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editorial

Interface inicia seu 15o ano ininterrupto de circulação com um aumento de 45% no número de artigos originais publicados, a partir deste fascículo, passando de 64 para 92 artigos anuais. Tal medida é parte do esforço para manter o intervalo médio entre submissão e publicação não superior ao alcançado em 2009 (349 dias), em decorrência do expressivo crescimento no volume de submissões e a subsequente ampliação no número de artigos aprovados. O intervalo entre submissão e publicação obtido, relativamente baixo se comparado a outras publicações da área de Saúde Coletiva, é fruto de um conjunto de iniciativas que permitiram racionalizar e dar agilidade ao processo de avaliação, por meio do uso do sistema SciELO Submission de gerenciamento editorial, da implantação de um processo de pré-avaliação e da pré-publicação (ahead of print) na base SciELO Brasil, logo após a aprovação do manuscrito. A partir deste ano outras medidas estão sendo adotadas visando dar mais transparência e velocidade ao processo de pré-avaliação realizado por editores e editores associados, mediante a informação adicional dos autores sobre a natureza do manuscrito submetido quanto à originalidade em relação à literatura nacional e internacional. Quanto aos relatos de experiência submetidos à seção Espaço Aberto, serão priorizadas produções que tragam elementos originais na abordagem adotada ou nos resultados alcançados. Os autores também são convidados, a partir de 2011, a indicar dois ou três avaliadores (do país ou exterior) que possam atuar no julgamento de seus trabalhos, possibilitando uma ampliação e diversificação do banco de avaliadores ad hoc da revista, já com cerca de 1.400 pesquisadores cadastrados. Também abrimos espaço para indicarem, quando necessário, possível conflito de interesse com pesquisadores que possam atuar como avaliadores. Neste fascículo Interface faz uma homenagem póstuma à professora Cecilia Magaldi, falecida em 28 de setembro de 2010, publicando texto inédito desta apaixonada educadora que inspirou diversas gerações de futuros médicos para uma postura crítica diante das condições de vida e saúde do país e para as possibilidades de intervenção do campo da Saúde Pública na redução das mazelas sanitárias do Brasil. Cecilia foi médica infectologista, sanitarista, professora titular e emérita da Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp (FMB) e motivou muitos de seus alunos para a escolha da Saúde Pública como campo profissional. Também formou diversas gerações de médicos sanitaristas, desde o início dos anos 1970, por meio do Programa de Residência Médica em Medicina Preventiva e Social do Departamento de Saúde Pública da FMB, do qual foi uma das fundadoras. O trabalho foi apresentado no XX Congresso Brasileiro de Educação Médica (ABEM), realizado em Ribeirão Preto, em 1982, e é uma boa expressão de seu pensamento crítico, trazendo questões ainda atuais sobre o papel social das instituições de ensino superior, em geral, e da escola médica, em particular. A avaliação da escola médica é tratada sem deixar de reconhecer o papel das “populações servidas pelas Escolas de Medicina e atendidas pelos médicos que as formam” (Magaldi, 2011, p.329). Questionava os modelos de avaliação “que reprovam profissionais, depois de diplomados, mediante exame de suficiência”, como medida da qualidade do ensino recebido durante a graduação médica, a exemplo do que hoje se dá com o polêmico exame realizado pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP). Cecilia via a escola médica com um enorme potencial para mudanças na graduação por acreditar ser esta a instituição universitária que “melhor reúne as condições para [...] revisão de critérios de qualidade de sua produção (e não só de seu produto). Isto porque, dadas a sua natureza e a especificidade de seus compromissos formais e informais, poderá aumentar o seu potencial de inconformismo em relação ao modelo social vigente” (Magaldi, 2011, p.331). Estas são apenas algumas das questões que Cecilia apresentou em seu pequeno ensaio, com a ousadia e clareza de pensamento de quem sempre acreditou que um futuro melhor é possível e lutou por ele. Já como secretária municipal de saúde de Botucatu, durante a década de 1980, se engajou no movimento da reforma sanitária e teve a alegria de ver consolidado o seu projeto de estruturação de uma rede local de serviços de saúde e a definição constitucional do direito à saúde como conquista da sociedade brasileira. Cecilia deixou aos que conviveram com ela a compreensão de que o conhecimento e a sabedoria rimam muito bem com a humildade, a humildade da educadora que compreendia que ninguém sabe tudo e que estamos sempre aprendendo. Antonio Pithon Cyrino Editor

Eliana Goldfarb Cyrino Editora Associada

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Interface begins its 15th year of uninterrupted circulation with a 45% increase in the number of published original papers, which, from this issue onwards, will rise from 64 to 92 papers per year. This is part of the effort to maintain the average interval between submission and publication no higher than the one that was reached in 2009 (349 days), due to the expressive growth in the volume of submissions and the subsequent amplification of the number of approved papers. The achieved interval between submission and publication, which is relatively low when compared to other journals in the area of Public Health, derives from a set of initiatives that have enabled us to rationalize and speed up the evaluation process, by means of the SciELO Submission editorial management system, of the implementation of a pre-evaluation process, and the ahead of print on the SciELO Brasil database, right after the approval of the manuscript. This year, other measures are being adopted in order to give more transparency and speed to the pre-evaluation process that is carried out by editors and associate editors, based on the additional information provided by the authors about the nature of the submitted manuscript, concerning originality in relation to the national and international literature. As for the experience reports submitted to the section Espaço Aberto (Open Space), we will prioritize productions that present original elements in the adopted approach or in the achieved results. Now, the authors also have the possibility of indicating two or three reviewers (from Brazil or abroad) who can appraise their works. This will amplify and diversify the journal’s set of ad hoc reviewers, which already has approximately 1,400 enrolled researchers. We have also opened space for them to indicate, whenever necessary, a possible conflict of interests with researchers that may act as reviewers. In this issue, Interface pays posthumous homage to Professor Cecilia Magaldi, who died on September 28th, 2010. We are publishing an original text authored by this passionate educator who has inspired many generations of future doctors to assume a critical posture in view of Brazil’s life and health conditions and to use intervention possibilities of the Public Health field in the reduction of the country’s sanitary problems. Cecilia was an infectologist, a sanitarian, and full and emeritus professor of the School of Medicine of Botucatu - Unesp (FMB). She motivated many of her students to choose Public Health as professional field. She also educated diverse generations of sanitary doctors, since the beginning of the 1970s, through the Medical Residence Program in Preventive and Social Medicine of the Public Health Department of FMB, of which she was one of the founders. The work was presented in the XX Congresso Brasileiro de Educação Médica (ABEM – 20th Brazilian Congress of Medical Education), which was held in Ribeirão Preto, in 1982, and it is a good expression of her critical thought. It discusses issues that are still very important nowadays about the social role of higher education institutions in general, and of the medical school, in particular. The evaluation of the medical school is approached by recognizing the role of the “populations served by the Schools of Medicine and assisted by the doctors who educate them” (Magaldi, 2011, p.329). She used to question the evaluation models “that fail professionals, after their graduation, by means of a sufficiency exam”, as a measure of the quality of the teaching that is received during medical graduation, as it happens today with the polemic exam carried out by the Regional Council of Medicine of São Paulo (CREMESP). Cecilia thought that the medical school had great potential for changes in undergraduate programs because she believed that this is the university institution that “has the conditions for […] reviewing the quality criteria of its production (and not only of its product). This is due to the fact that, given its nature and the specificity of its formal and informal commitments, it can increase its potential of nonconformism in relation to the current social model” (Magaldi, 2011, p.331). These are only some of the questions that Cecilia presented in her small essay, with the boldness and clarity of thought of a person who always believed that a better future is possible and fought for it. As municipal health secretary of Botucatu during the 1980s, she engaged in the sanitary reform movement and had the pleasure of seeing the consolidation of her project for structuring a local healthcare services network and the constitutional definition of the right to health as an achievement of the Brazilian society. Cecilia left to those who knew her the understanding that knowledge combines very well with humbleness, the humbleness of the educator who understood that no one knows everything and that we are always learning. Antonio Pithon Cyrino

Editor

Eliana Goldfarb Cyrino Associate Editor

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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.6, jan./mar. 2011


artigos

As práticas de cuidado e a normalização das condutas: algumas considerações sobre a gestão sociomédica da “boa morte” em cuidados paliativos

Suely Marinho1 Márcia Arán2

MARINHO, S.; ARÁN, M. Care practices and normalization of conducts: some considerations on the socio-medical management of “good death” in palliative care. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.7-19, jan./mar. 2011. This paper aimed to discuss the processes of normalization and sociomedical management of death in contemporary societies, from analysis on the transformations in social perceptions of death that occurred in between 1960 and 1970, and on palliative care practices as a model for managing the end of life. From Michel Foucault’s notion of normalization of conduct, we made a critical analysis on the concept of “good death” as one of the main mechanisms aimed at regulating this new medical practice. Finally, we outlined some care concepts for which singular “modes of subjectivation” are the reference points, founded on relationships based on alterity that enable the creation of a potential space in which to live and die.

Keywords: Palliative care. Subjectivity. Death. Public Health.

Este artigo tem por objetivo discutir os processos de normalização e de gestão sociomédica da morte nas sociedades contemporâneas, a partir da análise das transformações nas apreensões sociais da morte, ocorridas no curso dos anos de 1960-1970, e das práticas de assistência dos cuidados paliativos como um modelo de gestão do fim da vida. Com base na noção de normalização das condutas de Michel Foucault, realizamos uma análise crítica da concepção de “boa morte” como um dos principais dispositivos que visam à regulação desta nova prática médica. Por fim, esboçamos algumas concepções de cuidado que têm como referência “modos de subjetivação” singulares, pautadas nas relações alteritárias, as quais permitem a criação de um espaço potencial para o viver e morrer.

Palavras-chave: Cuidados paliativos. Subjetividade. Morte. Saúde Coletiva.

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* Este texto é parte de um capítulo de Marinho (2010), pesquisa com financiamento pela Capes. 1 Centro Universitário São José de Itaperuna. Rua Major Porphírio Henriques, 41, Centro. Itaperuna, RJ, Brasil. 28.300-000. sumarinho@yahoo.com.br 2 Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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AS PRÁTICAS DE CUIDADO E A NORMALIZAÇÃO DAS CONDUTAS: ...

Apresentação Este artigo tem por objetivo discutir os processos de normalização e de gestão sociomédica da morte nas sociedades contemporâneas, com base na análise de uma modalidade de assistência em medicina proveniente do mundo anglo-saxão denominada cuidados paliativos. Para isso, inicialmente, realizaremos uma breve reconstituição do movimento histórico através do qual evoluíram as apreensões sociais da morte durante os anos de 1960-1970, que, em seu conjunto, criou as condições de possibilidade da emergência dos cuidados paliativos como um modelo de gestão do fim da vida. Em seguida, a partir da noção de normalização das condutas de Michel Foucault, realizaremos uma análise crítica da concepção de boa morte como um dos principais dispositivos que visam à regulação desta nova prática médica. Finalmente, esboçaremos algumas concepções de cuidado que têm como referência modos de subjetivação singulares, pautadas nas relações alteritárias, as quais permitem a criação de um espaço potencial para o viver e o morrer.

A emergência dos cuidados paliativos como modelo de gestão do fim da vida A literatura crítica das ciências sociais, cuja atenção, em fins dos anos 1960 e início dos anos 1970, está voltada para as questões que cercam a morte, traz à luz certo diagnóstico da sociedade contemporânea: as condições da morte alteraram-se profundamente durante o século XX, em especial desde a Segunda Guerra Mundial. Esta transformação nos contornos da morte foi resultante de mudanças muito diversas, com destaque para aquelas relativas ao progresso científico que deu nascimento às evoluções das técnicas médicas e especialização da medicina em várias disciplinas. Tais evoluções permitiram o controle de uma série de doenças que outrora conduziam à morte. Durante séculos, eram as doenças infecciosas a causa preponderante de mortes, com as grandes epidemias produzindo mortes significativamente rápidas e dolorosas (Elias, 2001; Ariès, 1989, 1977). Atualmente, são, sobretudo, as doenças crônico-degenerativas de longa duração que provocam a morte nas sociedades modernas (Maciel, 2009). Assim, o regime moderno da doença, que resultou num prolongamento da vida, tem uma incidência particular sobre a maneira com a qual apreendemos a morte e o fim da vida (Castra, 2003). A gestão dos casos de sobrevida artificial constitui outra problemática vastamente discutida na segunda metade dos anos 1960. Trata-se da necessidade de fixar o momento da morte, a fim de não causar impasses jurídicos para o cirurgião nos casos de transplante de órgãos, inaugurando-se, em 1968, o conceito de morte cerebral (brain death), quando então a morte deixa de ser um acontecimento pontual, para tornar-se um processo, frequentemente longo (Agamben, 2004, p.169). O prolongamento no tempo do processo de morte configura, deste modo, um novo contexto técnico e cognitivo. Ao fim dos anos 1960, tanto a definição, como a forma da morte e seu caráter de evidência estão profundamente alterados. Mais longo e, por conseguinte, mais visível, o período do fim da vida pôde emergir como lugar de debate, saindo do relativo silêncio no qual estava encerrado até a década de 1970 (Foucault, 2004, 2000; Elias, 2001; Ariès, 1989, 1977; Sudnow, 1971). A consideração dos problemas da morte ocorre justamente no momento em que se produz uma evolução importante do lugar onde ela se desenrola: progressivamente, a morte desloca-se de casa, junto à família (Ariès, 1989), para o hospital, produzindo, no século XX, o que se chamou de medicalização da morte (Foucault, 2001; Herzlich, 1993). Durante os anos 1974-1976, o tema da morte-tabu torna-se uma representação dominante nas análises das ciências sociais: evoca-se, assim, a exclusão da morte e do doente moribundo como uma característica fundamental da modernidade (Rodrigues, 1983; Ariès, 1977). Outro elemento que problematiza a morte em nosso tempo foram as modificações nas relações do médico com o paciente moribundo, resultante das críticas à profissão médica. A lógica que presidia até então as relações com o paciente em fim de vida se caracterizava pela preocupação do médico de mascarar a iminência da morte, a fim de poupar o doente (Ariès, 1989). Contudo, esta atitude geral em face da morte aparece, cada vez mais, inadaptada no curso dos anos 1970. 8

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artigos

A problematização da relação tradicional médico-paciente traduz uma evolução da noção de boa morte: o ideal de uma morte rápida, inconsciente, discreta desaparece gradualmente em prol da concepção de uma morte consciente, controlada e antecipada. Para Castra, é nesse momento, entre 1975 e 1979, que o tema do apoio psicológico ao moribundo adquire uma centralidade dos meios preconizados para melhorar a vivência do fim da vida (Castra, 2003). Tais reivindicações significaram também uma individualização progressiva do debate: a problemática da gestão do fim da vida coloca, cada vez mais, o paciente no centro dos discursos, introduzindo, ao mesmo tempo, novas preocupações, como aquelas relativas à eutanásia. Assim, nos anos 1970, os contornos da morte alteraram-se rapidamente, à medida que o indivíduo que está morrendo se torna mais presente nos debates, cujo pano de fundo é um alongamento temporal da morte viabilizado pela tecnologia médica. Paralelamente às críticas à medicina, cuja legitimidade em relação à gestão da fase terminal é sistematicamente questionada, a reivindicação do direito a morrer constitui um eixo essencial do debate público, mas também um novo modelo de apreensão da morte, por meio da afirmação de tal direito, à qual os cuidados paliativos irão se opor. É neste contexto que assistimos ao progressivo surgimento de uma concepção nova do indivíduo em fim de vida, com a emergência do movimento inglês dos hospices, o qual desenvolve uma abordagem radicalmente diferente do paciente em fase terminal da doença.

História dos cuidados paliativos ou movimento hospice As novas formas de apreensões sociais da morte, que tiveram lugar entre os anos de 1960 e 1970, propiciaram, então, um solo fértil de reivindicações e de emergência de modelos alternativos de gestão do fim da vida, no qual se localizam os cuidados paliativos. As origens dos hospices modernos ou da medicina paliativa, enquanto serviço especializado voltado para pacientes cujas doenças não possuem recurso de cura, os quais, mais que um lugar físico, se remetem a uma filosofia de cuidados, estão referidas à médica britânica Cicely Saunders. Por meio da fundação do movimento moderno dos cuidados paliativos, Saunders, progressivamente, fundou e legitimou um novo espaço de intervenção na medicina, afirmando a especificidade das dores cancerosas terminais. Ao isolar esta forma de dor, constitui o fim da vida como uma entidade distinta que designa uma nova forma de trabalho médico (Clark, 1999). Para isso, o conceito de Saunders de dor total foi um importante instrumento, pois sua formulação considera o sofrimento do paciente nas esferas física, psicológica (emocional), social e espiritual, que não apenas coexistem, mas interferem entre si. Com efeito, Saunders, no curso do trabalho clínico, cunhou o termo dor total precisamente para capturar as dimensões múltiplas da dor e do sofrimento, além de sublinhar sua complexidade no contexto do final da vida. Mais tarde, o termo tornou-se um dos conceitos mais poderosos desse campo (Clark, 1999). Em 1967, Saunders abre, em Londres, o St. Christopher’s Hospice, que se torna rapidamente lugar de referência para o acompanhamento de pacientes em final de vida e de gestão das dores ligadas à fase terminal. Reconhecido como o primeiro hospice moderno, pioneiro em matéria de cuidados paliativos, ele é também concebido para efetuar atividades de pesquisa e de ensino em relação direta com a prática clínica e os cuidados (Menezes, 2004; Pessini, 2004; Castra, 2003; Varga, 2001). Na década de 1970, Saunders tem um encontro com a psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross. Pioneira na investigação do tema da morte e do morrer no século XX, a autora analisa, a partir do trabalho clínico ao lado de pacientes moribundos, os diferentes estágios psicológicos que estes passam a partir de um diagnóstico de doença fatal até sua morte: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação (Kübler-Ross, 1998). Esta teoria, cujo imperativo é a escuta atenta do doente e seus familiares, foi fundamental para o estabelecimento da trajetória ideal de um paciente no final da vida, que, após ter negado sua doença, aceitaria a morte inevitável, de maneira serena e resignada, conformando as premissas da boa morte conceito que constitui uma das normatividades centrais dos cuidados paliativos (Menezes, 2004, 2003). Em suma, a elaboração da teoria de Kübler-Ross, conjugada ao conceito de dor total e às pesquisas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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farmacológicas antálgicas de Saunders, forneceram as bases para a formulação da teoria dos cuidados paliativos, definidos pela OMS em 2002: Cuidado paliativo é uma abordagem que promove qualidade de vida de pacientes e seus familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, por meio da prevenção e do alívio do sofrimento, o que requer identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e de outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual. (World Health Organization - WHO, 2002)

Esse modelo, desde 1967, conheceu desenvolvimentos institucionais diversos (hospital especializado, unidade de cuidados paliativos em hospital universitário, unidade móvel em grandes hospitais, atendimento a domicílio etc.), geralmente de maneira concomitante aos desenvolvimentos da oncologia e seus avanços, áreas que estão historicamente vinculadas. Constata-se, contudo, que no seu processo de legitimação, os cuidados paliativos foram estabelecendo suas fronteiras com esse campo. A este respeito, se destaca a mudança de seu discurso desde sua fundação até os dias de hoje - antes centrado na crítica ao abandono dos pacientes cujas doenças não tinham mais cura, atualmente voltando-se mais para a crítica da obstinação terapêutica ou da eutanásia. Baszanger afirma que, entre obstinação e eutanásia, compreende-se como é particularmente apreendida a questão das relações entre unidades de cuidados paliativos e oncologia atualmente. Esta relação tem sido de oposição de dois modelos de ação, não apenas porque os dois modelos operam em lógicas diferentes, isto é, uma lógica orientada para a doença, outra orientada para o doente e seu conforto, a lógica da paliação pura. Em ambas, pode haver uma gestão da morte do doente. Na oncologia, no campo dos ensaios clínicos de novas medidas terapêuticas, as equipes propõem-se a cuidar do paciente até o fim, conforme a pesquisa etnográfica de Baszanger em um hospital parisiense. Mas a oposição dos dois modelos se coloca, cada vez mais, a partir de um questionamento mais amplo: o que é a boa morte? E quem decide: doentes ou médicos? Apesar da oposição, a legitimidade do novo campo como dispositivo que toma sob seu encargo o doente no fim da vida, podendo lhe propiciar a boa morte, é crescentemente reconhecida pelas outras especialidades, em especial a oncologia (Baszanger, 2000). Mesmo considerando os inúmeros avanços deste novo modelo, alguns autores têm apontado para as novas formas de normatividade que se instituem no cotidiano da assistência voltada para a gestão do fim da vida (Menezes, 2004; Castra, 2003). Destaca-se, neste sentido, a concepção de boa morte, da qual os cuidados paliativos são representativos. Os defensores dessa abordagem medicalizada do morrer têm estabelecido, tanto no plano do discurso quanto das práticas, uma nova concepção do bem morrer, marcada pelo projeto de ressocializar a morte, isto é, de modificar as representações sociais associadas ao fim da vida (Castra, 2003), de maneira que a morte, tornada selvagem na modernidade, como denunciou Áries (1989, 1977), se torne domada e passível de controle na sociedade contemporânea. A emergência dos cuidados paliativos é, nesse sentido, uma expressão dos vetores de lutas que marcam o mundo contemporâneo, uma luta eminentemente em torno dos valores da vida. Foi nesse sentido que Foucault afirmou que a vida, no limiar da modernidade biológica, tornou-se o grande alvo das lutas biopolíticas, muito mais que do direito, embora tenham se apresentado por um direito à vida, à saúde, ao corpo, à felicidade, à satisfação de necessidades (Foucault, 1985) e, agora, o direito à própria morte.

As práticas de cuidado e a normalização das condutas: o dispositivo sociomédico da boa morte O conceito de boa morte pode ser definido como um dispositivo que se destina a assegurar a aceitação e legitimidade do novo modelo, configurando-se, portanto, numa norma de regulação dessa nova prática médica (Baszanger, Gaudillière, Löwy, 2000). Neste sentido, a regulação não é apenas a multiplicação dos dispositivos legais que os Estados têm progressivamente definido ou imposto. A legitimação de uma inovação prática no campo médico, como têm sido os cuidados paliativos, passa 10

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3 Castra realizou entrevistas junto aos membros de cerca de vinte estruturas de cuidados paliativos, situadas igualmente no setor público (centros hospitalares universitários e nãouniversitários, hospitais locais) e no setor privado. Além de efetuar um trabalho etnográfico em alguns desses serviços fixos, também esteve presente em duas unidades móveis de cuidados paliativos, estruturas associadas a dois centros hospitalares universitários.

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artigos

pelo trabalho de regulação e diversificação. Encarnada em práticas que funcionam ao modo do rizoma, de rede ou do tecido sem costura, a legitimidade de uma inovação não é mais uma questão isolada da produção de conhecimentos, do papel dos doentes, das intervenções reguladoras do Estado ou da profissão, mas das diferentes interações de uma cena múltipla (Baszanger, Gaudillière, Löwy, 2000). Com base na discussão sobre a boa morte e as críticas que lhe são dirigidas, parecenos interessante analisar esta concepção como uma norma, segundo a definição de Foucault (2004), que prescreve tanto comportamentos normais e/ou desviados/ anormais, como também a normalização das condutas. Foucault produziu uma distinção entre o processo de normalização na disciplina, tecnologia de poder que se aprimora no século XVIII, tornando-se uma nova técnica de gestão do homem, e no dispositivo de segurança da biopolítica, voltada para a gestão das populações. No primeiro caso (disciplina), se teria uma normação, para acentuar o caráter primeiro da norma, a partir da qual se dá a partilha em normal e anormal. No dispositivo de segurança, o autor usa o termo normalização para falar de um processo em que há curvas de normalidades diferenciais, isto é, parte-se do normal e deste se deduz a norma (Foucault, 2004). A sociedade da normalização, assim, é uma sociedade em que se cruzam, se transversalizam a norma da disciplina e a norma da regulamentação. Com esta proposição, Foucault assinala que o biopoder conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra (Foucault, 2000). Nessa discussão geral, verifica-se, com efeito, que a norma, em uma e em outra tecnologia, funciona de maneiras distintas. A disciplina, então, analisa, decompõe o indivíduo, os lugares, os tempos, num esquadrinhamento do tempo e do espaço. Destaca-se que a disciplina fixa os procedimentos de adestramento progressivo e de controle permanente, a partir dos quais estabelece a partilha binária entre aqueles que serão considerados como inaptos, incapazes e os outros. A normalização disciplinar consiste em instalar primeiro um modelo ótimo, construído em função de um certo resultado, cuja operação implica deixar as pessoas, os gestos, os atos conformes a esse modelo. O normal é o que se conforma a essa norma, e o anormal, o que não é capaz. Conclui-se que, na normalização disciplinar, o que é fundamental e primeiro não é o normal e o anormal, mas a norma, que possui um caráter primitivamente prescritivo. É em razão desse caráter primeiro da norma que Foucault considera que se trata, na disciplina, de uma normação, mais do que uma normalização (Foucault, 2004). No entanto, na biopolítica, mais próxima das sociedades de segurança e de controle, o que está em jogo não é mais o esquadrinhamento das condutas dos indivíduos, mas a gestão da população. A normalização no dispositivo de segurança consistirá na gestão de diferentes distribuições de normalidade, umas em relação às outras, de modo que se passe de uma situação desfavorável para outra mais favorável. A técnica no dispositivo de segurança, portanto, vai consistir em registrar as normalidades as mais desfavoráveis, as mais desviantes em relação à curva normal, geral, e de as conformar sobre essa curva normal, geral. Segundo o autor, “são estas distribuições normais que vão servir de norma”, ou seja, “a norma está em jogo no interior das normalidades diferenciais” (Foucault, 2004, p.65). Sendo assim, o normal é primeiro e a norma se deduz desse estudo das normalidades. No deslizamento entre práticas disciplinares e de segurança, podemos identificar o ideal da morte apaziguada na contemporaneidade, tanto mais normal quanto menos dramático for seu desenrolar. A partir de uma pesquisa sociológica realizada em unidades de cuidados paliativos na França3, Castra (2003) analisa a existência de representações coletivas que conferem, ao fim da vida e à morte, uma significação claramente positiva, que o autor 11


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denominou de uma ideologia específica do mundo dos cuidados. Neste sentido, a concepção de bem morrer se torna uma referência constante, ou seja, uma norma mais ou menos implícita de apreciação dos diferentes aspectos da trajetória do paciente. Para Castra, no entanto, para além da renovação do laço social em torno do moribundo e do favorecimento das condições de uma morte comunitária e cercada por muitas pessoas, entre família e técnicos, a recomposição das práticas e das concepções do fim da vida parece caracterizada por um movimento de individualização, que se exprime por meio do reconhecimento e da valorização da subjetividade do doente que está morrendo. A expressão desta subjetividade se torna um objeto central de preocupação ou de trabalho em cuidados paliativos e pode, desde então, ser considerada como um dos componentes essenciais do bem morrer. Castra, no estudo referido, identificou, por meio dos discursos e práticas diárias dos profissionais dessa área, representações idealizadas da experiência da morte. Estas eram veiculadas por intermédio das histórias de doentes que retratam trajetórias de fim de vida excepcionais ou notáveis, ancoradas na memória coletiva das equipes. As micronarrativas, ao mesmo tempo em que ilustram as fortes prescrições normativas que subjazem à ação dos profissionais, exprimem a ideia de que o fim da vida, longe de ser um período dramático e insuportável, pode ter um valor intrínseco e trazer um acréscimo de sentidos. Por exemplo, o relato de um caso, cujo paciente: Gerenciava os horários das visitas, avisou de seu falecimento a pessoas próximas através de carta, preveniu a esposa e filhos de sua piora, mas mantendo-se sempre digno e corajoso. Mediante a piora, solicitou que o filho trouxesse champanhe, brindou com todos, família e equipe, e morreu. (Castra, 2003, p.333)

Em outro caso, era destacado pelo enfermeiro como fabuloso: Todo o domínio que a paciente tinha de suas necessidades, de si, a despeito de seu precário estado físico, permanecendo como sujeito e não como objeto da equipe, solicitando sedação ao tempo certo, passando de uma comunicação difícil para o compartilhamento da experiência de sofrimento. (Castra, 2003, p.333)

As duas narrativas remetem ao acompanhamento de casos excepcionais, ou seja, casos emblemáticos do moribundo mestre e ator do seu próprio drama, à semelhança dos rituais de morte descritos por Ariès, próprios da Idade Média, os quais conformavam o que o autor denominou de morte domada (Ariès, 1989). O fim da vida passa a ser o ponto culminante da existência e marca o advento de um indivíduo-sujeito, que chega plenamente a dar forma e gerir sua própria trajetória. Nos dois casos relatados, os doentes são conscientes da iminência da sua morte e progrediram para uma total aceitação. A morte torna-se a resultante psicológica de um processo mais ou menos longo. Deste modo, afirma Castra, a boa morte é, nesse campo, uma morte preparada, dominada, da qual os candidatos participam sem nunca perturbarem a ordem dos vivos. A exemplaridade da sua atitude, a coragem, o controle, a dignidade, o perfeito controle dos afetos terminam por dar um caráter moralizador a esta nova concepção do fim da vida. Esses casos também colocam em cena a mediação dos profissionais que contribuem para a realização de um fim de vida bem-sucedido. Nesta inversão dos valores, a proximidade da morte é vivida como um episódio que exalta e é enriquecedor. Mas, ao transformarem a morte em última etapa do crescimento, com vistas a lhe retirar o caráter dramático, os cuidados paliativos vinculam a boa morte à obrigação de um desenvolvimento pessoal ilimitado. Os momentos mais dolorosos da vida encontram-se, em suma, neutralizados e reinvestidos em termos positivos, com a morte perdendo seu caráter violento, perturbador e desorganizador. A realidade da morte é redefinida como potencialmente carregada de sentidos, de emoção, suave, calma e serena (Castra, 2003). Desta forma, ainda que a morte permaneça sempre um acontecimento traumatizante, uma desordem, uma ruptura, há um esforço, por meio das representações idealizadas do fim da vida, em 12

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neutralizar o seu alcance e de lidar com esta violência irredutível, assemelhando-se ao que Glaser e Strauss (2005), nos anos de 1960, denominaram de uma dying trajectory, isto é, uma trajetória defensiva utilizada pelos profissionais - de forma consciente ou não - para lidarem e se adaptarem aos incômodos e constrangimentos do trabalho no hospital. Ainda com base na pesquisa de Castra, em cuidados paliativos, as mortes injustas são vividas pelos profissionais de maneira tanto mais difícil se a elas se sobrepõe um mau fim de vida. Este designa aqueles casos em que os profissionais não conseguiram conter a dor e os sintomas dos pacientes. Qualificados de casos pesados, esses doentes requerem um cuidado intenso e podem fazer malograr o trabalho de conforto e a utilidade profissional dos médicos e dos cuidadores. Encontram-se também, entre estes casos, os pacientes cuja atitude em face da morte é julgada negativa: recusa de encarar a realidade da finitude de maneira serena; vontade de retomar um tratamento curativo; elaboração de uma biografia futura que não acontecerá, nos casos em que o paciente planeja fazer algo em longo prazo; incapacidade de enfrentar a morte; agitação ou angústia extrema; atitude de desistência. As categorias utilizadas para qualificar esses comportamentos são bem comuns em cuidados paliativos e, com frequência, são inspiradas diretamente nos trabalhos de Kübler-Ross (1998): a revolta, a negação, a ambivalência designam, geralmente, os doentes que assumem mal a proximidade da morte. É em referência à representação de uma atitude aceitável e desejável frente à morte que se forjam estas categorias de avaliação dos doentes pelos profissionais, permitindo ajustar a atitude a se adotar em face deles. Classificar um indivíduo entre aqueles que têm um fim de vida difícil e um fim de vida notável, numa interpretação normativa do morrer, permite aos profissionais reforçarem as normas da boa morte e reafirmarem, diariamente, os valores próprios da disciplina (Castra, 2003). Outra forma de avaliação moral corrente no hospital pesquisado, mas que podemos encontrar na prática cotidiana de qualquer hospital, se encontra na distinção entre os “bons” e os “maus” doentes. Assim, certos indivíduos são percebidos como corajosos, encantadores, gentis. Cooperativos, aderem mais facilmente à organização do serviço. Nos casos inversos, os “maus” doentes têm mau caráter, exageram e solicitam continuamente a presença dos profissionais. Revoltados, manipuladores ou exigentes, julga-se que estes pacientes têm excessiva tendência para se queixarem, apesar dos esforços empreendidos pelos profissionais de atendê-los. São estes pacientes, tidos como “indisciplinados”, que “não respeitam nenhuma regra”, que complicam o trabalho, até mesmo perturbam a rotina hospitalar, ocorrendo, não raro, um desinvestimento do profissional no cuidado com este tipo de doente (Castra, 2003, p.337). Essas designações dos doentes se inscrevem na perspectiva de globalidade dos cuidados, que autoriza a intervenção nos domínios psicológicos e sociais da vida da pessoa - a partir da teorização de Saunders sobre a dor total -, distantes dos conhecimentos médicos e de enfermagem tradicionais. A vivência do fim da vida, então, é interpretada em função de considerações ligadas à personalidade do paciente e, algumas vezes, sua condição de moribundo é colocada em segundo plano. Estes discursos coletivos em torno das categorias mau fim de vida ou maus pacientes visam, pode-se aventar, proteger os profissionais das relações cotidianas difíceis com a doença e a morte, colocando seus aspectos disruptivos mais à distância. Em cuidados paliativos, os acontecimentos ‘negativos’ podem igualmente ser neutralizados pelos profissionais, que os reinterpretam em função da sua própria lógica. Os membros das equipes dispõem, nesta perspectiva, de um arsenal de respostas ou sequências de raciocínios pré-construídos, espécies de esquemas interpretativos que permitem fazer face às situações difíceis. Assim, a cólera de uma família não é realmente dirigida contra o profissional, mas exprime a desordem e a revolta contra a situação em si mesma; a demanda de eutanásia não é verdadeiramente um pedido de morte, mas testemunha o sofrimento daquele que está morrendo. Com este procedimento, os profissionais redefinem as necessidades e os pedidos do doente em função das suas competências. A função da atividade de reinterpretação revela-se, por conseguinte, fundamental: trata-se, para os cuidadores, de negociar o não-sentido da morte operando um trabalho coletivo de transformação simbólica de relacionamento com o paciente. Trata-se de um esforço de racionalização da atividade por meio de explicações psicologizantes da conduta dos doentes. 13


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Castra chama a atenção para o fato de que essa abordagem da morte, na França, é fortemente marcada pelos saberes da psicanálise, país com tradição nessa área. No hospital analisado, havia a figura do grupo de discussão, espaço por excelência de um trabalho de reinterpretação dos acontecimentos cotidianos e de produção de significados à abordagem da morte. O conjunto da equipe, sob a direção de um psicanalista (às vezes, de um psicólogo), pode ali empreender uma reflexão coletiva a partir de sua própria experiência e expressar, ao grupo, suas dificuldades nas situações mais penosas. A partir do problema levantado pelo grupo, há um esforço de elaboração destas experiências penosas, deslizando da situação problemática manifesta para o verdadeiro problema que, uma vez identificado, permitirá aos profissionais melhor compreenderem e, por conseguinte, tomarem a distância segura e necessária para a realização do trabalho (Castra, 2003). Nessa perspectiva, a invocação, pelos profissionais, do bom acompanhamento daqueles que estão morrendo deixa entrever a imagem de um indivíduo que se mantém na posição de sujeito porque consegue exercer sua autonomia em direção a uma plena preparação, elaboração e gestão da sua trajetória de fim de vida. Este paciente ideal evolui, notadamente, em direção a uma aceitação de sua própria morte, como a interpretação do modelo das cinco fases de Kübler-Ross (1998) faz supor, tornando-se mesmo uma prescrição entre os profissionais. Entre nós, Zaidhaft examinou alguns trabalhos publicados entre o final da década de 1960 e a década de 1980, para verificar as influências rumo ao que o autor denominou de psicologização da morte. Conclui que, na trajetória da medicalização e psicologização da morte, foram sendo ‘descobertos’ os fatores que produzem sofrimentos, sensivelmente psíquicos, e gestadas as estratégias de cura. Sob essa nova organização, ausência de sofrimento significa ausência de conflito, formulação ampliada para a afirmação de que, não apenas para se viver bem, como também para se morrer bem, é preciso expurgar os conflitos internos (Zaidhaft, 1990). Por fim, o postulado torna-se uma norma, com fórmulas adequadas para morrer e com a criação de técnicas para acompanhar quem está morrendo. Assim, indica o autor, após a morte ter sido clericalizada (século XIII) e medicalizada (na primeira metade do século XX), chegamos a uma nova fase, resultado da medicalização da morte e da psicologização da medicina: a psicologização da morte (Zaidhaft, 1990). Também Menezes, a partir de trabalho etnográfico em uma unidade pública de cuidados paliativos no Rio de Janeiro, localizada no Instituto Nacional do Câncer (INCA), tematiza e identifica a concepção de uma boa morte. Para que haja a boa morte, é necessário que esta seja integrada à história da pessoa e adquira um significado particular. A etapa que antecede a morte é compreendida como a última oportunidade de um trabalho sobre si mesmo. A autora chama a atenção para um “idioma da subjetividade” presente nas práticas cotidianas da unidade, fundado sobre os saberes psicológicos, em especial oriundos da psicanálise (Menezes, 2004, p.43). Com base nessas formulações, verifica-se, portanto, a mobilização de uma abordagem psicologizante no interior do trabalho médico e de cuidado a esses pacientes, sendo, talvez, revelador de um processo de normatização dessa prática. Assim, existiria uma boa maneira de morrer e ela se situa sempre em relação à representação de uma atitude aceitável, conveniente, oportuna. Por meio desse ideal de um fim de vida menos violento, sem dor, apaziguado e pacífico, os cuidados paliativos podem ser interpretados como uma tentativa última para neutralizar a morte, que constitui, por essência, uma perturbação na ordem social. Deste modo, uma crítica importante aos cuidados paliativos é esta concepção normativa de bem morrer, viabilizada pela normatização da conduta ideal do enfermo perante a doença e a morte, cuja expectativa é a de que o paciente aceda a um estado de aceitação de sua morte. Uma segunda crítica é o de estar vinculado exclusivamente à cultura terapêutica, em que as experiências de dor, sofrimento e morte têm sido tratadas necessariamente por profissionais de saúde (Menezes, 2004). Isto tem significado que o final da vida - como tantas outras instâncias, como o nascimento e a infância - continua restrito às soluções e explicações médicas, configurando o que Foucault chamou de medicalização social (Foucault, 1979). Este funcionamento, ao que parece, é coerente com a própria história da medicina, que há, pelo menos, um século, segundo Boltanski, tem sido a história de luta contra as práticas médicas populares, especialmente das classes baixas, com o fim de reforçar a autoridade do médico, conferir-lhe o monopólio dos atos médicos e colocar sob sua 14

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jurisdição novos campos abandonados até então ao arbítrio individual, tais como: a criação dos recémnascidos ou a alimentação (Boltanski, 2004) e, agora, a morte. Isso ilustra a pretensão da ciência moderna em desvelar a realidade, em detrimento dos agentes envolvidos, suas percepções imediatas e intenções (Santos, 1997). Ora, baseada em tal paradigma, a ciência médica se julga a única capaz de enfrentar eficazmente a doença, o sofrimento e a morte a partir de um conhecimento especializado, embora estabeleça novos compromissos, como o resgate da espiritualidade, em sua velha missão de dar um sentido à morte. Conclui-se que houve novos compromissos, mas não podemos afirmar que houve uma efetiva mudança de paradigma científico engendrada pelos cuidados paliativos em relação à medicina tecnológica. Para Castra, ao contrário, os cuidados paliativos funcionam como uma espécie de instância reparadora da medicina. Essa disciplina, na concepção do autor, encarna a face escondida da medicina contemporânea, aquela resultante de um alto investimento na lógica curativa, traduzida por uma obstinação terapêutica que traz graves consequências aos pacientes. Por intermédio dos cuidados paliativos, a medicina vem, de alguma maneira, recuperar uma eficácia e um lugar legítimo naquilo que constitui seu próprio fracasso. O ‘outro lado’ da medicina, aquele que remete a um limite na sua promessa onipotente de cura, tornou-se não somente mais visível, mas justifica também um novo imperativo de intervenção médica. Com isso, temos em cena uma evolução das relações entre medicina e fim de vida, por meio da constituição de uma entidade médica nova que reflete uma transformação qualitativa do olhar médico a essa etapa da existência (Castra, 2003). Uma terceira crítica está conectada com a tentativa de transformar a experiência final em um momento gratificante, última etapa de um desenvolvimento pessoal, pois a rotina da assistência pressupõe uma prática de confissão e de cultivo da interioridade de maneira que o doente possa expressar seus sentimentos e fazer um acerto final de suas relações (Hennezel, 2004; Menezes, 2004). Por intermédio da intenção expressa, dos cuidados paliativos, de controle e apaziguamento da morte, a despeito de seu discurso de aceitação da finitude como fazendo parte da vida, vemos que o novo modelo, em suas práticas assistenciais diárias, compartilha das dificuldades sociais em lidar com os fatos da morte. Como lembra Pitta, nos dias atuais, basta nomeá-la para provocar uma tensão emocional incompatível com a regularidade da vida cotidiana. Esta situação é vivida num hospital como embaraçosa, quanto mais provoque crises de desespero entre os doentes e familiares, com manifestações de emoção, dor, sofrimento que perturbem a serenidade do hospital. O temor é que sentimentos e reações descontroladas façam todos perderem o controle de si e da situação (Pitta, 1994). Muito das práticas e valores presentes nos cuidados paliativos, sabemos, constitui uma crítica e reação aos modos de operar da medicina tecnológica, que promoveu um modelo de morte tecnificada, impessoal e solitária – o modelo da morte moderna (Ariès, 1989), ocorrendo prioritariamente no hospital. Com sua reação inaugurou, desde então, o modelo contemporâneo de morte ou o modelo da boa morte, cuja positividade está em acolher uma categoria de paciente até então abandonada pela medicina. Contudo, apesar dos inúmeros avanços, verificamos, de fato, uma nova forma de medicalização do fim da vida e uma tentativa de controle dos aspectos perturbadores da morte, por meio, especialmente, do controle dos afetos, transformando o final da vida em algo palatável para as sensibilidades modernas (Menezes, 2004).

O cuidado de si como espaço potencial de viver e de morrer Em sintonia com as críticas voltadas para a gestão sociomédica da morte, expressa na concepção da boa morte, destacamos, por outro lado, a existência de modalidades de cuidado nessas mesmas práticas de saúde, cuja ênfase recai sobre os aspectos éticos de reconhecimento do outro como um legítimo outro e na consideração de sua capacidade de autodeterminação e de ascese. É possível observar, no trabalho clínico cotidiano, um esforço de profissionais para construir uma relação de cuidado aberta para a singularização, o que aponta para os paradoxos do cuidado. Esta outra concepção de cuidado, cujo trabalho implica interações e contatos humanos a partir das singularidades dos envolvidos, parece encontrar ressonância na noção de cuidado de si teorizada por COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Michel Foucault. Este conceito se refere à relação que o sujeito é capaz de estabelecer consigo mesmo, isto é, com regras que não são vinculadas exclusivamente a uma moral e normas sociais, mas a modos de subjetivação que podem ser entendidos como singulares. O cuidado de si, por outro lado, vincula-se à ideia de cuidado do outro, por possuir íntima ligação com as relações alteritárias, isto é, com os laços sociais que se produzem no interior de uma construção ético-estética da subjetividade (Birman, 2000). Neste eixo, ele destina-se a administrar bem o espaço de poder presente em qualquer relação, ou seja, administrá-lo no sentido da não-dominação (Foucault, 2006). Para Foucault, o postulado dessa ética é que aquele que cuida adequadamente de si mesmo é, por isso mesmo, capaz de se conduzir adequadamente em relação aos outros e para os outros, num exercício dinâmico, podemos acrescentar, de implicação – no cuidado ativo do outro – e de reserva – no cuidado de si. Figueiredo (2000), ao discutir a técnica em psicanálise a partir da noção de holding da teoria das relações objetais, sugere que a condução de um processo terapêutico requer do analista a capacidade de se manter, simultaneamente, como presença implicada e presença reservada. Em outro texto (Figueiredo, 2009), retoma a questão da presença, implicação e reserva a partir das funções cuidadoras, mostrando, por um lado, a insuficiência da pura reserva, esta entendida como neutralidade, indiferença e silêncio. Por outro lado, ressalta que, seja na análise, na vida ou em qualquer experiência de cuidado, são inegáveis os malefícios da implicação pura, ao que o autor chamou de extravio e excessos das funções cuidadoras. Para que se dê o equilíbrio dinâmico entre os três eixos do cuidado – acolhimento, reconhecimento, questionamento/chamado à existência – e, mais ainda, para que este equilíbrio ocorra de modo espontâneo, é necessário que o agente de cuidado possa moderar seus fazeres. Essa moderação depende da capacidade do agente de cuidados para conseguir se manter em reserva. Nesta posição, o cuidador exerce a renúncia à sua própria onipotência e a aceitação da sua própria dependência. É preciso saber cuidar do outro, mas também cuidar de si e deixar-se cuidar pelos outros, pois a mutualidade nos cuidados é um dos mais fundamentais princípios éticos a ser exercido e transmitido. Trata-se de um compartilhar e operar em relações complexas de interação e colaboração, com base no reconhecimento dos próprios limites. Ora, reconhecer a finitude e o limite deixará aquele que cuida muito mais sensível aos objetos de seu cuidado e muito menos inclinado a exercê-lo tiranicamente, de maneira normatizada, fazendo de seu cuidado muito mais um exercício de domínio, o que configura os exageros da presença implicada (Figueiredo, 2009). Figueiredo, assim, produz um deslocamento interessante nas funções do cuidado quando traz a ideia de que o cuidado de qualidade é aquele cujo fazer e decisões são compartilhados, tanto com outros agentes de cuidado quanto com o paciente, o qual, por sua vez, visto como um sujeito ativo, passível de exercer sua liberdade, como nos lembra Foucault (2006), também pode exercer funções cuidadoras. Com isso, deixar-se cuidar pelo sujeito objeto do cuidado torna-se, em si mesmo, uma forma eficaz de cuidar, já que privilegia o eixo do reconhecimento da potência do outro e sua significação enquanto sujeito ativo e responsável por si mesmo e pelo outro. Através desse solo ético de cuidado, o profissional protege a si e a seu paciente de um excesso de implicação, que despotencializa, desqualifica e aprisiona o objeto de seu cuidado. O cuidado ético, então, requer uma presença reservada, com a criação de um espaço vital livre dos excessos de presença e de fazeres do cuidador, onde então o sujeito poderá exercitar sua capacidade para criar o mundo na sua medida e segundo suas possibilidades. Tratar-se-ia de um movimento de retirada estratégica do cuidador que, ao assim fazer, convoca o sujeito à ação, a responsabilizar-se por seu estar no mundo, ainda que no seu processo de sair deste mundo, em sua morte. Na presença reservada do cuidador, é gestado um espaço potencial de autocriação do sujeito, sendo a criação uma fonte de saúde pessoal, como demonstrou o médico pediatra e psicanalista Donald Winnicott (2000). Deste modo, na experiência do adoecimento, havendo ou não a recuperação, o cuidado ético deve possibilitar a esses sujeitos vivenciarem esta experiência a partir de suas próprias criações, crenças, valores, isto é, a partir do seu legítimo saber sobre si mesmo. Surge, assim, o respeito pelas histórias de vida de cada um e o reconhecimento de sua singularidade (Martins, 2004), instituindo um cuidado que se ancora na integralidade das ações (Mattos, 2005).

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Com base no que foi discutido, muitas vezes, lembra Figueiredo (2009, p. 132), a função do cuidador envolve “nenhum fazer, mas apenas um deixar-ser e deixar-acontecer, o que equivale à ação de não impedir que algo seja e aconteça – é a de abrir espaço ausentando-se, conservando-se em reserva”. Isto significa estabelecer limites para a ação – o que é feito e o que pode ser feito – de maneira que os fazeres não se confundam com poder e domínio. O cuidado, deste ponto de vista, não se reduz às normas técnicas de eficácia e higiene, embora delas não prescinda. Sua virtude, uma das mais importantes, é oferecer ao sujeito uma experiência de integração – ser acolhido, ser reconhecido e ser chamado à existência, ainda uma vez, em sua morte. Essa é a nossa aposta.

Colaboradores Suely Marinho conduziu a investigação e redigiu o artigo. Márcia Arán orientou a pesquisa, fazendo a revisão final do texto. Referências AGAMBEM, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. ARIÈS, P. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. ______. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. BASZANGER, I. Entre traitement de la dernière chance et palliatif pur: les frontières invisibles des innovations thérapeutiques. Sci. Soc. Santé, v.18, n.2, p.67-94, 2000. BASZANGER, I.; GAUDILLIÈRE, J.P.; LÖWY, I. Avant-propos. Sci. Soc. Santé, v.18, n.2, p.5-10, 2000. BIRMAN, J. Entre cuidado e saber de si: sobre Foucaut e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. São Paulo: Paz e Terra, 2004. CASTRA, M. Bien mourir: sociologie des soins palliatifs. Paris: PUF, 2003. CLARK, D. Total pain, disciplinary power and the body in the work of Cicely Saunders,1958-1967. Soc. Sci. Med., n.49, p.727-36, 1999. ELIAS, N. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. FIGUEIREDO, L.C. As diversas faces do cuidar: considerações sobre a clínica e a cultura. In: MAIA, M.S. (Org.). Por uma ética do cuidado. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p.225-50. FIGUEIREDO, L.C.; COELHO JUNIOR, N. Ética e técnica em Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2000.

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MARINHO, S.; ARÁN, M. Las prácticas de cuidado y de la normalización de las conductas: gestión socio-médica de la “buena muerte” en cuidados paliativos. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.7-19, jan./mar. 2011. Este artículo tiene el objetivo de discutir los procesos de normalización y de gestión socio-médica de la muerte en las sociedades contemporáneas a partir del análisis de las transformaciones en las aprehensiones sociales de la muerte ocurridas en el curso de los años 1960 a 1970 y de las prácticas de asistencia de los cuidados paliativos como un modelo de gestión del fin de la vida. A partir de la noción de normalización de las conductas de Michel Foucault realizamos un análisis crítico del concepto de “buena muerte” como uno de los principales dispositivos que visan la regulación de esta nueva práctica médica. Por fin esbozamos algunas concepciones de cuidado que tienen como referencia “modos de subjetividad” singulares, pautadas en las relaciones de alteridad que permiten la creación de un espacio potencial para el vivir y el morir.

Palabras clave: Cuidados paliativos. Subjetividad. Muerte. Salud Colectiva.

Recebido em 25/01/10. Aprovado em 15/06/10.

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artigos

Interfaces entre Saúde Coletiva e Bioética a partir de um estudo da publicação de autores vinculados à pós-graduação em Saúde Coletiva no Brasil Juliane Brenner Vieira1 Marta Ines Machado Verdi2

VIEIRA, J.B.; VERDI, M.I.M. Interfaces between Public Health and Bioethics from a study published by authors connected with postgraduate public health programs in Brazil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.21-37, jan./mar. 2011. The development processes of bioethics and public health in Brazil took place in parallel until, at a certain time, they began to correlate, because of common themes that came together such as the issues of healthcare equity and the right to health. The aim of this study was to analyze interfaces between bioethics and public health from the scientific production within the field o public health and its relationship with stricto sensu postgraduate training in this field. Twentythree papers published between 2007 and 2009 in journals within the field of public health in Brazil, in which the authors were closely connected with postgraduate programs within this field, were analyzed. Some predominating bioethics trends could be seen, such as protection bioethics and intervention bioethics. The interfaces between bioethics and public health were expressed similarly, with the capacity for direct dialogue between them, since both of them prioritize individual and collective wellbeing.

Os processos de desenvolvimento da Bioética e Saúde Coletiva brasileiras ocorreram de forma paralela até que, num determinado momento, passaram a se relacionar, devido à aproximação de temas comuns como a questão da equidade em saúde e do direito à saúde. O objetivo deste estudo foi analisar as interfaces entre a Bioética e a Saúde Coletiva a partir da produção científica do campo desta última, e suas relações com a formação em Pós-Graduação stricto sensu da área. Analisaram-se 23 artigos publicados entre 2007 e 2009 em periódicos da área de Saúde Coletiva no Brasil, cujos autores mantêm relação com a Pós-Graduação da área. Foi possível perceber algumas tendências bioéticas predominantes, como a Bioética da Proteção e a Bioética de Intervenção. As interfaces entre a Bioética e a Saúde Coletiva revelam expressões similares, capazes de proporcionar um diálogo direto entre elas, pois as duas priorizam o bem-estar do sujeito e do coletivo.

Keywords: Public Health. Bioethics. Scientific production. Qualitative research.

Palavras-chave: Saúde Coletiva. Bioética. Produção científica. Pesquisa qualitativa.

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1 Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Campus Universitário Trindade. Florianópolis, SC, Brasil. 88.040-970. julianebrenner@ yahoo.com.br 2 Universidade Federal de Santa Catarina.

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INTERFACES ENTRE SAÚDE COLETIVA E BIOÉTICA ...

Introdução A concepção inicial da Bioética compreendia que esta deveria, literalmente, significar uma ponte para o futuro como forma de aperfeiçoamento e garantia de qualidade de vida, transformando-se numa disciplina capaz de acompanhar o desenvolvimento científico, com uma vigilância ética isenta de interesses morais e a necessidade de oferecer uma contínua democratização do conhecimento científico como a única maneira de difundir esse olhar zeloso da Bioética (Potter, 1971, p.21). Frequentemente, o termo Bioética se referiu - e ainda refere-se para alguns - aos problemas éticos derivados das descobertas e das aplicações das ciências biológicas. Entretanto, hoje, a Bioética pretende seguir além, objetivando: a procura de um comportamento responsável de parte daquelas pessoas que devem decidir tipos de tratamento e de pesquisa com relação à humanidade... Tendo descartado em nome da objetividade qualquer forma de subjetividade, sentimentos ou mitos, a racionalidade científica não pode – sozinha - estabelecer os fundamentos da bioética... Além da honestidade, do rigor científico ou da procura da verdade – pré-requisitos de uma boa formação científica – a reflexão bioética pressupõe algumas questões humanas que não estão incluídas nos currículos universitários. (Berlinguer, 1993, p.19)

Para Garrafa (2005/2006), a Bioética estuda a ética das situações de vida no seu sentido mais abrangente, ampliando seu campo de influência teórico-prática, e, por este motivo, os estudiosos do assunto têm o compromisso de aproveitar esta oportunidade proporcionada pela Bioética, tratando-se de um movimento (ou uma nova disciplina). A Bioética, assim, diferentemente da ética profissional e deontológica, de cunho legalista, não tem por base a proibição, a limitação ou a negação. Ao contrário, atua com base na legitimidade das ações e situações, tratando de atuar afirmativamente, positivamente. Para ela, a essência é a liberdade, porém, com compromisso e responsabilidade. (Garrafa, 1998, p.28)

A ética, em sua raiz, para Schramm (1994, p.324), possui um fundamento biológico: “A legitimação do agir ético só seria uma elaboração secundária de algo que de fato pertence à biologia humana... Podemos afirmar, portanto, que toda ética é, antes e fundamentalmente, uma bioética”. A Bioética não possui receituário nem pode ser quantificada, pois tem como base a ética prática (aplicada), abrindo discussões, analisando casos, confrontando ideias e argumentando com base na razão (Garrafa, 1995). Sendo assim, existem diferentes tendências de pensamentos, os quais levam à percepção de diferentes olhares, dependendo da cultura local no país onde foi concebida, associada ao momento histórico, ao desenvolvimento tecnológico, político e social, entre outros fatores, pois trazem consigo alguns dos valores e princípios morais característicos daquele local. Visando contribuir na procura de respostas equilibradas perante os conflitos atuais e os conflitos vindouros, surge a discussão bioética. Com o sepultamento do mito da neutralidade da ciência, a Bioética requer abordagens pluralistas e transdisciplinares a partir de visões complexas da totalidade concreta que nos cerca e na qual vivemos (Garrafa, 2005/2006). Os processos de desenvolvimento da Bioética e da Saúde Pública/Coletiva brasileira percorreram caminhos paralelos, que, num determinado momento, passaram a se relacionar, devido à aproximação de temas comuns, como a questão da equidade em saúde e do direito à saúde. A colaboração de importantes estudiosos relacionados com o desenvolvimento da Bioética brasileira - os quais também atuavam na área da saúde - possibilitou a busca da compreensão das formas de atuação e de suas justificativas da Bioética na Saúde Coletiva. A Saúde Coletiva brasileira poderá enriquecer-se, em sua construção, com o olhar da Bioética, por ser um campo complexo, envolvido por relações profissionais de diferentes categorias e contextos. Deste modo, o objetivo deste estudo foi analisar as interfaces entre a Bioética e a Saúde Coletiva no Brasil, a partir da produção científica do campo da Saúde Coletiva. 22

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artigos

A Bioética e a Saúde Coletiva: a construção de espaços dialógicos A partir da aproximação por meio de temas em comum, como a equidade, tornou-se evidente a possibilidade de diálogo entre a Bioética e a Saúde Coletiva, o qual deve ampliar-se continuamente. No que diz respeito ao processo de criação, reflexão e consolidação da Bioética brasileira, é fundamental enfatizar a importância da Reforma Sanitária que já apontava os rumos para a reflexão crítica que marca a Bioética brasileira, mostrando que os problemas enfrentados pela área da saúde não poderiam ser resolvidos apenas na clínica, uma vez que tinham origem na pobreza e na desigualdade social, na qual vivia a imensa maioria dos brasileiros (Siqueira, Porto, Fortes, 2007). É possível perceber que as tendências bioéticas brasileiras não buscam ir apenas ao encontro dos princípios do SUS, mas também procuram, de forma politizada, construir um país melhor, com justiça social e solidariedade, a fim de melhorar a qualidade de vida. Desta forma, a dimensão da [Bio]ética em Saúde Pública [e Coletiva] é entendida, por Garrafa (1995, p.9), “como a resultante moral do conjunto de decisões e medidas políticas e sanitárias – individuais e coletivas – que proporcionam aumento da cidadania e diminuição da exclusão social”. Entende-se que eventos individuais que configuram o comportamento das populações na sua somatória - como a procriação, nascimento, morte e adoecimento -, tornam-se complicados para a elaboração de normas e condutas se não estiverem baseados nos direitos humanos, no pluralismo das ideias e dos comportamentos, com objetivos comuns livremente escolhidos (Berlinguer, 2004). Por este motivo, o exercício da reflexão bioética, pelos gestores e profissionais de saúde, é imprescindível, devendo ser realizado constantemente. Seguindo esta linha de pensamento, outros autores chamam a atenção para o fato de que os temas bioéticos estudados devem ser ampliados e as atuais orientações redirecionadas, sem se ignorar a relevância dos temas tratados mais enfaticamente pela Bioética até agora, pois existe a exigência, e, ao mesmo tempo, dificuldade, “de uma ética da saúde que não signifique somente deontologia médica atualizada ou reflexão sobre os limites extremos da vida e da morte, mas que esteja também relacionada aos princípios e à prática de todos os atores e temas da saúde cotidiana” (Berlinguer, 1993, p.21), devendo a Bioética se ocupar também dos acontecimentos diários à maioria das pessoas, que afetam diretamente seus direitos salvaguardados na Constituição Brasileira e que não deveriam acontecer mais, principalmente após a redemocratização e a reestruturação do Sistema de Saúde. As principais tendências bioéticas são apontadas por Anjos, resultantes do momento de desenvolvimento crítico da década de 1990, que servem para concretizar percepções e ênfases na atualidade: principialista, liberalista, das virtudes, casuística, feminista, naturalista, personalista, contratualista, do cuidado, hermenêutica e libertária (Anjos, 2001). Especialmente no Brasil, encontramos a referência de seis tendências vigentes no pensamento bioético, emergentes das tendências anteriores: a Bioética de Reflexão Autônoma; a Bioética da Proteção; a Bioética de Intervenção; a Bioética e Teologia da Libertação; a Bioética Feminista (subdividida em Bioética Crítica de Inspiração Feminista e Bioética Feminista e Antirracista); e a Bioética Ambiental (Anjos, Siqueira, 2007). Na América Latina, existe a preocupação da construção de uma ‘identidade bioética própria’, mais apropriada às suas heranças culturais, e, também, de suas peculiaridades para enfrentar concretamente seus problemas, após um longo período de domínio das referências teóricas norte-americanas, sobretudo do Principialismo, buscando uma reanálise de diferentes dilemas, como a autonomia versus justiça/equidade, omissão versus participação, entre outros (Schramm, 2006; Garrafa, Porto, 2003). A Saúde Coletiva, tal como a Medicina Social, nasceu dos movimentos e lutas sociais do seu tempo, e não a partir do Estado ou dos interesses das classes dominantes. Na América Latina, confunde-se com as lutas pela redemocratização dos países que viveram sob ditaduras. A democratização da saúde, concebida e teorizada pela Saúde Coletiva, implicou a democratização do Estado e dos seus aparelhos, além da sociedade. Comprometeu-se com a democracia substantiva e progressiva, com ideais libertários e com a emancipação dos indivíduos na conquista de modos de vida mais saudáveis. Sendo simultaneamente um campo científico e um âmbito de práticas, a Saúde Coletiva (assim como a Bioética) contribuiu com a Reforma Sanitária Brasileira mediante produção de conhecimentos e sua socialização junto aos movimentos sociais. Como campo científico, possui seu conhecimento COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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interdisciplinar ainda em construção, constituído hoje por três grandes áreas das ciências - biológicas, humanas e sociais -, com acúmulos teóricos e reflexões epistemológicas, aberto a novos paradigmas; e um âmbito de práticas informadas por valores que prezam a democracia, a emancipação e a solidariedade, além de distanciar-se da saúde pública institucionalizada. Como práxis, tem a possibilidade de radicalizar seus compromissos históricos com o povo, com as pessoas, com as classes dominadas (Paim, 2007). Para os estudiosos de Bioética, a Saúde Coletiva representa um desafio diferente, pois ela exige que a posição tradicionalmente individualista em relação ao respeito à autonomia das pessoas seja revista e tenha seu enfoque ampliado para o que se refere às coletividades. O reconhecimento da complexidade do processo saúde-doença é o primeiro passo para o entendimento de que as políticas públicas devem ser direcionadas para o bem-estar da população, com garantia da qualidade de vida das pessoas. (Junqueira, Junqueira, 2009, p.97)

Desta forma, pode-se iniciar um alinhavo para a compreensão das interfaces da Bioética com a Saúde Coletiva, com base em questões fundamentais para a construção da sociedade, como: a dignidade humana (individual e coletiva), qualidade de vida, justiça social e a garantia dos direitos humanos e sociais.

Percurso metodológico Este é um estudo de abordagem qualitativa, de desenho descritivo, que buscou analisar o conhecimento científico já produzido sobre o tema investigado nos artigos produzidos e selecionados na área de Saúde Coletiva. Para o levantamento de artigos, foi utilizada, como base de dados, uma pesquisa de artigos já publicados e disponibilizados na internet, produzidos por autores ligados aos cursos de pós-graduação de Saúde Coletiva do Brasil, acessados exclusivamente via internet, e publicados nos periódicos nacionais classificados como B1 ou superior pela Capes3, pelo site SciELO – BIREME/OPAS/ OMS (Scientific Electronic Library Online)4, definindo como busca as palavraschave associadas: Ética e Saúde Coletiva, Ética e Saúde Pública, Bioética e Saúde Coletiva, Bioética e Saúde Pública. Foram selecionados os artigos pertencentes às revistas brasileiras da área da Saúde Coletiva, a saber: Cadernos de Saúde Pública (Fiocruz), Ciência e Saúde Coletiva (Abrasco), Physis – Revista de Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Revista Brasileira de Epidemiologia (Abrasco) e Revista de Saúde Pública/Journal of Public Health (USP). Foram encontrados 92 artigos publicados nestas revistas entre 1983 e 2009. Uma seleção inicial dos artigos foi realizada referente às datas e constatado que a maior produção pertencia ao período a partir de 2004, com 65 artigos publicados. Optou-se pela seleção dos artigos publicados nos últimos dois anos por conter mais da metade destes 65 artigos, ou seja, 36 artigos publicados entre o período de janeiro de 2007 a janeiro de 2009. O próximo passo foi verificar se os autores dos artigos eram vinculados a programas de Pós-Graduação stricto sensu da área de Saúde Coletiva no Brasil, na qualidade de docente ou discente, a partir da Plataforma Lattes5, do CNPQ, sendo excluídos dez artigos. Além destes, foram excluídos três trabalhos que não se configuravam como artigos, pois pertenciam a dois editoriais e uma resenha de

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COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR. Portal CAPES. Disponível em: <http:// www.capes.gov.br>. Acesso em: 22 fev. 2009.

1

2 SCIELO. Scientific Electronic Library Online. Biblioteca Científica Eletrônica em Linha BIREME/OPAS/OMS. Disponível em: <http:// www.scielo.org/php/ index.php>. Acesso em: 22 fev. 2009.

3 PLATAFORMA LATTES – CNPQ. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Disponível em: <http:// lattes.cnpq.br>. Acesso em: 22 fev. 2009.


VIEIRA, J.B.; VERDI, M.I.M.

4 No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, expressões = proveniente do latim expressìo, ónis, radical de expressum. Neste contexto, utilizamos o termo como manifestação significativa forte, por meio de frase, sentença ou dito.

artigos

livro, a fim de se manter o padrão dos artigos. A seleção foi finalizada com 23 artigos publicados a serem analisados. Inicialmente, foi possível dividir os temas tratados em dois grandes eixos: “artigos desenvolvidos a partir de pesquisas científicas de campo” (com seis artigos) e “artigos desenvolvidos como reflexões bioéticas sobre temas relevantes” (com 17 artigos). Os temas tratados nas seis pesquisas estavam relacionados a: Odontologia, Trabalho Voluntário, Direito à Saúde e Cuidados em Saúde. Nos temas tratados, dentre as 17 reflexões bioéticas, havia discussões referentes a: Pesquisa Qualitativa, Pesquisa Científica em Seres Humanos e Animais, Cuidados Paliativos, Equidade, Idioma Bioético, Discriminação Genética, Biopolítica, Transição de Paradigmas Éticos, Eutanásia e Autonomia, Bioética Clínica e Ética, e Biomedicina. Para os dois eixos, foi realizada uma análise posterior, correspondente aos resultados encontrados, onde foram verificados: os temas tratados em cada artigo; as instituições de produção do tema tratado; busca de expressões4 que possibilitassem a interface entre a Bioética e a Saúde Coletiva, presentes nos artigos analisados (incluindo os descritores de cada artigo); e as presentes tendências do pensamento bioético. Foram observadas 13 instituições responsáveis pela produção destes 23 artigos, concentradas no estado do Rio de Janeiro, seguido de São Paulo, Goiás, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Ceará, confirmando o desequilíbrio inicialmente previsto de instituições presentes nas regiões sudeste e sul, em relação às demais regiões do Brasil. Após esta fase inicial, foram estabelecidas cinco categorias para a análise final: Do Individual ao Coletivo: as diferentes abordagens bioéticas na Saúde Coletiva; A Presença da (Bio)Ética na Formação do Indivíduo; A Tecnologia na Saúde Coletiva; Considerações sobre a Pesquisa Qualitativa; Construção Teórica da Bioética. Deve-se ressaltar que a Análise do Perfil Bioético de cada artigo foi realizada de acordo com as características apresentadas na Revisão de Literatura deste estudo. Entretanto, como a análise segue um roteiro, mas possui influências da subjetividade da analista, pode existir a possibilidade de algum autor ter escrito seu artigo sem a preocupação de limitar-se a uma tendência teórica, ou pretendendo demonstrar uma determinada tendência, e ter sido interpretado de outra forma. A fim de facilitar a visualização do panorama de todo o conteúdo trabalhado, pode-se levar em consideração o Quadro 1.

Discutindo as categorias O processo de análise da produção científica na Saúde Coletiva possibilitou a visualização de diferentes tendências bioéticas apontadas, sendo que nove artigos se referiam à Bioética da Proteção, seis artigos aludiam à Bioética de Intervenção, três artigos se relacionavam à Bioética Hermenêutica, a mesma quantidade à Bioética de Reflexão Autônoma, um artigo foi atribuído à Bioética do Cuidado e outro à Bioética Crítica de Inspiração Feminista, como podemos visualizar no Quadro 1. Percebe-se, portanto, que a Bioética da Proteção e a Bioética de Intervenção estão em evidência no Brasil. Entretanto, a influência da Bioética Principialista foi percebida em diversos artigos, demonstrando possuir grande impacto no pensamento bioético brasileiro ainda hoje. Com base no levantamento das tendências bioéticas presentes, foi possível verificar expressões que indicam possíveis interfaces entre a Bioética e a Saúde Coletiva, com a percepção de que muitas delas se repetiam em diferentes artigos, estabelecendo um diálogo direto entre elas. Por este motivo, torna-se relevante esclarecer que um artigo pode pertencer a uma ou mais categorias. As referências de cada artigo analisado encontram-se no Quadro 2. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Quadro 1. Elementos do processo de análise dos artigos selecionados Artigo

Temas tratados

Tendência de pensamento bioético

Tipo de artigo

Categorias de classificação

Artigo 1

Transição dos paradigmas biomédicos

Bioética de proteção

Reflexão em Bioética e Saúde

- A presença da (Bio)Ética na formação do sujeito - Construção teórica da Bioética

Artigo 2

Biopolítica na atualidade

Bioética de proteção

Reflexão em Bioética e Saúde

- O individual e o social

Artigo 3

Cuidados paliativos e a Assistência atual

Bioética de proteção

Reflexão em Bioética e Saúde

- O individual e o social - A tecnologia na Saúde Coletiva

Artigo 4

Cuidados paliativos na Atenção Básica

Bioética de proteção

Reflexão em Bioética e Saúde

- O individual e o social

Artigo 5

Experimentação animal

Bioética de proteção

Reflexão em Bioética e Saúde

- A tecnologia na Saúde Coletiva

Artigo 6

Bioética clínica na UTI neonatal

Bioética de proteção

Reflexão em Bioética e Saúde

- O individual e o social

Artigo 7

Clonagem animal e humana

Bioética de proteção

Reflexão em Bioética e Saúde

- A tecnologia na Saúde Coletiva

Artigo 8

Principialismo e a pesquisa com seres humanos

Bioética de proteção

Reflexão em Bioética e Saúde

- A tecnologia na Saúde Coletiva

Artigo 9

A eutanásia e a autonomia

Bioética de proteção

Reflexão em Bioética e Saúde

- A tecnologia na Saúde Coletiva

Artigo 10

Biossegurança

Bioética de intervenção

Pesquisa exploratória qualitativa

- O sujeito construindo o corpo social - A presença da (Bio)Ética na formação do sujeito

Artigo 11

A educação no atendimento odontológico

Bioética de intervenção

Pesquisa exploratória qualitativa

- O individual e o social - A presença da (Bio)Ética na formação do sujeito

Artigo 12

O uso do Consentimento Livre e Esclarecido pela Odontologia

Bioética de intervenção

Pesquisa exploratória qualitativa

- O individual e o social - A presença da (Bio)Ética na formação do sujeito - A tecnologia na Saúde Coletiva

Artigo 13

O trabalho voluntário

Bioética de intervenção

Pesquisa exploratória qualitativa

- O individual e o social

Artigo 14

Equidade e utilidade social nos cuidados em saúde

Bioética de intervenção

Reflexão em Bioética e Saúde

- O individual e o social

Artigo 15

O idioma bioético

Bioética de intervenção

Reflexão em Bioética e Saúde

- Construção teórica da Bioética

Artigo 16

O direito à saúde dos estrangeiros no Brasil

Tendência hermenêutica

Pesquisa exploratória qualitativa

- O individual e o social - A tecnologia na Saúde Coletiva

Artigo 17

Ética e a Biomedicina

Tendência hermenêutica

Reflexão em Bioética e Saúde

- A presença da (Bio)Ética na formação do sujeito continua

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VIEIRA, J.B.; VERDI, M.I.M.

Artigo

Temas tratados

Tendência de pensamento bioético

Tipo de artigo

artigos

Quadro 1. continuação Categorias de classificação

Artigo 18

Formação ética do pesquisador qualitativo

Tendência hermenêutica

Reflexão em Bioética - Considerações sobre a pesquisa qualitativa; e Saúde

Artigo 19

Diretrizes das pesquisas qualitativas

Bioética de reflexão autônoma

Reflexão em Bioética - Considerações sobre a pesquisa e Saúde qualitativa

Artigo 20

A Antropologia e os dilemas éticos da saúde

Bioética de reflexão autônoma

Reflexão em Bioética - Considerações sobre a pesquisa qualitativa e Saúde

Artigo 21

Aspectos éticos das pesquisas qualitativas

Bioética de reflexão autônoma

Reflexão em Bioética - Considerações sobre a pesquisa qualitativa e Saúde

Artigo 22

Cuidados à Saúde Mental

Bioética do cuidado

Pesquisa exploratória qualitativa

Artigo 23

Discriminação genética do traço falciforme

Bioética crítica de inspiração feminista

Reflexão em Bioética - O individual e o social e Saúde - A presença da (Bio)Ética na formação do sujeito - A tecnologia na Saúde Coletiva

- O individual e o social

Do individual ao coletivo: as diferentes abordagens bioéticas na Saúde Coletiva A primeira categoria foi formada por expressões relacionadas ao indivíduo e ao social, podendo ser entendida, também, como ‘corpo social’. Em relação aos indivíduos, foi possível observar: os cuidados desenvolvidos junto a eles, o sujeito considerado como indivíduo único e, quanto à autonomia deste indivíduo, nas relações sociais. Nesta classificação, a preocupação está centrada no valor à vida individual, levantando considerações sobre o respeito pela autonomia das pessoas, pela confidencialidade, pela dignidade humana, pela liberdade e, no cuidado, como abertura ética ao outro. Para que o paciente seja considerado um sujeito pelos profissionais de saúde, minimamente deve-se respeitar a autonomia do indivíduo, e, nesta categoria, os artigos apontam denúncias de contradições a este respeito, quando encontramos as seguintes expressões: “a visão integral do paciente é distorcida, pois os acadêmicos e professores apresentam uma construção moral e ética deficitária, com valores totalmente invertidos” (Artigo 11); “entretanto ainda encontramos o predomínio da atenção biomédica e da verticalização da assistência, com a conseqüente obsessão pelo objeto de intervenção: o órgão doente ou patologia, fazendo com que os pacientes sejam usuários destituídos da condição de sujeitos, despersonalizando o indivíduo” (Artigo 12), e promovendo “uma prática paternalista, a qual não considera, em hipótese alguma, o ato decisório do paciente” (Artigo 11); “com efeito, nossa cultura paternalista privilegia vínculos com o paciente com doença terminal baseados na omissão e na mentira, com atos delegados e com erosão da autonomia do mesmo” (Artigo 3). O valor da vida também é visto no cuidado constante com o sujeito, seja no momento do nascimento, da doença, da saúde ou durante e após o fim da vida. Esses cuidados que respeitam ao sujeito, sua autonomia e individualidade, “não se inserem na lógica do modelo médico tradicional, centrado na busca da cura da doença” (Artigo 3). O profissional de saúde precisa “conseguir compreender e responder adequadamente à vulneração em que vive a pessoa que adoece gravemente” (Artigo 22). É necessário estar disposto a “se abrir eticamente” (Artigo 3) para o outro, a fim de promover um cuidado mais humanizado, sem deixar de ser eficaz e eficiente tecnicamente. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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INTERFACES ENTRE SAÚDE COLETIVA E BIOÉTICA ...

Quadro 2. Referências dos artigos analisados Autor(es)

Título

Revista

Endereço eletrônico

ALMEIDA,J.L.T.; SCHRAMM,F.R.

Paradigm shift, metamorphosis of medical ethics, and the rise of bioethics

Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.25, n.1, 2009.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext &pid=S0102311X1999000500003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi:10.1590/ S0102311X1999000500003.

ARAN,M.; PEIXOTO JR., C. A.

Vulnerabilidade e vida nua: bioética e biopolítica na atualidade.

Revista de Saúde Pública, São Paulo, v.41, n.5, 2007.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003489102007000500020&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12 fev. 2009.

BUGARIN JR, Bioética e J.G.; GARRAFA, V. biossegurança: uso de biomateriais na prática odontológica.

Revista de Saúde Pública, São Paulo, v.41, n.2, 2007.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003489102007000200008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12 fev. 2009. doi: 10.1590/S003489102007000200008.

CARVALHO, L.B.; Dimensão ética do BOSI, M.L.M.; cuidado em saúde FREIRE, J.C. mental na rede pública de serviços.

Revista de Saúde Pública, São Paulo, v.42, n.4, 2008.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003489102008000400017&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12 fev. 2009. doi: 10.1590/S003489102008005000033.

FLORIANI, C.A.; SCHRAMM, F.R.

Cuidados paliativos: interfaces, conflitos e necessidades.

Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.13, n.2, 2009.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232008000 900017&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S141381232008000900017.

FLORIANI, C.; SCHRAMM, F.R.

Desafios morais e operacionais da inclusão dos cuidados paliativos na rede de atenção básica.

Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.23, n.9, 2007.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X2007000900015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S0102311X2007000900015.

FORTES, P.A.C.

Reflexão bioética sobre a priorização e o racionamento de cuidados de saúde: entre a utilidade social e a equidade.

Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.24, n.3, 2008.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X2008000300024&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S0102311X2008000300024.

GARRAFA, V.; DINIZ, D.; GUILHEM, D.B.

Bioethical language and its dialects and idiolects.

Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.25, n.1, 2009.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X1999000500005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S0102311X 1999000500005.

GONCALVES, E.R.; VERDI, M.I.M

Os problemas éticos no atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino.

Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.12, n.3, 2007.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232007000300026&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S141381232007000300026.

GUEDES, C.; DINIZ, D.

Um caso de discriminação genética: o traço falciforme no Brasil.

Physis, Rio de Janeiro, v.17, n.3, 2007.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010373312007000300006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12 fev. 2009. doi: 10.1590/S010373312007 000300006. continua

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artigos

VIEIRA, J.B.; VERDI, M.I.M.

Quadro 2. continuação Autor(es)

Título

Revista

Endereço eletrônico

GUERRIERO, I.C.Z.; DALLARI, S.G.

The need for adequate ethical guidelines for qualitative health research.

Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.13, n.2, 2008.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232008000200002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S141381232008000200002.

MALUF, F. et al.

Consentimento livre e esclarecido em odontologia nos hospitais públicos do Distrito Federal.

Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.12, n.6, 2007.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232007000600034&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S141381232007000600034.

MINAYO, M.C.S.

Anthropological contributions for thinking and acting in the health area and its ethical dilemas.

Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.13, n.2, 2008.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232008000200008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S141381232008000200008.

NOGUEIRA, V.M.R.; DAL PRA, K.R.; FERMIANO, S.

A diversidade ética e política na garantia e fruição do direito à saúde nos municípios brasileiros da linha da fronteira do Mercosul.

Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.23, n.2, 2007.

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NUNES, E.D.

Ethical aspects considered by researchers who use qualitative approaches in health.

Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.13, n.2, 2008.

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PAIXAO, R.L.;

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Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.23, n.2, 2007.

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SCHRAMM, F.R. Bioética clínica: RIBEIRO, C.D.M.; contribuições para a REGO, S. tomada de decisões em unidades de terapia intensiva neonatais.

Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.13, n.2, 2008.

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SCHMIDT, M.L.S.

Pesquisa participante e formação ética do pesquisador na área da saúde.

Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.13, n.2, 2008.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232008000200014&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S141381232008000200014.

SCHRAMM, F.R.

The Dolly case, the Polly drug, and the morality of human cloning.

Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.25, n.1, 2009.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X1999000500007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S0102311X1999000500007. continua

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Quadro 2. continuação Revista

Autor(es)

Título

SCHRAMM, F.R.; PALACIOS, M.; REGO, S.

O modelo bioético principialista para a análise da moralidade da pesquisa científica envolvendo seres humanos ainda é satisfatório?

Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.13, n.2, 2007.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext& pid=S141381232008000200011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S141381232008000200011.

SELLI, L.; GARRAFA, V.; JUNGES, J.R.

