria do Hospital das Clínicas e da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 1-5 Núcleo de Telessaúde, Universidade Federal de Pernambuco. Avenida Professor Moraes Rego, s/n. Hospital das Clínicas, 2º andar, Cidade Universitária. Recife, PE, Brasil. 50.670-420. contato@nutes.ufpe.br *
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sujeito na sua existência e em relação às suas condições de vida. Reconhece que os portadores de transtornos mentais têm direito a um tratamento efetivo, e não apenas à administração de fármacos ou psicoterapias (Amarante, 1995). Lentamente, essas experiências passaram a influenciar a assistência psiquiátrica brasileira. O ano de 1978 costuma ser identificado como o de início efetivo do movimento social pelos direitos dos pacientes psiquiátricos no Brasil. Denominado Reforma Psiquiátrica Brasileira (Brasil, 2005), promoveu ampla mudança no atendimento em saúde mental, garantindo o acesso da população aos serviços e o respeito aos seus direitos e liberdade (Brasil, 2010b). A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da promulgação da Constituição de 1988, possibilitou incluir, nas suas diretrizes, questões associadas à desospitalização e à garantia de cidadania dos doentes mentais (Facundes et al., 2010). Em 6 de abril de 2001, o Congresso Nacional decretou a Lei 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. O novo modelo prevê que as terapias saiam do escopo medicamentoso exclusivo ou preponderante, de forma que o sujeito ganhe destaque como participante principal do tratamento, juntamente com a família e a sociedade, instaurando um Modelo Psicossocial de Cuidado (Brasil, 2001a). Em síntese, o paradigma psiquiátrico fundamenta-se no princípio doença-cura, em uma organização de serviços estratificada e hierarquizada, que busca a remissão dos sintomas. O paradigma psicossocial compreende o processo de saúde-doença como algo complexo e que demanda uma abordagem interdisciplinar. Isso faz com que a saúde mental seja situada na saúde coletiva, sendo a integralidade, a intersetorialidade e a territorialidade eixos norteadores das práticas em saúde (Dimenstein, Galvão, Severo, 2009). Um dos pilares da Reforma Psiquiátrica foi a criação dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, tais como: Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), leitos psiquiátricos em hospitais gerais, oficinas e residências terapêuticas (Brasil, 2005). O CAPS é considerado o serviço substitutivo mais característico da reforma. Seu objetivo é oferecer acompanhamento clínico e reinserção social dos usuários por meio do trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Deve ser lugar de referência e tratamento para pessoas acometidas por enfermidades mentais, cuja severidade e/ou persistência justifiquem o cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor da vida. Apesar de estratégico, o CAPS não deve ser o único tipo de serviço de atenção em saúde mental ofertado no SUS. Isso deve ser feito dentro de uma rede de cuidados, incluindo a atenção primária, mais especificamente a Estratégia de Saúde da Família (Brasil, 2010b; Neves, Lucchese, Munari, 2010; Dimenstein, Galvão, Severo, 2009; Büchele et al., 2006; Brêda et al., 2004; Feneric, Pereira, Zeoula, 2004). A Saúde da Família pretende transformar o paradigma dominante da queixa/conduta em busca ativa, prevenção e controle das morbidades e promoção da saúde na atenção primária. Além disso, é norteada pelos mesmos princípios que orientam a Estratégia da Atenção Psicossocial (Yasui, Costa-Rosa, 2008) no campo da saúde mental, ou seja, ambas sugerem: a corresponsabilização do cuidado entre profissionais de saúde, usuários e familiares; a proposição de ações intersetoriais, que atuem nos determinantes dos padrões de saúde da população; o desenvolvimento de projetos terapêuticos singulares, que contemplem a diversidade cultural e subjetiva dos usuários; e um modo de trabalho ancorado em práticas de acolhimento e vínculo, superando as perspectivas tecnicistas de trabalho e gestão em saúde (Dimenstein, Galvão, Severo, 2009). Pesquisas sugerem que é possível resolver 85% dos problemas de saúde na atenção primária (Brasil, 2001b), o que diminuiria o fluxo intenso de clientes para os setores especializados. Se, em média, um em cada três usuários atendidos nas Unidades de Saúde da Família (USFs) tem transtorno mental, e 50% dos pacientes atendidos pelos generalistas sofrem somatizações, é importante que as equipes de saúde estejam preparadas para lidar com essas situações (Barban, Oliveira, 2007). Entretanto, a saúde mental sempre foi concebida como especialidade, focada em recursos terapêuticos e na institucionalização. Portanto, sua inclusão na Estratégia de Saúde da Família pode ser caracterizada como uma situaçãocomplexa ou situação-problema a ser superada (Neves, Lucchese, Manari, 2010). A falta de recursos humanos, de conhecimentos sobre a relação entre atenção primária e saúde mental, e/ou de
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capacitações, na área, acabam por prejudicar o desenvolvimento da ação integral pelas equipes de saúde da família, fazendo prevalecer a lógica do encaminhamento. Isso acontece, sobretudo, porque muitos profissionais de saúde não se sentem aptos, confortáveis e seguros para lidar com saúde mental na atenção primária (Dimenstein, Galvão, Severo, 2009; Vecchia, Martins, 2009; Barban, Oliveira, 2007; Nunes, Jucá, Valentim, 2007; Büchele et al., 2006; Brasil, 2005; 2003). A WHO lembra que, nos países em desenvolvimento, a carência de especialistas e trabalhadores de saúde com os conhecimentos e aptidões necessários para identificação e tratamento dos transtornos mentais constitui uma significativa barreira à prestação de serviços. Além disso, com a integração dos cuidados em saúde mental ao sistema de saúde geral, a tendência é aumentar a procura por generalistas. Logo, é importante que tenham conhecimentos na área de saúde mental (WHO, 2001). Para superar essas dificuldades, muitas vezes relacionadas à maneira como os profissionais de saúde são formados, é necessário desenvolver neles habilidades para saber fazer, dentre outros, acolhimento, vínculos afetivos e de compromisso com a pessoa e a família em sofrimento psíquico. Os serviços de saúde e as instituições de ensino devem auxiliar nesse processo de transformação (Neves, Lucchese, Manari, 2010) fazendo uso de estratégias que proponham, por exemplo, a capacitação em saúde mental e o apoio aos profissionais que atuam na atenção primária. Nesse contexto, a internet mostra-se como uma possibilidade promissora (Graeff-Martins, 2008; WHO, 2001).
As tecnologias da informação na área da saúde As tecnologias da informação, especialmente a internet, por meio das suas redes e comunidades sociais virtuais, são poderosos instrumentos para a comunicação e o acesso às informações sobre saúde (WHO, 2001). A telessaúde é uma modalidade que vem sendo amplamente utilizada no mundo. Definida como atenção à saúde a distância (WHO, 2010), pode ser útil em diferentes cenários: para dar suporte à decisão clínica, oferecer consultas e diagnóstico a distância – teleassistência; para promover a educação por meio de aulas ou palestras transmitidas em tempo real, por vídeo ou webconferência, ou de forma assíncrona – tele-educação; e, até mesmo, para favorecer a gestão dos serviços de saúde – telegestão (McLaren, 2003). A tele-educação tem sido bastante empregada para proporcionar a educação profissional continuada, especialmente às comunidades localizadas distantes dos grandes centros urbanos (Knowles, 2008; Zollo et al., 1999; Curran, Fleet, Kirby, 2006). O Brasil dispõe de um Programa Nacional de Telessaúde. Teve início com a publicação da Portaria nº 35, de 04 de janeiro de 2007, que instituiu o Projeto Piloto de Telessaúde Aplicado à Atenção Primária e a criação de nove Núcleos de Telessaúde, situados nos estados do Amazonas, Ceará, Pernambuco, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Cada Núcleo de Telessaúde conectou-se a cem pontos de telessaúde instalados em Unidades Básicas de Saúde, distribuídos pelo território dos estados. Em 2010, com a Portaria nº 402, de 24 de fevereiro, instituiu-se o Programa Telessaúde Brasil em âmbito nacional (Brasil, 2010a), recentemente redefinido e ampliado por meio da Portaria nº 2.546, de 27 de outubro de 2011, que o denominou Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes (Brasil, 2011). O Programa Telessaúde Brasil Redes propõe integrar as equipes de saúde da família aos centros universitários de referência para melhorar a qualidade dos serviços prestados na atenção primária, diminuindo os custos da saúde por meio da qualificação profissional, redução da quantidade de deslocamentos desnecessários de pacientes e de profissionais e por meio do aumento de atividades de prevenção das doenças. As ações de apoio à assistência à saúde e de educação permanente das equipes de saúde visam à educação para o trabalho e mudanças de práticas que resultem na qualidade do atendimento na atenção primária (Brasil, 2010a). O objetivo deste artigo é apresentar as estratégias para a implementação e a avaliação de um serviço de telemedicina, ou telessaúde, os Seminários por Webconferência em Saúde Mental, oferecidos pela Rede de Núcleos de Telessaúde de Pernambuco (RedeNUTES), vinculada ao Programa Telessaúde Brasil Redes, para as equipes de saúde da família.
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A RedeNUTES e sua experiência em Saúde Mental Em Pernambuco, o Programa Telessaúde Brasil é desenvolvido, desde 2007, pelo Núcleo de Telessaúde da Universidade Federal de Pernambuco (NUTES-UFPE) por meio da RedeNUTES. A RedeNUTES é fruto do Projeto Telemedicina no Programa Saúde da Família, coordenado pelo Grupo de Tecnologias da Informação em Saúde (Grupo TIS) da Universidade Federal de Pernambuco, com financiamento do Ministério da Saúde em 2001. A oferta dos serviços de telessaúde (tele-educação e teleassistência) teve início em 2003. A teleeducação foi planejada para capacitar permanentemente as equipes de saúde da família, e a teleassistência, para apoiar a resolução de casos clínicos. Dessa forma, a RedeNUTES implantou, de forma pioneira no Brasil, uma rede de telessaúde voltada para a Estratégia de Saúde da Família, superando inúmeros desafios, tais como: adquirir recursos financeiros para o desenvolvimento de um projeto inovador, conquistar espaço dentro da Universidade para a estruturação de um Núcleo de Telessaúde, e formar recursos humanos que pudessem contribuir na construção de uma rede estadual de telessaúde (Brasil, 2010c). As conquistas anteriormente citadas permitiram que, a partir de 2005, a RedeNUTES pudesse participar das primeiras discussões que culminariam com a implantação, em 2007, do Projeto Piloto de Telessaúde Aplicado à Atenção Primária. A participação da RedeNUTES nesse projeto possibilitou a manutenção da rede criada em 2001, expandindo-se para mais de cem unidades de saúde da família (Brasil, 2010a). Os serviços de tele-educação e teleassistência da RedeNUTES são acessados por meio do portal de serviços na internet. Todos os usuários, equipes de saúde e teleconsultores (profissionais que atendem às demandas, a distância, das equipes de saúde) são previamente cadastrados, têm seus acessos monitorados e avaliados pelo NUTES-UFPE. Na teleassistência, são ofertadas teleconsultorias, que possibilitam o esclarecimento de dúvidas relacionadas aos casos clínicos ou ao processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família. Na tele-educação, tem-se o programa de Seminários por Webconferência e o Ambiente Virtual de Aprendizagem da RedeNUTES (AVA RedeNUTES). O serviço de tele-educação visa promover a educação continuada em serviço para as equipes de saúde. Os seminários consistem em palestras apresentadas de forma síncrona por palestrantes oriundos da UFPE e de outras instituições de ensino, além de profissionais da rede assistencial com expertise no tema que será abordado. As temáticas apresentadas nos seminários são planejadas em função de diferentes critérios: i) avaliação das áreas prioritárias estabelecidas pelo Ministério da Saúde e do perfil epidemiológico de Pernambuco; ii) análise das demandas sugeridas pelas equipes de saúde e pelos gestores parceiros da RedeNUTES; iii) análise das respostas ao formulário de linha de base aplicado durante a implantação do programa nos municípios. Feito isso, a agenda de seminários é elaborada e publicada no portal RedeNUTES para que as equipes de saúde planejem a participação. São utilizadas duas metodologias para a apresentação dos seminários: exposição do tema por meio de apresentação eletrônica (formato mais comumente utilizado em palestras e aulas), ou discussão de um tema por meio da roda de conversa. A roda de conversa é uma metodologia participativa, de caráter informal, que possibilita estimular e aprofundar o diálogo sobre um determinado tema. Semelhante às reuniões de grupo, envolve a presença de um moderador, que apresenta o assunto e provoca a participação das pessoas, favorecendo a reflexão, a discussão e a troca de experiências. Pode ser utilizada em diferentes contextos (escolas, unidades de saúde, associações comunitárias, dentre outros), apresenta grande flexibilidade para adaptar os temas centrais às demandas e ao grau de conhecimento dos participantes (Afonso, Abade, 2008), permite coletar informações dos participantes, esclarecer ideias e posicionamentos (Silva, Bernardes, 2007). Independente do formato utilizado para apresentação dos seminários, sempre existe um tempo para que os participantes possam esclarecer as dúvidas relacionadas ao tema abordado. Cada sessão dura, em média, uma hora. O programa utilizado para transmissão dos seminários é o Adobe® Connect™, um software proprietário adquirido pelo NUTES-UFPE. Todos os seminários são gravados, editados e armazenados. Posteriormente, são disponibilizados para consulta pela internet por meio do AVA RedeNUTES. 1098
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O ambiente virtual também dispõe das apresentações eletrônicas utilizadas durante os seminários e de materiais complementares (textos, imagens e vídeos) indicados pelos teleconsultores. Até 2009, a RedeNUTES transmitia quatro seminários por semana nas seguintes áreas temáticas: Saúde da Criança e do Adolescente, Temas Gerais em Saúde Coletiva, Enfermagem e Saúde Mental. Optou-se por trabalhar a Saúde Mental na RedeNUTES porque as equipes de saúde parceiras frequentemente expressam dificuldades para a identificação e o acompanhamento das pessoas com transtornos mentais. Dessa forma, os seminários incentivam a discussão sobre saúde mental; colocam as equipes de saúde em contato com experts da área; apresentam as competências dos profissionais, e discutem as ações possíveis na Estratégia de Saúde da Família. A definição final dos temas e dos palestrantes que apresentarão os seminários é feita em conjunto com a Gerência de Atenção à Saúde Mental (GASAM) da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco. O Quadro 1 apresenta a agenda de seminários apresentados ao longo do ano de 2009, totalizando 39 sessões.
A avaliação dos seminários em Saúde Mental Ao final de cada sessão, os seminários foram avaliados por meio de um questionário disponibilizado no AVA RedeNUTES. As avaliações ocorreram no período de janeiro a dezembro de 2009, abrangendo as 39 sessões. O Quadro 2 apresenta o modelo de questionário utilizado. Dos 1422 profissionais que participaram dos seminários, 27% responderam à avaliação. Os resultados demonstram que: a metodologia utilizada durante os seminários (slides ou roda de conversa) foi aprovada por 97% dos participantes; 87% deles se mostraram satisfeitos com a carga horária das sessões (uma hora); os teleconsultores foram considerados ótimos ou bons por 91% dos respondentes; 82% classificaram como bom o grau de compreensão dos temas abordados; durante os seminários, 84% dos participantes não relataram dúvidas sobre o tema abordado ou tiveram suas dúvidas totalmente esclarecidas; 95% consideraram que os Seminários em Saúde Mental contribuíram para o desenvolvimento das suas atividades profissionais. Dentre os que responderam sobre os problemas encontrados durante os seminários, o maior inconveniente citado foi a qualidade da conectividade (66%), que influencia diretamente na qualidade do áudio e do vídeo.
Discussão e conclusões As estratégias educativas e terapêuticas na forma de supervisões externas são consideradas eficazes para apoiar o profissional de saúde e potencializar suas ações por meio da reflexão sobre sua atividade cotidiana (Vecchia, Martins, 2009). Além disso, embora não sejam suficientes para transformar as práticas de saúde, podem contribuir para uma progressiva politização e socialização do saber (Silva, Trad, 2005). Acredita-se que os Seminários em Saúde Mental são uma importante alternativa para favorecer a articulação entre a saúde mental e a atenção primária, oferecendo às equipes de saúde da família, por meio do contato com teleconsultores experientes na área, retaguarda assistencial e suporte técnicopedagógico. E ainda conseguem integrar diversos setores institucionais e intersetoriais (universidades, serviços de saúde, gestão). Também deve ser comentada a satisfatória adesão dos profissionais de saúde aos seminários que usaram como estratégia a roda de conversa. Essa técnica foi incorporada aos Seminários em Saúde Mental devido à resistência que as equipes de saúde tinham em aceitar a saúde mental como parte das suas atividades profissionais na Estratégia de Saúde da Família e, também, em participar dos serviços de telessaúde que abordavam a temática. Portanto, imaginou-se que oportunizar um espaço para discutir, de forma mais espontânea, saberes e práticas, e para os participantes se conhecerem melhor, poderia facilitar a abordagem.
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TELE-EDUCAÇÃO PARA EDUCAÇÃO CONTINUADA ...
Quadro 1. Assuntos apresentados nos Seminários em Saúde Mental da RedeNUTES, janeiro a dezembro de 2009 Data 20.01.09 27.01.09 03.02.09 10.02.09 17.02.09 03.03.09 17.03.09 24.03.09 31.03.09 07.04.09 14.04.09 28.04.09 05.05.09 12.05.09 19.05.09 02.06.09 09.06.09 16.06.09 30.06.09 07.07.09 14.07.09 21.07.09 28.07.09 04.08.09 11.08.09 25.08.09 01.09.09 08.09.09 15.09.09 22.09.09 29.09.09 06.10.09 13.10.09 27.10.09 10.11.09 17.11.09 24.11.09 01.12.09
Tema Transtornos de humor e de ansiedade Transtornos psicóticos e suicídio Sofrimento psíquico do bebê e saúde mental Roda de conversa sobre saúde mental na atenção primária Apresentação do teleconsultor e orientações sobre a atividade proposta O CAPS e o trabalho na comunidade Acolhendo o sofrimento psíquico na infância: ações, intervenções e desafios O que é redução de danos? Violência contra a mulher A saúde mental dos profissionais de saúde Hiperatividade em crianças Saúde mental do idoso Roda de conversa sobre saúde mental na atenção primária O importante papel do Agente Comunitário de Saúde Deficiência de aprendizagem Acolhimento à família do portador de sofrimento psíquico Problemas com as famílias que não assumem seus papéis no tratamento de álcool e outras drogas Atenção à saúde mental infantil: antecedentes históricos e cenário atual CAPSad e Casa do Meio do Caminho Redução de danos na atenção básica Roda de conversa sobre saúde mental na atenção primária A promoção da saúde mental Autismo infantil – Parte I Terapia comunitária Dicas de redução de danos no consumo de drogas lícitas e ilícitas Roda de conversa sobre saúde mental na atenção primária A reforma psiquiátrica, o papel do CAPS e a Estratégia de Saúde da Família Autismo infantil - Parte II Demências Roda de conversa sobre saúde mental na atenção primária Prevenção dos transtornos mentais Roda de conversa sobre saúde mental na atenção primária O doente mental e sua doença Violência doméstica Adolescência e o uso de drogas Como abrir um CAPS Roda de conversa sobre saúde mental na atenção primária Esquizofrenia e o papel da equipe de saúde da família Prematuramente mãe de bebê prematuro Residências terapêuticas Roda de conversa sobre saúde mental na atenção primária Avaliação multiaxial Diagnóstico Multiaxial Caso clínico de cocomorbidade no consumo de álcool e outras drogas Roda de conversa sobre saúde mental na atenção primária Avaliação das rodas de conversa realizadas Transtorno do pânico
Período: Janeiro a Dezembro de 2009
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Quadro 2. Modelo de questionário utilizado para avaliação dos Seminários, RedeNUTES, 2009 Município/Formação 1
Aspectos relacionados ao conteúdo/Palestrante
2
Como você classifica a metodologia utilizada durante a apresentação?
Ótima Regular Ruim Péssima
3
Em relação ao tempo de duração da apresentação, você achou:
Longo Curto
4
Com relação ao palestrante, como você classifica sua apresentação?
Ótima Regular Ruim Péssima
5
Como você classifica o seu grau de compreensão do tema apresentado?
Bom Razoável Insuficiente
6
Suas dúvidas foram esclarecidas durante o debate?
Não tive dúvidas Tive dúvidas e foram esclarecidas totalmente Tive dúvidas e foram esclarecidas parcialmente Tive dúvidas, mas não foram esclarecidas
7
Você acredita que a apresentação de hoje vai proporcionar alguma contribuição para suas atividades profissionais?
Sim Não Não sei
8
De maneira geral, como você classifica esse seminário por Webconferência?
Ótimo Regular Ruim Péssimo
9
Você indicaria a participação nos seminários a outros profissionais?
Sim Não
Aspectos Técnicos 10
Qual dos itens à direita dificultaram sua participação nos Seminários por Webconferência em Saúde Mental?
Áudio Imagem Dificuldade no uso do Software (Adobe® Connect™) Organização dos Seminários Infraestrutura Nenhum
Sugestões em Geral 11
Você tem sugestões de temas para os próximos seminários ou outras sugestões que possam melhorar nosso serviço?
[Questão aberta]
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Nas primeiras sessões, os participantes se demonstraram surpresos ao perceberem que não seria utilizada uma apresentação eletrônica (slides), mas, com o tempo, a surpresa foi dando espaço para maior envolvimento e diálogo. Acredita-se que três fatores foram decisivos para o sucesso da abordagem: definição das temáticas que seriam discutidas a partir das necessidades das equipes de saúde; o teleconsultor-moderador era especialista em psiquiatria, com vasta experiência em atenção primária, saúde da família e atividades em grupo; e, por fim, todas as sessões ocorreram com o mesmo teleconsultor-moderador, o que favoreceu a criação de um vínculo entre ele e as equipes de saúde, que se sentiam confortáveis em expor suas dúvidas e dificuldades. No entanto, a implementação da tele-educação ainda enfrenta obstáculos em Pernambuco. Um deles é a conectividade. No estado, 80% dos pontos de telessaúde têm velocidade de conexão igual ou inferior a 256 Kbps. O ideal para sessões por webconferência é velocidade superior a 512 Kbps. Neste estudo, mais da metade dos profissionais participantes tiveram algum tipo de problema com a internet. Importante ressaltar que a baixa qualidade de conexão não afetou, na maioria das vezes, a parte visual da apresentação dos seminários quando o formato usado era apresentação eletrônica, ou seja, imagens estáticas. Entretanto, nos seminários que usaram roda de conversa ou quando tentou-se transmitir filmes relacionados ao tema em questão, por exemplo, a baixa qualidade da conexão dificultou ou inviabilizou a tentativa. Outro desafio é a inserção de novas tecnologias no dia a dia dos profissionais de saúde, especialmente dos médicos. Observou-se um baixo percentual de médicos (representaram 5% dos participantes) nos Seminários em Saúde Mental, entretanto, eles compuseram nosso principal públicoalvo ao longo das sessões. Saliente-se que é na atenção primária que ocorre um contato mais próximo entre os profissionais de saúde e os usuários, pois é a porta de entrada do SUS, logo, deve oferecer oportunidade para o atendimento eficaz. Capacitações contínuas podem contribuir para a melhoria da sua resolubilidade. Considerando-se que, para muitos, essa é a primeira experiência em capacitação mediada pelo computador, acredita-se que é necessário um tempo maior para que entendam a importância do serviço. Por fim, a produção de conteúdos educativos que realmente façam a diferença para os envolvidos no processo e a avaliação do seu impacto são outros grandes desafios (Geissbuhler, Bagayoko, Ly, 2007). Fatores sociais, econômicos e geográficos podem influenciar a satisfação com os serviços de teleeducação, por isso, a avaliação desses programas é essencial. Poucos trabalhos, no entanto, avaliaram e publicaram experiências dessa natureza, sobretudo em países em desenvolvimento (Kiviat, 2007; Pradeep, 2006), daí a importância deste artigo. Faz-se necessário dar continuidade aos estudos que possibilitem analisar os diferentes aspectos técnicos, socioeconômicos, culturais e políticos que influenciam a introdução da telessaúde como uma prática regular no dia a dia dos serviços, gestores e profissionais de saúde; bem como o impacto da telessaúde no perfil epidemiológico e nos encaminhamentos de pacientes para as redes de referência.
Colaboradores Magdala de Araújo Novaes e Josiane Lemos Machiavelli participaram da concepção e desenho do artigo, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada; Amadeu Sá de Campos, Filipe Villa Verde e Tereza Roberta Rodrigues participaram da concepção do artigo, análise e interpretação dos dados, redação do artigo e aprovação final da versão a ser publicada. 1102
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Agradecimentos Aos colaboradores do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Infância e Adolescência (INPD) e da RedeNUTES, vinculada ao Programa Telessaúde Brasil Redes; à Gerência de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco; aos teleconsultores que apresentaram os Seminários por Webconferência na área de Saúde Mental.
Referências AFONSO, L.; ABADE, F.L. Para reinventar as rodas. Belo Horizonte: Rede de Cidadania Mateus Afonso Medeiros (RECIMAM, 2008). Disponível em: <www.ufsj.edu.br/ portal.../PARA_REINVENTAR_AS_RODAS.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2011. AMARANTE, P. Novos sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma psiquiátrica. Cad. Saude Publica., v.11, n.3, p.491-4, 1995. BARBAN, E.; OLIVEIRA, A.A. O modelo de assistência da equipe matricial de saúde mental no programa saúde da família do município de São José do Rio Preto: capacitação e educação permanente aos profissionais de saúde na atenção básica. Arq. Cienc. Saude, v.14, n.1, p.52-63, 2007. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria No 2.546, de 27 de outubro de 2011. Redefine e amplia o Programa Telessaúde Brasil, que passa a ser denominado Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes (Telessaúde Brasil Redes). Brasília, 2011. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Programa Telessaúde Brasil Redes. Brasília: Ministério da Saúde, 2010a. Disponível em: <http://www.telessaudebrasil.org.br>. Acesso em: 10 dez. 2010. ______. Ministério da Saúde. Saúde Mental. Brasília: Ministério da Saúde, 2010b. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/area.cfm?id_area=925>. Acesso em: 10 dez. 2010. ______. Universidade Federal de Pernambuco. Núcleo de Telessaúde. Rede de Núcleos de Telessaúde de Pernambuco. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2010c. Disponível em: <http://www.redenutes.ufpe.br>. Acesso em: 10 dez. 2010. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. ______. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. ______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei no 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília, 2001a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ LEIS_2001/L10216.htm>. Acesso em: 10 jan. 2011. ______. Ministério da Saúde. Guia Prático do Programa Saúde da Família. Brasília: Ministério da saúde, 2001b. BRÊDA, M.Z. et al. Duas estratégias e desafios comuns: a reabilitação psicossocial e a saúde da família. Rev. Latino-Am. Enferm., v.13, n.3, p.450-2, 2004. BÜCHELE, F. et al. A interface da saúde mental na atenção básica. Cogitare Enferm., v.11, n.3, p.226-33, 2006.