Beneficiários do trabalho voluntário: uma leitura a partir da bioética.

Revista de Saúde Pública, São Paulo, v.42, n.6, 2008.

Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext &pid=S003489102008000600015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12 fev. 2009. doi: 10.1590/S003489102008000600015

SIQUEIRABATISTA, R.; SCHRAMM, F.R.

A eutanásia e os paradoxos da autonomia.

Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.13, n.1, 2008.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232008000100025&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 fev. 2009. doi: 10.1590/S141381232008000100025.

TESSER, C.D.

A verdade na biomedicina, reações adversas e efeitos colaterais: uma reflexão introdutória.

Physis, Rio de Janeiro, v.17, n.3, 2007.

Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010373312007000300004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12 fev. 2009. doi: 10.1590/S010373312007000300004.

Endereço eletrônico

Questionando-se sobre o uso e utilização do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foram encontrados artigos denunciando o uso equivocado deste documento de diferentes formas, desde sua inexistência, passando por orientações de alta, até a inclusão do uso de imagens e exames laboratoriais sem o prévio consentimento, ferindo a autonomia do sujeito e ignorando sua competência e capacidade autônoma. Quando é considerada a qualidade de vida futura do sujeito a partir de uma visão ética não sacrifical, os cuidados paliativos assumem sua importância no campo das intervenções da assistência no fim da vida, opondo-se à obstinação terapêutica e à futilidade médica, que implicam “reduzir a pessoa a algum de seus componentes” (Artigo 3), caracterizando-se pelo “uso continuado e persistente de medidas que sustentam a vida dos pacientes com doenças avançadas” (Artigo 4), o que, evidentemente, “desapropria a pessoa de sua vida” (Artigo 6), “como se a morte fosse um inimigo que deve ser combatido a todo custo” (Artigo 4). O tema “qualidade de vida futura do sujeito” é analisado também sob outras perspectivas, levantando a discussão quanto às consequências do uso indiscriminado da informação genética e sobre a reanimação de pessoas. Sobre o uso da informação genética, a manipulação indevida das informações e a falta de profissionais capacitados para atuarem com o aconselhamento genético mostram “o quanto o direito de não ser testado ou mesmo informado sobre os resultados de exames pode ser uma prerrogativa a ser considerada, sobretudo na ausência de propósitos na realização destes testes” (Artigo 23). “As decisões sobre tratamento e reanimação de lactentes de baixo-peso não podem nunca nem ser o triunfo da esperança sobre a razão, nem a vitória do ego sobre a incerteza. E, especialmente, não se deve nunca deixar de envolver os pais nesta decisão” (Artigo 6). Para se chegar a uma resposta do dilema sobre a reanimação de pessoas, afirma-se que “sempre as melhores tomadas de decisão para estas questões são tomadas por um diálogo aberto entre o médico, o paciente (quando possível) e o cuidador/família” (Artigo 4). 30

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artigos

Percebe-se que questões como o direito à saúde, à autonomia, ao reconhecimento do sujeito como indivíduo, à qualidade de vida, à confidencialidade e ao valor da vida precisam ainda de maior reflexão e amadurecimento por parte dos profissionais de saúde, para que isto se torne verdadeiro e transformese na dignidade devida ao indivíduo. Um sujeito só pode ser considerado um indivíduo se o outro o reconhece como pessoa autônoma, digna e possuidora de competências. Fortes e Zoboli (2003, p.17), trazem a reflexão de que “cabe ponderar que o ideal de autonomia é utópico, e na prática são poucos os atos totalmente autônomos. [...] Uma vez que é pouco provável que se consigam atos completamente autônomos, o que se deve aspirar é que sejam substancialmente autônomos”. Sendo assim, como profissionais e educadores em saúde, precisamos incentivar o desenvolvimento do sujeito como indivíduo, sem cairmos na ilusão de que todo o esforço devido já foi feito e que não necessitamos mais insistir neste tema. Em relação ao ‘social’, foi possível observar expressões relativas à cidadania, equidade, justiça/ justiça social/ justiça distributiva, bem-estar social, sociedade e vulnerabilidade. Deste modo, foram tratadas questões como: “o que é devido a cada cidadão?”, direitos de cidadania, direitos adquiridos, direito universal, igualdade de direitos, exclusão social, transformação social, desigualdades sociais, biopolítica, biopoder, vulnerabilidade, vulneração, solidariedade e bem-estar social. Entende-se que, para que alguém exerça sua cidadania, anteriormente este sujeito tem de ser reconhecido como indivíduo. E este indivíduo irá exercer sua cidadania em uma determinada sociedade, a qual possui diferentes valores morais, os quais influenciam diretamente nos atos e atitudes dos cidadãos. Dentre as expressões que compõem ainda esta categoria, encontram-se indicações em prol do exercício consciente da cidadania por meio da reflexão bioética, como nestas citações: “o ponto crucial é, neste caso, o princípio da responsabilidade exercida pelas pessoas que devem praticar as suas funções como cidadãos e lutar para reduzir a probabilidade de abusos” (Artigo 16), desenvolvida “por meio de uma ética reflexiva e interventiva baseada no reconhecimento dos valores humanitários de solidariedade os direitos de cidadania em torno da assistência à saúde podem ser garantidos” (Artigo 2). Nos artigos, encontram-se também: denúncias de “sonegação de informações sobre prognósticos de tratamento” (Artigo 13), noções distorcidas de cidadania vinculadas ao trabalho ou à residência, anulação do “estatuto jurídico do indivíduo, criando um ser juridicamente inominável” dentro de uma “zona de indeterminação” (Artigo 2), conflitos morais e éticos para “decidir quais as necessidades que devem ser priorizadas e/ou racionadas, a eleição de critérios de escolha de quem terá oportunidade de continuar a viver, às vezes quem irá morrer, ou mesmo, quem terá suas necessidades de saúde atendidas em primeiro lugar” (Artigo 14), desrespeitando a cidadania de cada um e a justiça social. Pois, “a justiça social afirma tanto a dignidade moral quanto o igual respeito a todos os homens, questionando a ordem social vigente” (Artigo 16) e “o moderno conceito de justiça distributiva demanda que o Estado intervenha e garanta a distribuição de bens para que as pessoas tenham suprido um determinado nível de interesses e recursos materiais” (Artigo 6). No que se refere à vulnerabilidade e vulneração, os artigos nos remetem a uma profunda reflexão bioética sobre a produção de vida nua na modernidade, baseados em Agamben, quando se sujeita a vida a um poder de morte, criando uma zona de indistinção e exclusão da vida social, produzindo sobrevidas, negando à sociedade o direito à saúde por meio de decisões políticas que não levam em consideração os valores e os princípios éticos prevalentes nesta. Entende-se que vulnerabilidade “diz respeito à condição universal da espécie humana e de qualquer ser vivo, que são seres suscetíveis de sofrer danos” (Artigo 2), como no exemplo do Artigo 23, onde a pessoa que foi discriminada geneticamente, “teve seu corpo considerado como o estigma da inaptidão”. Portanto, a “capacidade ou liberdade limitada do indivíduo leva à vulnerabilidade” (Artigo 12), e o “foco prioritário da preocupação moral do Estado deveria ser com as pessoas vulneradas” (Artigo 13). A “vulneração refere-se à vulnerabilidade secundária ou circunstancial a que estão sujeitos certos seres humanos por viverem em condições econômicas e sociais particulares de privação de suas necessidades essenciais” (Artigo 6). As questões relativas aos sujeitos vulnerados, vulnerabilidade e vulneração, discutidas, sobretudo, na Bioética da Proteção e na Bioética de Intervenção, são temas relevantes que a Bioética tem tratado 31


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junto à Saúde Coletiva, sempre buscando o aperfeiçoamento do sujeito como cidadão, para a composição de um corpo social consciente de seus direitos e deveres. Outro tema encontrado foi a equidade, discussão presente, sobretudo, na Bioética de Intervenção, a qual busca atender as pessoas de acordo com suas diferenças “em suas condições sociais e sanitárias, tendo necessidades diferenciadas”, podendo ser considerado “a cada um conforme suas necessidades”. “Cada sociedade deve decidir se, em determinada situação, se orienta fundamentalmente pela equidade (e qual equidade) ou por orientações mais utilitaristas”, desde que esta decisão seja pautada num consenso social (Artigo 14). Sociedades que possuem desenvolvimento tecnocientífico e políticosocial podem ser capazes de decisões consensuais e, posteriormente, responsabilizarem-se por elas, sejam quais forem suas consequências.

A presença da (Bio)Ética na formação do indivíduo Na segunda categoria, estão agrupadas todas as expressões relacionadas com a ética, os princípios éticos, modelos éticos e transições paradigmáticas no campo da ética. Um dos pontos mais discutidos nos artigos refere-se ao ensino da Ética e da Bioética nos cursos da área da saúde, e o reflexo no comportamento dos discentes e dos docentes como resultado da superficialidade como a ética é tratada dentro destes cursos. Percebe-se que o “modelo ético hipocrático ainda é muito vigente e persistente” (Artigo 17), pois a “tradição médica mantém suas implicações éticas inalteradas” (Artigo 1), e que existe uma “desresponsabilização social pela missão curadora por parte dos médicos [e demais profissionais de saúde], individualmente” (Artigo 17), além dos “interesses econômicos particularistas serem priorizados” (Artigo 10), caracterizando a “geração de conflitos éticos vividos pelos profissionais [e futuros profissionais] de saúde” (Artigos 11 e 12). Esta desresponsabilização social dos profissionais da área da saúde leva a uma “alienação ética” (Artigo 17), a qual induz os seus profissionais “a se remeterem sempre à instituição e a seus saberes, cujas tecnologias devem operar eficazmente, devido à cientificidade, objetividade e universalidade supostas do saber, segundo a concepção dominante, de viés marcadamente positivista” (Artigo 11), considerando os indivíduos “cada vez mais homogêneos entre si” (Artigo 11), o que resulta numa transformação da identidade dos profissionais, “que passam a se ver mais como cientistas e menos como curadores [cuidadores] de pessoas” (Artigo 17). Consequentemente, a necessidade de um ‘amadurecimento’ ético dentro da área da saúde foi detectada, devendo acontecer de forma urgente, porém, o que ocorre atualmente é uma lenta transição freada pela resistência às mudanças. As “metamorfoses conceituais” (Artigo 1) são sofridas e percebidas pelos profissionais de saúde, sendo “provenientes de transformações sociais” (Artigo 11), resultantes em “maiores dilemas éticos” (Artigo 1), os quais somente poderão ser resolvidos após o exercício da abertura e reflexão ética. Estes dilemas éticos, normalmente, incomodam e provocam um doloroso processo de amadurecimento subjetivo nos indivíduos envolvidos.

A tecnologia na Saúde Coletiva A terceira categoria foi formada por temas relacionados à Saúde Coletiva/ pública, eutanásia, clonagem de animais e seres humanos. Os assuntos relacionados com a tecnologia e a Saúde Coletiva são os mais variados, abrangendo desde políticas públicas de saúde, tratando da questão da biossegurança e dos biomateriais, passando por discussões polêmicas, como experimentação e bem-estar animal e humano, aborto, limites obscuros sobre as práticas científicas e consequentes abusos, chegando à clonagem humana e animal de partes de corpos ou corpos inteiros. Também estão inclusas discussões sobre: os direitos (à saúde, dos animais, humanos, adquiridos, individuais, coletivos, sociais etc.); o uso indiscriminado e antiético da informação genética pela engenharia genética; o sistema de saúde brasileiro e de países vizinhos, e, ainda, sobre o utilitarismo social, a eutanásia e o suicídio assistido. Todos estes temas foram discutidos transversalmente nos Artigos 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 16 e 23. Estes artigos trazem, em sua maioria, uma tênue relação entre a tecnologia e o eterno desejo de se evitar a morte a qualquer preço. A morte mantém-se presente nas discussões de dilemas bioéticos, 32

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artigos

representada por diversas formas e tentativas de se evitá-la, negá-la, postergá-la, controlá-la. Desde sempre, a única certeza que temos ao nascer é a de que, um dia, morreremos, mas o homem possui, no seu imaginário, a esperança de vencer esta única certeza, num instinto primitivo de autopreservação. E se este instinto primitivo se associa à cultura monetária ocidental, o resultado torna-se lastimoso. Talvez estes sejam os maiores motivos para que o homem se esforce tanto e não meça consequências ao desenvolver pesquisas de moral duvidosa, no mínimo, por assim dizer, promovendo sobrevidas desumanas, o desenvolvimento da ciência a qualquer preço e a má utilização da ciência já desenvolvida. O alerta à possibilidade de desenvolvimento de “uma aristocracia dos felizardos” (Artigo 6) assusta a qualquer pessoa que tenha algum senso de dignidade, solidariedade e responsabilidade para com seus próximos e com a sociedade em geral. Há, ainda, o envolvimento ideológico destas questões com a religiosidade e crenças de cada um, e com suas implicações legais, como podem ser percebidos nos Artigos 3, 5, 7, 8 e 9. Os artigos também alertam para o fato de que a administração pública realizada de forma irracional, sem o estabelecimento claro de prioridades das políticas públicas de saúde e da distribuição de recursos, inicialmente, causa prejuízos a sujeitos específicos e estende-se em escala de progressão geométrica, generalizando-se e atingindo a toda a população, refletindo em resultados negativos para a saúde e para a qualidade de vida de todos, alterando substancialmente os problemas em Saúde Coletiva (Artigo 16). Outros alertas presentes, e que também fazem parte da má utilização da tecnologia, são: o constante uso de biomateriais sem levar em consideração a biossegurança (controle de qualidade, procedência, princípios biológicos etc.) e o uso indiscriminado da manipulação da informação genética. “O uso de biomateriais sem critérios de biossegurança estabelecidos, além de gerar problemas clínicos como o insucesso terapêutico, cria situações de conflito ético”, pois “a proteção do paciente é objetivo maior tanto da Bioética [...] quanto da biossegurança no sentido de prevenir ou evitar riscos” (Artigo 10). A manipulação da informação genética indiscriminadamente é outro agravante do uso equivocado da tecnologia, devendo se levar em consideração que, “para que os testes genéticos se revertam em benefícios para as pessoas que recebem a informação, é necessário adotar cuidados éticos” (Artigo 23), pois a “glorificação atual das conquistas tecnológicas pode levar ao incremento da passividade das pessoas se não lhes for possível compreender seu sentido” (Fortes, Zoboli, 2003, p.19).

Considerações sobre a pesquisa qualitativa A quarta categoria demonstra sua pertinente preocupação com os fundamentos éticos das pesquisas, suas metodologias, paradigmas e relações com os pesquisadores, pois “a pesquisa em saúde não é recoberta exclusivamente pela pesquisa médica”, evidenciando a “presença das ciências sociais e humanas” (Artigo 18), as quais desenvolvem pesquisas de caráter qualitativo, ao invés de quantitativo, na maioria das vezes. O foco principal destes artigos é a afirmação da necessidade de revisão dos parâmetros de avaliação para pesquisas qualitativas, tornando-os diferenciados dos parâmetros de avaliação das pesquisas quantitativas, pois a pesquisa qualitativa preocupa-se com informações que tragam significados aos processos estudados, ao invés de preocupar-se com números e índices lógicos, como podemos verificar nos Artigos 18, 19, 20 e 21. Chama-se a atenção “para a exclusividade da pesquisa qualitativa, que atravessa as áreas das ciências sociais e humanas, e permite-lhes a possibilidade de descrever, decodificar, interpretar e fornecer noções básicas sobre o sentido (ou sentidos) atribuído a fenômenos no mundo social” (Artigo 21), além de lembrar que, “uma vez que diversas pesquisas podem trabalhar com lógicas [ou paradigmas] muito diversas, é insuficiente analisá-las da mesma forma” (Artigo 19). Relevantes temas são tratados pelas pesquisas qualitativas desenvolvidas, como a “implementação de políticas públicas, as representações de saúde e doença, as formas de cuidado e as diferenças culturais, [...] cuidados preventivos ou ações de cidadania ligadas à promoção de saúde, o trabalho multiprofissional e interdisciplinar” (Artigo 18), entre outros. Apenas o levantamento deste motivo já é suficiente para se levar em consideração que a pesquisa qualitativa envolve aspectos éticos somados a ela, os quais são inseparáveis, e que devem ser analisados de forma diferenciada das pesquisas quantitativas (Artigo 21). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Outro importante fator apontado para que esta revisão seja realizada é que, pelo fato de a pesquisa qualitativa trabalhar com a subjetividade como objeto de estudo, “estes trabalhos não podem excluir o investigador e, em vez de procurar imparcialidade (entendida aqui como não-interferência da parte da subjetividade do investigador), estes assumem que é impossível excluir tal subjetividade, tornando-se preocupados em alcançar um equilíbrio adequado entre subjetividade e objetividade” (Artigo 19). Um dos artigos sugere a inserção da prática antropológica, a fim de “contribuir para reforçar a intersubjetividade, para aumentar a compreensão dos problemas humanos e para esclarecer e informar sobre os procedimentos e práticas da vida social”, pois ela reúne condições que “permitem as pessoas a agir com ética e a promover os direitos dos grupos com os quais os pesquisadores atuam” (Artigo 20). Além disso, “a investigação biomédica se faz investigação no ser humano, e a investigação utilizada nas ciências sociais e humanas a investigação é com o ser humano” (Artigo 18), o que nos informa a existência de uma relação entre pesquisador e pesquisado. Os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) fazem parte de uma prévia exigência dos Comitês de Ética, devendo ser assinados antes da participação do indivíduo na pesquisa. Porém, dificilmente, se leva em consideração a necessidade de reavaliação destes consentimentos, levando a um subentendimento por parte do pesquisador, o qual crê que, se o documento foi assinado, então tudo é permitido em nome da ciência. Todos os esforços e entendimentos que possam ser somados à ascendência da qualidade da investigação qualitativa devem ser levados em consideração, especialmente pelos responsáveis em coordenar as pesquisas científicas no Brasil, seja no âmbito prático ou teórico, jamais deixando de levar em consideração que o aspecto ético é indissociável da pesquisa qualitativa.

Construção teórica da Bioética Finalizando, a quinta categoria foi composta pelos artigos que se referem a uma preocupação com a construção e afirmação teórica da Bioética, por entendermos que compõe uma questão de orientação na Bioética. Pelo fato de a Bioética possuir uma “natureza pluridisciplinar e transdisciplinar” (Artigos 1 e 15), ela “permitiu que se incluíssem outras abordagens, o enriquecimento da ética médica e o alargamento dos seus horizontes analíticos” (Artigo 15). Isto exige que “a sociedade em geral e as profissões da saúde [...] exerçam uma reflexão profunda sobre os novos dilemas éticos, o que, em última análise, definirá o tipo de sociedade que construímos para o futuro” (Artigo 1). Esta reflexão profunda é exercida de maneira estruturada, por meio do que alguns autores chamaram de “idioma bioético, com seus dialetos e idioletos” (Artigo 15), fazendo uso de uma metáfora da Bioética com o idioma e suas variantes, “fornecendo todas as ligações entre os chamados bioeticistas” (Artigo 15). Estes artigos trazem as preocupações de se “fazer alcançar a efetiva participação social no debate sobre problemas bioéticos” (Artigo 1) e de se alertar sobre a “importação acrítica de dialetos” pelos bioeticistas, devendo “recriar”, numa “tentativa de demarcar identidades, tanto como a busca de variações de dialetos, com vistas a futuramente compor um novo dialeto”, mais apropriado para sua realidade (Artigo 15). Realmente, é necessária uma integração dos bioeticistas com a sociedade para que se debatam problemas bioéticos e para que se obtenha um entendimento adequado do pensamento bioético com a realidade de cada lugar, respeitando suas crenças e realizando as devidas adaptações nos dialetos locais.

Considerações finais Após a análise dos 23 artigos foi possível perceber quanto, realmente, a Bioética está relacionada com a Saúde Coletiva. Diversos temas foram tratados sob diferentes olhares, transversalmente em muitos dos artigos analisados.

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artigos

A Saúde Coletiva, a Bioética e a pesquisa qualitativa estão presentes nas pós-graduações brasileiras, sendo discutidas, analisadas e reformuladas constantemente, compondo o importante movimento de crescimento e aprimoramento da sociedade brasileira observado pela história. Como mencionamos inicialmente, entendemos que a Saúde Coletiva e a Bioética foram construídas historicamente em caminhos paralelos, e que, a partir de um determinando momento, passaram a dialogar; entretanto, reafirmamos aqui nossa preocupação com a continuidade do movimento dialógico existente, com o intuito de fortalecê-lo sempre. Neste sentido, a pesquisa qualitativa pode contribuir muito, ao evidenciar as fragilidades existentes em nossa Saúde Coletiva, as quais devem passar por reflexões bioéticas mais aprofundadas, para benefício de nossa sociedade. Jamais poderíamos falar em Saúde Coletiva e Bioética se não falássemos, também, em ‘promoção de saúde’. Segundo o Dicionário de Bioética a promoção da saúde identifica-se com a promoção de comportamentos que prevejam não só o aparecimento da patologia, mas também a ruptura dos equilíbrios psicofísicos. O projeto terapêutico, neste paradigma, compreende elementos ainda mais imbricados na dimensão ética e espiritual do Homem, como a aquisição de uma melhor competência cognoscitiva por parte do indivíduo e de uma maior autonomia nas opções. (Leone, Privitera, Cunha, 2001, p.1008)

A promoção da saúde está inserida na Saúde Coletiva e deve ser realizada de acordo com preceitos éticos capazes de representar as prioridades e necessidades a serem atendidas para que possua real significância na qualidade de vida da população envolvida. Estas necessidades e prioridades foram apresentadas em todos os artigos estudados, de forma até repetitiva, pois os exemplos de faltas éticas, infelizmente, são numerosos. Após a análise dos artigos, percebeu-se a presença de um maior número de artigos publicados com a participação de odontólogos como autores. Da forma como são colocados os questionamentos nos artigos, esta participação poderia ser resultado de um movimento ético reflexivo, dentro da Odontologia, sobre sua prática. Pelo fato de ser uma profissão pertencente à área da saúde, existe a possibilidade de que esteja assumindo sua importância nas ações de promoção da saúde e se posicionando a favor do bem-estar coletivo de forma ética e comprometida. Entretanto, da mesma forma que houve representantes da Odontologia como autores dos artigos analisados, também foram encontrados médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, para citar algumas profissões da área da saúde, e até administradores. Entendemos que todos estes autores buscam reforçar este movimento de reflexão ética, para que todas as conquistas afirmadas a partir da Reforma Sanitária sejam mantidas, justificadas e fortalecidas. Afinal, estas conquistas seguiram muito além do ‘direito à saúde’, convocando uma população anteriormente reprimida e amedrontada para o exercício de seus direitos e deveres como cidadãos brasileiros. Os profissionais da área da saúde relacionados com a Saúde Coletiva e a Bioética estão fazendo uso constante da reflexão, procurando ser ouvidos e comentados, tanto dentro de nosso país como no exterior. Mesmo que não totalmente compreendidos, estão expondo suas formas de pensar e agir, defendendo direitos conquistados e adquiridos com muita luta social anterior. O significativo número de temas encontrados nos artigos nos trouxe algumas dúvidas em relação ao número de artigos, pois cada tema encontrado é tão relevante quanto o outro, a ponto de cada um merecer não apenas um, mas muitos artigos a seu respeito. Esperamos que esta seja uma realidade próxima, onde as revistas se interessem mais pelos temas que permeiam a Bioética e que os autores se dediquem, cada vez mais, a explorá-los. A absorção do entendimento da Bioética pela sociedade, a mudança de paradigmas para a preocupação com o social e a continuidade da garantia do direito à saúde para a população em geral são processos contínuos de lutas e conquistas que precisam ser intensificadas e jamais abandonadas.

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Se pensarmos no Estado enquanto agente responsável pelas ações de saúde, devemos ter clareza de que anterior às ações voltadas ao estilo de vida individual, são as ações voltadas ao coletivo, através das políticas públicas de saúde. Pois deste modo, estará se garantindo ao coletivo os direitos humanos fundamentais necessários para o pleno exercício público dos indivíduos, para que os mesmos possam participar ativa e livremente como cidadãos autônomos. (Verdi et al., 2007, p.211)

A Saúde Coletiva realiza sua interface com a Bioética quando: conquista direitos relativos à saúde, busca uma equidade para o sujeito e para o coletivo, reflete sobre justiça distributiva, altera eticamente suas políticas públicas de saúde. Assim sendo, entendemos que a interface da Bioética com a Saúde Coletiva não apenas existe como se faz obrigatória, para que possamos construir uma sociedade cada vez mais digna, repleta de cidadãos conscientes de sua importância na sociedade, e cumpridores de seus direitos e deveres.

Colaboradores As autoras Juliane Brenner Vieira Haragushiku e Marta Ines Machado Verdi participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências ANJOS, M.F. Bioética: abrangências e dinamismo. In: BARCHIFONTAINE, C.P.; PESSINI, L. (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Loyola, 2001. p.135-47. ANJOS, M.F; SIQUEIRA, J.E. (Orgs.). Bioética no Brasil: tendências e perspectivas. Aparecida: Idéias & Letras, 2007. BERLINGUER, G. Bioética cotidiana. Brasília: UNB, 2004. ______. Questões de vida: ética, ciência, saúde. São Paulo: APCE/ Hucitec/CEBES, 1993. FORTES, P.A.C; ZOBOLI, E.L.C.P. (Orgs.). Bioética e Saúde Pública. São Paulo: Loyola, 2003. GARRAFA, V. Apresentando a Bioética. Revista Universitas Face, v.2, n.2; v.3, n.1, p.112, 2005/2006. ______. Bioética e ética profissional: esclarecendo a questão. Medicina - Cons. Fed., n.97, p.28, 1998. ______. Dimensão da Ética em Saúde Pública. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, 1995. GARRAFA, V.; PORTO, D. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In: GARRAFA, V.; PESSINI, L. (Orgs.). Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, Edições Loyola, 2003. p.35-44. JUNQUEIRA, S.R.; JUNQUEIRA, C.R. Bioética e Saúde Pública. In: RAMOS, D.L.P. (Org.). Bioética, pessoa e vida. São Caetano do Sul: Difusão, 2009. p.78-92. LEONE, S.; PRIVITERA, S.; CUNHA, J.T. (Coords.). Dicionário de Bioética. Aparecida: Editorial Perpétuo Socorro/Santuário, 2001.

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VIEIRA, J.B.; VERDI, M.I.M.

artigos

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VIEIRA, J.B.; VERDI, M.I.M.Interfaces entre Salud Colectiva y Bioética a partir de un estudio de la publicación de autores vinculados a la Pos-Graduación en Salud Colectiva en Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.21-37, jan./mar. 2011. Los procesos de desarrollo de la Bioética y Salud Colectiva brasileñas ocurrían de forma paralela hasta que, en determinado momento, pasaron a relacionarse debido a la aproximación de temas comunes como la cuestión de la equidad en salud y el derecho a la salud. El objetivo de este estudio ha sido el de analizar las interfaces entre la Bioética y la Salud Colectiva a partir de la producción científica del campo de esta última y sus relaciones con la formación en Pos-Graduación stricto sensu del área. Se han analizado 23 artículos publicados entre 2007 y 2009 en periódicos del área de Salud Colectiva en Brasil cuyos autores mantiene en relación con la Pos-Graduación del área. Se han podido percibir algunas tendencias bioéticas predominantes como la Bioética de la Protección y la Bioética de Intervención. Las interfaces entre la Bioética y la Salud Colectiva revelan expresiones similares capaces de proporcionar un diálogo directo entre ellas puesto ambas priorizan el bienestar del sujeto y del colectivo.

Palabras clave: Salud Colectiva. Bioética. Producción científica. Investigación cualitativa. Recebido em 01/03/10. Aprovado em 30/06/10.

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artigos

Uma relação delicada: estudo do encontro professor-aluno

Izabel Cristina Rios1 Lilia Blima Schraiber2

RIOS, I.C.; SCHRAIBER, L.B. A special relationship: a study on teacher-student encounters. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.39-51, jan./mar. 2011.

Technicism and voiding of physicians’ place as caregivers are caused by training centered on biomedical knowledge acquisition. Criticisms led medical schools to include humanity disciplines in the curriculum, but this has been shown to be insufficient. Cultural factors such as the educational environment and behavioral patterns are also involved. In this study, the aim was to comprehend intersubjective encounters between teachers and students, emphasizing contemporary culture-related factors that have been identified as important for constructing physicians’ identities and attitudes. Through a case study, triangulating between participant observation, interviews with teachers and students, and official documents from a medical school in the state of São Paulo, pedagogical and intersubjective relationships of day-to-day life in the educational process were covered. In the analysis, configurations of ‘self and other person’, ‘technology’ and ‘teacher-student intersubjective relationships’ were constructed. Polarized manners of interaction were found: relationships of bonding and trust, disqualification and omnipotence, and violence.

Keywords: Medical education. Humanities. Humanization of care. Medicine.

O tecnicismo e o esvaziamento do lugar do médico como cuidador são determinados pela formação centrada na aquisição de conhecimentos biomédicos. Críticas levaram as escolas médicas a incluir no currículo disciplinas de humanidades, o que se mostrou insuficiente. Fatores culturais como ambiente educacional e comportamentos também estariam envolvidos. Objetivouse compreender o encontro intersubjetivo de professores e alunos, ressaltando aspectos referidos à cultura contemporânea identificados como importantes para a construção da identidade e atitude médica. Por meio de estudo de caso, triangulando a observação participante, entrevistas com professores e alunos e documentos oficiais de uma escola médica no estado de São Paulo, abordaram-se as relações pedagógicas e intersubjetivas no cotidiano do processo educacional. Na análise, construíram-se as configurações do ‘eu e o outro’, da ‘tecnologia’ e das ‘relações intersubjetivas de professores e alunos’, encontrando-se modos polares de interatividade: relações de vínculo e confiança; de desqualificação e onipotência; e violências.

Palavras-chave: Educação médica. Humanidades. Humanização da assistência. Medicina. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Centro de Desenvolvimento da Educação Médica “Prof. Eduardo Marcondes”, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (FMUSP). Av. Dr. Arnaldo, 455. Cerqueira César, São Paulo, SP, Brasil. 01.246-903. izarios@usp.br 2 Departamento de Medicina Preventiva, FMUSP.

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UMA RELAÇÃO DELICADA: ESTUDO DO ENCONTRO ...

Introdução O longo caminho que se inicia no momento em que entramos na faculdade de medicina, e que se encerra com o legado de uma árdua e complexa formação, é feito de muito estudo e, essencialmente, de muita prática sob supervisão direta. Não há dúvidas de que o aprendizado da profissão médica se dá pela apreensão de saberes, valores e comportamentos no contato direto de alunos e professores, estes verdadeiros modelos do ‘ser médico’ (Hundert, Douglas-Steele, Bickel, 1996). O atendimento aos pacientes e as discussões de casos clínicos são espaços para o desenvolvimento de competências biomédica e ético-relacional e suas articulações. Mais do que a aquisição de conteúdos, o aluno desenvolve um jeito de ser a partir das vivências subjetivas do encontro pedagógico (Pessoti, 1996), sobre as quais se dá a construção de saberes sobre o encontro (ou desencontro) clínico. Nesse sentido, esse longo caminho de formação é, também, um longo caminho de produção de subjetividades/ intersubjetividades. Já há algum tempo, na área da educação médica, discute-se a importância de se desenvolverem tais aspectos da formação (Grosseman, Patrício, 2004) considerando-se a inquietante realidade de deterioração das relações humanas no trabalho em saúde, em especial na interação médico-paciente, espaço que, hoje, muitas vezes se apresenta como campo de conflito (Deslandes, 2006). Críticas ao comportamento dos médicos (frios, distantes, desinteressados pelo paciente, ainda que tecnicamente interessados na sua doença), somam-se aos aspectos situacionais que caracterizam a prática médica atual como uma prática tecnológica apoiada em equipamentos e protocolos (guidelines), pouco articulada com o humano inerente ao seu campo (Schraiber, 2008). Sabe-se que, para o trato competente pelas interfaces técnicas e humanas da profissão, é necessário que, a partir do viver pedagógico na formação médica, se aprenda como tais dimensões se articulam. Em meio aos valores, modelos e inscrições de significado da cultura contemporânea, no exercício cotidiano das relações clínicas ou de ensino-aprendizagem, modos de subjetivação se realizariam, propiciando ou dificultando a experiência intersubjetiva necessária para o desenvolvimento de competências técnicas e ético-relacionais conjugadas. Nossa proposta de aproximação a esses fenômenos foi compreender como se dá o encontro intersubjetivo de professores e alunos e como este é ensinado, particularmente nas áreas de Clínica Geral e Cirurgia Geral, ressaltando aspectos referidos à cultura contemporânea e identificados como importantes para a construção da identidade e atitude médica, em especial quanto à interatividade.

Método O desenho metodológico foi o de pesquisa qualitativa (Dalsgaard, 2006; Schraiber, 1995). Escolhemos, como caso, uma escola médica do estado de São Paulo, modelo de medicina técnicocientífica de boa qualidade e viável para a investigação empírica. Com base em estudo teórico das subjetividades contemporâneas na perspectiva de alguns autores (Augé, 2005; Coelho, Figueiredo, 2004; Costa, 2004; Giddens, 2002; Lévinas, 2009) e com base em estudos das relações intersubjetivas na prática da medicina (Schraiber, 2008; Deslandes, 2006; Ayres, 2005; Merhy, 2000; Machado, 1996), construímos núcleos temáticos definidos como o conjunto das principais configurações psicossociais (valores, lugares, atitudes, crenças, conceitos, história) que caracterizam a cultura dos tempos atuais e que podemos observar no comportamento ou no discurso das pessoas ou grupos - conjunto este implicado na produção de subjetividades e, desde estas, nas relações interpessoais. São eles: a identidade de médico (de profissional e de estudante); a identidade do outro (a alteridade da relação); os meios da relação entre o médico, o professor ou o aluno e o outro; e as formas de interação no encontro clínico e em seu ensino. A partir desses núcleos, elaboramos o roteiro de observação e, desta, as entrevistas. Observamos o encontro professor-aluno no internato, período que corresponde aos dois últimos anos da graduação (quinto e sexto), quando os alunos são divididos em pequenos grupos e passam pelos estágios hospitalares e ambulatoriais. O internato é a fase de mergulho na prática médica, 40

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momento privilegiado para a construção das bases identitárias da profissão, em situação de ensino na qual o ato médico é posto em questão. Nesses estágios o ensino se dá, predominantemente, pelas atividades práticas supervisionadas e as discussões de casos clínicos, consideradas o principal método didático-pedagógico para a formação médica, integrando teoria e prática clínica. A escolha das áreas de Clínica Geral e Cirurgia Geral se deram por corresponderem às matrizes centrais da prática médica e, no ensino, fundantes da formação. Optamos pela técnica da observação participante, dado o perfil etnográfico do estudo, complementada com entrevistas em profundidade com alunos e professores e análise documental. Seguindo os princípios gerais desse tipo de observação, mesmo tendo um roteiro, buscamos uma total abertura ao observado, atentos a uma descrição minuciosa dos sujeitos e suas interações em contextos ou ambiências específicas e no uso de linguagens também a elas específicas (Dalsgaard, 2006; Geertz, 1978). Para o registro dessa atividade, utilizamos o caderno de campo (CCampo). As entrevistas também seguiram roteiro aberto, construído a partir da base teórica citada e os dados da observação. Entrevistamos professores de Clínica Geral (PClin) e Cirurgia (PCirur), e alunos do primeiro ao sexto ano (A). Todas as informações retiradas do material empírico estão destacadas no texto. Conjuntamente, analisamos documentos oficiais da Instituição de Ensino relativos: ao projeto pedagógico, às definições curriculares, ementas das disciplinas, práticas de avaliação do aprendizado teórico e prático, e da supervisão do treinamento prático dos alunos. Os dados produzidos por essas técnicas foram submetidos à análise hermenêutica (Schraiber, 2008; Ayres, 2006; Minayo, 1994), criando-se categorias para a compreensão/ interpretação dos fenômenos à base das referências teórico-conceituais adotadas.

Resultados e análise interpretativa Foram observados 22 professores e oito grupos de 14 a 16 alunos, totalizando quatro meses de trabalho de campo. Foram entrevistados nove professores, quatro da Clínica Geral (duas mulheres e dois homens) e cinco da Cirurgia (homens), com idades entre quarenta e sessenta anos. Os alunos foram escolhidos de acordo com o ano da graduação e sua pertença às diversas agremiações institucionais (subculturas: esportes, atividades culturais, ativismo político, iniciação científica etc.). Totalizamos 19 alunos, sendo oito mulheres e 11 homens - dois alunos do primeiro ano, dois do segundo, três do terceiro, dois do quarto, cinco do quinto e cinco do sexto ano. Com exceção de uma aluna, que tinha trinta anos de idade, todos os demais estavam na faixa dos vinte aos 25 anos. Na enfermaria de Clínica Geral, as visitas ocorriam todos os dias. Alunos e professores passavam nos leitos para ver os pacientes e, depois, discutiam os casos clínicos em uma sala fechada. No ambulatório, os alunos atendiam em consultórios e discutiam o caso clínico com um assistente na sala dos médicos. As reuniões ocorriam semanalmente e tinham caráter mais formal. Na disciplina de Cirurgia Geral, observamos três cenários de ensino-aprendizagem: visitas aos leitos de enfermaria, reuniões gerais e discussões de casos clínicos. Nas visitas aos leitos, os professores acompanhavam alunos e residentes e faziam a discussão dos casos clínicos junto aos doentes. Praticamente todos os assistentes e residentes examinavam os pacientes e suas feridas cirúrgicas durante a visita. A reunião tinha caráter formal e a apresentação era centrada nos aspectos cirúrgicos do caso. A discussão se processava entre os professores e assistentes. Os residentes eram alvo de avaliação dos conhecimentos, no que se poderia caracterizar como ‘sabatinados’ pelos professores, enquanto os alunos, observadores, em geral, mudos. As ambiências na Clínica e na Cirurgia eram bem diferentes. Na Clínica o ambiente era mais amistoso e descontraído, ao contrário da Cirurgia onde a formalidade e a circunspeção eram a norma. Tanto numa quanto noutra observam-se: o árduo aprendizado da medicina, a sedução do saber biomédico, o grande volume de informação, e os perigos que rondam a inexperiência.

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UMA RELAÇÃO DELICADA: ESTUDO DO ENCONTRO ...

A cultura narcísica na escola médica: o eu e o outro Para Marc Augé (2005), a principal característica dos tempos atuais não é o fim da modernidade, mas o excesso, a hipertrofia e a deformação, particularmente em três dimensões: o tempo, o espaço e o eu. Ao seu encontro, Giddens (2002) afirma que o trabalho constante de produção da autoidentidade é o principal modo de subjetivação da contemporaneidade. Na perspectiva psicanalítica, a cultura contemporânea, também chamada de cultura narcísica, somática ou do espetáculo (Costa, 2004), no aspecto da hipertrofia do eu e do autorreferenciamento, reproduz conceitos e práticas que sustentam a alteridade de forma precária e dificultam a interatividade. Na investigação desse tema, com base nos dados empíricos, construímos as seguintes categorias de análise. Expressando esta figura do eu, a força e a resistência, assim como a maior capacidade intelectual do aluno e do médico, são constantemente trazidas nas narrativas presenciadas. Nas palavras de um professor, em uma visita na enfermaria da Clínica: “Para entrar aqui é preciso ser melhor que os outros”, “Para mim, é uma questão de genética. Vocês têm genética para entrar aqui” (CCampo). Mas nem tudo estaria dado pela ‘genética’, já que sua legitimação é uma árdua conquista que vai se engendrando ao longo da formação, durante a aquisição de conhecimentos, habilidades e atitudes que são valorizados como ‘boas ou as melhores competências médicas’ na cultura local. De modo diferente da Clínica Geral, em que todo médico pode ser superior, na Cirurgia não basta ser médico, tem de ser do alto escalão formal da instituição. O valor das pessoas tem a medida do lugar que elas ocupam na hierarquia, e esta é formal, bem definida e fixa, própria à instituição do tipo corporativo. Outro símbolo recorrente nas narrativas dos professores é o que se refere ao ‘médico de verdade’. Na narrativa dos professores, o médico de verdade seria um sujeito experiente, inteligente, que acerta todas, que resolve tudo, que salva, que cura, que ganha a luta contra os males junto ao doente. Um lutador e um herói. O médico de verdade seria o clínico, aquele que, de fato, ‘sabe medicina’. “O quê é o bom médico? O conhecimento é a condição básica inicial, e para isso precisa de muito estudo. Quando tiver isso equacionado e só depois disso ou junto com isso você vai poder crescer na área humana. O médico não é a última palavra, o médico é um convencedor, o médico é o cara que vai junto com o doente. A palavra final sempre é do doente, não tenha dúvida”. (PClin)

Embora os especialistas brilhem nas reuniões clínicas, por seus conhecimentos refinados e o uso de tecnologias sofisticadas, são tidos como aqueles que não sabem ser médicos de verdade. Nem olhar o paciente, eles olhariam: “Cadê o médico dentro do especialista?” (CCampo), pergunta o professor de Clínica. O valor do médico estaria na demonstração do seu saber cuidar. Na Cirurgia Geral, encontramos outro modo de representar o médico de verdade. Aqui ele é o médico da elite: tem consultório particular, clientela importante (socioeconomicamente), trabalha em grandes hospitais privados, ganha muito dinheiro e destaque na sociedade. Médicos que trabalham na rede pública, até que se prove o contrário, são tidos como inferiores e incompetentes. O bom é bem pago e privado, o mau é público e mal remunerado. O hospital-escola foge a essa regra porque é a escola dos bons professores, a elite da medicina. Na fala de um professor de cirurgia, aparece esse ideal de médico: “Somos humanos! Temos desejo de operar gente famosa, queremos ganhar dinheiro, comprar carro, casa, casar...” (CCampo).

Colocam-se mais como ‘humanos’, no sentido de ceder a desejos mundanos, do que como heróis. Também no sentido contracultural, aparece o médico como um ser humano: “A generosidade é fundamental, a paciência, a disponibilidade, o conhecimento. E talvez um pouco de humildade... Tem doentes que não suportam saber que o médico deles é 42

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humilde... Mas a gente erra. Eu tenho medo. O aluno chega para mim e fala: Eu adoro cirurgia, mas não vou fazer porque morro de medo de fazer alguma bobagem com o doente. E eu respondo que 26 anos depois de formado ainda tenho medo de fazer bobagem com o doente. É por isso que eu acho que você deve fazer cirurgia, porque você tem medo, o dia em que você não tiver mais esse medo, você está proibido de operar. A gente tem que ter esses medos”. (PCirur)

Entre os alunos, o idealizado seria o herói que salva e tem bons ganhos e notoriedade. Visão que esmaece quando o aluno começa a pensar na sua qualidade de vida. “Antes de entrar, você pensa: Ah, eu quero salvar o mundo! Agora, depois de cinco anos, o que eu quero é uma vida tranqüila, não quero me matar de trabalhar. Quero ter qualidade de vida. Medicina ser minha carreira, mas o foco da minha vida ser eu: meu tempo livre, fazer outras coisas, poder tirar férias longas, poder viajar. Eu não quero me matar de trabalhar. Eu não acho isso muito nobre”. (A5)

Quanto à figura do outro, este aparece como ‘igual’, ‘diferente, desigual’ e como um ‘não-sujeito’. Na narrativa de professores e alunos, o outro ‘igual’ é o colega médico, ou colega estudante de medicina. Só médico para entender médico, é um sentimento que começa cedo, se sustenta ao longo da vida e percorre os ambientes e discursos observados ou narrados. “Porque se você não tem um grupo pra te apoiar, pra ligar à noite quando você fica arrasado porque viu uma pessoa amputada se arrastando na frente do hospital. E você precisa falar, mas não adianta falar com pai, mãe, tio porque não são pessoas que estão vivendo aquilo e por mais que você conte pra quem é de fora, para elas não faz sentido. Então, ou você tem um grupo daqui ou você... Não aguenta, eu acho que você se dá um tiro. Não aguenta mesmo”. (A1)

Reproduzindo o mundo atual, na Clínica, embates bem ou mal resolvidos com o outro aparecem nas circunstâncias em que ele afirma sua alteridade. O outro diferente provoca desconforto, torna-se um problema e, às vezes, acaba apartado da possibilidade de entrar na equação da resolução do problema em condições simétricas, isto é, como um sujeito igual. Na Cirurgia, o processo se acentua e há uma estratificação da identidade entre os pares. A diferença existe e é uma condição que coloca as pessoas em lugares diferentes, tratados de forma diferente segundo os ditames da hierarquia. Não se discute conduta com os pacientes, que são informados do que é melhor para eles e podem aceitar ou não o tratamento proposto. Aos alunos se reserva o mesmo. Eles estão ali de passagem, na maior parte do tempo para observar os mais velhos. A distância que se estabelece nas relações, não raramente, leva à coisificação das pessoas, condição em que o eu percebe o outro como um ser materialmente existente, mas nele não reconhece vontade e desejo próprios, ou seja, igualmente um sujeito, e com ele se relaciona fazendo prevalecer apenas a subjetividade do eu. Podemos perceber esse movimento quando o médico não respeita a autonomia do paciente, ou quando o professor oferece timidamente um lugar de sujeito para o aluno, que acaba funcionando como aquele que permite ao professor espaço para exibir seu saber. Na Cirurgia, é frequente o paciente aparecer como um corpo totalmente dessubjetivado: “O médico entra na enfermaria e dá bom dia aos pacientes, sem olhar nos seus rostos, rapidamente a residente conta a história e o médico levanta o lençol que cobre o paciente no leito e vai direto à sua ferida sem pedir licença para tocar seu corpo. O paciente não se queixa, não oferece qualquer resistência, mantendo-se calado e atento. O médico mostra a lesão para os alunos e faz ali mesmo uma aula expositiva sobre o caso sem, em qualquer momento, se dirigir ao paciente”. (CCampo)

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Ainda que haja exceções a esse modo de atuar, às vezes, o outro é tido como um ‘quase não existente’: “A aluna apresenta o caso e o paciente, mais extrovertido, fala junto com ela. O professor pede para examiná-lo e o expõe para o grupo. O paciente não parece incomodado com a situação e começa a falar, mas é totalmente ignorado pelo professor que continua dando sua aula para o grupo como se a fala dele fosse apenas um ruído de fundo como tantos outros na enfermaria. Depois de ignorado por algum tempo o paciente se cala e assiste a visita como os demais”. (CCampo)

A tecnologia a serviço de uma ausência: implicações interativas No estudo das transformações do trabalho médico e sua prática contemporânea, Schraiber (2008) e Machado (1996) mostram que, nos dias atuais, prevalece a crença radical nos meios da ação profissional, tais como os recursos tecnológicos ou procedimentos tecnologicamente armados, tidos como potências da interação, esvaziando as intersubjetividades e realçando, por exemplo, os protocolos, os equipamentos, os medicamentos ou recursos materiais de toda ordem. A visão centrada na doença, ou na sua investigação, é o modo como opera o ensino. O correlato do ensino baseado na pergunta-resposta é a abordagem do paciente no esquema queixa-resposta. Ainda que os aspectos psicoculturais sejam lembrados, ou não são relevados, ou são reduzidos a sintomas, e dificilmente servem como um recurso técnico importante para o ato médico. O discurso médico aparece, sobretudo nas reuniões clínicas, como frio, distante, construído por uma linguagem própria que retira, das pessoas, objetos e fatos, sua intimidade emocional. Na Cirurgia Geral, até de maneira mais enfática, porque as discussões ocorriam na frente dos pacientes, parecendo que a linguagem técnica e a distância afetiva funcionavam como um escudo protetor que poupava o paciente da verdade da sua doença, e o médico da sua humanidade. Essa linguagem seria parte importante do aprendizado da interação com o outro, como diz o aluno do segundo ano: “Se dá para ensinar a “conversa” com os pacientes? Não sei, mas falar como médico, isso dá. E é feito: treinam a gente para tirar uma boa história com vocabulário de médico. A gente precisa treinar para entender esse vocabulário, esse dicionário, porque a medicina exige. E eles treinam a gente, conversando, mandando ler livros médicos e aprender o vocabulário, e se comunicar em termos médicos quando a gente esta sendo treinado para tirar história”. (A2)

No ambulatório da Clínica Geral, o modelo biomédico aparece como recurso que, em um primeiro momento, acelera o atendimento, mas também o torna extenso, porque se estende ao especialista, aos exames e, não resolvendo o problema de base do paciente (que, muitas vezes, não se encontra só no corpo biológico), cria o mecanismo do retorno repetitivo. As queixas emocionais, as reações de comportamento, as vivências subjetivas na relação médico-paciente são pouco compreendidas e, rapidamente, classificadas como queixas psiquiátricas, e, assim, pela medicalização, ganham uma tradução dentro do modelo (fora do qual não têm registro) e podem ser encaminhadas para o especialista. Muitas vezes, o paciente rejeita essa conduta de exclusão e insiste. A fragmentação e a menos valia das manifestações da vida anímica estão presentes no universo do médico e do paciente. O recorte biológico associado aos recursos tecnológicos permite a redução do tempo de trabalho médico com cada paciente e, assim, o médico atende um grande número de pacientes. Alguns professores do ambulatório agem como se estivessem à frente de uma linha de produção. Os casos são atendidos e discutidos em rápida sucessão. A “operação limpeza” parece um treino para o futuro, de trabalho em regime de sobrecarga e falta de tempo. A multidisciplinaridade, enquanto a participação de diversos saberes na atenção ao paciente, tanto dentro da medicina dividida em especialidades e subespecialidades, quanto no campo das outras 44

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profissões da área da saúde, é estratégia cotidiana, entretanto, sem discutirem e decidirem juntos as condutas para o cuidado do mesmo paciente. A divisão do corpo médico em especialidades, sem a visão de algum todo que poderia aproximá-los na solução dos casos clínicos, cria um ambiente de alienação, distanciamentos e facções. Cada médico vê uma parte do corpo do paciente e, quem sabe, o clínico, na melhor das hipóteses, consiga vê-lo por inteiro. Às vezes, esse funcionamento institucional cria problemas ao tentar resolvê-los. Por exemplo, durante a discussão de um caso difícil em uma visita na Clínica, vimos que a confusão de conduta entre os médicos se devia ao fato de que os especialistas chamados a opinar não enxergavam a totalidade do paciente e cada um prescrevia o que interessava de seu ponto de vista especializado, contradizendo ou impedindo o do outro. Professores e alunos apontam a organização do trabalho como um dos principais empecilhos para a boa medicina, mas um professor aponta outro fator: “O Saúde da Família é um programa que tem tudo para dar certo. O médico é bem pago em relação à média e tem um trabalho finito. Mas a falta de conversa de médicos, alunos, residentes e assistentes com o doente é um problema sério. A maior parte das minhas consultas no consultório é de assuntos não médicos. Essa conversa faz entender o doente. Por exemplo, acabei de passar visita agora e tinha uma menina de 23 anos chorando. Estavam discutindo um monte de alternativas de tratamentos e ela chorando porque o filho de três anos estava em casa sozinho com uma tia. Precisa chorar pra gente conversar com uma menina esse tipo de coisa? Então isso falta, falta mesmo”. (PClin)

Na Clínica Geral, observamos professores que atuam na vertente que considera a relação médicopaciente como um conjunto de técnicas comunicacionais (Laidlaw et al., 2006; Rossi, Batista, 2006; Merhy, 2000) que permite ao médico exercer a medicina de forma mais humana e eficiente, mas também percebemos a dificuldade em sensibilizar seus alunos para o exercício do cuidado. A aluna do terceiro ano conta que, desde cedo, os alunos aprendem a relativizar os exames diagnósticos e valorizar a conversa com o paciente: “Os professores na propedêutica enfatizam muito que você deve conversar com o paciente, tirar uma boa história, entender o que ele está tentando te falar. E a gente às vezes nem tem tanto acesso à tecnologia. São pouquíssimas aulas que os professores falam assim: Vamos olhar como é que está a tomografia dele, ou a angio... Ou qualquer outra coisa. Não sei como é a prática no dia–a–dia no hospital, mas quem está com o aluno de começo de curso aparentemente está voltado para a boa anamnese. Eu estou agora passando pela atenção primária, no posto de saúde, e lá eles focam muito isso”. (A3)

Na Cirurgia, a escuta como recurso técnico parece não existir. Se, frequentemente, o paciente parece ser um outro invisível, a escuta como recurso técnico não se faz necessária, nem possível. Muitas vezes, a preocupação com essa interação está presente, mas deixa passar a ideia de que tem, essencialmente, um caráter moral, e defensivo. A relação médico-paciente seria um recurso diplomático que serviria de proteção aos médicos contra processos ou agressões de pacientes, segundo a fala de um professor durante uma visita na Clínica: “A escolha do que fazer ao paciente deve considerar os riscos, porque se der errado o mundo cai na cabeça do médico. Quando a coisa fica difícil, precisa envolver a família para não ter problemas depois, principalmente se o prognóstico for ruim”. (CCampo)

Pior que a escuta surda é a profusão de queixas dos alunos sobre a prática da mentira, ou da meia verdade dada ao paciente, no lugar da conversa honesta sobre a sua saúde, a que, inclusive, ele tem direito por lei. Às vezes, até mesmo tratado com cruel displicência, como observado no caso de uma menina com tumor na perna, internada na enfermaria de Cirurgia.

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“Na visita, chega-se ao leito dessa menina, que fez a retirada de uma neoplasia na coxa com ampliação. O professor dirige-se a ela dizendo-lhe que ela está ótima, que agora não está muito bom, mas a cirurgia plástica vai dar um jeito e sua perna ficará como de uma miss. Os alunos assistem calados. Na reunião, esse caso é apresentado. Vê-se que a retirada do tumor exigiu a retirada de muito tecido e que mesmo com toda plástica possível, a menina vai ficar com sequelas, inclusive funcionais”. (CCampo)

As pessoas em ação interativa: relações pedagógicas e práticas comunicacionais A experiência com a alteridade se dá quando há o reconhecimento do outro como diferente em uma relação marcada pela ética (Lévinas, 2009). Ou a experiência se encapsula, no que Habermas (1989) chama de razão instrumental e seu uso nas relações humanas, destituindo estas de um agir ético e comunicativo. A expressão empírica de tais referências aparece no ambiente de ensino, sobretudo nas relações professor-aluno, como veremos a seguir. O ambiente de ensino e a atitude dos alunos é absolutamente professor-dependente. Não parece haver diretrizes pedagógicas criadas coletivamente para nortear o trabalho de todos. Tampouco no que se refere à atitude médica. Os professores são modelos cuja escolha fica a critério dos alunos, sem uma diretriz clara da Instituição sobre qual (ou quais) deles estaria(m) adequado(s) ao seu objetivo educacional na prática, e não somente no discurso. Assim, encontramos três “modos de ser professor”, determinando diferentes experiências de intersubjetividade, ou, no caso, de relação pedagógica: o professor onipotente; o professor que cria vínculos, e o professor que desqualifica, anula o aluno como sujeito em sua relação. Estes modos de ser guardam alguma correspondência com os modelos pedagógicos do ensino “centrado no professor” e do ensino “centrado no aluno” (Berbel, 1998), que têm sido a forma mais usual de realizar essa discussão da interatividade. Neste caso, porém, a interatividade é considerada por meio da questão da subjetividade e da intersubjetividade, e não da filosofia pedagógica praticada. Nas aulas teóricas, reuniões e, eventualmente, nas visitas, os alunos, passivamente, assistem longas exposições complexas sobre vários assuntos, frequentemente conduzidas por professores que pouco interagem com os alunos e, em geral, com os pacientes também. Transmitem informações tecnicamente corretas sobre temas médicos de forma solo e centrada em si mesmos. Não perguntam e não oferecem tempo para o aluno pensar, ou seja, não estimulam a participação nem o desenvolvimento de raciocínio. Mas quando não criam clima de prova oral entre estes, parecem apreciados justamente por ‘não enxergarem’ o aluno. Os alunos falam da atitude distante do professor na transmissão vertical de conteúdos, pouco disponível à interação com o aluno: “Eu acho que é assim porque a maior parte dos professores não está compromissada de verdade em fazer os alunos aprenderem. Assim também como os alunos não estão compromissados em realmente aprender”. (A3)

Por outro lado, na Clínica, observamos professores que constroem vínculos com seus alunos, criando ambiente acolhedor e ganhando confiança e admiração. Nesta modalidade de relação pedagógica, há professores que se colocam ao lado do aluno e fazem da pergunta-resposta um modo de construir um caminho para o desenvolvimento do raciocínio, pacientemente estimulando, no aluno, o pensar clínico. Um exemplo de condução de uma conversa que aproxima as pessoas foi observado na Cirurgia: “Em uma visita conduzida por um jovem professor de cirurgia que estimulou nos residentes a formação de espírito crítico por meio de perguntas que abriam caminhos pensantes. Ouvia as respostas e seguia o caminho escolhido pelo aluno até onde fosse e lá chegando ponderava os prós e contras dessa escolha. Não fazia chamada oral, nem pedia respostas que estavam na sua cabeça, ao contrário, o jogo era mais inteligente e interessante porque pensar com lógica é muito mais instigante do que buscar coisas específicas no baú da memória”. (CCampo) 46

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Por outro lado, no mesmo contexto da Cirurgia, observou-se a relação pedagógica oposta: “O professor começou chamando uma aluna na frente da sala e fazendo-lhe perguntas sobre um determinado tema (que não estava no programa). Ela falava olhando para ele, buscando sua aprovação, em voz baixa. Ele a mandou olhar para a platéia. Ela sabia bem pouco e ele perguntou aos outros alunos se eles estão satisfeitos com o que ela lhes dissera. A platéia ficou incomodada, uma aluna pediu para o professor assumir a aula, mas ele insistiu. Um colega foi em socorro da aluna. Ao lado dela somavam dois que sabiam bem pouco, mas pelo menos estavam juntos. O clima era constrangedor. A exposição pública das insuficiências dos alunos frente ao poderoso saber do professor era evidente, demonstrando a humilhação como ‘estratégia’ de ensino-aprendizagem”. (CCampo)

Neste caso, o professor exerce um poder autoritário sobre os alunos. Não há princípios de conduta coletivos, cada professor usa da autoridade de acordo com suas próprias convicções e os alunos têm de se moldar às vontades de cada professor. Na visão de alguns professores da Cirurgia, a forte autoridade do professor é considerada uma necessidade para o ensino médico. Mas, na visão de outros, esse autoritarismo deixaria profundas marcas de sofrimento no aluno, deformando o seu caráter. Quase que em continuidade, a violência está presente e ocorre nos relacionamentos de várias formas. Na Cirurgia, encontra solo fértil na natureza fortemente sensibilizadora de emoções diversas e difíceis dos agravos que fazem parte de sua rotina e dos procedimentos necessários para a intervenção médica sobre os mesmos. Os pacientes portam doenças muito graves, às vezes deformantes e incapacitantes. São traumas, tumores, doenças que acometem pessoas de todas as idades e estão ligadas a grandes sofrimentos humanos. Não olhar nos olhos dos pacientes, ou fazê-los invisíveis, pode ser um recurso defensivo para deter tamanha sensibilização e, nesse sentido, agiria contra a humanidade que faria deles seus semelhantes, lembrando-lhes que todos estamos à mercê de tais sofrimentos. Tais professores procuram forçar o aluno a pensar e a estudar por intimidação. Há relações marcadas pela agressividade do professor frente aos seus alunos; um embate que, ao final, vai reforçar a primazia do professor em relação ao aluno e o seu assujeitamento. A lição está dada: aos vencedores, o registro do Conselho Regional de Medicina, que, afinal, permitiria (e legitimaria) a última palavra. Medo de retaliação e constrangimento explicaria o silêncio dos alunos sobre tais atitudes dos professores, como disse a aluna do quarto ano: “Você não vai entrar numa briga sabendo que está em total desvantagem. Se você sabe que o ‘cara vai te ferrar’ depois, você vai ficar quietinho, vai ‘engolir o sapo’, e ainda vai achar lindo depois”. (A4)

Na visão dos alunos, a hierarquia é útil, mas, na prática, resvala para a violência ou, como diz o aluno do sexto ano, serve ao “abuso do poder”: “Eu acho que a hierarquia é uma questão realmente de experiência para tomar decisões e também para transferência de conhecimento. O que acontece é que algumas vezes essa hierarquia é tomada como forma de poder mesmo, como forma até de violência, de certa maneira: vai ser assim porque eu quero. Porque o R+ mandou, porque o titular quer. Isso é clássico nas cirurgias. E aí, é uma perversão da hierarquia que foi criada para organizar. Mas eu acho que, dentro de um ambiente hospitalar, ela pode, sim, ser útil e benéfica”. (A5)

A violência como forma de assujeitamento do outro, prevalecendo o desejo de quem está na situação de maior poder institucional, se expressa, particularmente, nos casos em que é muito difícil lidar com as diferenças sociais e culturais e encontrar algo em comum, de humano-igual, entre sujeitos tão distintos. O apelo à ética (princípio da autonomia) e à lei (na figura da instituição) aparece, então, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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como recurso para resolver os conflitos que, sem essas mediações, acabariam se transformando em violência pura e simplesmente. Nitidamente, a relação médico-paciente fica comprometida pela atitude que impede ao médico acolher e tratar o outro estranho, por quem sente aversão. Quando a ética não prevalece ao nojo, acontecem situações como a que o aluno do sexto ano conta: “No PS de Clínica tinha uma paciente que estava alcoolizada e era glasgow 3. Eu falei: Vamos dar suporte? Vamos, sei lá, talvez até intubar para proteger a via aérea e não sei o quê. Ninguém quis fazer comigo. Ah, ela é bêbada, deixa aí. Eu olhei os relatórios de primeiras condições, peguei a paciente, virei de lado. Depois de duas horas ela estava pulando no PS, estava ótima. Não aconteceu nada de errado. Mas são condutas que poderiam ser tomadas e que às vezes não são, porque na prática a teoria é outra...”. (A6)

No ambulatório pudemos observar vários relatos sobre violência de pacientes ou familiares contra os médicos, e a necessidade de se proteger deles. A crise de confiança tem mão dupla nessa relação tão estremecida nos tempos atuais. Por outro lado, o não-reconhecimento do outro na sua integralidade, associado ao endurecimento dos profissionais, à hierarquia rígida, à comunicação apenas unilateral e descendente, e ao tecnicismo, formam um meio de cultura para a violência, que nem sequer parece percebida como tal, tamanha a naturalidade com que ocorre entre as melhores intenções. Nas tomadas de decisão, o autoritarismo e a falta de respeito à dignidade são notórios. Numa discussão de Bioética, uma aluna relatou o fato acontecido no seu primeiro plantão noturno do internato: “Havia na enfermaria um paciente terminal, porém consciente e contatando, com a indicação de SPP (se parar, parou; não se reanima). No meio da noite ele teve uma hemorragia grave. Chamaram a interna e o R1 que não conseguiram estancar a hemorragia. O R1 chegou a pedir sangue para o paciente, mas foi desautorizado pelo R2 que lembroulhe do SPP. O paciente entrou em desespero, pediu para lhe darem sangue. Percebendo que não estavam fazendo nada por ele, começou a chorar porque sabia que estava morrendo. Por fim pediu para ser sedado, e logo depois morreu. O paciente estava morrendo e todo mundo o enganando, dizendo-lhe que ia ficar bom. Achei muito desumano!”. (CCampo)

Considerações finais Angústias e prazeres acompanham a vida do médico. Uma vida de muito trabalho que começa bem cedo, na faculdade, e envolve, mais que a acumulação de saberes, a lapidação da identidade em um processo de subjetivação que se dá a partir de valores da cultura de cada época refletidos na cultura médica, expressos em situações e pessoas nos processos de intersubjetividade. Dentro da escola médica, tal processo pode contribuir ou não para o desenvolvimento das competências ético-relacionais necessárias para as boas práticas em medicina e a que se pretende no que chamamos de formação humanística do aluno (Couceiro-Vidal, 2008; Pessoti, 1996). Ainda que a organização do trabalho médico seja um dos principais fatores responsáveis pelos problemas na relação médico-paciente (que, atualmente, buscam solução nas propostas de humanização na área da Saúde e na formação humanística durante a graduação), no nosso estudo, encontramos modos de processamento das relações entre as pessoas, e, particularmente, entre professores e alunos, que expressam dificuldades para a experiência intersubjetiva, mostrando que fatores mais intrínsecos à constituição do eu-médico e dos relacionamentos interpessoais devem ser considerados. A condição angular para a definição dos sujeitos em um encontro se dá na construção dos lugares do eu e do outro (Levinás, 2009), situação em que certos aspectos culturais podem dificultar ou, mesmo, 48

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impedir essa interação. A ideia de superioridade inata, ou dada pelo lugar hierárquico institucional, associada à admissão de que, ao outro diferente (aluno, paciente, outros profissionais da saúde e, mesmo, entre médicos), haveria gradações de relevância da sua subjetividade, no extremo da negação do outro permitiria, até mesmo, a prática de abusos e esquecimentos de direitos ou deveres éticos, mesmo que previstos em lei. Nesse contexto, a violência se faz presente na forma de desqualificação das pessoas, mentira ao paciente, preconceito, racismo, abuso de poder hierárquico institucional. Junto aos alunos, observa-se que o pouco protagonismo, o silêncio ou passividade na aprendizagem se dão por temor à humilhação decorrente das dúvidas ou dos erros, no que poderíamos conotar como uma ‘pedagogia do medo’, que provoca inquietação, revolta e sofrimento, mas que, para alguns, acaba sendo aceita como necessária para a ‘passagem’ ao ser médico. De outro ângulo, observa-se que, em ambientes ‘mais flexíveis’, alguns alunos se comportam de forma especular, tornando-se eles próprios, também, agentes de violência contra colegas e, mesmo, contra professores menos autoritários. A atuação de professores capazes de construir vínculos com alunos e pacientes, em situações mais ativas de ensino nas quais há o reconhecimento do outro na sua alteridade e a busca de entendimento recíproco, promove verdadeiras experiências de intersubjetividade (Coelho Jr., Figueiredo, 2004). Estas criam condições para o desenvolvimento humanístico, uma vez que os alunos são adultos em processo de investimento na autoidentidade, e não meros receptores de conteúdos transmitidos pelo professor. Ao encontro dessas considerações sobre a importância do papel do professor e das experiências acadêmicas de interatividade na construção da atitude profissional, observamos fato curioso, que, ainda no internato, os alunos parecem muito mais críticos e sensíveis aos aspectos subjetivos que permeiam as práticas de saúde e de ensino do que quando se tornam médicos. A certificação profissional que recebem do Conselho Regional de Medicina marcaria mais que uma passagem da condição técnica de estudante para a de médico, uma mudança de comportamento e de valores. Confirma-se, então, que, para a formação humanística do aluno de medicina, é necessário mais que o aprimoramento didático-pedagógico das disciplinas específicas da área de humanidades e a humanização dos serviços-escola (que, sem dúvida, são indispensáveis). São requisitos para essa formação: a conscientização dos professores sobre seu papel modelar na totalidade do processo educacional e a precisa definição institucional de valores e diretrizes de conduta ética (para todos) construída de forma coletiva e dialogada. Tal dimensão ética requer o reconhecimento de aspectos subjetivos e intersubjetivos dados pela cultura e implicados na prática médica e seu ensino-aprendizagem. Só assim se situará dentro de um projeto educacional para formação humanística em medicina, ressaltando a importância dos aspectos mais sutis, e não menos impregnantes, vividos nas experiências intersubjetivas durante a graduação, e que serão decisivos para o desenvolvimento de competências ético-relacionais do futuro médico.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.

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artigos

RIOS, I.C.; SCHRAIBER, L.B.

RIOS, I.C.; SCHRAIBER, L.B. Una relación delicada: estudio sobre el encuentro profesoralumno. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.39-51, jan./mar. 2011. El tecnicismo y el vacido del lugar del médico como cuidador se determinan por la formación centrada en la adquisición de conocimientos biomédicos. Las críticas llevaron a las escuelas médicas a incluir disciplinas de humanidades en el currículo; lo que se mostró insuficiente. En este estudio se ha objetivado comprender el encuentro intersubjetivo de profesores y alumnos resaltando aspectos referentes a la cultura contemporánea importantes para la construcción de la identidad y la actitud médica. Por medio del estudio de caso, entrevistas con profesores y alumnos y documentos oficiales de una escuela médica en el estado de São Paulo, Brasil, se han planteado las relaciones pedagógicas e inter-subjetivas en el cotidiano del proceso educacional, encontrándose modos polares de inter-actividad.

Palavras clave: Educación médica. Humanidades. Humanización de la asistencia. Medicina. Recebido em 22/03/10. Aprovado em 23/08/10.

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artigos

Biologia, subjetividade e alteridade

Teresa Cristina Soares1 Dina Czeresnia2

SOARES, T.C.; CZERESNIA, D. Biology, subjectivity and alterity. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.53-63, jan./mar. 2011.

This article aims to present and discuss the concept of biological alterity. From a human point of view this issue is expressed beyond the dimension approached by biology. However, the ability to make conscious decisions and be constituted in the relationship with the other would have a biological root and would be embedded in the existence of every living being. Recent biology and philosophy studies have shown new ways of thinking about the relation among living beings from the point of view of ontogeny and co-evolution. The human condition has primarily biological origins. Addressing alterity as a peculiar nature of the living beings may indicate a different and integrated way of understanding human body as well as the ethical issues related to life and health practices.

Este artigo tem a finalidade de apresentar e discutir o conceito de alteridade biológica. A questão da alteridade, do ponto de vista humano, se expressa além da dimensão abordada pela biologia; mas a faculdade de realizar escolhas conscientes e de se constituir na relação com o outro, teria uma raiz na biologia e estaria inscrita na existência de todo ser vivo. Estudos recentes da biologia e da filosofia apontam para novas formas de pensar a relação entre os seres vivos do ponto de vista ontogênico e coevolutivo. A condição humana é anteriormente biológica. Conceber a alteridade, enquanto natureza peculiar dos seres vivos, pode apontar para uma forma diferente e integrada de se compreender o corpo humano e as questões éticas relativas ao vivo e às práticas em saúde.

Keywords: Biology. Individuation. Subjectivity. Alterity. Co-evolution.

Palavras-chave: Biologia. Individuação. Subjetividade. Alteridade. Coevolução.

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Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Juiz de Fora. Rua José Lourenço Kelmer, s/n. Centro das Ciências da Saúde, Campus Universitário, Bairro São Pedro. Juiz de Fora, MG, Brasil. 36.036-330. tcsoares@globo.com 2 Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. 1

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BIOLOGIA, SUBJETIVIDADE E ALTERIDADE

Introdução Este artigo tem como objetivo apresentar e discutir o conceito de alteridade biológica, com base em autores da biologia e da filosofia. A questão da alteridade está na raiz da ética e, do ponto de vista humano, se expressa muito além da dimensão abordada pela biologia. Porém, a plenitude do exercício da faculdade de realizar escolhas conscientes, presente no humano, e de se constituir na relação com o outro, teria uma raiz na biologia. Esta origem estaria inscrita na existência de todo ser vivo considerando-se, do ponto de vista evolutivo, a presença de um rudimento de escolha e uma base da alteridade no ser vivo mais elementar. A descrição da célula como unidade fundamental da vida, assim como a de um organismo complexo, é realizada de modo mecanicista. Em decorrência, o humano é compreendido de forma dissociada do seu próprio corpo orgânico. Esta construção, apesar de incrustada na cultura ocidental, vai de encontro à experiência concreta. Por exemplo, na saúde e na doença, evidencia-se um vínculo entre a condição biológica e simbólica que não corresponde à descrição das dimensões orgânica e psíquica, consideradas dissociadamente. Na fundação da intervenção biomédica, o corpo orgânico é concebido como máquina. Os desafios da Saúde Pública estão ligados aos que se encontram na base da medicina moderna. Os conceitos de saúde e doença são fundamentados em teorias biológicas que constituem a lógica das intervenções. Sem dúvida, o conhecimento e tecnologias em saúde não dizem respeito apenas à dimensão orgânica. Nem toda intervenção em saúde toma, como substrato, apenas o corpo mecânico, como é o caso das chamadas tecnologias leves fundamentadas em conceitos como: humanização, integralidade, acolhimento, cuidado, redes afetivas, como pode ser observado em Ayres (2007, 2005, 2004, 2001), Teixeira (2004, 2003, 2001), Pinheiro e Mattos (2008, 2007a, 2007b, 2006a, 2006b), entre outros. Essas mudanças tecnológicas ocorrem mediante maior clareza dos limites do conhecimento, abrindo espaço para outras formas de expressão da realidade, como a arte e a filosofia, na estruturação das práticas de saúde (Czeresnia, 2003). Porém, a configuração hegemônica do campo da saúde traz contradições a qualquer tecnologia que abra espaço a outra forma de compreensão, o que precisa ser problematizado para possibilitar a geração de alternativas. É necessário alargar a discussão sobre a concepção de biológico que permeia a construção do conhecimento no campo da Saúde Coletiva. A concepção dual está tão arraigada nas representações sobre o corpo que vale apontar a importância desse debate. Nesse sentido, um aspecto a ser aprofundado diz respeito ao processo que ocultou a dimensão da alteridade na raiz do orgânico. Descobertas recentes da biologia molecular aplicadas ao desafio de responder às indagações sobre a etiologia de doenças complexas, como alergias e doenças autoimunes, produziram novas formas de pensar a relação entre os seres vivos do ponto de vista ontogênico e coevolutivo. A compreensão de que microorganismos não são apenas “agentes invasores”, mas, muito além disso, são constitutivos do organismo humano, poderia sinalizar a possibilidade de integração epistêmica da alteridade no conceito de doença? (Czeresnia, 2007) Responder a esse desafio não é uma tarefa simples, pois a resposta não está dada. Mas já existem, na literatura, contribuições importantes para a construção do conceito de alteridade biológica, as quais este texto busca apresentar. Autores como Bergson, Maturana, Morin e Canguilhem, entre outros, apesar de diferenças teóricas, elaboram a questão da alteridade biológica. Estes autores apresentam em comum a ideia de que a subjetividade e, por consequência, a alteridade, podem e devem ser fundamentadas e conceituadas a partir de sua raiz biológica. Assim, o foco central do artigo é expor este aspecto comum do pensamento de diferentes autores, os quais buscam ultrapassar limites do mecanicismo e compreender a subjetividade humana como integrante do seu corpo orgânico. A construção de uma nova forma de conceber a dimensão biológica poderia contribuir para ampliar o espaço de tecnologias que confrontam a lógica instrumental e utilitária da biomedicina na organização das práticas de saúde. Não é objetivo deste artigo discorrer a respeito de tais tecnologias ou das intervenções em saúde, mas refletir sobre seus fundamentos biológicos, os quais constituem concepções ocidentais de saúde e doença. 54

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Individualidade biológica e subjetividade Autores da biologia e da filosofia apontam que a relação entre individualidade e alteridade biológica é de mútua dependência. O indivíduo não existe como ser inteiro, pois ele é divisível em fragmentos. A individualidade é uma sistematização anterior à fragmentação e se reproduz nos fragmentos quando estes ocorrem. No mundo organizado é praticamente impossível dizer o que é e o que não é o indivíduo, pois ele não é independente ou isolado, mas constituído de elementos, que portam, por sua vez, organização e individualidade. A individualidade, por outro lado, não é um solipsismo, posto que a subjetividade é, em si, relacional, como ilustrado pela pergunta de Bérgson (2003, p.8): “Quem dirá onde começa e onde acaba a individualidade, se o ser vivo é um ou vários, se são as células que se associam em organismo ou se é o organismo que se dissocia em células? Em vão nós pressionamos o vivo em tal ou qual dos nossos enquadramentos. Todos os enquadramentos racham”. A concepção da individualidade como subjetividade já era afirmada por Canguilhem (1976) quando, ao estudar a história da teoria celular, observa como valores afetivos e sociais estão presentes no seu desenvolvimento. A célula é o elementar que, por meio da associação e da cooperação, encontra o caminho do desenvolvimento biológico. A individualidade, presente desde a célula, mostra que a vida não é possível sem a individuação do que vive. Também para Morin (2002), a individualidade, enquanto processo de individuação permanente, é característica de todo ser vivo, pois ele se adapta, modificando sua relação com o meio e, por intermédio da produção de estruturas internas novas, modifica também a si mesmo. A individuação está presente mesmo no unicelular, permitindo diferenciar um indivíduo de seus semelhantes, como um ser individual autorreferido, um “sujeito biológico”, cujas qualidades se manifestam de forma inseparável, organizadora, cognitiva e ativa em todas as formas de vida. A subjetividade caracteriza-se, especialmente, pela referência a si, por ser o sujeito único e irredutível, por uma lógica autorreferente e ontológica de organização (auto-organização), onde o centro de referência é o próprio sujeito, com suas necessidades, interesses e finalidades. Esta definição de sujeito não tem como base a consciência ou a afetividade, mas o ego-autocentrismo e a ego-autorreferência, isto é, a “lógica de organização própria do indivíduo vivo: é, portanto, uma definição literalmente bio-lógica” (Morin, 2002, p.186). Jonas (2004) observa que a condição humana é, também, anteriormente biológica. O humano está enraizado no biológico. A teoria da evolução seria incompatível com o pensamento de o homem ser singularmente portador de mente, consciência e espírito, sem estas condições terem alguma espécie de desenvolvimento anterior nos outros seres vivos: “Pois se já não era mais possível considerar o espírito como em descontinuidade com a história pré-humana da vida, então, em virtude da mesma lógica, não existia mais qualquer razão para negar o espírito em doses proporcionais às formas ancestrais mais próximas ou mais afastadas” (Jonas, 2004, p.67). A substância viva manifesta um modo de “liberdade” cujas possibilidades se estendem “até as mais distantes amplidões da vida subjetiva” (Jonas, 2004, p.14). Nesta irrupção orgânica, há como que uma transgressão própria do que é vivo, capaz de criar anatomias e subjetividades antecipadas nas camadas orgânicas básicas, de maneira a garantir a autoconservação. Ao longo do tempo, os organismos teriam adquirido capacidades naturais, de forma escalonada - como metabolismo, sensação, movimento, afeto, percepção, imaginação, espírito -, de maneira a fazerem face às exigências do mundo: O pensamento não estava previsto na ameba, como não o estavam também a coluna vertebral, nem a ciência ou o polegar oponível: cada uma destas coisas foi produzida a seu tempo – mas não de uma maneira previsível – no enorme espaço da situação vital em contínua transformação. (Jonas, 2004, p.57)

De modo equivalente, Canguilhem já havia formulado que a vida apresenta uma atividade normativa que a faz não ser indiferente às condições que a tornam possível. Esta atividade é uma “posição inconsciente de valor” (Canguilhem, 1990, p.96), uma qualidade, mesmo que primitiva, de avaliação das condições necessárias à conservação.

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A vida é, pois, uma conquista própria, como notaram Maturana e Varela (2001). A autopoiese (do grego auto, si mesmo + poein, fazer criar) é assinalada como a condição que faz, mesmo dos seres vivos mais simples, sistemas autônomos. Os seres vivos adquiriram a surpreendente capacidade de especificar suas próprias leis, selecionando aquilo que lhes é favorável, produzindo e renovando a si mesmos e a seus componentes até que ocorra a morte (Maturana, 2002). Propriedades como liberdade, escolha, originalidade, direcionalidade, historicidade, interioridade, subjetividade, distinguem o ser vivo (em oposição ao não vivo) com vistas à autoconservação. As operações de autoconservação e mudança são mutuamente dependentes e ocorrem de forma inseparável e simultânea na organização do ser vivo; a regulação da estabilidade e da mutabilidade são aspectos de todos os sistemas vivos (Keller, 2002). Este caráter autoconservador é invariante, definindo a individualidade do sujeito biológico. Por outro lado, do ponto de vista da espécie, os seres vivos evoluem na medida em que variam. Neste caso, esta variação, não acidental nem predeterminada, tem um caráter de utilidade que é a adaptação do próprio ser vivo ao meio em que vive. Esse esforço em se adaptar não é um “exercício mecânico de certos órgãos”, pois implica uma certa escolha do organismo vivo, inferindo um princípio interno do desenvolvimento (Bergson, 2003, p.70). Esta sugestão de que microorganismos possuem, mesmo que de maneira rudimentar, a capacidade de sensação, percepção ou (in)consciência, é um consenso entre autores que acreditam que nenhum organismo vivo é predeterminado e, portanto, possui capacidade de escolha. A visão de Maturana (2002), por exemplo, é incisiva. Ele entende que todo organismo é determinado, mas pela sua própria configuração estrutural em correspondência com o meio em que vive. Não é o meio que determina a estrutura do organismo, ele é apenas um agente perturbador. “É o organismo que determina qual a configuração estrutural do meio que desencadeia nele próprio uma mudança estrutural” (Maturana, 2002, p.71). Portanto, é o organismo que determina qual conduta a adotar, de modo a resguardar a organização e a identidade.

Alteridade e evolução Como vimos acima, o indivíduo é decorrente de um processo de individuação a partir de estruturas elementares: “O mais complexo pôde sair do mais simples pela via da evolução” (Bergson, 2003, p.26). A teoria da evolução pôde ser complementada por teorias mais recentes que ampliam a importância da associação e cooperação entre seres vivos no contexto do surgimento evolutivo de espécies mais complexas. A relação entre individualidade e individuação a partir de elementares não se restringiria ao processo ontogênico, mas teria um papel importante na filogênese. A teoria da seleção natural advoga a evolução como fruto de um processo competitivo entre espécies, em que sobrevivem os mais aptos e perecem os mais frágeis (Brand, Gibson, 1993). Para Margulius e Sagan (2002), grandes lacunas foram atravessadas na evolução dos seres vivos por meio da inclusão, da fusão corporal de componentes aprimorados em seres individualizados, que se unem, interagem ou se fundem, formando organismos completamente novos e mais complexos. A vida é o produto destas interações, onde a soma das partes, consideradas isoladamente, não explica o funcionamento do todo. Os seres vivos desempenham um fundamental papel na constituição uns dos outros, constroem sua identidade usando o ar, a água ou outros seres orgânicos. Os organismos são constituídos de componentes especiais, que, em sua maioria, são outros organismos, outras formas de vida, numa dinâmica que aqui denominamos de alteridade biológica. Bactérias não são apenas agentes patogênicos, mas seres primordiais que constituem os mais complexos. Deram origem à multicelularidade, evoluíram em diferentes espécies (inclusive a humana), possibilitando a manutenção da vida a partir da transformação e manutenção, até os dias de hoje, do meio ambiente planetário. Entre outras atividades que executam, controlam moléculas específicas, nadam em direção ao alimento, detectam a luz (Margulius, Sagan, 2002). Santos (2005) afiança que nosso corpo possui dez vezes mais bactérias que células humanas. Sem elas, não seriam possíveis muitas das operações do nosso metabolismo, como a digestão ou a síntese de 56

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vitaminas. O microbioma do cólon humano possui mais de sessenta mil genes (o dobro do genoma humano), em que somente 1 a 5% das sequências de DNA não são bacterianas (Gill et al., 2006). Além de habitarem nosso corpo, rica fonte de alimento para elas, as bactérias deixaram vestígios constituintes dos seus ancestrais nos organitos das nossas células, como as mitocôndrias, responsáveis pelos processos energéticos de praticamente todos os seres vivos, seus descendentes. Desta forma, podemos dizer que foi com elas que se iniciou a dinâmica da alteridade biológica. Esta dinâmica permite que uma conduta individual seja aperfeiçoada quando ocorrem interações entre os organismos. A ligação que possibilita aos membros de cada espécie se organizarem em termos de condutas, de forma a resguardar sua organização, é considerada forma filogenética e ontogenética de comunicação. Bonnie Bassler, da Universidade de Princeton, eleita em 2006 para a National Academy of Sciences, propõe que bactérias se comunicam inter e intraespécies mediante “linguagem” química. Esse processo, denominado quorum sensing, permite que bactérias compartilhem informações através da secreção de determinadas moléculas para controlar processos que são improdutivos quando empreendidos por uma bactéria individual, mas se tornam eficazes quando realizados pelo grupo. Por meio desse mecanismo, elas podem contar seus números, determinar quando alcançam uma massa crítica e mudar, simultaneamente, o comportamento para realizarem procedimentos que requerem muitos indivíduos agindo juntos para serem eficazes. Esta é, por exemplo, a conduta que ocorre na virulência. Quando alcançam um número suficientemente elevado, as bactérias lançam um ataque simultâneo, o que lhes dá maior possibilidade de sobrepujarem o sistema imune do hospedeiro e garantirem a própria sobrevivência. O quorum sensing permite que bactérias e alguns micróbios ajam como enormes organismos multicelulares. Seria possível supor esse mecanismo entre células de organismos mais elevados, inclusive do corpo humano (Camilli, Bassler, 2006; Henke, Bassler, 2004; Federle, Bassler, 2003). Qual seja a dinâmica comunicativa utilizada, das menos complexas às mais elaboradas e estáveis, as configurações comportamentais desta comunicação são adquiridas ontogeneticamente. Há certa constância ou continuidade na história de um grupo, transmitidas através das gerações. Na base de toda organização biológica está uma semiótica elementar, uma operação envolvendo signos e suas interpretações, próprios de cada espécie: “A interpretação é, portanto, constantemente necessária: a vida é esta incessante e imperativa percepção de sentido, que vem bem antes da razão humana” (Maturana, 2002, p.105). Mesmo no ser biológico mais simples, parece existir uma interpretação organizada. Qualquer concepção a respeito do humano não pode, consequentemente, afastar-se deste ponto de vista. Mendonça assinala que há no corpo humano “uma rede de comunicação e de trocas que expressa a presença de um pensamento sistêmico inteligente organizador de nossa saúde e bem estar, que está absolutamente fora do controle consciente efetuado por nosso sistema nervoso central e por nosso aparelho cerebral” (Mendonça, 2005, p.3). O dinamismo que viabilizou o desenvolvimento crescente da complexidade dos seres vivos estaria, portanto, enraizado na estrutura anteriormente complexa dos seres vivos elementares. Morin afirma: Os processos da biologia fizeram-nos descobrir que os unicelulares dispõem fundamental e inequivocamente da qualidade do indivíduo vivo. A partir daí, devemos reconhecer que os nossos intestinos abrigam e alimentam bilhões de micro-sujeitos que são as bactérias Escherichia coli e que o nosso próprio organismo é um império-sujeito constituído por bilhões de sujeitos. (Morin, 2002, p.224)

O autor indica que, da noção de autorreferência que caracteriza o sujeito biológico, deriva, imperiosamente, uma outra, a de exorreferência. Um ser só pode ser chamado de indivíduo em comparação com um outro. O indivíduo é constituído em sua relação com o meio, transformando-o e sendo transformado pelo próprio meio e por outros seres. O sujeito vivo é solitário, é o centro do seu próprio universo, mas, ao mesmo tempo, necessita e depende do mundo exterior, comunicando e cooperando com seus semelhantes. Quanto mais desenvolvido, maior a sua dependência dos outros seres. É, portanto, um sistema aberto e, ao mesmo tempo, diferenciado e fechado operacionalmente. A COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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sua identidade contém o mundo exterior, ou seja, o meio, os outros seres vivos e, fortuitamente, a sociedade em que vive. Dessa discussão emerge uma questão posta com propriedade pelo autor. Embora exista um abismo vertiginoso entre Escherichia coli e Homo Sapiens, parece-nos evidente que, do ponto de vista conceitual, a chave do indivíduo-sujeito bacteriano está no indivíduo-sujeito humano. Parece-nos evolutivamente lógico que a chave do indivíduo-sujeito humano esteja no indivíduo-sujeito bacteriano. Temos pois de tentar ligar essas duas proposições num anel produtor de conhecimento. (Morin, 2002, p.244)

Imunologia, individualidade e alteridade A capacidade de ação, de rearranjo do ser vivo em uma dinâmica de relações regulatórias, e a noção de identidade são consideradas na discussão dos fenômenos imunes, e não apenas como metáfora. Por exemplo, linfócitos são individualizados, diferentes uns dos outros e sua organização ocorre mediante relações, as quais constituem os processos imunológicos, sempre dependentes de interações celulares mais amplas (Vaz, Faria, 1993). O sistema imunológico é pensado como componente fundamental da identidade do corpo humano. Estudos empíricos e discussões filosóficas recentes procuram mostrar como a organização celular constitui uma unidade histórica e sistêmica. A especificidade dos eventos imunológicos não se dá ao acaso nem é predeterminada. A teoria imunológica não apresenta hegemonicamente esta visão. O sistema imune é, tradicionalmente, equiparado a um exército, cuja função é defender o organismo dos invasores. A metáfora militar sustenta a ideia de que o homem vive sob constante ameaça de inimigos invisíveis, num mundo perigoso e competitivo onde sobrevivem os mais aptos (Vaz, 2006). Para cada inimigo invasor, existiria um defensor específico (antígeno x anticorpo). Este raciocínio propõe que o organismo reconhece um estranho que lhe invade e a ele reage, defendendo-se. A atividade imunológica já estaria determinada e decorreria do contato com antígenos (Vaz et al., 2006). Uma outra perspectiva não se apoia nos modelos usuais de explicação a partir da estimulação/ resposta/regulação, do determinismo ou da casualidade do sistema imune (Vaz et al., 2006; Vaz, Faria, 1993; Vaz, Varela, 1978). Nela, o sistema imune é uma unidade coesa, que funciona em rede mediante interações permanentes e dinâmicas com o organismo. As ações sobre um dos componentes do sistema têm repercussões sobre outros componentes. O processo de funcionamento em rede do sistema imune não acontece de forma aleatória, e envolve aspectos fundamentais da atividade imunológica internos ao organismo e independentes da exposição a antígenos: o sistema imune não entra em contato com materiais externos ao corpo, mas sim está em contínuo contato com o corpo, inclusive quando o corpo é modificado pelo contato com materiais externos. Nessa maneira de ver, a discriminação próprio/estranho (self/nonself), o “estranhamento” que é a pedra fundamental da imunologia burnetiana, se torna um pseudo-problema, pois o sistema imune reage continuamente com o corpo e nunca reconhece materiais estranhos ao corpo. (Vaz, 2006, p.13)

Esta forma de pensar o sistema imune requer a compreensão de que a rede linfocitária age em sistema de cooperação, mas não a partir de eventos externos estranhos ao organismo. A atividade do sistema ocorre de forma harmonizada e interconectada ao organismo como um todo, muito antes de qualquer exposição a um antígeno. Vaz e Varela ilustram que os animais não são como tabula rasa, onde nada específico acontece até que antígenos apareçam como um “sinal para que o show comece” (Vaz, Varela, 1978, p.238).

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As propriedades antigênicas não são inerentes da molécula. Elas são definidas em referência a um organismo particular, onde a história imunológica precedente é importante. Não é, portanto, o que vem de fora que desencadeia o estranhamento. “Ruídos” ocorrem no organismo o tempo todo e o estranhamento não acontece quando da eventualidade de se ingerir um novo alimento ou aspirar um novo ar, ou quando os tecidos trocam suas células (Varela, 2001). A reação acontece quando algo que desencadeia o “ruído” não pode interagir com o que é próprio (“nonsense”). É o que ocorre, por exemplo, “quando a quantidade de antígenos é muito importante ou quando eles penetram muito rapidamente e mecanismos específicos resultam em uma resposta imunitária” (Varela, Cohen, 1989, p.205). Este é um ponto crucial diferente da teoria biológica vigente. A plasticidade do sistema imunológico é de natureza cooperativa (ou, como se quer referir nesse trabalho, se dá numa dinâmica de alteridade) que regula a adaptação ou a perturbação. As ações decorrentes destas operações dirigem o sistema a um novo estado, cujo resultado é a estabilidade (no caso da adaptação ao outro) ou a rejeição (em se tratando de uma perturbação maior por outrem). Em nenhuma parte se podem localizar mecanismos moleculares específicos. Eles ocorrem de forma cooperativa no sistema como um todo e dele em relação ao organismo. Deste ponto de vista, a identidade do sistema imunológico não é uma identidade defensiva. No sistema imune haveria uma dimensão essencial de domínio cognitivo macromolecular, capaz de manter e, certamente, definir a individualidade macromolecular de um organismo (Vaz, Varela, 1978). Esta dimensão definiria a própria identidade do corpo. Se o sistema só respondesse ao que lhe é externo, ou aos seus invasores, caso não houvesse invasor, ele encolheria (Varela, 2001). Mas, ele responde àquilo com o qual, em última instância, não pode interagir. O sistema imunológico afirma positivamente a identidade corporal: “Isto é o que queremos dizer quando falamos da afirmação positiva de uma identidade molecular: o que nós somos no domínio molecular, e isto que é nosso sistema imunitário, representam duas entidades em relação recíproca de co-evolução” (Vaz, Varela, 1978, p.205). Tais fenômenos visam, essencialmente, a auto-organização em rede “de um ser que se reconhece como si mesmo, se organiza para si mesmo e age para si mesmo” (Morin, 2002, p.177). A imunologia faz surgir o si e, com ele, a possibilidade de reunificar organismo e indivíduo, antes separados pela fisiologia que, para reconhecer a organização animal, concebe a corporeidade do organismo sem autonomia.

Considerações finais “Que a existência do mundo orgânico é necessária para a existência do corpo humano” (Jonas, 2004, p.70) parece óbvio. No entanto, apesar das recentes tentativas, ainda não se tem um conceito ou uma teoria consistente que explique esta relação. O desenvolvimento do ponto de vista biológico (e, também, psicológico, no caso do humano) é consequente a um processo incessante de inter-relações que levam à auto-organização, cujo resultado não é o retorno à situação anterior, mas estados mais complexos e duradouros de organização. Este estado é próprio da vida, que o procura de forma espontânea, “para lutar contra aquilo que constitui um obstáculo à sua manutenção e a seu desenvolvimento tomados como norma” (Canguilhem, 1990, p.96). Este estado é prolongado pelo ser humano através da medicina. A origem da medicina está na necessidade humana de terapêutica como um prolongamento do esforço da vida lutar imperativamente contra aquilo que a ameaça. A terapêutica, segundo Canguilhem (1990), é uma necessidade vital. A medicina seria como uma “técnica biológica exercida intencionalmente e mais ou menos racionalmente pelo homem”. Esta técnica prolonga impulsos vitais, sendo o próprio organismo “o primeiro dos médicos”; “a vida é a raiz de toda atividade técnica” (Canguilhem, 1990, p.100). Nesse sentido, é pertinente a recuperação do conceito de normatividade vital de Canguilhem como conceito orgânico: o conceito de normatividade vital, ao apontar um problema fundamental do

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conhecimento biológico, indica a necessidade de uma transformação da própria ciência da vida (Czeresnia, 2010). O comportamento humano, como o de qualquer organismo vivo, objetiva a preservação da integração e da integridade e, na sua totalidade, sofre influências inatas (como as neuro-hormonais) e do meio ambiente. A plasticidade humana, porém, é uma das grandes responsáveis pelo inusitado desenvolvimento do homem. Entre as espécies, esta flexibilidade e os recursos dos seres humanos para as complexas reciprocidades de adaptação e autoconservação são um fenômeno que os distingue dos demais. A reciprocidade exige a alteridade, isto é, o reconhecimento de outrem numa rede de relações que é constitutiva da cultura: O indivíduo não tem sentido fora deste retículo coletivo. De nada ele pode ter conhecimento se não utilizar esta rede coletiva, que tem os outros homens como termos necessários, sejam os antigos (sobre os quais se selecionou a linguagem), sejam os mais recentes e aos atuais (que formam e usam as linguagens efetivamente presentes como instrumento). Esta coletividade constituída, este “não poder prescindir dos outros” é um fato moral. Pertence solidariamente ao conhecimento humano e ao comportamento que ele implica. (Maturana, 2002, p.113)

Afirmar que o outro é imprescindível na constituição do indivíduo, sugere que a moralidade, a intersubjetividade e a empatia, princípios da alteridade, são o resultado de adaptações específicas para a vida social humana (Zahavi, 2001; Thompson, 2001; Katz, 2000), variando entre grupos, épocas e ambientes. Especialmente nos primeiros estágios da evolução humana, esse processo teve papel preponderante, organizando o ambiente humano pela aprendizagem social e pela evolução cultural. Como a maior parte dos seres vivos, o homem vive em comunidades desde os seus primórdios. A intersubjetividade não se encontra em uma ontologia já estabelecida, mas na interface das regiões do self, do outro e do mundo. “Estas três regiões iluminam-se reciprocamente e só podem ser compreendidas na sua interconexão” (Mendonça, 2005, p.26). Esta interconexão vem sendo buscada por pesquisadores contemporâneos. Os fenômenos biológicos humanos não podem ser vistos separadamente da sua história onto e filogenética. Os seres vivos, de alguma forma, estão conectados desde a origem da vida. O organismo humano constituiu-se na relação com outros seres vivos que, por sua vez, resultaram de interações com outros organismos e com o meio. Esta relação se baseia mais em mecanismos de cooperação e coevolução do que de competição. Conceber a alteridade biológica enquanto natureza peculiar dos seres vivos pode apontar para uma forma diferente e mais integrada de compreender o corpo humano e as questões éticas relativas ao vivo. Problemas existentes nos modelos de assistência a saúde estão vinculados à configuração hegemônica do conhecimento biológico. Epistemologicamente, vigora a dualidade que dissocia as dimensões psíquica e somática; o corpo da mente. Nas práticas de saúde estruturadas com base nessa dualidade, tende a prevalecer, também, a dissociação entre assistência e realidades sociais, culturais e afetivas. As tentativas de reverter essa tendência esbarram em um modelo científico poderoso, o qual, por mais contradições que gere, apresenta a força de ser operativo e utilitário (Czeresnia, 2010). A busca de transformar a relação com o conhecimento e introduzir tecnologias que abram espaço para novas formas de conceber o cuidado em saúde, inclui o esforço de pensar a própria constituição da ideia de organismo. Daí a importância de se ampliar a discussão sobre o conceito de alteridade biológica e de se afirmar valor como atributo orgânico.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.

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artigos

SOARES, T. C.; CZERESNIA, D.

SOARES, T.C.; CZERESNIA, D. Biología, subjetividad y alteridad. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.53-63, jan./mar. 2011. Este artículo tiene la finalidad de presentar y discutir el concepto de alteridad biológica. La cuestión de la alteridad, del punto de vista humano, se expresa más allá de la dimensión planteada por la biología; pero la facultad de realizar escogimientos conscientes y de constituirse en la relación con el otro tendría una raíz en la biología y estaría inscrita en la existencia de todo ser viviente. Estudios recientes de la biología y de la filosofía apuntan para nuevas formas de pensar la relación entre los seres vivientes del punto de vista ontogénico y co-evolutivo. La condición humana es anteriormente biológica. Comprender la alteridad como naturaleza propia de los seres vivientes puede apuntar una forma integrada y diferente de comprender el cuerpo humano y las cuestiones éticas relativas al viviente y a las prácticas en salud.

Palabras clave: Biología. Individuación. Subjetividad. Alteridad. Co-evolución. Recebido em 23/11/09. Aprovado em 24/10/10.

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Homens e a prevenção da aids: análise da produção do conhecimento da área da saúde

Lúcia Emilia Figueiredo de Sousa Rebello1 Romeu Gomes2 Alberto Carneiro Barbosa de Souza3

REBELLO, L.E.F.S.; GOMES, R.; SOUZA, A.C.B. Men and AIDS prevention: analysis on knowledge production within the field of healthcare. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.67-78, jan./mar. 2011. The involvement of men in AIDS prevention has been one of the major worldwide challenges. In seeking support for facing this challenge, this study analyzed healthcare knowledge production regarding AIDS prevention, focusing on men. The method was based on a critical review of scientific articles published between 1997 and 2009 that were accessed in the Virtual Health Library. The analytical corpus consisted of 25 articles and was worked on from a qualitative perspective, prioritizing the interpretation of meanings from the central ideas present in the set of literature analyzed. Three themes were highlighted as results from the analysis: representations of AIDS; potentials and limits of primary prevention information; and condoms as central players within prevention. It was concluded that scientific production on this subject imposes a major challenge regarding prevention: i.e. the challenge of transforming social and cultural characteristics that boost vulnerability to HIV transmission.

Keywords: AIDS. Prevention. Control. Men. Men’s healthcare.

O envolvimento de homens na prevenção da aids tem sido um dos grandes desafios mundiais. Na busca de subsídios para o enfrentamento desse desafio, este estudo analisa a produção do conhecimento da saúde sobre prevenção da aids, voltada para homens. O método ancora-se numa revisão crítica de artigos científicos, publicados no período de 1997 a 2009, acessados na Biblioteca Virtual em Saúde. O corpo analítico, constituído de 25 artigos, foi trabalhado numa perspectiva qualitativa, priorizando-se a interpretação dos sentidos das ideias centrais presentes no conjunto da literatura analisado. Como resultados da análise destacam-se três temas: representações da aids; potencialidades e limites da informação na prevenção primária, e o preservativo como personagem central da prevenção. Conclui-se que a produção científica acerca do assunto impõe um grande desafio da prevenção que é o de transformar aspectos culturais e sociais que potencializam a vulnerabilidade à transmissão do HIV.

Palavras-chave: Aids. Prevenção. Controle. Homens. Saúde do homem.

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1,3 Departamento de Ensino, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz). Rua Monsenhor Jerônimo, 400, apto. 201. Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.750-110. rebello.lucia@gmail.com 2 IFF/Fiocruz.

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HOMENS E A PREVENÇÃO DA AIDS: ...

Introdução A aids ainda é um desafio em saúde. Segundo o relatório anual do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (UNAIDS, 2007), estima-se que haja 33,2 milhões de pessoas vivendo com HIV em todo o mundo. Entre os adultos (15 a 49 anos), 15,4 milhões são mulheres e 12,9 milhões homens. Os demais casos (2,5 milhões) correspondem a crianças. O relatório aponta, ainda, que a área mais afetada e com maior número de óbitos ainda é a África Subsaariana, com aproximadamente dois terços do total mundial (22,5 milhões de pessoas com HIV). O maior número de casos é de mulheres (16,9 milhões). Nesta região também se concentra o maior número de mortes pela doença (76%). Entre as outras áreas onde o número de casos é significativo, estão: o sul e sudeste da Ásia (4,0 milhões), a Europa Oriental, a Ásia central, onde o número de pessoas infectadas tem aumentado, passando de 163 mil, em 2001, para 1,6 milhões em 2007, e a América Latina (1,6 milhões), onde a epidemia permanece estável. No Brasil, de 1980 a junho de 2009, foram identificados 356.427 (65,4%) casos de aids no sexo masculino e 188.396 (34,6%) no sexo feminino. Em termos de participação de homens e mulheres, vem acontecendo uma mudança no conjunto dos dados. Em 1986, havia 15 casos masculinos da doença para um feminino. A partir de 2002, vem havendo uma estabilização dessa razão de sexo de 1,5 casos em homens para um caso em mulheres (Brasil, 2009). Em termos de categoria de exposição, vem se observando o aumento dos casos entre heterossexuais. Em 1996, o percentual da categoria heterossexual em relação ao total de casos era de 22,5%, passando para 44,2% em 2005. Nesse mesmo ano, observou-se que a transmissão heterossexual era responsável por 94,5% dos casos femininos (Sociedade Brasileira de Infectologia - SBI, 2006). Em 2007, no sexo masculino, a transmissão entre os heterossexuais correspondia a 45,1% dos casos, enquanto entre as mulheres correspondia a 96,9% (Brasil, 2009). Esses dados reforçam a necessidade de se considerar a participação dos homens, direta ou indireta, na infecção por HIV, mesmo levando-se em conta a crescente feminilização da aids. O programa das Nações Unidas voltado para o HIV/aids, em campanha mundial de 2001, enfatizava a necessidade de se focalizarem os homens nas campanhas de prevenção contra a aids. Dentre as razões para essa opção, destacam-se as seguintes: o comportamento de homens tanto pode colocá-los em risco como as mulheres de contrair o HIV; a saúde sexual masculina tem recebido uma atenção inadequada e os homens devem considerar o impacto de seu comportamento sexual em seus/suas parceiros/as e nas crianças (UNAIDS, 2001). Essas considerações apontam para a necessidade de se investir mais em ações preventivas voltadas para segmentos masculinos. O envolvimento desses segmentos poderá assegurar uma prevenção mais efetiva, uma vez que, em várias circunstâncias, são os homens que podem fazer a diferença em se adotarem ou não medidas preventivas contra a aids. Para que se possa avançar no campo dessa prevenção, faz-se necessário rever o que mais recentemente se tem produzido em termos de conhecimento acerca do assunto, mapeando-se os limites e os êxitos do envolvimento de segmentos masculinos em ações preventivas. A partir dessa perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo analisar a produção do conhecimento da saúde sobre prevenção da aids, voltada para homens. Em termos de marcos teórico-conceituais, neste estudo, são adotados os seguintes conceitos: prevenção primária; masculinidade, e representação. Como prevenção primária entende-se a prática específica para prevenção de doenças ou distúrbios mentais em indivíduos ou populações suscetíveis, incluindo-se, nestas práticas, a promoção de saúde e a prevenção/controle de doenças transmissíveis (Biblioteca Virtual de Saúde - BVS, s/d). A masculinidade – situada no âmbito do gênero – define-se por “um conjunto de atributos, valores, funções e condutas que se espera que um homem tenha numa determinada cultura. Esses atributos diferenciam em relação ao tempo e, especificamente, nas classes e nos segmentos sociais” (Gomes, 2008, p.70). Numa sociedade, podem coexistir diferentes modelos de masculinidade, assim como de feminilidade, sendo que um deles pode ser dominante ou hegemônico. Segundo Connel (2002; 1997), a masculinidade hegemônica se refere à representação cultural da masculinidade mais influente. Ela se constitui a partir de padrões aceitos para que sejam asseguradas a posição dominante de homens e a subordinação de mulheres, não se referindo necessariamente a pessoas mais poderosas, mas sim a um 68

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tipo de masculinidade tida como exemplar. Ainda, essa masculinidade não pode ser vista isoladamente, mas como aspecto de uma estrutura maior. Nesse sentido, além da masculinidade, deve-se levar em conta a classe social e a raça/etnia. A representação, neste estudo, é entendida com base na seguinte definição de Laplantine (2001, p.242): “trata-se de um saber que os indivíduos de uma sociedade ou de um grupo social elaboram acerca de um segmento de sua existência ou de toda sua existência. É uma interpretação que se organiza em relação estreita com o social e que se torna, para aqueles que a ela aderem, a própria realidade”. A representação não se reduz à cognição, mas também se constitui num instrumento de ação, envolvendo as dimensões afetiva e irracional.

Material e método Um dos caminhos para se realizar a análise da produção de conhecimento acerca de uma temática é a revisão de artigos científicos publicados. Nesse sentido, foi realizada pesquisa bibliográfica na BVS (www.bireme.br), utilizando-se os descritores aids, homens, saúde do homem e o qualificador (aspecto) prevenção e controle. Foram identificados 12 artigos, sendo oito na base de dados Medline e quatro na base de dados Lilacs. Foi realizada outra busca de artigos na biblioteca científica eletrônica Scielo, onde foram identificados 13 artigos. Finalizando o levantamento, nova busca foi realizada a partir do método integrado na BVS, utilizando-se a expressão ‘prevenção de HIV/aids’ e os limites (critérios de inclusão) ‘masculino’ e ‘prevenção primária’. Por meio desta pesquisa, foram identificados três artigos. Na seleção dos artigos, obedeceu-se a um dos recortes temporais propostos pela base de dados Medline, o período de 1997 a 2009. Assim, excluíram-se três artigos do total de 28, identificados nas diferentes bases. O último acesso foi em agosto de 2009 e, a partir deste, trabalhou-se com 25 artigos em texto completo. Esse corpo de artigos foi submetido a uma primeira leitura, destinada a compor uma caracterização do conjunto da produção quanto ao: ano de publicação, foco geográfico do estudo, objetivo principal, método utilizado - servindo de cenário para análise da produção. Ainda nesse primeiro momento, buscou-se identificar qual o nível de prevenção tratado pelos estudos publicados. A análise dos artigos realizou-se a partir de uma adaptação da técnica de análise de conteúdo (Gomes 2007), modalidade temática (Bardin, 1979). Partiu-se da identificação das ideias centrais dos artigos, passando-se pela interpretação dos sentidos subjacentes às ideias e pelo agrupamento desses sentidos em núcleos, chegando-se à discussão de temas – como classificações mais amplas. Assim, basicamente, percorreu a seguinte trajetória: (a) leitura exaustiva dos artigos destinada a uma compreensão global e à caracterização dos estudos; (b) identificação das ideias centrais de cada artigo; (c) classificação das ideias em torno de núcleos de sentido; (d) comparação entre os diferentes núcleos de sentido presentes nos artigos estudados; (e) classificação dos núcleos de sentido em eixos de discussão mais abrangentes (temas), e (f) redação de síntese interpretativa por tema.

Apresentação de discussão dos resultados Caracterização dos artigos No conjunto dos 25 artigos analisados (Quadro 1), observa-se que: (a) a maior parte da produção (15 artigos) foi publicada no período de 2000 a 2002; (b) 15 artigos têm como foco a realidade da América do Sul e, destes, 13 são específicos da realidade brasileira; (c) os métodos dos estudos tanto utilizam a abordagem quantitativa, quanto a qualitativa, e (d) Brasil e EUA predominam como local de publicação. Nesse quadro, chama a atenção o fato de a África ser o foco central em apenas três artigos, apesar de ser a região que mais é afetada pela aids. Observa-se, ainda, que, em relação aos homens, as propostas de medidas preventivas têm, como foco, a mudança de comportamento, tendo em vista que, de um modo geral, estes têm maior envolvimento em comportamentos de riscos, como a relação sexual sem o uso de preservativo e o compartilhamento de seringas e agulhas no uso de drogas injetáveis (Brasil, s/d). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Quadro 1. Caracterização das fontes estudadas Ano de publicação 2009 2008

2007 2006 2004 2003 2002

2001

2000

1998

Autores

Método

Foco geográfico

Gondim et al. Ferreira Hernández-Rosete et al. Gubert e Madureira Madureira e Tentini Granados-Cosme, Nasaya e Brambila Vilela e Doreto Khan et al. Alves Antunes et al. Guerriero, Ayres e Hearst Santos et al. Silva et al. Villarinho et al. Barros et al. Dodoo e Ampofo Miller, Zulu e Watkins Saeed Takyl Agleton e Mazin Bradner, Ku e Lindberg DeLamater, Wagstaff e Havens Gondim e Kerr-Pontes Nurs Stand Ventura-Filipe e Newman

Qualitativo Quantitativo Qualitativo Quantitativo Qualitativo Quantitativo Qualitativo Qualitativo Qualitativo Quantitativo Qualitativo Quantitativo Quali/Quanti Quali/Quanti Quali/Quanti Quantitativo Quantitativo Qualitativo Qualitativo Qualitativo Quantitativo Qualitativo Quantitativo Qualitativo Quantitativo

Brasil Brasil México Brasil Brasil México Brasil Bangladesh Brasil Brasil Brasil Brasil Brasil Brasil Equador Kenya Malawi Paquistão Gana Região das Américas EUA EUA Brasil EUA Brasil

Local de publicação Brasil Brasil Brasil Brasil Brasil Brasil Brasil Austrália Brasil Brasil Brasil Brasil Brasil Brasil EUA EUA EUA EUA EUA EUA EUA EUA Brasil EUA Brasil

Temas da prevenção da aids A análise das ideias centrais dos artigos, agrupadas em torno de núcleos de sentido, aponta para três temas que podem sintetizar a produção estudada em termos de prevenção da transmissão do HIV: representações da aids, potencialidades e limites da informação na prevenção primária, e o preservativo como personagem central da prevenção. Tais temas, embora possam ser entendidos como classificações que estruturam a discussão, necessariamente não seguem o princípio de exclusão mútua. Portanto, devem ser entendidos como prismas da discussão dos sentidos atribuídos às ideias que, em determinados momentos, podem sobrepor-se.

Representações da aids A aids assume um lugar hegemônico entre as doenças sexualmente transmissíveis (DST), seja pelo seu poder de disseminação, seja por sua letalidade (Alves, 2003; Santos et al., 2002; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Barros et al., 2001). Nas discussões propostas pelos autores estudados, podem ser identificadas algumas representações da aids que revelam o imaginário social acerca dessa doença. Algumas dessas representações ainda trazem resquícios das primeiras impressões sobre a epidemia. Outras ressignificam-na com olhares, em parte, influenciados pelo tratamento que a doença foi 70

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artigos

recebendo nos últimos dez anos (Ferreira, 2008; Hernández-Rosete et al., 2008; Madureira, Trentini, 2008; Granados-Cosme, Nasaya, Brambila, 2007; Vilela, Doreto, 2006; Alves, 2003; Santos et al., 2002; Silva et al., 2002; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Villarinho et al., 2002; Barros et al., 2001; Dodoo, Ampofo, 2001; Agleton, Mazin, 2000). As doenças infecciosas sexualmente transmissíveis sempre foram estigmatizadas e a aids vem reforçando esse processo de estigmatização. Assim, a aids tem sido representada, no senso comum, como ‘doença dos outros’. Em geral, os outros são as pessoas que têm comportamentos considerados sexualmente desviantes, como: homossexuais, usuários de drogas injetáveis, prostitutas (Alves, 2003; Santos et al., 2002; Silva et al., 2002; Villarinho et al., 2002; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Barros et al., 2001). Também podem ser classificados como ‘outros’ os desinformados, as pessoas com precariedade de recursos financeiros e sociais, bem como os demais grupos considerados como minorias vulneráveis (Ferreira, 2008, Hernández-Rosete et al., 2008; Santos et al., 2002; Villarinho et al., 2002; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Barros et al., 2001). Outra crença comum é a ideia de que a aids está associada à irresponsabilidade e impulsividade em relação à sexualidade. Nesse sentido, os homens jovens são apontados como mais vulneráveis do que os homens adultos (Vilela, Doreto, 2006; Villarinho et al., 2002; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002). A aids também é representada como punição/castigo (Granados-Cosme, Nasaya, Brambila, 2007; Vilela, Doreto, 2006; Barros et al., 2001; Dodoo, Ampofo, 2001; Agleton, Mazin, 2000). Vilela e Doreto (2006) destacam que, desde a era cristã, a sexualidade é tida como algo potencialmente perigoso que, portanto, exige controle e traz castigos para quem infringe suas regras. Dodoo e Ampofo (2001), em seu estudo realizado no Quênia, identificaram a existência da ideia de que um poder divino livraria o casal heterossexual de doenças sexualmente transmitidas, pois as mulheres casadas em sistema monogâmico afirmavam convictamente que não havia a necessidade do uso de preservativos com seus parceiros, alegando confiança mútua e, caso houvesse traição, este poder divino agiria para salvá-las de uma possível infecção. A aids como morte anunciada também aparece nas representações apresentadas pelos autores estudados (Alves, 2003; Santos et al., 2002; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Barros et al., 2001; Silva et al., 2002; Ventura-Filipe, Newman, 1998). Essa associação, em parte, reforça-se pelo fato de, no final dos anos oitenta e meados dos noventa do século XX, essa doença ter sido responsável por significativas perdas de vidas, aparecendo como a principal causa de mortalidade para a população entre 15 e 49 anos, em alguns países, incluindo o Brasil (Santos et al., 2002; Silva et al., 2002). Com o avanço em relação ao tratamento terapêutico e clínico da aids, a imagem do portador doente e fraco, em segmentos de algumas sociedades, foi sendo substituída pela imagem do portador saudável. Atualmente, essa nova representação, se, por um lado, reduz o preconceito em relação ao indivíduo soro positivo, por outro, constitui um desafio à prevenção, tendo em vista que alimenta uma crença, presente no senso comum, de que se pode identificar se o parceiro é ou não um possível transmissor do HIV por meio de sua aparência física (Ferreira, 2008; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Dodoo, Ampofo, 2001; Agleton, Mazin, 2000). Há momentos em que as representações sobre a aids parecem ultrapassar as fronteiras de gênero, estruturando pensamentos e ações, tanto de homens quanto de mulheres, como se fossem algo que está acima do ser humano em geral. Em outros momentos, elas demarcam diferenças de gênero, podendo estruturar marcas identitárias do portador do HIV/aids ou do transmissor – real ou fictício – que se diferencia pelo fato de ser homem ou ser mulher. Essas representações não podem ser desconsideradas, ao se discutir a prevenção da aids, uma vez que o conhecimento tido como científico concorre com o senso comum sobre a doença. São modos particulares de apreensão do real, mesclados com uma tonalidade afetiva e uma carga irracional que se tornam a própria realidade para aqueles que aderem a essas representações (Laplantine, 2001). Assim, as pessoas, consciente ou inconscientemente, podem: lançar mão desse senso comum para lidar com a prevenção contra essa doença; não se prevenir por negá-la; perceber-se imune a ela, ou, ainda, considerá-la uma fatalidade, em relação à qual nada cabe a ser feito.

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Potencialidades e limites da informação na prevenção primária Em geral, os autores consideram a informação como um dos requisitos para a viabilização da prevenção primária da transmissão do HIV. Alguns deles destacam a disseminação maciça das informações sobre HIV/aids como um dos componentes para que os programas sobre esse assunto sejam exitosos (Agleton, Mazin, 2000). Outros reforçam a sua importância porque, apesar das inúmeras campanhas de prevenção, ainda há pessoas que apresentam dúvidas sobre formas de transmissão, prevenção do HIV e quanto ao uso adequado do preservativo (Vilela, Doreto, 2006; Khan et al., 2004; Silva et al., 2002; Nurs Stand, 2000; Delamater, Wagstaff, Havens, 2000; Gondim, Kerr-Pontes, 2000; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Saeed, 2001; Villarinho et al., 2002; Miller, Zulu, Watkins, 2001). Apesar de haver consenso sobre a importância da informação, alguns autores relativizam sua efetividade na prevenção da aids. A relativização ocorre perante o fato de essa medida, em si, não assegurar a adoção de condutas sexuais protegidas de uma possível contaminação por HIV e pela constatação de que nem sempre a produção ou veiculação das informações exibem padrões de qualidade que lhes garantam o êxito. Os estudos que investigaram as fontes e os veículos de informações constataram que a mídia, sobretudo a televisão, aparece em primeiro lugar (Bradner, Ku, Lindberg, 2000; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Villarinho et al., 2002). Bradner, Ku e Lindberg (2000), por exemplo, verificaram que 96% dos sujeitos de sua pesquisa relataram ter contato com a prevenção da aids e das DST por meio da mídia, e, desses, 94% especificaram que foi a televisão o principal meio midiático. Em relação à qualidade das informações assimiladas pelos sujeitos que responderam às pesquisas, alguns autores verificaram tanto a sua inconsistência quanto a sua incompletude (Alves, 2003; Villarinho et al., 2002). Sobre isso se destaca o estudo de Villarinho et al. (2002), que concluíram que apenas 1% de seus entrevistados conseguiu apontar todas as formas de infecção por HIV. As demais formas citadas por esses entrevistados foram: relação sexual (36%), sexo e sangue (24%), e sexo e drogas injetáveis (16,5%). O estudo também concluiu que menos de 1% dos entrevistados não conseguiu apontar qualquer meio de transmissão. Há autores, no conjunto das fontes estudadas, que assinalam especificidades masculinas relacionadas à promoção das informações sobre HIV/aids. Estudo longitudinal com desenho caso-controle (Antunes et al., 2002) verificou que os rapazes que tinham, inicialmente, uma atitude de “saber tudo sobre sexo” e “posso tudo”, seis meses após terem participado de oficinas de sexo seguro aumentaram sua percepção de que não eram tão “sabidos” e tão invulneráveis. Ao longo dos anos, o conhecimento e a percepção do risco da população brasileira sobre HIV/aids vêm mudando. Ferreira (2008) comparou duas pesquisas similares com amostras da população brasileira, sendo uma realizada em 1998 e a outra em 2005. Nesse estudo, constatou-se que houve um aumento de brasileiros bem informados em relação ao nível global de informações sobre HIV/aids, passando de 51,7% (1998) para 56,2% (2005), bem como especificamente em relação ao uso do preservativo, passando de 60,2% (1998) para 90,2% (2005). Em termos de diferenças entre os sexos, concluiu-se que houve um aumento do nível de informação dos homens no período, igualando-se ao nível de informações das mulheres. Alguns autores discutem estratégias no sentido de tornar as informações mais efetivas, tais como: adequação das campanhas de prevenção aos universos culturais da população-alvo que se quer atingir (Alves, 2003; Dodoo, Ampofo, 2001; Miller, Zulu, Watkins, 2001; Takyl, 2001; Delamater, Wagstaff, Havens, 2000); promoção de oficinas, para jovens, sobre sexo seguro, para que, além de tratar das informações, discuta-se a dinâmica dos relacionamentos e o seu significado em diversos contextos afetivos (Antunes et al. 2002); e desenvolvimento de programas de educação em saúde e sexualidade para jovens (Granado-Cosme, Nasaya, Brambila, 2007). Os autores que discutem o fato de homens, mesmo tendo informações sobre as formas de prevenção do HIV/aids, se envolverem em relações sexuais desprotegidas, basicamente, problematizam o uso do preservativo masculino. O avanço dessa discussão ocorre na medida em que não só se leve em conta o papel dessa medida preventiva em si, mas que se consiga articular esse papel com os sentidos que são associados ao preservativo. 72

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O preservativo como o personagem central da prevenção No cenário da produção científica sobre a prevenção primária da transmissão do HIV, o preservativo masculino configura-se como personagem central. Agleton e Mazin (2000) avaliam a possibilidade de as políticas de prevenção da aids obterem êxito quando – no conjunto de suas medidas – assegurarem o amplo acesso ao preservativo. Em torno dele, ainda que haja um consenso sobre sua eficácia preventiva, os autores problematizam a aceitabilidade do seu uso, sobretudo por parte dos homens. Grande parte dos estudos, de forma implícita ou explícita, considera que isso se relaciona – direta ou indiretamente – com crenças que são produzidas ou reproduzidas majoritariamente pelos segmentos masculinos de diferentes sociedades. Caminhando nessa direção, os estudos destacam, especialmente, barreiras influenciadas pelas noções de conjugalidade e nupcialidade, e representações sobre o preservativo e seu uso. Para Hernandez-Rosete et al. (2008), as noções de conjugalidade e nupcialidade determinam comportamentos sexuais que, de um modo geral, envolvem relações de poder assimétricas, sustentadas por ideologias de gênero. Nestas relações o poder de negociação da mulher quanto ao uso do preservativo é praticamente nulo, não cabendo à esposa solicitá-lo, tendo em vista que deve confiar no marido. O homem, por sua vez, teme propor o uso regular do preservativo na relação com a esposa, pois isso pode levá-la a questionar a sua fidelidade e a imagem de ‘bom homem’, pressupondo que há uma associação entre preservativo e sexo ilícito (Madureira, Trentini, 2008; Villela, Doreto, 2006; Khan et al., 2004; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Silva et al., 2002; Villarinho et al., 2002; Antunes et al., 2002; Miller, Zulu, Watkins, 2001). Nesse sentido, certos modelos culturais de gênero também podem comprometer o uso do preservativo, por meio de crenças que se estruturam a partir de sentidos atribuídos às sexualidades dos homens e das mulheres. Uma das crenças é a de que tal uso pode fazer mal, tanto aos homens como às mulheres, porque, no caso deles, “retém algo que deveria ser solto e jogado no útero da mulher”, e, no caso delas, porque deixam “seu útero seco, quando deveria ser molhado pelo sêmen do homem” (Alves, 2003, p.437). O fato de alguns homens acreditarem que as mulheres não são capazes de transmitir o HIV para eles também pode impedi-los de usar o preservativo nas relações vaginais (Gondim, Kerr-Pontes, 2000). Há, ainda, homens que não usam o preservativo para demonstrarem que não temem lidar com o risco e, com isso, ter a sua masculinidade atestada pelos outros (Gubert, Madureira, 2008). Nesse cenário de modelos de gênero, a infidelidade masculina pode ser aceita pelo fato de a sexualidade do homem ser concebida como uma necessidade que precisa ser satisfeita imediatamente (Guerriero et al., 2002). Sendo assim, o tempo prolongado de permanência fora de casa, sobretudo entre homens que viajam sem suas parceiras, justificaria possíveis relações extraconjugais, inclusive com profissionais do sexo, sem que sejam tomadas medidas preventivas e banalizando-se o risco de transmissão do HIV. Este é apontado como um dos motivos da ruralização da aids em países como o México e o Brasil (Hernandez-Rosete et al., 2008; Alves, 2003; Villarinho et al., 2002). Retomando a assimetria de gênero relacionada ao uso do preservativo, destaca-se um estudo etnográfico realizado em comunidade indígena rural do México, em que os homens migram para garantir o sustento da família (Hernandez-Rosete et al., 2008). Em geral, esses migrantes, ao serem influenciados por obsessiva preocupação com o adultério feminino, veem a gravidez e a criança como uma forma de controlar as esposas. Outros fazem vasectomia, sem o conhecimento de suas mulheres, como estratégia para detectar o adultério feminino. Em nenhuma dessas duas situações, o uso do preservativo é admitido por parte dos homens. Por outro lado, algumas mulheres dessa comunidade reconhecem que o uso do preservativo poderia protegê-las contra a aids, já que seus maridos podem ter mantido relações sexuais sem proteção durante a sua estadia nos Estados Unidos. No entanto, o posicionamento dessas mulheres não consegue prevalecer frente aos sentidos atribuídos ao preservativo pelos seus parceiros. Perante essa realidade cultural e a necessidade de se buscarem caminhos que tornem o trabalho de prevenção mais eficiente, Silva et al. (2002) apontam duas ideias presentes no senso comum que devem ser exploradas: a ideia de que o preservativo não combina com casamento e de que as relações extraconjugais fazem parte da realidade de vida de homens casados. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Nesse sentido, os autores observam que o uso de preservativo masculino nas relações estáveis leva a uma situação de desconfiança entre o casal por funcionar como um elemento questionador da fidelidade, sentimento importante, definidor e idealizado do casamento. Entre a maioria das mulheres casadas, o casamento é concebido com base no companheirismo e na fidelidade, mesmo que esteja presente no discurso das mulheres a ideia de que os homens traem (Alves, 2003). Entre os homens, o sexo é o único interesse válido nas relações extraconjugais, o que não “fere” os sentimentos em relação à esposa e não pode interferir na relação familiar (Guerriero, Ayres, Hearst, 2002). Sendo assim, muitos homens evitam usar preservativo nas suas relações sexuais com as esposas para preservar a imagem de um “bom homem” (Khan et al., 2004). Associado à estabilidade dos relacionamentos e à confiança, outro aspecto que fortalece a ideia de não uso do preservativo é a intimidade entre parceiros. Nesse sentido, o uso do preservativo pode ser considerado dispensável em casa - com a esposa - e em outros tipos de relacionamentos envolvendo compromisso efetivo (Alves, 2003; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Villarinho et al., 2002; Antunes et al., 2002), sendo aceito quando os/as parceiros/as são desconhecidos/as ou não são fixos/as (Alves, 2003; Gilbert, Madureira, 2008; Gondim, Kerr-Pontes, 2000; Gondim et al., 2009; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Silva et al., 2002; Ventura-Filipe, Newman, 1998; Vilela, Doreto, 2006). Silva et al. (2002) verificaram que o uso do preservativo foi consistente com parceiras casuais (73%) e foi inconsistente com parceiras fixas (27%). Vilela e Doreto (2006) também concluíram que esse uso era maior com parceiras casuais (56,6%) do que com as fixas (6,0%). Gondim et al. (2009) observam que a literatura internacional sugere que, quando o relacionamento é percebido como seguro, o preservativo não é levado em consideração. Isso pode acontecer mesmo nos casos em que esse relacionamento ocorra por um curto período com um/a parceiro/a estável e seja seguido por outro relacionamento com as mesmas características do anterior. Os autores estudados apontam, ainda, que em certas práticas sexuais, como no sexo oral e anal, tidas como de maior intimidade entre os parceiros, o uso da camisinha como medida preventiva também é, na maioria das vezes, abolido, seja pela excitação com o sexo desprotegido, seja por associar preservativo à perda de sensibilidade e, consequentemente, de prazer e da ereção. Ainda que entre homens e mulheres este seja um aspecto relevante, entre homens que fazem sexo com homens, no cenário da intimidade, a satisfação experimentada no sexo anal associa-se à identidade dos sujeitos, e o preservativo pode representar uma frustração, devendo este componente simbólico ser levado em conta nas intervenções preventivas (Gondim et al., 2009; Guerriero, Ayres, Hearst, 2002; Antunes et al., 2002; Gondim, Kerr-Pontes, 2000). Entre as crenças que dificultam o uso do preservativo, destaca-se a de que este uso seja pecaminoso e, por isso, afaste as pessoas de Deus. A relação entre o uso do preservativo e o pecado é mais presente em locais onde a Igreja Católica tem força como formadora de opinião (Granados-Cosme, Nasaya, Brambila, 2007; Saeed, 2001; Agleton, Mazin, 2000). Em síntese, os estudos são consensuais quanto ao fato de que – apesar de o preservativo ser visto como algo eficaz na prevenção da aids – o seu uso nem sempre ocorre por conta de inúmeros motivos que são estruturados a partir de modelos de crenças presentes no imaginário social. Caminhando nessa lógica, com base em Gubert e Madureira (2008), faz-se necessário observar que a verbalização de opiniões dos sujeitos que participam das pesquisas nem sempre se liga às suas experiências pessoais, mas, em geral, absorve crenças que são difundidas sobre o preservativo.

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Considerações finais A produção científica sobre a prevenção da aids vem focalizando os homens como um dos personagens centrais, sobretudo os jovens. As conclusões dos estudos que se inserem nesse cenário apontam que, mais do que considerar os homens apenas como uma variável de sexo nos perfis epidemiológicos relacionados ao HIV/aids, faz-se necessário focalizar os homens à luz dos modelos da masculinidade hegemônica. Assim, por exemplo, ao se tratar do preservativo masculino, além de considerá-lo como potente medida de prevenção da aids, deve-se levar em conta que esse artefato, simbolicamente, pode comprometer atributos hegemônicos do que é ser homem. Os estudos analisados atestam a necessidade de se buscarem conhecimentos sobre culturas sexuais que possam contribuir para o planejamento e implementação de programas de prevenção de DST/aids. Se, nos estudos que se reportam à realidade internacional, destaca-se a necessidade de se focalizar a pluralidade linguística, no âmbito nacional, são as peculiaridades regionais que merecem atenção desses programas. No que se refere aos homens jovens, as ações educativas despontam como medidas que podem se aliar à prevenção primária contra a transmissão do HIV. Essas ações – sejam no formato de oficinas, sejam desenhadas como programas escolares, sejam ainda viabilizadas a partir da formação de multiplicadores – poderão ser mais exitosas na medida em que conseguirem se deslocar da simples transmissão de informações para as discussões que problematizam as medidas preventivas à luz das relações de gênero. Os achados dos estudos também apontam para a necessidade de se aprofundarem mais as discussões sobre a prevenção, de modo a não reduzi-la à instância do se evitar a doença, mas ressignificá-la como caminho de promoção de interações afetivo-sexuais mais saudáveis. Nesse sentido, além de se trabalhar a prevenção da transmissão do HIV, deve-se viabilizar o prazer, assegurando-se os direitos sexuais e reprodutivos das pessoas, de forma equânime. Todos estes caminhos reforçam a necessidade de se inserirem os homens nas discussões sobre prevenção da transmissão do HIV, especialmente buscando compreender os significados atribuídos por eles a essa prevenção. Por último, conclui-se que a produção científica acerca do assunto impõe um grande desafio da prevenção, que é o de transformar aspectos culturais e sociais que potencializam a vulnerabilidade à transmissão do HIV. Entretanto, essa conclusão deve ser vista mais do que como um ponto de chegada. Deve ser entendida como um ponto de partida para outras investigações para que se avance no enfrentamento desse desafio.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas da produção do manuscrito. Referências AGLETON, P.; MAZIN, R. Ya se dispone de antirretrovíricos contra el VIH y el sida: ¿Es necesaria ahora La prevención? Rev. Panam. Salud Publica, v.7, n.3, p.179-204, 2000. ALVES, M.F.P. Sexualidade e prevenção de DST/AIDS: representações sociais de homens rurais de um município da zona da mata pernambucana, Brasil. Cad. Saude Publica, v.19, n.2, p.429-39, 2003. ANTUNES, M.C. et al. Diferenças na prevenção da Aids entre homens e mulheres jovens de escolas públicas em São Paulo, SP. Rev. Saude Publica, v.36, n.4, p.88-95, 2002. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.

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REBELLO, L.E.F.S.; GOMES, R.; SOUZA, A.C.B. Hombres y la prevención del sida: análisis de la producción del conocimiento del área de la salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.67-78, jan./mar. 2011. Implicar a los hombres en la prevención del sida constituye uno de los grandes desafíos mundiales. En busca de subsídios para afrontarlo, este estudio analiza la producción de conocimientos al respecto. El método parte de la revisión crítica de artículos científicos publicados en el periodo 1997 a 2009, accesados en la Biblioteca Virtual en Salud. El cuerpo analítico, constituido por 25 artículos, se ha trabajado en una perspectiva cualitativa, priorizando la interpretación de los sentidos de sus ideas centrales. Como resultados del análisis se destacan tres temas: representaciones del sida, potencialidades y límites de la información en la prevención primaria y el preservativo como personaje central de la prevención. Se concluye que la producción científica sobre el asunto impone gran desafío de la prevención que es el de transformar aspectos culturales y sociales que potencian la vulnerabilidad a la transmisión del HIV.

Palabras clave: Sida. Prevención. Control. Hombres. Salud del hombre. Recebido em 16/11/09. Aprovado em 06/07/10.

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artigos

Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias * Janaína Marques de Aguiar1 Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira2

AGUIAR, J. M.; D’OLIVEIRA, A.F.L. Institutional violence in public maternity hospitals: the women´s view. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.79-91, jan./mar. 2011. This paper presents and discusses data from a survey on institutional violence in public maternity hospitals, conducted in the municipality of São Paulo, Brazil. Twenty-one puerperae were interviewed about their childbirth experiences and the care received, using a semi-structured format. The data showed that the interviewees reported and recognized discriminatory practices and ill-mannered treatment within the attendance at the public maternity hospitals. They reacted through strategies of resistance or accommodation. These experiences are so frequent that these women often come to expect to suffer some type of mistreatment, thus revealing a situation of trivialization of institutional violence.

Este artigo apresenta e discute os dados de uma pesquisa sobre violência institucional em maternidades públicas, realizada no município de São Paulo. Foram entrevistadas 21 puérperas, com roteiro semiestruturado contando com questões sobre experiências de parto e assistência recebida. Os dados revelaram que as entrevistadas relatam e reconhecem práticas discriminatórias e tratamento grosseiro no âmbito da assistência em maternidades públicas, reagindo com estratégias de resistência ou de acomodação. Essas experiências ocorrem com tal frequência que muitas parturientes já esperam sofrer algum tipo de maltrato, o que revela uma banalização da violência institucional.

Keywords: Institutional violence. Maternity. Gender.

Palavras-chave: Violência institucional. Maternidade. Gênero.

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Elaborado com base em Aguiar (2010); pesquisa com financiamento da Fapesp, aprovada pelo Comitê de Ética da FMUSP e pelo Comitê de Ética da Prefeitura da cidade de São Paulo. 1,2 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (DMP/FMUSP). Av. Dr. Arnaldo, 455. Cerqueira César, São Paulo, SP, Brasil. 01.246-903. jamaragui@gmail.com *

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VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL EM MATERNIDADES PÚBLICAS ...

A violência institucional em maternidades públicas tem sido tema recente de estudo em diversos países. Pesquisas demonstram que, além das dificuldades econômicas e estruturais que os serviços públicos de saúde enfrentam, encontram-se, subjacentes aos maus-tratos vividos pelas pacientes, aspectos socioculturais relacionados a uma prática discriminatória quanto a gênero, classe social e raça/etnia (Gomes, Nations, Luz, 2008; Hotimsky, 2007; Diniz, Chacham, 2006; McCallum, Reis, 2006; Teixeira, Pereira, 2006; Domingues, Santos, Leal, 2004; Chiarotti et al., 2003; Tornquist, 2003; D‘Oliveira, Diniz, Schraiber, 2002; Diniz, 2001; Comité de América Latina y el Caribe para la Defensa de los Derechos de la Mujer y Centro Legal para Derechos Reproductivos y Políticas Públicas - CLADEM & CRLP, 1998). Esta violência, segundo D‘Oliveira, Diniz e Schraiber (2002), é expressa desde a negligência na assistência, discriminação social, violência verbal (tratamento grosseiro, ameaças, reprimendas, gritos, humilhação intencional) e violência física (incluindo não-utilização de medicação analgésica quando tecnicamente indicada), até o abuso sexual. Outras pesquisas também apontam, como um tipo de violência, o uso inadequado de tecnologia, com intervenções e procedimentos muitas vezes desnecessários em face das evidências científicas do momento, resultando numa cascata de intervenções com potenciais riscos e sequelas (Diniz, Chacham, 2006; Diniz, 2001). O parto é um evento social que integra o rol das experiências humanas mais significativas para os envolvidos. Diferente de outros eventos que requerem assistência hospitalar, o parto é um processo fisiológico normal que requer cuidado e acolhimento. Apesar disto, de acordo com a literatura vigente, esse momento é, várias vezes, permeado pela violência institucional, cometida justamente por aqueles que deveriam ser seus principais cuidadores. A relevância do estudo sobre este tema, portanto, se justifica pela importância de se aprofundar a discussão sobre a violência institucional em maternidades no cenário nacional e seu impacto na história de vida e saúde de mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, esperamos trazer contribuições ao debate sobre a humanização na assistência à saúde, sobretudo no que se refere às políticas de humanização do parto e nascimento. Neste contexto, o presente artigo apresenta e discute parte dos resultados de uma pesquisa realizada em 2008, para tese de doutorado, na qual foram entrevistadas 21 puérperas assistidas em maternidades públicas da cidade de São Paulo, sobre suas experiências de partos e maus-tratos vividos dentro do serviço de saúde; e 18 profissionais (obstetras, enfermeiras e técnicas de enfermagem) atuantes na rede pública do município, sobre suas experiências profissionais em torno do tema da violência institucional. Trataremos aqui apenas dos dados das entrevistas com usuárias. Nosso referencial teórico se apoia no conceito de violência definido por Chauí como a: conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência. (Chauí, 1985, p.35)

Logo, em consonância com este conceito e sob a ótica dos estudos de gênero, estamos considerando que a violência institucional nas maternidades públicas do Brasil é determinada, em parte, por uma violência de gênero, que transforma diferenças – ser mulher, pobre e de baixa escolaridade – em desigualdades, uma relação hierárquica na qual a paciente é tratada como um objeto de intervenção profissional, e não um sujeito de seus próprios atos e decisões sobre o que lhe acontece. Subjaz a este contexto a permanência histórica de uma ideologia de gênero naturalizadora da inferioridade física e moral da mulher e de sua condição de reprodutora como determinante do seu papel social, permitindo que seu corpo e sua sexualidade sejam objetos de controle da medicina (Vieira, 2002; Rohden, 2001; Giffin, 1999). Vale ressaltar que esta dominação do corpo feminino pela medicina, bem como o próprio exercício da violência institucional em maternidades públicas, não se dá sem conflitos e resistências por parte das mulheres/pacientes, como veremos adiante. 80

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De acordo com Scott (1990), as representações de gênero são elementos constitutivos das relações sociais, como um conjunto de referências que estrutura a percepção e organização de toda vida social concreta e simbólica de cada indivíduo. E, uma vez que estas referências definem diferentes distribuições de poder por meio do controle ou de um acesso diferencial a recursos materiais e simbólicos, este se torna um campo onde a significação do poder por intermédio das relações se articula. Assim, no contexto de nossa pesquisa, vemos o entrelaçamento destas representações de gênero com a violência institucional, como apontado por diversos estudos (Chiarotti et al., 2003; Hotimsky et al., 2002; Wagner, 2001; CLADEM, CRLP, 1998; Jewkes, Abrahams, MVO, 1998; Nogueira, 1994), através, por exemplo, da imagem da mulher que deve aguentar a dor do parto como algo que ela é biologicamente capaz de suportar, e como o preço pelo suposto prazer sentido no ato sexual que deu origem àquela gestação. Por outro lado, a violência institucional também é determinada pela ‘crise da confiança’ na área de saúde, entendida como uma crise ética mais global de fragilidade dos vínculos de confiança nas relações entre profissionais de saúde e pacientes, com a despersonalização do cuidado e o predomínio do uso de tecnologia como forma de interação, exacerbando a transformação do paciente em objeto de intervenção (Schraiber, 2008, 1997). Esta crise, pela qual passa a medicina moderna, caracteriza-se ainda pela dificuldade ou ruptura na interação e na comunicação livre e eficaz (ou efetiva) entre pacientes e profissionais, uma vez que os meios – uso de tecnologia – são transformados em fim. Neste sentido, outro conceito norteador de nossa análise é o de poder, visto que a violência institucional se dá no seio de relações desiguais de poder: as relações de gênero e a relação profissional de saúde e paciente. Para análise do poder da medicina, enquanto saber legitimado em nossa sociedade, e suas relações com a violência, tomamos, como referência, Arendt (2009), autora também de referência para Chauí (1985). E, para reflexão sobre o exercício do poder médico nas relações interpessoais, nos baseamos em Foucault (1995), que também serve de referência a Scott (1990) em sua discussão sobre gênero e poder. Para Arendt (2009), o poder surge a partir da ação e da fala em concerto de um grupo e, portanto, é um fim em si mesmo; existe “entre” os homens e não é um bem material ou um atributo, não pode ser acumulado. A autora considera que violência não é uma simples exacerbação do poder. Os dois conceitos se distinguem teoricamente, mas se relacionam na prática. Como instrumento para se alcançar determinado fim, a violência não pode ser a essência nem o fundamento do poder. Segundo Arendt (2009), o poder nunca emerge do cano de uma arma, ou seja, ele nunca emerge de um ato violento, ainda que a violência possa ser usada como recurso para a manutenção do poder. Quando isso acontece, a violência pode manter os postos de poder por algum tempo, mas termina por minar a fonte de geração desse poder – a comunicação entre os sujeitos –, enfraquecendo-o. A relação acaba por ser proporcionalmente inversa: quanto mais violência, menos poder. O conceito de poder de Arendt, desse modo, ajuda a pensar sobre o poder da medicina e a sustentação de sua autoridade sobre os sujeitos. Já o conceito foucaultiano de poder nos auxilia a compreender “como” este se exerce nas relações cotidianas, ou seja, a microfísica do poder. Segundo Foucault, o poder é uma forma de ação sobre a ação dos outros e se exerce através das relações. Dessa forma, considera que as relações de poder são da ordem da governabilidade entendendo governar por estruturar a ação dos outros; conduzir a conduta dos indivíduos ou grupos enquanto sujeitos de ação livres (1995). Este é o caso da medicina moderna, como bem demonstra Foucault (2007), na qual o sujeito submete-se de forma voluntária, na maior parte das vezes, às ações e condutas prescritas pelos profissionais médicos sobre seu corpo e seu comportamento. Foucault (1995) também faz uma distinção entre poder e violência. Para ele, a violência age diretamente sobre um corpo e utiliza a força, a submissão, a coação e até a destruição como formas de ação. Ao contrário do poder, a violência anula as possibilidades de ação e, por esta razão, não pode ser tomada como princípio fundamental ou base para o mesmo. Isto porque, ainda conforme o filósofo, uma condição importante para o exercício do poder é a liberdade do sujeito que sofre sua ação – não há, por exemplo, relação de poder na escravidão porque as possibilidades se saturam, é apenas uma relação de coação física. 81


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No caso dos profissionais de saúde - e, no topo desta hierarquia, o médico -, o poder exercido se baseia na autoridade cultural e moral que a profissão médica atingiu em nossa sociedade. Essa autoridade está pautada não só em determinados conhecimentos científicos e em tecnologias, como, também, em certos valores e crenças culturais que são compartilhados como verdadeiros socialmente, além de exercerem determinado domínio sobre a conduta moral dos sujeitos. Por essa razão, a autoridade médica tem, como pilares, a legitimidade científica - como dito anteriormente - e a dependência dos sujeitos ao conhecimento que o médico detém, pelo receio de que venham a sofrer consequências desagradáveis caso esta autoridade não seja obedecida (Starr, 1991). A legitimidade e a dependência se dão, sobretudo, porque, em nossa sociedade, a saúde é um valor inequívoco de importância para todos, historicamente monopolizado pela medicina. O poder médico, neste sentido, é produzido pela comunicação entre os sujeitos sociais em condições de desigualdade. De acordo com Schraiber (2008), esta obediência do paciente à autoridade médica se fundamenta na confiança que se estabelece na relação entre ambos. Desta forma, a medicina, na sua conformação atual (a de uma medicina tecnológica), pode ser entendida como uma “técnica tecnologia dependente”, na qual, ao mesmo tempo em que há uma grande valorização da base científica desta tecnologia, há um enfraquecimento do caráter moral dependente da prática. A autora ressalta que esta erosão da qualidade ética das interações entre profissionais e pacientes é responsável pela “crise de confiança” na medicina tecnológica contemporânea, já que técnica e ética são dimensões articuladas da prática médica, fazendo da medicina uma prática social moral-dependente. Pautados nestes referenciais teóricos, buscamos identificar, nas falas das entrevistadas, a complexa interação entre poder e violência, e como esta interação se molda no cenário da violência institucional cometida em maternidades públicas.

Metodologia A abordagem metodológica eleita foi qualitativa. Foram realizadas 21 entrevistas semiestruturadas com mulheres que tiveram seus filhos em maternidades públicas na zona oeste da cidade de São Paulo, em um período de até três meses após o parto. A captação para as entrevistas se deu por indicação de profissionais de três Unidades Básicas de Saúde (UBS), daquela região da cidade, entre as mulheres acompanhadas pelo Programa de Saúde da Família. Todas as entrevistas foram realizadas na residência das informantes, a fim de favorecer os sentimentos de descontração e de segurança dessas mulheres para o relato de suas experiências com o atendimento em maternidades públicas. O critério para o número de entrevistas foi o ponto de saturação do tema, além da quantidade de material obtido e a viabilidade de análise. O roteiro percorreu, de forma não diretiva, experiências de contato das mulheres com maternidades públicas (acesso, assistência hospitalar, relatos do último parto e partos anteriores) e a ocorrência de maus-tratos, do ponto de vista dessas mulheres. Feito isto, analisamos a intrincada construção de uma postura profissional e institucional violenta contra as pacientes, baseada nas relações destas com os profissionais e nas relações de gênero pelas quais se constroem as representações que fundamentam as práticas sociais, institucionalizadas nos serviços públicos de atenção à maternidade. Inicialmente, foi realizada uma leitura flutuante de cada entrevista, à medida que eram transcritas. Em momento posterior, realizou-se uma leitura detalhada e uma primeira categorização dos dados de acordo com os eixos temáticos que nortearam o roteiro, pautados no referencial teórico. Essa leitura vertical de cada entrevista em profundidade permitiu o reconhecimento de um perfil particular de cada sujeito entrevistado. Em uma terceira etapa, os dados foram reagrupados conforme o conjunto de respostas, ou seja, uma leitura horizontal das informações possibilitou a comparação de cada grupo de respostas para a mesma questão e a reordenação em categorias de análise mais abrangentes e melhor delimitadas. O estudo passou pelos Comitês de Ética em Pesquisa da instituição acadêmica à qual está vinculado e da Secretaria de Saúde do Município de São Paulo, respeitando os princípios contidos na Declaração de Helsinki (World Medical Association, 2000). 82

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Perfil das entrevistadas As entrevistadas tinham entre 16 e 42 anos. Mais da metade se declarou afrodescendente, sob as denominações de parda ou morena. No momento da entrevista, a maioria estava em situação conjugal estável e pôde contar com o apoio do parceiro e da família durante a gestação. Cinco entrevistadas contavam com menos de R$ 600,00 para subsistência familiar. O maior número de depoentes exercia algum tipo de atividade profissional remunerada, o que, em alguns casos, era a única fonte de renda com a qual podiam contar. Todas recebiam alguma contribuição da rede social de apoio para amenizar as dificuldades financeiras e sociais. No que se refere às experiências de parto, apenas cinco eram primíparas. Na maioria dos casos, prevaleceu o parto vaginal como via de parto, tanto para as gestações anteriores quanto para a última gestação.

O cuidado: bom x mau atendimento

Consideraremos aqui ações de suporte como aquelas voltadas para a alimentação, a higiene e outros cuidados pessoais da paciente e do bebê, prestadas, sobretudo, pela equipe de enfermagem. 3

O contato das entrevistadas com o serviço de saúde é pautado por concepções pessoais acerca não só da assistência como do lugar que ocupam na relação hierárquica de poder com os profissionais de saúde, perpassado todo o tempo por questões de gênero. Estas mulheres estão, portanto, em uma dupla relação de poder (como pacientes e como pessoas do sexo feminino), na qual resistem, acomodamse, reproduzem ou contestam ideologias, crenças, valores, e expressam suas próprias representações sobre a vivência do parto. Na maternidade, estas mulheres experimentam sentimentos distintos e, por vezes, até contraditórios, como: a felicidade pela chegada do bebê e o medo de morrer; o desejo de cuidar do filho, mas também o de ser cuidada pela equipe; a confiança no hospital como o lugar mais seguro para se ter um filho, e a desconfiança de que se é maltratada impunemente nas maternidades públicas. Assim, a assistência nas maternidades é definida, por nossas entrevistadas, como boa ou ruim em relação às ações de suporte3, mais frequentemente, à comunicação e à presença ou não de um profissional a maior parte do tempo – o que está de acordo com outros estudos sobre a avaliação das mulheres quanto à assistência em maternidades (Goulart, Somarriba, Xavier, 2005; Domingues, Santos, Leal, 2004; Hoga et al., 2002), que apontam para o relacionamento interpessoal solidário como um dos fatores mais significativos para as pacientes e seus familiares. O uso de recursos tecnológicos é menos questionado por nossas entrevistadas e, quando o é, na maioria dos casos, elas questionam, mas reconhecem que não possuem o saber necessário para avaliar as intervenções, ainda que, por vezes, desconfiem da sua adequação. O que parece ocorrer é um questionamento da qualidade do uso do conhecimento e dos recursos tecnológicos por um determinado profissional, e não da tecnologia em si (Schraiber, 2008). “Aí foram fazer o exame do toque, maldito exame do toque. Porque ele foi com toda vontade. Nossa, acho que doeu mais do que na hora do parto. Por isso que eu não gostei dele [médico]. Porque acho que ele não foi com... Se aquilo for delicado, o que não for delicado me matava [...] Aí veio uma médica [...] Tão boazinha, acho que ela tinha uns quarenta anos, mais ou menos, tão boazinha ela era. Ela estourou minha bolsa, fez o exame de toque e eu não senti tanta dor quanto a do homem”. (Dina)

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Em suas falas, as entrevistadas ressaltam a importância de uma boa relação com o profissional, fundada: no respeito à sua privacidade, na atenção às suas queixas, em uma comunicação que preze pelo entendimento mútuo, e no uso de tecnologias que elas entendem como necessárias e bem realizadas. Assim, a individualização do atendimento é valorizada por elas como importante para um bom cuidado: “teve tipo uma estagiária, né, fica com a gente ali, só cuidando de você”. (Cida) “E nas refeições também, elas vinha e colocava uma água pra cada uma [...] Assim, na minha cama, na cama da outra paciente, né”. (Olga)

Consideramos que o bom atendimento é identificado a um cuidado que se manifeste a favor de uma integralidade na assistência – o sujeito visto como um todo, e não como um “corpo” em suas partes. Neste sentido, de acordo com Ayres (2004), a dimensão relacional do cuidado é primordial para a eficácia técnica e sucesso prático da assistência. Segundo este autor, há sempre, no encontro entre profissional de saúde e paciente, uma ‘objetificação’ posta em função da técnica que justifica a ocorrência deste encontro. Ou seja, o paciente vai à procura de um conhecimento técnico científico que o profissional detém. Contudo, o encontro entre esses dois sujeitos não se deve resumir a este processo de objetivação do paciente, visto que isso anularia sua subjetividade, transformando-o em mero objeto de análise diagnóstica e intervenção. Isto é o que ocorre no modelo hegemônico de parto medicalizado, no qual a mulher é vista como uma ‘máquina de fazer bebês’ e destituída do poder sobre seu corpo ou de qualquer direito à escolha sobre os procedimentos a serem realizados (Wagner, 2001). Logo, a ausência deste cuidado com o paciente enquanto sujeito abre espaço para condutas violentas, de anulação ou impedimento da fala e ação do outro (Chauí, 1985). Assim, o mau atendimento é definido, pelas entrevistadas, por uma falta de manejo da dor, seja na cesárea ou parto normal (antes, durante e depois do parto); pela ocorrência de complicações, mesmo após a alta médica, que ameacem a integridade física tanto da mulher quanto do bebê, traduzida, pelas entrevistadas, como uma negligência ou o que lhes pareça ser erro médico; pela exposição desnecessária da intimidade da paciente; por dificuldades na comunicação; pela realização de algum procedimento ou exame sem consentimento ou desrespeitosamente; pela discriminação por condição social ou cor; e, sobretudo, por tratamento grosseiro marcado pela impaciência ou indiferença dos profissionais, e por falas de cunho moralista e desrespeitoso. Dentre nossas entrevistadas, a maioria relatou experiências de maus-tratos pessoais ou de outras mulheres em maternidades públicas, demonstrando um consenso em seu meio social de que isso é comum nestes serviços. “Tinha uma mulher lá do preparo, do pré-parto lá, preparando as mulheres, falou na minha cara: “você não acha que está velha demais não, pra estar parindo?”. Falou na minha cara. Falou que eu estava velha pra estar parindo. Eu falei: “não, eu não sou velha. Eu só estou maltratada”; falei pra ela. E ela lá menina, e eu com dor e ela: “se você não calar a boca...” que se eu começasse a gritar que ela ia embora e ia deixar eu lá gritando”. (Ester, 32 anos, 2º filho) “Eu acho que o maltrato, tratam você como se você... Você já tá ali numa situação constrangedora, né, e assim, a pessoa falar grosso com você, falar grossa, de repente por ela estar com raiva de alguma coisa, ela vim te aplicar uma injeção e te aplicar de qualquer jeito. Eu acho que isso é uma violência, entendeu, dentro da saúde. (Taís)

Desta forma, o mau atendimento, em suas diversas formas, também é reconhecido pelas entrevistadas como uma violência dentro dos serviços de saúde. Como pode ser visto na fala de uma das entrevistadas que, ao invés de cuidada, sentiu-se literalmente ‘machucada’:

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“E a minha vagina está toda aberta ainda [...] Eu gostaria de mudar, pode ser sincera mesmo? O que eu queria mudar até hoje era a minha vagina. É onde foi costurado, até hoje eu sinto a carne. Não é o ponto, é a carne, doer um pouco. Hoje não está doendo, agora ontem estava doendo muito. Eu fui muito machucada”. (Ester)

A “escandalosa”: uma questão de gênero Observou-se, nos relatos das entrevistadas, um reforço, dentro da instituição, da redução da mulher ao seu papel social de mãe. Ao entrar na maternidade, em muitos casos, a mulher perde sua identidade e se torna apenas “mãe”. Várias entrevistadas relataram terem sido chamadas de “mãe” ou “mãezinha” todo o tempo pela equipe médica e, em todos os casos, elas perceberam esta conduta como “normal”, “legal”, um gesto “carinhoso” por parte da equipe. O apelo ao papel materno geralmente se dá em um contexto em que se busca a conformação da paciente à sua dor, não apenas como algo natural do processo de se tornar mãe como, também, o preço a ser pago pelo exercício de sua sexualidade. A fala da maioria das entrevistadas demonstra a reprodução ideológica desta naturalização ao confirmarem que faz parte do papel da mulher “boa-mãe” trazer o filho ao mundo e ser forte para aguentar a dor do parto. Esta ideologia é reforçada pelos profissionais que valorizam a paciente que “agüenta calada”, que “fica quietinha” e, desta forma, dá menos trabalho. “Até a enfermeira lá falou assim, a estagiária falou: ‘Olha, isso mesmo. Continua assim [quieta] porque geralmente eles judia um pouco quando a mulher dá trabalho’”. (Jane)

Essa posição, de sujeito obediente a outro hierarquicamente superior, a que as pacientes são frequentemente chamadas a ocupar, ou seja, da paciente boa como aquela que colabora, é apontada por vários estudos sobre assistência em maternidades, que demonstram a obediência como uma qualidade esperada da paciente (Diniz, Chacham, 2006; McCallum, Reis, 2006; Teixeira, Pereira, 2006; Wagner, 2001). É nesse contexto que surge, nos relatos das entrevistadas, a figura da paciente “escandalosa”: aquela que dá trabalho na hora de parir. O escândalo é definido por elas como: gritar demais e não fazer a força necessária para a expulsão do bebê, berrar, chamar a equipe a todo momento, bater, ficar chamando pelo marido, pela mãe, dizendo que não vai aguentar mais, e ficar mandando tirar o soro. Estas são condutas desvalorizadas pela maioria das entrevistadas e até reprovadas por algumas: “Dependendo da mulher. É bom fazer, né, tem mulher que acha bom ter também o neném, então tem aquelas que gritam, que berram, que quer bater porque não agüentam a dor, e é tanta, né. Então eu acho que tem esse tipo de coisa, mas já acaba se estressando um pouco, aí [acha que deve] deixa[r] ela sofrer um pouquinho de dor. [...] Ó, se a mulher tá lá ela gostou de fazer o neném, por que que ela vai dar murro no médico quando ela vai ter o neném? Eu acho que não tem necessidade disso. Ah, que bom – deixa ela lá sofrer um pouquinho”. (Nair)

Todas as entrevistadas ressaltaram que, se a mulher fizer escândalo, ela sofrerá maus-tratos dentro das maternidades públicas. Uma informação passada para elas não só por pessoas de seu meio social (mulheres da família, amigas, vizinhas e, até, o marido de uma delas), mas também pelos próprios profissionais de saúde. “Lá na maternidade tinha uma mulher, já era o quarto filho dela. E a mulher lá, dando as contração, a mulher fazendo um escândalo. E eu lá, era o meu primeiro filho, porque diz que se você não gritar, não fazer escândalo, eles não maltrata. Agora, se você faz escândalo eles maltrata [...] eles deixaram ela de canto lá, reclamando sozinha. Aí elas falava assim: ‘Olha o exemplo, hein. A moça aí novinha morrendo de contração e não tá dando um piu e você aí, já no quarto filho e gritando desse jeito? Calma!’. Aí o médico falou assim: ‘Só por isso você vai

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ficar aqui agüentando’ [...] E eu lá com as contração, eu não dava um piu, eu me mordia, eu puxava minha mão, eu puxava... Dobrava o colchão, ai menina, mas eu não gritava, não fazia nada”. (Jane)

Nesse contexto, a estratégia de se calar diante da dor para não sofrer mais é frequentemente utilizada como recurso para escapar da violência institucional: aquela que colabora e não faz escândalo seria mais bem assistida. A escandalosa, por sua vez, é aquela que não suporta a dor do parto, que é fraca ou descontrolada, mas é aquela que briga pelo que considera ser um direito seu: o de uma assistência que atente para suas necessidades, ainda que elas paguem o preço, algumas vezes, de sofrer sanções. A mulher que grita e faz escândalo pode sofrer repreensões verbais e físicas, como não receber assistência adequada ou ser deixada sozinha, de acordo com nossas entrevistadas, ou mesmo pode ser atendida com maior agilidade. “Ele [o médico] falou assim: ‘Ah, mas ela não tá com cara de que tá com dor’. Ah, menina, aí a minha tia falou assim: ‘Ah, você quer que ela faça cara que tá com dor? Então eu vou lá fora e falo pra ela fazer um escândalo, então. Porque, se pra você ela tem que fazer escândalo pra mostrar que tá com dor...’. Ele queria que eu fizesse escândalo, entendeu? Que nem aquelas mulher que fica gritando e não sei o que. Aí ele falou assim: ‘Não...’, aí ele viu que a minha tia era um pouco alterada, né, aí ele falou assim: ‘Não, então vamos colocar ela no soro’”. (Cléo)

No contexto do que é considerado um escândalo, alguns jargões são utilizados na tentativa de conter a paciente: “Está chorando (gritando) por quê? Na hora de fazer não chorou (gritou)”. Esse e outros exemplos mostram uma banalização da violência institucional naturalizada em jargões e condutas pautados em estereótipos de classe e gênero, o que favorece a invisibilidade desse tipo de violência que, muitas vezes, é percebida como uma “brincadeira” (Pizzini, 1994) pelos sujeitos envolvidos e até esperada pelas pacientes. O escândalo também indica uma ruptura do diálogo: a paciente não é ouvida, sua demanda não é acolhida. Ela, por sua vez, também não “ouve” o profissional e não colabora. Não há, portanto, um diálogo que conduza à negociação sobre o compartilhar de responsabilidades e decisões, o que abre espaço para a violência. Por outro lado, a figura da escandalosa é um bom exemplo das contradições ideológicas que atravessam a relação de poder entre o profissional de saúde e a paciente e, também, um exemplo de resistência das mulheres ao poder médico que subjaz em nossa sociedade.