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Estudos demonstram que são escassas as ações relacionadas à saúde mental na Estratégia da Saúde da Família, requerendo sensibilização e capacitação dos profissionais. A Telessaúde assume um papel importante, pois favorece a criação de serviços colaborativos entre profissionais de saúde e especialistas trabalhando remotamente. Este artigo apresenta as estratégias para a implementação e a avaliação dos Seminários por Webconferência em Saúde Mental, oferecidos pela RedeNUTES para as equipes de saúde da família de Pernambuco, Brasil. Os seminários síncronos têm frequência semanal e são apresentados por teleconsultores da rede assistencial ou de ensino. As sessões são gravadas e disponibilizadas para consulta na Biblioteca Virtual. Em 2009, ocorreram 39 seminários. A avaliação geral dos seminários, o grau de compreensão dos temas abordados, o material didático utilizado e o tempo de duração tiveram bons resultados. Conclui-se que esse serviço oportuniza um bom espaço para educação continuada em saúde mental.
Palavras-chave: Educação a distância. Saúde mental. Telessaúde. Saúde da família. Avaliação.
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Tele-education for continuing education in mental health for family healthcare teams: an experience in Pernambuco, Brazil Studies have shown that actions relating to mental healthcare are rare within the Family Health Strategy. There is a need to raise professionals’ awareness and training. Telehealth has taken on an important role because it favors creation of collaborative services between healthcare professionals and specialists working remotely. This paper presents strategies for implementing and evaluating the mental health web conference seminars offered by RedeNUTES for family healthcare teams in Pernambuco, Brazil. The synchronous seminars take place weekly and are presented by teleconsultants from the healthcare or educational network. The sessions are recorded and made available for consultation at the Virtual Library. In 2009, 39 seminars took place. Good results were achieved regarding the overall rating of the seminars, degree of understanding of topics presented, teaching material used and duration of the sessions. It was concluded that this service provided a good space for continuing education on mental health.
Keywords: Distance education. Mental health. Telehealth. Family health. Evaluation. Tele-educación para la educación continua de los equipos de salud de la familia en salud mental: la experiencia de Pernambuco, Brasil Hay pocas acciones relacionadas con la salud mental en la Estrategia de Salud de la Familia. Es necesario que los profesionales reciban formación para trabajar con salud mental. La “Telesaúde” tiene un papel importante y favorece la creación de servicios de colaboración entre los profesionales de la salud y especialistas que trabajan de forma remota. Se presentan las estrategias para aplicación y evaluación de los Seminarios por Webconferencia sobre Salud Mental, ofrecidos por la Red Nutes para los equipos de salud de la familia de Pernambuco, Brasil. Los seminarios se realizan en tiempo real. Las sesiones son grabadas y disponibles para inspección en la Biblioteca Virtual. En 2009 ocurrieron se produjo 39 seminarios. La calificación general de los seminarios, el grado de comprensión de los temas, el material didáctico utilizado y el tiempo tuvieron buenos resultados. Se concluye que este servicio ofrece una buena oportunidad para la educación continua en salud mental.
Palabras clave: Educación a distancia. Salud mental. “Telessaúde”. Salud de la familia. Evaluación. Recebido em 04/07/11. Aprovado em 28/02/12.
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Desenvolvendo atitudes, conhecimentos e habilidades dos estudantes de medicina na atenção em saúde de pessoas surdas Luiza Santos Moreira da Costa1 Natália Chilinque Zambão da Silva2
Introdução Pelo fato da surdez não demandar uma acessibilidade facilmente identificável, como é o caso de pessoas com deficiência física, existe uma falsa impressão que os serviços e profissionais de saúde estariam atendendo às necessidades desse grupo de forma satisfatória. Pesquisas em diversos países demonstram o contrário e apontam a vulnerabilidade das pessoas surdas no aspecto da saúde (World Health Organization, 2011; Costa et al., 2009). Surdos que se comunicam através da língua de sinais acabam procurando os serviços de saúde com menos frequência e aguardam a disponibilidade de um intérprete ou pessoa próxima que possa desempenhar esse papel, adiando, muitas vezes, a visita ao profissional de saúde (Chaveiro, 2007). Obstáculos à comunicação interferem na capacidade do sistema de saúde em atender, de forma adequada, as necessidades de saúde deste grupo (Chaveiro, 2007; Zazove, Doukas, 1994), incluindo o risco de erros no diagnóstico e no tratamento (U.S. Department of Justice, 2003). Muitos surdos não oralizados têm dificuldade em entender a medida do remédio ou o que significa “de hora em hora” (Costa et al., 2009); possuem menos informação que os ouvintes sobre doenças cardiovasculares (Margellos-Anast, Estarziau, Kaufman, 2006) e em relação ao HIV/Aids (Bat-Chava, Martin, Kosciw, 2005). No Brasil, grande parte das pessoas surdas que se comunicam através de língua de sinais estuda em escolas especiais (o movimento de inclusão escolar é recente) e se relaciona socialmente nas Associações de Surdos, devido às barreiras linguísticas, o que acaba por gerar falta de convívio entre surdos e ouvintes. Esta segregação e o silêncio sobre como facilitar a comunicação entre médicos e pacientes surdos, durante a formação médica, levam a concepções errôneas desses profissionais sobre as pessoas surdas e suas formas de comunicação, tais como: a) a leitura labial é uma habilidade universal dos surdos; b) a escrita é sempre um método eficaz de se comunicar com pacientes surdos; e c) o intérprete de língua de sinais deve ser seu interlocutor (Iezzoni et al., 2004; Zazove, Doukas, 1994). Mesmo um surdo oralizado (que se comunica através da fala e da leitura labial) precisa que se fale olhando para ele, articulando as palavras. Quanto ao uso da escrita para se comunicar com pacientes surdos, Barnett (2002) lembra que, apesar de a escrita representar um fator facilitador na
* Elaborado com base em proposta de inclusão de temas ligados à deficiência nos cursos de graduação e pósgraduação da Universidade Federal Fluminense. 1 Departamento de Saúde e Sociedade, Universidade Federal Fluminense. Rua Marquês do Paraná, 303. Hospital Universitário Antonio Pedro. Prédio anexo, 3º andar. Niterói, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 24.030-210. luizacosta@id.uff.br 2 Graduada em Medicina.
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DESENVOLVENDO ATITUDES, CONHECIMENTOS E HABILIDADES ...
comunicação com pacientes surdos oralizados e com os que apresentam deficiência auditiva, é de pouca ajuda para os surdos pré-linguísticos (que ficaram surdos antes da aquisição da linguagem), sendo a língua de sinais sua primeira língua. Quanto à comunicação escrita, Almeida (2007) aponta que, embora a maioria dos surdos possa ler, eles nem sempre entendem o significado de diversas palavras, ou confundem o significado, em especial dos homônimos, como: partir (ir embora/dividir), além das muitas expressões idiomáticas. Menos de 10% das mulheres surdas que participaram da investigação realizada em Chesire (Reino Unido), sobre desigualdades no acesso aos cuidados de saúde enfrentadas por mulheres surdas (Ubido, Huntington, Warburton, 2002), informaram que costumam compreender tudo o que os médicos lhes dizem quando vão sozinhas às consultas. Como resultado desse desconhecimento em relação à pessoa surda, o profissional de saúde acaba falhando em ver o paciente surdo como alguém que poderia contribuir no processo do cuidado da sua própria saúde; isto é, ignora o indivíduo enquanto fonte potencial de informação clínica (Eddey, Robey, 2005). Os surdos avaliam que alguns médicos acreditam que não adiantaria explicar porque o surdo não seria capaz de entender (Costa et al., 2009). Muitas vezes, a comunicação durante toda a consulta se dá apenas entre o médico e o acompanhante. Em entrevista realizada com surdos com domínio apenas da língua de sinais como forma de se comunicar, um dos relatos exemplificou bem essa falta de autonomia e de independência do paciente surdo, que, além de depender de uma terceira pessoa para acompanhá-lo às consultas, não toma parte nas negociações terapêuticas: Fui ao médico quando tinha problema dos rins. Não entendia nada do que o médico falava. Minha mãe teve que ir comigo para me ajudar. O médico falava e fiquei perdida; perguntava para minha mãe o que ele falou. Ela me dizia para esperar que em casa me contaria. Então, em casa, minha mãe me contou, mas resumidamente, e no consultório minha mãe e o médico falaram muito e ela só me contou muito pouco. (Costa et al., 2009, p.168) Se, por um lado, os surdos que usam língua de sinais se sentem mais seguros com a presença de um(a) intérprete (Steinberg et al., 2002) durante as consultas e, mesmo, na sala de parto, por outro queixam-se de falta de privacidade com a presença do intérprete na consulta com um ginecologista. Conversando com pessoas surdas, também ouvimos relatos de exemplos positivos, como o de uma surda bilíngue. O médico foi atencioso, falou devagar e, quando ela não entendia, o médico não se furtava a repetir ou à solicitação que escrevesse (Costa et al., 2009). Visando alterar o cenário aqui apresentado, a partir do início deste século vem crescendo o número de experiências interessantes nas escolas médicas australianas, americanas, do Reino Unido, da África do Sul e da Croácia, dentre outras, buscando incluir temas ligados à deficiência nos currículos médicos. São realizadas atividades voltadas à promoção de atitudes positivas em relação à pessoa com deficiência, ao conhecimento a respeito desse grupo, e/ou desenvolvimento de habilidades de comunicação ou de exame clínico de pacientes com sequela de lesão medular, e produção de material de apoio. Pessoas com deficiência, seus familiares e organizações que lutam por seus direitos vêm participando do planejamento da inclusão curricular. Seminários; aulas formais, vivências; visitas domiciliares; e participação de pessoas com deficiência sendo entrevistadas pelos estudantes; atuando como tutores ou pacientes-padronizados, estão entre as abordagens mais frequentes (Duggan et al., 2009; Symons, McGuigan, Akl, 2009; Tracy, Iacono, 2008; Eddey, Robey, 2005; Martin et al., 2005; Byron et al., 2005; Minihan et al., 2004; Vlak et al., 2004; Thistlethwaite, Ewart, 2003; Sabharwal, Brownell, 2001; Byron, Dieppe, 2000; Sabharwal, Sebastian, Lanquette, 2000; Henley, 1999; Conill, 1988; Mitchell et al., 1984). A importância do ensino de comunicação nos cursos de graduação em medicina como campo de conhecimento a ser contemplado nos projetos pedagógicos da formação de futuros médicos já é reconhecida. Justifica-se pelos resultados de pesquisas sobre a relação médico-paciente, e de importantes discussões, especialmente em fóruns internacionais, e das recomendações das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (Rossi, Batista, 2006), embora ainda não incluam as particularidades da comunicação com pessoas não verbais. Os mesmos autores apontaram ainda, em sua investigação sobre o ensino da comunicação em Medicina, que a atividade prática junto ao paciente desempenha um 1108
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papel de destaque no ensino/aprendizagem das habilidades de comunicação, e que a observação de atitudes e comportamentos no cotidiano do ensino, seja de professores ou de outros médicos em atividade, notadamente no internato, seria a principal responsável pela aprendizagem desta habilidade pelos alunos. Mas, no caso da comunicação com pessoas com deficiência, se os médicos e professores não tiveram, em sua formação, esse conteúdo, que modelos os estudantes estariam observando? No Brasil já existem esforços em chamar a atenção para essa lacuna (Costa et al., 2009; Costa, Botelho, Souza, 2008; Silva, Costa, 2008; Vieira et al., 2008; Chaveiro, 2007; Chelini et al., 2006; Costa, 2005; Ferreira, Koifman, Costa, 2005). Na Universidade Federal Fluminense (UFF), desde o ano de 2004, a atenção integral à saúde da pessoa com deficiência e sua inclusão social passaram a fazer parte das disciplinas Trabalho de Campo Supervisionado I e Saúde e Sociedade III, dirigidas, respectivamente, aos 2º. e 3º. períodos do curso médico. O presente relato refere-se à inclusão do tema Deficiência na disciplina Saúde e Sociedade III, desde 2007, inaugurando o treinamento de habilidades de comunicação considerando pessoas surdas. O objetivo deste artigo é chamar a atenção de profissionais de saúde e docentes que atuam na formação de recursos humanos na área da saúde, trazendo visibilidade para a pessoa com deficiência – no caso específico, para a pessoa surda – nos currículos do curso médico, apresentando o relato de experiência de inclusão de atividades dirigidas a capacitar futuros médicos para se comunicarem com pessoas surdas. Partimos dos seguintes pressupostos que orientaram e justificaram a inclusão proposta: – A Comunicação Competente faz parte do Aconselhamento em Saúde preconizado pelo Ministério da Saúde (Filgueiras, Deslandes, 1999). Em relação às pessoas com deficiência, significa: comunicar-se com pacientes que apresentem déficits na comunicação verbal; evitar fala infantilizada; compreender os valores e necessidades das pessoas com deficiência, e sentir-se confortável com pacientes, inclusive com deficiências complexas, entre outros (Eddey, Robey, 2005); – A assistência integral à saúde da pessoa com deficiência não se restringe à prestada em instituições específicas de reabilitação, mas ao atendimento na rede de serviços, nos diversos níveis de complexidade e especialidades médicas, segundo a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2006; 2002); – A capacitação de recursos humanos para o desenvolvimento das ações decorrentes dessa Política inclui a necessidade de que sejam incorporadas disciplinas e conteúdos de reabilitação e atenção à saúde das pessoas com deficiência nos currículos de graduação da área da saúde (Brasil, 2002). As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina apontam que a formação do médico tem por objetivo dotar o profissional de conhecimentos requeridos para o exercício de competências e habilidades que incluem, no item Comunicação, tanto a comunicação verbal quanto não verbal, permitindo comunicar-se adequadamente com os pacientes e seus familiares; e o uso de técnicas apropriadas de comunicação para informar e educar seus pacientes, familiares e comunidade em relação à promoção da saúde, prevenção, tratamento e reabilitação das doenças (Brasil, 2001); – Filosofia do Movimento de Vida Independente, segundo a qual a pessoa com deficiência é que deve ter o controle da situação e da sua vida; ter o direito de realizar escolhas (Paula, 2008); – “Nada sobre nós sem nós” – significa que nenhum resultado a respeito das pessoas com deficiência deverá ser gerado sem a plena participação das próprias pessoas com deficiência (Sassaki, 2007).