Relação profissional/paciente: entre o poder e a violência O parto hospitalar relatado pelas entrevistadas lhes ofereceu pouca ou nenhuma possibilidade de exercício de poder sobre o próprio corpo e suas experiências de parto. Na maioria dos casos, segundo os relatos, as intervenções feitas não foram negociadas, nem explicadas. Boa parte das entrevistadas, por sua vez, também não questionou os profissionais sobre qualquer conduta ou procedimento realizado, e o conhecimento sobre o próprio corpo sequer foi mencionado por elas durante a entrevista. Consideramos que a falta de questionamento das pacientes possa estar amparada no receio delas de que isso fosse recebido pelo profissional como um desrespeito a sua autoridade e ter, como consequência, algum mautrato. A não-valorização do conhecimento sobre o próprio corpo, por sua vez, parece-nos ocorrer em função da expectativa apresentada, pelas entrevistadas, de que o profissional saiba tudo o que deve ser feito e, portanto, a ele caiba a responsabilidade pelas decisões tomadas. Ainda assim, muitas vezes, a relação com os profissionais, descrita pelas pacientes, não parece estar baseada num vínculo de confiança naquele profissional. Pelo contrário, sobressaem, nos depoimentos, as ameaças, críticas e reprimendas feitas às pacientes como forma de lhes garantir a obediência e deixar clara a hierarquia a que estão submetidas: 86

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“Ela perguntou assim pra menina se era o primeiro filho, a menina respondeu que era, aí ela falou assim: ‘Ah, depois que a gente colocar o soro você vai ver o que é dor. Você nunca teve filho, não?’. Então isso eu não gostei, né. [...] Falou pra menina, mas eu também não gostei, né. Como eu sou mulher, eu também tava grávida, eu também ia passar pela mesma situação que ela”. (Ana)

A fala de Ana apresenta uma situação em que paciente e profissional são iguais no gênero, mas desiguais na relação de poder. Na literatura, também encontramos relatos da reprodução de um discurso autoritário e de comportamento hostil com as pacientes por parte de profissionais de saúde mulheres (Teixeira, Pereira, 2006; D‘Oliveira, Schraiber, 1999; Jewkes, Abrahams, MVO, 1998). Esta desigualdade se ampara, muitas vezes: em diferenças de classe e etnia; no conhecimento técnico e científico que as profissionais detêm, e numa naturalização ideológica do exercício do poder médico pela posição hierárquica que ocupam. De acordo com D‘Oliveira e Schraiber (1999, p.344), “estas profissionais podem ser vistas como um ‘duplo’, isto é, femininas por situação de gênero e ‘masculinas’ por condição tecnológica, reproduzindo na enfermagem o poder médico”. O exemplo de Sara ilustra uma violência institucional que deixa clara a falta de ética da profissional. Em uma relação assimétrica de poder, em que Sara se encontra numa posição de maior vulnerabilidade física, emocional e social, sua diferença (ser pobre, nordestina e multípara) é convertida em desigualdade, que a torna inferior, com juízos de valores que subjazem à fala da profissional. “É, porque acho que tava assim, meio nervosa, né. Ela falou assim: ‘Parece que tá no norte. Tá dentro de São Paulo e deixar acontecer isso?’. Mais uma gravidez, né. [...] e ela falou assim: ‘Em tempo de morrer e deixar um monte de criança’”. (Sara)

Outros relatos, contudo, apontam para uma tentativa de resgate do vínculo de confiança entre a paciente e o profissional, baseado na autoridade técnica e moral deste profissional. “Aí a médica abriu; apertou aqui; aí viu que não era normal; aí ela: ‘mãezinha, calma. Você tem que confiar em mim. Se você não confiar em mim você vai confiar mais em quem?’. Eu falei: ‘ó, eu quero que você faça alguma coisa porque esse sangue todo não é normal!’. Já estava vindo aqui em cima de mim ó. Aquele sangue vivinho. Era tanto sangue que se eu não falasse nada eu acho que eu ia morrer lá. Aí como ela viu que não estava normal, me deram lá o remédio, aí parou”. (Ester)

Há ainda relatos de um bom manejo de algumas situações por parte dos profissionais de saúde, indicando que há possibilidades mais humanizadas de acolher e lidar com a dor das pacientes. São bons exemplos de profissionais que utilizaram sua autoridade para interromper o ciclo da violência e não o alimentar ainda mais, trazendo dados reais para a paciente, com informações claras sobre o processo de trabalho de parto. “Aí eu gritava, né, eu gritava, porque vinha tanta dor e eu falava: ‘Eu quero cesariana, eu quero cesariana’. ‘Eu quero que vocês me corta. Se eu morrer eu vou denunciar vocês.’, sabe. Eu lembro como hoje, eu fazia um escândalo e ele falava: ‘Calma, mamãe’. Era até um japonês ele, Doutor Emílio. Falou: ‘Calma, mãe. Você vai ter bonitinho. Não precisa cesariana. Pra quê eu te cortar se você vai ter ele bonitinho? Você vai ter ele normal, não precisa te cortar’. A única coisa que eles falava era isso”. (Olga) “Fiquei [com vontade de gritar], mas aí depois elas falaram pra mim assim: ‘Não, respira fundo, não faz isso, não grita que é pior pra você’, aí eu acabei ficando calma. Só gritei na hora que eu vi a cabeça dele, mesmo”. (Bel)

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Entretanto, vale ressaltar que apenas fora do ambiente hospitalar, como no momento da entrevista, as pacientes demonstraram sentirem-se seguras para questionarem o atendimento recebido (exames, cuidados com ela e com o bebê, tratamento pessoal e outros procedimentos) sem o risco de qualquer tipo de sanção. “Ai, posso falar que o médico era horrível? [Pode, pode falar. Era horrível, como?] Chato. Sabe quando você chega já deprimida, morrendo de medo, e ele ao invés de animar você, não, ele desanima [...] Duas horas na fila esperando [...] Eu falei pra ele o que tava acontecendo e ele falou então... Aí foram fazer o exame do toque, maldito exame do toque. Porque ele foi com toda vontade. Nossa, acho que doeu mais do que na hora do parto. Por isso que eu não gostei dele”. (Dina)

Isto evidencia a crise de confiança na relação médico/paciente, à qual se refere Schraiber (2008). O que prevalece são as intervenções e procedimentos técnicos e tecnológicos – o médico faz o seu serviço e vai embora, sem interagir com a paciente enquanto um sujeito. Ela é “objetificada” numa intervenção que, apesar de humana, não é humanizada.

Considerações finais No contexto da assistência em maternidades, a paciente é duplamente objetificada: seu corpo é tomado como objeto de controle e domínio da medicina e como meio para se chegar a um fim – o bebê. Essa ‘objetificação’ traz em si aspectos ligados a uma ideologia de gênero, de dominação do corpo feminino como objeto da medicina enquanto “corpo reprodutor”. E se encontra expressa de forma particular na crise de confiança vivida na medicina tecnológica, com a fragilização dos vínculos entre profissionais e pacientes, e uma erosão da qualidade ética de suas interações (Schraiber, 2008). O outro tomado como objeto é, portanto, um ‘não-sujeito’, na medida em que tem sua subjetividade, sua singularidade, desconsiderada nessa relação. Outros autores (Martin, 2006; Rego, 2003; Chauí, 1998) também relacionam esse processo de transformação do paciente em mero objeto de intervenção e análise, destituindo-o de sua subjetividade, a uma má ética na prática profissional. Sobre esta questão, Schraiber (2008, 1995) escreve que tanto a ética quanto a técnica são dimensões da prática médica, enquanto prática social moral-dependente. O relato de nossas entrevistadas aponta, também, para uma banalização do sofrimento da parturiente, por exemplo, através da ideologia de naturalização da dor do parto como um preço pelo prazer sexual ou como um destino biológico. A banalização do sofrimento do outro remete à banalização da própria violência institucional, contida em frases que já se transformaram em jargões, adotados sob a aparência de brincadeiras, e na falta de anestesistas de plantão para realização de analgesias durante o trabalho de parto. Consideramos, apoiados nos estudos de Dejours (2007) e Sá (2005), que esta banalização da violência tanto pode ser o resultado de estratégias de defesa individuais e coletivas, por parte dos profissionais, para lidarem com o sofrimento alheio, quanto reflexo de um fenômeno de banalização da injustiça social que atinge toda a sociedade. Desta maneira, torna-se fundamental o enfrentamento da discriminação e do preconceito de gênero na assistência em maternidades públicas, no sentido do respeito aos Direitos Humanos, e, no âmbito destes, aos Direitos Sexuais e Reprodutivos das pacientes. Para tanto, faz-se importante a desconstrução de uma cultura institucional que banaliza e invisibiliza a violência institucional. Ressaltamos, ainda, a importância da qualidade ética das interações em uma perspectiva ampla de cuidado, em que tanto as intervenções técnicas como as ações de suporte sejam orientadas para o acolhimento, valorizando a mulher como sujeito na relação profissional/paciente.

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VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL EM MATERNIDADES PÚBLICAS ...

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AGUIAR, J. M.; D’OLIVEIRA, A.F.L.

artigos

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AGUIAR, J. M.; D’OLIVEIRA, A.F.L. Violencia institucional en maternidades públicas bajo el punto de vista en las usuarias. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.79-91, jan./mar. 2011. Se presentan y discuten los datos de una investigación sobre violencia institucional en maternidades públicas realizada en el municipio de São Paulo, Brasil. Se entrevistaron 21 puérperas con guión semi-estructurado contando con cuestiones sobre experiencias de parto y asistencia recibida. Según los datos obtenidos, las entrevistadas relatan y reconocen prácticas descriminatorias y tratamiento grosero en el ámbito de la asistencia en maternidades públicas, reaccionando con estrategias de resistencia o de acomodación. Estas experiencias ocurren con tal frecuencia que muchas parturientas ya esperan sufrir algún tipo de maltrato, lo que revela una banalidad de la violencia institucional.

Palabras clave: Violencia institucional. Maternidad. Género.

Recebido em 25/01/10. Aprovado em 12/08/10.

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artigos

Recursos sociais para apoio às mulheres em situação de violência em Ribeirão Preto, SP, na perspectiva de informantes-chave* Manoel Antônio dos Santos1 Elisabeth Meloni Vieira2

SANTOS, M.A.; VIEIRA, E.M. Social resources to support women living in situation of violence in Ribeirão Preto, SP, in the perspective of key informants. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.93-108, jan./mar. 2011. This study aims to learn about organizations which support women who live in a situation of violence, considering the network of available agencies and social equipments. The qualitative approach was used through semi-structured interviews conducted with 11 key informants from institutions such as the Military Police, Women’s Police Station, the Guardianship Council, and others. The results were systematized using content analysis, which identified three categories: the organization’s mission, the limits of interventions and insertion in the assistance flow. The results pointed out that, in general, the interviewees were sensitized and informed about the issue of violence against women. The services do not know about the magnitude of the community network and therefore they intervene without articulation with each other. As a consequence, assistance can be fragmented and it does not allow a follow-up in every level. Data indicate the need for better articulation and for professionals’ qualification.

Keywords: Violence against women. Community networks. Social support. Gender and health. Women’s health.

Objetivou-se conhecer as organizações envolvidas no atendimento de mulheres em situação de violência, considerando a rede de agências e equipamentos sociais disponíveis. Utilizou-se abordagem qualitativa com entrevistas semiestruturadas a 11 representantes de instituições como: Polícia Militar, Delegacia de Defesa da Mulher, Conselho tutelar, juízes e promotores da Vara de Infância e Juventude, Vara Criminal e voluntários de duas ONGs. Pela análise de conteúdo, os resultados foram sistematizados em três categorias: missão da organização, limites da atuação e inserção no fluxo de atendimento - e apontaram que os entrevistados, de maneira geral, mostram-se sensibilizados e informados sobre a questão da violência contra a mulher (VCM). Os serviços não têm conhecimento da amplitude da rede de apoio e por isso atuam de modo desarticulado. Em consequência, o fluxo de atendimento pode ficar fragmentado e não permitir acompanhamento em todos os níveis. Os dados indicam necessidade de maior entrosamento e capacitação para profissionais.

Palavras-chave: Violência contra a mulher. Redes comunitárias. Apoio social. Gênero e saúde. Saúde da mulher.

* Elaborado com base em (Vieira, 2006); projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 1 Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP). Avenida Bandeirantes, 3900, Ribeirão Preto, SP, Brasil. 14.040-901. masantos@ffclrp.usp.br 2 Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP.

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RECURSOS SOCIAIS PARA APOIO ÀS MULHERES ...

Introdução A violência contra a mulher (VCM), cuja maior prevalência é doméstica e cometida pelo parceiro íntimo, é um fenômeno global que afeta todas as culturas, estratos sociais, grupos étnicos e religiões, e que incide em populações de diferentes níveis de desenvolvimento econômico e social (Brasil, 2005). A Organização Mundial de Saúde (OMS), ao publicar, em 2002, o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, define esse tipo de violência como “uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação” (Schraiber, d’Oliveira, Couto, 2006, p.114). A violência tem implicações dramáticas não apenas na vida das mulheres, mas no bem-estar das famílias e da sociedade (Organização Mundial da Saúde - OMS, 2002). Há um crescente reconhecimento de que se trata de um problema universal de saúde pública, dado o seu impacto na qualidade de vida, nas estatísticas sobre mortalidade, no desenvolvimento econômico e social de uma nação e nos gastos do sistema de saúde. Embora altamente disseminada, frequentemente a VCM permanece invisível. Vários fatores contribuem para essa invisibilidade social, dentre eles destaca-se o fato de que esse tipo de violência é socialmente aceito como uma situação habitual e até mesmo esperada (World Health Organization WHO, 1997). Vinculada a isso, há uma tendência de se considerar a violação dos direitos das mulheres secundária em comparação com a de outros direitos humanos. Essa tolerância social contribui para estimular a prática, fazendo perpetuar situações que afrontam a dignidade feminina. Assim, a VCM é uma das mais praticadas e menos reconhecidas (Schraiber, d’ Oliveira, 2002b). A problemática da violência doméstica pode ser situada no espaço da legislação (Campos, 2009) e, portanto, do campo jurídico, considerando-se a necessidade de intervenção estatal (Corrêa, 2009). Ou, ainda, pode ser analisada a partir da interface entre os setores de direito e saúde (Angulo-Tuesta, 2005) e do gênero (De Ferrante, Vieira, Santos, 2009; Lima, Buchele, Climaco, 2008). A tolerância judicial à VCM por parceiro íntimo é uma das formas mais contundentes de negação dos direitos humanos (Campos, 2009). Esse tipo de prática viola os direitos à liberdade, integridade, saúde e dignidade da mulher. A percepção social do problema tende a negligenciar a questão de gênero envolvida. Há sempre o perigo de se considerar, até certo ponto, “aceitável” a violência praticada contra a mulher (Lima, 2009). Afinal, o Brasil tem uma longa tradição de desrespeito a esses direitos básicos da mulher. Basta lembrar que, no passado recente, diversos homicidas foram absolvidos em nome dos assim chamados “crimes da paixão” ou da tese da “legítima defesa da honra” (Eluf, 2002). Essa tese é uma doutrina sem amparo legal, refutada pelo Supremo Tribunal Federal, um exemplo de discriminação de gênero e reprodução do sexismo jurídico (Campos, 2009). Recentemente, modificou-se esse panorama com a implementação da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) (Brasil, 2006). Esse dispositivo legal inovou ao inaugurar um novo paradigma jurídico, pelo qual certas práticas de tolerância judicial e discriminação de gênero não têm mais suporte legal e, portanto, não mais se sustentam no âmbito jurídico (Campos, 2009). Dada à sua complexidade, é necessário oferecer uma resposta global e sistêmica à VCM e oferecer apoio à construção de redes de serviços para seu enfrentamento (Carreira, Pandjiarjian, 2003). Importante passo na investigação dessa problemática é dar voz aos operadores sociais: os agentes públicos que atuam no campo da assistência e proteção à saúde e aos direitos da mulher submetida à violência (Presser, Meneghel, Hennington, 2008). Vários estudos evidenciam que as mulheres têm de cumprir um percurso bastante acidentado e crítico para romperem com a violência (Meneghel, Vial, 2008; Presser, Meneghel, Hennington, 2008; Meneghel, 2007; Sagot, 2000). Esses itinerários constituem o que se denomina de rota crítica. São caminhos tanto estimulados quanto dificultados pela qualidade das relações estabelecidas com os apoios que buscam, na medida em que completam o périplo de suas rotas. São trajetórias cumpridas ou interrompidas, de acordo com a qualidade do vínculo e das interações estabelecidas com os serviços e organizações visitados.

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SANTOS, M.A.; VIEIRA, E.M.

artigos

Um olhar atento sobre a produção científica dedicada à investigação dos serviços voltados para o atendimento às mulheres vítimas de violência intrafamiliar revela que há um crescente interesse nesse tema. Contudo, a literatura voltada especificamente para essa questão ainda é relativamente escassa, em contraste com a ampliação da rede de atendimento. Nas últimas décadas, houve, no Brasil, um incremento das instituições que atendem mulheres, adolescentes e meninas em situação de violência (Schraiber, d’Oliveira, Falcão, 2005). A sociedade organizada e o poder público mostram-se preocupados com o problema e a rede de serviços tem se expandido substancialmente. Foram criadas Delegacias de Defesa da Mulher, Casas Abrigo, Serviços de Atendimento à Violência Sexual, Centros de Referência, organizações governamentais e não governamentais atuantes em diversos setores, inclusive serviços dirigidos aos homens. Esses recursos de atendimento têm culturas institucionais variadas, operam com profissionais com saberes e fazeres distintos e, por vezes, conflitantes, acerca do problema da VCM. Além de recorrerem aos serviços especializados, as mulheres buscam ajuda em serviços de saúde (Schraiber, Barros, Castilho, 2010; Vieira et al., 2009; Vieira et al., 2008; Schraiber, d’Oliveira, 2008, 2002a, 1999; Marinheiro, Vieira, Souza, 2006; d’Oliveira, Diniz, Schraiber, 2002) e instituições religiosas, que dificilmente contam com pessoas com qualificação específica para lidar com o problema. A avaliação desses serviços ainda é bastante incipiente, mas estudos qualitativos mostram que eles desempenham um papel importante para mudar a situação. Os resultados de pesquisas enfatizam a importância das redes como estratégia de fortalecimento das mulheres em situação de violência. Rede é o conjunto articulado de serviços, e a violência, por ser um problema complexo que se manifesta de múltiplas formas, requer um amplo leque de opções assistenciais (Schraiber, d’Oliveira, Falcão, 2005). A rede pode ser mais ou menos ampla, dependendo do local, e constituída de serviços de assistência policial, judiciária, psicossocial e médica. Também podem ser acionados outros recursos locais, institucionais e não institucionais, como: ONGs, grupos religiosos, culturais e educativos, grupos de apoio comunitário. Há evidências de que serviços de saúde, delegacias, advogados/tribunais e líderes religiosos são os recursos sociais mais procurados (Schraiber et al., 2010). Os estudos sobre a rede constituída pelos serviços e organizações de enfrentamento à VCM ainda estão se consolidando, o que dificulta a compreensão dos recursos existentes, suas fortalezas e fragilidades. É fundamental que policiais, operadores do direito e profissionais de outras áreas que acolham vítimas da VCM conheçam os recursos existentes. Pesquisar sobre VCM é relevante para estabelecer as bases para a formulação de políticas públicas (Almeida, Soares, Gaspary, 2003). Há necessidade de investigações que focalizem aspectos específicos do problema, como a disponibilidade de equipamentos sociais de apoio às mulheres em situação de violência. Conhecer a organização e funcionamento dos serviços disponíveis favorece a avaliação e monitoramento das políticas públicas e permite seu aprimoramento. Este estudo teve como objetivo conhecer as organizações envolvidas no atendimento de mulheres em situação de violência, considerando a rede de agências e equipamentos sociais disponíveis em um município paulista. A investigação propôs-se a compreender a inserção dos diferentes setores, excetuando-se o de saúde, nessa rede de atendimento.

Trajetória metodológica Participantes Com base em critérios de amostra de conveniência foram entrevistados 11 atores sociais, totalizando sete homens e quatro mulheres, com idades variando entre 32 e 72 anos e nível de escolaridade superior. Todos declararam que estavam empregados e participavam diretamente do cenário da assistência e enfrentamento à violência contra a mulher no município de Ribeirão Preto-SP. Esses participantes foram considerados informantes-chave por serem reconhecidos como profissionais que integram a rede de serviços de enfrentamento da violência. Foram selecionados e aceitaram participar

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RECURSOS SOCIAIS PARA APOIO ÀS MULHERES ...

do estudo profissionais: da Polícia Militar do Estado de São Paulo, da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), do Conselho Tutelar, da Vara de Infância e Juventude, da Vara Criminal, da Vara de Família e de duas Organizações Não Governamentais (ONG), locais de enfrentamento à violência contra a mulher.

Procedimento O acesso aos informantes-chave foi viabilizado pela listagem dos serviços atuantes no município, contendo número, localização e respectiva vocação assistencial. A identificação da rede de equipamentos sociais existentes no território foi obtida em um levantamento sistematizado pela Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto, SP, com a colaboração de organizações locais, para identificação e mapeamento dos serviços que compõem a Rede Social de Apoio para Atenção Integral a Pessoas em Situações de Violência ou Condições de Risco. Essa Rede é composta, atualmente, de cinco agrupamentos de instituições, serviços e entidades de diferentes naturezas: (1) Saúde - composto por: 35 Unidades Básicas e Distritais de Saúde, 12 Núcleos de Saúde da Família e 11 equipamentos de apoio psicológico, que incluem Centros de Apoio Psicossocial (CAPS). (2) Serviço Social - composto por: sete Centros de Referência de Assistência Social (CRAS); 35 equipamentos, como centros comunitários; Centro de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), e outros serviços - Projeto Esperança, que oferece atendimento à mulher submetida à VCM e Programa Sentinela, um serviço de enfrentamento à violência, abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes. (3) Acompanhamento Jurídico e Defesa de Direitos - constituído por oito serviços públicos e privados, que prestam assessoria jurídica gratuita: Assistência Jurídica Municipal, Procuradoria Geral do Estado, Vara da Infância e da Juventude, Promotoria da Criança e do Adolescente, Promotoria da Cidadania, além dos serviços universitários de assistência jurídica vinculados às instituições de Ensino Superior. (4) Instâncias Municipais de Controle Social e Defesa de Direitos - compostas pelo Conselho Tutelar (CT) I, II e III e Conselhos Municipais de Direitos da Mulher. (5) Organizações Não Governamentais (ONGs) - compostas por 25 organizações laicas e religiosas, que prestam solidariedade e disponibilizam recursos para pessoas que se encontram em situação de violência. A estratégia adotada para a coleta de dados foi a entrevista individual. As entrevistas semiestruturadas seguiram um roteiro temático composto por sete questões abertas, elaboradas com tópicos gerais (dimensões ou domínios) extraídos da literatura e da experiência do grupo de pesquisa: 1 Qual a missão de sua instituição no enfrentamento à VCM? 2 De onde recebe o encaminhamento e encaminha para onde? 3 Em que ponto do fluxo se situa sua instituição? 4 Que atores seriam incluídos nesse fluxo e em que ponto seria incluída a saúde? 5 A promulgação da Lei Maria da Penha acrescentou algo ou modificou seu trabalho? De que forma? 6 Como o(a) sr.(a) percebe seu papel na atenção à mulher submetida à situação de violência? 7 O sr.(a) considera importante a consolidação de uma rede articulada com uma capacitação profissional? O instrumento foi testado, por meio de uma aplicação-piloto, em dois profissionais, que não foram incluídos no grupo investigado. As entrevistas foram realizadas entre 31 de maio e 26 de julho de 2007, e duraram, em média, quarenta minutos. Foram aplicadas de forma individualizada, face a face, ao longo de um único encontro, que se deu no local de trabalho dos participantes, de acordo com suas disponibilidades. Os participantes foram convidados a dar seu depoimento de forma livre, orientado apenas pelas questões norteadoras do roteiro, garantindo-se seu direito ao anonimato e sigilo. Para registro das verbalizações, foi utilizado um gravador, mediante anuência prévia dos participantes. Para cessar a fase de coleta, empregou-se a técnica de saturação dos dados, definida como a suspensão da inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na percepção do entrevistador, certa redundância ou recorrência de conteúdos (Fontanella, Ricas, Turato, 2008).

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SANTOS, M.A.; VIEIRA, E.M.

artigos

Os registros audiogravados das entrevistas foram transcritos na íntegra e de forma literal. O material transcrito constituiu o corpus de análise. As entrevistas transcritas foram pré-analisadas no decorrer do processo de coleta de dados, de modo a possibilitar a identificação do momento em que se alcançou a saturação dos dados. Para organização dos resultados, o material foi submetido à análise de conteúdo temática, identificando-se os núcleos de sentido contidos nas falas das participantes. O método utilizado desdobra-se em três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos, inferência e interpretação. Para organização dos dados foram utilizados os procedimentos descritos (Valles, 1997) para análise de conteúdo temática: pré-análise; exploração do material e tratamento dos resultados obtidos; interpretação, inferência e interpretação. Nesse procedimento de análise foram selecionadas dimensões temáticas (temas emergentes), que se revelaram relevantes para os objetivos da pesquisa. Para resguardar a identidade e manter o anonimato dos participantes, optou-se por identificá-los pela denominação genérica Informantes, seguida da organização de procedência, já que vários profissionais poderiam ser facilmente identificados por serem os únicos representantes de sua categoria na pesquisa.

Cuidados éticos O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

Resultados e discussão Foram identificadas três categorias/dimensões de análise, que emergiram das falas com maior força. A primeira categoria/dimensão, “a missão da instituição no enfrentamento à VCM”, analisa as percepções dos profissionais acerca dos objetivos institucionais, considerando como essa situação é vivida por esses informantes, bem como a relação destes com suas respectivas organizações. A segunda dimensão, “limites da atuação dos profissionais”, resulta dos entraves e limitações que os entrevistados percebem em seu campo de atuação específico. A terceira e última dimensão de análise, “a inserção de cada instituição no fluxo de atendimento”, procura explicitar o modo como os participantes percebem a localização de suas respectivas organizações na rede, considerando, em especial, as potencialidades e os pontos problemáticos decorrentes dessa posição que ocupam no fluxo.

A missão da instituição no enfrentamento à violência contra a mulher Os entrevistados, de modo geral, mostram-se sensibilizados e informados sobre a questão da violência. Conhecem bem a missão de sua instituição ou organização, seu papel social e o teor legal da luta contra a violência. Estão atentos para os detalhes do cumprimento da lei e para a resolução dos problemas relativos a essa questão. Demonstraram ter experiência em relação à aplicação de medidas legais ou de apoio e assistência. Destacam, como pontos positivos: a mudança da legislação, a maior visibilidade social em relação à violência e a assistência que suas organizações se propõem a oferecer. Segundo o informante da Polícia Militar, a missão da corporação é atuar na prevenção da VCM. Também é mencionada a repressão imediata – executar as providências legais tão logo a Polícia seja notificada, como a “prisão do autor da agressão, o socorro à pessoa vitimizada e o amparo inicial até que Assistência Social da Prefeitura tome as demais providências”. Em relação à percepção do papel social da organização militar: “A PM, qualquer que seja a vítima, mas em especial a mulher, a PM encara como uma responsabilidade, social inclusive, tendo em vista que é até desproporcional, né?”. (informante da Polícia Militar)

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RECURSOS SOCIAIS PARA APOIO ÀS MULHERES ...

O informante da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) destaca a maior visibilidade a que a questão da violência tem sido exposta na atualidade como um aspecto fundamental na missão da DDM. “A DDM, no enfrentamento à violência, é... é uma das coisas que eu acredito das mais importantes, porque a partir da criação da DDM foi que aflorou o problema da violência contra a mulher, principalmente a violência doméstica. Então, eu acho que é muito importante a DDM, nesse... vamos dizer assim, nesse clareamento da violência. Até então a violência ficava no âmbito doméstico e a sociedade não tinha, assim, conhecimento. Hoje, graças ao trabalho desenvolvido nas DDMs, eu acho que essa violência tem aflorado”. (informante da DDM)

É interessante notar, na fala dessa informante, que, para ela, porque existe uma DDM é possível “saber” agora que existe violência doméstica. Inverte-se a causalidade: na verdade, a Delegacia foi criada para combater a violência que já existia. Além dessa contradição presente no seu discurso, não há nada em seu depoimento que evidencie que o primeiro passo do combate à VCM é tirar a violência da invisibilidade. A ONG1 oferece atendimento especializado para mulheres vítimas de violência e sua missão é dar apoio, no sentido do empoderamento e reconstrução da vida após o trauma sofrido. “O objetivo maior do Projeto é dar apoio, no sentido de reconstrução e empoderamento desta mulher pós-trauma, pós-agressão”. (informante da ONG1)

O informante reconhece que o Projeto está em fase inicial de desenvolvimento, “uma fase bem embrionária, caminhando”, uma vez que a Lei Maria da Penha, que prevê esse tipo de atendimento, é recente. Os profissionais recebem mulheres encaminhadas do Cetrem, dos atendimentos sociais dos bairros e, também, por iniciativa própria, por busca espontânea. O Informante 1 da Vara Criminal considera que suas funções são aquelas delimitadas pela lei, que está mais rigorosa e mais justa. Afirma que não foram os casos de violência que aumentaram, mas as denúncias, dando maior visibilidade ao problema. “Não que as violências aumentaram, mas a descoberta, as denúncias dos casos aumentaram e isso tem colocado muita paz, muita pacificação nos lares conjugais.” (informante 1 da Vara Criminal)

Outro informante (Informante 2) da Vara Criminal afirma que as ações do Ministério Público, no atendimento das questões que envolvem a VCM, devem se pautar pelos critérios estabelecidos pela Lei Maria da Penha, nos artigos 25 e 26. Isso demanda, do promotor de justiça, uma atuação especializada para identificar as medidas cabíveis em situações de ordem criminal e cível. Quase sempre as medidas protetivas envolvem o afastamento do agressor do contexto familiar, obrigando-o a sair de casa ou consentindo que a vítima saia de casa, caso ela prefira essa solução. Outra medida é a proibição de que o agressor mantenha contato com a vítima ou se aproxime dela e das testemunhas, para evitar que as situações de constrangimento, ameaças e violência se repitam, agravando o problema. Um dos entrevistados (informante da Vara da Infância e Juventude) pondera que todo operador do Direito tende a ser excessivamente formalista em suas ações e que se satisfaz com a sentença que profere, sem se preocupar com a eficácia da mesma no plano da realidade, isto é, na solução efetiva de um problema. “... quando o juiz é chamado a atuar nessa área de infância e juventude, ele se defronta com problemas que extrapolam o mundo formal, são problemas reais. [...] A partir daí, ele passa a desenvolver [...] essa maneira diferente de olhar a questão”. (informante da Vara da Infância e Juventude)

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O informante 1, da organização de enfrentamento à violência contra a mulher (ONG2), declara que se trata de um grupo de atenção à violência doméstica e sexual. A missão da organização é organizar programas e protocolos de enfrentamento na tentativa de minimizar a intensidade desses problemas de saúde pública no âmbito do município. “... organizar programas e protocolos de enfrentamento para que pelo menos se consiga diminuir a intensidade desse problema de saúde pública que existe no mundo inteiro e, portanto, também em nossa cidade”. (informante 1 da ONG2)

O informante 2 dessa mesma organização relata que a missão é dar assistência integral à mulher e à criança/adolescente, ou adulto em geral, em termos físicos, psicológicos e jurídicos, quando necessário. As atividades concentram-se mais no atendimento clínico e psicológico e trabalham em parceria com a DDM. Uma das características principais é ser um grupo articulador das políticas públicas e da assistência à violência doméstica e sexual no município. Para tanto, fomenta discussões junto aos equipamentos de saúde, secretarias de saúde, educação e assistência social. O informante 3, desse mesmo programa especializado de atenção e enfrentamento à violência do município, relata que a missão principal da organização é oferecer às mulheres uma oportunidade de receber assistência psicossocial para o enfrentamento da situação vivida, ultimamente não só de violência sexual, mas também de violência doméstica. É oferecer à mulher a oportunidade de uma assistência psicossocial, que lhe permita ressignificar a violência e tentar, de alguma forma, mudar tal situação.

Limites da atuação dos profissionais Os informantes, espontaneamente, também apontam limites para sua atuação. Alguns referem a própria natureza da situação de VCM, que é doméstica e do âmbito do privado e, nessa medida, mais difícil de ser percebida e de sofrer intervenção do poder público. O informante da Polícia Militar apontou, como fator limitador de sua atuação, o fato de que esse tipo de violência ocorre, “normalmente, no interior das residências, então essa prevenção fica um pouco prejudicada”. O informante 2 da Vara Criminal, contraditoriamente, como se negasse a função do Judiciário na resolução dos conflitos domésticos que envolvem violência e sua caracterização como crime, declarou que: “Uma coisa que eu gosto de destacar é que o processo criminal não é um instrumento para a solução do problema familiar. Problema familiar se resolve na família”. (informante 2 da Vara Criminal)

Os entrevistados também apontaram para os limites institucionais, medidas legais de difícil fiscalização e falta de recursos e equipamentos sociais, como a Casa Abrigo. Como o município ainda não dispõe de uma Casa Abrigo e a polícia não tem condições de oferecer proteção por 24 horas, é difícil conscientizar a mulher a fazer o boletim de ocorrência devido às consequências que ela pode enfrentar, expondo-se à reação do agressor. “... O problema mais agravante que eu vejo nestes casos é que, apesar do esforço de toda a rede, nós não temos em Ribeirão Preto um lugar onde possa acolher estas mulheres vitimizadas. Então, como que uma mulher que é violentada vai fazer um BO, denunciar o agressor e não ter para onde ir? A polícia não tem estrutura para dar este tipo de proteção 24 horas”. [...] (informante do Conselho Tutelar) “Quase sempre as medidas já têm sido protetivas, envolvem o afastamento do agressor do contexto familiar obrigando-o a sair de casa, ou consentindo que a vítima saia de casa se ela preferir esta solução. Existe uma medida que é de difícil fiscalização, mas que também é

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muito freqüente, que é a proibição de que o agressor mantenha contato com a própria vítima ou se aproxime dela, das testemunhas, etc.”. (informante da Vara Criminal)

Outro limite percebido relaciona-se à morosidade dos processos judiciais: “... os processos criminais sujeitam-se a uma pauta relativamente longa porque, além da grande complexidade de atos que têm que ser adotados para dar andamento a um processo, o volume muito grande de processos também gera uma certa demora no julgamento, na coleta de depoimentos, etc. “. (informante 2 da Vara Criminal)

Destaca-se, dentre esses limites, a questão multidisciplinar prevista na Lei Maria da Penha, que demanda recursos de vários setores para sua implementação adequada. O informante da Vara de Família refere que a missão da promotoria é prevista no artigo 26 da Lei Maria da Penha. Contudo, o juizado que irá atuar especificamente na violência ainda não está instalado no município. Quando for o caso, o promotor poderá requisitar força policial e serviços públicos de saúde, educação, assistência social e de segurança, além de fiscalizar atendimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência e cadastrar os casos. A função desse promotor seria, em primeiro lugar, atuar em todos os processos que envolvem VCM. Depois, provocar, no poder público, a instalação de uma série de equipamentos sociais que a Lei prevê, tal como a Casa Abrigo e locais nos quais o homem deve ficar internado. Sem essas medidas previstas, pode “virar uma lei bonita quando lida na teoria, mas sem eficácia prática”. “... essa lei precisa ser entendida não só sob o aspecto criminal, não só sob o aspecto do Fórum, não só juiz e promotor resolvendo o problema, mas, enfim, é uma lei multidisciplinar que passa, necessariamente, pelo juiz, pelo promotor, mas passa também por assistente social, por psicólogo e passa, sob pena da lei não atingir seus objetivos, pela vontade política do poder público, de instalar, por exemplo, casas abrigo, porque senão a lei vira letra morta. Você imagina uma lei que diz que o juiz pode retirar a mulher da casa como medida de proteção, mas, em contrapartida, não há uma casa onde a mulher fique... a lei passa a ter efeito só teórico, passa a ser uma lei só bonita, mas sem nenhum efeito”. (informante da Vara de Família)

Desse modo, determinados aspectos da lei, que são considerados avanços no processo social em relação ao problema da VCM, precisam ser complementados por medidas de cunho político: “De que adianta o juiz mandar a mulher sair de casa, se ela não tem depois onde ser abrigada, [...] onde ela possa permanecer longe do agressor, inclusive com os filhos? Ora, a criação da casa abrigo é algo que depende da vontade política, agora a lei prevê a possibilidade do promotor, através de uma ação civil pública, ingressar com uma ação obrigando o Estado, o município, a instalarem aquele equipamento, então essa me parece uma função importante para o promotor [...]”. (informante da Vara de Família)

A inserção de cada instituição no fluxo de atendimento A Polícia Militar se insere no fluxo de atendimento por meio das denúncias, que são feitas pelas chamadas telefônicas via 190 ou pela constatação, in loco, de evidência de crime durante patrulhamento regular. Isso acontece, segundo o informante da Polícia Militar, “quando, normalmente, um vizinho ou um parente, ou a própria vítima, resolve ligar pra polícia. Aí a viatura vai ao local.” O percurso traçado após o atendimento inicial inclui o socorro à vítima, se for o caso, conduzindo-a ao Pronto Socorro, e o registro da ocorrência na delegacia de polícia. A assistente social da Prefeitura e o promotor público são acionados nos dias úteis.

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A DDM se insere no fluxo acolhendo os casos que chegam, realizando os procedimentos legais, como os flagrantes, por vezes, prisão preventiva. A mulher geralmente chega fragilizada e, além do atendimento policial, recebe um atendimento psicossocial com profissionais da Universidade e encaminhamento para a ONG, um grupo de estudo e apoio às vítimas de violência, e contam, ainda, com o suporte de outros meios disponíveis, como encaminhamento para apoio jurídico, Fórum, entre outros. “Nos casos de violência doméstica que chegam à DDM, são feitos os procedimentos legais, casos de flagrantes, às vezes até prisão preventiva, então na DDM o trabalho é policial, certo?... A mulher que, normalmente, chega fragilizada à DDM, a vítima de violência, é... atualmente, nós temos aqui o [ONG], é o atendimento psicossocial com profissionais ...e elas são encaminhadas para este serviço, que é um grupo de estudos e apoio às vítimas de violência, e as que têm interesse – algumas não têm, não querem... algumas são encaminhadas também para a parte jurídica, nas faculdades que prestam este serviço ou o Estado, os meios que existem, disponíveis, e os procedimentos legais são encaminhados ao Fórum”. (informante da DDM)

A maioria das denúncias que chegam ao CT provém da escola, tendo em vista que, dificilmente, a pessoa violentada procura o CT. Crianças e adolescentes, quando vitimizados, geralmente são eles que saem de casa, e não o agressor familiar. O informante da Vara Criminal afirma que recebe o processo da delegacia de polícia, a partir do qual várias medidas serão tomadas: “Geralmente recebemos via delegacia de polícia, porque é o órgão competente para investigar os crimes desta primeira fase e é difícil dizer para onde normalmente a gente encaminha porque depende caso a caso. Normalmente as medidas são de afastamento do agressor do lar conjugal, pensão e algumas outras questões, mas o que se visa principalmente afastar e fazer cessar a agressão”. (informante da Vara Criminal)

O informante da Vara Criminal relata que, em nosso sistema judiciário, o processo é desencadeado por uma provocação que a vítima faz à polícia, militar ou civil, que encaminha o expediente ao Fórum para ser distribuído a uma das varas criminais. Assim que a distribuição ocorre, o processo é encaminhado ao Ministério Público com o máximo de brevidade, e o promotor, imediatamente, faz as solicitações de urgência para atender aquela situação. Também requer, junto ao juiz, que sejam tomadas as medidas mais adequadas a cada caso. Pela nova legislação, todo caso que envolve violência doméstica é encaminhado para uma vara criminal. O primeiro contato é quando o expediente chega da polícia. O promotor criminal recebe o processo e analisa as medidas de proteção que a mulher solicitou – lembrando que a Lei prevê uma série de medidas protetivas. “O promotor criminal (MP) recebe o processo e analisa as medidas de proteção que a mulher pediu. A lei prevê uma série de medidas de proteção: a proibição do homem se aproximar, a separação de corpos, a proibição de o homem manter qualquer tipo de contato com a mulher e com os filhos, etc. [...] O promotor vai pedir, então, que se adotem uma daquelas medidas de proteção, dentre aquelas que ele achar adequada.” (informante da Vara de Família)

O presidente da ONG de enfrentamento à VCM esclarece que a mulher assistida pode ser encaminhada para diferentes unidades de saúde, dependendo de a situação de violência, tanto doméstica como sexual, ser recente ou crônica. No caso de violência sexual aguda, o primeiro atendimento é emergencial, efetuado em uma Unidade de Emergência, onde são realizadas profilaxias em relação ao contágio pelo HIV e outras doenças infectocontagiosas, além dos procedimentos de

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anticoncepção de emergência. Já a violência doméstica tem sido atendida na DDM. Ainda que enfrente algumas dificuldades em alguns setores, a ONG praticamente já está atendendo, ainda que com certa dificuldade, tanto a violência doméstica e sexual recém-ocorrida, como a crônica. A assistente social do serviço especializado de atenção e enfrentamento à violência lembra que o atendimento da ONG se insere no nível terciário, sobretudo na atenção à violência sexual, que foi o principal objetivo que levou à implantação do serviço. Mas o objetivo geral também inclui a assistência à violência física e psicológica cometida pelo parceiro íntimo, por ela denominada de violência doméstica. “... Observando-se que muitas dessas mulheres já tinham sofrido também violência doméstica, é que se estabeleceu uma parceria junto à DDM para dar este acolhimento a essas vitimas, para que elas não ficassem em pingue-pongue, sem ter o local certo para se dirigir. Então, nesse sentido que o [ONG2], nesta articulação das políticas, também montou este serviço junto aos estagiários do Serviço Social e da Psicologia, para que se pudesse formar profissionais nesta área e dar acolhimento, tão necessário, para estas pessoas que sofrem violência”. (informante 2 da ONG2)

Em relação aos encaminhamentos efetuados: “Todos os encaminhamentos são feitos por qualquer profissional que tenha conhecimento que a pessoa sofreu algum tipo de violência sexual. Então, a porta de entrada da atenção do serviço é a Unidade de Emergência, um atendimento 24 horas, tem equipamento laboratorial e profissional para atender independente do horário que chega, e depois o seguimento no HC-Campus. [...] Todos os casos na primeira semana, sete dias depois, eles vêm aqui para o atendimento no ambulatório. Lá ela vai ficar até seis meses para poder completar o atendimento orgânico dela e psicológico. [...] A mulher é encaminhada para o atendimento no grupo, [...] ou vai para as parcerias das universidades. As violências físicas a gente também está se articulando com a ONG1, que é um centro de referência do município no atendimento à mulher, para que ele possa dar assistência psicológica, encaminhá-la para assistência jurídica e participar dos grupos... lá, para estar integrando essa mulher, tanto no mercado de trabalho, como na vida social”. (informante 2 da ONG2)

Em seu depoimento, essa informante revela sua preocupação com a descontinuidade da assistência: “Este é um trabalho que está começando aí, ele tem algumas dificuldades, mas que é de grande importância como uma rede de apoio à mulher. Na maioria das vezes, ela ainda tem muita dificuldade de fazer o acompanhamento psicológico, de manter todo um atendimento, ela interrompe este atendimento e isso acaba dificultando sair dessa rede de violência, que ela ainda é uma presa fácil a voltar para um relacionamento com o seu agressor, mas tudo leva tempo. Essa mulher vai ter que se fortalecer para realmente conseguir sair dessa relação, mas nosso papel aqui não é nem estar julgando, e sim oferecer essa rede de apoio para que ela possa, no momento certo, sair dessa situação”. (informante 2 da ONG2)

A informante 2, que atua na ONG, confirma que o programa especializado está na porta de entrada na questão da violência sexual. Também atua na abordagem da violência doméstica - agora com participação direta junto à DDM, a ONG tem prestado assistência assim que a mulher procura o atendimento. Os encaminhamentos, no caso de violência sexual, vêm via UBS/UBDS, DDM. Já na questão da violência doméstica, além desses serviços, as escolas e outras unidades de acompanhamento têm feito encaminhamentos. Existe um grupo de apoio às mulheres vitimizadas e a ONG também conta com uma psicóloga voluntária que oferece assistência psicológica à mulher.

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Discussão Os entrevistados, de maneira geral, mostraram que estão sensibilizados para a questão da violência de gênero, conhecem bem a missão de sua instituição/organização em que atuam e o papel social que desempenham, bem como o teor legal da luta contra a violência. Estão atentos para os detalhes do cumprimento da lei e para a resolução do problema da VCM. Demonstram ter experiência em relação à aplicação das medidas legais ou de apoio e assistência. A análise de suas falas permitiu desvelar os limites percebidos na atuação. Esses limites dizem respeito à própria natureza da situação, que, geralmente, é doméstica e do âmbito do privado, e à falta de equipamentos e recursos sociais. Há percepção de que parte substancial do trabalho está apenas começando e, nesse sentido, são reconhecidas as dificuldades de se construir esse percurso. Por outro lado, apontam para as questões políticas envolvidas para melhorar os recursos existentes e criar outros, como a Casa Abrigo ou Juizado específico. Os achados do presente estudo corroboram os apontamentos de Schraiber, d’Oliveira e Falcão (2005), que reconhecem que a DDM é uma política válida, mas pontuam que, para sua maior eficácia, são necessários ajustes em termos de aparato legal, treinamento e educação de seu pessoal, além de melhor articulação com a rede intersetorial. Segundo as autoras, a DDM tornou-se a porta de entrada mais reconhecida e legitimada pelas mulheres, mas as demandas de quem está vulnerável vão muito além da redução do problema à esfera criminal. Há demandas de múltiplas ordens: de assistência psicológica, amparo social, orientação jurídica, moradia, creche, escola, necessidades de trabalho para aquisição de autonomia financeira, tratamento de saúde, entre muitas outras, o que torna necessário o apoio profissional e aquisição de conhecimentos para se enfrentarem os obstáculos. Muitas vezes, as mulheres não têm condições objetivas de abandonarem a relação violenta na qual se encontram aprisionadas, por falta de acesso aos meios e recursos necessários para lidarem com essas questões complexas. As conexões com o setor saúde existem e fazem parte da rotina de assistência, sobretudo das ONGs, mas precisam ser melhor organizadas e se articularem com a rede de atenção primária do município. O fato de haver um protocolo instituído para o atendimento à violência sexual parece favorecer a percepção do itinerário que a vítima deverá traçar para estes casos. Também se percebeu a necessidade de capacitação nas falas de alguns informantes que não reconhecem a complexidade do enfrentamento da violência, embora outros participantes tenham enfatizado a demanda de maior atenção à formação dos profissionais, o que sugere que é preciso qualificar e complexificar o debate em torno da violência contra a mulher. A Lei 11.340/2006 (Brasil, 2006) prevê as funções da equipe multidisciplinar, nos artigos 29 a 32, para prover orientação e encaminhamento das partes envolvidas, bem como a prevenção e, também, a assessoria aos magistrados. Chama a atenção que essa questão não é mencionada nos depoimentos dos juízes e promotores, nem as conexões com o setor saúde. Nessa vertente, seria importante que os operadores de Direito tomassem conhecimento das experiências bem-sucedidas que estão acontecendo no contexto forense (Vieira et al., 2006). Para esses autores, a intervenção multidisciplinar deve permitir desmistificar os estereótipos de gênero e assegurar as condições para que a mulher se engaje em um processo de mudança pessoal, que contribua para afirmar o valor intrínseco e singular de sua subjetividade. A literatura sugere que, para que o trabalho seja integrado, é essencial que haja uma boa comunicação entre os diversos profissionais que compõem a equipe multiprofissional. Essa comunicação fluida é o veículo que permite que os profissionais tomem conhecimento dos casos por meio das intervenções psicoterápicas e de outras modalidades de atendimento direto (Angelim, 2009). Dessa maneira, a equipe acaba por se tornar uma das melhores opções para o encaminhamento aos demais serviços da rede de atendimento, como: casas abrigo, hospitais, núcleos de Defensoria Pública, ONGs especializadas, serviços de atendimento psicológico, recursos da comunidade (Alcoólicos Anônimos, terapia comunitária, Conselho dos Direitos das Mulheres). Nota-se, assim, que há uma defesa da construção conjunta da conduta, por meio da conjugação dos diferentes saberes e fazeres de cada especialista. Em nosso entendimento, na concepção subjacente a esse modo de funcionar em equipe, o

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conhecimento específico, que está sob domínio de cada disciplina, acabaria compondo, ao final, uma totalidade, que diluiria as fronteiras estanques que reproduzem a excessiva fragmentação do saber e a atomização da prática, que caracterizam o processo de produção do conhecimento científico nos últimos séculos. Esse ideal de conjugação de diferentes olhares e perspectivas abre caminho para a conquista da almejada transversalidade dos saberes, mesmo que preservando as competências específicas do olhar de cada especialidade. Há, nessa concepção, um elemento inovador, solidário com o novo paradigma científico emergente, que aposta: na interdisciplinaridade, no respeito às diferenças, na defesa de uma ética relacional de corresponsabilização dos atores sociais, na busca compartilhada de soluções que permitam superar os problemas das pessoas, na humanização e produção da integralidade do cuidado. Com base nos achados da presente investigação, algumas recomendações podem ser delineadas no sentido de orientar as propostas de políticas públicas. Uma forma de articular os vários setores é a implementação dos Centros de Atendimento Multidisciplinar, que teriam, como missão, viabilizar as condições necessárias para a integração da rede de serviços, ao promoverem a formação continuada dos profissionais, conhecimentos e habilidades específicas para a atuação profissional em casos de VCM (Angelim, 2009). A implantação desses Centros nas diferentes regiões e realidades que constituem um país de dimensões continentais como o Brasil ainda está distante da realidade. Por outro lado, já é consenso estabelecido, entre os profissionais que atuam na área, que o paradigma da intervenção multidisciplinar é condição sine qua non para se alcançar a amplitude exigida na abordagem dos casos de VCM. Por outro lado, na perspectiva dos informantes das organizações, parece ter havido iniciativa, sob liderança da sociedade civil representada pelas ONGs, de se estabelecerem parcerias entre setores, como a Universidade e a Polícia. Este é o caso do relato do serviço de Psicologia implantado na DDM como campo de estágio profissionalizante para graduandos, o que mostra a preocupação de oferecer, ao mesmo tempo, assistência e qualificação aos futuros profissionais. Acreditamos que a questão da qualificação assume importância capital quando se reconhece que o profissional que atua nesse campo depara-se, em seu cotidiano, com uma teia densa de problemas humanos. Essa questão é congruente com a literatura, que sugere que é preciso qualificar e complexificar o debate em torno da VCM. É necessário pensar um projeto de qualificação dos profissionais da rede que os leve a compreenderem as dimensões político-ideológicas do patriarcado e das relações de gênero, bem como do ciclo de reprodução da violência (Angelim, 2009). Para que esse projeto se viabilize, é preciso articular e fortalecer as instâncias comunitárias em que as mulheres poderão encontrar reconhecimento de seus direitos sociais por parte dos profissionais.

À guisa de conclusão A produção científica voltada ao tema específico do presente estudo – os recursos sociais para apoio a mulheres em situação de violência – ainda é relativamente escassa no cenário nacional. Este estudo buscou conhecer a organização e funcionamento dos serviços que acolhem mulheres em situação de violência em Ribeirão Preto, SP. Os resultados obtidos permitiram compreender a inserção dos outros setores em meio à rede articulada de assistência e enfrentamento da situação de VCM, bem como conhecer a missão das diferentes organizações e sua inserção no fluxo de atendimento. Também permitiram conhecer os limites de atuação e seus obstáculos, embora nem todos os participantes considerem que haja problemas no modo como a rede comunitária está organizada. Os representantes da polícia e do Poder Judiciário reconhecem a necessidade de se ter uma ótica diferenciada daquela que os operadores da lei utilizam diante de outros delitos e conflitos, considerando a complexidade e especificidade do fenômeno da VCM. Os técnicos da ONG apontam para a ausência de recursos sociais e de vontade política para a implantação de medidas de enfrentamento da violência, bem como a falta de iniciativas criativas para organizar novos modelos. Pensar e agir em rede produz questionamentos às estruturas hierarquizadas e ajuda a gerar mudanças e deslocamentos de poder (Meneghel, Vial, 2008). Os operadores sociais ouvidos por esta 104

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pesquisa, embora tenham se mostrado sensíveis a essa questão, não formularam, de fato, um pensamento em rede. De maneira geral, a organização entre os serviços pauta-se por uma concepção de cuidado fragmentado frente à situação da VCM. Dependendo do vértice com que se focaliza o problema – policial, jurídico, psicossocial – há um serviço que se propõe a lidar com a questão. A política posta em ação não prevê articulações efetivas e estabelecimento de parcerias. Os achados sugerem a necessidade de treinamento e capacitação para os profissionais, bem como um maior entrosamento e conhecimento dessa realidade. Vieira et al. (2009) também constataram necessidades de capacitação no atendimento à VCM em profissionais de saúde. A capacitação é um passo fundamental para se articular o trabalho em rede, de modo a fortalecer os direitos de cidadania e assegurar o acesso pleno e a qualidade do serviço prestado às mulheres em condição de vulnerabilidade. A formação qualificada amplia a possibilidade de que a intervenção seja apropriada em qualquer momento do ciclo de violência, levando à sua interrupção. Nessa vertente, conhecer a articulação intersetorial das diversas agências e equipamentos sociais que acolhem VCM é um passo importante para a consolidação de serviços de referência/contrarreferência. A literatura sugere que só é possível formar uma estrutura de atendimento por meio da consolidação de uma rede de serviços que alcance os diferentes níveis que constituem e mantêm as condições para que persista a violência (Schraiber, d’Oliveira, Falcão, 2005; Angelim, 2009). Ao se considerarem os resultados obtidos no presente estudo, uma recomendação que pode ser dirigida às Políticas Públicas é a de que não há como executar um trabalho eficiente de enfrentamento à violência de gênero sem o apoio de equipes de profissionais especializados que atuem em rede. A atuação nesse campo complexo requer o domínio de conhecimentos, habilidades e competências específicas para interpretar as situações e buscar soluções para os problemas que se apresentam.

Colaboradores Manoel Antônio dos Santos participou do planejamento da pesquisa, realizou a análise dos dados e a redação final do manuscrito. Elisabeth Meloni Vieira coordenou e desenhou a pesquisa, supervisionou a coleta e análise dos dados, e participou da redação final do trabalho. Agradecimentos Agradecemos o apoio recebido da Fapesp e do CNPq, que proporcionaram o desenvolvimento do projeto de pesquisa que originou este artigo (processo nº 2006/ 61922-9 FAPESP-CNPq-SUS). Referências ALMEIDA, S.S.; SOARES, B.M.; GASPARY, M. (Orgs.). Violência doméstica: bases para a formulação de políticas públicas. Rio de Janeiro: Revinter/Faperj, 2003. ANGELIM, F.P. A importância da intervenção multidisciplinar face à complexidade da violência doméstica. In: LIMA, F.R.; SANTOS, C. (Orgs.). Violência doméstica: vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2009. p.125-36. ANGULO-TUESTA, A.J. Violência contra a mulher: interfaces entre os setores de saúde e de direito. 2005. Disponível em:<http://www.saude.ba.gov.br/conferenciaST2005/ cdrom/CD%20colet%C3%A2nea%20leis%20e%20textos/Artigos/26.doc>. Acesso em: 28 ago. 2009.

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RECURSOS SOCIAIS PARA APOIO ÀS MULHERES ...

SANTOS, M.A.; VIEIRA, E.M. Recursos sociales para el apoyo a las mujeres en situación de violencia en Ribeirão Preto, estado de São Paulo, Brasil, en la perspectiva de informantes-clave. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.93-108, jan./mar. 2011. El objetivo de este estudio fue conocer las organizaciones que acogen a mujeres en situación de violencia, teniendo en cuenta la red de agencias y equipamientos sociales disponibles. Se utilizó planteamiento cualitativo con entrevistas semi-estructuradas a 11 representantes de instituciones como Policía Militar, Comisaría de Defensa de la Mujer, consejo tutelar, jueces y promotores del Juzgado de Infancia y Juventud. Utilizando análisis de contenido, los resultados fueron sistematizados en tres categorías: misión de la organización, límites de actuación e inserción en el flujo de atención. Los resultados apuntan que los entrevistados se muestran sensibilizados e informados sobre la cuestión de la violencia contra la mujer. Los servicios no tienen conocimiento de la amplitud de la red de apoyo y por eso actúan de modo desarticulado. En consecuencia, el flujo de atención se puede fragmentar y no permitir el seguimiento en todos los niveles. Los datos indican necesidad de mayor interrelación y capacitación para profesionales.

Palabras clave: Violencia contra la mujer. Redes comunitarias. Apoyo social. Género y salud. Salud de la mujer. Recebido em 25/01/10. Aprovado em 30/09/10.

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artigos

Aspectos da identidade na experiência da deficiência física: um olhar socioantropológico *

José Alves Martins1 Reni Aparecida Barsaglini2

MARTINS, J. A.; BARSAGLINI, R. A. Aspects of identity in the experience of physical disabilities: a social-anthropological view. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.109-21, jan./mar. 2011. This article analyzed the experience of physical disability by focusing on individuals’ identity, which was discussed through the categories “being and feeling deficient” and “stigma”, guided by self-concept as a sociocultural construction that is updated daily and entered into a singular trajectory. This was a qualitative study of socialanthropological nature based on phenomenology. Eight men and five women with acquired physical deficiency were interviewed using a semi-structured interview plan, and the data were subjected to thematic analysis. Being and feeling deficient involved an ambiguity in relation to the reductionist concept that guides the system legitimizing this condition, which is faced with a more comprehensive meaning expressed in everyday performance. Identity was reaffirmed as a self-concept (re) constructed in subjective and intersubjective interactions, without detachment from a historically, culturally and socially contextualized biography.

O artigo analisa a experiência da deficiência física enfocando a identidade das pessoas, discutindo-a pelas categorias “ser e sentir-se deficiente” e “estigma”, balizadas pelo autoconceito como construção sociocultural, atualizadas cotidianamente e inscritas em uma trajetória singular. Trata-se de pesquisa qualitativa de cunho socioantropológico fundamentada na fenomenologia. Foram entrevistados oito homens e cinco mulheres com deficiência física adquirida, guiando-se por roteiro semiestruturado, cujos dados foram submetidos à análise temática. Ser e sentir-se deficiente comporta uma ambiguidade diante do conceito reducionista que orienta o sistema legitimador dessa condição, confrontado com um significado mais englobante expresso no desempenho cotidiano. Reafirma-se a identidade como autoconceito (re)construído nas interações subjetivas e intersubjetivas, não descolada de uma biografia histórica, cultural e socialmente contextualizada.

Keywords: Physical disability. Anthropology and health. Stigma. Experience of illness.

Palavras-chave: Deficiência física. Antropologia e saúde. Estigma. Experiência da enfermidade.

* Elaborado com base em Martins (2009); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso, sem conflitos de interesse. 1 Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso. Centro Político Administrativo, Palácio Paiaguás, Bloco D. Cuiabá, MT, Brasil. 78.049-902. zefisio@hotmail.com 2 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Mato Grosso.

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ASPECTOS DA IDENTIDADE NA EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA FÍSICA ...

Introdução A deficiência física integra o quadro das condições crônicas (Brasil, 1998), às quais os princípios preconizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) pressupõem atenção, sendo crescente a sua importância na Saúde Pública, expressa pelas iniciativas governamentais de descentralização dos serviços, incluindo os de reabilitação, por força da criação dos Núcleos de Apoio a Saúde da Família – NASF3. Como as condições crônicas constituem problemas de saúde que requerem autogerenciamento permanente ou por um longo período, os modelos de atenção em saúde baseados na abordagem comunitária devem instituir, no cotidiano de suas práticas, aspectos importantes da vivência dessa condição fornecidos pelos seus portadores, o que reforça a necessidade de pesquisas sensíveis à escuta do outro nessa área. Considerando que as pessoas possuem legitimidade natural para transmitir seus significados às instâncias que lidam direta ou indiretamente com elas, é pertinente abordar a deficiência em primeira pessoa e, para tanto, são oportunas as contribuições dos estudos da experiência da enfermidade (Rabelo, Alves, Souza, 1999) e das condições crônicas (Canesqui, 2007) que enfatizam as interações na sua vivência, dando voz aos adoecidos que a interpretam nas situações concretas do mundo da vida. Os estudos sobre a experiência da enfermidade desenvolveram-se, sobretudo, no contexto norte-americano a partir da década de 1950, como reação ao medicocentrismo presente nas teorias sociológicas orientadas pelo funcionalismo, e tendo como marca a ênfase no processo subjetivo da vivência da enfermidade (Canesqui, 2007). Tais estudos assentam-se, basicamente, na interpretação e significados da enfermidade, seus impactos na vida e seu gerenciamento diário, com sutis variações nas abordagens, mas que concordam ser a experiência construída socialmente, diferenciando-se quanto ao peso atribuído ao indivíduo ou aos elementos externos naquelas construções (Canesqui, 2007). A corrente filosófica da fenomenologia, sob influência do pensamento de Edmund Husserl e Max Weber e sistematizada por Alfred Schutz no âmbito da sociologia, mostrou-se oportuna à compreensão da experiência, ainda que se verifiquem variações nas abordagens propriamente empregadas nestes estudos, ora mostrando-se originais, ora combinadas ou relidas. No contexto nacional, na área das ciências sociais e saúde, destaca-se a discussão teórica sobre a experiência, empreendida por Alves (1993), com a relevante publicação da coletânea organizada sobre o assunto (Rabelo, Alves, Souza, 1999), em que a fenomenologia esteve fortemente presente na orientação dos trabalhos e cujas contribuições à análise da experiência foram, mais recentemente, rediscutidas por aquele mesmo autor (Alves, 2006). Para a análise da experiência da deficiência física proposta, retém-se, da fenomenologia de Schutz, o enfoque na vida cotidiana e a interpretação do mundo que surge dela (Schutz, 1979). A interpretação, aqui, envolve o plano subjetivo e intersubjetivo na ação de atribuição de significados à realidade, dotando-a de sentido e tornando-a, portanto, um mundo coerente que pressupõe a existência de uma relação entre as experiências. Embora este autor reconheça a existência de outras dimensões da experiência, advoga a preponderância do mundo da vida cotidiana na sua constituição. Admite a singularidade da interpretação, apoiando-se no conceito de situação biográfica que particulariza/personaliza a experiência, mas que ocorre no mundo da vida, ou seja,

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1 Constitui Estratégia do Ministério da Saúde para o fortalecimento da Atenção Básica por meio da ampliação das equipes mínimas da Saúde da Família, com a inserção de novos profissionais de saúde (fisioterapeuta, psicólogo, fonoaudiólogo, educador físico, Médico especialista etc). Apesar de não ter caráter exclusivo para a reabilitação, dentre as várias competências e responsabilidades de todos os profissionais que compõem o NASF, estão descritas várias metas e ações em prevenção, reabilitação e inclusão social da pessoa com deficiência (Brasil, 2008).


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artigos

na esfera das experiências cotidianas, que existia muito antes do nosso conhecimento, vivenciado e interpretado por outros. São estes significados anteriores acessíveis pelas interações sociais que constituem o estoque de conhecimentos à mão transmitido por nossos pais, professores, predecessores, o qual funciona como um código de referência para interpretar a experiência atual em curso (Schutz, 1979). Berger e Luckman (1985) trarão à cena a dimensão objetiva envolvida no processo interpretativo no mundo da vida cotidiana, influenciando-a num contexto de ordem, direção e estabilidade. Estes elementos mais estáveis colocarão, em certo grau e simultaneamente, limites à plasticidade da existência humana, mediando a ação. Todavia, será com Hunt, Jordan, Irwin (1989), Hunt, Valenzuela e Pugh (1998) e Hunt e Arar (2001) que se encontrará um equilíbrio entre as dimensões micro e macrossociais, ao tratarem da experiência da enfermidade crônica, o qual se transpôs para a deficiência física, ressalvando-se que esta não constitui necessariamente uma doença. Os autores entendem a experiência da condição crônica influenciada pelo seu próprio curso; pela persistência de construtos prévios (ideias, crenças) referentes àquela condição, levando a constantes explicações e reinterpretações ao longo do convívio com ela; e pelo ambiente social expresso pelas circunstâncias da vida diária dos sujeitos e na sua inserção na estrutura social (Hunt, Valenzuela, Pugh, 1998). Acrescenta-se que a vivência de determinadas condições crônicas pode constituir uma experiência estigmatizante (Canesqui, 2007), como no caso da deficiência física. Recorre-se, aqui, ao estudo clássico, de cunho interacionista, desenvolvido por Erwing Goffman (1988) sobre o estigma, que consiste de marcas corporais que informam sobre o status moral, afetando e deteriorando a identidade do seu portador ao diferenciá-lo de forma depreciativa, podendo gerar comportamentos sociais defensivos (que amenizam a identificação da sua condição) ou, mesmo, o isolamento social. Trata-se de um julgamento antecipado sobre a identidade da pessoa em detrimento do restante de suas qualidades (Goffman, 1988) e, portanto, de uma classificação cujos parâmetros encontram-se nos valores construídos e compartilhados em um dado tempo e espaço. Goffman explica que isso ocorre porque a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Reafirma-se, então, a identidade como autoconceito, construído e reconstruído nas interações subjetivas e intersubjetivas, não descolada do contexto histórico e social mais amplo; e, o estigma, como uma marca que informa sobre a identidade. Na deficiência física, a visibilidade dessa condição, e suas consequências, podem ser exacerbadas, pois considerável parte dos sinais está corporificada na aparência, forma, tamanho e funcionalidade, denunciando a diferença. Lembramos que as experiências corporais ocorrem em e por particulares situações de vida e em um corpo socializado. Se as teorias auxiliam a compreensão da realidade, suas limitações nos levam a tais composições para não incorrer numa inversão, em que os fatos são enquadrados às possibilidades teóricas. Assim é que, para além da introspecção, na experiência da deficiência física, considera-se que o sujeito em ação lida com as contingências da vida diária atribuindo sentido aos acontecimentos, a partir da diversidade de matrizes de significados e práticas potencialmente disponíveis, mas que tem também, como pano de fundo, elementos macrossociais que podem constranger ou viabilizar a conformação das interações e interpretações. Enfim, visando relativizar os “determinismos” na experiência da deficiência física, admitem-se múltiplas influências, numa relação de circularidade entre elementos objetivos, subjetivos e intersubjetivos, materiais e simbólicos, a serem considerados numa biografia contextualizada - daí o caráter socioantropológico desta abordagem. Diante disso, este artigo analisa a experiência da deficiência física, enfocando a identidade das pessoas, discutindo-a pelas categorias “ser e sentir-se deficiente” e “estigma”. São aspectos simbólicos centrais da experiência dessa condição, na qual se articulam o conceito e os significados da deficiência, a noção e a relação com o corpo, balizados pelo autoconceito como construção sociocultural atualizada cotidianamente e inscrita em uma trajetória singular contextualizada.

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ASPECTOS DA IDENTIDADE NA EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA FÍSICA ...

Procedimentos metodológicos Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre a experiência da deficiência física como uma condição crônica (Martins, 2009), para a qual os dados foram coletados junto a oito homens e cinco mulheres com deficiência física adquirida, pertencentes a segmentos populares, empregando-se entrevista com roteiro semiestruturado, realizadas nas respectivas residências. Entre os informantes, há predominância de: idade acima de cinquenta anos; deficiência adquirida por doenças crônicas ou causas externas (violências e acidentes); separação após período de união estável; no máximo, primeiro grau completo; aposentado(a) ou com acesso ao benefício continuado do governo federal e com renda familiar abaixo de três salários-mínimos. São usuários de serviço público de saúde de um bairro periférico do município de Várzea Grande, MT. A entrevista orientou-se pelo relato oral (Queiroz, 1987), que a pressupõe, mas constitui procedimento distinto, verificando como o sujeito situa o evento da deficiência física adquirida na totalidade de sua vida. De acordo com esta autora, ao discorrer sobre um evento específico (solicitado e dirigido pelo pesquisador), o que é transmitido ultrapassa o caráter individual e se insere nas coletividades das quais o sujeito faz parte. Isso quer dizer que, o evento é focalizado, mas não se ignoram as influências que nele se cruzam e, por isso, sua organização em relato sintetiza informações pertinentes às suas diferentes relações (objetivas, subjetivas, intersubjetivas). As entrevistas foram gravadas, transcritas e submetidas à análise temática, não sob a influência da análise de conteúdo na sua forma tradicional, contando a frequência das unidades de significados, mas por meio da presença de determinados temas que podem denotar o pensamento coletivo expresso no discurso individual, ou seja, os núcleos de sentido cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objeto analítico visado (Minayo, 2006). Outros dados emergiram de momentos “informais”, expressos nas manifestações verbais e não verbais, e, sobretudo, da observação do ambiente comunitário e doméstico por ocasião das entrevistas, registrados em diário de campo. Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso, e os sujeitos foram identificados por nomes fictícios.

Ser e sentir-se deficiente A experiência da deficiência física transita pelos estados de “ser” e “sentir-se” deficiente, que envolvem o conceito e os significados sobre esta condição e incidem sobre a identidade. O esforço dos setores oficiais de saúde para definição e padronização de uma terminologia da deficiência ganha sentido no momento em que se dá voz a essas pessoas e permite-se perceber que os termos para se referir à deficiência são carregados de significados decorrentes de um processo interpretativo acerca dessa condição. Assim, para alguém reconhecer-se como uma pessoa com deficiência, levam-se, em consideração, conceitos que se reportam à capacidade para o desempenho dos “papéis sociais”, e, no conforto moral, conforme os respectivos papéis e compromissos sociais são cumpridos e honrados. Nesse sentido, aproxima-se do significado de doença, verificado junto aos segmentos populares (Queiróz, 2003), quando suas limitações físicas se tornam obstáculos ao desempenho de atividades cotidianas. Neste sentido, ambas podem significar a perturbação de uma certa ordem social mediante uma discordância entre a capacidade individual de desempenho frente as suas próprias expectativas ou do seu grupo social. Essa noção de “ser” e “sentir-se” deficiente se expressa nos depoimentos de um ex-carpinteiro, vítima de acidente de trabalho, e de uma dona de casa com sequela de poliomielite, cuja deficiência significou a quebra ou a ameaça às rotinas diárias: “Eu acho que qualquer pessoa que fazia tudo e depois perde dez ou vinte por cento da capacidade de trabalhar é deficiente. Não sou mais cem por cento, porque cem por cento faz de tudo, então eu já não faço. Então esse é meu problema, não sou mais completo”. (Apolo, 56 anos, amputação)

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“Eu não me acho deficiente, porque eu faço minhas coisas. Eu lavo minha louça, faço minha comida. Deficiente é aquele que está entrevado em cima da cama e não consegue fazer nada [...] as coisas da casa faço com as muletas porque se eu não fizer nem isso, aí eu fico doida! Se nem uma louça, nem uma comida eu fizer, o que é que eu sou? Você tem que fazer alguma coisa pra sair aquilo da cabeça senão a gente se sente pior”. (Afrodite, 38 anos, poliomielite)

Essas pessoas podem sentir-se deficientes ou não, pelo potencial residual para desempenhar atividades laborais que, em geral, em segmentos populares, requerem uma movimentação excessiva do corpo pela demanda da força física que é essencial para sua sobrevivência e da família. Assim, entre trabalhadores braçais, o que primeiro define se a pessoa é deficiente físico, é a sua incapacidade para o desempenho das atividades laborais (físicas), não recaindo no “defeito” em si, mas na expectativa que o grupo social tem desse “defeito” (Camargo, 2000), expressando as dimensões subjetiva e intersubjetiva da experiência da deficiência física. Além disso, os recursos socialmente alocados para a pessoa com deficiência dependem do papel antecipado que a mesma poderá desempenhar como adulto, e podem influenciar na forma como esta condição é vivenciada (Groce, 1999). Nesse sentido, pode haver um enfraquecimento moral pela impossibilidade em desempenhar algumas atividades especificas do seu cotidiano, apontando que elementos objetivos, expressos pelo trabalho e pelo biológico, também impõem limitações ao social. É oportuna a observação de Shakespeare (2005), para quem a deficiência “advém da interação entre corpos comprometidos e ambientes excludentes”. Como estratégia de ajuste, nestas condições, as pessoas podem buscar um abrandamento da sua diferença, não na tentativa de equacionar a falta de uma parte ou função do corpo, mas pelo comportamento capaz. No momento em que rompe as próprias limitações na realização de tarefas cotidianas, a pessoa com deficiência, institui, para si, um sistema de compensação moral, revelado no esforço para suprir a desigualdade física, resgatando sua dignidade e facilitando sua inclusão nas relações sociais, embora, no caso, a responsabilidade pareça recair exageradamente na vontade individual, descurando-se de fatores externos que condicionam tal processo. Tal significado é percebido no depoimento de um informante de 18 anos com amputação de membro superior: “[...] mas depois do acidente muita coisa muda, porque a pessoa com dois braços é mais fácil pra arrumar emprego. Como só tenho um fica mais difícil [...] antes era tudo fácil, agora vou ter que correr atrás! Terei que ser mais forte! Vou ter que ser bom em dobro, estudar o dobro, se não pode ter falação”. (Orfeu, 18 anos, amputação)

O excerto acima expressa um significado da deficiência vinculado a uma “falta” que deve ser compensada de alguma forma. Amaral (1992) estudou o fenômeno da compensação entre as pessoas com deficiência e a definiu como sendo uma tentativa de negação da deficiência, que é uma das formas de rejeição à mesma. É um esforço para alcançar uma meta por caminhos diferentes, substituindo os meios para realizar uma tarefa com êxito. Todavia, não se desconsideram, nestes casos, que as possíveis barreiras materiais ou não (arquitetônicas, atitudinais, institucionais, organizacionais) podem favorecer ou constranger tal desempenho. No relato de uma informante com sequelas motoras decorrentes de poliomielite, foi identificada a relação direta entre o sistema de compensação moral da deficiência perpassado pela questão de gênero no cumprimento dos papéis sociais, bem como interpreta Sarti (2003), para quem a distribuição da autoridade na família se fundamenta nos papéis diferenciados do homem e da mulher, cuja centralidade, neste último caso, recai sobre a maternidade. Nesse sentido, a reafirmação do desempenho ideal da condição de mulher, expresso pela insistência na consumação da maternidade (em que o social pressiona os limites colocados pelo biológico), suaviza o significado de “limitação” imposta pela deficiência, como expressa:

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“[...] eu não podia ter filhos por causa da minha deficiência. Eu já tinha perdido cinco crianças [...]. O doutor me falou “você não pode ter filho porque seu útero não se fortaleceu e é arriscado você morrer”; mas eu disse a ele que queria dar um filho pro meu marido [...] Fiz tratamento os nove meses sem poder sair da cama, tomava injeções e comprimidos pra segurar a criança [...] depois que eu ganhei minha filha peguei infecção hospitalar e quase morri! Fiquei muito tempo na UTI, mas graças a Deus estou aquí”. (Afrodite, 38 anos, sequela de poliomielite)

Em certa medida, há uma “imposição” social, à pessoa com deficiência, de padrões ideais como mediadores da aceitação social. A sociedade estabelece os meios pelos quais se categorizam as pessoas e os atributos considerados comuns ou “naturais” aos membros pertencentes a cada grupo social (Silva, 2003). Assim, sentir-se deficiente dependerá do contexto social e da trajetória pessoal na construção da experiência com a deficiência, na qual a identidade é formada, refutando ou aceitando alguns atributos. Não obstante, o termo deficiente, fruto dessa construção social, é uma expressão depreciativa carregada de significados negativos. Segundo Amaral e Coelho (2003), em qualquer sociedade, os valores culturais se concretizam no modo pelo qual ela se organiza, e refletem uma imagem do e no pensamento dos homens. Uma das principais características dos valores é a de poderem ser expressos na forma de adjetivos. Para esses autores, o termo “deficiente” é um adjetivo que adquire valor cultural de acordo com as regras, padrões e normas estabelecidas nas relações sociais, constituindo uma categoria capaz de agrupar, numa identidade comum, diferentes tipos de pessoas. Portanto, reafirma-se a necessidade, também, de se considerar o contexto estrutural no qual os significados são moldados, para se explorar como as pessoas com deficiência atribuem sentido à sua fisicalidade e corporeidade, e como isso tem impacto na sua identidade (Mulvany, 2000) e na sua experiência. Uma deficiência física adquirida pode significar uma crise imediata de identidade, pois as diferenças que agora se apresentam no corpo rompem com o referencial de identificação durante as interações sociais. Como verificado no fragmento de depoimento de uma pessoa com amputação de braço: “[...] sei que sou encostado no INSS, mas não me sinto um deficiente, me sinto uma pessoa como qualquer outra. Com braço, sem braço pra mim é a mesma coisa [...] o corpo não é o mesmo, mas na minha cabeça não mudou nada. [...] a realidade é essa, penso que seria deficiente se eu tivesse ficado cego, aí alguém iria ter que andar comigo. [...] Graças a Deus eu saio, viajo e dirijo pra todo lado. Então eu não me sinto deficiente! Só não posso trabalhar, mas é porque eu estou encostado no benefício, agora por lei eu não posso fazer nada”. (Aquiles, 52 anos, amputação)

Neste caso, o conceito reducionista de deficiência, pelo qual se pauta o sistema (externo) que legitima essa condição, é confrontado com um significado mais englobante, expresso em sua experiência. Este embate de ser e sentir-se deficiente conflui para a ambiguidade do conceito, comum em condições crônicas (Barsaglini, 2007). No depoimento anterior, o informante é oficialmente reconhecido como deficiente (pensionista), mas não se sente como tal – fato que se evidencia ao fazer uma classificação das deficiências (visual e física) e que é marcada pelo grau de dependência ao desempenho de atividades cotidianas básicas (andar). Nesta ambiguidade se estrutura a identidade social da pessoa com deficiência física, integrando a experiência dessa condição. Assim, procura (re)traduzir, em seus próprios termos, um novo sentido para a deficiência física, refutando ou aceitando alguns atributos, fortalecendo ou enfraquecendo o sentimento de pertença a esse segmento, estando presente, nesse processo, elementos objetivos, subjetivos e intersubjetivos.