Metodologia das atividades Na disciplina Saúde e Sociedade III, dirigida ao terceiro período do curso médico da UFF, entre 2007 e 2010, participaram, das aulas de Comunicação competente, pessoas surdas e com sequela de encefalopatia crônica da infância (disartria e espasticidade). Serão aqui descritas as atividades que tiveram por objetivo: promover o conhecimento sobre aspectos relacionados à comunicação de pessoas surdas; desenvolver habilidades de comunicação com surdos que se comunicam de diferentes formas, e promover atitudes positivas em relação a pessoas com deficiência, em especial, pessoas surdas.
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Descrição das atividades Nos sete semestres, 553 estudantes participaram dessas atividades (75 no 1º semestre e 78 no 2º de 2007; 84 no 1º. semestre e 78 no 2º de 2008; 83 no 1º semestre e 78 no 2º de 2009; e 77 no 1º semestre de 2010). O tema ocupou duas aulas, com duração de três horas cada uma. Na primeira aula, teórica, foram discutidos os textos: Considering the Culture of Disability in Cultural Competence (Eddey, Robey, 2005); Encontro do Paciente Surdo que usa Língua de Sinais com os Profissionais da Saúde (Chaveiro, 2007), e A Língua Brasileira de Sinais - Libras (Felipe, 2005). Nesse mesmo dia, também foram ensinados alguns sinais relativos ao corpo humano, sexo e doenças sexualmente transmissíveis, apresentados em vídeo. A segunda aula foi ocupada com vivência planejada por duas professoras de Biologia, ouvintes, e três profissionais surdos do Núcleo de Orientação à Saúde do Surdo, do Instituto Nacional de Educação de Surdos, que também participaram das dramatizações. A Associação de Pais e Amigos dos Deficientes da Audição de Niterói disponibilizou tradutor/intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras), que, além de intermediar a comunicação entre a turma e os profissionais surdos, participou da dramatização. Foram propostas quatro situações de busca por atendimento médico, de acordo com a forma de comunicação do paciente: 1) surdo oralizado; 2) surdo que se comunica através da Libras acompanhado de intérprete; 3) outro que vai à consulta sozinho; e 4) surdo que não aprendeu Libras, nem português, não sabe fazer leitura labial e não fala. A dramatização começa com uma “paciente” surda sentada no espaço representando a sala de espera. O aluno, voluntário no papel de médico, não sabe ainda a forma de comunicação da “paciente”. Os próprios surdos escolheram os temas da consulta: busca por método anticoncepcional, dengue, DST e sintomas gastrointestinais, chamando a atenção, durante cada consulta, para termos de difícil compreensão pelos surdos. Apesar de apenas quatro estudantes de cada turma terem participado diretamente da experiência enquanto “médicos”, a partir das dificuldades encontradas para se comunicar com o “paciente” surdo, os demais colegas de turma propunham soluções. Ao final de cada “consulta”, foram apontadas e discutidas as dificuldades sentidas pelos “pacientes” e pelos “médicos”, assim como formas de reduzi-las. Como fechamento da atividade, os estudantes conversaram com os convidados surdos, conhecendo um pouco sobre suas vidas. Com o objetivo de avaliar o que representou para os estudantes esse contato direto com tutores surdos e realizar os ajustes necessários, solicitamos que cada aluno, individualmente, escrevesse, de forma livre e anônima, uma avaliação dessa atividade, a ser entregue na aula seguinte. Será apresentada aqui a análise das avaliações dos estudantes do 1º. e 2º. semestres de 2008, e do 1º. semestre de 2009, que puderam ser recuperadas a partir de arquivo digital, ou seja, de 245 estudantes. Optou-se pela análise qualitativa dos dados através da técnica de análise categorial (Gomes, 1997; Bardin, 1977). A partir da leitura flutuante das avaliações, foram destacados temas organizados nas categorias: Atitudes; Habilidades; e Conhecimentos – tomando-se como referência os três grandes objetivos da proposta de inclusão curricular de ensino médico sobre como cuidar de pessoas com deficiência, na escola médica da Universidade de Búfalo (Symons, McGuigan, Akl, 2009).
Resultados As categorias e subcategorias serão apresentadas utilizando-se trechos dos relatos dos estudantes para exemplificá-las:
Atitudes Esta categoria traduz a forma como a pessoa surda é vista: desenvolvimento de um olhar para a pessoa surda, vendo a pessoa para além da surdez; respeito e valorização dos direitos e desejos dessas pessoas; e exame de suas próprias atitudes a respeito da surdez. . A pessoa surda sob um novo olhar:
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“Respeitando-se as peculiaridades do paciente, a surdez deixa seu caráter deficitário e assume apenas uma característica diferencial”. “A aula foi importante para quebrar a premissa de que os surdos são ‘coitados’ ou dignos de pena. O que pudemos ver é que eles são pessoas normais que levam uma vida normal, mas apresentam uma limitação que, muitas vezes, não é respeitada pela sociedade”. “Esta ‘aula prática’ é muito importante porque tira a idéia de que o fato de a pessoa ser surda limita sua capacidade de entendimento.”
. Colocar-se no lugar do outro: “Na simulação não tive ajuda para me expressar e me vi numa situação semelhante a que a pessoa surda tem em meio aos ouvintes - tentar me comunicar, me expressar, e não conseguir.”
. Visibilidade para a pessoa surda: “De imediato fiquei muito surpresa com o tema, pois nunca tinha atentado para as necessidades da pessoa surda. Além disso, não havia pensado que teria que me comunicar com essas pessoas”.
. Encontro com o diferente: “Acredito que para o sucesso da relação futuro médico – pessoa com deficiência, seja necessária essa troca mútua de opiniões e experiências, como vimos nessas aulas, para que possamos perder o medo de enfrentar o que é ‘novo’ e diferente para nós no dia-a-dia.”
Habilidades Refere-se à aquisição de recursos técnicos; de orientações práticas à comunicação, aplicáveis também em outras situações. Apresentar atitudes positivas em relação ao paciente surdo não basta para que a comunicação flua. É preciso que os estudantes aprendam como fazê-lo.
. Percepção das habilidades adquiridas: “Aprendi que o profissional de saúde não precisa dominar a língua de sinais para que consiga se comunicar com o paciente. Basta que este se empenhe, seja paciente e utilize todo tipo de recurso que possuir (mímica, falar articulando as palavras adequadamente, escrever de modo simples, usar figuras) para que possa passar a mensagem de modo adequado à necessidade do paciente”. “Através desta experiência conseguimos ter um pouco de contato com as dificuldades dos surdos e do desafio que é estabelecer uma boa relação médico-paciente nessas circunstâncias. Dentre elas, a que mais chamou a minha atenção foi aquela em que o intérprete estava presente, pois neste momento, há o risco de a atenção e a comunicação se estabelecerem entre o médico e o intérprete, e não com o paciente”.
. Aprender não apenas o que fazer, mas como fazer: “A idéia de levar surdos para a aula é excelente porque imaginar o que o médico deve fazer durante uma anamnese com um surdo pode ser uma tarefa simples, mas ter a oportunidade de praticar isso é essencial para uma boa formação médica.”
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“Com as dramatizações, mais do que novas informações, fomos desafiados a aplicar o que havíamos discutido ou o que pensávamos saber. Dessa forma fomos obrigados a criar outros mecanismos de comunicação quando o que conhecíamos não foi suficiente; situação esta que acontecerá no cotidiano da prática médica”.
. Mudança de ideias equivocadas: “Gostei de saber também que não é todo surdo que faz leitura labial. Antes, pensava que todos eram capazes de fazê-lo.”
. Semelhança com outras situações: “Há uma nítida dificuldade de qualquer pessoa em se comunicar com pessoas surdas; é como se estivesse num país estrangeiro, em uma língua que nem conhecemos. Foi essa a sensação sentida por parte do médico e do paciente também.”
Conhecimentos Essa categoria diz respeito à construção de um conhecimento geral sobre surdez: frequência e causas mais comuns; impacto da surdez no indivíduo e em sua família; e consequências de entraves na comunicação médico-paciente. Nessa categoria, a ênfase dos estudantes recaiu mais na forma como os conhecimentos foram adquiridos do que no conteúdo. . Risco de atendimento com entraves na comunicação: “Uma simples consulta médica, sem a devida comunicação, acaba sendo desrespeitosa ao paciente, além de ser prejudicial no caso de indicação de como usar o medicamento poder ser entendida da maneira errada”.
. Complementação entre aula teórica e prática: “A leitura do artigo e a aula teórica nos muniram de conhecimento básico sobre como proceder no atendimento, enquanto a dinâmica com os convidados apresentou as dificuldades na prática.”
. Aprender com o real: “Fico feliz por Saúde e Sociedade ter trazido para dentro da sala pessoas reais, com problemas verdadeiros, ao invés de propor uma fácil dinâmica de teatrinho, fantoches, mímica ou jogo de tabuleiro para imitar o que inevitavelmente teríamos cara a cara.”
. Método que consolida o aprendizado: “Eu nunca tinha tido a oportunidade de debater esses temas diretamente com pessoas que representam esses futuros pacientes, e isso faz toda a diferença. É um aprendizado mais sólido, consistente e proveitoso, se comparado a meras discussões sobre o tema, sem que haja a participação de pessoas representantes do grupo enfocado, no caso, os surdos.”
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Discussão A mudança de percepção da pessoa surda a partir da falta, ou do que se pensa faltar a ela, para alguém sendo visto como diferente dos outros apenas por não ouvir, de acordo com os resultados apresentados, parece resultar da presença de tutores surdos e do espaço aberto ao diálogo entre estes e os estudantes. Quando não é oferecida ao estudante de medicina a oportunidade de aprender a se comunicar com pessoas surdas, é como se essas pessoas não existissem. Mesmo quando encontram pacientes surdos em estágios e plantões, a tendência, de acordo com este conjunto de dados, parece ser a reprodução de equívocos já descritos, com todos os seus riscos, por falta de uma comunicação eficiente. Através dos relatos dos estudantes, ficou claro que se sentiram mais seguros e menos desconfortáveis com a possibilidade de atenderem pessoas surdas, a partir do que aprenderam em curtíssimo tempo. Os estudantes se mostraram receptivos à inclusão de temas ligados a pessoas com deficiência no currículo de graduação em medicina, sugerindo, inclusive, que essa inclusão não fosse pontual, com o que concordamos. Interessante também foi terem percebido que as dificuldades de comunicação encontradas no atendimento da pessoa surda são semelhantes às que surgem na anamnese de pacientes estrangeiros que não conhecem a língua portuguesa. Durante a discussão em aula, uma das alunas citou o exemplo de uma mulher que procurou atendimento para seu filho na Unidade de Saúde. Recém-chegada de um país asiático, não sabia português, e a dificuldade de comunicação foi muito semelhante à encontrada com pessoas surdas, percebendo a aplicação das habilidades adquiridas, também, a outros grupos de pacientes. A única crítica negativa presente nas avaliações dos estudantes foi quanto ao número de estudantes em sala durante a dinâmica. Por conta da disponibilidade dos profissionais do NOSS de participarem de apenas uma atividade por semestre, não foi possível dividir a turma, o que teria sido o ideal.