O estigma na deficiência física Embora encontrado não exclusivamente na pessoa com deficiência física, o estigma pode estar presente nestes casos (Cavalcante, Minayo, 2009; Ortega, 2009; Soares, Moreira, Monteiro, 2008; 114

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Pereira, 2006; Bastos, Deslandes, 2005; Moukarzel, 2003; Camargo, 2000), constituindo uma das grandes marcas da experiência dessa condição no grupo estudado, e potencialmente gerador de sofrimento. O corpo é susceptível às influências socioculturais (inclusive da ciência moderna), portanto é impossível restringi-lo a um único aspecto de análise; mas a categoria estigma é central, por se tratar de uma condição que expõe visivelmente a diferença física, interpondo-se nas interações sociais. É a partir dessa diferença que as pessoas com deficiência constroem sua imagem, baseando-se na existência do estigma e considerando-o como desabilitador à aceitação social plena (Costa, 2008). O “estar em público”, faltando uma parte ou uma função, foi uma frequente preocupação expressa pelos informantes, alterando o ritmo de suas vidas pela iminência constante da exposição que evidencia a sua condição. O estigma está implícito no termo “preconceito”, e a sua consequência manifesta pela vergonha, como relatam: “[...] mas sei que as pessoas ficam olhando pra minha perna. Tem pessoa que não está preparada pra viver junto! É o preconceito, porque tem pessoa que olha do jeito normal pra gente e a gente percebe quando a pessoa olha pra você diferente”. (Íris, 23 anos, amputação) “[...] eu fico com vergonha, porque todo mundo fica olhando pra gente, até pra cadeira de rodas quando eu passo na rua as pessoas ficam olhando [...] eu acho que as pessoas têm preconceito, é a coisa pior do mundo porque as pessoas olham mesmo!”. (Ártemis, 62 anos, paraplegia)

A deficiência física impõe a presença do corpo, dando-lhe visibilidade, como nos casos da gestação e da velhice, que constituem momentos de crise nos quais o corpo volta à consciência do homem (Le Breton, 1995). E, sendo assim, as pessoas com deficiência podem empreender esforços para ocultarem sua diferença, manipulando o estigma por meio de estratégias de controle da informação social sobre a sua condição, no intuito de passarem por “normais” (Goffman, 1988). Diante de uma deficiência adquirida recentemente, a consciência de vir a ser “uma pessoa com deficiência” traz consigo a possibilidade de estigmatização, conflito e sofrimento, embora se perceba que, nessa fase, há uma dificuldade para expressar claramente os sentimentos. Ao encontrarmos um ex-carpinteiro, no mesmo mês em que sofreu a amputação da mão por acidente de trabalho, ele preocupava-se em como conseguir uma “tipóia” que, ao tempo em que imobiliza, esconde o membro afetado, ou seja, esconde o que, na sua percepção, lhe diferencia. Qualquer posição assumida pela pessoa com deficiência física não a isenta de ter sua autoimagem corroída pelo esquema comparativo, no sentido de que, em público, ela - como desvio da norma, tornase mais evidente. Assim, a visibilidade ou invisibilidade da diferença podem definir a dinâmica das interações sociais na vida da pessoa com deficiência física, sendo que, ocultar tal diferença, ao mesmo tempo em que a protege da exposição, conserva o temor pela iminência constante de ser descoberta – similar à incerteza dos acontecimentos que as condições crônicas carregam. É válido lembrar que, em meio a essa autovigilância constante, a revelação de um atributo passível de estigmatização pode se orientar pela ponderação de para quem / quando / como revelar, sobretudo para aqueles que têm informações adicionais sobre a pessoa em questão (Goffman, 1988). Outra manifestação de estigma refere-se à categoria “piedade”, agrupando distintos termos como: pena, dó, caridade, coitado, inválido etc. Todos entendidos no sentido de imagem maculada, associada a um sentimento de compaixão por um infortúnio ou infelicidade na vida. A expressão desse sentimento é interpretada, pela pessoa com deficiência física, como uma atribuição de valor que remete à imperfeição, à incapacidade e, sobretudo, à desvantagem, levando a um conceito socialmente desvalorizado. Como postulam Paiva e Goellner (2008), as relações sociais alteram-se na medida da alteração do corpo, pois esta produz um novo lugar social, um modo diferenciado de estar no mundo. Essa aparência física, permanentemente modificada na pessoa, provoca sentimentos perturbadores, rejeitando suas formas de expressão, como relatam alguns informantes: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.109-21, jan./mar. 2011

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“[...] não tem coisa pior que você estar na rua e ficar todo mundo olhando, sentindo “dó”. A coisa que mais odeio é chegar ao ponto de ônibus e ter que esperar todos os ônibus passarem, pra esperar o ônibus adaptado pra que ninguém me pegue no colo pra por dentro do ônibus, porque sei que ficam todos olhando com “dó” da gente”. (Ícaro, 19 anos, paraplegia) “[...] eu odeio, não gosto que ninguém tenha “dó” de mim. Sinto-me mal mesmo. Nem sei o que mais eu sinto. Não gosto mesmo”. (Íris, 23 anos, amputação)

Pereira (2006) destaca que essa categoria de sentimentos citados anteriormente surge da ideia de que a deficiência é uma condição que inviabiliza a vida da pessoa, tornando-a triste, limitada, lenta, improdutiva, incapaz de cuidar de si mesma, sendo, por tudo isso, digna de pena, carente da ajuda e da piedade alheia. Compreende-se que essas manifestações incomodam por serem atitudes generalizantes diante das pessoas com deficiência, ou seja, todas passíveis do mesmo sentimento e necessidades. As atitudes piedosas também refletem uma faceta do estigma, sendo aversivas aos informantes quando se materializam no cotidiano, ao serem abordados em espaços públicos por pessoas oferecendo algum tipo de auxílio, antecipando ajuda antes de acreditarem na sua capacidade. Tal atitude carrega a concepção da incapacidade na deficiência (Pereira, 2006), além de um componente assistencialista. Uma antecipação sobre a identidade, portanto, como declaram os informantes: “[...] eu mesmo não gosto de ser ajudado por pessoas estranhas. E acho que nem um cadeirante deve gostar. As pessoas deviam esperar a gente pedir ajuda. Quando vem uma pessoa me ajudar sem que eu peça, eu não gosto. Essas pessoas ajudam pensando que a gente é coitado, entendeu? Não gosto mesmo [...] se precisar eu peço ajuda!”. (Ícaro, 19 anos, paraplegia) “[...] se a gente gastava meia hora pra fazer uma coisa agora você gasta uma hora ou mais, mas não há problema, desde que você faça devagar, sem ter pressa! Não precisa ajudar, é só esperar”. (Aquiles, 52 anos, amputação)

Para alguns informantes, há, de certa forma, um enquadramento “natural” e “tipificado” da estigmatização, pois em seu cotidiano, antes da deficiência, era comum esse sentimento ao se depararem com pessoas deficientes, já que esse mundo reflete normas, concepções e valores que permeiam a sociedade que, como estoque de conhecimentos à mão, são comunicados/ativados nas interações. Dessa forma, o estigma não representa apenas um atributo pessoal, mas uma forma de designação social, com as respectivas expectativas típicas em contextos típicos. Os extratos seguintes mostram estes conhecimentos prévios: “[...] não é mole não! Eu já tinha visto amigos faltando um braço ou uma perna, isso já tinha visto, e já dava pra sentir que era uma coisa pesada mesmo. Aí acontece isso comigo! Não é mole ter que enfrentar tudo isso”. (Apolo, 56 anos, amputação) “[...] todo mundo olha, mas isso também já acontecia comigo antes do acidente. Quando eu passava por um cego, um cara de cadeira de rodas, de muleta, eu também já olhava assim”. (Aquiles, 52 anos, amputação)

Reafirma-se a força do mundo social sobre a pessoa, no entanto, os valores e significados são reinterpretados em situação, ou seja, por ocasião da experiência própria com a deficiência, as pessoas ressignificam (reproduzindo ou não) a forma como o seu grupo percebe e lida com a diferença corporal. A questão das tecnologias assistivas (próteses, órteses, acessórios, adaptadores etc), usadas nos processos de reabilitação física, também pode ter uma interface com o estigma. Verifica-se certa ambiguidade em relação a essas tecnologias, que não eliminam a fonte do estigma por meio das 116

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“correções” pelos recursos técnicos - fato, muitas vezes, desconsiderado nos processos de desenvolvimento de tais dispositivos. Em alguns casos, o uso de próteses mecânicas, cadeira de rodas, tutores etc, tornou-se fonte de estigma em face das aparições públicas, devido à visibilidade que dão à sua diferença, exacerbando-a. Tais subsídios deveriam estar na base do desenvolvimento dessas tecnologias, pois, embora parte do grupo entrevistado tivesse facilidade de acesso a tais recursos (pela concessão e dispensação por programas específicos do sistema público de saúde), não fazia uso contínuo dos mesmos, sendo comum, ao visitá-los, encontrar órteses deixadas em um canto da casa. As justificativas para a nãoutilização contínua vão desde dificuldades de adaptação, decepção com o que esperavam, até vergonha pelo aspecto “robótico” aparente, como evidenciam os relatos: “[...] eu andaria na rua com pernas mecânicas desde que os ferros não aparecessem [...] usaria uma “saiona” até lá embaixo pra não aparecer!”. (Afrodite, 38 anos, poliomielite) “[...] eu já vi esses aparelhos de ferro que botam pra tentar andar, mas não sei, acho que todo mundo ficaria olhando pra gente porque até pra cadeira de rodas, quando eu passo na rua as pessoas ficam olhando! Eu não gosto dessas coisas de ferro! Queria minhas pernas!”. (Artemis, 62 anos, paraplegia)

Assim, o sucesso de uma prótese, órtese ou qualquer tipo de tecnologia assistiva está na extensão com que essa tem adesão por parte da pessoa com deficiência, e não somente pelo potencial em suprir a falta física do membro ou da função. A adesão ou aderência se refere ao grau de concordância entre as recomendações/prescrições e o comportamento adotado pela pessoa em situações terapêuticas (Luftey, Wishner, 1999), o que é extensível, no caso, à compreensão do uso de tecnologias assistivas. A adesão a estas, porém, não se orienta por fatores exclusivamente racionais, mas é permeada por elementos simbólicos. Não obstante, o preparo dos profissionais de saúde para apoiar a pessoa com deficiência nesse processo não pode ser negligenciado nem reduzido ao seu aspecto técnico. Nesse sentido, se para os informantes, num primeiro momento, a protetização é a melhor opção nos casos de amputação, pelo potencial em promover a reconfiguração do corpo físico funcional, mantémse a simbologia da incompletude pelo significado do objeto artificial, ainda que a incompletude do corpo não seja uma exclusividade das pessoas com amputação (protetizadas ou não), como verificaram Iriart, Chaves e Orleans (2009) nos estudos sobre o culto ao corpo entre fisiculturistas. A experiência do corpo amputado e protetizado comporta uma ambiguidade por ter sido completo em sua materialidade orgânica (Paiva, Goellner, 2008), como sugere o depoimento de uma informante de 23 anos com amputação de perna há cinco anos e usuária de prótese, referindo lembrar-se, constantemente, de algo que queria esquecer. Contudo, a sua falta lhe causa estranhamento ainda maior, como se já fizesse parte de sua identidade. Em suas palavras: “[...] fiquei um ano sem colocar a prótese porque não me adaptava, não gostava, não queria aquilo. Mas agora também não fico sem ela! Não tiro pra nada. Deus me livre de sair sem ela! Nem saio de casa”. (Íris, 23 anos, amputação)

O caráter ambíguo do uso das tecnologias assistivas, sobretudo aquelas de difícil camuflagem, pode estar associado ao que Goffman (1988) chamou de símbolos estigmatizantes que, como as marcas corporais, transmitem informações sociais que são, especialmente, efetivas para despertar a atenção sobre a diferença, com uma redução consequente na valorização da pessoa. Neste sentido, pode-se citar a cadeira de rodas como o principal deles, incluindo ainda: bengalas, muletas, coletes, andadores, carro/ ônibus adaptado, o benefício de prestação continuada e o próprio logotipo oficial da deficiência (que exibe uma pessoa numa cadeira de rodas) exposto em para-brisa de automóveis, vagas reservadas, banheiros adaptados etc. Vivemos em um mundo de sinais e símbolos (Berger, Luckman, 1985), presentes no cotidiano, que, embora possam desempenhar uma função prática, no caso da deficiência física, refletem a informação sobre a identidade dos seus usuários, como sugerem os fragmentos de discursos: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.109-21, jan./mar. 2011

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“[...] há um monte de lugares que eu não gosto de ir porque as pessoas olham. Eles ficam olhando pra muleta. Se pudesse ir sem a muleta era melhor, mas eu não consigo”. (Atena, 50 anos, hemiplegia) “[...] de manhã você olha pra cadeira é muito ruim [...] a primeira vez que minha mãe veio com essa cadeira eu não aceitei, falei pra ela tirar do quarto. Demorou, mas fui aceitando aos poucos [...] é muito ruim sair de casa. A cadeira de rodas chama a atenção das pessoas. Todos já te olham daquele jeito [...] no início eu odiava sair na rua por causa da cadeira de rodas. Tinha ódio de me ver na cadeira [...] uma vez sai de casa e caí da cadeira na rua, me deu ódio, tive vontade de colocar álcool e botar fogo na cadeira ali mesmo”. (Ícaro, 19 anos, paraplegia)

Os sinais permanentes, usados para transmitir informação social, podem ou não ser empregados contra a vontade do informante, mas quando o são, tendem a ser símbolos de estigma (Goffman, 1988). A força universal dos símbolos de estigmas da deficiência se manifesta por serem generalizantes, incorporados e introjetados mesmo em culturas separadas no tempo e no espaço, perpetuando a experiência de gerações, sendo sempre alusiva à depreciação físico-moral dos seus portadores, e que pode ser visível a todos. Assim, no universo pesquisado, o estigma se revelou como uma faceta da experiência da deficiência física e um tipo especial de sofrimento, sendo preciso registrar, contudo, que entre os informantes, um caso apresentou uma singularidade, divergindo nesse aspecto, ao afirmar que “todos já me viram, já me conhecem e sabem que sou desse jeito! Viajo por todos os lugares e todos me olham, mas não ligo! Quem não quer ver que feche os olhos!” (Glaucos, 70 anos, sequelas motoras por doença reumática). Esse caso mostra que as interações heterogêneas permitem uma avaliação mais realística das qualidades da pessoa com deficiência (Goffman, 1988), o que pressupõe tempo e contato constantes, além de ressaltar que nem sempre as pessoas com deficiência aceitam as mesmas normas sociais que os desqualificam (Adam, Herzlich, 2001).

Considerações finais A análise do aspecto da identidade, integrante da experiência da deficiência física, aponta que o seu caráter socialmente construído é legitimado pela diversidade de significados que pode assumir dentro de um mesmo grupo social, que extrapola a dimensão física, e se apóia em padrões culturais de referência, postos em interação na vida cotidiana. Neste contexto, a partir de parâmetros compartilhados, o sentir-se deficiente pode ou não coincidir com o fato de ser reconhecido como tal, imprimindo flutuações na vivência dessa condição, ora sendo oportuna, ora inconveniente tal correspondência. Não obstante, quanto uma deficiência física pode levar a uma incapacidade e/ou desvantagem social decorre, sobretudo, de fatores históricos, culturais, políticos e sociais (Shuttleworth, Kasnitz, 2004), articulados no plano objetivo, subjetivo e intersubjetivo – daí a adequação do caráter socioantropológico da análise. Assim, as distintas posições e concepções frente ao estigma, por exemplo, são influenciadas por valores sociais, pela visão de mundo e, sobretudo, pela trajetória pessoal, sendo todos fatores inscritos numa biografia, não havendo homogeneidade na sua vivência. É prudente, então, antes de análises reducionistas e generalizantes, levar em conta a trajetória, as reais circunstâncias e a localização particular e concreta de cada pessoa dentro do seu grupo e contexto imediato e mais amplo. Enfim, aprender com as pessoas com deficiência física sobre a experiência dessa condição pode contribuir para a construção de formas alternativas do cuidar em saúde, que sejam coerentes com a diversidade sociocultural e contextual desse segmento social.

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artigos

Colaboradores José Alves Martins desenvolveu a pesquisa, elaborou a primeira versão do manuscrito na sua idealização, realizou análise e organização dos dados e a redação da versão final do artigo. Reni Aparecida Barsaglini responsabilizou-se pela orientação da pesquisa, participou da análise e organização dos dados, da redação e revisão da versão final do artigo. Referências ADAM, P.; HERZLICH, C. Sociologia da doença e da medicina. Bauru: Edusp, 2001. ALVES, P.C. A experiência da enfermidade: considerações teóricas. Cad. Saude Publica, v.9, n.3, p.263-71, 1993. ______. A fenomenologia e as abordagens sistêmicas nos estudos sócio-antropológicos da doença: breve revisão crítica. Cad. Saude Publica, v.22, n.8, p.1547-54, 2006. AMARAL, L.A. Sociedade x deficiência. Rev. Integração, v.4, n.9, p.4-10, 1992. AMARAL, R.; COELHO A.C. Nem santos nem demônios: considerações sobre a imagem social e a auto-imagem dos deficientes físicos em São Paulo. Rev. Dig. Antropol. Urbana, v.1, n.10, 2003. Disponível em: <http://www.aguaforte.com/antropologia/ osurbanitas/revista/deficientes.html>. Acesso em: 2 jun. 2008. BARSAGLINI, R.A. Com açúcar no sangue até o fim: um estudo de caso sobre o viver com diabetes. In: CANESQUI, A.M. (Org.). Olhares socio-antropológicos sobre adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec, 2007. p.53-85. BASTOS, O.M.; DESLANDES, S. Sexualidade e o adolescente com deficiência mental: uma revisão bibliográfica. Cienc. Saude Colet., v.10, n.2, p.389-97, 2005. BERGER, P.L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1985. BRASIL. Ministério da Saúde. Coordenação de Atenção a Grupos Especiais. Política Nacional de Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência: planejamento e organização de serviços. Brasília: Secretaria de Assistência à Saúde, 1993. Disponível em: <http:// portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/manual2.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2008. ______. Ministério da Saúde. Portaria GM no 154, de 25 de janeiro de 2008. Dispõe sobre a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 2008. Seção I, p.47-50. CAMARGO, E.A.A. Concepções da deficiência mental por pais e profissionais e a constituição da subjetividade da pessoa deficiente. 2000. Tese (Doutorado) Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. 2000. CANESQUI, A.M. Estudos socio-antropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec, 2007. CAVALCANTE, F.G.; MINAYO, M.C.S. Representações sociais sobre direitos e violência na área da deficiência. Cienc. Saude Colet., v.14, n.1, p.57-66, 2009. COSTA, V.A. Diferença, desvio, preconceito e estigma: a questão da deficiência. Disponível em: <http://www.bengalalegal.com/trabalho.doc>. Acesso em: 10 ago. 2008. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988. GROCE, N.E. Disability in cross-cultural perspective: rethinking disability. Lancet, v.35, n.4, p.756-7, 1999.

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artigos

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Palabras clave: Deficiencia física. Antropología y salud. Estigma. Experiencia de la enfermedad.

Recebido em 11/01/10. Aprovado em 16/08/10.

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artigos

Satisfação dos usuários na utilização de serviços públicos e privados de saúde em itinerários terapêuticos no sul do Brasil Maristela Chitto Sisson1 Maria Conceição de Oliveira2 Eleonor Minho Conill3 Denise Pires4 Antonio Fernando Boing5 Hosanna Pattrig Fertonani6

SISSON, M.C. et al. Users’ satisfaction with the use of public and private health services within therapeutic Itineraries in southern Brazil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.123-36, jan./mar. 2011. This study dealt with people’s satisfaction with the itinerary taken when they use the public and private health systems in three state capitals in southern Brazil, in situations of health-disease-care. Taking a qualitative approach, 131 users of health insurance plans who received care for acute myocardial infarction, alcoholism, breast cancer and childbirth were interviewed. The itineraries consisted of great numbers of routes and arrangements among healthcare subsystems, particularly in the fields of mental health and oncology. The category “satisfaction” showed favorable evaluations in relation to acute myocardial infarction, breast cancer and childbirth because there was fast access to the appropriate technical resources. There was dissatisfaction relating to difficulties in information availability, installations, costs, coverage and authorizations for procedures. The study showed the importance of taking into consideration the plurality of the care systems and the subjectiveness of value judgments regarding the implementation of healthcare policies and programs.

Keywords: Health evaluation. Patient satisfaction. Health services. Supplemental healthcare.

O estudo trata da satisfação das pessoas nos itinerários percorridos quando da utilização de serviços de saúde públicos e privados em três capitais do sul do Brasil em face de situações de saúde-doençacuidados. Trabalhando com abordagem qualitativa, foram entrevistados 131 usuários de planos de saúde que receberam cuidados em infarto agudo do miocárdio, alcoolismo, câncer de mama e parto. Em itinerários dotados de inúmeras trajetórias e arranjos entre subsistemas de serviços, sobretudo no campo da saúde mental e da oncologia, a categoria satisfação mostrou boa avaliação no infarto agudo do miocárdio, câncer de mama e parto, pela presença de acesso rápido a recursos técnicos adequados. Insatisfações referiram-se a dificuldades nas informações, instalações, custos, coberturas e autorizações de procedimentos. O estudo mostrou a importância de se considerar a pluralidade dos sistemas de cuidados e a subjetividade do julgamento de valor na implementação de políticas e programas de saúde.

Palavras-chave: Avaliação em saúde. Satisfação do paciente. Serviços de saúde. Saúde suplementar.

Serviço de Saúde Pública, Hospital Universitário, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Travessa Erotides Maria Oliveira, 116, Florianópolis, SC, Brasil. 88.062-170. mcs@mbox1.ufsc.br 2 Universidade do Planalto Catarinense. 3,5 Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, UFSC. 4 UFSC. 6 Departamento de Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá. 1

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Introdução A perspectiva dos usuários no desenvolvimento de estratégias de planejamento, gestão e controle de instituições prestadoras de serviços de saúde é reconhecida como fundamental nas esferas pública e privada do setor. Nesse sentido, estudos que avaliam a satisfação dos usuários são considerados estratégicos por permitirem sua intervenção em planos e programas, com o intuito de influenciar o nível de qualidade dos serviços prestados. O interesse pela qualidade dos serviços de saúde está presente no Sistema Único de Saúde (SUS) e tem, gradativamente, tomado parte do cotidiano das organizações, suscitando relevante debate. No interior deste debate, cresce, potencialmente, o papel desempenhado pelos usuários, com fins de possibilitar um monitoramento técnico e social dos serviços e programas prestados à sociedade, seja na implementação de políticas públicas, seja na regulação das relações público-privadas do setor saúde. Da mesma forma, no campo privado, a pesquisa sobre satisfação dos clientes dos planos de saúde é apontada como tarefa fundamental para a gestão das empresas e é utilizada como uma das dimensões que compõem os Índices de Desempenho na Saúde Suplementar (Silva Jr. et al., 2008). Nos últimos anos, a Agência Nacional de Saúde Suplementar/ANS implementou um conjunto de medidas destinadas a redirecionar as ações de regulação, de um controle da saúde financeira das empresas para uma melhor qualificação da prestação e utilização dos serviços no setor. Neste contexto, tem utilizado, além dos estudos epidemiológicos convencionais, enfoques microssociais, por meio da perspectiva ou do mapeamento da experiência dos usuários dos serviços. Nesta perspectiva, este estudo, como parte de uma pesquisa maior que analisou os percursos de usuários do subsistema de assistência médica suplementar em três capitais do sul do país (Porto Alegre, Florianópolis e Curitiba), em face da experiência de saúde-doença-cuidados (Conill et al., 2008), teve como objetivo conhecer e analisar sua satisfação em relação aos serviços e cuidados oferecidos e ao plano de saúde.

A satisfação dos usuários e a avaliação de serviços Pesquisas de satisfação de pacientes têm crescentemente sido realizadas em serviços de saúde, oportunizando a revisão de uma larga faixa de componentes práticos para benefício potencial de procedimentos profissionais (Parker et al., 1996). Sua aplicação e utilidade evoluíram de um enfoque gerencial “de amenidades” à avaliação de pontos de vista de pacientes em várias questões, como a necessidade de informação nos componentes organizacionais e interpessoais do cuidado e até no valor do tratamento médico (Fitzpatrick, 1991). Além de realizar avaliações por demanda governamental, institucional ou corporativa, o autor oferece três razões pelas quais os profissionais de saúde devem, seriamente, ter em conta satisfação como medida: primeiro, porque existem evidências de que satisfação é uma importante medida sobre resultados e estado de saúde; segundo, porque permite que sejam avaliados componentes importantes de comunicação entre equipe de profissionais e usuários; e, terceiro, porque a avaliação da satisfação do paciente permite métodos alternativos de exame da provisão de cuidados de saúde. Satisfação do paciente ou do usuário pode ser definida como as avaliações positivas individuais de distintas dimensões do cuidado à saúde (Linder-Pelz, 1982); e existem vários modelos para realizar esta medida, mas todos têm, como características comuns, as percepções do paciente sobre suas expectativas, valores e desejos (De Silva, 1999; Williams, 1994; Linder- Pelz, 1982). Autores, como Donabedian (1980) e Pascoe (1983), consideram que a satisfação pode ser vista pela reação que os usuários têm diante do contexto, do processo e do resultado global de sua experiência relativa a um serviço. Para Donabedian (1984), autor clássico da área da avaliação em saúde, a noção de satisfação do paciente é um dos elementos da avaliação da qualidade em saúde a ser complementada com a avaliação do médico e a da comunidade. Reforçando este postulado, Favaro e Ferris (1991) mostraram que a perspectiva do usuário, abordada por meio da sua satisfação, implica um julgamento sobre as características dos serviços e fornece informação essencial para completar e equilibrar a qualidade da atenção. 124

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Da forma como foi desenvolvido por Donabedian, o conceito de qualidade permitiu avançar no sentido de incorporar uma participação leiga – a dos pacientes – na definição de padrões e nas medidas da qualidade dos serviços. Consequentemente, observou-se um protagonismo cada vez maior dos usuários, e a ideia de satisfação do paciente como um atributo da qualidade tornou-se um objetivo em si e não somente uma garantia de continuidade do tratamento ou um meio de interferir na sua eficácia por uma maior adesão a ele, como frequentemente fora abordada (Williams, 1994; Vuori, 1987; Berger et al., 1989). Gradativamente, um variado conjunto de pesquisas tomou como objeto de estudo a “satisfação do usuário”, visando conhecer a opinião dos consumidores de serviços de saúde. Foi a partir desse momento que os estudos de avaliação em saúde passaram a utilizar o termo “usuário” (Vaitsman, Andrade, 2005). De um modo geral, fatores relacionados à satisfação incluem: características sociodemográficas, status físico e psicológico; atitudes e expectativas sobre a estrutura, o processo e resultados do cuidado (Aharony, Strasse, 1993). Não há consenso sobre quais resultados são mais fortes para influenciar a satisfação. Diferentes autores indicam relações com o tipo de cuidado oferecido e com o contexto no qual a satisfação do paciente é estudada, mas não se encontrou ainda uma correlação simples e direta entre satisfação e melhoria nos resultados. Pacientes satisfeitos parecem mais permeáveis em aderir aos tratamentos, embora a satisfação também possa ser vista como um antecedente causal do comportamento de melhora (Aharony, Strasse,1993). Um trabalho recente feito por Gerschman et al. (2007) avaliou a satisfação de beneficiários de planos de saúde de hospitais filantrópicos nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais por intermédio do uso de grupos focais. As razões referidas para satisfação foram: o acesso, a hotelaria e a privacidade percebida como um privilégio em relação ao SUS. Os motivos de insatisfação foram: demoras na marcação de consultas, restrições a tratamentos, procedimentos e internações, e a instalação de espaços público-privados comuns de atenção. Do ponto de vista metodológico, a literatura oferece distintas perspectivas na abordagem da satisfação. Parasuraman, Zeithaml e Berry (1990) desenvolveram uma das metodologias mais conhecidas para avaliar serviços privados de diferentes naturezas, por meio da avaliação de cinco dimensões do atendimento: agilidade, confiabilidade, empatia, segurança e tangibilidade. Donabedian (1990; 1984) utilizou a categoria aceitabilidade - que significa o grau de conformidade dos serviços oferecidos em relação às expectativas e aspirações dos pacientes e seus familiares. As propostas destes dois últimos autores têm semelhança conceitual, ao se relacionarem às expectativas que podem ter sido atingidas ou não. Além disso, a dimensão da aceitabilidade contempla elementos tais como: condições de acessibilidade ao serviço, relação médico-paciente, adequação das dependências e instalações, preferências em relação aos efeitos e custos do tratamento e tudo aquilo que o paciente considera justo ou equânime. Estas variáveis podem influenciar de forma mais direta na definição e avaliação da qualidade dos serviços de saúde. Interessou, para este estudo, a visão de Pascoe (1983) da satisfação do paciente, considerada como uma avaliação da atenção recebida. Esta avaliação é uma comparação de características de destaque da experiência de cuidados de saúde dos indivíduos com um padrão subjetivo, implicando, portanto, atividades psicológicas (no campo perceptual) de ordem cognitiva e afetiva, engajadas em um processo comparativo entre a experiência vivida e critérios subjetivos do usuário (Trad et al., 2002). O padrão subjetivo usado pelos indivíduos para julgar o cuidado de saúde experimentado pode ser uma, ou a combinação das seguintes dimensões: um ideal subjetivo de atenção, uma percepção subjetiva ou uma noção de atenção merecida, uma média da experiência passada em situações similares ou algum nível subjetivo de qualidade minimamente aceito (Aharony, Strasse, 1993). Aharony e Strasse (1993) apontam algumas questões metodológicas importantes, advindas de vários problemas conceituais e operacionais, quando se pretende mensurar a satisfação, como, por exemplo: em que momento do atendimento o usuário deve ser abordado; que tipo de pergunta e de escala utilizar, e o que exatamente avaliar. Frequentemente, as críticas às pesquisas de satisfação recaem sobre o aspecto subjetivo da categoria “satisfação”, que sofre influência de grande variedade de elementos determinantes, tais como o grau 125


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de expectativa e exigências individuais em relação ao atendimento e características individuais do paciente, como idade, gênero, classe social e estado psicológico (Sitzia, Wood, 1997). Explicações sociopsicológicas têm sugerido que os níveis de satisfação são moldados por diferenças entre as expectativas dos pacientes sobre o serviço e a atenção recebida (Atkinson, 1993). Entretanto, pesquisas recentes têm demonstrado que a expectativa é um conceito deveras complexo, assim como a ausência dela, como, por exemplo, quando há possibilidade de os pacientes terem aprendido a diminuir as suas expectativas quanto à atenção oferecida, ou quando um serviço que tenha recebido uma boa avaliação for resultado de uma baixa capacidade crítica dos usuários, ou o contrário (Aharony, Strasse, 1993). Calnan (1988) sugere que uma aproximação mais frutífera seria examinar as razões ou motivos por busca de cuidados ao invés de explorar expectativas. Outra questão presente no debate diz respeito a que os estudos de avaliação da satisfação do usuário têm focado, de uma maneira geral, a medida do nível de satisfação com o serviço prestado, sem um esforço de contextualização cultural. São utilizados escalas e questionários que abordam um sem número de questões, incluindo estrutura, funcionamento e avaliação do serviço de saúde pelo usuário (Williams, 1994; Atkinson, 1993). São comuns perguntas sobre satisfação ou insatisfação, fechadas e do tipo dicotômicas, que são relativas à experiência do usuário, mas excluem o exame das crenças, modos de vida e concepções do processo saúde-doença, elementos que reconhecidamente exercem influência sobre as formas de utilização dos serviços. Com fins de superar essas limitações, novos caminhos foram trilhados e o desenvolvimento de aproximações qualitativas de investigação, para melhor investigar aspectos subjetivos de usuários, foi incorporado (Trad et al., 2002; Aharony, Strasse, 1993). Em 2000, a Organização Mundial de Saúde (OMS) introduziu o conceito de “responsividade” dos sistemas de saúde nas pesquisas de avaliação em saúde, para se referir à satisfação de aspectos nãomédicos do cuidado, como acesso e utilização dos serviços (OMS, 2000). Este conceito e as metodologias que incorporam a visão do usuário são considerados como parte de um paradigma no qual se reafirmam princípios relativos a direitos individuais e de cidadania, tais como expressos nos conceitos de humanização e direitos do paciente (Vaitsman, Andrade, 2005).

Metodologia Consistiu em um estudo de tipo qualitativo construído com base em dados coletados em entrevistas e em fontes secundárias. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com usuários do subsistema de saúde suplementar residentes em Porto Alegre, Florianópolis e Curitiba, portadores de situações de saúde selecionadas na pesquisa original, em quatro linhas de cuidado: câncer de mama, infarto agudo do miocárdio (IAM), parto e alcoolismo. Considerou-se, como linha de cuidado, a facilitação do acesso ao conjunto de serviços ambulatoriais ou hospitalares, aos cuidados médicos ou de outros profissionais de saúde, e as tecnologias de diagnóstico e tratamento capazes de contribuir para a integralidade do cuidado que as pessoas necessitam (Brasil, 2005). Foi utilizada uma amostra de dez a 15 entrevistas por situação marcadora e por cidade, totalizando 131 entrevistas nas três capitais. Utilizou-se, como critério de suficiência, a saturação dos dados. As instituições escolhidas foram selecionadas por meio de critérios de conveniência e intencionalidade. Três processos de amostragem utilizados em pesquisa qualitativa foram articulados para esta construção: intencional, de conveniência e “bola de neve”. Para o IAM, a amostra foi intencional, com coleta de dados em pacientes internados na principal prestadora de serviços privados na área cardiovascular, na unidade de terapia intensiva de dois hospitais de referência e em pacientes cadastrados no Programa para Hipertensos e Diabéticos, nas instalações de uma Unidade Básica de Saúde. Para o parto, houve seleção por amostragem intencional a partir de mães que levavam seus bebês para consultas de puericultura no âmbito de um centro de atendimento infantil e em uma Unidade Básica de Saúde, e no domicílio de ex-parturientes de uma listagem de nascimentos fornecida pela Secretaria Municipal de Saúde. A seleção para o câncer de mama se deu a partir da lista de associados da Associação Brasileira de Portadores de Câncer, da Associação das Amigas da Mama e do Instituto da 126

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Mama. Informantes-chave indicavam outros pacientes, caracterizando a técnica de “bola de neve”, com entrevistas realizadas nos domicílios. Para o alcoolismo, a seleção foi por intermédio de contatos com grupos de Alcoólicos Anônimos, nos locais de reuniões, e pela técnica de “bola de neve”. Utilizou-se um roteiro semiestruturado para as entrevistas, que indagou sobre a satisfação com os planos e com os serviços de saúde. Para um cômputo geral quantitativo acerca da satisfação referida, utilizou-se uma escala de tipo Likert, para mensurar o grau de satisfação com as seguintes dimensões: totalmente satisfeito, satisfeito, insatisfeito, muito insatisfeito e ignorado. Para a análise dos dados obtidos nas entrevistas, optou-se pela utilização da análise temática de Bardin (Minayo, 2007). Iniciou-se com a leitura flutuante de cada entrevista e chegou-se a uma visão do conjunto por linha de cuidado nos três municípios, e da categoria pré-selecionada: satisfação – considerada com relação ao atendimento e com o plano de saúde. Para o tratamento dos dados foi utilizado o software Nvivo.

Resultados e discussão A doença é uma experiência significativa, que, para ser apreendida, necessita que se identifiquem como são vivenciadas as formas de cuidados e quais as expectativas sobre a atenção a ser recebida (Kleinman, 1980). Neste contexto, o estudo buscou identificar a satisfação dos usuários em relação ao plano de saúde utilizado e aos cuidados recebidos nos serviços envolvidos. De um modo sintético, a satisfação medida no conjunto das linhas resultou em uma avaliação significativamente positiva (Tabela 1). Observa-se que, nesta modalidade de medida, tanto o atendimento dos serviços conveniados aos planos de saúde quanto os próprios planos receberam graus positivos de avaliação da grande maioria dos entrevistados das três capitais. Vários pontos de insatisfação apareceram, porém, durante as falas e estão descritos em cada linha pesquisada.

Tabela 1. Distribuição do grau de satisfação em quatro linhas de cuidado nas três capitais, 2008 (n=131) Variáveis Satisfação com o atendimento Totalmente satisfeito Satisfeito Insatisfeito Muito insatisfeito Ignorado Satisfação com o plano Totalmente satisfeito Satisfeito Insatisfeito Muito insatisfeito Ignorado

Alcoolismo

Infarto Agudo do Miocárdio

Câncer de mama

Parto

Todas (%)

15 12 2

23 8 1 -

21 9 2 1 -

25 8 1 3 -

84 (64,1) 37 (28,2) 4 (3,1) 4 (3,1) 2 (1,5)

5 20 3 1

18 9 4 1 -

21 9 2 1 -

15 19 2 1 -

59 (45,5) 57 (43,5) 11 (8,4) 3 (2,3) 1 (0,8)

Fonte: Entrevista aos usuários participantes da pesquisa, 2008.

Linha de cuidado cardiovascular, marcador “infarto agudo do Miocárdio (IAM)” a) Satisfação com os serviços e com a qualidade da assistência recebida: a satisfação positiva com os serviços foi unânime entre os entrevistados, sendo o aspecto melhor avaliado dos planos de saúde. Nas três capitais, a maioria dos usuários escolheu a alternativa “totalmente satisfeitos” para qualificar a atenção recebida, que se relacionou, sobretudo, à boa atenção profissional recebida na clínica de internação, com destaque para o reconhecimento do diferencial que significa obter atenção de boa qualidade. Foram valorizados: a presteza no atendimento, a qualidade técnica, o tratamento de acordo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.123-36, jan./mar. 2011

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com as necessidades individuais e com as diferentes subjetividades, o acesso aos cuidados necessários e a cobertura oferecida. “Totalmente satisfeito. Porque todo o pessoal foi atencioso, competente. A médica que me atendeu no primeiro dia continua me dando cobertura até o fim... [...] aqui na UTI tem plantão. Troca a cada seis horas e todos eles são muito atenciosos”. (CI 01) “Do serviço não posso me queixar. Se pudesse dar mais de dez, eu daria. Tanto na ambulância quanto aqui, na estadia, no tratamento [...]”. (F16)

Também houve referência de bom tratamento em um hospital do setor público: “Fui muito bem tratado, peguei uma equipe ótima de serviço lá no HU e o pessoal me deu toda atenção, tanto é que eu só fiquei vinte minutos numa emergência [...]”. ( F4)

Os pontos de insatisfação se referiram a queixas relativas a um ambiente hospitalar ruidoso, ao tempo de espera para a internação e ao mau manejo profissional: “[...] Com o lado profissional eu fiquei totalmente satisfeito, mas sobre o total, não, por causa de uma tremenda algazarra das visitas aqui ao lado”. (F13) “Devia ter mais leitos, mais espaço, pois se espera em fila, perdendo tempo, sofrendo. Faz uma semana que a gente tá esperando leito no ‘X’”. (F1) “Insatisfeito [...] eu fui duas horas da manhã pro hospital, peguei o profissional de plantão, não tinha papel no aparelho: ‘vamos fazer exames de enzimas, esse exame é demorado, então você pode ir pra casa e depois voltar’. Quando voltei e viram o resultado, me enfiaram numa maca na mesma hora. Foi interessante, porque eu fiquei num apartamento, apesar do meu plano ser enfermaria [...]”. (C11)

b) Satisfação com o plano: a maioria dos usuários relatou grande satisfação com o plano de saúde, valorizando de forma muito positiva a presteza do atendimento, com acesso facilitado e qualidade proporcionada por meio do serviço de saúde contratado. As insatisfações se referiram: à cobertura do plano, inclusive com relação ao acompanhante, às mensalidades consideradas altas, às necessidades eventuais de copagamento, e aos custos crescentes. “A cobertura é total, mas o plano já mandou dizer que não quer pagar alguma coisa, mas eu já entrei com advogado pra pagar uma ultra-sonografia, pra continuar a parte preventiva, mas tá no plano. Na tabela antiga diz que eu tenho direito, mas alguns hospitais estão usando as tabelas novas, que dizem que eu não tenho direito”. (F5) “O plano atendeu minhas necessidades imediatas. A reclamação é que nos primeiros dias o acompanhante não recebeu alimentação, não tinha direito... E cinco dias depois disseram que receberam uma informação do plano corrigindo esse erro”. (F 11)

Com resultados semelhantes, Milan e Trez (2007), em estudo sobre a satisfação de beneficiários de planos de saúde, mostraram que as razões para a satisfação com os planos são as certezas de acesso ao tratamento e a hotelaria e privacidade. Em Florianópolis, e em menor volume em Curitiba, as maiores insatisfações relatadas estiveram relacionadas às dificuldades de acesso a exames complementares (liberação, autorização) e à cobertura oferecida pelo plano de saúde. A autorização para prestação de serviços entre cooperadas de diferentes estados foi alvo de críticas: 128

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“Um pouco demorado [...] a liberação... os procedimentos mais caros, como cateterismo, eles demoram pra liberar ...”. (F1) “A autorização do meu plano acontece por Tocantins! E não fazem liberação por telefone! Liberam pelo sistema da ‘y’ e só na unidade da rua tal. É uma dificuldade grande!”. (CI 10)

Com relação às insatisfações com custos crescentes e copagamento, houve regulação recente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS, 2009) sobre a matéria, no sentido de responder a questionamentos com este teor. Gerschman et al. (2007), ao analisarem a satisfação dos beneficiários de planos de saúde, encontraram que o padrão da prestação de serviços está associado ao preço do plano e à qualidade do hospital a que está vinculado. Independentes de serem planos novos ou antigos, os planos de categorias mais altas, de hospitais bem estruturados, prestam um serviço de melhor qualidade. Da mesma forma, planos de categorias mais baixas, de hospitais pouco estruturados, oferecem um serviço pior. Aqui também parece ser esta a explicação para as pessoas que tiveram maior ou menor insatisfação com os diferentes planos, independentemente da operadora. De forma semelhante, os motivos de insatisfação encontrados parecem conformar um padrão de respostas encontradas em vários estudos no país: demora na marcação de consultas; restrição ao tratamento de doenças cardíacas e outras; restrição no número de consultas e exames e tempo de internação e de UTI. Também nesta pesquisa, as regras ou a falta delas para os reajustes por idade e a restrita abrangência geográfica de alguns planos eram motivos de descontentamento com o plano de saúde. Destacou-se, entre os usuários das três capitais, uma grande preocupação com a questão dos medicamentos, e há uma tendência a responsabilizar o setor público pelo fornecimento deles ou a desqualificar sua qualidade. “Medicação graças a Deus eu tô pegando lá no Centro de Saúde, tem poucos que eu compro. Mas o cardiologista não quer que eu continue com esse, disse que não é a mesma coisa”. (PI 63)

Satisfação na linha de cuidado materno-infantil: marcador “parto” a) Satisfação com os serviços - a maioria das mães entrevistadas valorizou: a presteza e atenção no atendimento, o tratamento de acordo com as necessidades individuais e subjetivas, o acesso à atenção disponível, quando necessário, e a cobertura oferecida. A maioria referiu total satisfação com o atendimento prestado pelos profissionais nas maternidades onde foram atendidas, tanto públicas como privadas. “Acho que foi excelente, inclusive as próprias médicas. Recebi uma apostila falando sobre os diferentes tipos de parto, sobre os tipos de anestésicos e os procedimentos em relação ao pré e o pós-cirúrgico”. (CO 05)

As insatisfações se relacionaram à qualidade do atendimento prestado pelos profissionais de saúde e por recepcionistas, desde o internamento até a alta. As principais queixas foram relativas à falta de informação sobre as condições da mulher durante o parto e às condições do bebê. “Faltou bastante da parte da enfermagem, sabe? Me colocaram lá, era prematuro. Acho que tinham que ter conversado mais, porque eu chorava de dor e de medo, porque eu achava que o nenê não ia sobreviver [...]”. (CO 06)

b) Satisfação com o plano: de uma forma geral, a maioria das usuárias referiu satisfação com o plano de saúde.

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“Satisfeita [...] às vezes, a gente não conseguia a consulta no dia que precisava, mas a minha doutora sempre fazia encaixe... O plano em si até que tá ruim, mas ela dava um jeito e eu era atendida”. (CO 08)

Também aqui as insatisfações ficaram por conta: das falhas na cobertura do plano, das necessidades eventuais de copagamento, dos custos crescentes e, sobretudo, das condições de estrutura física e humana das maternidades conveniadas aos planos de saúde. “[...] Imagina você, pós-cirurgia, num quarto onde fica 24 horas cheirando a esgoto, e ninguém toma nenhuma iniciativa?”. (CO 04) “Embora eu tenha ‘y’, eu tive que pagar tudo particular, menos as consultas. Eu achava que ‘y’ fosse tudo igual, em todo Brasil e não é [...] eles não quiseram comprar a carência do parto, compravam a carência de consulta de outras coisas [...]”. (CO3)

Embora não tenham sido foco central nesta pesquisa, os aspectos relacionados à humanização do atendimento no evento do parto ganharam evidência nas respostas das entrevistadas, demonstrando a importância da assistência humanizada e de uma rede de atenção mais estruturada, com equipe multiprofissional ampliada. “Acho que tinha que ter psicóloga pra conversar comigo, pra me acalmar. As enfermeiras lá, são muito frias... Me senti muito sozinha, com dor e com medo ao mesmo tempo”. (C0 06) “Só o que eu queria agora era um acompanhamento de psicoterapia, só que psicólogo mesmo, não cobre”. (F04)

Satisfação na linha de cuidado oncologia: marcador “câncer de mama” a) Satisfação com o atendimento: Em geral a satisfação foi grande, o atendimento considerado bom, individualizado, respondendo às expectativas de escuta e tratamento carinhoso e compreensivo. A competência profissional e o fato de terem apresentado um desfecho favorável justificaram também, em alguns casos, a satisfação. “... eu acho que o que tinha que ser feito, foi feito. O que tinha que ser falado, falaram [...]... fico muito satisfeita por ter passado por profissionais tão competentes”. (CM 06) “Eles são realmente queridos com a gente, não é um atendimento profissional, é um atendimento pessoal”. (FM 04)

Insatisfações ocorreram quando o atendimento não foi individualizado ou sem atenção especial à paciente. “No atendimento profissional eu acho que [falta] mais humanização sabe? [...] uma pessoa que tá passando mal quer falar, falar. E as pessoas [profissionais] não têm tempo... Não foram ruins, mas se passassem por orientações, ou trabalhassem uma semana e dois dias folga, ou tivessem um lazer diferente, seriam mais humanos”. (CM 04) “[...] quando eu perguntei quando é que vinha o exame dos nódulos, uma pessoa disse “uns doze dias”, e eu disse:” que horror, eu vou ficar doze dias nessa angústia?” “ah tem”’, eu quase morri”. (PM 01)

Segundo Gimenes e Queiroz (1988), os profissionais que lidam com pacientes com câncer de mama devem estar capacitados a trabalharem os anseios dessas pessoas. Rossi e Santos (2003) ressaltaram a 130

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importância de uma boa relação médico-paciente nestes casos, impactando, inclusive, a aderência ao tratamento por parte da paciente. Um ambiente de tratamento desagradável também foi referido como fator associado à insatisfação no atendimento. “Tratar de câncer já é uma coisa pesada. Se não tiver um lugar agradável, com pessoas que te atendam com carinho... Então, eu acho que deve mudar a aparência física do local”. (CM 06)

b) Satisfação com o plano: em geral houve grande satisfação com o plano de saúde. Destacaram-se as experiências com um fluxo rápido no atendimento por parte da operadora e, também, quando a cobertura do plano correspondia às necessidades do beneficiário. “[Satisfeita] porque cobriu tudo que eu precisava, não tive de dispender nada, foi excelente”. (PM 09)

Algumas entrevistadas indicaram a importância da inclusão de outros profissionais, além do médico e enfermagem, durante o tratamento da doença: “Eu acho que seria muito bom um assistente social. Talvez até tenha, mas eu acho que tinha que ser um pouco mais presente, acompanhando o tratamento...”. (CM 10) “Também acho que devem oferecer outros profissionais, como o fisioterapeuta e o psicólogo...”. (CM 14)

No primeiro ano após a realização da cirurgia, as mulheres têm dificuldade para desenvolver atividades profissionais e esforços para execução de tarefas relacionadas ao seu dia a dia pessoal, por perda de força muscular e de amplitude de movimento (Shimozuma et al., 1999). Além disso, há o impacto, muitas vezes avassalador, que o diagnóstico e o tratamento da doença provocam, que deve ser abordado profissionalmente. Fica clara a necessidade de uma abordagem multi e interdisciplinar nas práticas assistenciais. Aspectos burocráticos na liberação de exames também foram referidos: “Alguns exames tem que levar na sede da ‘y’ pra autorizar. Leva de 24 a 48 horas, tem que passar pela auditoria, fica nessa expectativa por 48 horas!”. (PM 05) “A única coisa que eu não concordo é que eles não têm uma sede aqui no centro, eu preciso dos ônibus pra ir lá num bairro, pra liberar um exame mais caro”. (CM 07)

A dificuldade de acesso aos medicamentos para tratamento representou grande frustração para as beneficiárias, havendo necessidade de recorrerem ao SUS para seguirem com o tratamento. Esta parece ser uma das principais limitações dos planos de saúde quanto ao tratamento do câncer de mama. “... Minha médica falou pra ir no SUS da Santa Casa para ver se consigo os remédios, porque eles são muito caros, né!?”. (PM 02) “O convênio tá me pagando praticamente tudo, só não me restitui, por exemplo, medicamentos para os efeitos colaterais, insônia, dores no corpo, irritação, problemas no estômago...”. (FM 08)

A partir de estudo de base populacional, Lima-Costa (2002) descreveu que o acesso aos medicamentos configura-se como importante problema entre beneficiários de planos de saúde. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio e da Pesquisa de Orçamentos Familiares indicaram que os COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.123-36, jan./mar. 2011

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maiores gastos das famílias com saúde são as mensalidades com os planos de saúde e a compra de medicamentos (Silveira, Osório, Piola, 2002). Outra preocupação das pacientes foi com a rede de médicos conveniados com os planos de saúde. Em diversos momentos, as beneficiárias precisaram abrir mão do seu médico de confiança, ou que as acompanhava há muitos anos, para procurar outro, conveniado ao plano. Além disso, há apreensão sobre a permanência dos credenciados no futuro. Numa avaliação quantitativa da satisfação de beneficiários de planos de saúde em relação à sua operadora, Milan e Trez (2007) identificaram como fatores associados: (i) a qualidade do atendimento recebido pelo paciente; (ii) os médicos que têm à disposição para a marcação de consultas, valorizando a confiança e a segurança na hora de escolher ou manter a preferência por um profissional; (iii) o preço do plano, e (iv) a conveniência e facilidade para marcação de consultas e exames, a oferta de serviços complementares e a cobertura do plano. “A única coisa que eu fico apreensiva é que o médico é conveniado e meu medo é de um dia ele se descredenciar, porque é um plano que não paga muito. Já passei por uns quatro, cinco médicos, cada vez que eu marcava uma consulta, ele já tinha se descredenciado”. (CM 11) “Gostaria que houvesse mais profissionais médicos especialistas, deveria ter mais opção...”. (PM 01)

Satisfação na linha de cuidado saúde mental: marcador “alcoolismo” a) Com o atendimento recebido: As entrevistas mostraram grande insatisfação com o atendimento formal. Severas críticas relativas à assistência médica e ao aspecto comercial de algumas clínicas foram explicitadas. Simultaneamente, há um certo consenso de que a “decisão” pessoal de manter a abstinência está intimamente ligada ao sucesso dos tratamentos. “O tratamento foi fantástico, o atendimento que eles deram e a forma que foi conduzido. Era muita reunião, troca de idéias, e o que eu fiz ao sair de lá, foi ir pro grupo (de AA) onde estou até hoje”. (FA 01) “A minha insatisfação é em função do atendimento psiquiátrico. [...] Eu já tinha feito os meus trinta dias. Quinze de desintoxicação, e os outros pra terminar o tratamento, que era ficar lá amassando barrinho, que para algumas pessoas pode ajudar em alguma coisa e para outras é totalmente inócuo”. (FA 02)

Há uma diversidade de percepções sobre os diferentes atendimentos recebidos, mas destaca-se a crítica pelo despreparo profissional para o trabalho com este tipo de dependente, gerando insatisfações com a atenção. Observa-se grande valorização dos tratamentos informais, tais como de comunidades terapêuticas e AA. “[...] as comunidades terapêuticas são tão úteis quanto uma clínica, porque a clínica tem toda a estrutura, mas dependendo do caso que se encontra a dependência química, trinta dias é pouco...”. (CA05) “AA é muito bom... Eu venho de uma terra muito fria e para se esquentar só tem duas formas, usando um casaco de pele e acendendo uma fogueira. O casaco só vai esquentar quem o veste, já a fogueira pode esquentar a si e a quem chegar perto. Então eu vejo todos os meus companheiros de AA como uma fogueira, não é egoísta, é só chegar perto. Eu sei que ele torce por mim e eu torço por ele também. Eu não sei nada sobre eles, o importante é estar lá”. (FA 08)

As comunidades terapêuticas foram identificadas como lugares que proporcionam um tempo maior de afastamento do cotidiano externo, percebido como necessário, e que não ocorre devido ao prazo das 132

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internações dos planos de saúde. A satisfação se relaciona a um redimensionamento de valores que se aproximam a uma integralidade que vai muito além da solução clínica alcançada na biomedicina. b) Satisfação com o plano: insatisfações com a cobertura do plano, especialmente nos limites para custeio do atendimento necessário - com destaque para as dificuldades de reconhecimento do alcoolismo como doença pelos profissionais -, foram apontadas nesta linha de cuidado. Além disso, insatisfações quanto aos custos com o pagamento da mensalidade do plano e de situações que demandam mais tempo de tratamento ou copagamento (pelo plano e pelo usuário) também foram relatadas. Os poucos depoimentos de satisfação plena se referiram aos aspectos de cobertura total do plano, e não da qualidade do atendimento. Na ausência de uma ampla cobertura, a tendência foi a utilização do SUS ou pagamento do próprio bolso, sobretudo nas consultas psiquiátricas. “... não totalmente satisfeito, com uma franquia de mil e quinhentos reais... e pelo número de consultas, eu acho injusto dizerem quantas eu posso consultar...”. (PA 03) “... Insatisfeito com os planos; o profissional que nos acompanha (internações), por não ser credenciado, não pode nos atender. E hoje os planos estão restritos a uma ou duas instituições hospitalares na cidade. Outra situação é a falta de credenciamento de outros profissionais, como fisioterapeuta, psicólogo...”. (CA 04)

Conclusões Os estudos de satisfação, apesar de oferecerem informação limitada sobre seus determinantes (Ricketts, Kirshbaum, 1994), apontam a possibilidade de se ampliar a compreensão sobre as vivências e as expectativas dos usuários em relação ao modo como os serviços de saúde - e, nesse particular, os serviços conveniados a planos de saúde - estão ou devem estar organizados para solucionar problemas específicos e atender às suas necessidades. Ao compararmos as linhas de cuidado analisadas, algumas tendências acerca da satisfação com o atendimento e planos de saúde, presentes nos diferentes arranjos de utilização dos sistemas de cuidados em cada uma delas, puderam ser apontadas. Isto foi facilitado pela utilização da entrevista semiestruturada, que supriu as lacunas que um questionário fechado poderia conferir ao enfoque estudado. Foi alta a satisfação referida pelos usuários com relação aos prestadores do sistema profissional e aos planos de saúde nos atendimentos recebidos no caso do IAM, do câncer de mama e durante o parto. Ter acesso rápido aos recursos que interpretaram como sendo de qualidade técnica adequada ou com maior aporte tecnológico é o aspecto que mais sobressaiu nessa avaliação. Especialmente no caso do IAM, esta última característica foi determinante para a alta satisfação referida. Os pontos de insatisfação diziam respeito a dificuldades de informações e com as instalações. Houve uma satisfação mais baixa no caso do alcoolismo, quando comparado às demais situações. A ênfase dos aspectos negativos recaiu sobre o elevado custo, sobretudo nos casos onde o período de internação era grande, havendo uma satisfação maior apenas nos planos com cobertura total. A falta de vagas, tanto nos hospitais psiquiátricos, quanto nas clínicas e nos hospitais gerais que atendem casos de alcoolismo, foi um elemento presente nas três capitais. Encontrou-se um amplo espectro de insatisfações relativas à qualidade da assistência em todos os níveis da atenção ao alcoolismo, sobretudo quanto ao despreparo do profissional médico para o trabalho com dependentes, e críticas relativas ao caráter lucrativo dos planos de saúde. O sistema informal, especialmente a organização AA, possui uma avaliação bastante positiva. A necessidade da inclusão e maior disponibilização, pelos planos de saúde, de assistentes sociais, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos, por exemplo, também foi bastante evidenciada pelos usuários. Além disso, o desejo de ampliação da rede de médicos beneficiados foi descrito por muitos usuários, sobretudo para consultas com especialistas.

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Quanto aos planos, cujo índice de satisfação é alto, porém menor do que em relação aos prestadores de serviços de saúde, as insatisfações nas quatro situações de saúde ficaram em torno do custo crescente, das necessidades de copagamento, das deficiências de coberturas e dos impasses burocráticos para autorizações de procedimentos. Talvez isto possa, em parte, ser explicado pela ambiguidade referente à existência de duas lógicas decorrentes da segmentação do sistema brasileiro: a do cidadão e a do consumidor. Embora inserido numa estrutura contratual de mercado, o imaginário dos usuários é permeado por aspirações de uma cobertura universal. Há uma discussão a ser feita quanto ao viés de valorização positiva das respostas obtidas diante de certas situações vitais. Assim, no caso do parto, quando as mulheres eram estimuladas a falarem mais acerca de seus desejos e expectativas em relação ao plano e aos serviços, muitos aspectos relacionados à humanização (paciência, apoio, carinho) vieram à tona. Também, no caso do câncer de mama, apesar de, na pergunta objetiva, as pacientes referirem majoritariamente satisfação com o plano, expressiva parte delas mostrava ressalvas. Referiam à necessidade da cobertura possuir uma maior diversidade de profissionais não-médicos, uma vez que o tratamento requer uma integração entre diversas áreas do conhecimento. O desenvolvimento de novos referenciais e instrumentos que possibilitem uma visão sobre a satisfação dos usuários e de sua rede de relações pode se revelar especialmente útil para a atenção à saúde atualmente. Aspectos da satisfação dos usuários podem ser manifestos com mais amplitude, à semelhança deste estudo, que mostrou que o caráter “tecnológico” característico da linha cardiovascular é fator determinante de satisfação, mas também a necessidade de realização de práticas de promoção ou prevenção efetivas. Na mesma linha, a oncologia representa, juntamente com o parto, excelente situação para acompanhamento das ações de humanização e da presença de equipe multiprofissional de saúde no acompanhamento de pacientes. A saúde mental oferece a possibilidade de se reconhecerem os limites e a capacidade de resposta da rede de assistência biomédica, assim como da ampliação do diálogo entre o sistema profissional e o informal. As narrativas das experiências dos usuários permitiram identificar os múltiplos aspectos implicados na qualidade da atenção recebida, que devem ser levados em conta na implementação de políticas e programas que se relacionam com a promoção da saúde, com a efetividade e a melhoria estrutural da rede de serviços de saúde. Esses resultados apontam, ainda, a necessidade do desenvolvimento de atitudes e ações que possibilitem construir a integralidade da atenção e do cuidado nas linhas estudadas, evidenciando o papel da humanização da assistência, o desenvolvimento de relações coordenadas entre os sistemas público, privado e informal de cuidados, além dos aspectos econômicos e arranjos técnico-assistenciais presentes na atenção à saúde.

Colaboradores Maristela Chito Sisson e Maria Conceição de Oliveira participaram do delineamento da pesquisa, coleta de dados, e foram as responsáveis pela redação do artigo. Eleonor Minho Conill e Denise Pires coordenaram o estudo, participaram do delineamento da pesquisa, coleta de dados, e contribuíram na redação do artigo. Antonio Fernando Boing e Hosanna Pattrig Fertonani participaram do delineamento da pesquisa, coleta de dados, e contribuíram na redação do manuscrito. Agradecimentos Os autores agradecem à Agência Nacional de Saúde Suplementar que, com a política de fomento à pesquisa por meio do estabelecimento de centros colaboradores regionais, garantiu os subsídios necessários à realização do estudo. 134

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artigos

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SISSON, M.C. et al.Satisfacción de los usuarios en la utilización de servicios públicos y privados de salud en itinerarios terapéuticos en el sur de Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.123-36, jan./mar. 2011. El estudio trata de la satisfacción de las personas en los itinerarios recorridos durante la utilización de los servicios de salud públicos y privados en tres capitales del sur de Brasil frente a situaciones de salud-enfermedad-cuidados. Trabajando con un planteamiento cualitativo se han entrevistado 131 usuarios de planes de salud que han recibido cuidados en infarto agudo del miocardio, alcoholismo, cáncer de mama y parto. En itinerarios dotados de numerosas trayectorias y arreglos entre sub-sistemas de servicios, sobre todo en campo de la salud mental y de la oncología, la categoría “satisfacción” ha mostrado buena evaluación en el infarto agudo del miocardio, cáncer de mama y parto, por la presencia de acceso rápido a recursos técnicos adecuados. Las insatisfacciones se refieren a dificultades en las informaciones, instalaciones, costes, coberturas y autorizaciones de procedimientos. El estudio ha mostrado la importancia de considerar la pluralidad de los sistemas de cuidados y la subjetividad del juicio de valor en la implementación de políticas y programas de salud.

Palabras clave: Evaluación en salud. Satisfacción del paciente. Servicios de salud. Salud complementaria. Recebido em 25/02/10. Aprovado em 12/07/10.

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artigos

Inclusão e exclusão social: as representações sociais dos profissionais de saúde mental*

Adriana Leão1 Sônia Barros2

LEÃO, A.; BARROS, S. Social inclusion and exclusion: the social representations of mental health professionals. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.137-52, jan./mar. 2011. The Centros de Atenção Psicossocial (CAPS - Psychosocial Care Centers) propose to develop social inclusion actions for people with mental disorders. However, difficulties are verified concerning practices driven by this objective. In this article we present research data as a contribution to encourage reflections on this topic. The object of this study are the social representations of mental health professionals regarding social inclusion practices, and the guiding concepts are psychosocial rehabilitation and the Italian deinstitutionalization. The data were submitted to discourse analysis and to analyze the resulting empirical category conceptions on social inclusion and exclusion -, social representation, according to Minayo, was utilized. The discourses revealed concordant conceptions with psychosocial rehabilitation principles, such as the right to exercise citizenship and insertion in the workforce; and others in disagreement, like considering CAPS as a space of social inclusion in itself, which limits the development of further practices with this purpose.

Keywords: Social inclusion. Psychosocial rehabilitation. Mental health services.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) propõem desenvolver ações de inclusão social para pessoas com transtornos mentais. Contudo, constatam-se dificuldades acerca de práticas com este objetivo. Neste artigo apresentamos alguns dados de pesquisa realizada, como contribuição para fomentar reflexões sobre o tema. O objeto deste estudo são as representações sociais dos profissionais de saúde mental sobre práticas de inclusão social e os conceitos norteadores são a reabilitação psicossocial e a desinstitucionalização italiana. Os dados foram submetidos à análise do discurso, e para analisar a categoria empírica resultante - concepções sobre inclusão e exclusão social -, utilizamos a representação social, segundo Minayo. Os discursos revelaram concepções concordantes com preceitos da reabilitação psicossocial, como o exercício da cidadania e a inserção no trabalho, e outras em desacordo com tais princípios, como considerar o CAPS espaço em si de inclusão social, o que limita desenvolver práticas que tenham essa finalidade.

Palavras-chave: Inclusão social. Reabilitação psicossocial. Serviços de saúde mental.

Elaborado com base em Leão (2006); pesquisa desenvolvida com financiamento do CNPq e aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (CEP-EEUSP). 1 Departamento de Educação Integrada em Saúde, Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Av. Marechal Campos, 1468. Maruípe, Vitória, ES, Brasil. 29.040-090. drileao@usp.br 2 Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica, EEUSP. *

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INCLUSÃO E EXCLUSÃO SOCIAL: AS REPRESENTAÇÕES ...

Em busca de transformações: a inclusão social de pessoas com transtornos mentais Historicamente, a assistência psiquiátrica baseada no modelo hospitalar produziu perdas significativas na vida das pessoas com transtornos mentais severos e persistentes. As trajetórias marcadas por esses transtornos recorrentes não podem ser atribuídas apenas ao aspecto psicopatológico que justificou a criação de macro instituições psiquiátricas. O hospital psiquiátrico omitiu os aspectos sociais amplos e estruturais, bem como os psicossociais, tais como as relações familiares e sociais, que são indissociáveis da vida do indivíduo e que interferem em seu processo de saúde e doença mental. As perdas decorrentes do processo de adoecimento psíquico e da internação psiquiátrica, sobretudo quando frequentes, são múltiplas e afetam as relações profissionais, afetivas, culturais. Por consequência, geram reflexos no exercício dos direitos individuais, como o acesso a bens e serviços (Brunello, 1998). O tratamento centrado na internação psiquiátrica em instituições asilares trouxe consequências não somente para o indivíduo, excluindo-o de suas relações, impedindo e restringindo suas ações cotidianas, mas também para as famílias. De acordo com Melman (2006), os discursos da psiquiatria e da psicanálise, ao serem utilizados como instrumentos de normatização social, atribuíram a gênese dos transtornos mentais a problemas nas relações familiares. Desse modo, além de sobrecarregados pelos cuidados ao familiar adoecido e pela própria vivência de dor, ainda eram culpabilizados. A internação psiquiátrica promove uma dupla exclusão. Primeiro, pela retirada da pessoa do seu meio social, impedindo o exercício dos direitos civis, como a liberdade de ir e vir. Segundo, pela exclusão do contexto das trocas materiais, as quais se efetivam mediante a inserção no mercado de trabalho (Silva, 1997). A relação entre inclusão social e trabalho foi muito discutida por diversos autores, referindo-se a todos aqueles que se encontram à margem, excluídos da vida produtiva e social, denunciando a situação das pessoas que têm algum tipo de desvantagem em relação ao progresso industrial, como os idosos e as pessoas com transtorno mental (Demo, 2002). Para Castel (1997), o processo de exclusão social pode designar a situação de todos aqueles que se encontram “fora dos circuitos vivos das trocas sociais”. Nesse sentido, a exclusão social não se restringe apenas à desintegração do mercado de trabalho, mas também se refere a uma ruptura nos laços sociais e familiares. Esse tipo de dissociação foi denominado, por esse autor, “desfiliação”. Resumidamente, muitas vezes, a fragilidade e a desvinculação dos laços sociais estão presentes nos casos de adoecimento mental, e são representadas pela exclusão do mercado de trabalho, da família, da cultura e da política, além de limitarem o exercício do papel social, o que acaba por anular o indivíduo em sua singularidade (Vianna, Barros, 2002). Com o objetivo de modificar gradativamente a assistência centrada na internação em hospitais psiquiátricos, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2001) propõe um modelo de atenção à saúde mental de base comunitária, consolidado em serviços territoriais e de atenção diária. Nessa direção, a assistência deve se basear na comunidade, o que implica: desenvolvimento de uma gama de serviços em locais próximos da residência do indivíduo; ações de intervenções nos sintomas e incapacidades; tratamento e atenção específicos e individualizados; serviços variados que atendam às múltiplas necessidades dos usuários; atendimentos domiciliares e ambulatoriais. Os serviços devem visar à emancipação dos usuários, aumentando sua independência para o autocuidado, identificando recursos e estabelecendo alianças sociais saudáveis. O documento Mental Health Policy and Service Guidance Package (World Health Organization, 2003), com base em experiências práticas e pesquisas em diferentes regiões do mundo, fornece orientações para os países interessados na reestruturação dos seus serviços de saúde mental. Contudo, não tem como objetivo prescrever um modelo singular de atenção, pois a organização e a disponibilização dos serviços de saúde mental dependem dos contextos político, social, cultural e econômico dos diferentes países. Assim, cada país deve aplicar as recomendações em consonância com suas necessidades e circunstâncias. No Brasil, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) estão de acordo com o que é proposto pela OMS, pois têm a possibilidade de aliar ações de cuidado clínico a programas de Reabilitação Psicossocial 138

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LEÃO, A.; BARROS, S.

artigos

e, conjuntamente com outros programas e serviços de atenção à saúde mental existentes, substituir o tratamento centrado na internação em hospitais psiquiátricos. Os objetivos propostos nos CAPS são: oferecer cuidados clínicos e fomentar a inserção social pelo acesso ao trabalho e aos direitos, e pelo aumento e fortalecimento da rede social dentro do contexto de vida do usuário (Brasil, 2004). Porém, constatamos, por meio de algumas publicações, que os CAPS têm enfrentado dificuldades concernentes à Reabilitação Psicossocial por ainda centralizarem as ações em atendimentos clínicos e ambulatoriais, e, em menor proporção, nas práticas de inclusão social. Quintas e Amarante (2009), em um estudo que não tem a pretensão de avaliar os serviços substitutivos, revelam que o funcionamento dos CAPS tem se dado de modo procedimento-centrado, centralizando as práticas e as relações interpessoais em seu interior, por meio de intervenção medicamentosa e psicoterapêutica. E ainda, em uma pesquisa avaliativa desse tipo de serviço na região Sul do país, foi mencionada a importância da ampliação de atividades externas que promovam a inclusão social, tais como atividades de geração de renda (Kanstorski et al., 2009). Com a finalidade de compreendermos como se dão as práticas para a inclusão social de pessoas com transtornos mentais, no modelo proposto pela Reforma Psiquiátrica, realizamos uma pesquisa de Mestrado (Leão, 2006) que teve como um dos seus objetivos analisar a concepção de inclusão social expressa na representação social dos trabalhadores. No estudo realizado, a perspectiva da psiquiatria democrática italiana e a reabilitação psicossocial foram os conceitos eleitos como referência teórica, por apresentarem proposições que fundamentam as práticas de inclusão social. Conforme a definição fornecida pela OMS, o termo “reabilitação psicossocial” é compreendido como um processo, e não como uma técnica. Um processo que tem como objetivo oferecer aos indivíduos, em desabilidade decorrente do transtorno mental, condições para exercerem suas potencialidades e capacidades de forma independente na sociedade (OMS, 2001). Além disso, a construção da cidadania, bem como a restituição da contratualidade do indivíduo nos âmbitos da rede social, da moradia e do trabalho como valor social, são os eixos norteadores do processo de reabilitação psicossocial, nas proposições trazidas por Saraceno (1999). Tendo como finalidade a ampliação dos espaços de negociação para a realização das trocas sociais, afetivas e materiais, os profissionais de saúde mental devem estar atentos e direcionarem esforços no que se refere a esses aspectos. A recusa e a crítica à função do hospital psiquiátrico, bem como a proposição de novas formas de lidar com o transtorno mental, tiveram ênfase no processo de reforma psiquiátrica na Itália, no início da década de 1960. Esse processo foi denominado psiquiatria democrática italiana, cujo tema central é o confronto das questões psiquiátricas com as contradições sociais, sendo o foco da discussão: a restituição dos direitos, a complexidade das necessidades, as possibilidades das pessoas acometidas pela doença mental, bem como a finalidade da instituição psiquiátrica em relação à estrutura social (Nicácio, Amarante, Barros, 2005). O objetivo do processo de desinstitucionalização é deslocar o olhar para a ‘existência sofrimento’ do indivíduo em relação ao corpo social, retirando-o dos parênteses colocados pela psiquiatria. A finalidade desse processo é a invenção de saúde e a reprodução social da pessoa acometida pelo transtorno mental, buscando sua autonomia e a produção de sentidos e de sociabilidade (Rotelli, 2001). Com base nos referenciais citados, neste artigo objetivamos apresentar a discussão de parte dos dados da pesquisa realizada, tendo, como categoria empírica, as representações sociais dos trabalhadores em saúde mental sobre a inclusão e exclusão social das pessoas com transtornos mentais, que contribuirão para fomentar reflexões acerca deste tema.

Caminhos metodológicos Para tomar as representações sociais dos profissionais acerca das práticas de inclusão social como um objeto de estudo, a abordagem mais adequada é a pesquisa qualitativa. Ela pode ser compreendida como uma tentativa de se obter a compreensão dos significados e definições de uma determinada COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.137-52, jan./mar. 2011

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INCLUSÃO E EXCLUSÃO SOCIAL: AS REPRESENTAÇÕES ...

situação tal como as pessoas nos apresentam. Essa abordagem parte do pressuposto de que o mundo está permeado de significados e símbolos, e que a intersubjetividade é um ponto de partida para se captarem, reflexivamente, os significados sociais (Minayo, 1998). O campo de estudo desta pesquisa foi um CAPS tipo II, do município de São Carlos, localizado no interior do Estado de São Paulo. A proposta do estudo foi apresentada em uma reunião de equipe. Os profissionais presentes que se consideraram envolvidos em atividades de inclusão social se dispuseram a participar na qualidade de sujeitos da pesquisa. Assim, em conformidade com Turato (2003), a estratégia de amostragem utilizada foi intencional ou proposital, em que os sujeitos que fazem parte do estudo são escolhidos entre aqueles que podem contribuir com informações substanciosas sobre o tema em discussão. Durante a entrevista, também houve indicação de alguns profissionais por parte desses sujeitos escolhidos, caracterizando, ainda, a técnica de amostragem do tipo “bola-de-neve”. Anteriormente à realização da coleta de dados, o projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (CEP-EEUSP), conforme a Resolução nº 196 de 10/10/1996 do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre as normas de pesquisa envolvendo seres humanos. A coleta de dados foi realizada por meio de 11 entrevistas semiestruturadas, que foram gravadas e, posteriormente, transcritas, conforme roteiro a seguir.

ROTEIRO DE ENTREVISTA Identificação: Iniciais do colaborador: Sexo: Profissão:

_____________________________________________________________________ ( ) Masculino ( ) Feminino __________________________________________________________________

Idade:

__________________

Formação (graduação, especialização, pós-graduação)

___________________________________________________________________

Instituição:

___________________________________________________________________

Funções exercidas na instituição:

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Tempo de experiência na área de saúde mental:

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Tempo de trabalho na instituição:

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Questões abertas: 1. Na sua prática cotidiana o que você identifica como projetos ou ações de inclusão social? Relate uma vivência. 2. Uma das proposições da Reforma Psiquiátrica Brasileira é a de promover a inclusão social de seus usuários. Quais as ações que podem ser feitas para atingir este objetivo? 3. Como você compreende a exclusão/inclusão social de pessoas com transtornos mentais? 4. Quais as possibilidades encontradas no território para o desenvolvimento das ações de inclusão social? 5. É possível promover a inclusão social das pessoas em situação de sofrimento psíquico? Liste possíveis facilidades e dificuldades para a promoção da inclusão social.

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Os dados foram analisados com base em procedimentos propostos pela Análise do Discurso, uma abordagem que possibilita o entendimento do texto de forma mais aprofundada, porque leva em consideração a realidade social e histórica em que ele foi produzido (Vianna, Barros, 2003), o que tornou possível recortar alguns temas. As frases temáticas que foram extraídas das falas dos profissionais versam sobre as ações de inclusão social realizadas no serviço e foram reordenadas em grupos temáticos, os quais produziram as categorias empíricas. Tais categorias, de acordo com Minayo (1998), são aquelas construídas com finalidade operacional a partir do trabalho de campo e têm a propriedade de apreenderem as determinações e especificidades que se expressam na realidade empírica. Em nossa pesquisa, foram identificadas como: representações do processo de inclusão e exclusão social, práticas de inclusão social e modelo assistencial. Para a discussão dos discursos identificados, foi utilizada, como categoria de análise, a Representação Social, que é definida como um conjunto de conceitos, afirmações e explicações utilizado pelas pessoas para a compreensão e construção da realidade, e que possibilita a valorização do conhecimento popular, o senso comum (Minayo, 1998). Para Spink (1993), o senso comum, objeto de estudo das Representações Sociais, deve ser visto como conhecimento legítimo e motor das transformações sociais. A análise do senso comum é capaz de revelar não a lógica e a coerência, mas sim a natureza contraditória na qual estão inseridos os atores sociais. Nesse sentido, verifica-se a importância da Representação Social como categoria de análise da concepção de inclusão social dos projetos assistenciais por meio da visão de mundo dos profissionais que compõem a equipe do CAPS.

Discussão dos resultados Neste trabalho, apresentamos, como categoria, as representações sociais do processo de inclusão e exclusão social, composta pelos temas: ‘inclusão e exclusão social’, ‘normalidade social’, ‘cidadania’ e ‘mercado de trabalho’, que emergiram da análise das representações sociais dos profissionais entrevistados.

Inclusão e exclusão social Nos textos analisados, destacamos algumas falas que apontam para uma concepção de inclusão social baseada em trocas afetivas e sociais, a qual concorda com a literatura sobre o tema. Porém, as falas revelam também que os relacionamentos sociais estão restritos ao espaço institucional, ou seja, a inclusão tem como significado apenas o acolhimento do usuário no serviço: 3 No início de cada fala, a letra E e o número correspondem aos sujeitos entrevistados, variando de 1 a 11.

E6 3 - “Eu acho que as coisas funcionam assim, lá [fora] eles excluem e aqui [no CAPS] nós incluímos”. E8 - “Aqui [no CAPS] embora sendo um cantinho dos excluídos, eles não ficam tão excluídos como lá fora, eles ficam mais perto da gente, perto das pessoas que cuida deles, perto da sociedade”.

O CAPS representa o espaço de inclusão social ao oferecer atenção e cuidado, e somente nele os usuários estão inclusos. Assim, os enunciados aqui dentro e lá fora nos remetem à presença dos “muros” do CAPS, como também não escondem a posição de exclusão das pessoas com transtornos mentais: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.137-52, jan./mar. 2011

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E8 - “Embora eles estão incluídos na exclusão social por estar aqui, é uma coisa muito difícil de entender, não é?”

Observamos que há uma contradição nos dizeres dos entrevistados, uma vez que, para eles, o CAPS representa o lugar de integração dos excluídos porque os protege da exclusão social, mas não a enfrenta. Por outro lado, a necessidade de inserção social, abrangendo a comunidade, e não apenas o espaço institucional, é compreendida pelos entrevistados como inclusão social: E4 - “[Sobre a compreensão de inclusão social] Vejo que essas pessoas precisariam fazer parte de tudo da comunidade, da sociedade...”

Como causa da exclusão social, foi apontado o estigma da doença mental, partindo da rede social primária, a família: E11 - “É a própria exclusão que a família faz, de preconceito, do estigma, de não acreditar que ele possa voltar a realizar qualquer atividade”.

O estigma, definido por Goffman (1978) como uma marca com conotação negativa atribuída à pessoa e que permeia as relações sociais, é a base desse comportamento de rejeição e diferenciação. Consequentemente, ele é uma das barreiras tanto para a realização das trocas sociais e a vinculação do indivíduo numa rede de sociabilidade, quanto para a inserção no trabalho, visto que a periculosidade, a improdutividade e a incapacidade são estigmas, em torno de pessoas com transtornos mentais, fortemente presentes no imaginário social, marcado por uma cultura de exclusão e de intolerância. A inclusão social, de acordo com a fala, passa pela questão da aceitação do indivíduo: E9 - “A inclusão social passa por essa aceitação da doença mental como uma doença que tem que ser tratada e que a pessoa não é bicho”.

A rejeição tem como base a impossibilidade de aceitação da diferença, pois se condena o transtorno mental, procurando afastá-lo como se essa condição não fizesse parte do universo dos humanos, que é tão metodicamente organizado e apresenta soluções sempre prontas. Assim, essa pode ser uma das razões para a dificuldade de se compreender e lidar com o transtorno mental (Vianna, Barros, 2002). Na fala que se segue, o enfrentamento do estigma surge como uma ação possível, porém sugere que tal ação está restrita aos muros do CAPS, pois os profissionais, e somente eles, são capazes de compreender os usuários: E9 - “Só de proporcionarmos a essas pessoas que não sejam mais vistas como animais já é uma inclusão muito grande, se elas forem vistas como pessoas, como as vemos aqui, como gente, como ser humano. Penso mais ou menos isso da inclusão social”.

E isso pode ser confirmado por este outro depoimento: E8 - “Se ele estiver lá fora [do CAPS] vai ser pior a exclusão, porque lá as pessoas não vão entender que eles são os psicóticos...”

Observamos, mais uma vez, a presença da dicotomia dentro e fora do CAPS. A compreensão, expressa nas falas, sobre a exclusão e a inclusão social de pessoas com transtornos mentais está muito mais relacionada à presença dos usuários dentro do serviço do que a uma integração aos “circuitos vivos das trocas sociais”, como definido por Castel (1997).

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Restringe-se, dessa forma, o conceito de exclusão a uma situação microssocial, seja no contexto do serviço, seja pela condição do próprio usuário quando ele é considerado como um sujeito ativo porque busca o isolamento, ainda que de forma involuntária, como na frase seguinte: E3 - “É involuntário porque a crise por si só acaba excluindo eles, fazendo a exclusão social porque eles se isolam...”