Conclusão As escolas médicas não deveriam mais formar profissionais que desconhecessem as necessidades de saúde de pessoas com deficiência, as formas alternativas de comunicação com pessoas não verbais, e os riscos que essa lacuna pode gerar. Atividades simples como as aqui apresentadas, buscando não apenas sensibilizar os estudantes, mas muni-los com conhecimentos e habilidades de comunicação com a pessoa surda, podem contribuir para mudar o cenário atual. A participação de pessoas surdas foi altamente valorizada pelos estudantes. Esperamos que essa experiência possa inspirar a implantação, em outras escolas médicas, de iniciativas semelhantes. A promoção e sustentação da inclusão de temas relativos às pessoas com deficiência, infelizmente, ainda dependem de iniciativas individuais, e não de uma política das escolas médicas que pudesse garantir sua continuidade. No segundo semestre de 2010, constatamos essa fragilidade, com a interrupção da oferta deste conteúdo por afastamento da coordenadora da disciplina Saúde e Sociedade III, que partiu para a busca por parcerias com professores de outras disciplinas do curso médico.
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Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ALMEIDA, R.C.N. Sinalizando a sexualidade: uma proposta pedagógica de intervenção na comunidade surda. 2007. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação. Universidade Plínio Leite, Niterói. 2007. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Trad. Luís Antero Reto; Augusto Pinheiro. Lisboa: Edições 70, 1977. BARNETT, S. Cross-cultural communication with patients who use American Sign Language. Fam. Med., v.34, n.5, p.376-82, 2002. BAT-CHAVA, Y.; MARTIN, D.; KOSCIW, J.G. Barriers to HIV/Aids knowledge and prevention among deaf and hard of hearing people. AIDS Care, v.17, n.5, p.623-34, 2005. BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES no 4, de 7 de novembro de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 nov. de 2001. Seção 1, p. 38. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. A pessoa com deficiência e o Sistema Único de Saúde. 2.ed. Brasília: MS, 2006. ______. Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência, instituída através da Portaria no 1.060, de 5 de junho de 2002. Diário Oficial da União Brasília, DF, 10 jun. 2002. BYRON, M. et al. What does ‘disability’ mean for medical students? An exploration of the words medical students associate with the term ‘disability’. Med. Educ., v.39, n.2, p.176-83, 2005. BYRON, M.; DIEPPE, P. Educating health professionals about disability: ‘attitudes, attitudes, attitudes’. J. R. Soc. Med., v.93, n.8, p.397-8, 2000. CHAVEIRO, N. Encontro do paciente surdo que usa língua de sinais com os profissionais da saúde. 2007. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Universidade Federal de Goiás, Goiânia. 2007. CHELINI, P. et al. A contribuição do tema deficiência/pessoa com deficiência na formação médica: o olhar dos estudantes de medicina. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 44., 2006, Gramado. Anais... Gramado, 2006. p.337. CONILL, A. Living with disability: a proposal for medical education. J. Am. Med. Assoc., v.279, n.1, p.83, 1988. COSTA, L.S.M. Deficiência e educação médica. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 43., 2005, Natal. Anais... Natal, 2005. p.556. COSTA, L.S.M.; BOTELHO, I.V.; SOUZA, L.S. Abordagem do tema deficiência na literatura médica. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 46., 2008, Salvador. Anais... Salvador, 2008. p.246. COSTA, L.S.M. et al. O atendimento em saúde através do olhar da pessoa surda: avaliação e propostas. Rev. Bras. Clín. Méd., v.7, n.3, p.166-70, 2009. DUGGAN, A. et al. What can I learn from this interaction? A qualitative analysis of medical student self-reflection and learning in a standardized patient exercise about disability. J. Health Commun., v.14, n.8, p.797-811, 2009. EDDEY, G.E.; ROBEY, K.L. Considering the culture of disability in cultural competence education. Acad. Med., v.80, n.7, p.706-12, 2005.
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Desconhecer as pessoas surdas, não possuir habilidades de comunicação e apresentar atitudes negativas em relação a elas pode trazer riscos para a saúde desses pacientes. Descreve-se a experiência de inclusão do tema surdez em disciplina dirigida a estudantes da Universidade Federal Fluminense. Durante duas aulas da disciplina Saúde e Sociedade III, de 2007 a 2010, 553 estudantes de medicina do segundo ano foram expostos a leituras, discussões, vídeo e vivências com participação de pessoas surdas. Foram solicitadas avaliações livres e anônimas. A análise das avaliações revelou temas contemplando a aquisição de conhecimentos, habilidades de comunicação e atitudes positivas em relação a pacientes surdos. O contato direto com pessoas surdas mostrou-se fundamental para a promoção de atitudes positivas. É importante não apenas sensibilizar os estudantes de medicina, mas instrumentalizá-los para um atendimento que garanta a autonomia e independência de pacientes surdos.
Palavras-chave: Educação médica. Pessoas surdas. Habilidades de comunicação. 1116
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Developing medical students’ attitudes, knowledge and skills in healthcare for deaf people Not knowing deaf people, lacking communication skills and presenting negative attitudes towards them may lead to risks to these patients’ health. An inclusion experience on the topic of deafness in an academic discipline directed towards students at the Fluminense Federal University is described here. During two classes in the module Health and Society III, from 2007 to 2010, 553 second-year medical students were exposed to readings, discussions, video and experiences with participation by deaf people. Freeform anonymous evaluations were requested. Analysis on these evaluations revealed themes relating to acquisition of knowledge, communication skills and positive attitudes towards deaf patients. Direct contact with deaf people was shown to be essential for promoting positive attitudes. It is important not only to sensitize medical students, but to provide them with tools to ensure deaf patients’ autonomy and independence.
Keywords: Medical education. Deaf. Communication skills. Desarrollo de actitudes, conocimientos y habilidades de los estudiantes de medicina en la atención en salud de las personas sordas Desconocer las personas sordas, dejar de tener habilidades de comunicación y presentar actitudes negativas con relación a ellas puede generar riesgos para su salud. Es descrita la experiencia de inclusión del tema sordera en materia ofrecida para estudiantes de la Universidad Federal Fluminense, Brasil. Durante dos clases de Salud y Sociedad III, entre 2007 y 2010, 553 estudiantes de medicina del segundo año fueran expuestos a lecturas, discusiones, vídeo y experiencias con participación de personas sordas. Los alumnos evaluaran libremente y de forma anónima las actividades vividas. El análisis de las evaluaciones demostró que hubo adquisición de conocimiento, habilidades de comunicación y actitudes positivas con relación a pacientes sordos. El contacto directo con personas sordas se presentó fundamental para la promoción de actitudes positivas. Además de sensibilizar a los estudiantes, es necesario instrumentalizarlos para la atención en salud que garantice la autonomía e independencia de pacientes sordos.
Palabras clave: Educación médica. Personas surdas. Habilidades de comunicación. Recebido em 08/08/11. Aprovado em 27/02/12.
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Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2010
livros
CASTIEL, L.D.; GUILAM, M.C.; FERREIRA, M.S. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.
Kleidiana Cássia Silva Borges1 Adriana Estevão2 Marcos Bagrichevsky3
“Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”: metáforas e paradoxos do risco Que nos perdoe o leitor por este título lúdico (talvez um tanto quanto inconveniente aos rigores da academia), mas foi irresistível. Não para roubar a cena. Empenhamos-nos em traduzir, a partir desse dilema-síntese popular/literário (expediente, aliás, usualmente empregado pelo pesquisador que encabeça a autoria do trabalho em apreço), a explosão de sentidos que nos podem interpelar os jogos de palavras, quando acionados. Dispositivo do qual lança mão o livro Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde, com maestria e pertinência, alternando tons ora jocosos, ora sarcásticos (mas sempre de modo consequente). Indiscutivelmente, os riscos encontram-se na ‘ordem do dia’. Em junho do ano passado, a Revista Radis nº 106 (2011) publicou um dossiê bastante ilustrativo e instigante sobre a temática. Nele, argumentações de experts no assunto traduziam substanciais preocupações com a polifonia contemporânea que as acepções do risco acolhem: o modo como estão interligadas à vida cotidiana
(sem que, na maioria das vezes, percebamos isso); os efeitos deletérios daí decorrentes, que resultam, invariavelmente, em sofrimento do corpo e da alma; e as problemáticas características dos discursos sanitários tecnocientíficos, que, em grande parte, reduzem as nuances da vida, em toda sua complexidade, à mera capacidade racional de tomar escolhas, suprimindo nossas subjetividades existenciais e mascarando o contexto iníquo que frequenta de forma persistente a realidade brasileira. É nessa seara que a obra publicada pela Editora Fiocruz, em 2010, e assinada por Luis David Castiel, Maria Cristina Guilam e Marcos Ferreira, mergulha, investindo visceralmente na problematização do risco e nos deixando uma advertência: não se pode interpretá-lo como um constructo (sanitário, ideológico, epistemológico) isento de contradições e conflitos, muito menos, se deve utilizá-lo/ apreendê-lo somente a partir de sua funcionalidade instrumental epidemiológica. As narrativas e ressignificações pósmodernas associadas aos riscos ultrapassam em muito a dimensão dos fenômenos bioestatísticos, sendo necessários outros investimentos
1-3 Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo. Avenida Fernando Ferrari, 514. Goiabeiras, Vitória, ES, Brasil. 29.075-910. kleidiana.borges@ufes.br
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teórico-metodológicos densos e uma leitura crítica de mundo, sensível aos imperativos da sociedade manufaturadora de riscos em larga escala (Beck, 2011) que habitamos e que nos habita. Entre os aspectos abordados no livro, destacamos o enfoque dado ao papel da difusão científico-midiática de informações relativas ao risco. Em particular, devido à geração de uma espécie de sentimento coletivo que sinaliza um cotidiano irremediavelmente eivado de situações perigosas, do qual estaríamos (e permaneceríamos) à mercê, se não nos prevenirmos 24 horas por dia, ao longo da vida. O exponencial crescimento de estudos sobre o tema nos meios de comunicação também é problematizado: a relação de interdependência com esse tipo de informação do público (receptor), persuadido pelas ‘descobertas mais recentes’ da ciência que, em última análise, levam-no a buscar e tornar-se consumidor de produtos e/ou serviços (em geral, disponíveis no mercado) sob a promessa de que estes evitariam problemas de toda ordem. Contudo, apesar de as expectativas e desejos contemporâneos serem capturados pelos fortes apelos retóricos anunciados por instâncias como o complexo médico-industrial e suas estratégias institucionais de determinação/avaliação/ gerenciamento dos riscos, raramente conseguimos aplacar nossas angústias diante das ameaças onipresentes, por mais que nos esforcemos no cumprimento rigoroso de preceitos preventivos receitados. Pelo contrário, a despeito de tanta ‘recomendação especialista’ a circular, a ansiedade parece só crescer no dia a dia. Segundo os autores, esse ‘ambiente riscofóbico’ incita as pessoas a assumirem comportamentos que incorporam ou excluem determinados ‘estilos de vida’, os quais implicam a administração de modos de viver nem sempre acessíveis/viáveis à maioria da população. A obra está organizada em quatro capítulos e compõe a coleção Temas em Saúde. No primeiro capítulo, são tratados aspectos teóricometodológicos do conceito de risco, sua aplicabilidade nas diversas áreas e as disciplinas que dele fazem uso: a economia, a epidemiologia, a engenharia e as ciências sociais. Nas três primeiras predomina o enfoque quantitativo; na última, as abordagens qualitativas são as mais frequentes.
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Discute-se, ainda, a ‘noção funcional’ de risco, articulada ao emprego de indicadores epidemiológicos, para comparações intra- e intergrupos quando se busca medir a morbidade de coletivos populacionais. Os pesquisadores lembram que essa dimensão quantificadora dos fatores de risco à saúde vem acompanhada de determinada racionalidade, prevalente nas maneiras de explicar os processos de adoecimento. Na mesma seção, os termos ‘risco’, ‘associação’ e ‘causalidade’ (e as relações entre eles) são pormenorizados, levando-se em conta sua recorrência no discurso epidemiológico dominante, que homogeniza e reduz os fenômenos da tríade saúde-doença-cuidado a mecanismos de apreensão lógica, estatística. O segundo capítulo examina a questão do estilo de vida saudável, vinculada a certas abordagens discursivas de promoção da saúde. Destaca que, em geral, estas se mantêm numa posição hegemônica de culpabilização da vítima. E analisa com rigor a perspectiva comportamentalista de promoção da saúde, criticando as estratégias de redução dos riscos a ela conectada. A relação entre posturas arriscadas e estilos de vida é posta em xeque justamente porque não considera a processualidade da ambiência social, nem consegue apreender e decodificar emoções, desejos e sensações que influenciam e amoldam comportamentos. O cerne da problematização recai sobre a tirânica apologia à ‘vida ativa’, ‘saudável’, sustentada, em boa parte, por argumentações de estudos epidemiológicos que evocam a noção de ‘autonomia pessoal’ como sinônimo de autocuidado e circunscrita apenas a perspectivas individualizantes. Também são tecidas críticas sobre o modo como a promoção da saúde vem empregando tais discursos para demonizar o sedentarismo e reafirmar incansavelmente (a despeito dos contextos vividos) que ‘atividade física é sinônimo de saúde’. O mote do terceiro capítulo centra-se nos efeitos que a presença do risco genético produz no campo sanitário. Práticas médicas como as de (des)aconselhamento da gravidez de mulheres, baseado nas atuais testagens genéticas pré-natais, a fim de se evitar/detectar condições supostamente indesejáveis e/ou perigosas, são ilustrativas de tais repercussões. Os autores
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intervenções estéticas, a fim de promover modificações corporais que os legitimem socialmente. Outra noção trabalhada criticamente é a da ‘responsabilidade pessoal’. Tomada como estratégia central nas campanhas e programas de prevenção aos riscos, ela tem sido utilizada para execrar os sujeitos que não demonstram capacidade de vigiar-se, autorregular-se. Os autores contrapõem essa perspectiva à ideia de livre-arbítrio (como direito inalienável de decidir, fazer escolhas) e à questão da desrresponsabilização do Estado com o bem-estar social dos cidadãos governados sob sua tutela. A tematização da longevidade dá fecho ao livro, como mais uma das metáforas contemporâneas a partir da qual se pode contrastar a conflitiva premência de viver correndo riscos com o imperativo de lidar de modo prudente e racional com esse quadro. Enfim, trata-se de uma importante obra, recomendada não só aos pesquisadores da saúde coletiva, mas, também, de outras áreas, uma vez que oferta análises ricas e multifacetadas sobre o risco, levadas a cabo com o rigor e didatismo necessários, inclusive àqueles ainda ‘não-iniciados’ no estudo do tema.