O isolamento, conforme observamos, foi compreendido no discurso como exclusão social. Comumente, na esquizofrenia, o estigma como um fator ambiental agrava os sintomas negativos da doença, visto que a pessoa pode buscar o isolamento para evitar a rejeição (Mateus et al., 2006). Assim, também a condição de classe social, associada à busca pelo isolamento, é apontada como determinante da exclusão social: E2 - “Mas também é isolado porque todo mundo da família tem que sair pra trabalhar, se não ninguém come, então ele vai ficar em casa o dia inteiro sozinho e fica em casa sozinho porque ele foi excluído pela psicose ou ele foi excluído pela pobreza?”

Esse dizer problematiza os fatos determinantes de exclusão social, indicando que não é a doença mental em si e por si mesma que acarreta esse processo, mas também a pobreza. Compreender a pobreza não somente como a condição em que os indivíduos deixam de usufruir de uma série de vantagens como desfrutam aqueles que não são pobres, mas que é resultante de uma dupla dinâmica de precarização e fragilização que conduz ao acúmulo de déficits, implica entendê-la como produtora da exclusão social (Castel, 1989).

Normalidade social A relação entre normalidade e inclusão social foi outro aspecto que emergiu dos dizeres dos profissionais ao serem indagados sobre quais ações de inclusão social consideram ser agentes. As orientações para a realização das atividades da vida diária constituem uma prática voltada para a inclusão social, conforme a seguinte fala: E5 - “[Importância de orientações das atividades de vida diária, porque a pessoa] Vai ser considerada de certa forma normal e vai ser aceita pela sociedade e pela família também...” E3 - “A inclusão é você começar a resgatar o mínimo, a fazer com que ele volte o máximo que der para as suas atividades...”

A concepção de inclusão social expressa está atrelada ao fato de que a pessoa com transtorno mental deve voltar a realizar as atividades cotidianas, tal como a sociedade aceita e espera, e, assim, as práticas se voltam para esse objetivo, pois ser “normal” significa agir como todas as pessoas consideradas saudáveis. As frases seguintes reforçam esta ideia: E1 - “[Sobre a possibilidade de incluir socialmente] Eles desceram normalmente como qualquer pessoa que está viajando, foram ao restaurante, consumiram...” E9 - “[Sobre a possibilidade de incluir socialmente] A gente foi numa fazenda outro dia e muito legal, muito bom, todo mundo sentado direitinho, tomando café, então é possível sim”. E1 - “[Participação em passeio] Quando a gente parou no posto da estrada, eles agiram normal, não ficaram esperando o profissional dizer...”

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Assim, agir conforme as regras sociais numa situação como o passeio é determinante para que o usuário esteja dentro de um padrão de “normalidade”. É notável, a esse propósito, como a figura do profissional é tomada como medida para o grau de normalidade do usuário, como se observa na fala seguinte: E3 - “[Participação em passeio] Queria que você me apontasse quem que era o profissional, qual era o técnico que estava ali, ou melhor, quem que é o paciente? Não teve diferença do meu comportamento, eu ali e o paciente que foi”.

O termo normalidade está relacionado à adaptação às normas estabelecidas socialmente. É considerado normal aquilo que pode ser tomado como referência de uma norma, ou seja, o normal é, ao mesmo tempo, a exibição e a extensão da norma que, por sua vez, serve para endireitar (Canguilhem, 1982). Para os entrevistados, existem possibilidades para o processo de inclusão social quando o usuário apresenta-se “como uma pessoa normal”. A concepção que se tem de inclusão social direciona as ações e, nesse sentido, analisamos que as mesmas estão voltadas, sobretudo, para a restituição da normalidade do indivíduo mais do que para práticas de inclusão social das pessoas em condições de adversidades. Por outro lado, há falas que apontam para uma crítica à concepção de normalidade como imposição para que as pessoas com transtornos mentais sejam incluídas socialmente, considerando essa exigência uma forma de exclusão: E3 - “O que é considerado normal? Hoje é um risco você falar assim: “fulano é normal”, eu não sei se eu sou, então é complicado, você ficar questionando. Eu acho que a exclusão na saúde mental é isso...”

Outro entrevistado complementa: E11 - “Inclusão é isso, você chega lá, você tem que ser tratado, ninguém precisa saber de onde veio, não tem que se identificar, as pessoas que têm que perceber que você é diferente, mas tanto faz se você é diferente ou não”.

Essas duas afirmações se contrapõem àquelas anteriormente colocadas (“sentar direitinho”, “descer normalmente do ônibus”), apontadas como possibilidades para a inclusão social, porque não enfatizam a restituição da normalidade como condição, e sim indicam uma crítica à necessidade de classificação (normal ou anormal), pois a inclusão é compreendida como o acolhimento às diferenças. É preciso desmistificar a concepção de normalidade como um padrão homogêneo a ser seguido e compreender a importância do restabelecimento da normatividade, ou seja, a capacidade do indivíduo para responder com flexibilidade às demandas que a vida impõe. Assim, ser “normal” significa ser normativo, independentemente das condições em que esse indivíduo se encontre (Aguiar, 2004). Essa mudança de concepção norteia o estabelecimento de práticas condizentes com os preceitos da Reabilitação Psicossocial. Dessa forma, construir caminhos que possam interromper ou amenizar o processo que restringe a normatividade das pessoas, objetivando um aumento em sua autonomia e independência, contribui para o processo de inclusão social.

Cidadania De acordo com as propostas da Reabilitação Psicossocial, a única reabilitação possível ocorre somente a partir da construção dos direitos substanciais de cidadania, que envolve os aspectos afetivos, relacional, material, habitacional e produtivo (Saraceno, 1999). Nesse sentido, compreender o exercício da cidadania apenas como o reconhecimento dos direitos não implica mudanças reais na vida das pessoas que não são ainda cidadãs, conforme a frase que segue:

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E9 - “Não muda a essência, não adianta falar para essas pessoas que elas são cidadãs [...] elas têm que ser de verdade...”

O discurso em torno da cidadania dos indivíduos acometidos pelo sofrimento psíquico teve enfoque na década de 1980, a partir da luta dos movimentos sociais, no contexto da redemocratização do país, com a Reforma Sanitária e, especificamente, com a Reforma Psiquiátrica. A cidadania passou, então, a ser compreendida como um processo de construção de um outro lugar social na experiência do transtorno mental, garantindo a ampliação da capacidade dos indivíduos, bem como a liberdade de ação e participação (Oliveira, Alessi, 2003). Além disso, a partir dessa época também foi colocada como garantia de um melhor tratamento, mais acessível e menos invasivo. Dessa forma, nas falas seguintes, a exclusão social está representada pelo tratamento baseado na internação em macro hospitais psiquiátricos ainda presentes no contexto da assistência, ao mesmo tempo em que existem os outros serviços para o atendimento à crise, como as Enfermarias Psiquiátricas em Hospitais Gerais e os serviços substitutivos que prestam assistência vinte e quatro horas – os CAPS III: E11 - “Às vezes não é nem caso de excluir, de internar, podia ter um outro espaço, um CAPS III”. E11 - “Se ele tiver uma crise, tem um hospital geral que possa acolher, que é muito diferente do hospital psiquiátrico. Isso também colabora para a não exclusão”.

Se, por um lado, o hospital psiquiátrico representa a exclusão social, contraditoriamente observa-se a defesa dessa instituição na rede assistencial. A afirmação da necessidade do hospital especializado revela, na fala, que essa é a forma de tratamento mais adequada e que, portanto, deve ser mantida a hegemonia hospitalocêntrica: E9 - “Partiu-se de um pressuposto que todo hospital é ruim, hospital não é ruim”. E9 - “Estamos falando em torno de cidadania, de inclusão social, das pessoas como seres humanos, mas a parte terapêutica disso não foi considerada, então a partir dessa data os hospitais psiquiátricos serão fechados [...] mas existem pacientes em estado muito grave que precisam disso...”

Na pesquisa realizada por Gradella Junior (2002), conclui-se que o hospital psiquiátrico apresenta a mesma estrutura e função de dois séculos atrás: continua excluindo e segregando as pessoas com transtornos mentais, sobretudo as de classes sociais mais baixas. O hospital psiquiátrico, ainda que apresente propostas de atendimento modernizadas e humanas, manterá a representação de uma cultura manicomial e excludente. Dessa forma, significa um dos sentidos da exclusão social, sendo necessário refletir sobre o seu papel atual perante as contradições sociais, que são as bases da produção das vulnerabilidades que levam à exclusão social. Contraditoriamente, as grades, símbolos de exclusão comumente utilizados nessas instituições, são consideradas, nas falas, como representação de inclusão social, porque o poder de contenção é compreendido como uma forma de cuidado: E2 - “Essa grade aqui [da janela] não é exclusão social, não está criando um presídio, um asilo, não é isso, é pra proteger as pessoas de uma coisa da qual nós não sabemos, não se conhece a doença mental pra poder dizer o que vai acontecer com ela...” E2 - “Na minha opinião, essa grade é uma inclusão social porque deu para a pessoa a proteção que ela precisava”.

Nota-se a inferência sobre a necessidade de se ter o controle sobre aquilo que não se conhece. A assistência baseada na observação do indivíduo que, destituído de seus direitos, é arbitrariamente COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.137-52, jan./mar. 2011

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inserido num espaço que o mantém protegido mas que, em contrapartida, protege a sociedade de sua suposta periculosidade e imprevisibilidade, é uma representação que circula no imaginário social e que, com efeito, não está desvinculada da história das instituições psiquiátricas asilares. Também se faz presente, nas falas, a compreensão de um cuidado em saúde mental que atenda realmente às necessidades do usuário, a partir do tratamento baseado no acolhimento e no respeito à sua individualidade: E11 - “É muito particular de cada um, não dá para incluir em linha de produção, é um pouco isso que eu entendo de inclusão”. E11 - “Inclusão em situações de vida, de entender no contexto cultural dele, o contexto econômico, o contexto de até onde ele pode avançar, resgatando até um pouco isso...”

Nessa perspectiva, que podemos chamar de cuidado inclusivo - o qual se contrapõe à compreensão de um cuidado julgado necessário para o controle e que, por fim, exclui -, a fala seguinte indica ainda que o profissional deve considerar a participação do usuário em seu próprio processo de tratamento: E10 - “A exclusão, às vezes, os próprios profissionais acabavam também enfatizando isso no tratamento quando não incluíam essas pessoas até na possibilidade de tratamento mesmo, do projeto terapêutico”. E10 - “Achavam que só por ela estar sofrendo o profissional sabia o que era melhor para ela e não incluía no tratamento, até na reabilitação...”

Construir conjuntamente com o usuário seu projeto terapêutico é uma das formas de estimular a sua autonomia, que, segundo Kinoshita (2001), é a capacidade de gerar normas e ordens para a sua vida frente às diversas situações enfrentadas. Diante disso, é possível construir uma relação entre o profissional e o usuário que se opõe àquela em que o indivíduo se apresentava desinteressado e apático em prol da autoridade institucional, que não demandava dele participação ou intervenções e, como resposta a isso, ele se mantinha anulado e definitivamente institucionalizado (Basaglia, 2005). Assim, o cuidado para além de contenções, como parte da cidadania, bem como a possibilidade de usufruir os direitos básicos, como liberdade, moradia e trabalho formal, também são considerados necessários ao processo de inclusão social na compreensão dos profissionais entrevistados: E1 - “Eu acho que não tem inclusão social se você não puder oferecer pra essa pessoa o mínimo, que é o poder ir e vir, o direito de se expressar, de fazer algo...” E3 - “Quando se pensa em inclusão social pensa-se numa coisa ampla, num emprego de carteira registrada, numa moradia de classe média ou então popular...”

Mas, nesse processo de construção de percursos inclusivos, os trechos seguintes revelam ainda que os profissionais podem ser agentes de inclusão ou de exclusão social conforme a postura adotada, visto que podem se distanciar das propostas de intervenção que levem em conta a cidadania e a inclusão social, mesmo que dentro de um serviço que tem a proposta de substituir o hospital psiquiátrico. E10 - “Não é só derrubarmos os muros do hospital para a questão da reabilitação porque, às vezes, você está num serviço que vem com a proposta de ser substitutivo, mas que, dependendo da atitude [...] de todas as pessoas que estão envolvidas nesse contexto do cuidado, pode ser que essa atitude seja uma atitude manicomial, que não promova a inclusão...”

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E2 - “Eu posso dizer: “Vamos fazer uma inclusão social” e, no que você começa a esbarrar nos obstáculos, você diz: “Mas a culpa é deles, dos outros”. Isso não dá para fazer, não gosto disso, é mentir para o paciente e para o problema...”

Vivenciamos uma fase de transição do modelo de atenção à saúde mental e, assim, é imprescindível uma autocrítica de cada profissional sobre o seu papel, visando não ser reprodutor de lógicas condizentes com o modelo de atenção hospitalocêntrico. Assim, prover o cuidado segundo o paradigma do modo psicossocial (Costa-Rosa, 2000) requer transformações nas concepções herdadas do modo de atenção manicomial, para que os atores responsáveis possam afirmar o compromisso com as questões da ordem dos direitos, rumo à finalidade dos serviços substitutivos, que é a Reabilitação Psicossocial e, portanto, a promoção da cidadania e da inclusão social.

Mercado de trabalho A reabilitação para as pessoas acometidas por transtornos mentais é um processo de intervenção que ocorre simultaneamente em dois aspectos: a desabilitação e a desvantagem. No vocabulário da reabilitação psicossocial, a desabilitação refere-se à perda ou limitação de capacidades operativas. A desvantagem significa a resposta dada pela organização social ao sujeito com uma desabilitação, como a desintegração social e o desemprego (Saraceno, 1999). Ainda de acordo com Saraceno (1999), os serviços responsáveis pelo processo de Reabilitação Psicossocial devem centralizar a intervenção em três eixos principais: moradia, trabalho e o lugar das trocas sociais – a rede social. A partir desses eixos ocorre o aumento da capacidade de contratualidade da pessoa, a construção da plena cidadania e firmam-se laços de inclusão social. Assim, buscar intervir sobre a desvantagem, no que se refere ao mercado de trabalho para as pessoas com transtornos mentais, é também papel dos profissionais inseridos no modelo de atenção psicossocial. Na análise desse tema, o trabalho se configura, nas concepções dos entrevistados, como um fator de inclusão social. Na fala que se segue, mesmo que não haja um posto no mercado de trabalho formal, é necessário o retorno financeiro em alguma medida. Mas proporcionar ações nesse sentido não faz ainda parte das práticas dos profissionais: E9 - “Essa pessoa vai ter um emprego numa fábrica e vai trabalhar, ganhar quinhentos reais por mês? Muito dificilmente, mas dá para ter um dinheirinho, ajudar a família, isso é inclusão social e é o que a gente objetiva lá na frente”.

Também é reconhecida, na fala seguinte, a exclusão do mercado de trabalho como uma problemática vivenciada não apenas pelas pessoas com transtornos mentais: E1 - “Eu acho que começa por aí, se quem é dito ‘normal’ já existe esse grande preconceito [de não conseguir trabalho após uma determinada idade], imagina quem está aí, entre aspas, classificado na saúde ou na doença mental. Eu acho que isso é uma grande forma de excluir”.

E, assim, o enfrentamento conjunto dessa situação é compreendido também como uma forma de inclusão: E11 - “Discutirmos ações alternativas, tendo essa realidade do mercado que temos, não tem emprego pra eles, mas também não tem pra todo mundo, como que vamos lidar com isso? Não adianta a gente ficar fantasiando e nem colocando dado que não é realidade pra eles, discutir em cima disso é inclusão”.

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Contraditoriamente, apesar do reconhecimento de que o trabalho é um dos aspectos importantes para a inclusão social, está presente, na fala dos entrevistados, a sensação de impotência diante do problema e a dúvida quanto ao papel do profissional: E2 - “Se a inclusão social é aquilo que permite ao sujeito voltar a conviver e a produzir na sociedade, eu não sei se eu pratico atos de inclusão social não”.

Observamos que o tema do trabalho figura nas falas como um horizonte, ainda que pouco discutido pela equipe, pois, como podemos observar no trecho que segue, o enfrentamento do estigma do transtorno mental é uma prática de inclusão social anterior ao aspecto do trabalho: E11 - “Desmontamos um pouco o preconceito, isso já incluiu um pouco. Foi uma inclusão pelo menos genérica, não conseguimos ainda avançar na inclusão especifica: ‘olha, consegui por ele para fazer um trabalho, ele voltou a trabalhar, ele tem renda!’. Ainda não conseguimos isso, estamos caminhando. Estamos ainda conseguindo que ele possa ser aceito, um processo anterior a isso”.

Não é possível fazer a separação indicada na fala - primeiro enfrentar o estigma e, depois, a inserção no trabalho - visto que os estigmas fortemente relacionados ao transtorno mental são os de improdutividade e incapacidade. Dessa forma, seu enfrentamento, por meio de práticas que contemplem o aspecto do trabalho, é o caminho mais adequado. Nesse sentido, alguns caminhos já foram delineados. As cooperativas de trabalho são apontadas, por Saraceno (1999), como meios eficientes e necessários para se enfrentar a desvinculação do mercado de trabalho. Constituem uma alternativa valiosa, não apenas para os usuários de serviços de saúde mental, mas também para as demais pessoas em situação de desvantagem social. É o que se verifica na obra de Paul Singer (2003), um dos principais autores no que diz respeito à Economia Solidária no contexto brasileiro. Contemplamos, em nossa realidade, experiências de geração de renda que são iniciativas bastante concretas e que mostram as possibilidades de se intervir sobre o aspecto do trabalho no contexto do tratamento em saúde mental. Nesse sentido, no âmbito da Política Nacional de Saúde Mental, juntamente com a Secretaria Nacional de Economia Solidária, do Ministério do Trabalho e Emprego, foi firmada a Portaria Interministerial nº 353, de 7 de março de 2005, que institui o Grupo de Trabalho Interministerial Saúde Mental e Economia Solidária para a discussão e o enfrentamento dessa questão. Além disso, a Portaria GM nº 1.169, em 07/07/2005, prevê um incentivo financeiro para os municípios que tenham projetos de inclusão social vinculados a uma rede de cuidados em saúde mental (Brasil, 2006). As iniciativas são importantes, tendo em vista que o investimento em ações dessa natureza garante novas perspectivas na atenção à saúde mental, efetivando uma abordagem em que o usuário atue como um individuo capaz de exercer os seus direitos, dentre os quais o trabalho como um dos aspectos necessários na promoção da inclusão social.

Considerações finais A inclusão social é uma bandeira da Reforma Psiquiátrica Brasileira, e todas as suas proposições e programas buscam efetivar ações com essa finalidade, o que representa um importante desafio, já que no processo de exclusão social estão imbricados aspectos políticos, econômicos e sociais que não podem ser enfrentados apenas por meio da área da saúde. Contudo, consideramos que os CAPS apresentam possibilidades para a promoção da inclusão social ao terem, como proposta, a Reabilitação Psicossocial, que preconiza intervenções nos três eixos norteadores: a rede social, a moradia e o trabalho.

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Dessa forma, o enfrentamento da situação demanda práticas para além da área de saúde mental e requer esforços dos atores envolvidos para o estabelecimento de relações e parcerias intersetoriais, com o objetivo de: viabilizar melhores condições de moradia; promover discussões e incentivar iniciativas que envolvem a inserção no mercado de trabalho; favorecer o acesso a serviços e bens públicos, como educação e cultura, e, assim, estimular condições para o exercício da cidadania. Nesse sentido, observamos que, na visão dos entrevistados, a inclusão social das pessoas com transtornos mentais implica o exercício de sua cidadania e de sua inserção no mercado de trabalho. Estas são concepções que vão ao encontro do que é preconizado nas propostas da reabilitação psicossocial. Por outro lado, o trabalho, apesar de ter importância como uma ferramenta para a inclusão, não é vislumbrado como uma meta próxima ou que esteja ao alcance das ações dos profissionais de saúde: consideram-se impotentes em promover ações nesse sentido. Esse é um ponto importante a ser debatido nos serviços de saúde mental, com o objetivo de se buscarem alternativas viáveis e, assim, contemplar um dos eixos propostos pela reabilitação psicossocial: o trabalho com valor social. Ampliar as ações nessa direção implica, entre outros aspectos, superar a visão segundo a qual a pessoa com transtorno mental é improdutiva e incapaz. Além disso, a inclusão social do usuário significa, nos discursos, ser aceito, acolhido, compreendido e poder participar do contexto social; em contraposição à rejeição, à incompreensão e ao isolamento. Mas a dificuldade que se apresenta é a de que esse lugar de inclusão e de pertencimento está limitado ao ambiente institucional e, em suas falas, os profissionais sugerem que somente isso é possível. Assim, compreender os CAPS como o espaço em si de inclusão social é uma barreira para o desenvolvimento de práticas que tenham essa finalidade. Outro equívoco que se apresenta nos discursos é considerar a restituição da normalidade como um requisito para a inclusão social. Os programas e as práticas são voltados para a inclusão social exatamente em função da existência das diversidades, das desigualdades e da predominância da cultura manicomial e excludente no imaginário social. Nesse sentido, um aspecto ao qual os trabalhadores devem estar atentos é a dimensão sociocultural, visto ser esse o lugar capaz de produzir novas formas de relação com as diferenças e de transformar as relações entre sociedade e loucura (Amarante, 2003). Por fim, buscamos, ao longo deste artigo, mostrar a análise das concepções dos trabalhadores de saúde mental sobre o tema da inclusão social, com a intenção de promover reflexões e discussões, pois, acreditamos que a superação de representações sociais condizentes com o modelo de atenção asilar é um dos passos importantes para que as práticas desenvolvidas a partir dos serviços substitutivos, de fato, contribuam para o processo de inclusão social dos seus usuários.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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INCLUSÃO E EXCLUSÃO SOCIAL: AS REPRESENTAÇÕES ...

LEÃO, A.; BARROS, S. Inclusión y exclusión social: las representaciones sociales de los profesionales de la salud mental. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.137-52, jan./mar. 2011. Los centros de Atención Psicosocial (CAPS) proponen llevar a cabo acciones de inclusión social para las personas con trastornos mentales. Sin embargo, observamos dificultades con relación a prácticas con este objetivo. En este artículo, el objeto de estudio son las representaciones sociales de los profesionales de salud mental sobre prácticas de inclusión social. Los conceptos rectores de la investigación son la rehabilitación psicosocial y la desinstitucionalización italiana. Los datos fueron sometidos al análisis del discurso; y para analizar la categoría empírica resultante los conceptos de inclusión y exclusión social, usamos la representación social, según Minayo. Los testimonios revelaron conceptos que concuerdan con los preceptos de la Rehabilitación Psicosocial, como el ejercicio de la ciudadanía y la integración en el trabajo, y otras en contradicción con tales principios, como considerar el CAPS un espacio en sí mismo de inclusión social, lo que limita desarrollar prácticas que tengan esta finalidad.

Palabras clave: Inclusión social. Rehabilitación psicosocial. Servicios de salud mental.

Recebido em 30/07/09. Aprovado em 13/10/10.

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artigos

Saúde indígena e políticas públicas: alteridade e estado de exceção

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Anita Guazzelli Bernardes1

BERNARDES, A.G. Indigenous health and public policies: alterity and state of exception. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.153-64, jan./mar. 2011.

This article analyzes the forms of objectivation of indigenous peoples in Brazil regarding health public policies. This reflection has stemmed from the way in which indigenous peoples have become a focus of public policies since 1910, when the Service of Indigenous Protection and Localization of National Workers (SPI) was created. The discussion was grounded on the analysis of SPI’s regulations from 1910 to 1963. The main line of investigation was the Foucauldian perspective of power/knowledge relations, as well as the concept of alterity and state of exception. The indigenous issue has been considered as an emergency in the territory of public policies and discussed as a historicalpolitical line which shapes both subjects and objects.

O artigo analisa as formas de objetivação das populações indígenas no Brasil no que tange às políticas públicas em saúde. A reflexão parte do modo como as populações indígenas se tornam foco de políticas públicas a partir do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPI), criado em 1910. A discussão ampara-se na análise das legislações do SPI no período entre 1910 a 1963. Utiliza-se, como linha principal de investigação, a perspectiva foucaultiana de relações de poder/saber, bem como o conceito de alteridade e estado de exceção. A questão indígena é considerada como emergência no território das políticas públicas e discutida como uma linha histórico-política que conforma sujeitos e objetos.

Keywords: Indigenous health. Signifying practices. Health public policies. Otherness. State of exception.

Palavras-chave: Saúde indígena. Práticas de significação. Políticas públicas de saúde. Alteridade. Estado de exceção.

*Elaborado com base na pesquisa “Saúde indígena e políticas públicas”, desenvolvida junto ao Programa de Pósgraduação em Psicologia, Universidade Católica Dom Bosco, com financiamento do CNPq. Início em 2009. 1 Mestrado em Psicologia, Universidade Católica Dom Bosco. Av. Tamandaré, 6000, Jardim Seminário. Campo Grande, MS, Brasil. 79.117-900. anitabernardes@ig.com.br

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SAÚDE INDÍGENA E POLÍTICAS PÚBLICAS: ...

O propósito deste artigo é analisar as formas de objetivação das populações indígenas no Brasil no que tange às políticas públicas em saúde. A reflexão parte de considerações preliminares, de uma pesquisa intitulada Saúde Indígena e Políticas Públicas, a respeito do modo como as populações indígenas tornam-se foco de políticas públicas a partir do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais – SPI, formulado em 1910. A discussão ampara-se na análise das legislações do SPI entre o período de 1910 e 1963, tomando, como linha principal de investigação, a perspectiva foucaultiana de relações de poder/saber. Esse campo de análise considera os documentos do SPI como um conjunto de discursos efetivamente pronunciados, como acontecimentos, que apesar de se transformarem através da história, possibilitaram o aparecimento de outros discursos. Ou seja, a análise do SPI é considerada como a descrição de um arquivo, no sentido que Foucault (2000) dá ao conceito. O exercício do pensamento circunscreve-se à análise de estratégias políticas voltadas para a saúde dos povos indígenas mediante o conceito de alteridade. Esta reflexão torna-se possível por meio da utilização das ferramentas conceituais de biopolítica, diferença e estado de exceção. A emergência da questão indígena, no território das políticas públicas, é discutida como uma linha histórico-política. Operar com uma linha histórico-política engendra-se na forma como se levantam questões sobre uma determinada formação histórica. É um modo de interrogar-se sobre a saúde indígena e perscrutá-la como problemática teórico-política. Teórica e política na medida em que se formula em uma racionalidade e em uma mecânica do poder. São estratégias que apresentam a saúde indígena como um acontecimento, e não como uma evidência. Em um primeiro momento, será discutido, neste texto, o conceito de cultura no que tange às práticas de significação e às biopolíticas. Mediante essas considerações, será apresentado o percurso das práticas em saúde voltadas para as populações indígenas. A partir disso, abre-se para uma análise dessas práticas em saúde, tomando, como fio condutor, a alteridade/diferença e o estado de exceção.

Cultura: práticas de controle da vida Este texto parte da consideração da cultura como práticas de significação, que se organizam sob condições políticas, como jogos de forças em um determinado tempo-espaço. O que se quer apontar é que as práticas de significação que constituem o tecido social, a vida cotidiana, têm condições discursivas de existência. Não se trata de significações que nomeiam ações/objetos/sujeitos, mas de sentidos que constituem ações/objetos/sujeitos. As práticas de significação produzem materialidades, corpos e diferenças. Isso implica não separar aquilo que é visível do que é enunciável, porém ambos são irredutíveis um ao outro. As práticas de significação, desse modo, não dizem o que algo é, sua essência, sua ontologia, e sim os acontecimentos que se tornam condições ontológicas. Por acontecimento compreende-se um conjunto de condições históricas, espaciais, existenciais, e não um grande evento disruptor de uma série de processos. O acontecimento é um conjunto de ações cotidianas de transporte, tradução e negociação de sentidos. Apontar a cultura como campo de produção é entendê-la, também, do ponto de vista político, ético e estético. Isso porque, quando as práticas de significação são definidas mediante condições socioculturais, e essas condições compõem um campo de lutas, de forças, encontramos um plano de ações possíveis, isto é, um campo político (Foucault, 2003). Essas ações, engendradas sob condições discursivas de possibilidade, atuam sobre outras possibilidades de ações, o que implica diversidade de práticas, diversidade de sentidos. Esse plano político, que envolve a ética e a estética, põe em jogo essas duas dimensões e diz respeito às formas de governo, da ação da força sobre outra força e da força sobre si mesma. Segundo Deleuze (1992, p.125), “a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isso implica”. Por estética, entende-se, de acordo com o mesmo autor, um plano de sensibilidade que indica um estilo de vida, um modo de existência. Um plano político, nas palavras de Foucault (2004), significa um conjunto de relações de poder ou, melhor dizendo, de estratégias de poder que nos fazem ver, falar, viver de determinados modos, e não 154

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de outros. Essas estratégias de poder tanto são forjadas em um determinado local da cultura quanto são condições de possibilidade para uma cultura. Colocar as práticas de significação em análise é operar com a cultura como um sistema aberto. Nesse plano de circunstâncias/acontecimentos, encontramos as estratégias de poder. Um poder que age sobre o viver, sobre as formas de vida a partir da modernidade. Um poder que, segundo Foucault (1999), não mais deixa viver e faz morrer, e sim, o contrário: faz viver e deixa morrer. Um biopoder que encontra, na vida, seu foco de investimento mediante estratégias biopolíticas. A vida passa a ser objeto das relações de força e de práticas de significação, a vida torna-se um fio condutor da cultura. Não a vida como fato, mas a vida como forma. Dessa maneira, olhar a cultura cria um plano ótico direcionado para as formas de viver e os modos como uma determinada cultura forja estratégias de controle da vida, estratégias de fazer viver ou deixar morrer. O biopoder é possível quando, no século XIX, a relação entre indivíduo e sociedade começa a ser modificada. Em uma organização social na qual existe o corpo individual de um lado e a sociedade de outro, as estratégias de poder edificam-se de forma disciplinar. A partir do século XIX, como foi apontado, surge um novo problema: não se trata mais do indivíduo em seu meio natural, e sim dos efeitos da cidade, dos processos cada vez mais recrudescidos da urbanização. A urbanização repercute não mais em corpos individuais, mas sim nos indivíduos em seu conjunto - a população. No que tange às práticas de significação, passa a ocorrer outro tipo de jogo: não mais indivíduo-corpo-sociedade, e sim população-espécie-cidade. Isso não quer dizer que as práticas disciplinares e o foco nos indivíduoscorpos deixaram de existir. Emerge, isso sim, outro conjunto de práticas de significação, que traz consigo distintos modos de poder. Ao tornar população-espécie-cidade como correlatos, ou seja, ao se considerar um, e instantaneamente o outro aparecer, cria-se uma urgência a ser respondida: as formas de viver da população em seu conjunto. A vida como forma de viver torna-se foco de investimentos do poder, isto é, a vida da população aparece como um problema político. Como problema político, não caberá mais apenas disciplinar os corpos individuais, e sim regulamentar a vida da população. Trata-se de uma economia política que cria a relação entre direito e vida: “direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no como da vida” (Foucault, 2005, p.296). A biopolítica é uma estratégia de poder que, adotada pelo Estado moderno, produziu a intervenção/regulação no direito à vida, uma biorregulamentação pelo Estado. É sob essas condições que se torna possível pensar a saúde, por exemplo, como estratégia biopolítica, como um conjunto de práticas de significação que organizam e regulamentam a população em seu conjunto. Assim, a saúde das populações torna-se foco do jogo político moderno. Esse jogo político é um conjunto heterogêneo que operacionaliza um saber sobre a vida (Medicina), um saber sobre o direito (Justiça) e um saber sobre a gestão da população (Economia Política). Esse jogo político capilariza-se no tecido social, estende-se do corpo-individual à população, utilizando, como estratégia, tanto a disciplina individual quanto a norma geral. A biopolítica encontrará, nas políticas públicas, um modo de operacionalização. As políticas públicas como no caso da saúde - tornam-se um modo de regulação da população. Trata-se de uma estratégia de governo que objetiva uma universalidade nacional: o fortalecimento da cidade, mediante o investimento na população, e que tem como um dos princípios a identidade nacional. Nesse caso, a Nação passa a ser soberana sobre o indivíduo: é em razão da Nação que o poder sobre a vida passa a se organizar. A política pública, desse modo, é uma estratégia de investimento na Nação. Nesse plano, de conformação da Nação, entra em jogo o fazer viver e o deixar morrer. Ao mesmo tempo em que a biopolítica faz viver, ela mesma tem, como estratégia, o deixar morrer para fazer viver – cria-se um corte entre aquilo que estaria a serviço da Nação e aquilo que desestabilizaria a universalização da Nação. Esses procedimentos políticos estabelecem uma cesura na população: a distinção entre grupos no interior da população; a qualificação de grupos como superiores e inferiores; a objetivação daquilo que deve viver e daquilo que pode morrer, ou seja, aquilo que qualifica culturalmente, de modo positivo e negativo, os grupos constitutivos de uma população. Agora, a população não é um conjunto de indivíduos, um contínuo biológico, e sim um conjunto subdividido de espécies, em subgrupos, que encontrará, como modo de organização da Nação, o que Foucault (2005) nomeia de racismo de Estado. 155


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As políticas públicas são mecanismos que marcam essas distinções, que fragmentam o contínuo biológico da população. Nesse caso, as políticas públicas são práticas de significação, pois trazem, em si mesmas, conjuntos de sentidos que justificam as próprias estratégias de poder, na medida em que a cesura da população será possível em razão das formas de objetivação dos diversos grupos constitutivos da Nação, das normas de regulação que a tornam possível. Isso não significa que a política pública não seja fundamental, entretanto, é importante marcar que aquilo que seria um mecanismo de equalização de direitos e suportes sociais acaba, justamente, por criar e recrudescer diferenças de acesso ao direito e aos suportes sociais – uma diferença marcada pelo racismo de Estado, e não pela alteridade.

A emergência da questão indígena no território das políticas públicas Segundo dados da Funasa (2000), a população indígena, quando da chegada dos europeus ao Brasil no século XVI, era estimada em cinco milhões de pessoas. A “colonização” do Brasil é considerada como um diagrama de poder que tem, como fio condutor, o modelo de conquista do outro (Lima, 1995). A “colonização” iniciou um processo de dizimação dessa população tanto pelas práticas de “escravidão, trabalho forçado, maus tratos, confinamento e sedentarização em aldeamentos e internatos” (Lima, 1995, p.4), quanto pelas epidemias de doenças infecciosas causadas pelo contato do europeu com o indígena. A relação que o europeu estabeleceu com as populações indígenas baseou-se naquilo que Foucault (2005, p.307) aponta: “[...] o racismo vai se desenvolver primo com a colonização. Quando for preciso matar pessoas, matar populações, matar civilizações, como se poderá fazê-lo, se se funcionar no modo do biopoder? Através dos temas do evolucionismo, mediante um racismo”. Esse processo que se estabelece no encontro entre uma racionalidade “colonizadora” e as populações que encontra no território do qual se apropria engendra estratégias que se iniciam com práticas disciplinares e se ampliam para biopolíticas. Entendida como uma rede que se estabelece entre um conjunto heterogêneo de organizações, discursos, regulamentações, proposições filosóficas, morais, científicas, que respondem a uma urgência histórica e constitui-se por jogos de força, a “colonização” é um dispositivo que, ao integrar, aniquila aquilo que difere (Foucault, 1995). As tecnologias desse dispositivo vão encontrar, no racismo, sua forma de justificativa, um racismo que se organizará desde práticas mais sutis de disciplina, como o confinamento e o sedentarismo, até práticas escravocratas e de trabalho forçado. Diante da questão social que se produz a partir dessas estratégias disciplinares, formulam-se políticas públicas voltadas para as populações indígenas, ou seja, formula-se um investimento biopolítico. A partir de 1910, começa a engendrar-se uma política indigenista - SPI -, inserida no Ministério da Agricultura, justificada em uma ontologia indígena que considerava os índios “num estágio infantil da humanidade” (Funasa, 2000, p.4), mas passíveis de governo a partir de um processo de “evolução e integração na sociedade nacional por meio de projetos educacionais e agrícolas” (Funasa, 2000, p.4). Esse modo de conformação do indígena em uma categoria de desenvolvimento humano mais primitivo difere um pouco das primeiras formas de objetivação quando da chegada dos europeus. Nesses primeiros encontros, o campo de inteligibilidade voltado para a conquista do território geográfico, e não da população, colocava em dúvida, inclusive, a humanidade das populações indígenas. As práticas de significação alheias nos atos alheios dessas populações não apresentavam ainda formas de objetivação por parte do europeu, eram planos de ações que diferiam, que apresentavam um grau de alteridade que dificultava procedimentos de tradução e interpretação. Nesse caso, iniciar processos de categorização indígena, ou seja, uma ontologia indígena torna-se uma estratégia do próprio dispositivo de colonização. O recurso de inteligibilidade forjado tratava de agrupamentos humanos ou não. De acordo com Foucault (1992), foi preciso o desenvolvimento de um campo nomeado de ciências humanas, que tinha como eixos o trabalho, a linguagem e a vida, para que as populações indígenas começassem a ser objetivadas como categoria humana, quer dizer, como um “estágio infantil do desenvolvimento humano”. O SPI foi a primeira política pública voltada para as populações indígenas em que se criou a possibilidade de ação estatizada para essas populações, tendo como práticas de significação a correlação entre trabalho, vida e linguagem. Essas ações estatizadas, ou as formas de governo sobre os povos 156

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indígenas, tiveram como agenciamentos: primeiro, a definição de um estatuto jurídico, em que o conceito “índio” figuraria como status jurídico; segundo, as negociações entre a permanência ou não de militares na aplicação e no gerenciamento do SPI (Lima, 1995). Nesse sentido, o SPI tem uma dupla inscrição em termos de práticas de significação no campo das políticas públicas, na medida em que os povos indígenas passam a ter um estatuto jurídico como população do território nacional. Portanto, as populações indígenas passam a ser foco de investimentos políticos, bem como da articulação desse estatuto jurídico ao campo militar, ou seja, a nacionalização das populações indígenas é feita pelo exército. Na análise de Lima (1995, p.118): “a atribuição de indianidade seria a via de acesso e forma intermediária do cumprimento de um projeto de extinção dos povos nativos enquanto entidades discretas, dotadas de uma historicidade diferencial e de autodeterminação política” – seria uma forma de operacionalização de um racismo de Estado. De acordo com Langdon (1999), até 1910, não havia políticas de saúde voltadas para as populações indígenas. Havia atendimentos esporádicos por parte de missionários. O SPI, criado em 1910, inicia um processo de intervenção, por parte do Estado, voltado para atender, entre outras problemáticas, a saúde indígena. Porém, as intervenções eram assistemáticas e desorganizadas. A desorganização e assistematização, quando analisadas como parte de um dispositivo, passam a ser compreendidas não como ausência de fundamentos médicos teórico-práticos, e sim como uma estratégia do próprio dispositivo. Trata-se de um projeto de integração com ações que objetivavam a proteção e enquadramento progressivo das populações indígenas no sistema produtivo nacional em razão de uma necessidade de pacificação das relações entre governo e povos indígenas, como descreve o Decreto nº 8.072 (Brasil, 1910, p.1): “Art. 1°. a) prestar assistência aos índios do Brasil, que vivam aldeados, reunidos em tribos, em estado nômade ou promiscuamente com civilizados”. Essa assistência é descrita em relação a: direitos vigentes; posse da terra; respeito à organização interna das etnias; punição dos crimes contra as populações indígenas; fiscalização dos aldeamentos; vigilância para que as populações indígenas não sejam coagidas; manutenção de relações com essas populações por meio da figura do inspetor do serviço; inspetores como procuradores dessas populações; noções aplicáveis às suas formas de ocupação; melhoria de suas condições materiais de vida (habitação e meios de produção agrícola/industrial); restituição (sempre que possível) das terras que lhes foram tiradas; promoção da mudança de certos grupos indígenas; fornecimento de recursos musicais/artísticos; introdução da pecuária nos territórios indígenas; ensino de instruções primárias e profissionais aos filhos de indígenas; levantamento de dados sociodemográficos das populações indígenas. Esses indicadores de assistência e proteção não apresentavam a saúde em seu plano de ação. Os indicadores eram relativos à terra e ao trabalho, dois objetos que poderiam, articuladamente, atribuir o estatuto de “índios do Brasil”. As estratégias de proteção, enquadramento e pacificação surgem como tecnologias biopolíticas em razão do que foi apontado anteriormente como a emergência das populações indígenas como uma questão social. Não se trata de uma problemática constituída em razão da diversidade cultural com a qual as políticas públicas se defrontam, e sim de condições culturais em que a diferença é tornada uma questão social. Há emergência como questão social na medida em que as estratégias disciplinares utilizadas, até então, não são mais suficientes para o aniquilamento disso que diferia do projeto de desenvolvimento nacional – a visibilidade de uma população dentro do território nacional com uma “historicidade diferencial e de autodeterminação política” (Lima, 1995, p.118). A forma encontrada é justamente incorporar as populações indígenas ao sistema produtivo nacional. Entretanto, esse plano de ação defronta-se com uma problemática a ser equacionada: propriedade da terra e cidadania. A operação de nacionalização em que se intenta equacionar propriedade da terra e cidadania é objeto não do campo da saúde, mas do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Nesse caso, não se tratava de um investimento biopolítico na saúde das populações indígenas. A saúde das populações indígenas entrava como um recurso de controle. O fazer viver ou deixar morrer organizavase com base na propriedade da terra, e não na cidadania – propriedade da terra da Nação, e não das populações indígenas, pois a figura existencial era “índios do Brasil”. Isso aparece na política quando as populações indígenas passam a ser localizadas ao redor de postos. Esses postos eram unidades administrativas que regulavam as populações indígenas, eram os chamados aldeamentos. Essas populações indígenas, de diferentes etnias, eram localizadas ao redor dessas unidades administrativas, e 157


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que tinham, como administrador, a figura do exército - Inspetor do serviço. Essas populações haviam sido retiradas de seus territórios geográficos de origem e realocadas em um território passível de controle como trabalhador nacional: “o destino final da população indígena seria, pois, o mercado de trabalho rural, sob a rubrica de trabalhador nacional” (Lima, 1995, p.126), que justificava a introdução da pecuária, do ensino primário e profissional, a modificação das formas de habitação, cultivo agrícola e certas artes industriais. Isso evitava a migração para os centros urbanos, ao mesmo tempo em que oferecia, para os proprietários dos bens de produção, uma mão de obra de baixo custo. De acordo com a análise de Lima (1995, p.125): Os índios selvagens eram os alvos principais da ação do Serviço não só por obstaculizarem o avanço sobre o interior ou se acharem em guerra, mas também por oferecerem melhores oportunidades para o trabalho de civilização: encontrando-se em estágio primitivo da inelutável marcha da humanidade para o progresso, indiscutivelmente inferiores, a educação adequada os impediria de se transformarem em indivíduos cheios de defeitos.

A política do SPI transformava as populações indígenas em uma categoria de trabalhador nacional, conformando-se como uma condição ontológica de humanidade. O investimento na saúde passa a ser um recurso para essa transformação. Em um dos relatórios (Museu do Índio, 2008) desses postos, aparece uma descrição sobre uma campanha de vacinação que apresenta um número inferior de vacinas para a população indígena em seu conjunto. A decisão do posto foi vacinar apenas os homens, e não as mulheres e crianças. Não se imunizando mulheres e crianças, a possibilidade de existência de determinadas etnias indígenas tornava-se precária. Vacinava-se apenas o homem, que era passível de tornar-se mão de obra rural. A assistência à saúde dessas populações era restrita a ações emergenciais e ao controle de nascimentos e óbitos. A distribuição de medicamentos e a assistência médica apenas aparecem no SPI quando este se refere aos Trabalhadores Nacionais (Brasil, 1911, p.8), que não eram classificados como população indígena, mas que deveriam: apresentar “capacidade de trabalho e absoluta moralidade” (Brasil, 1911, p.10), não ter cometido nenhum tipo de crime, se chefes de família ou homens solteiros, ser trabalhadores agrícolas e ter capacidade física para trabalhar. Tornar-se um trabalhador nacional seria prerrogativa para ter acesso à distribuição de medicações e assistência médica, o que, para as populações indígenas, seria possível de acordo com o “grau de civilização” que fosse apresentando, ou seja, com uma educação adequada e a progressiva pacificação. Entretanto, a rubrica de trabalhador nacional não os tornava brasileiros, e sim “índios do Brasil”. A criação dessa figura “índios do Brasil” será paulatinamente esquadrinhada em: “1°) índios nômades; 2°) índios arranchados ou aldeados; 3°) índios pertencentes a povoações indígenas; 4°) índios pertencentes a centros agrícolas ou que vivem em promiscuidade com civilizados” (Brasil, 1928, p.15). Articuladas a essa taxionomia, estabelecem-se certas práticas que consideravam o processo de nacionalização como possibilidade de autonomia, ou seja, quanto maior o “grau de civilização” (Brasil, 1928, p.15), maiores as possibilidades de incorporação à Nação e, portanto, aos direitos atribuídos à população brasileira: Art. 5. A capacidade, de fato, dos índios, sofrerá restrições prescritas nesta lei, enquanto não se incorporarem à sociedade civilizada. Art. 6°. Os índios de qualquer categoria, não inteiramente adaptados, ficam sob a tutela do Estado, que a exercerá segundo o grau de adaptação de cada um, por intermédio dos inspetores do Serviço de Proteção aos Índios e localização de Trabalhadores Nacionais, sendo facultado aos ditos inspetores requerer em nome dos mesmos índios, perante as justiças e autoridades, praticando para o referido fim todos os atos permitidos em direito. (Brasil, 1928, p.15).

O SPI era um instrumento de controle e regulação das populações indígenas. Nesse caso, o fazer viver ou deixar morrer entrava como parte desse processo. Quanto mais “civilizados”, maiores as possibilidades de fazer viver. Quanto mais distantes do que se estabelecia por “civilizados”, maior a possibilidade de deixar morrer. O fazer viver ou deixar morrer organizava-se como biopolítica mediante a lógica da tutela do Estado. 158

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Em 1934, o SPI migra da superintendência da agricultura e trabalho para o Ministério da Guerra. Esse processo tem como racionalidade uma lógica que se estrutura na relação entre populações indígenas e fronteiras: Que o índio é aí um elemento precioso pelas suas qualidades morais, robustez física e adaptabilidade aos climas, que convém aproveitar e educar pelos métodos próprios, chamando-o à nossa nacionalidade antes que os países limítrofes os chamem à sua; Que em se tratando de problemas de fronteiras e de resguardo da nacionalidade, o Ministério da Guerra é naturalmente o indicado para superintendê-los. (Brasil, 1934, p.20).

Desse modo, a questão indígena assume uma nova conformação. Não se trata de uma regulamentação e controle com base na propriedade da terra e da força de trabalho, e sim com base nas fronteiras da Nação brasileira com outras Nações, um “elemento precioso” nesse processo. A questão indígena aparecerá como parte estratégica do Ministério da Guerra, da proteção das fronteiras e povoação de espaços limítrofes. O que se quer apontar com isso é a visibilidade que assume a questão indígena, em que a nacionalização não se constitui em razão dessas populações habitarem o território nacional, e sim devido a uma estratégia para salvaguardar o território nacional. Isso implicará que as políticas voltadas para essas populações não incluirão a saúde como um eixo das ações. O processo de nacionalização e incorporação das populações indígenas terá como tecnologias de governos: “medidas e ensino de natureza higiênica; escolas primárias e profissionais; exercícios físicos em geral e especialmente militares; educação moral e cívica; ensino de aplicação agrícola e pecuária” (Brasil, 1936, p.23). Essas são estratégias de cunho pedagógico e militar, e a saúde entrará como uma derivada da modificação dos hábitos indígenas, uma pedagogia dos comportamentos para torná-los mais higiênicos e militarizados. Essa pedagogia dos comportamentos acaba por engendrar um campo de significações em práticas de saúde que a consideram como de responsabilidade individual: cabia ao índio civilizar-se. A saúde das populações indígenas não é uma questão de direito e cidadania, não sendo, então, um dever do Estado, e sim um dever dessas populações para se nacionalizarem e integrarem - por isso, o ensino higiênico, a escolarização, a militarização e a educação moral e cívica. Trata-se do cívico não em termos de direitos indígenas, mas de deveres indígenas. Na medida em que essas práticas não objetivavam as populações indígenas como cidadãs, a equação tratava de civilizar, e não atribuir cidadania. É apenas em 1942, com o Decreto-Lei N° 10625, que a vida indígena se torna objeto de políticas públicas. Essa modificação ocorre quando o SPI migra novamente para o Ministério da Agricultura, engendrando a objetivação das populações indígenas mediante proteção, assistência e amparo à vida. Assim, a vida indígena entra no rol das atribuições da Nação brasileira, mas como vida articulada à terra, e não diretamente à saúde. A articulação com a terra torna-se uma tecnologia do dispositivo de colonização, que terá como finalidade “evitar o extermínio das tribos, quer decorra de hostilidades recíprocas, quer provenha de luta com os civilizados, competindo-lhe, ainda, educar e instruir o índio, incutindo-lhe a ideia de que faz parte da nação brasileira” (Brasil, 1942, p.39). Esse investimento na vida indígena terá, como lógica, “medidas tutelares traçadas pelo Estado” (Brasil, 1942, p.39). A vida indígena fica sob a tutela do Estado, o que se justifica em uma racionalidade que objetiva as populações indígenas com “graus de civilização” menores em relação aos “civilizados”. O jogo que se estabelece estrutura-se em uma taxionomia, em práticas de significação que, por um lado, objetivavam, como brasileiros, os indivíduos das populações “civilizadas” e, por outro, esquadrinhavam as populações indígenas como parte da nação brasileira em processo de civilização. As populações indígenas não são populações brasileiras, são “parte da nação brasileira”, com um estatuto jurídico que as diferencia e que se articula à necessidade de tutela. A partir da década de 1950, o Ministério da Saúde inicia um plano de ações voltadas para as populações indígenas e rurais de difícil acesso. O plano se caracterizava por envolver campanhas de “vacinação, atendimento odontológico, controle de tuberculose e outras doenças transmissíveis” (Funasa, 2000, p.4). A formulação de um Ministério da Saúde abre espaço para que, em 1963, mesmo estando o SPI sob a gerência do Ministério da Agricultura, se incorpore, em suas ações, a execução de “planos de assistência médico-sanitária para os índios” (Brasil, 1963, p.46). Esse plano de ações COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.153-64, jan./mar. 2011

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encontra-se com a problemática das condições ontológicas que objetivavam as populações indígenas, bem como com uma política de racismo de Estado que investia mais no deixar morrer do que no fazer viver (Funasa, 2000, p.5): “As iniciativas de atenção à saúde indígena geralmente ignoram que os povos indígenas possuem seus próprios sistemas de representações, valores e práticas relativas ao adoecer e buscar tratamento, bem como seus próprios especialistas”. É nesse sentido que operar com a cultura auxilia a pensar sobre os processos de “civilização” voltados para a questão indígena. A cultura, ao ignorar “sistemas de representação, valores e práticas” das populações indígenas, o faz de acordo com o próprio mecanismo que a constitui: diferenciar, discriminar, produzir campos de força que se organizam em sistemas de referência, aplicabilidade e capacidade. Mais do que ignorar, captura-se aquilo que se diferencia das formas de objetivação dos não-indígenas. É uma mecânica que torna o outro igual não em termos de direitos, e sim de práticas de significação. Entretanto, como campo de lutas, a questão indígena insiste e persiste, sendo que as modificações que as políticas sofrem são decorrentes dessa insistência. Insistência em tornar-se diferente daquilo que a cultura produz como igual. O movimento indígena incorpora o direito como sistema de referência e, conjuntamente com outros movimentos sociais, passa a figurar no campo de discussões de políticas públicas próprias voltadas para suas organizações sociais. É em decorrência desses jogos de forças que a saúde indígena emerge como política pública própria, e não mais como eixo de outras estratégias políticas, a partir de 1986, com I Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, por indicação da VIII Conferência Nacional de Saúde (Funasa, 2000).

Saúde indígena, estado de exceção e diferença O exercício de problematizar a saúde indígena mediante uma linha histórico-política permite, a partir do conceito de biopolítica, considerar as relações que se estabelecem entre uma lógica de territórios geográficos objetivados como Nação e territórios de existências forjados dentro dessa Nação. A análise parte do que foi desenvolvido, anteriormente, sobre a emergência da saúde indígena como estratégia biopolítica, considerando, agora, os jogos que se estabelecem entre tutela e estado de exceção, entre nacionalização e diferença. Não se trata de considerar esses eixos em uma racionalidade binária, mas de pensar os planos de articulação que criam formas de bifurcação. Formas de bifurcação que se organizam a partir da consideração das condições de saúde das populações indígenas, que apresentam taxas de morbidade e mortalidade superiores às das populações não-indígenas (Funasa, 2000). Trata-se de um plano político que diz respeito às relações entre governo, ética e estética. O plano político é o modo de considerar - como foi escrito nas seções anteriores - a maneira como a vida das populações indígenas inscreve-se na ordem estatal: “[...] é como se toda valorização e toda politização da vida implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante, é então somente vida sacra e, como tal, pode ser impunemente eliminada” (Agambem, 2007, p.146). Esse limiar em que a vida cessa de ser politicamente relevante passa a ser considerado mediante mecanismos de exceção. O que se quer apontar é que, ao se tomar a vida das populações indígenas como eixo de investimentos políticos, criou-se a necessidade de se qualificar essas vidas. O modo de qualificar baseia-se nas formas de viver que essas vidas assumem e no estatuto jurídico que as inscreve na ordem estatal. As coordenadas para qualificar a vida das populações indígenas como politicamente relevantes sofrem algumas descontinuidades históricas, entretanto, essas descontinuidades colocam permanentemente em jogo a relação entre o mesmo e o outro, entre o idêntico e a diferença, de modo a enlaçar aspectos éticos e estéticos, abrindo, assim, um campo para a reflexão sobre a alteridade. As descontinuidades lançam o olhar para o conceito de alteridade, cujos fundamentos se encontram nessas relações entre o mesmo e o outro. As populações indígenas, desde os primeiros encontros com os europeus, foram objetivadas como estranhas e estrangeiras (mesmo sendo, na realidade, os europeus os estrangeiros no território que “colonizavam”). Essas conformações existenciais tomadas como estranhas/estrangeiras não eram, entretanto, fruto de uma relação com o outro, e sim com o mesmo, na medida em que a racionalidade que organizava as ações europeias se baseava na lógica da conquista 160

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do outro, outro que deve tornar-se o mesmo, uma ontologia do mesmo. Essa condição de tornar o outro em um mesmo forja um estatuto de exceção para as populações indígenas, tanto em relação à sua tutela quanto em relação aos modos de dizimá-las. O estatuto de exceção baseia-se nas discussões de Agambem (2004) sobre estado de exceção. Nesta reflexão, em que o estado de exceção é tomado como paradigma de governo, consideram-se as condições mediante as quais os direitos civis, assim como as liberdades individuais, estão suspensos. A justificativa para essa suspensão encontra-se na lógica de salvaguardar a segurança e a ordem pública, a defesa da Nação, um “estado de necessidade interna” (Agambem, 2004, p.30) inerente à existência do Estado. Os exemplos, entre outros, dessa forma de organização política encontram-se nos campos de concentração alemães, nos gulags russos, na ditadura militar no Brasil. São conformações em que o direito à vida perde o seu caráter de relevância e o Estado/Nação o assume. Nesse jogo, algumas vidas passam a ser consideradas “indignas de serem vividas” (Agambem, 2004, p.146), articulando-se a um novo estatuto jurídico de “vida sem valor”. Entretanto, os exemplos acima circunscrevem espaçostempo delimitados, temporários, suspensões momentâneas levadas ao extremo, mas que encontram um ponto de ruptura quando as organizações políticas que lhes davam forma se transformavam em outras formas. A questão indígena, por outro lado, não apresentou um estatuto de exceção em um determinado tempo-espaço: ela conforma-se, justamente, com base em uma lógica da exceção, da suspensão. O estado de direito dessas populações, desde os primeiros contatos com os europeus, circunscreveu-se em um território de vidas dignas ou não de serem vividas. A dignidade da vida das populações indígenas era condicionada ao “grau de civilização” que essas populações assumissem, e a tutela tornou-se o mecanismo mediante o qual se criaram as condições para esse processo “civilizatório”. Nesse sentido, mesmo com “graus de civilização” maiores, os direitos indígenas encontravam-se condicionados à tutela. A tutela tornou-se um instrumento biopolítico de inscrever o direito à vida das populações indígenas em um estatuto de exceção: “índios do Brasil”. A responsabilidade/tutela do Estado pelas populações indígenas engendra-se em um “estado de necessidade interna”, de salvaguardar o desenvolvimento da Nação. É necessário tornar as populações indígenas “índios do Brasil”, porém sob um diagrama que coloca essas vidas frente a um limiar de politicamente relevantes ou não. O fazer viver ou o deixar morrer irá organizar-se sob a articulação entre “civilização”, Nação, necessidades. Essa articulação não assegura o direito à vida das populações indígenas, ela apenas serve como ferramenta para investir ou não nas formas de viver. Mesmo em se tratando de incentivos à vida, isso não salvaguardará as populações indígenas do deixar morrer, na medida em que as formas de vida “civilizatórias” também apresentavam mecanismos de aniquilação da vida, como é observado nos aldeamentos, que colocavam as populações indígenas em uma condição de confinamento. É justamente esse jogo que anuncia o estado de exceção. O estado de exceção encontrará não apenas na biopolítica as suas condições de emergência, mas, também, no que foi assinalado antes, na conformação de territórios existenciais. A conformação de territórios existenciais tem como condições ontológicas as relações entre o mesmo e o outro, entre um si e o outro. No primeiro jogo, o “colonizador” assume a figura daquele que hospeda o estrangeiro, ou seja, ao considerar o indígena um estranho, o “colonizador” cria um estatuto jurídico para torná-lo nomeável, apreensível, passível de regulação: é o estranho que deve tornar-se um igual, que deve falar a língua que não é sua, adquirir hábitos que não os seus (Derrida, 2003). O “colonizador”, na condição de tutor, estabelece as coordenadas ontológicas da existência: ser civilizado, ser “índio do Brasil”, ser trabalhador nacional. Um processo de constituição do outro que acaba, justamente, com a qualidade de ser outro, com a radicalidade da alteridade. O estado de exceção permite essa empresa, aliás, é constitutivo da suspensão do outro e transformação em um mesmo. A saúde entraria como um mecanismo de tornar o outro um mesmo, na medida em que esquadrinha, seleciona, categoriza, aniquila potências de diferenciação do outro, da alteridade. Aldear as populações indígenas, tutelá-las, estabelecer graus de civilização e tecnologias de regulamentação do processo civilizatório indígena são processos de produção de existências com base na lógica do mesmo. O confinamento e a exceção enjaulam a diferença, aprisionam a alteridade. A estética é a do mesmo, aquilo que provoca, aquilo que causa estranhamento ou é tomado como exótico 161


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ou mecanicamente tornado igual. Em ambas as situações, a alteridade é colocada em suspensão: seja na parede, quando considerada artesanato, seja nos graus de civilização, quando se consideram os “índios do Brasil”. Ao tornar-se uma questão social, uma evidência para as políticas públicas, a saúde indígena passa a figurar como estratégia de captura do outro/alteridade e transformação no mesmo. A condição ontológica da diferença, do outro, que seria a condição mesma da alteridade, é suspensa e transformada em um mesmo, um mesmo diferente, porém esquadrinhado em “graus de civilização”: índios nômades; índios arranchados ou aldeados; índios pertencentes a povoações indígenas; índios pertencentes a centros agrícolas ou que vivem em promiscuidade com civilizados (Brasil, 1928). A relação entre um si e o Outro, cujas coordenadas são constituídas pela alteridade, encontra-se justamente nas práticas de liberdade, na insistência das populações indígenas em não se tornarem o mesmo. Não se trata de um processo de libertação, pois as políticas públicas foram paulatinamente incluindo as populações indígenas cada vez mais, mesmo que fosse para deixá-las morrer – são práticas de negociação com as políticas públicas, práticas que modificam as próprias políticas. E essa negociação engendra-se em uma estética do outro. O estado de exceção cria condições para práticas de resistência, mesmo que ambos sejam formas que escapem ao âmbito jurídico, pois são ações que extrapolam a esfera do direito. O que está em articulação aqui é a possibilidade de liberdade, de práticas de liberdade. Onde há um espaço de suspensão de direitos, cria-se um espaço de não-escravidão. As práticas de não-escravidão, entendidas como práticas de liberdade, engendram territórios existenciais a partir da alteridade, entendendo-se que as práticas de liberdade são condições constitutivas da ética (Foucault, 2004). Ao cuidarem de si mesmas como um movimento social, as populações indígenas criam rasgos no estado de exceção, criam novos territórios existenciais, não sendo mais o que eram antes dos primeiros contatos com os europeus, não sendo mais o que passam a ser quando se tornam “índios do Brasil”. Elas se tornam não uma questão social, mas uma questão de alteridade. A biopolítica encontra-se aqui com a biopotência. A política sobre a vida depara-se com a potência da vida, o que edifica novas práticas de significação, novas estéticas da existência.

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artigos

______. Ministério da Justiça. Decreto n° 24700, 12 de julho de 1934. Dispõe sobre a transferância do SPI ao Ministério da Guerra. In: LIMA, A.C.S. Um grande cerco de paz: poder tutelar e indianidade no Brasil. 1992. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1992. Anexo nº 2,p. 20-21, 1992. ______. Ministério da Justiça. Decreto n° 911, 6 de abril de 1936. Dispõe sobre a suspensão da execução do Regulamento da Inspetoria Especial de Fronteiras e Estabelece a subordinação ao Serviço de Proteção ao Índio. In: LIMA, A.C.S. Um grande cerco de paz: poder tutelar e indianidade no Brasil. 1992. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1992. v. II, anexo nº 1, p. 21. ______. Ministério da Justiça. Decreto-Lei n° 10625, 16 de outubro 1942. Dispõe sobre a aprovação do Regimento da Serviço de Proteção aos Índios. In: LIMA, A.C.S. Um grande cerco de paz: poder tutelar e indianidade no Brasil. 1992. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1992. v. II, anexo nº 1, p. 34-39. _______. Ministério da Justiça. Decreto n° 52668, 11 de outubro de 1963. Dispõe sobre a aprovação do Regimento do Serviço de Proteção aos Índios do Ministério da Agricultura. In: LIMA, A.C.S. Um grande cerco de paz: poder tutelar e indianidade no Brasil. 1992. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1992. v. II, anexo nº 1, p. 46-49. DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DERRIDA, J. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. _______. A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In: ______. Ditos e escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p.264-87. _______. Poder e saber. In. _______. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p.223-40. ______. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. _______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999. _______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1995. _______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FUNASA. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília: Funasa, 2000. LANGDON, J.E. Saúde e povos indígenas: os desafios na virada do século. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/nessi/Margsav.htm>. Acesso em: 19 mar. 2008. LIMA, A.C.S. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995. MUSEU DO ÍNDIO. Microfilme n° 001: IR5 Benjamin Constant Posto n° 81,13 Plans. Campo Grande: Cópia no centro de Documentação Teko Arandu/NEPPI/UCDB, 2008. Microfilme.

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BERNARDES, A.G. Salud indígena y políticas públicas: la alteridad y el estado de excepción. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.153-64, jan./mar. 2011. El artículo analiza las formas de objetivación de las poblaciones indígenas en Brasil en lo que respecta a las políticas públicas de salud. La reflexión parte de cómo los pueblos indígenas se convirtieron en el foco de las políticas públicas a partir del Servicio de Protección de los Índios y de la Ubicación Nacional de Trabajadores (SPI), formulados en 1910. El debate busca refugio en el análisis de las legislaciones de los SPI entre los años 1910 a 1963. Se utiliza como la principal línea de investigación la perspectiva foucaultiana de las relaciones de poder / saber, y el concepto de alteridad y el estado de excepción. La cuestión indígena es considerada una emergencia en el territorio de las políticas públicas y es debatida en una línea histórica y política que relaciona los sujetos y objetos.

Palabras clave: Salud de los indígenas. Prácticas de significación. Politicas públicas de salud. Alteridad. Estado de excepción. Recebido em 09/11/09. Aprovado em 04/11/10.

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artigos

Transtorno da conduta: uma oportunidade para a prevenção em saúde mental?

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Luna Rodrigues Freitas Silva1

SILVA, L.R.F. Conduct disorder: an opportunity for prevention in mental health?. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.165-73, jan./mar. 2011.

This article aims to critically analyze the diagnosis of conduct disorder as a possible opportunity for the formulation of prevention strategies in the field of mental health. Considered the most common psychiatric disorder in childhood and a constant concern for family and clinicians, conduct disorder has been understood by some researchers of the psychiatric field as an opportunity for preventive intervention. In order to understand the potential, fragility and the ethical implications of this proposal we analyze the main features, controversies and debates concerning its definition and the peculiarities regarding possible preventive actions. The age of onset of the disorder, the family’s psychiatric history, an early diagnosis for preschool children and the differentiation between diagnostic categories applied to antisocial behavior are identified as controversial aspects of the disorder that bring important consequences for possible prevention proposals.

Keywords: Prevention. Psychiatric diagnosis. Conduct disorder.

Este artigo tem como objetivo analisar criticamente o diagnóstico de transtorno da conduta como uma possível oportunidade para a formulação de estratégias de prevenção no campo da saúde mental. Considerado o transtorno psiquiátrico mais frequente na infância e preocupação constante para familiares e clínicos, o transtorno da conduta vem sendo entendido por alguns pesquisadores do campo psiquiátrico como uma oportunidade para a intervenção preventiva. Com o intuito de compreendermos as potencialidades, fragilidades e implicações éticas dessa proposta, analisamos as principais características, controvérsias e debates em torno de sua definição e as peculiaridades que concernem possíveis ações de prevenção. A idade de surgimento do transtorno, a história psiquiátrica familiar, a antecipação do diagnóstico para crianças em idade pré-escolar e a diferenciação entre categorias diagnósticas aplicadas aos comportamentos antissociais são identificados como aspectos controversos do transtorno que acarretam importantes consequências para possíveis propostas de prevenção.

Palavras-chave: Prevenção. Diagnóstico psiquiátrico. Transtorno da conduta.

Elaborado como parte das atividades de doutorado em andamento, com financiamento do CNPq. 1 Doutoranda, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier, 524, pavilhão João Lyra Filho, 7º andar, blocos D e E. Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.550-900. lunarodrigues@yahoo.com.br *

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Introdução O tema da prevenção em saúde é controverso e parece oscilar constantemente entre o valor do cuidado e o perigo do excesso. De um lado, práticas e propostas preventivas podem ser entendidas como ações de cuidado, inspiradas por uma incontestável preocupação ética com a dor e o sofrimento humano. Por outro lado, as mesmas práticas de prevenção dão ensejo a questionamentos sobre os limites da ação dos profissionais de saúde, a expansão do domínio médico sobre a regulação dos corpos e a identificação de condutas sociais como doenças a serem tratadas. Nesse sentido, as práticas preventivas podem ser entendidas no conjunto dos processos de normalização e medicalização da vida social (Foucault, 2008, 2001, 1985). No campo psiquiátrico, o tema da prevenção adquire contornos ainda mais indefinidos e gera discussão. A prevenção em psiquiatria é um campo marcado por discussões acerca da eficácia terapêutica de seus métodos, dos modelos de explicação da doença mental adotados e da finalidade social de suas práticas (Costa, 2007; Rosenberg, 2006, Dowbiggin, 2003; Serpa Jr., 1998). A discussão em torno da etiologia da doença mental se destaca: a ausência de explicações causais consensuais no campo psiquiátrico dificulta a formulação de propostas preventivas que adquiram legitimidade e proporcionem acordo nesse domínio. Ainda assim, observamos o aparecimento de propostas de prevenção em diversos momentos da história da psiquiatria e, eventualmente, o tema ressurge no âmbito das políticas públicas e dos estudos clínicos. Atualmente, vêm sendo discutidos, no cenário psiquiátrico internacional, alguns possíveis nichos para a retomada de propostas preventivas, dentre os quais identificamos os estudos sobre a “early psychosis”2 e o transtorno da conduta. Neste artigo, pretendemos iniciar uma reflexão sobre a discussão que vem sendo conduzida no campo psiquiátrico internacional acerca do transtorno da conduta como possível nicho para ações preventivas. Trata-se de um tema que pode interessar aos pesquisadores brasileiros, visto: a enorme demanda de cuidados em saúde mental na faixa etária infanto-juvenil; as discussões em torno da formulação da política de saúde voltada para essa população, e, sobretudo, em função da controvérsia e dos riscos inerentes ao tema. Nesse contexto, acreditamos que os argumentos apresentados pelos defensores da prevenção devem ser analisados de forma cuidadosa e não partidária, até mesmo para informar e qualificar futuras críticas. Nesse momento, iremos nos focar no debate sobre o transtorno da conduta, uma categoria diagnóstica utilizada para identificar crianças com comportamentos disruptivos e antissociais.

O transtorno da conduta e as estratégias de prevenção Segundo Bordin e Offord (2000), o transtorno da conduta se caracteriza pela tendência permanente em apresentar comportamentos socialmente inadequados, que ferem as regras do convívio social e que, eventualmente, transgridem as leis do Estado. Considerado o transtorno psiquiátrico mais frequente na infância e preocupação constante para familiares e clínicos, o transtorno da conduta é mais comum no sexo masculino e em crianças acima dos dez anos. O quadro clínico descrito no DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (American Psychiatric Association, 1994) prevê 15 tipos de comportamento antissocial, como: perseguição, ameaça ou intimidação dos outros, iniciação de lutas corporais, utilização de armas que podem ferir os outros, crueldade com as pessoas, crueldade com os animais, prática de roubo ou assalto 166

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2 O movimento conhecido como “early psychosis” é constituído por programas de investigação clínica destinados a intervirem precocemente na aparição e no desenvolvimento da psicose. Esses programas têm como objetivo atingirem pacientes que vivem o primeiro surto psicótico e pacientes considerados em “estado mental de risco” ou prépsicóticos. Os pesquisadores envolvidos acreditam que, se bemsucedidos, tais programas poderiam reunir evidência para efetivar a prevenção primária dos transtornos mentais (Clarke, O’Callaghan, 2003; Liebermn, 2000; McGorry, Nordentoft, Simonsen, 2005; White, Anjun, Schultz, 2006). Pretendemos abordar o tema em trabalhos futuros.


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3 O DSM-IV adota uma abordagem categorial dos transtornos psiquiátricos. Segundo Moffitt (2008), evidências vêm sendo reunidas para que, à abordagem categorial, se some uma abordagem dimensional de todos os transtornos, que seria capaz de abarcar as diferenças de severidade e incapacidade e favoreceria a compreensão da continuidade da psicopatologia.

Estudos sobre a continuidade da psicopatologia entre a infância e a vida adulta e maiores discussões são encontradas em Simonoff et al. (2004) e Reef et al. (2009). 4

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com confrontação da vítima, entre outros. Dentre os 15 critérios listados como comportamento antissocial, a presença de três nos últimos 12 meses e um persistente nos últimos seis meses são suficientes para se diagnosticar o transtorno. Além da alta prevalência, o interesse por essa categoria, no que se refere às propostas de prevenção, se justifica devido à suposição de sua capacidade preditiva referente ao desenvolvimento de outros transtornos psiquiátricos. Hodgins et al. (2008) realizaram um estudo no qual sugerem uma associação entre o diagnóstico de transtorno da conduta e riscos crescentes de comportamento agressivo, crime e vitimização. Recentemente, foi sugerido que transtornos de conduta na infância aumentam o risco para diversos transtornos psiquiátricos que se estabelecem na idade adulta, incluindo: fobia, pânico, depressão, uso abusivo de álcool e esquizofrenia, entre outros (Kim-Cohen et al., 2003). Odgers et al. (2007) sugerem associações ainda mais amplas entre problemas de conduta deflagrados na infância, que persistem ao longo da vida adulta, e altos riscos para o estabelecimento de doenças e prejuízos à saúde. Devido a suposições como essas, Harley, Murtagh e Cannon (2008) consideram o transtorno da conduta a maior oportunidade para a prevenção no campo psiquiátrico. O diagnóstico de transtorno da conduta vem sendo analisado e revisado em função da preparação da próxima edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, o DSM-V, com previsão de conclusão em 2013. A nova versão do manual promete trazer inovações no que se refere: à validação biológica do diagnóstico, à discussão acerca da continuidade ou descontinuidade da doença entre a infância e a vida adulta, e ao acréscimo de definições dimensionais, além das atuais definições categoriais3. Moffitt et al. (2008) avaliam os avanços conquistados nos últimos anos e delineiam os principais temas do debate, em torno dos quais pairam controvérsias acerca do diagnóstico e do manejo do transtorno da conduta. Ainda que as evidências para a suposição de continuidade entre problemas de conduta na infância e transtornos psiquiátricos na idade adulta, reunidas por tais estudos, sejam controversas mesmo no interior do campo psiquiátrico4, a construção dessa hipótese nos interessa porque indica a direção atual das pesquisas e a convergência de interesses em torno do tema. Com o intuito de se compreenderem as propostas preventivas em voga na psiquiatria contemporânea, passaremos à análise das principais características, controvérsias e debates em torno da definição desse diagnóstico e às peculiaridades que fazem com que o mesmo venha sendo percebido como um campo fecundo para ações de prevenção. Dentre os temas abordados na literatura recente, destacaremos aqueles que apresentam questões relacionadas ao tema da prevenção em saúde mental.

A idade de surgimento do transtorno A idade de surgimento do transtorno da conduta é um fator importante para a delimitação de estratégias de tratamento e prevenção. No entanto, ao longo das últimas versões do manual, subtipos definidos em função da idade foram inseridos e retirados devido à falta de evidência de que abarcavam características sintomáticas dos pacientes, eram úteis na clínica e capazes de prever o curso da doença. O DSM-IV distingue dois subtipos de transtorno da conduta: o estabelecido na infância, no qual o surgimento do transtorno ou de, ao menos, um dos critérios para a sua definição se dá antes dos dez anos; e o estabelecido na adolescência, cuja definição prevê a ausência de qualquer critério antes dessa idade. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.165-73, jan./mar. 2011

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Segundo Moffitt (2008), o transtorno estabelecido na infância se caracteriza por: persistência ao longo dos anos, adversidade psicossocial do quadro familiar, presença de comportamento antissocial parental, além de déficit cognitivo, baixo QI, hiperatividade, desatenção, impulsividade, baixo desempenho escolar e dificuldades de relacionamento com pares. O transtorno surgido na adolescência, por outro lado, se aproxima mais de comportamentos normativos dessa faixa etária e parece ser influenciado, sobretudo, pela associação com outros jovens que exibem comportamento antissocial e pela busca de status social por meio do comportamento. No que se refere ao curso da doença, alguns estudos, como o de Odgers et al. (2007), sugerem que a diferenciação dos subtipos em função da idade de surgimento do transtorno é capaz de prever o engajamento parental no tratamento e o prognóstico da doença. O transtorno iniciado na infância aumenta o risco para: o surgimento de violência, condenações, encarceramento, transtorno de personalidade, outros transtornos mentais e uso abusivo de drogas, além de diversos comprometimentos à saúde física. O surgimento na adolescência prevê um curso posterior muito mais favorável, com pouco prejuízo na educação, no trabalho ou na vida familiar do adulto, ainda que o uso abusivo de substâncias e o envolvimento em crimes sejam mais prevalentes nesses sujeitos. A idade de surgimento do transtorno parece ser um fator importante para a delimitação do curso da doença, especialmente para a previsão de sua continuidade e gravidade. Nesse sentido, crianças que manifestam comportamentos antissociais estão sob risco elevado de desenvolvimento de outros transtornos mentais na vida adulta e de prejuízos diversos a sua vida social, como indicado acima. O aparecimento do transtorno na adolescência não representa risco elevado para o desenvolvimento de outros transtornos mentais ou grandes prejuízos à vida adulta. Por um lado, a não-gravidade do transtorno na adolescência e a sua proximidade com padrões normativos para essa faixa etária sugere que questionemos a pertinência do diagnóstico nesses casos. Por outro lado, de acordo com os estudos citados, o transtorno na infância pode dar ensejo a intervenções mais específicas. Harley, Murtagh e Cannon (2008) consideram o transtorno da conduta “a maior oportunidade da psiquiatria para a prevenção” (p.929). Segundo os autores, a identificação desses pacientes ainda na infância, no primeiro contato com o serviço de saúde mental, não é feita de forma consistente, apesar de representar o foco ideal de intervenções terapêuticas. No momento em que o sujeito atinge a vida adulta com um longo histórico de condutas antissociais, uma intervenção bem-sucedida torna-se extremamente difícil. Harley, Murtagh e Cannon (2008) e Hutchings et al. (2007) sugerem que a intervenção precoce no curso da doença, ou mesmo antes do seu desenvolvimento, oferece a melhor perspectiva de alteração do risco de surgimento de condutas antissociais no decorrer da vida adulta. Portanto, antes que o sujeito se torne um adulto para o qual a psiquiatria não tem tratamentos eficazes a oferecer, intervenções preventivas podem ser oferecidas à população infantil. No entanto, a identificação segura das crianças-alvo dessas intervenções e a formulação de ações preventivas eficazes não são de fácil construção. Segundo Moffit (2008), uma preocupação atual dos pesquisadores é a diferenciação entre os casos de transtorno surgido na infância e a ela limitados e os casos que perduram ao longo da vida do sujeito, atravessando a adolescência e atingindo a vida adulta, para os quais a probabilidade de prejuízos à vida do paciente é bastante elevada. Estudos sugerem que cerca de metade das crianças diagnosticadas como portadoras do transtorno da conduta não apresentarão comportamentos antissociais na vida adulta. Essas crianças comporiam um amplo grupo de sujeitos que exibem algum tipo de comportamento disruptivo sem que isso se cristalize como uma patologia de longa duração, e nos lembram que problemas de conduta leves e temporários são não só corriqueiros, mas normativos em crianças saudáveis. A identificação da idade de surgimento dos comportamentos antissociais é constante na clínica e utilizada como instrumento que informa o prognóstico da doença, o risco de violência e o possível engajamento no tratamento. No entanto, pesquisadores vêm tentando estabelecer, por meio de fatores de risco presentes na infância, formas de diferenciar os casos de persistência do transtorno ao longo da vida daqueles limitados à infância (Moffit, 2008). Essas tentativas de se identificarem fatores de risco na infância que possam indicar se aqueles comportamentos serão limitados a essa fase da vida e, portanto, não indicativos de uma patologia persistente, não foram bem-sucedidas até o momento. Consideramos que tal fato incide diretamente sobre as ambições de construção de ações preventivas. Afinal, a que subgrupo de pacientes essas ações se destinariam? Como identificá-los com segurança? 168

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A história psiquiátrica familiar A consideração da história psiquiátrica familiar da criança ou do adolescente diagnosticado com transtorno da conduta é outro fator em discussão, no campo de pesquisas atual, que impacta o tratamento e possíveis ações preventivas. O DSM-IV não inclui, nos seus critérios para o diagnóstico do transtorno, informações sobre a história familiar do paciente. No entanto, no contexto clínico tais informações são constantemente requeridas e utilizadas no diagnóstico diferencial e vêm sendo consideradas como um critério em potencial para o diagnóstico de doenças psiquiátricas, como a depressão (Moffit, 2008). A inclusão de informações acerca do histórico familiar como critério para o diagnóstico do transtorno da conduta vem sendo pesquisada, e algumas evidências se destacam no campo. Primeiramente, considera-se a suscetibilidade familiar ao comportamento antissocial como um fator etiológico central no aparecimento do transtorno, visto que problemas de conduta parecem estar concentrados em determinadas famílias e a história desse comportamento pode ser um preditor importante de problemas semelhantes nos descendentes. Diversas pesquisas buscam marcadores biológicos que possam fundamentar os achados comportamentais. No entanto, não há evidência suficiente no campo que corrobore a hipótese genética. Por outro lado, a história psiquiátrica familiar é de fácil acesso no contexto clínico, sendo uma informação disponível, inclusive, para estudos epidemiológicos e de revisão da literatura. Do mesmo modo, pesquisadores vêm considerando a presença de um histórico de comportamentos antissociais no diagnóstico diferencial entre o transtorno limitado à infância e o transtorno de longa duração, e na formulação de estratégias de tratamento. Segundo essa perspectiva, as famílias nas quais predomina o comportamento antissocial não estabelecem cuidado parental adequado, oferecendo ambientes domésticos caracterizados por abuso físico, violência e hostilidade. A tendência desses estudos é associar o comportamento antissocial dos pais e ambientes domésticos desorganizados com o predomínio dos casos de transtorno da conduta surgidos na infância e de longa duração. Em contraste, a história psiquiátrica familiar não parece estar fortemente associada ao transtorno limitado à infância ou ao transtorno surgido na adolescência. Hodgins et al. (2008), em seu estudo sobre a associação entre o transtorno da conduta na infância e níveis elevados de prejuízo na vida adulta de pacientes com transtornos psiquiátricos graves, chamam atenção para a continuidade geracional dos comportamentos antissociais. Os autores utilizam as características do contexto familiar para elaborarem suposições acerca da persistência do comportamento antissocial em função do risco a que determinadas crianças estão submetidas. Uma hipótese considerada no estudo identifica as falhas no cuidado parental como o fator que permite que os comportamentos antissociais se ofereçam como alternativa para determinadas crianças. Se o comportamento antissocial surgido na infância persiste e o indivíduo atinge a vida adulta com transtornos mentais mais graves, provavelmente será pouco capaz de proporcionar a seus filhos um ambiente doméstico estável e uma situação familiar adequada. Na sequência dessa suposição, pode-se prever: um ciclo de cuidados parentais insuficientes, o aparecimento de problemas comportamentais e emocionais nos descendentes dentre os quais os mais comuns são os típicos do transtorno da conduta -, o futuro desenvolvimento de transtornos mentais graves e um novo ciclo de cuidados parentais insuficientes. Ao destacarem não só o impacto negativo dos problemas de conduta infantis no desenvolvimento de transtornos mentais graves, mas também a sua continuidade nas gerações futuras, Hodgins et al. (2008) contribuem para a identificação de crianças e famílias sob alto risco para transtornos mentais e, consequentemente, para a consideração de ações preventivas a elas dirigidas. De fato, os autores finalizam seu artigo enfatizando a necessidade de estudos que possam determinar potenciais alvos para ações preventivas, visto que, segundo sua suposição acerca do ciclo de cuidados parentais insuficientes, a ausência de intervenções preventivas pode permitir o surgimento de outra geração de pacientes similares aos que fizeram parte de seu estudo.