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chamam de ‘genetização da medicina’ o processo de colonização social que extrapola a própria área da saúde. Inúmeras interpretações análogas, restritivas, medicalizantes, vêm sendo aplicadas em esferas não correlatas, sem falar na discriminação genética dirigida a famílias e pessoas. Mencionam, ainda, que, nos meios de comunicação de massa, as explicações genéticas têm servido para doutrinar moralmente fatos, desejos e aspectos da vida humana (por exemplo, a obesidade, preferências sexuais, práticas estéticas, criminalidade etc.), estratégias essas que, em outros tempos históricos, foram rechaçadas e reconhecidas como eugênicas. O quarto e último capítulo se ocupa do debate sociocultural sobre o risco (já destacado no início deste texto), a partir de sua disseminação midiática, da velocidade das tecnologias de informação e dos consequentes excessos daí originados, que acabam por aumentar em nós a sensação de ameaça cotidiana em distintas esferas do viver. Também é abordada a problemática do risco na adolescência. Tal como o resto da sociedade, exposto aos apelos do consumismo e do individualismo, os adolescentes, em busca de suas identidades, tornam-se mais suscetíveis, por exemplo, ao uso de substâncias ou de
Referências BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011. CASTIEL, L.D.; GUILAM, M.C.F.; FERREIRA, M.S. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. LOPES, C.R. Risco, conceito fundamental em permanente discussão. Radis, n.106, 2011. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/radis/ revista-radis/106/reportagens/risco-conceitofundamental-em-permanente-discussao>. Acesso em: 20 jul. 2011.
Recebido em 15/05/12. Aprovado em 10/07/12.
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Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2010
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Dimensões estruturais e simbólicas de um espaço hospitalar: estudo antropológico de uma enfermaria cirúrgica em Campinas, SP, Brasil Structural and symbolic dimensions of a hospital space: anthropological study in a surgical ward at Campinas, Sao Paulo State, Brazil Dimensiones estructurales y simbólicas de un espacio hospitalario: estudio antropológico de una unidad quirúrgica en Campinas, São Paulo, Brasil
O estudo teve como objetivo interpretar as dimensões estruturais e simbólicas da cultura de uma enfermaria cirúrgica de um Hospital Universitário em Campinas-SP. A pertinência da investigação deve-se à incipiência de estudos qualitativos que dirijam seu interesse ao aspecto cultural do hospital e à imersão nas dimensões microssociológicas do trabalho em saúde (em um contexto de transição organizacional e paradigmática), a qual é aqui ensejada. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, tendo como referencial metodológico a pesquisa etnográfica. O trabalho de campo foi realizado na Enfermaria Cirúrgica do referido hospital no período de março a setembro de 2008. Os atores sociais envolvidos foram os profissionais que compõem a equipe multiprofissional atuante naquele cenário. Para coligir as informações, foram combinadas as seguintes técnicas de pesquisa: observação participante, entrevistas individuais semiestruturadas, questionário socioeconômico e fotografias da estrutura física. Os dados provenientes das observações participantes foram registrados no diário de campo, e as entrevistas, registradas em áudio para posterior transcrição e análise. A análise das informações foi realizada mediante a elaboração de domínios culturais, análises taxonômicas e temas culturais. Os temas culturais que emergiram foram: Ritos de Iniciação e de Passagem: estágios da trajetória profissional – em que se discutem as vivências dos profissionais de saúde por ocasião da
admissão como funcionário do hospital, e as passagens entre categorias profissionais específicas (de técnico de enfermagem para enfermeiro); O espaço físico da copa: liminaridade, communitas e antiestrutura – em que se abordam os aspectos relacionados à construção de espaços liminares no interior do ambiente estrutural da organização hospitalar, com o intuito de permitir a vivência de situações sociais de communitas e antiestrutura, além de possibilitar a subjetivação da experiência do trabalho em saúde; e Um misto de urgência, angústia e satisfação: características marcantes do processo de trabalho – em que são abordados os diversos aspectos e nuances que permeiam o processo de trabalho dos profissionais de saúde do cenário cultural estudado, bem como a relação entre a urgência dos cuidados desenvolvidos e, paralelamente, a angústia e a satisfação geradas pelo trabalho desses atores sociais. Com base nesses temas culturais, são tecidas algumas considerações acerca da cultura estudada, destacando-se a importância que o espaço físico da copa interna da enfermaria assume, ao permear diversos aspectos concernentes ao modo próprio de viver, pensar e sentir o cotidiano dos profissionais de saúde que atuam nesse contexto. Além disso, acentua-se a emergência de inúmeras estratégias e mecanismos de resistência que se expressam por meio da elaboração de “anticenários”, de caráter simbólico. Tais “anticenários” são interpretados e manipulados pelos sujeitos da pesquisa, no COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1123-8, out./dez. 2012
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sentido de possibilitar a vivência em um ambiente estruturado, hierarquizado, artificial, disciplinado e medicalizado, tal como o ambiente hospitalar. Por fim, destaca-se a contribuição que a experiência vivenciada na copa pode trazer à reforma organizacional em curso no campo de pesquisa e à área de Administração em Enfermagem; bem como o fato de o hospital ser uma instituição que também comporta: a dimensão humana, os rituais, os processos de individualização, as hierarquias mais flexíveis, os espaços de socialização e lazer, dentre tantos outros aspectos.
Palavras-chave: Antropologia. Cultura. Equipe de assistência ao paciente. Comportamentos ritualísticos. Keywords: Anthropology. Culture. Patient care team. Ceremonial behavior. Palabras clave: Antropología. Cultura. Grupo de atención al paciente. Comportamentos ritualísticos.
Texto na íntegra disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/ document/?code=000465822&opt=4
Lucas Pereira de Melo Dissertação (Mestrado), 2009 Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. Com financiamento do CNPq lucasenf@yahoo.com.br
Recebido em 28/05/12. Aprovado em 11/07/12.
O cuidado espiritual: um modelo à luz da análise existencial e da relação de ajuda Spiritual care: a model based on the existential analysis and the helping relationship Cuidado espiritual: un modelo a luz de la análisis existencial y de la relación de ayuda
Constitui um desafio para profissionais de enfermagem atender o ser humano nas suas diversas necessidades, e contemplar, em sua assistência, as complexas dimensões humanas. Dentre todas as dimensões humanas, a espiritual tem destaque para a área da saúde: primeiro, porque é a que diferencia o homem dos demais seres, pois integra a capacidade de ser livre, responsável e de buscar, constantemente, um sentido para a vida; segundo, por ser uma dimensão negligenciada, devido à ênfase dada às 1124
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dimensões psicofísicas e ao distanciamento histórico da ciência tradicional. Constatamos ser necessário um modelo de cuidado espiritual que sirva de suporte a enfermeiros que cuidam de pacientes gravemente enfermos, visto que vivenciam a dor, o sofrimento e a iminência de morte. Nosso objetivo, portanto, é produzir um modelo de cuidado espiritual, com base no referencial teórico-metodológico da “Análise Existencial”, de Viktor Emil Frankl, e da “Relação Pessoa a Pessoa”, de Joyce Travelbee.
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e se sustenta em uma metodologia que orienta as ações de cuidado; e se estrutura em dezessete pressupostos teóricos, relacionados com cinco conceitos básicos: ser humano; processo saúde/ doença; enfermagem; ambiente; cuidado espiritual. Além disso, segue os passos de construção e estabelecimento do cuidado espiritual, de cuidado propriamente dito, e de manutenção e análise do cuidado espiritual, estruturados em três etapas: Khronos – fase de construção; Kairós – fase de busca; Aión – fase de integração. Este modelo contempla o cuidado total, mas enfatiza o espiritual, porque, perscrutando as virtudes e valores humanos, tem como foco central a busca e o encontro do sentido da vida. O presente trabalho não é a única possibilidade de cuidado espiritual, tampouco tem a pretensão de ser a única e a última verdade sobre o assunto. Antes, convidamos todos a conhecerem, aplicarem, validarem, criticarem, ampliarem, contestarem ou rejeitarem esta tese, se assim julgarem procedente.
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Para isso, desenvolvemos uma pesquisa-cuidado, que mostrou ser uma resposta ética e humanística na forma de fazer ciência, visto que teve a preocupação de beneficiar os sujeitos pesquisados, pois foram cuidados enquanto participavam da pesquisa. Trata-se de uma pesquisa realizada com três pacientes, com o diagnóstico de câncer, hospitalizados em um hospital público, terciário, da cidade de Fortaleza-Ceará. A pesquisa foi dividida em duas etapas: [1] a coleta de dados, realizada durante o processo de cuidar, por meio da relação de ajuda enfermeiro/ paciente; [2] a produção do modelo, com base nos dados analisados e confrontados com o referencial teórico. O processo de construção deste modelo foi realizado utilizando-se, de forma integrada, as categorias criadas do conteúdo dos diálogos e dos comentários das interações, conforme recomenda Bardin. A construção do modelo foi discutida e apresentada em três elementos do cuidado espiritual: os componentes; o desenvolvimento; a culminância. Esta tese foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa e observou, irrestritamente, os princípios norteadores da pesquisa envolvendo seres humanos, conforme a Resolução 196/1996, do Conselho Nacional de Saúde. O modelo de cuidado produzido fundamenta-se filosoficamente
Michell Ângelo Marques Araújo Tese (Doutorado), 2011 Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Departamento de Enfermagem, Universidade Federal do Ceará. micenf@yahoo.com.br
Palavras-chave: Modelo de cuidado. Espiritualidade. Câncer. Cuidados paliativos. Keywords: Model of care. Spirituality. Cancer. Palliative care. Palabras clave: Modelo de atención. Espiritualidad. Neoplasia. Cuidados paliativos.
Texto na íntegra disponível em: http://www.teses.ufc.br/tde_busca/ arquivo.php?codArquivo=7691
Recebido em 05/07/12. Aprovado em 28/07/12.