O diagnóstico de crianças em idade pré-escolar Um tema em discussão que implica diretamente possíveis propostas de prevenção se refere à aplicação do diagnóstico a crianças em idade pré-escolar. O DSM-IV não especifica o aparecimento do COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.165-73, jan./mar. 2011

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transtorno em crianças em idade pré-escolar, mas indica que o mesmo pode ocorrer em torno dos 5-6 anos, embora seja mais comum o seu surgimento mais tarde. Se o transtorno da conduta teria validade e seria confiável como diagnóstico, ao ser aplicado a crianças em idade pré-escolar, é um foco de controvérsia no campo dos estudos sobre o comportamento antissocial e nos estudos de revisão do diagnóstico para a elaboração do DSM-V. Segundo Moffitti (2008), estudos indicam que os comportamentos antissociais são o principal fator responsável por encaminhamentos para serviços de saúde mental de crianças na idade pré-escolar. Além disso, a presença de comportamento agressivo é indicativa de risco para o desenvolvimento e a persistência de problemas de conduta. De acordo com o entendimento de alguns autores, haveria uma ocorrência significativa de casos de transtorno nessa idade, ainda que não diagnosticados. Além da importância como indicativo de dificuldades naquele período do desenvolvimento infantil - o que pode ser suficiente para sugerir a necessidade de algum acompanhamento -, a presença de sintomas em crianças pequenas gera interesse crescente devido à possibilidade de ser indicativo de risco para o estabelecimento posterior do transtorno (Keenan et al., 2007). Nesse sentido, a identificação precoce de sinais ou do próprio transtorno da conduta seria objetivo de todo clínico e fundamental para a elaboração de estratégias preventivas. Outra questão que tangencia a possível aplicação do diagnóstico a crianças pré-escolares é o acesso ao cuidado em saúde mental. No caso da doença mental, a busca por um serviço clínico ou por aconselhamento profissional costuma ser adiada por um longo período após o surgimento dos sintomas. Esse período, no qual os sintomas estão presentes e há ausência de cuidado, pode ser penoso para o paciente e gerar prejuízos psicossociais significativos. A compreensão dos sinais iniciais da doença e o estabelecimento de mecanismos que possam monitorar de forma adequada esses pacientes e suas famílias são objetivos importantes do ponto de vista tanto clínico quanto para a formulação de políticas de saúde mental. Nesse sentido, ainda que não haja resultados que assegurem a aplicação do diagnóstico a crianças tão jovens, o tema vem recebendo atenção e reunindo esforços dos interessados no aumento da eficácia dos tratamentos e na promoção de ações preventivas. No entanto, o próprio autor identifica algumas desvantagens nessa aplicação que merecem ser destacadas. A primeira se refere a uma questão frequente no processo de construção dos diagnósticos psiquiátricos: a fronteira não facilmente delimitável entre normalidade e patologia. No caso de crianças na fase pré-escolar, pode-se considerar que a presença de comportamentos agressivos é comum e faz parte do desenvolvimento infantil. Mais do que a possibilidade de uma doença mental, a sua presença excessiva pode indicar problemas na relação familiar e ambiental. A segunda questão diz respeito à expansão do diagnóstico psiquiátrico para idades iniciais e a possibilidade de estigmatização que a acompanha. A aplicação de um critério diagnóstico usualmente utilizado para crianças mais velhas e adolescentes pode favorecer o estabelecimento de tratamentos e intervenções não somente desnecessárias, mas prejudiciais ao desenvolvimento da criança e, especialmente, à confiança dos próprios pais em sua capacidade de manejo da situação, diminuindo a probabilidade de que a família encontre formas mais eficazes de lidar com as dificuldades das crianças e rotulando desnecessariamente “jovens pacientes”.

A diferenciação entre os transtornos A questão da diferenciação entre categorias diagnósticas se aproxima do debate acerca da continuidade ou descontinuidade da psicopatologia. Segundo Moffitt, o DSM-IV organiza os diagnósticos de transtorno desafiador de oposição, transtorno da conduta e transtorno da personalidade antissocial de forma hierárquica e desenvolvimentista, como se eles expressassem, em idades específicas, a mesma desordem de base. Seguindo essa suposição, a organização hierárquica dos diagnósticos não permite que haja comorbidade entre eles. O diagnóstico de transtorno desafiador de oposição é precursor do desenvolvimento do transtorno da conduta que, por sua vez, é entendido como precursor do transtorno da personalidade antissocial. Essas relações lógicas e de exclusão indicam a suposição de um desenvolvimento dos comportamentos antissociais no qual a severidade dos sintomas aumenta e o caráter incapacitante se 170

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agrava, indicando um prognóstico bastante negativo. É exatamente a validade preditiva dessas relações lógicas que interessa aos pesquisadores, ainda que não haja consenso sobre a evolução e a intersecção entre os casos de comportamento disruptivo e as suas diferentes fases ao longo da vida. Como nos mostra Moffitt, estudos de revisão (follow-back) indicam que a maioria das crianças com transtorno da conduta teve sintomas que as diagnosticariam com transtorno desafiador de oposição, e grande parte, ainda que não a totalidade, dos adultos com transtorno da personalidade antissocial passou pelo transtorno da conduta durante a infância. No entanto, estudos preditivos (follow-foward) indicam que a maioria das crianças com transtorno desafiador de oposição não evolui para o transtorno da conduta, e a maioria das crianças com transtorno da conduta não desenvolve o transtorno da personalidade antissocial. Essa informação é fundamental para a construção de hipóteses acerca da continuidade da psicopatologia e para as eventuais estratégias preventivas que delas resultem. Novamente, observamos quanto a delimitação precisa da criança-alvo dos esforços preventivos é delicada no campo psiquiátrico. Pelas relações descritas acima poderíamos inferir que o transtorno da personalidade antissocial indica uma longa história de comportamentos antissociais desde o início da vida. Uma linha de argumentação entende que a psicopatologia dos comportamentos antissociais se inicia em idades precoces, atravessa a vida dos sujeitos e, se não houver intervenção, evolui para transtornos mais graves (Lynan, 2007). Nesse sentido, os pesquisadores consideram que o grau de continuidade entre os transtornos é elevado e, embora afirmem que a hipótese ainda não foi suficientemente estudada, consideram factível elaborar propostas de prevenção em função do risco de continuidade e agravamento. Por outro lado, supor a continuidade entre sintomas cuja gravidade e impacto na vida do sujeito são tão diferenciados exige atenção. Retornamos à informação de que a grande maioria das crianças que inicia a vida apresentando comportamentos antissociais não evoluirá para o transtorno da personalidade antissocial, ou seja, elas não consolidarão como transtorno os comportamentos inadequados apresentados em idades iniciais. Provavelmente, esses comportamentos, ainda que considerados antissociais, foram normativos no seu desenvolvimento e, em determinado momento, foram substituídos por comportamentos ou reações ao meio considerados socialmente adequados. Nesse sentido, questionamos os modelos de entendimento da continuidade e da descontinuidade da psicopatologia que são adotados como referência para tais estudos. No entanto, muitos dos estudos consultados para este trabalho não explicitam que modelo estão adotando ou, de forma mais simples, como supõem que se dê a continuidade dos quadros psicopatológicos ao longo da vida.

Considerações finais O transtorno da conduta vem sendo entendido, por alguns pesquisadores do campo psiquiátrico, como uma oportunidade para a formulação de estratégias de prevenção, especialmente em função do seu entendimento como possível indicador de risco para o desenvolvimento de transtornos mais graves. Com base em nossos objetivos de pesquisa, que consistem na análise dos pressupostos e conceitos do que vem se definindo como prevenção na psiquiatria atual e na reflexão sobre as implicações sociais e éticas dessas propostas, neste trabalho nos detemos na consideração do transtorno da conduta como possível nicho preventivo. No entanto, visto que diversos aspectos do transtorno, fundamentais para a elaboração dessas estratégias, permanecem sob debate, consideramos que a discussão sobre prevenção a partir desse diagnóstico encontra-se ainda em estágio inicial. Nesse sentido, cabe questionar a delimitação precisa do grupo populacional alvo da prevenção. Como identificar a criança para a qual oferecer uma intervenção preventiva? Seria aquela que se encaixa nos critérios do transtorno da conduta e cujo prognóstico é mais negativo, com início precoce e história familiar de transtornos psiquiátricos? Ou seria a criança cujo prognóstico é mais positivo e cuja capacidade de se beneficiar de intervenções clínicas precoces seria maior? A que famílias direcionar intervenções preventivas baseadas em capacitação parental para lidar com as dificuldades dos filhos: àquelas mais implicadas no tratamento da criança ou às famílias com histórico de transtornos psiquiátricos e dificuldades psicossociais mais severas? COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.165-73, jan./mar. 2011

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Além da delimitação da população-alvo, convém questionarmos o papel da noção de risco na formulação de estratégias preventivas no campo da saúde mental. Mais do que um quadro psicopatológico que demanda intervenções devido aos prejuízos que causa aos indivíduos, o destaque dado ao transtorno da conduta nas discussões sobre prevenção se deve à percepção de seu potencial de risco para o desenvolvimento de outros transtornos mentais. Portanto, a prevenção vem sendo delineada em função da noção de risco, que precisa ser mais bem delimitada. Além disso, como citado anteriormente, os estudos sobre a relação entre psicopatologia e desenvolvimento estão em curso e, até o momento, não foram capazes de fornecer descrições conclusivas acerca do processo de evolução dos transtornos mentais, o que põe em cheque a viabilidade da aplicação dessa noção para fundamentar ou justificar ações preventivas. No nosso entendimento, enquanto os aspectos citados permanecerem indefinidos, essas ações se caracterizarão mais como atuações vinculadas a interesses sociais e, portanto, mais próximas das tendências de normalização amplamente conhecidas pelos críticos e historiadores da psiquiatria, do que como estratégias clínicas eficazes, confiáveis e eticamente responsáveis. De todo modo, ainda que avancemos no detalhamento das opções clínicas entendidas como preventivas, se considerarmos que os limites entre normalidade e patologia são necessariamente negociados nas fronteiras entre o campo médico e as relações sociais, como nos indicam Rose (2007) e Rosenberg (2006), entre tantos outros, a avaliação sobre benefícios e prejuízos das ações preventivas exige nova rodada de reflexão. Nesse sentido, mais do que uma escolha clínica objetivamente delimitada, a decisão a favor de intervenções preventivas caracteriza-se como uma opção política e social e, portanto, suas potencialidades e fragilidades devem ser ampla e cuidadosamente discutidas.

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SILVA, L.R.F. El trastorno de conducta: ¿una oportunidad para la prevención en salud mental?. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.165-73, jan./mar. 2011. Este artículo tiene como objetivo realizar un análisis crítico del diagnóstico de trastorno de conducta como una oportunidad para la formulación de estrategias de prevención en el ámbito de la salud mental. Considerado el trastorno psiquiátrico más frecuente en la infancia y una constante preocupación por la familia y los clínicos, el trastorno de conducta ha sido entendido por algunos investigadores del ramo de la psiquiatría como una oportunidad para la intervención preventiva. A fin de comprender las capacidades, debilidades y las implicaciones éticas de esta propuesta se analizan sus características principales, las controversias y debates acerca de su definición y las particularidades que se refieren a medidas de prevención posible. La edad de aparición de la enfermedad, los antecedentes familiares psiquiátricos, un diagnóstico precoz para los niños en edad preescolar y la diferenciación entre las categorías de diagnóstico aplicado a la conducta antisocial se consideran los aspectos controvertidos de los trastornos conductuales que causan importantes consecuencias para las posibles propuestas de prevención.

Palabras clave: Prevención. Diagnóstico psiquiátrico. Trastornos de conducta. Recebido em 03/12/09. Aprovado em 06/12/10.

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artigos

Educar para a “grande saúde” - vida e (trans) formação

Cleber Gibbon Ratto1 Simone Chaves Machado da Silva2

RATTO, C.G.; SILVA, S.C.M. Educating for “great health” - life and (trans) formation. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.177-85, jan./mar. 2011.

This essay resulted from the life experience and reflections of two healthcare professionals (a psychologist and a nurse) with daily involvement in professional training within higher education. It puts into the picture the power of encounters as (trans) formation processes, especially when education, language and health are the desire intermediation terms. It puts into question the encounters that vitalize or weaken the professional training process as a self-training experience of ethicalesthetic-political nature that goes beyond training technical and scientific skills and abilities. The text also aims to show the power of informality in constructing new knowledge, thereby allowing hybrid learning in which it is no longer certain for what time we are nurses, psychologists, teachers, philosophers or friends, which enables and from which comes a transdisciplinary attitude.

Keywords: Education. Health. Transdisciplinarity. Training.

Este ensaio resulta da experiência de vida e reflexão de dois profissionais da área da saúde - psicólogo e enfermeira implicados pelo cotidiano da formação profissional no ensino superior. Coloca em cena a potência dos encontros como processos (trans) formadores, sobretudo quando educação, linguagem e saúde constituem os termos de um agenciamento de desejo. Colocam-se em questão os encontros que vitalizam ou amortecem o processo da formação profissional como experiência autoformativa de caráter ético-estéticopolítico, para além da formação de competências e habilidades técnicocientíficas. O texto objetiva mostrar a potência da informalidade na construção de novos saberes, permitindo aprendizados mestiços, onde já não sabemos ao certo em que tempo somos enfermeiros, psicólogos, professores, filósofos ou amigos, o que permite e de onde provém uma atitude transdisciplinar.

Palavras-chave: Educação. Saúde. Transdisciplinaridade. Formação.

1 Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro Universitário La Salle. Praça Dom Feliciano, 78, conjunto 1103. Centro, Porto Alegre, RS. 90.020-160. cleber.ratto@ unilasalle.edu.br 2 Departamento de Ciências da Saúde, Curso de Enfermagem, Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

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A arte é o grande estimulante da vida. Nietzsche (2006, p.18)

Este ensaio se dá numa zona de encontro de dois pesquisadores e suas multidões. Multidões que se revelam em “os outros”, aqueles que nos habitam e que provocam cruzamentos singulares da fusão da pedagogia com a vida. Aprender, segundo Serres (1993), é a criação do terceiro, do mestiço, que assedia nossas palavras e línguas. Este trabalho, busca, na potência dos encontros dos “nossos outros”, pensar os processos (trans)formadores, sobretudo onde educação, linguagem e saúde constituem os termos de um importante agenciamento. Colocam-se em questão os encontros que vitalizam ou amortecem o processo da formação profissional como experiência autoformativa de caráter ético-estético-político (Rolnik, 1993), para além da formação de competências e habilidades técnico-científicas. Enfermeira e psicólogo. De um encontro nada informal nasce a potência de pensarmos a formação na área da saúde como algo que considere a suavidade da informalidade, daquilo que se dá e acontece no momento em que estamos vulneráveis ao outro e aos acontecimentos. Este texto quer apresentar a potência da informalidade na construção de novos saberes, permitindo aprendizados mestiços, onde já não sabemos ao certo em que tempo somos enfermeiros, psicólogos, professores, filósofos, amigos ou vizinhos. O que se pode garantir é que ele é o resultado de vários e alegres encontros, que nos precedem e nos ultrapassam.

Educação Todo projeto de “formação” se pretende vencedor. As pedagogias são feitas para a vitória sobre a multiplicidade. Educar é organizar as forças vivas do mundo, submetendo-as à consciência, à unidade do “eu” e à linguagem. Invariavelmente, uma pedagogia pretende dar forma, inteligibilidade e comunicabilidade ao conjunto de forças implicadas na existência. Educar, pedagogizar ou formar, se preferirmos, é fazer existir no mundo da molaridade. É produzir um plano de organização. A rigor, nenhum problema nesse intento. A própria função primária da linguagem, como veremos a seguir, é esse aquietamento do mundo na constituição de uma forma. Fazer o mundo passar pela linguagem e pela consciência é o que há de fundamental na experiência civilizada de sociabilidade humana. O projeto moderno de formação humana, no entanto, levou à sua máxima potência essa pretensão. E a educação é a grande máquina operadora dessa vontade. A modernidade é definida, entre outras coisas, pelo advento da razão esclarecida, constituída, sistematicamente, em movimentos culturais, políticos e intelectuais desde o século XVI, em que o sujeito se pensa como o centro principal de referência de qualquer verdade sobre o que existe. Especialmente a partir daí, a razão pretendeu-se ordem e medida de todas as coisas e trabalhou pelo estabelecimento de uma forma hegemônica de constituição da verdade, assegurada pelos princípios da técnica. A ciência moderna, diretamente dependente da duplicação empírico-racionalista do sujeito (Foucault, 2002), torna-se a instância privilegiada de produção das verdades, funcionando como a grande agência do logos humano, outrora encarnado exclusivamente na filosofia. Indicar a razão como marca predominante da modernidade, implica referir-se à sua impregnação pelo sonho da Aufklärung, do esclarecimento que permite melhor governar. Referindo-se ao empirismo inglês de Francis Bacon e ao racionalismo do francês René Descartes, sistemas de pensamento que sustentarão o otimismo científico moderno, Giacóia Júnior (2005) corrobora a tese de que o grande fascínio do homem moderno pela razão implica diretamente uma forma de intervenção sobre o mundo, com o propósito de conhecê-lo e controlá-lo, na busca por felicidade e justiça. E nisso está o sonho de autonomia humana, para a qual a Educação deveria concorrer. Tal como se atesta nessa inspiração dos pioneiros da moderna Aufklärung, um otimismo triunfalista está na base do credo científico desses pensadores: a razão, com base na ciência e na técnica, que dela decorre, pode enfrentar e resolver com sucesso os mais importantes 178

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problemas humanos, de modo a garantir o domínio sobre as forças da natureza, assim como realizar a justiça nas relações entre os homens. (Giacóia Júnior, 2005, p.102)

Sistematicamente, o mundo moderno atualizou a antiga noção grega da razão como essência diferencial do humano. Durante muito tempo, buscou-se exercitar a razão no sentido de se ampliarem as formas de entendimento de tudo o que há, fazendo com que ela não apenas se explique a si mesma como também dê conta de explicar aquilo que a ultrapassa. Como se tudo - mesmo o que esteja fora da razão, supostamente fora de seu alcance - terminasse por responder ao seu domínio. Quando sobreveio a ideia da emancipação, da razão iluminista insuflando o ideal emancipatório, a modernidade empurrou o sujeito para a necessidade de se emancipar pelo esclarecimento, pela ilustração, pelo estabelecimento de uma verdade e uma moral, ela também emancipatória. E a razão, crivo de tudo o que passa pelo pensamento, foi quem capitaneou esse ideal e criou as diretrizes para os projetos educacionais modernos (Pereira, Ratto, 2009). A modernidade pretende uma “formação” que se entende como um direcionamento da alma e do espírito através da educação, não apenas para capacitar o homem técnica mas, também, moralmente. Trata-se de fazer do homem do conhecimento e da moral um agente na determinação da verdade. A crise da modernidade resulta da constatação de que o mundo não é naturalmente racional. A razão é uma condição humana. E o mundo simplesmente acontece, ele não cessa de se arranjar, não para de acontecer. A razão acaba ficando em defasagem, um instante após o mundo ir se arranjando. O mundo vai acontecendo, as coisas vão sendo, e isso tudo que acontece e existe é como uma amostra da sua sustentabilidade, do jeito que as coisas são e conseguem ser, mesmo quando não cabem na razão. As coisas são o que elas podem ser. As coisas não são o que elas querem ou devem ser. Assim a razão, paradoxalmente, enquanto sonho e pesadelo da modernidade, realiza-se apenas na “loucura da linguagem”, e, longe de ser um a priori do humano, constitui-se e impõe-se como decorrência de sua fragilidade. Assim, qualquer pedagogia é também uma constante frustração. Porque uma pedagogia se pretende a priori vencedora, mas porque o mundo resiste à formação que ela pretende, sempre há uma decepção. A decepção de não conseguir exatamente o que se pretendia. Mas talvez aí resida uma importante potência de toda pedagogia. A capacidade de acolher essa decepção. Uma espécie de reconhecimento da vulnerabilidade. Uma pedagogia aberta ao encontro do inesperado, aquilo que acontece fora do controle, que vibra no ineditismo de cada nova aproximação, cada novo apaixonamento. Talvez, inclusive, isso já não seja mais uma pedagogia. Pelo menos não a priori. A vulnerabilidade é bem mais uma condição, não propriamente consciente ou autônoma, mas uma disposição da própria vida para ser afetada, interferida. A formação, propriamente, continuará ocorrendo, por certo. Não é possível pensar uma pedagogia que se pretenda a priori derrotada. É preciso querer vencer para poder jogar. A questão está no modo como se concebe a interferência, a afecção pelo imprevisto, por tudo aquilo que foge ao controle da consciência e da linguagem. Nisso reside a possibilidade de uma “grande saúde”, como a concebe Nietzsche. Uma saúde que inclui a moléstia. Aliás, uma saúde que só se faz no jogo guerrilheiro da convalescença. Uma (trans)formação pressupõe trabalhar com a processualidade da vitória e da saúde. Um jogo interminável de luta é aquilo que define vitória e saúde numa perspectiva mundana. Vitorioso e saudável é estar no jogo. A possibilidade da vulnerabilidade é a educação para além da técnica e da moralidade, uma educação que perceba os acontecimentos do mundo, uma pedagogia que não resista às fragilidades e às moléstias. Trata-se de resistir à captura de certas objetivações de sujeitos. A captura a que estamos nos referindo é aquela operada pela temporalização moderna. O emaranhado de disciplinamento e imposição moral que os processos educativos provocam nas pessoas e nos modos de estarmos no mundo. O tempo de confinamento da subjetividade e esquadrinhamento da consciência. Captura que impregna de impotência a subjetividade, provocando culpabilização e individualismo. Falamos de uma captura aliciadora que aliena as singularidades emergentes. O paradoxo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.177-85, jan./mar. 2011

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estabelecido aqui é o de que a educação, que tem por vocação a transformação, entrega-se à subjetivação capitalística e mobiliza seus exércitos nessa direção. Linguagem A ideia do “Ser” pressupõe uma partição do mundo que acaba por criar um duplo, onde a verdade está escondida por detrás das aparências. Assim, o Ser jamais seria a própria aparência, porque esta sempre funcionaria como um encobrimento da verdade essencial das coisas. É precisamente essa duplicação que é recusada por Nietzsche, cujo pensamento se desenrola em um único plano. [...] O que Nietzsche recusa ao negar o Ser não é, portanto uma instância ontológica, mas a hipótese de uma duplicação ontológica: a hipótese de que a realidade aparente seja a expressão de uma essência, de que o fluxo do devir seja a manifestação de um mundo do ser, que a existência sensível seja o desdobramento de uma instância suprassensível, que as construções perspectivas sejam a representação de um mundo constituído. (Rocha, 2003, p.44-5)

Nietzsche faz do mundo uma realidade sempre imanente, onde não há lugar para outro mundo que lhe dote ou funde um sentido absoluto. Assim se instala o problema do conhecimento, que tradicionalmente atende à vontade de consciência a respeito do mundo. Ele assume que o “erro hereditário” de todos os filósofos é não reconhecer que também a faculdade de conhecer tem um curso histórico ou, mais propriamente ainda, uma pré-história biológica (Safranski, 2005). É do ponto de vista genealógico que Nietzsche destituirá a consciência e a linguagem de seu estatuto privilegiado de funções “essenciais”. Pois, para dizê-lo mais uma vez: o homem, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não sabe disso; o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele, e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte pior: - pois somente esse pensamento consciente ocorre em palavras, isto é, em signos de comunicação; com o que se revela a origem da própria consciência. (Nietzsche, 2002, p.249)

Assim, a linguagem e a consciência respondem, já em seu nascedouro, àquilo que a estrutura racional nascida com a filosofia socrático-platônica traz como fundamento: uma necessidade de duração como modo de aquietar a multiplicidade caótica e movente do mundo. As “linguagens são instrumentos de narcisismo de grupo; se tocam para afinar e voltar a afinar os instrumentistas” (Sloterdijk, 2005, p.13, tradução dos autores). Os homens dispõem de linguagem para falar de suas próprias vantagens, entre elas – e não é a menos importante – dessa insuperável vantagem que é poder falar de suas próprias vantagens na sua própria linguagem. E é, sobretudo, no individualismo moderno e no esteticismo contemporâneo, que essa pretensão de vantagem ganha uma força cada vez maior. Com isso, Nietzsche aparece como a desconfortável provocação de nossa crença. O que entra em questão com a crítica nietzscheana é o modo como esse narcisismo primário da linguagem, constitutivo da humanidade, é reencenado na modernidade com a forma de elogio da (cons)ciência que faz do homem um soberano, capaz de “formar” e “autoformar-se”. O nascimento do homem com consciência epistemológica, simultaneamente condição e objeto do conhecimento, faz com que a linguagem assuma uma função ainda mais drástica: dizer a verdade do “eu”. A linguagem comete uma loucura, como sugere Nietzsche. “Bela loucura a da linguagem: graças a ela o homem baila sobre todas as coisas” (Nietzsche, 2000, p.259) E agora, modernamente, pretende bailar sobre ele mesmo. Isso só pode se dar no solo positivo da episteme moderna. O homem vira medida do mundo. E a experiência mundana vai sendo ofuscada pela supremacia da linguagem fazedora de consciência. 180

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O que manifesta, em todo caso, o específico das ciências humanas, vê-se bem que não é esse objeto privilegiado e singularmente nebuloso, que é o homem. Pela simples razão de que não é o homem que as constitui e lhes oferece um domínio específico; mas, sim, é a disposição geral da episteme que lhes dá lugar, as requer e as instaura – permitindo-lhes, assim, constituir o homem como seu objeto. Dir-se-á, pois, que há “ciência humana” não onde quer que o homem esteja em questão, mas onde quer que se analisem, na dimensão própria do inconsciente, normas, regras, conjuntos significantes que desvelem, à consciência, as condições de suas formas e de seus conteúdos. (Foucault, 2002, p.504)

E não se trata do “inconsciente” na forma que convencionalmente lhe atribuem as psicanálises. Inconsciente aqui seria “justamente essa região que não se expressa em palavras, o domínio que escapa à linguagem. Não é, pois, por acaso, que não tratamos do inconsciente em Nietzsche; além de não existir aí enquanto conceito, o que se poderia chamar eventualmente de inconsciente remete, de imediato, ao indizível” (Marton, 2001, p.181). Inconscientes seriam todas as forças vivas do mundo que não cabem na linguagem. A linguagem, então, é tomada aqui como a expressão sempre reencenada de um narcisismo primário. Uma vontade de duração, de ordem, de aquietamento identitário. Desconsidera-se que a própria linguagem é um agenciamento coletivo de enunciação (Deleuze, Parnet, 1998), em última análise, composta por forças maquínicas do desejo que lhe precedem. Assim, a linguagem adoece o mundo, porque amortece sua potência. E a “grande saúde” em Nietzsche aparece como o “fora” da linguagem. Essa vulnerabilidade àquilo que interfere na consciência, a razão, o “eu”, potencializando os encontros, as contaminações, as mestiçagens. A assepsia da linguagem adoece a vida, ao passo que a “mistura” mundana favorece sua celebração. A linguagem, como agenciamento coletivo, é produtora de subjetividades, determinando e legitimando as estruturas da sociedade, o modo como estamos ou devemos estar nela inseridos. No campo da saúde não é diferente. A linguagem cria e determina subjetividades e esta predeterminação bloqueia, na grande maioria das vezes, o que mais faz sentido em saúde: o cuidado, a proteção e a recuperação da vida.

Saúde O problema da saúde percorre as preocupações de Nietzsche desde sempre. A pergunta de fundo, pela possibilidade de uma experiência vitalizante, próxima do inaudito do mundo, faz-se ao longo de toda a obra. Nietzsche se intitula o primeiro grande psicólogo da Europa. “Que em meus escritos fala um psicólogo sem igual é, talvez, a primeira constatação a que chega um bom leitor – um leitor como eu o mereço, que me leia como os bons filólogos de outrora liam o seu Horácio” (Nietzsche, 1995, p.58). Trata-se da “grande psicologia”, aquela capaz de cumprir seu programa genealógico. Ela funciona como um operador estratégico em sua genealogia da moral, em suas análises dos fenômenos religiosos, em sua apreciação das grandes personalidades históricas antigas e modernas, em sua crítica da ciência, da arte, da educação e da política, enfim, em sua inteira tarefa de ‘médico e sintomatologista da cultura’. (Giacóia Júnior, 2001, p.10)

A crítica do psicólogo Nietzsche não incide apenas sobre o primado da consciência em detrimento das forças naturais, mas também sobre a unidade do “eu”, base de todas as políticas educacionais e sanitárias modernas. A desconstrução do primado da consciência não produz efeitos apenas no campo da teoria do conhecimento ou na crítica da religião e da metafísica. Destituir a consciência de seu lugar privilegiado, como instância soberana de conhecimento do mundo, leva necessariamente à fragilização dos limites da individualidade dados pela identidade do “eu”. O “eu penso” e o “eu quero” são destituídos de sua onipotência e passam a existir na condição de efeitos, e não mais de agentes. O “eu” então funciona como uma síntese conceitual que permite, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.177-85, jan./mar. 2011

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através da consciência, encobrir relações de força sempre pré-pessoais. O sujeito surge como uma ficção de unidade e coerência que somente a consciência e a linguagem, com finalidades comunicativas, conseguem organizar. “Algo pensa, mas que esse ‘algo’ seja justamente o antigo e célebre ‘eu’ é, dito com indulgência, somente uma suposição, uma asserção, mas nunca uma ‘certeza imediata’” (Nietzsche, 2003, p.23). Para Nietzsche (2003, p.25), “nosso corpo nada mais é do que um edifício coletivo de várias almas”. E alma aqui designa o conjunto das forças e organismos microscópicos que compõe o corpo, em permanente disputa e tensão. O “eu”, assim, funciona como um modo de estabilizar a multiplicidade e possibilitar, como uma ficção reguladora, o próprio conhecimento e comunicação do mundo. Desse modo, a pretensão de autoconstituição pela linguagem, de autorreferência, de consciência de si, é o produto mais caro dos ideais emancipatórios do homem moderno. O que importa aqui são os efeitos disso sobre a vida social, na medida em que essa pretensão moderna de autorreferência é a própria matriz de todas as nossas pedagogias. A modernidade é, antes de tudo, uma ética particular, na medida em que não apenas demarca um período histórico, senão que implica a formulação de um projeto de existência que nos “faz viver” dentro de certos parâmetros de verdade e normalidade. E é da linguagem, com sua bela loucura, que dependem todas as políticas de identidade que modulam os modos de vida. Seja encarnada no pensamento mítico, nas pretensões da teologia, na soberania da ilustração, com a magia, com Deus ou com o homem, a vontade de ser pretende estabilizar o mundo dando-lhe ordem e viabilidade. Com isso, esqueceu-se que a linguagem é aparentada com a loucura do ser. Como uma tesoura, a linguagem parte o mundo e, duplicando-o, funda um além-mundo de onde os sentidos emanariam. Cria-se, com isso, um horizonte perdido, uma vida que estaria para além da própria vida, mais verdadeira, mais bela, melhor. Assim, o melhor do mundo passa a ser pelo que lhe falta, aquele mundo perdido que a linguagem e a cultura tentam perseguir, o mundo ideal. Então, amar o que falta é a própria lei da linguagem. Amar aquilo que persegue sem nunca encontrar, a verdade, o ideal, o absoluto. Essa é a matriz de uma espécie de doença denunciada por Nietzsche, não apenas na tradição do pensamento científico moderno ou da cristandade, mas na própria raiz disso tudo, a pretensão humana de não ser o próprio mundo. E é dessa doença que se nutre a modernidade. A doença que advém do excesso de si e da falta de mundo. “O grande fastio que sinto do homem – isto penetrara em minha goela e me sufocava; e aquilo que proclamava o adivinho: ‘Tudo é igual, nada vale a pena, o saber nos sufoca” (Nietzsche, 2000, p.261). Mas permanece em Nietzsche a problemática tensão entre saúde e doença. Talvez não possamos prescindir da doença e em toda saúde também haja um pouco de enfermidade. Enfim, permaneceria aberta a grande questão de saber se podemos prescindir da doença, até para o desenvolvimento de nossa virtude, e se a nossa avidez de conhecimento e autoconhecimento não necessitaria tanto da alma doente quanto da sadia; em suma, se a exclusiva vontade de saúde não seria um preconceito, uma covardia e talvez um quê de refinado barbarismo e retrocesso. (Nietzsche, 2002, p.120)

Curar-se dessa doença e conquistar uma grande saúde, no entanto, não se dá de um só golpe. Há toda uma convalescença necessária. Uma convalescença de quem está se curando da doença do ser. Porque também há uma enfermidade em toda redenção. As ciências humanas, de um modo geral, e a educação, em particular, são modernamente as figuras mais caras dessa vontade de ser e de verdade. A educação, em especial, responde pelo grande projeto de produzir o sujeito moral e deveria fazê-lo pela crença absoluta na identidade entre felicidade, moral e sabedoria. “De fato, como poderíamos tornar os homens felizes, se não os tornarmos morais e sábios?” (Kant, 1996, p.28). É em Zaratustra que reaparece, de modo exemplar, a problemática relação entre saúde e doença, conhecimento e insondabilidade, mundo e “si mesmo”. A saúde, passados sete dias de “conhecimento” e “criação” (figura emblemática da tradição filosófica e teológica ocidentais), é dar as costas à caverna para reencontrar o mundo. É dos animais que vem a sedução.

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Sai desta caverna; o mundo está à tua espera como um jardim. Brinca o vento com intensos perfumes, que te procuram; e todos os córregos gostariam de seguir os teus passos. Por ti, que ficaste sozinho sete dias, anseiam todas as coisas. – Sai desta caverna! Todas as coisas querem ser teus médicos! (Nietzsche, 2000, p.259)

Zaratustra sabe que o remédio é cantar. Porque cantar talvez seja o modo mais eficaz de afrouxar a linguagem de sua pretensão de Verdade. Contudo, não se pode fazer do cantar uma modinha de realejo. “Que eu deva voltar a cantar – este consolo e esta cura inventei para mim; também disso quereis fazer logo modinha de realejo?” (Nietzsche, 2000, p.262) Zaratustra indica uma necessária convalescença. Não se trata de anunciar entusiasticamente, na educação, o fim da modernidade, do homem, da verdade, das pedagogias vencedoras e de tudo o que, afinal de contas, é a própria condição de existência do homem que nos tornamos. Trata-se, isto sim, de favorecer os encontros. “Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle” (Deleuze, 1992, p.216). A convalescença requer uma espécie de silêncio. O silêncio do apaixonamento, dos encontros intensivos, que sempre se dão num lugar além ou aquém da linguagem. Um passo adiante na convalescença: e o espírito livre se aproxima novamente à vida, lentamente, sem dúvida, e relutante, seu tanto desconfiado. Admira-se e fica em silêncio [...]. E, falando seriamente: é uma cura radical para todo pessimismo [...] ficar doente à maneira desses espíritos livres, permanecer doente por um bom período e depois, durante mais tempo, durante muito tempo tornar-se sadio, quero dizer, ‘mais sadio’. Há sabedoria nisso, sabedoria de vida, em receitar para si mesmo a saúde em pequenas doses e muito lentamente”. (Nietzsche, 2005, p.11)

Uma educação para a grande saúde é uma pedagogia da vulnerabilidade que rompe e se abre para o aprendizado de si, para o aprendizado que foge ao controle, que aceita a decepção e a mestiçagem como modo de existir. Concebemos que o processo educativo, em geral, é um agente nesta captura da singularidade, neste aniquilamento da potência, que pode transformar a prática do trabalho de enfermeiros e psicólogos num ato repetitivo e entristecedor. Pensar num trabalho serializado significa dizer que o mundo do trabalho em saúde passa a ser um fardo para muitos, pois é o lugar da marginalização. É o lugar onde a técnica tem mais valor do que qualquer outra coisa, um lugar onde a criação não é legitimada, onde a contabilidade do tempo vale mais que o cuidado. O trabalho em saúde apesar de ser um trabalho vivo é um trabalho onde a expansão da vida é enfraquecida ou anulada.

Entre macro e micropolíticas Jogar no exercício filosófico do pensamento – o que equivale a dar margem expressiva para os encontros que vivemos – nos permitiu conceber que todas as macropolíticas institucionais são potentes exatamente quando comportam vacâncias, falências ou vazios. Sejam as Diretrizes Curriculares Nacionais com suas disposições generalistas, sejam os Princípios do SUS, com sua defesa da integralidade, as macropolíticas só se fazem potentes ao abrirem espaço, ao darem margem para o imprevisto e o impensado dos encontros. Trata-se, antes de tudo, de uma micropolítica da vulnerabilidade. Uma micropolítica que favoreça a Grande Saúde, como a concebe Nietzsche. Saúde operada como estado de tensão, de jogo, de luta e de abertura ao outro. Não se trata de harmonia nem de estabilidade, mas de vulnerabilidade aos encontros de todo gênero.

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EDUCAR PARA A “GRANDE SAÚDE” ...

A potência de um programa ou de uma ação, para além de sua pretensão de vitória e sucesso, está dada por sua capacidade potencial de ser interferida. Trata-se de uma economia onde a força não está dada pelo que se “é”, mas pelo que se pode vir-a-ser nos encontros que acontecem. As mudanças têm acontecido em muitos lugares e, na educação ou na saúde, isso é muito evidente. Resta saber se essas mudanças já estão incorporadas, se já pertencem ao corpo de quem as promove. Identificarmos em que plano essas mudanças se dão é a grande dificuldade desse processo de (trans)formação quando pensamos na grande saúde. Mudamos a forma de os cursos acontecerem dando margem para a vulnerabilidade, reformulamos suas bases conceituais, mudamos a lei, mas será que tais diferenças tocam efetivamente nossos corpos? Esta reflexão é extremamente importante porque, se estamos falando, até o momento, das necessidades de mudança nos processos de aprendizagem, precisamos criar escuta das muitas vozes que compõem a paisagem contemporânea da saúde e da educação. De nada adianta rompermos com os processos moralizadores e objetivantes da educação se não conseguirmos perceber o que diz o aluno-trabalhador de nossos bancos universitários. A escuta aqui significa reconhecer que falamos de corpos (humanos, conceituais, técnicos) compostos na trama dos afetos. Falamos de gente, de cidadania, de configuração de mundo, de potencialidade de mudança, de efetivação do Sistema Único de Saúde e da implementação de uma micropolítica do cuidado, onde a sensibilidade, o desejo e o afeto são indispensáveis no cotidiano do fazer saúde e educação. Pensar no processo educativo como uma oficina de tempo é entender o tempo não como fluxo linear/educação vertical que nos atualiza, mas tempo como emaranhado de possibilidades – educação como rede rizomática, sem início e sem centro, rede de fluxos, cruzamentos de linhas de tempo, que nos remete aos mais incríveis devires, ao mundo dos possíveis, da invenção. Este pressuposto de invenção pode ser o caminho educativo utilizado para as (trans)formações necessárias em várias áreas e momentos da vida, sobretudo quando entendemos saúde como sendo a potencialidade máxima da vida. Assim, este texto é o rastro dos encontros de nossas multidões, compostas por histórias vividas, contadas e testemunhadas nos espaços intersubjetivos de formação, onde nos pretendemos “(trans)formadores” de modos de existir, na profissão, no pensamento e na vida.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. 8.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção Tópicos). GIACOIA JUNIOR, O. Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a modernidade. Passo Fundo: UPF, 2005. ______. Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2001.

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RATTO, C.G.; SILVA, S. C. M.

artigos

KANT, I. Sobre a pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Unimep, 1996. MARTON, S. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 2.ed. São Paulo: Discurso Editorial/Ed. Unijuí, 2001. NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. _____. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ______. Além e do bem e do mal. 2.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2003. ______. A gaia ciência. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. ______. Assim falou Zaratustra. 11.ed. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ______. Ecce Homo. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. PEREIRA, M.V.; RATTO, C.G. Virtude é coisa que se ensina? O lugar do cuidado na formação. In: CAMARGO, A.M.F.; SOUZA, R.M.; MARIGUELA, M. (Orgs.). Que escola é essa? Anacronismos, resistências e subjetividades. Campinas: Alínea, 2009. p.59-74. ROCHA, S.P.V. Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. ROLNIK, S. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cad. Subjetividade, v.1, n.2, p.241-52, 1993. SAFRANSKI, R. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Trad. Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2005. SERRES, M. O terceiro instruído. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. SLOTERDIJK, P. Sobre la mejora de la buena nueva: el quinto “evangelio” según Nietzsche. Trad. Gérman Cano. Barcelona: Ediciones Siruela, 2005.

RATTO, C.G.; SILVA, S.C.M. Educar para la “gran salud” - vida y (trans) formación. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.177-85, jan./mar. 2011. Este ensayo resulta de la experiencia de vida y reflexión de dos profesionales del área de la salud - psicólogo y enfermera - implicados en el cotidiano de la formación profesional en la enseñanza superior. Coloca en escena la potencia de los encuentros como procesos (trans)formadores; sobre todo cuando educación, leguaje y salud constituyen los términos de un agenciamiento de deseo. Se plantean los encuentros que vitalizan o amortecen el proceso de la formación profesional como experiencia auto-formativa de carácter ético-estético-político. El texto quiere evidenciar la potencia de la informalidad en la construcción de nuevos saberes, permitiendo aprendizajes mestizos en los que no sabemos bien en qué tiempo somos enfermeros, psicólogos, profesores o amigos ni lo que permite y de donde proviene una actitud transdisciplinaria.

Palabras clave: Educación. Salud. Trans-disciplinaridad. Formación. Recebido em 09/09/09. Aprovado em 23/06/10.

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A contribuição do acolhimento e do vínculo na humanização da prática do cirurgião-dentista no Programa Saúde da Família Poliana Miranda Pinheiro1 Lúcia Conde de Oliveira2

PINHEIRO, P.M.; OLIVEIRA, L.C. The contribution of receptivity and bonding towards humanization of dental surgeons’ practice within the Family Health Program. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.187-98, jan./mar. 2011. This study aimed to ascertain how the soft technologies of receptivity and bonding are used in dentists’ practice within the Family Health Program in the municipality of Fortaleza, Ceará, towards constructing humanized care. This was a qualitative investigation conducted among 16 dental surgeons using semistructured interviews and simple observation to gather data. The data were evaluated using content analysis. The results showed that the dentists were making greater use of these technologies in their practice, but receptivity was identified more as a first stage in organizing the demand than as an attitude of listening. The latter stance was more associated with bonding. The great demand has contributed towards tension lines between dentists and users and has forced dental practitioners towards practices that are still tied to the office. New spaces would be important for using these technologies, given that these look beyond the disease, to the individual.

Keywords: Receptivity. Bonding. Humanization. Dental surgeon.

Objetiva-se compreender como são empregadas as tecnologias leves do acolhimento e vínculo na prática do dentista, no Programa Saúde da Família do município de Fortaleza, Ceará, no sentido da construção do cuidado humanizado. Trata-se de pesquisa qualitativa realizada com 16 cirurgiõesdentistas, utilizando-se, para coleta de dados, entrevista semiestruturada e observação simples e, para análise dos dados, a análise de conteúdo. Os resultados mostram o dentista fazendo maior uso dessas tecnologias em sua prática, porém o acolhimento é mais identificado como primeira etapa de organização da demanda do que como atitude de escuta, postura esta mais associada ao vínculo. A grande demanda tem contribuído com linhas de tensão entre dentista e usuário e forçado o odontólogo a uma prática ainda presa ao consultório. Novos espaços seriam importantes na utilização dessas tecnologias, já que estas consideram, para além da doença, o indivíduo.

Palavras-chave: Acolhimento. Vínculo. Humanização. Cirurgião-dentista.

1 Curso de Odontologia, Departamento de Clínica Odontológica, Universidade Federal do Ceará. Avenida Filomeno Gomes, 733, apto. 601. Jacarecanga, Fortaleza, CE, Brasil. 60.010-281. polipmp@gmail.com 2 Universidade Estadual do Ceará.

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Introdução A conquista do Sistema Único de Saúde (SUS) tem nos desafiado a desenvolver modelos explicativos para compreendermos esse sistema e suas práticas, bem como elaborarmos propostas de intervenção que favoreçam o aperfeiçoamento do mesmo. Teixeira (2003) declara que os debates teóricos e políticos concentraram-se nas questões jurídico-legais e político-institucionais, especialmente voltados para a gestão e o financiamento, e que a temática do processo de trabalho passou por um período de pouco evidência. Contudo, a constatação de que não avançamos muito na mudança do modelo assistencial tem trazido, para o centro das discussões acadêmicas e no espaço dos serviços de saúde, o processo de trabalho em saúde. Em 1994, foi lançado, pelo Ministério da Saúde (MS), o Programa Saúde da Família (PSF) como estratégia de um novo modelo assistencial que busca uma visão mais integral do sujeito e ações que envolvam a comunidade onde este se encontra. O PSF parte de uma nova forma de se pensar o processo saúde-doença e o processo de trabalho em saúde, compreendendo o ser humano não só na sua dimensão biológica, mas também as influências psicológicas, sociais e culturais que marcam o meio onde o sujeito está inserido. Esta estratégia destina-se, entre outras coisas, a: oferecer um cuidado integral, intervir nos fatores de risco, favorecer o desenvolvimento de ações intersetoriais, promover a participação da comunidade, e humanizar as práticas de saúde (Brasil, 1998). Nesse sentido, em 2000, ocorre outro fato importante para a saúde pública. Com a publicação da Portaria 1.444, de 28 de março do referido ano, a odontologia passa também a ser incluída na estratégia do PSF, com repasse de recursos para os municípios financiarem essa inserção. Este fato representa a ampliação dos serviços de atenção básica e o reconhecimento do direito da população à saúde bucal. Como, também, a possibilidade da criação de um novo espaço de práticas e relações, reorientando o processo de trabalho do dentista, bem como a própria forma de atuar da odontologia dentro dos serviços de saúde (Brasil, 2004a). A inclusão do cirurgião-dentista no PSF representa maior possibilidade de acesso de milhões de brasileiros a um serviço de saúde bucal, além de trazer o dentista para mais perto da população, fazendo-o repensar sua prática a partir da reorganização do modelo de atenção. De acordo com a Portaria N° 267 de março de 2001, que dispõe sobre normas e diretrizes de inclusão da saúde bucal na estratégia do PSF, as ações de saúde bucal devem expressar, como características operacionais, entre outras: o caráter substitutivo das práticas tradicionais, a definição da família como centro da abordagem da equipe e a humanização do atendimento (Brasil, 2001). Dessa forma, o PSF promove uma mudança no processo de trabalho do profissional da saúde, por meio de uma nova forma de “intercessão partilhada”, agora estabelecida não só mais entre profissional e usuário, mas também entre o serviço e a família/comunidade. Torna-se importante, então, a utilização das tecnologias leves, de que fala Merhy (2007a, b; 2004), dentro da produção dos atos em saúde, com a consequente valorização de dispositivos como o vínculo e o acolhimento. O primeiro, o vínculo, transformou-se em uma meta da ação do PSF, e o último, o acolhimento, é discutido pela Política Nacional de Humanização (PNH), lançada pelo MS em 2004, e que busca a valorização do sujeito dentro do SUS, seja ele usuário, profissional ou gestor (Brasil, 2008b). Nesse sentido, ao se refletir sobre as tecnologias leves, observa-se que o campo do trabalho em saúde possui características particulares por se encontrar no setor de serviços e tratar de uma realidade que lida diretamente com as necessidades e expectativas do sujeito/usuário. Sendo assim, toda ação assistencial de um profissional de saúde junto a um usuário realiza-se através de um trabalho vivo em ato, por meio do qual há o encontro de duas pessoas, atuando uma sobre a outra em um processo relacional (Merhy, 2004). Nesse espaço de encontro, atuam as tecnologias leves combinadas aos outros dois tipos de tecnologias, isto é, tanto ao aparato tecnológico (tecnologia dura), como, também, ao conjunto de saberes estruturados e organizados (tecnologia leve-dura). Porém, cabe às tecnologias leves comandarem os modos de incorporação das demais, abrindo, assim, caminho para se repensar o processo de produção da subjetividade no interior das práticas de saúde, em vista de atingir uma maior qualidade da atenção (Merhy, 2007b). O cirurgião-dentista depara-se com essas diversas tecnologias no sentido da construção do cuidado. É fácil identificar que, devido às características próprias de sua prática, esse profissional encontra-se 188

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dependente das tecnologias duras, como os instrumentais e equipamentos presentes no consultório odontológico. Porém nunca poderá prescindir das tecnologias leve-duras e das tecnologias leves, já que opera também no espaço do encontro com o usuário. É o somatório dessas tecnologias que comporá o cuidado no atendimento odontológico. Vale, ainda, esclarecer que, nesse espaço de encontro construído entre profissional e usuário, ambos trarão e partilharão suas próprias expectativas, necessidades e desejos, de forma singular. Dessa maneira, esse espaço também se caracterizará como um lugar de conflitos e disputas, em alguns momentos, devendo ser também, assim, um lugar de vozes e escutas, onde todos os sujeitos envolvidos precisam ser considerados em suas necessidades (Merhy, 2007a). O dentista encontra-se com o outro, o usuário, construindo com ele um espaço de intercessão frequentemente marcado pela dor, pela ansiedade e pelo sofrimento desse usuário, que deseja ser compreendido e atendido em suas necessidades - daí a relevância das tecnologias leves na prática do cirurgião-dentista. Dentre essas tecnologias, destacam-se, aqui, o acolhimento e o vínculo, dois conceitos que se complementam na construção de um cuidado humanizado na saúde (Merhy, 1997). Esses instrumentos possuem diferentes enfoques, os quais são abordados tanto na literatura como na prática do serviço. O acolhimento, por exemplo, segundo Merhy (2004), adquiriu uma dupla dimensão, sendo, de um lado, considerado como parte de uma etapa do processo de trabalho, sobretudo no momento da recepção dos serviços de saúde, relacionando-se ao primeiro contato com o usuário. E, de outro lado, como um dispositivo do processo intercessor do trabalho em saúde, necessário em todos os lugares em que se deem os encontros entre trabalhador e usuário. Teixeira (2005) corrobora com esta discussão ao afirmar que o acolhimento é bem mais que uma atividade de recepção no serviço, atribuída a um determinado profissional em um espaço físico específico. Para o autor, trata-se de uma técnica de conversa que pode ser efetuada em qualquer momento do atendimento e que auxilia no conhecimento das necessidades dos usuários a serem satisfeitas. Dessa forma, outra ferramenta compatível com a ideia das tecnologias leves e importante no sentido da humanização da atenção à saúde refere-se ao vínculo. Instrumento importante e privilegiado dentro da estratégia do PSF, o vínculo busca promover a criação de laços de compromisso e de corresponsabilidade entre os profissionais da equipe e a população da área de cobertura que está sob sua responsabilidade, permitindo uma maior aproximação entre serviço e comunidade (Brasil, 1998). Porém, como afirma Silveira Filho (2002), o vínculo vai além do estabelecimento de um simples contato com a população de uma determinada área ou de um simples cadastro. Ele exige uma real aproximação do profissional com a realidade vivenciada pelo usuário dentro de seu contexto social para que possa compreender suas condições de vida e suas verdadeiras demandas, comprometendo-se com elas. De acordo com o pensamento de Silva Junior e Mascarenhas (2004), o vínculo possui três dimensões: da afetividade, da relação terapêutica e da continuidade. Conforme a primeira, o profissional da saúde deve gostar de sua profissão, interessando-se pela pessoa do paciente, como diz o autor, para então construir um vínculo com ele. Na segunda dimensão, a própria relação entre ambos, profissional e paciente, é vista como terapêutica, por intermédio da qual o paciente é considerado sujeito no processo de tratamento e na qual se desenvolve o sentimento de confiança entre ele e o profissional. E, na terceira dimensão, a continuidade do processo terapêutico é apontada como fortalecedora do vínculo e do mútuo sentimento de confiança entre profissional e paciente. Desse modo, o objetivo deste estudo é compreender como tem se dado a construção dos dispositivos do acolhimento e do vínculo no encontro entre o cirurgião-dentista e o usuário, no sentido de se construir uma prática mais humanizada de atenção à saúde bucal no PSF de Fortaleza. Nesse sentido, surgem algumas questões norteadoras, como: qual atenção tem sido dada para o processo de acolhimento do usuário por parte do cirurgião-dentista? E o vínculo, como este tem sido construído entre o usuário e o odontólogo?

Metodologia Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de natureza explicativa, que foi realizada no município de Fortaleza, no estado do Ceará. Este município possui uma população estimada, em agosto de 2009, de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.187-98, jan./mar. 2011

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2.505.552 habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa - IBGE (Brasil, 2009), e encontra-se atualmente dividido, em termos administrativos, em seis Secretarias Executivas Regionais. Estas funcionam como instâncias executoras das políticas públicas municipais, sendo cada uma delas composta, entre outros setores, por um Distrito de Saúde. Em dezembro de 2006, segundo dados do Relatório de Gestão do município (Fortaleza, 2007), encontravam-se em funcionamento 304 equipes de PSF e 233 Equipes de Saúde Bucal (ESB). Sendo assim, diante do objetivo proposto para este estudo, foram escolhidos, como sujeitos desta pesquisa, cirurgiões-dentistas, selecionados das seis regionais de Fortaleza, de modo que todas fossem representadas nesta pesquisa, respeitando, assim, as diferenças existentes entre elas. Os cirurgiões-dentistas escolhidos deveriam responder, simultaneamente, a dois critérios: atualmente encontrar-se trabalhando em uma das ESBs de Fortaleza e haver trabalhado, no sistema público de saúde deste município, num período anterior ao concurso realizado em 2006, ou seja, antes da implantação das equipes de saúde bucal no PSF. Esta escolha teve por finalidade compreender as diferenças trazidas, através desta estratégia de reorganização do sistema de saúde, que é o PSF, para a prática do cirurgião-dentista, no sentido da humanização da atenção à saúde bucal. Para se alcançar tal fim, primeiramente, foi realizada uma pesquisa junto à SMS de Fortaleza e à cooperativa responsável pela contratação dos odontólogos antes do concurso. Dessa forma, puderam ser obtidas informações sobre quem são e onde se encontram, hoje, alocados os cirurgiões-dentistas que se encaixam nos requisitos estabelecidos anteriormente. Naquelas Regionais em que se encontraram mais de dois dentistas que correspondiam aos critérios mencionados para inclusão destes nesta pesquisa, a seleção dos que seriam entrevistados se deu levando em consideração o acesso ao odontólogo e sua disponibilidade em participar da pesquisa. O número final de entrevistas foi estabelecido considerando-se a saturação teórico-empírica e a relevância das informações (Gaskell, Bauer, 2002), somando um total de 16 sujeitos. Para a coleta dos dados, um dos instrumentos utilizados foi a entrevista semiestruturada. As entrevistas foram gravadas por meio de equipamento de áudio e transcritas integralmente, sendo mantida em sigilo a identidade dos entrevistados, obedecendo-se, assim, às Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo seres humanos, aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde, por meio da Resolução 196/1996 (Brasil, 1996). Seguindo as mesmas diretrizes, a pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual do Ceará. Foi utilizada, também, a técnica da observação simples, aplicada durante as visitas às unidades de saúde para a realização das entrevistas com os dentistas selecionados, visto que tais entrevistas aconteceram no próprio local de trabalho destes profissionais. Por meio das observações feitas, puderam ser colhidas informações importantes, especialmente a respeito de questões estruturais e ambientais dos centros de saúde, como a existência de espaços adequados para a realização do acolhimento quando da recepção dos usuários no serviço, bem como a ambiência da unidade de saúde - fator também destacado pela PNH (Brasil, 2008b), tendo em vista a humanização dos serviços de saúde. Todas essas informações foram devidamente registradas em diário de campo. Com base nos instrumentos referidos e apoiados pelo referencial teórico, promoveu-se o diálogo entre os dados coletados, teóricos e práticos, por meio da triangulação dos métodos, como referido por Souza et al. (2005). Para o tratamento dos dados, foi escolhido o método de análise de conteúdo, por esta técnica permitir, depois de uma leitura de primeiro plano das falas, atingir níveis mais aprofundados de compreensão da mensagem (Minayo, 2007). Em uma leitura sobre a técnica de análise de conteúdo, com base em autores como Berelson e Bardin, entre outros, Minayo (2007) classifica diferentes formas da análise de conteúdo. Para este estudo, fez-se a opção pela análise temática que, segundo a mesma autora, permite a identificação da existência de temas ou núcleos de sentido em uma mensagem, cuja presença ou frequência apresentem significância no conteúdo das análises, e que se apresenta como adequada às pesquisas qualitativas em saúde. Sendo assim, as entrevistas foram transcritas fielmente, respeitando-se as nuances das falas dos entrevistados. Só então foram feitas leituras exaustivas destas no intuito de se identificarem os núcleos de sentido, tomando-se como ponto de partida, para tal, os objetivos do estudo e as perguntas realizadas durante as entrevistas. 190

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Dessa forma, a análise seguiu três momentos: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento e a interpretação dos resultados obtidos. Durante a exploração do material, os núcleos de sentido selecionados foram: acolhimento, vínculo, humanização, processo de trabalho no PSF e dificuldades. A partir destes núcleos, foram feitos recortes nas falas dos entrevistados e, com esses recortes, montou-se um quadro onde foi realizada tanto uma síntese horizontal como vertical do que havia sido dito sobre cada tema, levando-se em consideração os pontos convergentes e divergentes presentes nos depoimentos dos entrevistados. Com base nestes pontos, puderam ser construídas categorias de análises, organizando o conteúdo presente nas falas. Depois deste processo, foram realizadas a interpretação e as inferências, com base no referencial teórico construído anteriormente e na análise dos documentos oficiais do governo. A escolha destes documentos foi realizada de acordo com as necessidades que surgiam a partir dos núcleos temáticos selecionados. Foi realizada uma leitura de cada um, buscando-se interpretar os conteúdos manifestos e latentes, relacionando-os com as categorias escolhidas. As informações extraídas foram, então, cruzadas com a análise feita nas falas dos sujeitos do estudo.

Acolhimento e vínculo na prática do cirurgião-dentista no PSF Dessa maneira, por meio da análise das entrevistas, observa-se a importância do uso das tecnologias leves no processo de trabalho do cirurgião-dentista para a humanização da sua prática, bem como para a obtenção de um cuidado mais integral na estratégia do PSF. Essa importância fica clara tanto nas falas que ressaltam uma maior valorização que essas tecnologias têm no momento de encontro entre cirurgião-dentista e usuário, como naquelas que relatam sobre a sua ausência e a necessidade de uma maior utilização destas no dia a dia do serviço. O acolhimento, em todas as entrevistas analisadas, encontra-se identificado com um dos sentidos presentes no discurso de Merhy (2004), isto é, ora como um dispositivo intercessor do trabalho em saúde, que pode ser representado por uma postura ou atitude de escuta e diálogo entre profissional e usuário, ora como apenas uma primeira etapa do processo de trabalho, associada à recepção ou à triagem administrativa. Porém, fica também claro que, na maioria das entrevistas, isto é, em 13 das 16, a definição que primeiro surge e que prevalece na fala do cirurgião-dentista é a do acolhimento como uma etapa do processo de trabalho, geralmente reconhecida como ação de triagem ou classificação de risco, além do próprio agendamento. “A gente faz essa triagem no dia da marcação, é o que a gente chama de acolhimento [...] as pessoas que estão aqui para marcar, a gente faz o acolhimento, vendo quem tá necessitando mais”. (E3) “Então, no final das contas acaba sendo mesmo uma triagem, quem vai ser atendido e quem não vai, existe até prioridade para isso”. (E13)

Isso indica, de uma forma geral, um esvaziamento ou empobrecimento do sentido mais amplo do que seja acolhimento por parte dos profissionais entrevistados, que centram suas respostas em apenas um dos aspectos do acolhimento, isto é, enquanto dispositivo técnico assistencial de organização do processo de trabalho. Este fato já tinha sido identificado por Teixeira (2003, p.98), ao afirmar que: As soluções práticas que temos conhecido ultimamente para a questão do acolhimento na atenção primária, principalmente em unidade de PSF, tendem a concebê-la como uma atividade particularizada, que realizaria a combinação de alguns dispositivos organizacionais tradicionais dos serviços de saúde (recepção, triagem, acesso). Em muitos casos, tende a sofrer deslocamentos (acesso, porta de entrada, pronto-atendimento), que vão até o limite de esvaziá-la de significado próprio, sendo apenas um nome novo para uma velha atividade.

Vale lembrar aqui, também, a diferença entre triagem e técnica de avaliação com classificação de risco propriamente dita e recomendada como dispositivo da PNH. No acolhimento com avaliação de risco, recomenda-se a avaliação do grau de sofrimento do usuário que chega ao sistema de saúde, considerando, neste sofrimento, tanto a vertente física como a psíquica (Brasil, 2008a). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.187-98, jan./mar. 2011

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Posterior a essa avaliação, segue-se a identificação daqueles usuários que necessitam de algum tipo de tratamento imediato, com a priorização destes em relação à assistência ou o seu encaminhamento a outros níveis de atenção quando necessário. Essa forma de acolhimento implica, então, a necessidade de uma escuta qualificada das queixas e sofrimentos trazidos pelo usuário, além da busca por uma responsabilização e resolutividade dos problemas apresentados por este (Teixeira, 2005). Sendo assim, a função da porta de entrada do sistema não é mais barrar e limitar o atendimento, mas dar uma resposta aos problemas de modo criativo, utilizando as tecnologias leves disponíveis (Merhy, 1997). Isto é, diferente da triagem, que traz a ideia apenas de uma seleção, escolha de quem vai ou não ser atendido de acordo com algum critério preestabelecido, no acolhimento, enquanto avaliação com classificação de risco, todos os usuários que procuram o serviço de saúde por demanda espontânea devem ter uma resposta de acordo com sua necessidade e com a oferta de serviço disponível (Brasil, 2008a). Assim, essa é outra ideia que se destaca, na fala dos entrevistados, e que se relaciona à definição de acolhimento enquanto classificação de risco como sendo a mesma coisa que triagem. Isso pode ser tanto um reflexo das práticas tradicionais, que tinham, na triagem, um dispositivo de seleção dos que seriam atendidos, como um dos problemas ainda existentes quanto à referência entre os níveis de atenção. Essa realidade, presente ainda hoje no dia a dia dos Centros de Saúde da Família (CSFs), acaba por conceder um caráter realmente de seleção à técnica de classificação de risco, ou seja, são escolhidos aqueles casos para os quais o serviço pode dar uma resposta, sendo encaminhados, sem esperança de retorno, aqueles que necessitam de uma atenção mais especializada. Contudo, é necessário reconhecer, também, que o acolhimento, enquanto ferramenta tecnológica de intervenção, pautado em uma busca pela universalidade do acesso e na avaliação de risco com definição de prioridades, já representa um importante avanço no sentido da humanização da atenção. Ao voltarmos um pouco na história, na maior parte dos antigos postos de saúde encontrava-se a precária situação do acesso organizado burocraticamente a partir das filas por ordem de chegada, que privilegiavam não aqueles que necessitavam, de forma mais urgente, de assistência, mas os que se mostravam mais resistentes ou aqueles que conseguiam comprar uma ficha - como lembra o entrevistado a seguir: “Quem trabalhava antes de quando começou o acolhimento via, tinha aquela velha história, de pedra, de venda de ficha [ ...] Aí, quem chegava de madrugada, era quem tava na frente e então pegava as primeiras vagas e o resto ficava para depois. Aí nunca tinha vaga para ninguém, a agenda sempre cheia, e assim não. Você vai na segunda, se o caso tiver grave, é agendado na segunda, se não é, fica pro final da semana”. (E1)

Outro ponto importante percebido ainda é que o acolhimento, enquanto técnica de avaliação e classificação de risco, representa uma prática recente dentro do SUS e, como tal, ainda não conseguiu se organizar em todos os CSFs da mesma forma, o que tem gerado, na prática, certos pontos de tensão, necessitando ainda de alguns ajustes. De acordo com os profissionais entrevistados, tais dificuldades, geralmente, encontram-se relacionadas: à grande demanda, à falta de um lugar adequado para a realização dos exames de classificação de necessidade, e à própria técnica em si, que precisa ser adaptada a cada realidade. “Nesse posto não tem acolhimento porque a população dele é gigantesca, são quase 100.000 habitantes”. (E5) “A gente quer mudar a metodologia agora do acolhimento [...] A nossa marcação de consulta está um pouco estressante para nós profissionais. A triagem toma muito tempo porque você examina 30 pessoas numa manhã e ali você explica as coisas, você termina umas nove, nove e meia e, depois, ainda tem os pacientes para atender [...] E aí, com a mudança que a gente quer fazer, a gente quer tirar esse acolhimento diário”. (E15)

Por se encontrar ainda em fase inicial, esse processo de acolhimento, nos CSFs visitados, tem produzido ruídos que se manifestam no meio da relação entre profissional e usuário. A técnica do acolhimento tem gerado, por exemplo, a sobrecarga de trabalho para os odontólogos, já que estes 192

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precisam dar conta dos usuários agendados, das urgências, além de realizarem a classificação de risco dos usuários que chegam à unidade de saúde. Fora isso, tem sido também fonte de insatisfação do usuário, com o processo de trabalho, a organização da demanda realizada pela equipe e consequente falta de acesso ao serviço. Tal situação é comentada no documento Acolhimento com classificação de risco da PNH (Brasil, 2004b), quando esse se refere aos questionamentos que podem surgir por usuários que se sentiriam prejudicados dentro dessa lógica de organização do sistema, que busca priorizar quem apresenta uma maior classificação de risco. Como solução para esse problema, o documento sugere a explicação desse dispositivo para os usuários na sala de espera, ou seja, ele prevê a utilização do próprio dispositivo como solução, já que esta técnica deve lançar mão da escuta e do diálogo com o usuário na tentativa de fazê-lo compreender a nova proposta de organização da demanda. Contudo, essa solução é insuficiente para responder à falta efetiva do sistema em atender a todos, conforme definido constitucionalmente, pois o número de equipes de saúde bucal é insuficiente para atender à população adscrita e àquela de áreas descobertas. Dessa maneira, em determinados momentos, é necessário entender que os ruídos provenientes dos momentos de tensão, vividos por profissionais e usuários, são pistas importantes a respeito de como se encontra organizado o processo de trabalho em saúde. Sendo assim, devem ser avaliados para que novos rumos possam ser pensados; lembrando-se, ainda, que a solução nem sempre é simples e, em diversos momentos, escapa à capacidade do profissional de resolver o problema, pois este, em várias situações, corresponde a dificuldades e desafios estruturais do próprio sistema de saúde. Diante dessa situação, vale destacar a presença desses processos ruidosos nos serviços de saúde, pois eles surgem e operam em busca de novos caminhos, como linhas de fuga do que se encontra estabelecido. Isto é, caso o modelo assistencial não permita a expressão de um desses sujeitos, sempre aparecerão, de alguma forma, certos ruídos, representados tantas vezes por fissuras ou disfunções no processo de trabalho, que devem ser percebidos pelo profissional e pelos gestores, abrindo possibilidades para uma nova forma de gerir e operar o trabalho em saúde (Merhy, 2004). Precisa-se, então, tomar cuidado para que o dispositivo do acolhimento venha a atuar como meio de escuta e diálogo entre os sujeitos, e não como instrumento silenciador de uma situação que requer mudanças. O profissional também não deve querer exercer o papel de “disciplinador” de certas condutas dos usuários, mas deve, sim, tomar consciência dos desafios existentes e de seu importante papel como transformador dessa realidade. Diante disso, confirma-se a necessidade de o acolhimento ser entendido para além da técnica de classificação de risco, sendo capaz, também, de fazer um reconhecimento das sinuosidades tensionais, presentes nos vários momentos de encontro entre profissionais da saúde e usuários. Ele deve ser capaz de estabelecer novas comunicações que, por sua vez, sejam capazes de produzir técnicas terapêuticas centradas no sujeito que demanda por cuidado (Santos, 2005). Para a qualificação da escuta e aplicação da classificação de risco, foram realizados alguns cursos de capacitação no que se refere à PNH, promovidos pela secretaria municipal de saúde de Fortaleza. Esse processo iniciou-se com o Curso de Extensão Universitária Fortaleza HumanizaSUS, realizado em duas etapas. Após, aconteceram oficinas sobre o acolhimento nas regionais que compõem o município de Fortaleza, além de outros encontros realizados em alguns centros de saúde, como destaca o entrevistado: “Os cursos falam muito no acolhimento, em relação a humanização. Foi feito em todas as unidades, para mostrar o que é o acolhimento, que tem que tratar bem [...]. É batido muito nessa tecla do acolhimento. E o acolhimento é toda hora”. (E15)

Sobre esse assunto, percebe-se que a visão mais ampla do acolhimento - como diretriz que deve estar presente em todos os momentos dos processos de saúde, produzindo escuta e diálogo entre profissional e usuário - também se faz presente nos cursos de capacitação oferecidos. Sendo assim, apoiados pelos documentos do próprio MS, que tratam sobre o acolhimento (Brasil, 2008a; 2004b) e que abordam o seu caráter sistemático enquanto técnica constituinte do processo de trabalho em saúde, sugere-se que uma possível explicação para a maior presença desse sentido, relacionado à organização da demanda, em detrimento do outro, relacionado a uma postura de escuta e diálogo, na fala dos profissionais, seja a necessidade de sistematização de atividades para sua concretização. Ou seja, pela preocupação do cirurgião-dentista em apreender esse processo e por este COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.187-98, jan./mar. 2011

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mesmo se referir a um dos pontos de maior conflito dentro do CSF, associado diretamente ao acesso do usuário ao serviço de saúde, este profissional acaba por centrar suas colocações e atenções no conceito restrito do acolhimento como classificação de risco. Assim como o acolhimento, o vínculo é outra tecnologia leve importante dentro da prática do PSF e que tem contribuído para a mudança do modelo assistencial, não mais centrado na doença, mas no sujeito. Dessa forma, embora a implantação do PSF seja ainda um processo em construção - até mesmo porque em fase de recente implantação na história do sistema de saúde - pode-se reconhecer, entretanto, que certo vínculo começa a ser construído na realidade das ESBs implantadas em Fortaleza. Essa percepção advém do que foi observado nas entrevistas realizadas e que apontam para diferentes enfoques em relação a este tema: “Tem casos de família que a gente sabe onde mora, sabe os problemas, problema com o marido, problema de saúde, uma dificuldade financeira que às vezes dificulta no tratamento ser positivo, então a gente tem que conhecer todas essas dificuldades para poder saber a realidade do nosso paciente”. (E11)

No primeiro enfoque, apresentado pelo entrevistado onze, o vínculo associa-se a um olhar mais amplo e integral do problema relatado pelo usuário, considerando, para isso, diversos aspectos que podem influir no processo saúde-doença-cuidado. Essa visão se faz possível a partir de uma maior aproximação que esse profissional parece estabelecer com o usuário. Neste sentido, Santos (2005, p.39) defende a necessidade do contato íntimo do profissional de saúde com o cotidiano das pessoas, a partir de uma clínica que vá além da unidade de saúde, “buscando conhecer e compreender o indivíduo, a família e a comunidade, no espaço concreto de suas relações”. A partir dessa discussão, toca-se aqui em outro ponto importante e correspondente ao segundo enfoque, encontrado na fala dos entrevistados, sobre o vínculo, no que se refere a este como uma relação de amizade que se constrói entre os sujeitos envolvidos no processo terapêutico. “Eu sei hoje o nome dos meus pacientes todos, quase todos. Sei os problemas deles, não só odontológicos, sei da vida deles [...] eu tento ser o mais humano possível [...] Trato eles como fosse meus colegas, meus amigos. Converso, falo da vida com todos”. (E7)

Neste enfoque, fica claro também, em relação ao vínculo, a importância dada pelo profissional à questão da pessoalidade presente na relação entre ele e o usuário. Pessoalidade esta marcada pelo conhecimento tanto do nome de cada pessoa, como também dos problemas de cada uma. Outro importante e último enfoque encontrado é aquele que associa diretamente o vínculo à continuidade do tratamento e à relação de confiança criada entre profissional e usuário. “Esse paciente é sempre acompanhado, a gente tá sempre desenvolvendo atividades com ele, tanto clinica como coletiva [...] Ele passa a confiar mais naquilo em que você está dizendo [...] assim, quando ele recebe alta clinica, ele tem a certeza de que, daqui a seis meses, vai tá retornando pra gente. Então, ele fica sendo acompanhado pelo mesmo profissional. Eu acho que isso é muito importante para a questão da confiança”. (E9)

O usuário não vai mais para qualquer profissional, mas para aquele que ele já conhece e confia. Nesse sentido, Gomes e Pinheiro (2005) acrescentam que o vínculo tem a capacidade de atuar no desenvolvimento de uma responsabilização e compromisso da equipe/profissional com a comunidade/ usuário, através dos quais se dão relações de troca e confiança. Para a efetivação desta nova proposta trazida pelo PSF, entretanto, uma importante dificuldade se apresenta, segundo os entrevistados, referente ao número de pessoas vinculadas a cada equipe de saúde bucal. Fica evidente que a grande demanda tem dificultado a criação do vínculo entre profissional e usuário. Os profissionais entrevistados deixam claro que nem sempre é possível reconhecer cada pessoa pelo nome ou reconhecer a fisionomia dela, sendo mais fácil, em muitos momentos, reconhecer

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as condições bucais de saúde ou doença, fato que nos relembra que a relação estabelecida pelo odontólogo nem sempre foi com um sujeito, mas apenas com os dentes deste. “Não é o ideal porque ainda não é aquela coisa que a gente reconhece a pessoa pelo nome, às vezes reconhece quando olha a boca é que lembra “ah, você já veio aqui”, por conta da quantidade de pessoas”. (E12)

Discutidos, assim, os enfoques e dificuldades referentes ao estabelecimento do vínculo, cabe aqui a análise, ainda, de um instrumento de destaque dentro da prática do PSF, que são as visitas domiciliares, importante meio de aproximação do profissional com a realidade vivenciada pelo usuário, bem como, consequentemente, de construção dessa relação de amizade e confiança baseada no vínculo. Nesse sentido, vale ressaltar o que nos coloca a Portaria n.267 (Brasil, 2001), quando define, como uma das atribuições comuns a todos os profissionais de saúde bucal do PSF, a realização das visitas domiciliares. Porém, na realidade das ESBs do município de Fortaleza, não se percebe uma priorização desse instrumento. Este fato se deve, segundo relatado nas entrevistas, tanto à infraestrutura, no que se refere à falta de transporte - pois a realidade da maioria dos PSF’s é a de somente um carro para toda a equipe, o que faz com que nem sempre tenha vaga para o odontólogo -, como também à organização do trabalho do cirurgião-dentista dentro dos CSFs. A falta de tempo para outras atividades, além da clínica, devido à grande demanda existente e ao pequeno número de profissionais contratados, tem feito com que o cirurgião-dentista concentre, ainda, suas ações somente no consultório odontológico, o que tem dificultado a construção do vínculo, que, por sua vez, poderia ser mais facilmente estabelecido em outros espaços, como por meio das visitas domiciliares. “Antes do concurso, que a gente implantou o PSF, eu tive uma facilidade maior com a criação desse vinculo. Hoje em dia não, como tem a clinica, você tem essa criação de vinculo, mas é mais lento. Por exemplo, hoje eu não vou te dizer que eu conheço todos os meus pacientes da área porque eu não conheço [...] Antes do concurso, era uma cadeira para dois dentistas, então tinha muito mais tempo para fazer outras atividades, outros grupos, de fazer visita”. (E8)

Diante desta realidade, vale lembrar o que nos diz Silveira Filho (2002), ao afirmar que o vínculo se estabelece a partir do acompanhamento das famílias, tendo a visita, para isso, um valor tão grande quanto o diagnóstico clínico de uma determinada patologia, permitindo ações tanto de promoção, prevenção, tratamento, como também de suporte às mudanças comportamentais na família. Apesar das dificuldades, porém, não se pode deixar de registrar que o PSF fortaleceu a importância do vínculo como instrumento facilitador das relações e do próprio processo de trabalho em cada CSF visitado, pois, embora não podendo identificar uma mesma importância conferida à questão do vínculo por parte de todos os cirurgiões-dentistas entrevistados, percebe-se já uma maior presença desse tema nas falas e nas discussões trazidas por esse profissional. Acreditamos que só podemos transformar o processo de produção da saúde se o centrarmos no sujeito. O acolhimento e o vínculo constituem, então, importantes instrumentos na mudança desse olhar que, por tanto tempo, se centrou somente no processo patológico da doença, esquecendo o sujeito e outros fatores, como os psicossociais, tão importantes na determinação do diagnóstico e plano terapêutico.