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Saúde sexual e reprodutiva de mulheres vivendo com HIV/Aids atendidas em hospital dia Sexual and reproductive health of women living with HIV/Aids attended to at the outpatient hospital Salud sexual y reproductiva de mujeres con VIH/Sida atendidas en un hospital de día
Tendo em vista o avanço da epidemia de aids entre as mulheres, com maior concentração de casos na faixa reprodutiva, objetivou-se analisar aspectos da saúde sexual e reprodutiva de mulheres infectadas pelo HIV/aids atendidas em serviço especializado do interior do Estado de São Paulo. Entre outubro de 2008 e dezembro de 2010, foi realizado estudo transversal, descritivo e analítico que contemplou, também, abordagem qualitativa, visando atender ao objetivo de descrever a vivência da sexualidade das mulheres investigadas. Incluiu-se o conjunto das mulheres vivendo com HIV/aids, em seguimento no referido serviço, que aceitaram participar da pesquisa (n=184). Os dados foram obtidos pela própria pesquisadora, por meio de entrevista que contemplou questões abertas e fechadas e exame ginecológico. Para o diagnóstico do padrão da microbiota vaginal, de doenças sexualmente transmissíveis (DST) e alterações citológicas do colo uterino, empregaram-se métodos padrãoouro. Os dados foram analisados por meio da estatística descritiva e associações foram verificadas pelo teste qui-quadrado ou exato de Fisher. Os depoimentos das participantes sobre a vida sexual, após o conhecimento da infecção pelo HIV, foram analisados empregando-se os pressupostos da Análise de Conteúdo, segundo Bardin. Predominaram as mulheres brancas, com idade entre trinta e 59 anos, com união estável e baixo nível de escolaridade, procedentes de 45 municípios do interior paulista. 94,0% delas foram infectadas pela via sexual e, entre estas, 84,2%
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por seus parceiros ou ex-parceiros fixos. A mediana do tempo de diagnóstico da infecção pelo HIV foi de oito anos, e 79,9% estavam em terapia antirretroviral. Observou-se elevada prevalência de alterações da microbiota vaginal (51,8%), DST (87,0%) e citologia oncótica alterada (21,2%). Isoladamente, a infecção pelo HPV foi a DST mais prevalente (83,6%), seguida da infecção pela Chlamydia trachomatis (24,6%), tricomoníase (14,7%) e sífilis (1,1%). A maioria (71,0%) das mulheres relatou mudanças na vida sexual após o diagnóstico da infecção pelo HIV, inclusive inatividade sexual (23,9%). Identificaram-se diferentes níveis de satisfação com a vida sexual e dificuldades para iniciar e manter um relacionamento afetivo-sexual. A diminuição da qualidade da vida sexual relacionou-se tanto a alterações da resposta sexual quanto à modificação no repertório das práticas sexuais, justificada, dentre outros motivos: pela tensão durante a relação sexual em função do medo de transmitirem o HIV a seus parceiros não infectados, de se reinfectarem e/ou adquirirem outras DST; insegurança quanto à proteção oferecida pelo preservativo, e comprometimento da autoimagem. Entre as dificuldades para iniciar e manter um relacionamento, destacaram-se: a rejeição e o dilema de revelar o diagnóstico ao parceiro; sentimentos negativos, como mágoa, decepção, raiva; e, especialmente, a dificuldade de negociação do uso do preservativo, claramente relacionada às diferenças de poder e gênero. Observaram-se alterações no padrão de uso de métodos contraceptivos, e 29,4% das mulheres
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Marli Teresinha Cassamassimo Duarte Tese (Doutorado), 2012. Programa de Pós-graduação em Doenças Tropicais, Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp. mtduarte@fmb.unesp.br
Palavras-chave: Saúde sexual e reprodutiva. Mulheres. Infecções por HIV. Síndrome de imunodeficiência adquirida. Doenças sexualmente transmissíveis. Neoplasia intraepitelial cervical.
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mantinham o desejo de engravidar. Este estudo vem contribuir para o planejamento de ações mais abrangentes, voltadas à promoção da saúde integral das mulheres vivendo com HIV/aids, na medida em que levanta uma série de necessidades reais, relativas à saúde sexual e reprodutiva, e ao contexto sociocultural e programático de vulnerabilidade.
Keywords: Sexual and reproductive health. Women. HIV infections. Acquired Immunodeficiency Syndrome. Sexually transmitted diseases. Cervical intraepithelial neoplasia. Palabras clave: Salud sexual y reproductiva. Mujeres. Infecciones por VIH. Síndrome de inmunodeficiencia adquirida. Enfermedades de transmisión sexual. Neoplasia intraepitelial cervical.
Recebido em 25/06/12. Aprovado em 28/07/12.
A medicalização do social: um estudo sobre a prescrição de psicofármacos na rede pública de saúde The medicalization of the social: a study of psychotropic drugs prescription in public health La medicalización de lo social: estudio sobre la prescripción de psicofármacos en la red publica de salud
Atualmente, qualquer sinal de sofrimento psíquico pode ser rotulado como uma patologia cujo tratamento será a administração de psicofármacos. Com o advento dos modernos psicofármacos e com a ênfase preventiva que assumiu o atendimento psiquiátrico após a II Guerra Mundial, a psiquiatria modificou suas práticas e deixou de ser um saber voltado exclusivamente ao tratamento da loucura para dedicar-se a medicar qualquer mal-estar cotidiano. Essa tendência tem-se ampliado de tal modo que é possível perceber a ocorrência de uma generalizada “medicalização do social”. Neste trabalho, desenvolvemos dois movimentos de pesquisa distintos para estudar o tema da medicalização social e da atual expansão da prescrição de
psicofármacos. O primeiro desenvolve um enfoque histórico-social de contextualização geral do processo de medicalização do social. Nele procuramos percorrer a trajetória da constituição do saber e das práticas médico-psiquiátricas desde a fundação manicomial do alienismo até a atual ênfase psicofarmacológica da psiquiatria contemporânea. O segundo movimento busca aproximar-se da capilaridade do processo de medicalização por meio do desenvolvimento de um estudo exploratório amostral sobre a prescrição de psicofármacos no âmbito de um serviço de atendimento à saúde mental de uma pequena cidade do interior paulista. Nossa pesquisa mostra que todos aqueles que passaram pelo atendimento psiquiátrico receberam COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1123-8, out./dez. 2012
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prescrição de psicofármacos, e que não há qualquer sinal de alta nos tratamentos daquele serviço no qual seus usuários permanecem, indeterminadamente, sob medicação psicofarmacológica. Por fim, ainda que longe de cobrir toda a extensão da temática abordada, à guisa de conclusão, apresentamos uma preocupação inquietante: a expansão do alcance de instituições de atendimento em saúde mental que reproduzam o modelo médico tradicional, como aquela de nosso estudo, poderá realizar as tendências tão pretéritas de expandir o atendimento psiquiátrico para amplos contingentes populacionais, o que, em nossos dias, significará a extensão da medicação psicofarmacológica para a população em geral. Nesse âmbito, podemos pensar que até mesmo o direito universal à saúde, estabelecido no direito
constitucional brasileiro, corre o risco, nos termos em que vem sendo praticado nos serviços públicos de saúde mental, de constituir-se numa forma de drogadição da população, promovida por aparelhos de estado que, ao contrário de cumprirem direitos constitucionais de cidadania, acabariam por colocar em risco a própria autonomia da população ao promoverem sua dependência a drogas distribuídas pelos serviços estatais de saúde pública. Daniele de Andrade Ferrazza Dissertação (Mestrado), 2009 Programa de Pós-graduação em Psicologia, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis. Com apoio da Fapesp. danieleferrazza@yahoo.com.br
Palavras-chave: Saúde Mental. Medicalização. Psicofármacos. Reforma Psiquiátrica. Keywords: Mental Health. Medicalization. Psychotropic. Psychiatric Reform. Palabras clave: Salud mental. Medicalización. Psicofármacos. Reforma Psiquiátrica.
Texto na íntegra disponível em: http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/bas/ 33004048021P6/2009/ferrazza_da_me_assis.p
Recebido em 31/07/12. Aprovado em 12/08/12.
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Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2011
Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica, 2012
criação
Urbe fágica
Ricardo Pozzo1
As imagens que compõem esta edição da Revista Interface fazem parte do Projeto Urbe Fágica do fotógrafo Ricardo Pozzo, nascido em Buenos Aires e radicado em Curitiba, Brasil, desde meados do século XX.
URBE FÁGICA Projeto fotográfico com base nas teorias de Georg Simmel, Vilém Flusser e Jean Baudrillard, que tenta provocar, em um hipotético observador aleatório, a constatação de que os estímulos provenientes da realidade são, e cada vez mais, excessivos o suficiente para que as contradições sociais costurem o abismo entre o discurso e as práticas cotidianas. Inserido numa realidade pragmática, mergulhado em um oceano absurdo de estímulos e informação, o habitante da urbe, como nos diz Simmel, não possui capacidade psicobiológica suficiente para que surja, em sua consciência, o elo crítico que o faria estacar em sua atividade autômata e perceber as contradições no todo do ciclo social. Identificado pelo discurso midiático maniqueísta, ora como algoz, ora vítima, muitas vezes simultaneamente nas duas posições, o habitante da urbe, psicoburgês, torna-se presa de uma rotina de manutenção da pólis, estando sempre um passo aquém de suas obrigações, ao mesmo tempo em que seus anseios primitivos, negados por uma moral de conduta, são estimulados pela publicidade. Essa dicotomia restringe sua percepção do processo natural em seu entorno, no qual está inserido, deixando então de considerar os caminhos e limites que o impediriam de sobrecarregar o sistema orgânico, permitindo compreender-se como sujeito dentro da extrema fluidez em que ocorrem as experiências vividas em si e em sociedade. Como Flusser nos convida a perceber, o fotografo é similar a um caçador na tundra ou, no caso do projeto urbe fágica, em busca do instantâneo que, no cotidiano revele as contradições de nosso contrato social.
Rua Miguel Odia Fagundes, 28, Fazendinha. Curitiba, PR, Brasil. 81.320-150. terradosempre2006@ gmail.com
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CRIAÇÃO
Ricardo Pozzo é fotógrafo, filho de fotógrafo, e há oito anos dedica-se ao projeto Urbe Fágica, fotografando em máquinas analógicas, tais como a Nikon FM10 ou Canon EOS Rebel 2000. Trabalha também no registro fotojornalístico de causas sociais, como a Ocupação Nova Primavera – CIC/ Sabará 2012, com 3 fotos nessa edição, e é fotógrafo responsável pelo jornal literário paranaense RelevO, além de ter outras páginas de fotografia. É escritor, poeta, tradutor, músico, fotógrafo, e produtor cultural. Desde 2011, é curador do projeto Vox Urbe, no Wonka Bar, em Curitiba, um espaço para a percepção poética - aos que se sabem e aos que ainda não se sabem poetas. Membro do Pó e Teias, coletivo literário, é um dos coordenadores do blog, de mesmo nome.
Ricardo Pozzo, Corpus, Projeto Urbe fágica, s/d
https://twitter.com/RicardoPozzo http://olhares.uol.com.br/elquetzal http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=5556 http://www.curitibacultura.com.br/noticias/entrevistas/o-pozzo-e-a-poesia-na-urbe-0 http://www.mallarmargens.com/2012/09/fotocorpos-por-ricardo-pozzo.html
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criação
Ricardo Pozzo, Composição vaga, 2010
Urbe[m] Samsara Escatológica cosmogonia a cada quadra Urbe[m] Samsara que pouco você vê re significada a cada Cosmo [de]
subjetividade individualizada! www.poeteias.blogspot.com.br/2012/02/urbem-samsara.htlm COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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CRIAÇÃO
Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fágica, 2011
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v.16, n.43, p.1131-4, out./dez. 2012
criação
Reflexões poéticas sobre educação Poetic reflections on education Reflexiones poéticas sobre la educación Fausto dos Santos Amaral Filho1
Vazio
Tem um vazio que fica Uma angústia Ao final do curso Se por profissão Montasse carros – como seria do gosto do Senhor Reitor – Não haveria problemas Que eles Das fábricas Saem prontos e acabados Com os parafusos Todos apertados Aqueles com defeito Recall Com os que saem Da minha linha de montagem Mal tenho tempo De lhes dizer adeus Que se cuidem! Pois o trânsito É perigoso
1 Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Tuiuti do Paraná. Rua Sydnei Rangel Santos, 238, Santo Inácio. Curitiba, PR, Brasil. 82.010-330. fausto.santos@utp.br
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1135-8, out./dez. 2012
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CRIAÇÃO
Réquiem
Quem trabalha Quer condições de trabalho A ferramenta O instrumento O salário Quando alguém cria um problema Não significa que haja problema Todos se mexem Para todos os lados Todos caminham Aos esbarrões Para lugar nenhum Cuspidos Todos saem formados Com suas becas de filó Exemplares vulgares De um saber decadente Já se foi a época das Universidades Restou apenas A ilusão de um saber fragmentado E o tilintar opaco das moedas
Pseudo
A pseudo-intelectual De esquerda Gostava De dizer: “Nada me sabe Melhor A não ser Eu mesma” Soberba 1136
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criação
Professora
Ai, ai Professora querida Sala de aula Power point Maquinaria Gráficos Tabelas Esquemas Ai, ai Professora querida Como será Que seria Se Ao invés De tanta metodologia A sua aula tivesse Um pouco Um pouquinho mais De melodia...
Academia
A Academia É douta Por demais Impressionada Pelo seu próprio saber Onanisticamente Produz fantasias Simulacros verdadeiros Da sua própria vaidade. A Academia É operosa Ciosa Dos seus compromissos Quer um país melhor Muito mais bonito Por isso pensa Pensa, pensa, pensa, Pensa em demasia. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.16, n.43, p.1135-8, out./dez. 2012
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CRIAÇÃO
Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fágica, s/d
Recebido em 22/11/12. Aprovado em 01/12/12.
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v.16, n.43, p.1135-8, out./dez. 2012
criação
Odisseia inacabada* Unfinished Odyssey Odissea inacabada Daniel Rocha Silveira1
Descendo: o sol escuro Respirar o ar árido e áspero Receber o sol que brilha cinza Afogar-se no azul do céu angustiante E o tempo dói sempre e sem fim E o solo é lixa sim Sofregamente asfixiante O abismo da tristeza... O sono, câmara de torturas Em pesadelos horrendos... Acordar... carregando montanhas De culpas tremendas... Sendas sem saída Que apertada vida! Lancinantes falas Gritos sem cordas vocais...
Poesia escrita com base na história de vida de paciente de psicoterapia portador de transtorno afetivo bipolar. Agradeço a ele pela permissão para escrever o texto. Aqui descreve-se, fenomenologicamente, a vivência da bipolaridade, em suas fases depressivas e eufóricas. O título, ao se referir ao inacabamento, retrata a realidade daquela vida que continua como uma batalha, uma travessia que se faz com muito esforço, também com o suporte do acompanhamento psicoterápico. 1 Departamento de Psicologia, Faculdade de FIlosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos, 6627, sala 4080, Campus Pampulha. Belo Horizonte, MG, Brasil. 31.270-901. danielrochasilveira@ gmail.com *
A traça traça furos no coração... Moedor de carne comendo a mão... Dia sempre noite... Sensação de prisão... Grilhões da agonia... Sinos sem perdão... Inferno vivido Tormentas tremendo Poeira de lixo De bichos morrendo... Ratos carnudos furando escudos... Penetrando em camadas tectônicas, canais profundos... Escuros, em vácuo imundo... Sem forças para se levantar Mais fácil jogar-se no mar Afundando no nada o olhar...
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CRIAÇÃO
II) Subindo: o sol brilhante E sutilmente o prazer à espreita Amanhecendo o dia no dia... Clareando o sol E acelerando as marchas De motor em vibrante... Em novos instantes... As palavras fluem Em rapidez a tristeza diluem Em alegria o mormaço excluem Espontâneas desenvoltas Em discursos se incluem... Subindo mesmo na contramão De qualquer indecisão Fortalecendo-se, exageradamente são Luz, cores, pintura, poesia, falatório rápido e ação Tudo e nada em vão No crédito de compras inúteis que vão Afundar a conta
E muito, muito tesão, Na busca incessante do prazer, Comedimento não, Ao contrário... Voracidade na cidade... Frenéticas as palavras fluem Fogem ideias, lançam-se alhures... Olhar estar espátula estação Anão cantão tão tácito torpe torpor Expondo estonteando Vendo falando fantasmando Misturando estaturas espaçadas Espúrias estorvando espátulas De sentido que foge em fuga voraz Freneticamente correndo pro fundo assaz Assando em pinceladas pollock jogadas Pintando o quarto de preto Goya gotejando em dedos espasmódicos E o corpo pinta correndo em óleo... Toxicidade feroz de si mesmo algoz Em agonia rasga o grito, desespera Sem espera, não se esmera Sem dormir, a sorrir e mais rir E o brilho, e o brilho, e o brilho estonteante...
III) Pausando... Sem acaso a casa Recebe sorrateira Enfermeiros de branco Injeção certeira Sossegando chegando O sono vem na veia Medicado torpe ia Trabalhar um zumbi Quase clara a magia Do vivo em vigília dormir Camisa de força na veia De química que o cérebro incendeia E contém, sustém, em férreo desdém 1140
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V) Freando...
Porém... mudança de médico... Em excesso se medica... Overdose química Neuronal alquimia Serotonina explode Supernovas iluminam E voa voa a mente No delírio imprudente Corre corre em vexame Fugindo em palavras, Da tristeza desmame,
Sem aconchego se chegou e foi ao choque Não sutil mas protegido, anestesiado toque, Que a memória comeu por alguns dias de chofre.
Novos sentidos se fazem... Arauto do infinito Lutador das forças do bem... Voa fundo e alto a cabeça... Perigando-se expondo-se explosão
criação
IV) Explodindo de novo: alegria
E se passa um mês de presente Em contatos, diálogos e fatos Artes falas cores e novas alas De não furtivas alternativas, Delineiam-se em fundo horizonte Em que sol esperança nasce Ouro-vivo além de toda lembrança E pra frente novo impulso Se arrasta no pulso... Não avulso... O peso maior Expulso. Raspa a cera do rosto Revive. Nasce novo momento. Não se escondendo em véu A vida vem espelha o céu, em azul refrescante infinito
VI) Arrefecendo: as horas tristes Mas que agonia profunda! À volta não invade, inunda. Em horas de tarde a dor fundo arde. Ácido o coração corrói. Apertado o peito dói: se silencia, se para fala alto do desespero o disparo. grita em si o grito sem fim... de olhos esbugalhados na ponte de muncheano horizonte... Ecoam agulhas esquálidas Na ampulheta de gotas geladas, inválidas. Que furam, afiadas espadas rasgando a pele e ossadas... do fundo sem fundo de si... Em subindo em descida do sim... Bem correndo, horrendo enfim...
A fugir do inescapável instante que pega de dia ou à noite quando vêm pesadelos, açoite. Pinga o vento, o tempo, o segundo torturantes no cinzento mundo. Infinito vazio o fita... sorrindo não se agita... afunda.
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CRIAÇÃO
VII) Tentando o equilíbrio na corda bamba Mas fundo, fundo, há luz Esperança distante mas presente seduz Um naco de vida, pedaço que nasce Em planta vertente que abre a rocha Em flor desabrocha... Esforço força no rosto Em dias novo propósito Anotados em caderno Empenho em esmero Correndo e andando: Não como antes, Agora pra frente Enfrentando o presente, Não mais do momento ausente Mas enraizado no atual instante. Olhando adiante À vida assente Pés no chão então Se quer sempre Estar sem ilusão... E vai de antemão, Cerrando, tentando acertar com precisão, Cada gesto com a mão Expressão.
VIII) Novo momento A cada dia, Tentar novo tempo; Descoberta Da nova flora Que surge: A riqueza do momento. Com os tratamentos a tiracolo Medicação e psicoterapia Vai rompendo, tentando ir em frente! E continua o devir...
Recebido em 24/08/11. Aprovado em 02/12/11.
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Posicionada como têmpera de um projeto social crítico, aberto, político, epistemológico, e em permanente revisão, a Saúde Coletiva tem produzido debates temáticos fecundos, frequentemente conectando distintos pensadores e matrizes, dispostos a borrar as fronteiras disciplinares e a confrontar os modelos tradicionais de abordagem da saúde-doença-cuidado, em busca de convergentes e relevantes problematizações. O texto de Gaudenzi e Ortega (2012), publicado na revista Interface, se insere nessa perspectiva. A magnitude intercessora de conceitos, análises e questionamentos trabalhados pelos autores de modo consequente, nos instigou a ampliar as reflexões sobre o tema central, anunciado desde o título. A época na qual vivemos sinaliza preocupações emblemáticas à sombra da influente racionalidade científica, que incide imperativa em nações e continentes, ‘globalizados’ pela desigualdade de oportunidades, pelo acirramento do fosso abissal que distancia pobres e ricos. Sua potência, geradora de efeitos exponenciais sobre crenças e condutas humanas, aponta que adentramos em um novo tempo, parametrizados e posicionados pela ciência, numa proporção antes inimaginável. Ao assumir essa condição litúrgica, o desafio do homem aos deuses, outrora projetado na esfera hollywoodiana por profecias da literatura de ficção do gênero, hoje se confirma prosaicamente nas clínicas médicas superespecializadas, através das nanotecnologias produzidas em escala industrial ou nos laboratórios de genética espalhados pelo mundo, à espera daqueles que podem pagar por suas benesses. Os desdobramentos da interseção entre essa racionalidade e o espaço social, à luz dos impactos tecnocientíficos, não se restringem mais a ações normalizadoras sobre a biologia humana, agora invadem e esculpem sua substância. São processos que matizam a biomedicalização da sociedade e a patologização da vida pós-genômica, que constituem e expandem as biossociabilidades e a biocidadania, referências preocupantes de uma nova realidade em ascensão (Clarke et al., 2003). O domínio biomedicalizante, apoiado nessa ultratecnificação das ciências da vida, revela um trabalho social deliberado para recriar definições nosológicas, e validar diagnósticos de supostas condições problemáticas, que, em tese, já estariam afetando diferentes grupos de indivíduos (Welch, Schwartzm Woloshin, 2011). Ao materializar certos estados de ‘préenfermidade’ (retaguarda minuciosamente amparada pela estatística dos estudos sobre fatores de risco à saúde), emergem novas identidades, a partir das quais o status de ‘quase-doença’ assume lugar central (Gøtzsche, 2002).
cartas
Politização de conceitos: linhas de fuga para o estatuto ambivalente da ‘saúde-doença’ na sociedade pós-genômica *
Carta ao editor sobre o artigo “O estatuto da medicalização e as interpretações de Ivan Illich e Michel Foucault como ferramentas conceituais para o estudo da desmedicalização”, de Paula Gaudenzi e Francisco Ortega, publicado em Interface – Comunic., Saude, Educ., v.16, n.40, p.21-34, 2012. *
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CARTAS
Desse panorama, têm resultado transformações aceleradas e em perspectiva planetária, não apenas de setores-chave do mundo atual, mas, sobretudo, de valores singulares que, até pouco tempo, sustentavam e dotavam de sentido a convivência em coletividade. Está em curso uma radicalização da condição humana que torna ambíguas e fluidas as distinções ontológicas entre pessoas e coisas; que expropria nossas subjetividades; que conduz, invariavelmente, ao sofrimento do corpo e da alma (Skrabanek, 1994). Some-se a isso, o fervoroso individualismo tardo-moderno que o capitalismo líquido acolhe, exacerbando assimetrias socioeconômicas, culturais e políticas, e deslocando as fronteiras da responsabilidade pública do Estado Moderno para a dimensão molecular dos sujeitos – que deveriam ser protagonistas-beneficiários das políticas de bem-estar social nesse modelo de governança, ao invés de se tornarem ‘alvos’ da responsabilização por sua própria sorte. E claro, é preciso mencionar, também, a ditadura midiática, da qual já falava Noam Chomsky há décadas, estabelecida pelos meios de comunicação de massa em estreita comunhão com a ideologia do capital, a serviço da ‘desinformação’ e do fomento de ideias que volatilizam os debates críticos acerca de questões na ordem do dia. A “fabricação do consenso” despolitizador, para usar uma expressão chomskyana, encontra-se amalgamada a todas as instâncias do cotidiano; desde as micropolíticas discursivas que edificam comportamentos consumistas, como meta primeira da existência humana, até o ditame das macroestruturas de poder das megacorporações e governos, cujas escolhas decisórias vertem de forma implacável sobre populações e grupos marginalizados (Chomsky, Herman, 1988). Não podemos perder de vista que as ‘patologias sociais’, das quais padecem países desiguais como o Brasil, têm gerado corpos enfermos e agonizantes, governamentalizados por retóricas e práticas que nos distanciam da capacidade de escapar e resistir às armadilhas da subjugação neoliberal, de toda ordem. Indiscutivelmente, há um enorme lastro de vinculações entre as problemáticas relativas ao processo saúde-doença-cuidado e à gestão política da vida exercida pelas instituições sociais do nosso tempo. A pujança valorativa do meio acadêmico sobre o contexto anunciado se reafirma na própria realidade dos acontecimentos do dia a dia. Esse cenário complexo e delicado demanda dos pesquisadores – sobretudo no campo sanitário – a ampliação de reflexões e pesquisas eticamente comprometidas em dar respostas relevantes às agruras societárias do novo século; ou, pelo menos, dispostas a enfrentá-las e indagá-las de maneira crítica, tal como o empreendimento investigativo de Gaudenzi e Ortega (2012). Não se trata de desqualificar o acúmulo da produção científica em saúde, nem de outorgar ao campo a função de redentor dos males que a humanidade enfrenta. Todavia, é premente, sim, tensionar os muitos dilemas imbricados na própria gênese dos saberes da ciência, cujos investimentos públicos têm se misturado de forma maciça a interesses mercadológicos, bélicos e midiáticos. Em geral, quando detectadas, tais interfaces ainda emergem de maneira difusa, tímida, quando não rechaçadas ou desprezadas por representantes do espaço acadêmico. As ‘trilhas’ ofertadas pelo trabalho de Gaudenzi e Ortega (2012) são valiosas porque deságuam em linhas de fuga: propõem reformulações matriciais insurgentes, mestiças, intelectualmente inquietantes e contextualmente relevantes; e sinalizam a necessidade de se alargarem as fronteiras de criticidade e as arenas sociais para incitar o debate/embate de tais questões. O exercício de politizar conceitos e ideias em espaços de formação humana – seja na universidade, nos serviços públicos ou na gestão em saúde – implicados com as práticas sociais, constitui e fortalece parte do processo estratégico de resistência à medicalização nefasta, que, cada vez mais, se alastra e invade as esferas da vida contemporânea. Marcos Bagrichevsky1 Adriana Estevão2 Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo. Avenida Fernando Ferrari, 514. Vitória, ES, Brasil. 29.075-910. marcos_bagrichevsky@yahoo.com.br 1,2
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cartas Referências CHOMSKY, N.; HERMAN, E.S. Manufacturing consent: the political economy of the mass media. New York: Pantheon Books, 1988. CLARKE, A.E. et al. Biomedicalization: technoscientific transformations of health, illness and U.S. biomedicine. Am. Sociol. Rev., v.68, p.161-94, 2003. GAUDENZI, P.; ORTEGA, F. O estatuto da medicalização e as interpretações de Ivan Illich e Michel Foucault como ferramentas conceituais para o estudo da desmedicalização. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.16, n.40, p.21-34, 2012. GØTZSCHE, P.C. Medicalisation of risk factors. BMJ, v.324, n.7342, p.890-1, 2002. SKRABANEK, P. The death of humane medicine and the rise of coercive healthism. London: Social Affairs Unit, 1994. WELCH, H.G.; SCHWARTZ, L.; WOLOSHIN, S. Overdiagnosed: making people sick in the pursuit of health. Boston: Beacon Press, 2011.
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Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fรกgica 2011
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