Considerações finais As tecnologias leves constituem instrumento fundamental para transformação das práticas em saúde, tantas vezes centradas na doença e no aparato tecnológico de equipamentos e saberes especializados que prometiam a cura sem considerar, entretanto, o sujeito. Ou seja, o mecanismo e o processo terapêutico adotados eram iguais para todas as pessoas que possuíam o mesmo diagnóstico,

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independente do contexto social em que estavam inseridas e sem se considerarem os dispositivos relacionais que poderiam mediar todo planejamento e execução dos atos em saúde. O PSF, nesse sentido, apresenta-se como uma estratégia que possibilita um maior desenvolvimento e atuação dessas tecnologias leves, já que se propõe a desenvolver um trabalho mais próximo à comunidade e à família. Dessa forma, percebe-se que, na tentativa de melhor adequar seu trabalho ao proposto pelo PSF, o odontólogo, aos poucos, tem buscado fazer maior uso, em sua prática, de tais tecnologias, como o acolhimento e o vínculo, dando, assim, uma maior importância à construção da relação entre ele e o usuário do sistema. Entretanto, na fala dos entrevistados, identifica-se que o acolhimento apresenta-se mais relacionado como uma primeira etapa de organização do processo de trabalho no PSF, sendo associado, em muitos momentos, com a ideia de triagem. O acolhimento, de acordo com esse entendimento, aparece como prática ainda nova e que tem se estruturado de forma diferente nas diversas unidades de saúde, gerando ruídos e descontentamento por parte de profissionais e usuários. Enquanto isso, a concepção mais ampla do acolhimento, associada a uma atitude e postura de escuta, não se apresenta de forma tão marcante nas falas dos entrevistados, encontrando-se, contudo, essa ideia relacionada à questão do vínculo. Este, por sua vez, possui também outros enfoques, entre os entrevistados, relacionados à questão da amizade estabelecida entre profissional e usuário e a relação de confiança estabelecida entre esses sujeitos, importante na continuidade do tratamento. Os dois conceitos, do acolhimento e do vínculo, são complementares e acredita-se, por isso, que, embora a visão sobre o primeiro precise ainda ser ampliada junto aos cirurgiões-dentistas entrevistados, a preocupação crescente com a construção do vínculo tem ajudado a transformar, aos poucos, a realidade antes existente no sistema de saúde, representada pela distância entre usuário e profissional. As mudanças precisam ser comemoradas, sem, contudo, serem esquecidos os problemas que ainda se apresentam na prática dos serviços de saúde, como a grande demanda que chega, todos os dias, aos CSF’s e que tem sido responsável por importantes linhas de tensão na prática do odontólogo. A maioria das ESBs ainda é responsável por uma população grande, não conseguindo, assim, conhecer a realidade das pessoas de sua área de trabalho, nem estabelecer com elas uma verdadeira aproximação. Essa demanda tem forçado o odontólogo, ainda, a uma prática presa ao consultório, impedindo-o de utilizar outros espaços importantes, como o das visitas domiciliares. Estas, por sua vez, acontecem de forma esporádica também por outro motivo, que é o da falta de transporte. Diante de tais dificuldades, fazem-se necessários uma discussão e aprofundamento cada vez maiores sobre o assunto já que o novo modelo de assistência sugerido pelo PSF requer o uso das tecnologias leves. Dessa forma, considera-se importante reforçar o conceito do acolhimento como postura e atitude de escuta e diálogo nos cursos de capacitação da PNH, isto é, enquanto diretriz que deve perpassar todos os momentos de produção da saúde, sendo necessária, para isso, a promoção de reflexões coletivas sobre o assunto que se estendam para o dia a dia dos centros de saúde, sendo tema das rodas e dos grupos realizados. Acredita-se, também, que a inserção das visitas domiciliares, como uma atividade mais frequente do cirurgião-dentista no PSF, seria um instrumento importante na aproximação deste sujeito com a realidade do usuário e da comunidade. Porém, para isso, faz-se necessário um maior número de carros para o transporte dos profissionais e uma melhor divisão do trabalho do cirurgião-dentista. Já que, até então, muito se apostou na ação das tecnologias duras e leve-duras para a construção do modelo biomédico, conclui-se, com base nas ideias de Merhy, que um grande campo ainda existe, em termos de tecnologias leves ou relacionais, a ser explorado como potencial para a mudança do processo de trabalho na saúde, passando este de uma posição centrada em procedimentos a uma outra centrada no usuário.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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PINHEIRO, P.M.; OLIVEIRA, L.C. La contribución de la acogida y del vínculo de humanización de la práctica del cirujano dentista en el Programa Salud de la Familia. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.187-98, jan./mar. 2011. Se objetiva comprender como se emplean las tecnologías leves de la acogida y vínculo en la práctica del dentista, en el Programa Salud de la Familia del municipio de Fortaleza, del estado de Ceará, Brasil, en el sentido de la construcción del cuidado humanizado. Se trata de investigación cualitativa realizada con 16 cirujanos dentistas utilizando, para la colecta de datos, entrevista semi-estructurada y observación simple y, para análisis de los datos, un análisis de contenido. Los resultados muestran al dentista haciendo mayor uso de tales tecnologías en su práctica; la acogida, sin embargo, se identifica como primera etapa de organización de la demanda más que como actitud de escucha, una postura más asociada al vínculo. La gran demanda ha contribuido con líneas de tensión entre dentista y usuario, forzando al odontólogo a una práctica todavía sujeta al consultorio. Nuevos espacios serían importantes en la utilización de estas tecnologías ya que consideran, más allá de la enfermedad, al indivíduo.

Palabras clave: Acogida. Vínculo. Humanización. Cirujano dentista. Recebido em 22/01/10. Aprovado em 21/07/10.

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Development of interprofessional collaborative practices within undergraduate programs on healthcare: case study on the Family Health Alliance in Fortaleza (Ceará, Brazil)* Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto1 Francisco Antonio Loiola2 Luiz Odorico Monteiro de Andrade3 Ana Ester Maria Melo Moreira4 Caio Garcia Correia de Sá Cavalcanti5 Carlos André Moura Arruda6 André Luiz Façanha da Silva7

BARRETO, M.C.H.C. et al. O desenvolvimento da prática de colaboração interprofissional na graduação em saúde: estudo do caso da Liga de Saúde da Família em Fortaleza (Ceará, Brasil). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.199-211, jan./mar. 2011. The authors present the dynamics of mentoring work within the Family Health Alliance (FHA), an extension program that fosters interprofessional collaboration from a social learning perspective. The objective of this study was to describe and evaluate the program dynamics and their repercussions among the participants. The context, basis, objectives and organization of work situations for students from six different undergraduate programs on health sciences were analyzed by means of an exploratory development study conducted between January and December 2008. In the first phase, the participants were two teams consisting of one mentor and four students. In the second phase, there were three mentors and eight students. Thematic analysis on the students’ discourse emphasized their enthusiasm about the possibility of interprofessional collaboration as an instrument for change. The professional mentors were found to have developed a better understanding of their role and greater teaching awareness.

Os autores apresentam a dinâmica de trabalho dos mentores no interior da Liga de Saúde da Família, um programa de extensão que estimula a colaboração interprofissional, na perspectiva da aprendizagem social. O objetivo do estudo foi descrever e analisar a dinâmica do programa e suas repercussões entre os participantes. O contexto, os fundamentos, objetivos e a organização de situações de trabalho para estudantes de seis diferentes cursos de graduação em ciências da saúde são analisados por meio de uma pesquisa de desenvolvimento do objeto, exploratória, realizada de janeiro a dezembro de 2008. Na primeira fase participaram duas equipes com um mentor e quatro estudantes. Na segunda fase três mentores e oito estudantes. A análise temática do discurso dos estudantes ressaltou seu entusiasmo com as possibilidades da colaboração interprofissional como um instrumento de mudança. Dos mentores profissionais é possível apreender uma melhor compreensão do seu papel e uma maior sensibilidade pedagógica.

Keywords: Interprofessional collaborative practices. Interdisciplinarity. Family health.

Palavras-chave: Práticas colaborativas interprofissionais. Interdisciplinaridade. Saúde da família.

Unpublished article based on a study of the development of the object carried out as part of UFC extension project in partnership with the local Health Department of the City of Fortaleza and a postdoctoral internship funded by the Coordination for Improvement of Higher Education (Capes). Approved by UFC Research Ethics Committee. 1,3 Federal University of Ceará Medical School on Sobral. Leonardo Mota Street, 2815, apt. 802, Fortaleza, Ce, Brasil. 60.170.041. ivana_barreto@ufc.br 2 Faculté des Sciences de l’Éducation, Université de Montréal, Quebéc, Canada. 4 Federal University of Ceará. 5 Master’s Degree Program in Public Health, Federal University of Ceará. 6 Multiprofessional Residence in Family and Community Health of Municipal Health Secretary of Fortaleza, Ceará. 7 Family Health Residence Program, School of Family Health of Sobral, Ceará. *

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Introduction In Brazil, recent ministerial policies for training human resources in health (Brasil, 2001) have introduced a renewed vision for training for future health professionals and recommended the adoption of new interdisciplinary teaching guidelines focused on interprofessional collaboration. Since 2006, in line with these guidelines, for the implementation of new practices, a new training space has been created at the Federal University of Ceará in partnership with the Local Health Department of the City of Fortaleza called Family Health Alliance (FHA). The FHA is a complementary training program that provides undergraduate students interdisciplinary general education and allows them to have an openminded approach to interprofessional collaboration. Described as a community service for institutional and interfaculty integration, the FHA came into being as a response to the need of promoting and strengthening interprofessional collaborative practices in primary health care. In general, in the performance of their duties, teachers responsible for training projects with difficulty establish links among various disciplines of knowledge, learning contents, and teaching strategies to develop significant teaching-learning situations. Furthermore, they perpetuate a traditional teaching practice that they well know and relegate students to a performer role. In the FHA, a team of teachers and professionals become mentors and work from the perspective of interprofessional collaborative practices (Soubhi, 2008; Andrade, 2004; Rege Colet, 2002). The mentoring relationship focuses on experiential learning in a context of multiple roles and functions. It is a support method that focuses on learning in context and interprofessional and interdisciplinary collaboration. But what is mentoring in the FHA? What are the mentoring characteristics applied to training for future health professionals from a perspective of interdisciplinary collaborative learning? What is the impact of the mentoring relationship on the development of interdisciplinary practices? How do students develop interdisciplinary collaboration skills within the FHA? In line with the subject of the present issue, we present the context in which this experience has been developed and the rationale and dynamics that motivated mentoring activities within a learning context and interprofessional and interdisciplinary collaboration. A research study associated with this educational approach was started in the beginning of 2008.

The research context In the wake of the recent reform of higher education in Brazil, several universities have been brought to develop new health programs from a professional competence perspective. This new reference, implemented by the Brazilian Ministry of Education together with institutions representing health professionals8, has made training programs aligned with a competency-based approach. The competency-based approach is an approach to education based on the adoption of problem-based learning centered on a concept of comprehensive health (Brasil, 2001). This new view is consistent with a collective perspective set forth in the 1988 Brazilian Constitution, which has recognized the public nature of health services and established the principles of universality and equality (Brasil, 1988). It has recognized the State’s obligation to provide comprehensive health care and support for training human resources required in the public health system. 200

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8 Brazilian Association of Medical Education, Brazilian Association of Nursing, Brazilian Association of Dentistry, Federal Council of Medicine, Federal Council of Nursing, Federal Council of Dentistry, Federal Council of Pharmacy, Federal Council of Psychology, Federal Council of Physiotherapy.


BARRETO, M.C.H.C. et al.

9 It is an organizational model of primary health care that was started in Brazil 15 years ago.

10 Community health workers perform health education activities and promote health in their own communities.

artigos

Indeed, twenty years ago, Brazil put into practice the reform of its social security system, particularly implementing changes in the public health system. The health reform was the result of a social movement supported by health professionals, university teachers, students, union workers, and politicians. It has decentralized public health management. The National Unified Health System (SUS) has been created and is characterized by decentralization with a single administration at each level of the political system. In addition, primary care has been strengthened through the creation of the Family Health Program on 19949. In 2007 the Ministry of Health officially replaced the term Family Health Program for Family Health Strategy (FHS), whereas SUS is a national health system based on Primary Health Care (PHC) and the FHS was adopted as a priority in organization of PHC ( Brasil, 2007). The FHS is a doorway for families and individuals allowing them access to the health system. FHS coordinates primary care with specially services. Its basic structure consists of an interdisciplinary family health team whose mission is to provide primary health care to eight hundred families in a given area (Andrade, Barreto, Bezerra, 2006). Each team consists of one physician, one nurse, dentists, nursing assistants and six to ten community health workers (CHWs)10. Currently there are 29,900 FHS teams distributed among 5,241 Brazilian municipalities (Brasil, 2009). FHS implementation, however, revealed that most providers in the interdisciplinary family health teams do not have a broad vision of social determinants of health and often do not see health promotion as their responsibility (Almeida, Mishima, 2001; Campos, Belisario, 2001; Ceccim 2004). Moreover, most health undergraduate programs at medical, dental and nursing schools prioritize specialized training scenarios and focus on a biomedical approach in a hospital setting. But how to promote reflective professional training focused on the development of interprofessional collaboration competence but not limited to a biomedical approach and to the grouping of specialized tasks? What are the strategies proposed to meet the challenge of an authentic contextualized training supported by a mentor?

An educational approach for learning interprofessional collaborative practices in health The Federal University of Ceará has encouraged the introduction of new educational initiatives in undergraduate programs. The FHA is a program of complementary training carried out in six different undergraduate programs in health (medicine, nursing, psychology, physical education, pharmacy and dental care). The main purpose of FHA is to provide students an interdisciplinary general education and allow them to have an open–minded approach to collaboration within interprofessional teams. Our first challenge is to develop a strategy that focuses on learning in context and interprofessional and interdisciplinary collaboration. For that, we have to apply a mentoring method to test a new training culture in context by the implementation of integrated training. However, the interprofessional work within the FHA groups people who work with different paradigms and thus different concepts of knowledge and training.

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Mentors The FHA consists of a team of academic and professional mentors. The academic mentors are six teachers affiliated to the Medical School (Department of Community Health), Schools of Pharmacy, Nursing and Dentistry, and the Department of Psychology and Physical Education at the Federal University of Ceará. Mentors are responsible for planning education together with interprofessional teams and supervision of six field mentors. Field mentors are health providers (doctors, psychologists, physical therapists, nurses, physical educators) from the city’s local health department. These mentors are directly responsible for supporting interdisciplinary teams of students in activities designed to develop interprofessional collaborative health practices through professional contextualized learning experiences. Field mentors guide students during FHA activities conducted at community health centers and in the community, i.e., in situations which are or may be part of professional activities and present a challenge to students. The role of FHA professional mentors is not limited to the health unit; they also work in the community by facilitating the community diagnosis process and establishing links among students, organizations, and community leaders. Indeed, mentors follow a scaffolding strategy in an expanded area. They are also involved in student selection and theory discussions during meetings with students.

FHA dynamics FHA activities are developed over a 10-month period. However, before being placed in a contextualized professional situation as a collective challenge, students are invited to attend a preparatory seminar on a common field of knowledge, that is, the study of transversal themes whose content is effectively linked to all professional fields of interest of the participating students. The themes that make up this common field of knowledge include: public health, health promotion, primary health care, family health and social determinants of health in Brazil and worldwide. This seminar is an intensive week-long session held as often as possible with the entire group, but can sometimes be attended by subgroups or teams. After this first collaborative activity, students are asked to form interprofessional teams of five to eight members. Each team is lead by a mentor from the field of interest whose primary role is to support it. Mentors guide students in their exploration and use of various resources in their interactions, thoughts, motivations, and experiences. Each team has to select a district to be visited11. The purpose of this first visit is to establish contact with FHS teams and community representatives and then each community is visited by the team once a week for two or three months for community integration (Gois, 2008, 1993). The purpose of this approach is to know and identify problems specific to the district involving collective challenges especially regarding public health issues. Lead by their mentor the students work in close collaboration with the local family health team. Each interprofessional team identifies problems to be ideally faced with the collaboration of the community. Each team, together with the community, selects a problem that will be investigated for further understanding it. The teams are also asked to conduct documented research studies to explore the resources available other than FHA training activities. This activity is intended to the production of a report by each interprofessional team to be submitted to the collaborators (i.e., community representatives and 202

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The coordination center of the district’s health units is contacted before the first visit and it is invited to participate in the FHA project.

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local FHA team members). This report is an instrument for addressing local living conditions and initiating a discussion on the identified needs. Finally the next activity is a one-day symposium attended by all interprofessional teams, mentors, partners and community representatives. In the symposium each interprofessional team have to present a work plan in line with their report and developed together with the FHS team. The work plan has to include steps to thoroughly address the target issue with special emphasis given to interprofessional collaboration among team members to be implemented with community involvement.

Rationale for FHA mentoring approach in contextualized professional situations The rationale for FHA mentoring in contextualized professional situations is based on the social perspective of learning developed by Wenger (1998). This concept of learning in terms of social participation highlights the importance of practice (“how”) in the process of building an identity. FHA training approach focusing on learning in context and interprofessional and interdisciplinary collaboration involves taking both a theoretical and practical view for socially shared learning. But what significance could be attached to different disciplinary discourses and contrasting professional cultures of health interventions? As Hasni and Lenoir (2000) noted, an interdisciplinary approach is not an easy one, and its success requires taking into account several relevant factors from an epistemological dimension and the interaction of different individuals involved in team work. According to Andrade et al. (2004), interprofessionality requires a paradigm shift as interprofessional practices include innovative components with new values, codes of conduct and ways of working. This author claims that even today the multiprofessional health care model is what he calls a “model of parallel small houses.” Figure 1 shows that health providers share the same environment and work issues, but remain isolated in their specific knowledge and methods and maintain merely formal communication.

Figure 1. Model of tradicional multiprofessional work or “model of parallel small houses” Source: Adapted from Andrade et al. (2004).

Inspired by Campos’ epistemological studies (2000; 1998), Andrade et al. (2004) proposed a model of interdisciplinary work taking into account relational and collaborative dimensions from a common field of knowledge and professional practices in family health (see Figure 2). In the FHA mentors take an approach of an interprofessional work model based on the assumption that knowledge centered on a discipline is not sufficient to find appropriate solutions to problems and COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.199-211, jan./mar. 2011

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relational and collaborative dimensions from a common field of knowledge and interprofessional practices have to be taken into account. It is through problem solving that students from several different disciplines centered on different paradigms, but referring to a common field of knowledge, come together in an interdisciplinary perspective to move from theory to action.

Y AC RM A PH

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PSYCHOLOGY

COMMON FIELD OF NEW PRACTICES DE NT IST RY

Figure 2. Model of interprofessional collaboration in the field of family health Source: Adapted from Andrade et al. (2004).

In the FHA, as students are faced with problems, challenges, demands, tasks, or requirements, they are placed into a professional contextualized situation. As we mentioned before, professional contextualized situations are the center of FHA approach. These challenging situations require solving problems. The role of mentoring in this context becomes central for the proposed interventions are intended to help students develop strategies for collaboration in problem solving relying on both observation and guided structured application. Students are encouraged, regardless of their discipline of interest, to follow an interprofessional practice that is less fragmented and more unified (D’amour, Oandasan, 2005). By guiding learners in their exploration and exploitation of various resources in their different interactions, field mentors help students to practice in a more collaborative and integrated setting while planning and implementing joint projects. Collaboration becomes thus central to building up relationships, sharing knowledge, and holding consultations on issues and actions.

Methodological considerations This research study is part of what Van der Maren (1996) describes as a research focused on the development of an object. As Richey, Klein and Nelson (2004, p.1099) proposed, it may take the form of a “case study involving a retrospective analysis” of the process. According to Van der Maren (1996), research can take three forms: concept development, development of an object or tool, and the development or improvement of personal skills as professional tools. Our purpose in the present study was to investigate the dynamics of educational mentoring within the FHA and the development of interprofessional collaborative practices. A qualitative study was conducted based on an interpretative paradigm to describe, analyze and understand the dimensions of collaborative sharing of professional expertise. Thus, the objective was to understand it from the perspective of people involved in the FHA rather than analyzing it for statistical or generalization considerations. 204

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Participants Exploratory and descriptive study conducted in a convenience sample. The first phase involved two interprofessional teams including a mentor and four students. The second phase involved two groups including three mentors and eight students from six different undergraduate programs in health (medicine, pharmacy, dentistry, psychology, physical education and nursing). The study was approved by the Research Ethics Committee of the Federal University of Ceará and all students and mentors have signed a consent form.

Data collection and analysis Data was collected between January and December 2008. In the first phase the researchers observed and recorded all activities carried out by two teams in health services and the community. In the second phase of the study focus group consisting of eight students and three mentors completed a self-administered questionnaire. The focus group discussed three main topics related to their experiences as students: a) the meaning of the FHA for their education; b) the importance of the FHA for strengthening actions in family health and primary health care; and c) teamwork in the FHA. The following main subjects were addressed in the self-administered questionnaire of mentors: a) their experience as a FHA mentors; b) the mentor’s role in the scaffolding process; c) the impact of prior knowledge (disciplinary knowledge); d) the difficulties they encountered; e) new knowledge gained in the FHA; and f) the impact of the FHA on the development of collaborative practices within interprofessional teams. After full transcription of data collected through questionnaires and focus group discussions, we conducted a thematic analysis (Paillé, Mucchielli, 2005) to better understand the reality as it emerges from the participants’ answers and discourses. For data analysis, we first established a coding grid for the study objectives and issues described above. The coding grid was used to encode the entire text to form the basis of the categorical structure built from themes. During the codification process, we identified recurrences or clusters that helped making some new findings.

Professional situations and the development of interprofessional collaborative practices Let us briefly describe two professional situations where students from different disciplines, but brought together by the principle of collaborative learning, are faced with needs, challenges, and mandates, which are or can be realistic replications of their workplace. It is in these contexts that collective action, created by the interdependence of activities, can lead to complementary professional practices.

Professional situation 1 Group 1 consisting of four members and led by a mentor had to accomplish community integration in the district of Pici in Fortaleza. After preparing and discussing a work plan, students were brought to work with the community to develop a strategy to identify key issues, and institutional resources available. Social vulnerability of the youth was identified as their main challenge. There were some major challenges to their work: the team should work with all community representatives and their work should involve negotiation and persuasion. For example, they should approach the community for their investigation and actually talk with young people exposed to real situations of social vulnerability. Students had to learn communication skills and devise strategies such as taking part in cultural events and meetings. The team also identified several organizations devoted to social work with adolescents in the neighborhood. As each organization worked independently, in collaboration with community representatives, students mapped out all social institutions in the district. A forum was then held with all COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.199-211, jan./mar. 2011

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these organizations and they finally reached an agreement to create an integrated network of social services targeted to adolescents.

Professional situation 2 An interprofessional group of students consisting of four members chose to undergo the process of community integration in the poor district of Pirambu in the city of Fortaleza. In collaboration with the FHS team and local leaders, students were able to identify serious health problems and the need for reliable data on families settled in an area where there was great risk of dengue fever. Under the mentor’s supervision, the team developed protocols to collect information on local living conditions. With the support of CHWs, students paid home visits to 600 families who were interviewed and informed on the risk of dengue fever. There were some major challenges: to develop an appropriate protocol that was realistic to local conditions; to have good communication strategies to establish a trusting relationship with families who were under stress and feeling unsafe; to respond to medical needs; to appropriately use the information collected. The data obtained on community health provided valuable input indicating the need for quick response and action. Collaboration was urgently required between all health and educational agencies directly or indirectly involved with the families. There were held discussions with local health authorities that concluded on the need to create a center for strategic information. The student team worked in collaboration with the FHS team to establish an administrative information center that eventually supported care and prevention actions.

Implementation of interprofessional collaborative practices in the Family Health Alliance in Brazil It should be noted that contextualized professional situations require problem solving. Students are encouraged, regardless of their discipline of interest, to follow an interprofessional practice that is less fragmented and more unified. But how to evaluate knowledge integration of two or more professional areas in a real context? Does the FHA organization encourage the integration across a work team conducive to effective sharing, experimentation and learning of a collaborative culture? In the next section, we examine the responses of our students and mentors for evidence of integrated knowledge, knowledge mobilizing in action context and innovative components with new values, conduct codes and ways of working together.

Mentors’ perspective: a wider learning community whose challenge is pooling learners’ knowledge When mentors were asked about their understanding of the FHA, many of them stressed the dynamics of an interprofessional approach emerging from group work. One mentor recognized that the FHA is an innovative project with an ongoing learning process. “The Alliance creates a wider learning community since all spaces are for building knowledge, and builds up links between education, research and community service”. (mentor 1)

Another mentor agreed with this same idea. For him the FHA is a reflective way to learn together and strengthen cohesion among students. “I see mentoring in the FHA project as a process to facilitate learning and move into praxis, where the mentor and students experience daily activities of health care and get familiar with community life, and reflecting about this experience based on expert concepts and personal issues”. (mentor 2) 206

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Appreciation and recognition of personal skills from an interactive perspective together with a new view of performance was also highlighted. “Mentoring in the area is a new educational activity. It is a new experience for the integration of health providers into the family health strategy. It requires a new view of performance based on the interaction with different actors from an inter-domain perspective”. (mentor 3)

The interactions with interprofessional teams and the community in work contexts creates interdependence and complementarity between disciplines and providers involved. “The FHA enables collective work with complementarity: awareness to difference, knowledge exchange, and commitment to the group. Students take a central role. It is the study of other fields of knowledge besides health, and the process of community involvement makes it possible to gain popular knowledge”. (mentor 2)

Field mentoring is an activity where practices and knowledge are under construction. Some mentors had to break with certain rigid academic standards with differentiation of professional action areas. “First, as a mentor, I came across a big challenge because my general education has been focused on clinical practice in hospital and outpatient care settings. But later the challenge became a positive experience”. (mentor 2)

The challenging and innovative nature of mentoring engendered uncertainty, but also aroused feelings of satisfaction when advances in projects were achieved by interprofessional teams. “The beginning of the project was highly experimental, built from field expertise. Over time we developed reflection paths based on concepts of education, didactics and teaching methods”. (mentor 1)

Mentors highlighted the application of general knowledge acquired during their academic training on the FHA: “The contribution of each team member was not necessarily in their specific professional field, because sometimes individual life experience contributed greatly to the team”. (mentor 3)

Students’ perspective In focus groups, we recorded the students’ perceptions about their experience in the FHA. Some recalled that in the beginning they were all interested but concerned. “[...] It is important to note that the first few weeks of work were marked by curiosity and anxiety in the group. We discovered a different reality from what we are used to as university students. Our university experience has been more theoretical, rational and less complex”. (student 2)

The exchange of ideas between mentors and their students helped reassure them about their skills and make adjustments as needed. One student said the mentor helped them better understand the importance of collaborative work:

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“With the exchange of ideas with our mentor, we could understand the process of integration as a collective effort involving both our team and the community itself”. (student 4)

Students recalled their progress regarding teamwork. They stressed the experiment was a professional trial that made them develop tolerance and the ability to listen to their colleagues. “In the FHA, at first I felt I belonged to one professional area, which was not bad. However, we realize that this apparently safe territory has its limitations as we share our commitment with students from other areas. It is a vocational trial. In this context we all make mistakes but the involvement with other people assures you much more”. (student 1) “We often want to say what we think, we believe we are right, we want to impose ourselves... In the group, while working in team, we learn a lot and each one gives his/her own opinion, and we try to reach an agreement [...] we try to reach a real consensus. It happens often”. (student 2)

The fact that each student in the FHA was from a different discipline certainly enriched interprofessional work. This pooling of knowledge helped achieving complementarity between students. Each student, influenced by the models and lingo of their field of knowledge, had the opportunity to talk about their career perspective. This student also said she felt appreciated when participating in interdisciplinary work: “[…] the most valuable aspect of this project, I believe, was the interdisciplinary one... I have already participated in other projects that were also rich in terms of theory and motivation, but there was no interdisciplinary approach. Therefore, I believe the FHA is different. Here we often talk to other students who have different views, right? We may have different ideas but we try to reach a consensus. It is often difficult but rewarding”. (student 3)

The perceived importance of experience in the FHA is also a potential source of appreciation. As this student stated, the experimental program goes beyond the formal curriculum offered in traditional programs at the university. “I think this project is very important because it provides a training program that departs from the official curriculum; it avoids the one-way exchange of ideas between the teacher and their students. Here I can see and live my vision, my analysis, the contribution of my profession in the field, to the community, to the family health program”. (student 5) “I think students who participated in this project, or, who will participate, will have an enriched and differentiated learning. When we talk with other colleagues, we can see differences in training”. (student 5)

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Conclusions The development of professional situations conducive to interprofessional collaboration is a complex challenge. The purpose of the present study was to further understand the impact of mentoring on the development of interdisciplinary practices in an authentic professional context. Traditionally, mentoring models in health in Brazil are more frequently applied in hospital settings or postgraduate programs. Mentoring by health providers carried out in the family health program in Brazilian urban areas is a recently developed activity. Another aspect to take into account in field mentoring in the FHA is the dynamic application of theory and practical knowledge of public health and primary health care for the development of basic skills in each profession. Although this exploratory study does not allow generalizations, it shows, however, the importance of considering several new thinking ways. Perceptions and feedbacks from students and mentors contributed to this exploratory research by providing input on the potential of the FHA as well as the role of mentoring in the development of collaborative practices in professional contexts. The thematic reading of students’ discourses highlighted their enthusiasm with the possibilities that collaboration can bring as an instrument of change in health. Field mentors’ discourses provided a better understanding of their role and showed better educational sensitivity regarding teaching approaches of projects and problem solving. The study also revealed that the very interaction between mentors and students, and between students and the community, is a triggering and promising component that necessarily relies on co-construction of knowledge by mentors and their students. Based on the theoretical framework of communities of practice, we can consider that this reflective process of the Family Health Alliance helped the development of a common identity, alignment and migration of students and mentors to the heart of the community of practice in family health (Wenger, 1998). Democratic internal relations and encouragement of theoretical and practice actions by students allowed them to develop their imagination and sense of belonging, two characteristics of a community of practice (Wenger, 1998). Exploring the representation students have of their own disciplinary fields is important as it affects the beliefs, intentions and practices of professional practitioners. It appears, however, that there are numerous concepts and that the representations of their integration into professional and learning activities are not consistent. Still, it is a positive aspect as this diversity of views and approaches can be used to free students and mentors from their disciplinary boundaries and foster interprofessional collaboration.

Collaborators Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto and Francisco Antonio Loiola were responsible for all stages of the production of this manuscript. Luiz Odorico Monteiro de Andrade was responsible for data analysis and text review. Ana Ester Maria Melo Moreira, Caio Garcia Correia de Sá Cavalcanti and André Luiz Façanha da Silva were responsible for the development of the research project, organization of the focus group, and text review. Carlos André Moura Arrudawas responsible for drafting the questions and coordinated the focus group with students.

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BARRETO, M.C.H.C. et al. El desarrollo de la práctica de la colaboración interprofesional en la graduación en salud: estudio del caso de la Liga de Salud de la Familia en Fortaleza (Ceará, Brasil). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.199-211, jan./mar. 2011. Los autores presentan la dinámica de trabajo de los mentores en el interior de la Liga de Salud de la Familia, un programa de extensión que estimula la colaboración inter-profesional en la perspectiva de aprendizaje social. El estudio describe y analiza la dinámica del programa y sus repercusiones entre los participantes. Contexto, fundamentos, objetivos y la organización de situaciones de trabajo para estudiantes de seis diferentes cursos de graduación en ciencias de salud se analizan por medio de una investigación de desarrollo del objeto realizada de enero a diciembre de 2008. El análisis temático del discurso de los estudiantes resalta su entusiasmo con las posibilidades de colaboración inter-profesional como un instrumento de cambio.

Palabras clave: Prácticas de colaboración de colaboración inter-profesional. Inter-disciplinaridad. Salud de la família. Recebido em 25/01/10. Aprovado em 12/08/10.

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O discurso coletivo de ex-hanseniano morador de um antigo leprosário no nordeste do Brasil * Ana Carolina Rocha Peixoto Rocha1 Fátima Luna Pinheiro Landim2 Andrea Caprara3 Ana Lefèvre4 Fernando Lefèvre5

ROCHA, A.C.R.P. et al. The collective discourse of a former Hansen’s disease patient living in an old colony in northeastern Brazil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.213-23, jan./mar. 2011. This study aimed to learn about the discourse on the life of former Hansen’s disease patients who lived in an old Hospital Colony. This qualitative study is characterized as a descriptive-exploratory research. The data were collected through semi-structured interviews with 12 subjects and were organized by means of the Collective Subject Discourse technique, which produced the following core insights: “There is a difference between how it was before and how it is now” and “For somebody left with sequels, nothing changes”. It was found that the perception of cure was controversial as some patients regarded it as a victory, that is, the fact of being free of the disease allows them to think of (re)starting their lives.

Este estudo teve como objetivo conhecer o discurso acerca da vida de ex-hansenianos residentes em um antigo hospital-colônia. De abordagem qualitativa, caracteriza-se como uma pesquisa descritivo-exploratória. Os dados foram levantados com 12 sujeitos por meio de uma entrevista semiestruturada e foram organizados pela técnica do Discurso do Sujeito Coletivo, obtendo-se as seguintes ideias centrais: “Existe uma diferença entre o antes e o que é hoje e “Para a pessoa que tem sequela, não muda nada”. Constatou-se que a percepção da cura da doença foi objeto de controvérsias, havendo os que a percebem como uma vitória, ou seja, o fato de não ter mais a doença lhes possibilita pensar em um (re)começo.

Keywords: Hansen’s disease. Leprosy. Collective Subject Discourse. Social history of the disease.

Palavras-chave: Hanseníase. Lepra. Discurso do Sujeito Coletivo. História social da doença.

* Elaborado com base em Peixoto (2008); pesquisa financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa (Funcap) e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza. 1 Doutoranda em Saúde Coletiva, Universidade Estadual do Ceará. Rua Monsenhor Bruno, 2428, apto. 202, Aldeota. Fortaleza, CE, Brasil. 60.115-191. anacarolinarochapeixoto@ yahoo.com.br 2 Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza. 3 Doutorado em Saúde Coletiva, Universidade Estadual do Ceará. 4 Doutorado em Saúde Pública, Universidade de São Paulo (USP). 5 Doutorado em Saúde Pública, USP.

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Introdução De acordo com Goffman (1988), com o tempo, a representação da lepra auferiu significados bem mais conotativos, passando a reunir mais valores do que a própria sintomatologia da doença. Em especial, esse fato ocorre pela abordagem nos textos bíblicos, que suscita pensamentos místicos acerca da doença: o termo bíblico é utilizado para denominar não só alterações na pele, mas, sobretudo, impurezas na alma, pecados morais e castigos divinos. Autores da atualidade, como Cunha (2005), Nascimento (2005), Edit (2004), Galvan (2003), Cunha (2002) e Claro (1995), que desenvolveram estudos sobre a história da hanseníase, especificamente em alguns estados brasileiros, observam que a lepra da Bíblia não pode ser comparada e/ou considerada a mesma hanseníase de hoje. Isso faz refletir acerca da existência de uma linha divisória entre estas duas doenças, marcadas por contextos sociais, históricos e culturais diversos. As representações sociais, entretanto, que avançaram pelos séculos exerceram, e ainda exercem, forte influência sobre os dois conceitos na contemporaneidade (Kovacs, Feliciano, 1997). De tal forma que, para as pessoas doentes de hanseníase submetidas ao isolamento em hospitais-colônias, é quase impossível permanecerem imunes aos preconceitos oriundos das representações, assim como das metáforas constituídas em torno da lepra (Sontag, 1984). O isolamento das pessoas com lepra é visto, pois, como fator para sustentar, e até ampliar, os mitos em torno da doença, bem como para repercussões socioculturais negativas (Goffman, 1988). A comprovação de um caráter infectocontagioso é o que faz surgir o isolamento do enfermo como medida para a extinção do mal, incentivando a adoção de um modelo de tratamento baseado no cerceamento da liberdade em grandes instituições de isolamento (Mattos, Fornazari, 2005). Esse fenômeno é também lembrado por Foucault (1999, p.175): “a lepra suscitou modelos de exclusão, os quais acabaram por instituir as formas de isolamento do doente da sociedade”. No campo da Saúde Pública, o fenômeno lepra atingiu seu ápice nas décadas de 1930 e 1940, com a criação dos hospitais-colônias (leprosários) e a instituição da campanha da “profilaxia da lepra” (Pachá, 2008). As colônias foram, então, construídas com o intuito de excluir as pessoas doentes – por meio de internamento compulsório – do convívio social, evitando endemias. Foi no ano de 1927 que o “Brasil Médico” publicou a notícia da proposta de construção de um leprosário no estado do Ceará, Brasil – com cerca de 400 hectares de terra, sendo vinte hectares construídos: 69 casas individuais, uma enfermaria masculina, uma enfermaria feminina, um pavilhão misto, e outros. Foi uma doação feita por um grande industrial, o coronel Antônio Diogo. O coronel propôs construir com até cem contos de réis e doar mais três contos mensais para sua manutenção (Barbosa, 1994). Surge, assim, em 9 de agosto do ano de 1928, a colônia Antônio Diogo. Construída no atual distrito de Antônio Diogo, município de Redenção, Ceará, em seu início, a colônia foi conhecida pela denominação de Leprosário Canafístula – expressão adotada em analogia à presença de grande quantidade de plantações de cana-de-açúcar nas suas adjacências. Quando os primeiros hansenianos chegaram às instalações da Colônia Antônio Diogo, ainda no ano de 1928, os vínculos com a sociedade que conheciam foram abruptamente desligados. O doente era obrigado a se recolher à Colônia, proibido de viver junto aos familiares e amigos, não podendo estudar ou trabalhar fora dos seus limites nem servir ao exército, tirar carteira de identidade, dentre outras convenções sociais. Em sua maioria, os moradores foram admitidos à antiga Colônia ainda quando crianças. Há relatos de pessoas que viram seus pais pela última vez quando tinham dez anos de idade. As suas redes sociais passavam, assim, por momento de desconstrução. Mas era importante iniciar novo ciclo (Maffesoli, 2005). E, uma vez cerrados os portões, essas pessoas eram obrigadas a reconstituir suas redes pessoais nos limites demarcados pelos muros da Colônia – onde brincaram, namoraram, casaram, tiveram filhos. Com o advento da cura, o isolamento e o internamento compulsório das pessoas com hanseníase passam a fazer parte do passado. Desde o início da última década do século passado, o leprosário

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passou a denominar-se Colônia Antônio Diogo. Abriram-se os portões e, juntamente com isso, veio a mudança na rotina, reconquistando, os internos, o direito: de ir e vir, de receber visitas, de retomar ou assumir papéis na sociedade e frequentar os espaços sociais em geral. Destarte, como foi no passado, nos dias atuais, a antiga Colônia continua atraindo atenções em função da hanseníase e dos hansenianos. São registrados interesses por parte de pesquisadores do mundo inteiro, que, anualmente, chegam à Colônia Antônio Diogo para realizar estudos. O lugar é muito propício ao desenvolvimento desses estudos, em função das pessoas que lá permanecem, bem como de toda a história preservada, seja na memória das pessoas, seja por meio de documentos e estruturas físicas mantidas originais até hoje. O interesse e a curiosidade despertados favorecem também visitas e doações as mais diversas: mãode-obra para o cuidado com doentes e a promoção de eventos/comemorações festivas; doações de remédios, roupas, cestas básicas, brinquedos, utensílios e aparelhos de uso doméstico. Mantém-se um calendário dominical, em função do qual as mais variadas congregações religiosas se revezam em visitas, ações e doações. É, muito provavelmente, pela presença de idosos e de dependentes funcionais que se justifica a permanência do voluntariado e das doações. Há percentual significativo de pessoas com sequelas (39,69% de toda a população) entre as que portaram hanseníase. Também existem os muito idosos e aqueles a quem à idade já se soma a demência. Para a realidade de alguns desses, a dependência instalada torna indispensável o cuidado permanente, em especial por parte de profissionais de saúde. A maioria deles não reside em casas, ocupando o pavilhão ou as enfermarias, locais onde o cuidado diário está favorecido. Do exposto, considera-se um fenômeno instigante o que está a envolver a Colônia Antônio Diogo (CAD) nos dias atuais: mesmo com os portões do antigo “leprosário” abertos, sofrem as pessoas de estímulos tais (intrínsecos e extrínsecos a elas) que não lhes permitem afastar-se e, muito menos, ir embora. Ao contrário, optam pelo antigo espaço de reclusão, mesmo desejando e mantendo contato com as pessoas de fora daquela comunidade a que passaram a “pertencer”. Há os que, em vez de retornarem às suas residências, ao convívio da família e dos antigos vizinhos, foram buscar lá fora seus familiares, trazendo-os para morarem junto a eles. Essa prática cresceu em tais proporções que, na atualidade, mais da metade das pessoas da colônia nunca portaram a doença. São filhos, netos, esposas, agregados de ex-hansenianos que adotaram para si o estilo de vida característico dos moradores da CAD – mesmo não carregando consigo o histórico da hanseníase (que fala de uma dívida social para com os que foram excluídos), vivem das aposentadorias e pensões asseguradas aos seus pais e avós, das concessões governamentais, da caridade, das doações e ações de voluntários. Percebe-se que, enquanto os olhares de fora (visitantes e pesquisadores que frequentam o lugar, por exemplo) são direcionados para sensibilizar e aderir aos atos de caridade e escrever teses sobre a necessidade de se “acabar com o estigma e o preconceito”, a pessoa dentro da CAD parece ter um movimento contrário, que é o de manter viva a sua história, assumir essa identidade, afirmar-se hanseniano, dependente (portanto) e, com isso, deixar clara a demarcação, inclusive, do espaço físico conquistado (a Colônia), separando-os, mesmo que simbolicamente, do resto da sociedade. Os fatos mencionados despertaram o interesse de estudar a atitude desses atores sociais, ficando, assim, posto um desafio epistemológico: penetrar o cerne da forma de socialidade nascente e tomar uma atitude diante dessa nova relação com os outros; o que, nos dias de hoje, Maffesoli (2005) atualiza como se tratando de algo que desarruma os modos de pensar mais tradicionais. A liberdade de atitude, todavia, reclama uma tomada de distância em relação aos sistemas causais mais simplistas, para bem captar a realidade. É necessário, ainda, não continuar prisioneiro dos metadiscursos ou das certezas sistemáticas e apriorísticas, passando a investigar a rede de narrativas como campo de construção dos sentidos comuns a uma rede social mais ampla. Nesse campo, não se pode esquecer Sluzki (1997) quando escreve ser o foco da atenção o compartilhamento de histórias, descrições, valores e relatos que fazem referência aos aspectos particulares da rede pessoal. Mobilizados por esse intuito, estabeleceu-se o objetivo de: conhecer o discurso acerca do que é ser ex-hanseniano residente de um antigo hospital-colônia.

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Metodologia O estudo seguiu pressupostos da metodologia de Análise das Redes Sociais (ARS). O histórico de aplicação dessa metodologia recupera três principais vertentes. A elaboração de um sentido analítico voltado para as redes sociais na primeira vertente vem com os analistas sociométricos, tendo, como principal representante, Jacob Moreno, psicólogo remanescente da teoria da Gestalt (Meneses, Sarriera, 2005; Silva, 2003). A segunda vertente reúne, na Universidade de Harvard, antropólogos, psicólogos e sociólogos australianos, dentre os quais se destacam W. Lloyd Wamer e Elton Mayo: os primeiros pesquisadores a usarem sociogramas, adaptando os diagramas para descrever como se estruturavam as relações interpessoais informais dos trabalhadores das fábricas em pequenas comunidades americanas (Silva, 2003; Portugal, 1995; Troncoso, Alvarez, Sepúlveda, 1995). Na terceira vertente, que desembocaria na moderna ARS, encontram-se nomes como John Barnes, Clyde Mitchell e Elizabeth Bott, antropólogos sociais de Manchester que aplicaram a sociometria ao problema do apoio social disponível para indivíduos em situação de estresse, poder, conflitos e mudanças. Com o método utilizado, os pesquisadores iniciaram na perspectiva de sistematizar arcabouço teórico para descrever qualitativamente os sistemas vivos em relações complexas (Silva, 2003; Troncoso, Alvarez, Sepúlveda, 1995). Escreve Pérez (2006) que o campo da ARS diferencia-se de outras disciplinas de cunho social, quando não são teorizados os grupos humanos como os blocos de construção da sociedade. É que, na prática, esse tipo de abordagem está aberto a estudar desde os menores sistemas sociais delimitados a partir das comunidades até ligações entre websites. Em vez de tratar os indivíduos – aqui entendidos não só como pessoas, mas também organizações, estados etc. – como unidades de análise, esta (a análise) incide sobre a forma como a estrutura, ou seja, a quantidade de nós e de ligações entre eles, a composição, a localização dos nós, dentre outros, afetam a dinâmica da rede (Scott, 2000; Wasserman, 1994; Wellman, 1991). Definida por Freeman (2006, 2004) como a abordagem estrutural baseada no estudo da interação entre os atores sociais, chamada de análise de redes sociais, a ARS efetivamente traduz um método de aproximação com a estrutura relacional (nível mais macro da rede) e com as características mais comportamentais dos atores sociais (nível micro). De maneira que o que define o caráter assumido pelo método, hoje, são: o fenômeno estudado, a perspectiva adotada, as metodologias e ferramentas utilizadas. No delineamento da metodologia, adotou-se o proposto por Sluzki (1997) para análise da rede pessoal e de narrativas – definida como o campo das vivências comuns às pessoas, famílias ou coletividade, em que se busca registrar os discursos encaixados em espaço de tempo contextualizado e histórico. O estudo foi realizado durante os anos de 2007 a 2008, na antiga Colônia de Hansenianos, atual Centro de Convivência Antônio Diogo (CCAD), junto a 12 pessoas, dentre aquelas remanescentes do internamento compulsório. Como parte da metodologia, no primeiro momento, o levantamento de campo contemplou os 96 moradores do CCAD, registrados como ex-hansenianos. Objetivou-se identificar as centralidades da rede pessoal familiar e de amizade, direcionando-se as entrevistas ulteriores. Para a medida de centralidade, aplicou-se um questionário adaptado de Silva (2003), denominado, por esse autor, como gerador de nomes – por se destinar ao levantamento dos principais nomes que exercem forte influência na dinâmica da rede social estudada. O questionário originário foi desenvolvido para a realidade das redes sociais informais intraorganizacionais; daí ter sido realizada uma adaptação, tornando-o pertinente às características do grupo e ao objeto desta investigação. Durante a aplicação daquele instrumento, estipulou-se o número máximo de três pessoas para serem citadas por parte de cada informante. O propósito foi favorecer a análise, na medida em que se restringiu o número de citados como participantes da rede às pessoas que, de fato, tinham grande expressão para o estudo em andamento.

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Para calcular as medidas de centralidade, foi utilizado o programa computacional UCINET, versão 6.123 (Borgatti, Everett, Freeman, 2006). As exatas etapas de todo esse processo podem ser assim sintetizadas: em seguida à devolução dos questionários, codificamos os nomes gerados pelos atores estudados em AT1, AT2, A., inserindo os dados, em seguida, no software. Por meio de cálculos matriciais, o UCINET forneceu os índices de centralidade (o de grau de entrada e o de Bonacich), que representam os indicativos dos atores que assumem os papéis de conectores centrais na rede. O cálculo da centralidade permitiu, dentre outras inferências, a identificação dos atores que foram reconhecidos como desempenhando importante papel de ajuda na rede estudada. As entrevistas foram, assim, direcionadas aos sujeitos que exerciam centralidade na rede social de amizade e pessoal familiar dos ex-hansenianos. A estes foi aplicada a questão geradora: o que significa ser (ex-)hanseniano para o(a) Sr(a). nos dias de hoje? Na condução da técnica, pautou-se pela referência da Spink (2000), que compreende a entrevista como prática discursiva por meio da qual se produzem sentidos e se fazem versões da realidade, e nos pressupostos de elaboração e aplicação das questões de entrevistas propostos por Leopardi (2001). A organização dos dados apoiou-se na técnica do Discurso do Sujeito Coletivo, em acordo com o preconizado por Lefèvre e Lefèvre (2005). Trata-se de uma forma de representar a opinião coletiva por meio de uma série de discursos, pensamentos, ideias ou posicionamento sobre um dado tema presente em determinada formação sociocultural. Como estratégia metodológica, visa tornar mais clara a expressão de uma dada “figura”, ou seja, a representação social sobre um fenômeno vivenciado. A título de sustentação teórica, quando a técnica tende a afirmar o pensamento individual como representação do que pensa a coletividade, os autores expressam o pensamento coletivo como a presença internalizada - no pensar de cada um dos membros da coletividade - de esquemas sociocognitivos ou de pensamento socialmente compartilhado. Para obter o pensamento coletivo, é preciso, portanto, convocar os indivíduos, um a um, para exporem seu pensamento social internalizado, livre de pressão psicossocial do grupo. O conjunto dessas individualidades opinantes pode representar, sociologicamente, uma coletividade. Para tanto, o DSC usa a categoria pelo método da indução, ou seja, analisa as discussões do grupo e trabalha por temas ou assuntos, dos quais são retiradas as figuras metodológicas ou conceitos operativos e metodológicos, que são: Expressão-chave (Ech), Ideia Central (IC), Ancoragem; todas usadas para se processarem os depoimentos e se obterem, ao final, os Discursos do Sujeito Coletivo (DSC). A análise envolvendo os conceitos de estigma e instituição (total) fundamentou-se em obras, dentre as quais se destacam as de Erving Goffman – Estigma: a identidade deteriorada; Manicômios, prisões e conventos. Os princípios éticos preconizados pela resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, foram atendidos; tendo recebido aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados Dois DSC foram organizados em função das respostas dadas ao seguinte questionamento: “O que significa ser ex-hanseniano nos dias de hoje?”. No primeiro, em função da IC A – existe uma diferença entre o que era antes e o que é hoje –, cinco ex-hansenianos coincidem em suas representações, editadas no discurso transcrito no Quadro 1.

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Quadro 1. IC A - Existe uma diferença entre o que era antes e o que é hoje

“Pra mim, ser ex-hanseniano hoje é uma coisa muito boa. Muito mesmo! Porque acabou aquele tabu: Ah! Essa ai tem lepra, ou foi leprosa... Antigamente, as pessoas tinham pavor, os próprios pacientes se camuflava, se isolava do mundo. Quando é que um sadio iria fazer curativo em um doente? Mas, hoje em dia é raro encontrar uma pessoa para ter pavor. Porque, com esse novo tratamento, o pessoal acredita na cura. Isso significa que a gente não tem mais a doença. Isso é muito importante. Hoje eu não tenho tantos problemas não em ser ex-hanseniano. Então, existe uma diferença muito grande do antes para hoje: por mais mutilado que o paciente seja ele quer é aparecer; os pacientes entregam os seus pés pros profissionais e não tão nem ai pro azar...”.

Tendo em mente esse DSC, ressalte-se, inicialmente, que, em Goffman (1988), encontra-se a descrição de estigma como uma criação social, reforçada, inclusive, pelos próprios estigmatizados – quando tendem a partilhar das representações que os isolam, os classificam de indesejáveis e os desvalorizam como pessoas. Assim é que as diferenças de identidade social vão sendo, em princípio, estabelecidas como algo externo ao indivíduo, mas gradativamente incorporadas, levando o sujeito a ser reconhecido e se reconhecer não como uma individualidade, mas segundo características típicas da classe do estigma: com determinações que passam a sinalizar os desvios (de conduta esperada) e a reger, portanto, suas relações com o meio. Os ex-hansenianos participantes desse estudo denotam consciência de sofrer desse fenômeno, identificado, nos escritos de Goffman (1993), como “categorização”. É o que transparece a representação: “[...] acabou aquele tabu: Ah! Essa aí tem lepra, ou foi leprosa [...]. Antigamente, as pessoas tinham pavor, os próprios pacientes se camuflavam, se isolavam do mundo. Quando é que um sadio iria fazer curativo em um doente?”. Alguns acontecimentos históricos vão, todavia, permitir uma (re)categorização dessas pessoas. Dentre estes, a descoberta de medidas efetivas contra o bacilo, fazendo com que a hanseníase seja uma doença que, uma vez tratada, apresente possibilidades significativas de cura e não traga risco de contágio, bem como a existência de pessoas mais bem esclarecidas faz atualizar o comportamento social diante da doença e do doente. Também é fato que a hanseníase não representa, atualmente, uma emergência sanitária, o que leva a um redirecionamento de algumas posições políticas e sociais no que diz respeito às formas patológicas mais virulentas e agudas. De modo particular, no Brasil, as atenções se transferiram muito, por exemplo, para o fenômeno da aids. Isso não implica, todavia, um descuido para com a incidência. Sobretudo nos lugares em que a doença ainda é endêmica, há, de modo continuado, como é na realidade das pessoas do CCAD, uma vigília, e mantêm-se as modalidades de assistência e de cuidados às pessoas doentes, como às curadas que apresentem alguma sequela. Arrisca-se, pois, a dizer que os ex-hansenianos deste estudo já vivenciam uma outra face do mesmo fenômeno “estigma”. Nesta, a autoimagem e a identidade – sempre dependentes do olhar de fora, ou seja, da ideia que os demais fazem dele, das formulações ou convenções sociais – parecem sofrer de uma atualização, no cerne da qual se abre espaço para dar a entender que a pessoa reconhece e reage ao estigma de que sofre, por percebê-lo ruim. Nesse sentido é que Goffman (1988) alerta para o movimento espontâneo que o estigmatizado faz na direção de reduzir o estigma e as “tensões” que tornam difícil para si e para o outro o cotidiano na presença deste. Destarte, na tentativa de desfocar a atenção da sociedade da origem do estigma, concorda-se que nem sempre esse movimento é, em tudo, positivo para o ex-hanseniano, de maneira que é possível acreditar nele como favorecendo outros rótulos: o de dependente, necessitado ou coitadinho, como exemplos. Deve existir, no meio de tudo – e como prevê Goffman (1988) – um certo esforço, da parte do ex-hanseniano, para que ele ou a sua doença não apareça muito mais do que as necessidades que acumula. Por outro lado, ao insistir em não deixar o antigo espaço de confinamento, leva a crer numa internalização do estigma construído ao longo dos anos, reificando a construção social do que é ter sido

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um leproso. No que se refere ao caráter subjetivo (não ignorando o objetivo), constata-se prevalecer o peso da marca trazida pela institucionalização e defende-se que a influência dessa marca só desaparecerá com muito ônus para os que a vivenciaram. Ouvindo e lendo a história do antigo leprosário, atual CCAD, constata-se como os seus ciclos não fugiram à destruidora força simbólica das instituições totais (Goffman, 2001): com início na instituição reservada para pessoas consideradas uma ameaça à comunidade, passando a um lugar para cuidar das pessoas incapazes e inofensivas, até um espaço que serve de refúgio do mundo por muito tempo desconhecido e, portanto, ameaçador. A clausura, como a tutela, é, portanto, iatrogênica, ocasionando, no mínimo, o medo de enfrentar o mundo ameaçador, a “desproteção” verificada fora dos portões do CCAD. Isso é o que também pode implicar uma quase teatralização, identificando-se o ex-hanseniano e buscando, muitas vezes, afirmar e reafirmar sua condição de doente. Ratificam essa afirmação inferências e posturas como as descritas no DSC: “[...] ser ex-hanseniano hoje é uma coisa muito boa [...]. Por mais mutilado que o paciente seja, ele quer é aparecer; os pacientes entregam os seus pés pros profissionais e não tão nem aí pro azar [...]”. O teórico Michael Maffesoli (2005) oferece um prisma de leitura que atualiza essa condição quando escreve que esse tipo de movimento pode também ser reconhecido como técnica de demarcação do espaço para pertencer; uma forma de (re)construção da identidade, e de resistência, portanto, ao estigma sofrido. Reaparece, por meio desta, a força antropológica da dimensão do espaço: o que me liga à terra é vetor de socialidade. Como isso se dá? Tornou-se importante para o ex-hanseniano manter viva a história pessoal como forma de estabelecer, com outros, similaridades/igualdades e assumir, assim, uma identidade. Isso é o que pode ajudar também na identificação com um grupo e no fortalecimento do vínculo com um lugar que é reconhecido como sendo deles, destinado aos que são iguais. Um lugar demarcado para pertencer, assim como a criação da identidade rejeita a categorização vinda de fora, inscrevendo a ordem, a autonomia e a (auto) referência para voltar a “ser” em um contexto de grupo social (Maffesoli, 2005). No segundo DSC apresentado no Quadro 2, foram editados em função da IC B – para a pessoa que tem sequela não muda nada – os depoimentos de sete ex-hansenianos, que ajudaram a compor a representação do que é ser hanseniano no contexto do CCAD. O sistema de valores mais geral da sociedade perde força na medida em que a identidade do exhanseniano, como grupo social, se torna mais evidente. Não obstante, Goffman (1993) afirma que, na maioria das situações, as identidades individuais serão sempre marcadas pela diferença; no caso do grupo aqui estudado, pelas deformidades.

Quadro 2. IC B - Para a pessoa que tem sequela não muda nada “Para mim ser ex-hanseniana nos dias de hoje não tem muita diferença não! Para a pessoa que tem seqüela, eu acho, que não muda nada! Na verdade, isso (a cura) é bom para quem está em bom estado. Pois, em cima do mutilado, do sequelado existe, sim, o preconceito. É como ser um ex-presidiário, é como ser um ex (silêncio) de algo forte que jamais se apaga. Ainda existe muito preconceito, e isso me incomoda muito. Quando eu vou para redenção e a pessoa pergunta: de onde você é? Se eu digo que sou de Antônio Diogo, ou da colônia, não são todos, mas tem uns que se afastam, tem uns que tem cisma da gente. Sinceridade, ai como tem! No meu caso, como a minha seqüela foi só nessa mão (tem a mão em garra) quando estou lá fora e as pessoas me perguntam eu digo que foi devido à paralisia infantil. Eu não preciso dizer que foi devido à doença. Porque tem até hospital que não aceita. Às vezes, a gente chega no hospital, quinem eu fui operar esse dedo, e só em as pessoas saberem que somos daqui (da colônia) já ficam com receio por que não acreditarem na cura. Por isso que Antônio Diogo (o CCAD) é o meu lugar. Se eu fosse morar em outro lugar eu não me sentiria bem, como eu me sinto aqui. Aqui eu ainda me sinto a vontade. Às vezes, quando eu vou para igreja, porque a gente vai quando tem encontro dos ministros, eu só me sinto bem porque estou na casa de Deus. Eles me tratam bem, mas eu não fico a vontade como eu fico aqui dentro. Mas, eu vou ser sincera (silêncio) antes era melhor do que hoje: porque tinha mais irmãos doentes. Era quase todos, né? Ficávamos mais a vontade. Você entende?”.

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No que deixa transparecer o DSC, apesar dos esforços e do momento de evolução histórica da ciência, ainda persiste uma situação de estigma em relação ao doente, muito mais do que à doença hanseníase. São as marcas, as deformidades que incomodam. O conceito de estigma é desenvolvido por Goffman (1988) como um fenômeno social que pode ser constatado com base em, pelo menos, uma dentre três manifestações culturais possíveis: as abominações do corpo, os defeitos de caráter e a proveniência social. No caso da hanseníase no Brasil, Queiroz e Carrasco (1995) defendem a posição de que o estigma guarda estreita relação com as deformidades físicas do paciente, uma espécie de abominação a estas deformidades, levando à representação cultural de inferioridade da pessoa, de desqualificação diante das demandas da vida cotidiana. O rótulo, pois, de leprosa, como foi no passado, ou hanseniana, como é no presente, situa a pessoa na posição de desvantagem, de descrédito, com a consequente marginalização social. Resta ao exhanseniano “ou se adequar ao papel marginal a ele designado, ou tentar ‘encobrir’ as marcas que caracterizam o estereótipo estigmatizante” (Queiroz, Carrasco, 1995, p.485). Essas duas práticas podem ser atestadas como em uso pelos depoentes do DSC. Adequar-se ao papel marginal leva, por exemplo, os depoentes a elaborarem um discurso de descrença na possibilidade de serem comparados a “uma pessoa qualquer”. Admitem que as marcas (visíveis e invisíveis) que a doença deixou não podem e não são ignoradas. Elas atribuem, entretanto, ao olhar de fora todo o preconceito ainda existente em relação aos hansenianos. Há, todavia, por parte dos próprios ex-hansenianos, uma incorporação do (pre)conceito social. Eles ignoram, mas passam a reproduzir o comportamento (de reclusão) esperado, bem como o discurso preconceituoso de que eles são diferentes. Ao refletir sobre o tema, vem à mente, inclusive, um trecho do que escreveu Leonardo Boff (1997, p.35), em “A águia e a galinha”: “[...] o martelamento era tanto que muitos colonizados acabaram hospedando dentro de si os colonizadores com seus preconceitos. Acreditavam que de fato nada valiam. Que eram realmente bárbaros [...]”. O “estigma” na realidade do ex-hanseniano ainda é forte determinante de restrições (e autorrestrições) dos espaços públicos em que é ou não permitida a sua permanência ou, até, circulação. Traduz, essencialmente, a deterioração da imagem (Goffman, 1993), com consequente rejeição social à marca que passa a identificar essa pessoa: sua deformidade e mutilações. A deterioração da imagem também decorre de certa manipulação da informação, o que, de acordo com Goffman (1988), divide geograficamente o espaço social. O discurso coletivo nos coloca, assim, diante da realidade de que em nossa sociedade existem lugares públicos onde não se espera ou não se deseja a presença, ficando moralmente pactuada a proibição de acesso para os “defeituosos” – que podem ser representados por certos grupos raciais, religiosos ou étnicos; as prostitutas; os bêbados; os loucos; os hansenianos etc. E a rejeição que os ex-hansenianos passam a sofrer está implicada com o seu desconhecimento ou simples “desrespeito” a esse controle social que, à luz de Goffman, traduz a moralização dos espaços. Ora, mas se considerarmos que esses espaços também são palcos de diversos conflitos, na luta para assegurar direitos e garantir a sobrevivência, isso explica, ainda, o estigma do ônus da moralidade que empregamos para manter não só os ex-hansenianos, como também outras minorias afastadas das diversas linhas de competição (Goffman, 1993); sendo esta uma motivação real (inconsciente) para que o ex-hanseniano seja evitado, visto como uma ameaça. Do exposto, reflete-se, inclusive, acerca dessa postura como um desafio para a política de reinserção social dos contingentes estigmatizados – é o caso de lembrar as políticas voltadas para a pessoa com transtorno mental e aquela com necessidades especiais, como exemplos.

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Considerações finais Nos dias atuais, o CCAD é habitado por ex-hansenianos e familiares, todos desfrutando de um mesmo cotidiano. Poucos foram os pacientes que retomaram a sua vida longe do antigo leprosário, e ainda há aqueles que saíram e depois retornaram por não terem conseguido reconstruir a sua vida “lá fora”. Constata-se que o espaço da Colônia, ao longo desses anos, também passou por alterações, assim exigindo, dos seus moradores, uma forçada adaptação a uma nova política de funcionamento, às novas necessidades e aos novos moradores. Pode-se concluir que a resistência percebida em assumir essas mudanças, abandonando o estigma e voltando às suas vidas, decorre do “atrofiamento”, uma condição iatrogênica consequente às instituições totais. No tempo em que adentraram a Colônia, as verdades científicas apontaram o isolamento como a alternativa viável e mais adequada para se enfrentar a endemia hansênica. De seu lado, os exhansenianos vivenciaram o isolamento, junto com a tutela de suas vidas e as medidas disciplinares para os desvios de conduta. Não lhes permitiram desenvolver, fora do que intuitivamente sabiam ser e fazer, modos de realizarem a crítica interna aos princípios dessa prática, fundamentalmente anuladora e estigmatizante. Assim é que, simplesmente, incorporaram a lógica predominante nesses locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes ou perigosas para a sociedade. Pode-se dizer que os anos de institucionalização acarretaram a mortificação do eu, significando que o ser “eu” não consegue mais se identificar com o ambiente externo àquele que pertenceu durante parte significativa da vida. Assim é que pode causar medo, ao ex-hanseniano, ir residir fora (da proteção) da Colônia: lugar onde mantém vínculos, assume um papel social e é respeitado/reconhecido por este. Do lado de fora, acreditam, não há mais lugar para eles. Seriam rejeitados, hostilizados pelo fato de carregarem as limitações físicas e as marcas simbólicas da doença e do internamento em leprosário. O apego ao passado e ao lugar onde morou grande parte da vida, a rede de relações, enfim, do exhanseniano serve, nestas circunstâncias, ao propósito de permitir a identificação com um grupo, favorecendo um vigoroso sentimento de pertença e o fortalecimento de uma autoimagem. Permanecer nos espaços da Colônia, tendo por perto o familiar que o aceita e o colega também ex-hanseniano (com quem se identifica), permite um reconhecimento (e, portanto, aceitação) de si. A identificação permite a essas pessoas organizarem-se como grupo social – com valores, cultura própria, interesses – que também visa resistir às categorizações vindas de fora. Certamente, esse movimento implicará o fim, ou o enfraquecimento, dos valores gerais dominantes e a redução do estigma. Quanto à necessidade que o ex-hanseniano tem de alimentar, nos visitantes, práticas de aproximação com a sua comunidade – como é o caso da caridade, da solidariedade e do voluntariado –, considera-se que, ao tempo em que transparece um estado de conformação coletiva e um investimento coletivo na condição de incapaz, de “coitadinho”, busca, também, o ex-hanseniano resistir, (re)construindo sua identidade e criando oportunidades para pertencer a um grupo e fortalecê-lo diante dos demais grupos sociais. Por fim, tem-se em mente que o presente estudo permitiu conhecer a representação de um mundo de vida: o ser ex-hanseniano, habitante de um antigo leprosário. Entretanto, depara-se com as limitações características ao fato de a exploração desse universo necessariamente se dar pela aproximação com as subjetividades, o imaginário que é hoje e não será mais amanhã. Ainda, de tudo que foi exposto, ficam questionamentos que abrem perspectivas para novas investigações: pode-se crer nos ex-hansenianos como formando hoje um grupo social em plena fase de construção e reconhecimento? O antigo leprosário é hoje um espaço que se liberta da força histórica das instituições totais? A chegada das pessoas sadias e a presença constante da sociedade implicam atualização da categoria dos hansenianos, acelerando aquele primeiro fenômeno, quando instaura uma nova ordem: a normalização do ser hanseniano no convívio diário com outras pessoas e grupos sociais?

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O DISCURSO COLETIVO DE EX-HANSENIANO ...

Colaboradores Ana Carolina Rocha Peixoto responsabilizou-se pela construção da redação, edição e finalização do artigo. Fátima Luna Pinheiro Landim responsabilizou-se pela edição, correção e finalização do artigo. Andrea Caprara, Ana Lefèvre e Fernando Lefèvre responsabilizaram-se pela correção e edição do artigo. Referências BARBOSA, J.P.A. História da saúde pública no Ceará: da colônia Vargas. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 1994. BOFF, L. A águia e a galinha: a metáfora da condição humana. 40.ed. Petrópolis: Vozes, 1997. BORGATTI, S.P.; EVERETT, M.G.; FREEMAN, L.C. UCINET – version 6.123. Natick: Analytic Technologies, 2006. CLARO, L.B.L. Hanseníase: representações sobre a doença. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995. CUNHA, A.Z.S. Hanseníase: aspectos da evolução do diagnóstico, tratamento e controle. Cienc. Saude Colet., v.7, n.2, p.235 -42, 2002. CUNHA, V.S. O isolamento compulsório em questão: políticas de combate a lepra no Brasil (1920-1941). 2005. Dissertação (Mestrado) - Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2005. EIDT, L.M. Ser hanseniano: sentimento e vivências. Hansen Int., v.29, n.1, p.21-7, 2004. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 21.ed. Petrópolis: Vozes, 1999. GALVAN, A.L. Hanseníase-lepra: que relações ainda se mantêm? Canoas: Ulbra, 2003. GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2001. _______. Estigma: la identidad deteriorada. 5.ed. Buenos Aires: Amorrortu, 1993. _______. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. KOVACS, M.H; FELICIANO, K.V.O. Opiniões sobre a doença entre membros da rede social de pacientes de hanseníase no Recife. Public Health, v.1, n.2, p.112-8, 1997. LEOPARDI, M.T. Metodologia da pesquisa na saúde. Santa Maria: Pallotti, 2001. LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A.M.C. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). 2.ed. Caxias do Sul: Educs, 2005. MAFFESOLI, M. O mistério da conjunção: ensaios sobre comunicação, corpo e socialidade. Porto Alegre: Sulina, 2005. MENESES, M.P.R.; SARRIERA, J.C. Redes sociais na investigação psicossocial. Porto Alegre: Aletheia, 2005. v.21. NASCIMENTO, D.R. As pestes do século XX: tuberculose e aids no Brasil - uma história comparada. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. PACHÁ, P.H.C. Hanseníase: imposição estatal e isolamento compulsório. Cad. Saude Colet., v.16, n.2, p.327-44, 2008. PEIXOTO, A.C.R. Rede social: saberes e práticas no cotidiano do ex-hanseniano. 2008. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Fortaleza, Fortaleza. 2008.

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ROCHA, A.C.R.P. et al.

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ROCHA, A.C.R.P. et al. Discurso colectivo de un ex enfermo de Hansen paciente en una leprosería nordeste del Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.213-23, jan./mar. 2011. El objetivo del estudio fue conocer el discurso sobre la vida de (ex) enfermos de Hansen residentes en un antiguo hospital-colonia. Sobre la base de su enfoque cualitativo, este estudio se caracteriza como una investigación descriptiva-exploratoria. Los datos se obtuvieron de una entrevista semi-estructurada con 12 sujetos y fueron organizados por la técnica del Discurso del Sujeto Colectivo, obteniéndose las siguientes ideas centrales: “Hay una diferencia entre cómo era antes y cómo es ahora” y, “Para personas con secuelas, no cambia nada”. Se encontró que la percepción de cura de la enfermedad fue objeto de controversias, habiendo los que la perciben como una victoria, es decir, el hecho de ser libres de la enfermedad les permite pensar en recomenzar.

Palabras clave: Enfermedad de Hansen. Lepra. Discurso del Sujeto Colectivo. La historia social de la enfermedad. Recebido em 10/05/09. Aprovado em 09/09/10.

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artigos

Desenvolvimento de um ambiente virtual para o ensino da medicina por uma equipe multidisciplinar: fatores que influenciam a análise do problema educativo * Paula Ramos1 Miriam Struchiner2

RAMOS, P. STRUCHINER, M. Development of a virtual environment for medical education by a multidisciplinary team: factors that influence the analysis on the educational problem. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.227-42, jan./mar. 2011. This study investigated the analysis phase of the educational problem in the research and development process for a virtual environment for teaching medicine, guided by the design-based research methodology. A multidisciplinary team composed of educational technology and healthcare researchers discussed the problem of technicist training and the need to emphasize patients’ subjective experiences of illness and treatment as a way of including ethical values in the training. Based on content analysis of the transcripts of the team meetings, the factors that influenced the negotiation process for defining the educational problem, the aims of the virtual environment and the guiding theory for its development were discussed. It was concluded that in analyzing complex problems such as healthcare, it is essential to take into account epistemological beliefs (about healthcare education, healthcare, and educational technology) and teachers’ knowledge (from experiences and academic disciplines).

Keywords: Design-based research. Virtual learning environment. Medical training. Epistemological beliefs. Teachers’ knowledge.

Este estudo investigou a fase de análise do problema educativo no processo de pesquisa e desenvolvimento de um ambiente virtual para ensino de Medicina, apoiado na metodologia da Pesquisa Baseada em Design. A equipe multidisciplinar, composta por pesquisadores de tecnologia educacional e saúde, discutiu o problema da formação tecnicista e a necessidade de enfatizar experiências subjetivas dos pacientes sobre o adoecimento e tratamento, como forma de incluir valores éticos na formação. Com base na análise de conteúdo das transcrições das reuniões da equipe, discutiram-se os aspectos que influenciaram a negociação para definição do problema educativo, dos objetivos do ambiente e da teoria norteadora do seu desenvolvimento. Concluiu-se que, na análise de problemas complexos, como os da saúde, é fundamental a integração das crenças epistemológicas - sobre formação em saúde, saúde e tecnologia educacional - e dos saberes docentes – experienciais e disciplinares.

Palavras-chave: Pesquisa baseada em design. Ambiente virtual de aprendizagem. Formação médica. Crenças epistemológicas. Saberes docentes.

* Texto elaborado com base em Ramos (2010); projeto de pesquisa financiado pela Faperj (APQ1), e aprovado no Comitê de Ética do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho. 1 Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Av. Carlos Chagas Filho, Edifício do Centro de Ciências da Saúde, bloco A, sala 12. Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.949-902. Apoio Capes. paularamos2612@ yahoo.com.br 2 NUTES, UFRJ. Apoio CNPq.

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DESENVOLVIMENTO DE UM AMBIENTE VIRTUAL ...

Introdução O trabalho clínico implica, necessariamente, escolha e tomada de decisão (Serpa Jr.,1999). Para diminuir a incerteza desse processo, especialistas lançam mão de diferentes recursos, tais como: exames clínicos, bibliografia especializada e avaliação de evidências. Em geral, as decisões se baseiam na dimensão sintomatológica dos quadros clínicos, em que os aspectos subjetivos relacionados às experiências de adoecimento dos pacientes não são considerados (Serpa Jr., 1999). Como abordagem alternativa, a “medicina baseada em narrativas” propõe a valorização da dimensão subjetiva e experiencial envolvida no adoecimento e tratamento dos pacientes, contemplando o caráter “complexo, multidimensional e fundado na experiência individual” da prática médica (Greenhalgh, 1996, p.959). Essa abordagem exige mudanças na formação tradicional dos profissionais de saúde, baseada em modelos tecnicistas, e impõe o desafio de valorizar outras dimensões do processo saúde-doença não inscritas no âmbito biológico, para formar profissionais com competências que lhes permitam humanizar a relação médico-paciente (Ceccim, Feuerwerker, 2004). Planejar e integrar intervenções educacionais que promovam estas mudanças envolvem atividades onde interagem não apenas conceitos e métodos, mas a cultura que permeia tanto a prática da clínica como a educação de profissionais. Portanto, uma das questões centrais consiste em aprofundar o conhecimento sobre os problemas educativos. Analisar esses problemas e compreendê-los com base nas especificidades dos contextos e de teorias de aprendizagem são elementos-chave de pesquisas que pretendem assumir relevância social, contribuindo para a melhoria das práticas educativas e para a construção de conhecimentos sobre o processo de ensino-aprendizagem (Reeves, Herrington, Oliver, 2005). Isto porque a análise do problema educativo constitui o ponto de partida para o planejamento, desenvolvimento, implementação e avaliação de intervenções em contextos naturais de ensino e aprendizagem (Mion, Angotti, 2005). Esta é a questão central da Metodologia de Pesquisa Baseada em Design3 (PBD), uma abordagem teórico-metodológica que vem se consolidando no campo da educação, com base em críticas a modelos tradicionais que promovem a ruptura entre pesquisa e práticas educacionais (Wang, Hannafin, 2005; Design-Based Research Collective DBRC, 2003). Em linhas gerais, a PBD se caracteriza: pelo foco em problemas educativos complexos situados nos contextos de ensino-aprendizagem; pela colaboração intensa entre pesquisadores e sujeitos envolvidos nas práticas pedagógicas professores e alunos; pelo desenvolvimento de experiências/intervenções educativas para contribuir na solução desses problemas; pela integração de teorias educacionais, tanto para compreender os problemas quanto para desenvolver intervenções, e pela realização de um processo cíclico de análise, desenvolvimento, avaliação e redesign das intervenções, em que cada ciclo constitui uma oportunidade de pesquisa tanto sobre o próprio desenvolvimento quanto sobre as experiências de ensino-aprendizagem proporcionadas pela intervenção (Wang, Hannafin, 2005). Nessa perspectiva, as questões de pesquisa surgem dos problemas e necessidades encontrados nas práticas educativas e identificados pelos sujeitos nelas envolvidos. Kozma (2000) aponta a importância da parceria entre pesquisadores e sujeitos das práticas para “compreender profundamente suas necessidades, objetivos e problemas” (Kozma, 2000, p.13). Assim, o desenvolvimento de intervenções pedagógicas é baseado na tomada de decisão 228

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O nome original é Design-Based Research ou Design Experiments (Brown, 1992; Collins, 1992). A palavra “design” assume o sentido de desenvolvimento. 3


RAMOS, P. STRUCHINER, M.

O “Projeto Vivências: espaços virtuais na aprendizagem das dimensões experiencial e narrativa dos processos de adoecimento” (Struchiner, 2008) é apoiado pela FAPERJ desde agosto de 2008. 4

artigos

negociada na equipe. Na PBD, compreender esse processo, tornando-o explícito, é uma oportunidade de construção de conhecimento sobre o próprio desenvolvimento de intervenções pedagógicas, onde se incluem aquelas mediadas pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs) (Edelson, 2002). Estudos que buscam compreender o processo de análise do problema educativo oferecem subsídios para aprofundar a reflexão sobre a natureza desses problemas em diferentes áreas do conhecimento, apontando questões críticas e possíveis soluções. Este trabalho relata a negociação de uma equipe multidisciplinar, formada por professores de um curso de Medicina e pesquisadores em Tecnologia Educacional em Saúde, durante a fase de análise do problema educativo, em uma atividade de pesquisa baseada em design de um ambiente virtual de aprendizagem – o Ambiente “Vivências”4. O objetivo do “Vivências” é explorar os recursos da internet para oferecer, a alunos do curso de Medicina, novos espaços para vivenciarem a experiência de adoecimento e tratamento, a partir de narrativas dos pacientes. Nesse estudo, identificamos e analisamos os aspectos que influenciaram a negociação da equipe na definição do problema educativo, dos objetivos do ambiente e da teoria norteadora de seu desenvolvimento.

Análise do problema educativo com base na Pesquisa Baseada em Design (PBD) Jonassen (2000, p.65) considera que um problema é “uma entidade desconhecida resultante de qualquer situação em que uma pessoa busca satisfazer uma necessidade ou atingir um objetivo”. O autor ressalta que problemas existem na medida em que são “necessidades sentidas”, que motivam as pessoas a buscarem soluções para eliminar discrepâncias. Ou seja, um problema é definido por uma lacuna entre o que se percebe como ideal e o vivenciado. Em relação aos problemas educativos, Mion e Angotti (2005) sugerem uma aproximação com a definição de “preocupação temática” que, segundo os autores, constitui o ponto de partida da pesquisa educacional e consiste em problematizar, dialogicamente, com os envolvidos, a situação-problema que está sendo vivida e se deseja transformar (Mion, Angotti, 2005). Sobre isso, Angulo (1990) considera que, refletindo sobre suas ações, os professores têm a possibilidade de analisar criticamente sua realidade e formulá-la como problema. Para o autor, os questionamentos podem envolver: a prática educativa, com foco em alguma “situação-limite” educacional; a compreensão que os participantes têm dessa prática, relacionada ao conhecimento alternativo, intuitivo ou do senso comum, e a percepção que têm da situação social em que atuam. Ressalta, ainda, que essas formulações não podem ser consideradas como dados objetivos, visto que são ideologizadas e dependentes da percepção interpretativa do professor e de suas concepções de educação e ensino-aprendizagem (Angulo, 1990). Jonassen (1997) caracteriza os problemas educativos como complexos e “malestruturados” (ill-structured), uma vez que estes problemas não pressupõem uma solução única, correta ou melhor, mas uma série de possíveis alternativas de acordo com o contexto e a situação em que se inserem. Para Jonassen (1997), esses problemas representam dilemas específicos e inseparáveis do contexto em que se inserem, exigindo a avaliação de diferentes aspectos (por exemplo, problemas éticos e ambientais). Segundo Jonassen (2000), sobretudo em problemas mal-estruturados, as crenças epistemológicas influenciam significativamente sua abordagem. O autor define essas crenças como concepções COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.227-42, jan./mar. 2011

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individuais sobre ensino e aprendizagem e ressalta que, embora a relação entre crenças epistemológicas e resolução de problemas seja evidente, esta não tem sido pesquisada e merece, portanto, maior atenção. Outro fator que Jonassen (2000) aponta como relevante é o conhecimento do campo. Refere-se ao repertório de conhecimentos que os indivíduos constroem sobre as áreas em que atuam e são referências para compreenderem o problema e desenvolverem soluções integradamente às especificidades do contexto. No caso dos professores, os conhecimentos do campo se aproximam do conceito de saberes docentes, que são aqueles construídos pelos professores ao longo da vida profissional, incluindo saberes adquiridos na formação, constituindo: conhecimentos teóricos (saberes disciplinares) e aqueles construídos no exercício de suas funções e prática profissional (saberes experienciais) (Tardif, 2002). Alguns autores apontam a existência de crenças epistemológicas gerais e específicas, relacionadas ao campo de atuação dos professores (Olafson, Schraw, 2006). No planejamento de intervenções pedagógicas, que integram sujeitos com diferentes expertises, a análise do problema educativo exige negociação dos diferentes saberes e crenças. Assim, o papel dos pesquisadores é situar os problemas educativos no contexto social em que se inserem, buscando relacionar as necessidades sentidas, os saberes e as crenças envolvidas por meio de revisão da literatura, estudos de caso e teorias de aprendizagem (Van den Akker, 1999). Segundo Juuti e Lavonen (2006), essa análise teórica do problema é necessária para definir teorias de aprendizagem (teorias norteadoras) que, além de fundamentarem a compreensão dos problemas educativos, orientam a modelagem, construção e pesquisa de inovações no contexto educacional. Assim, essa fase compreende a articulação de conhecimentos práticos e teóricos para identificação do problema, a definição dos objetivos e da teoria norteadora.

Materiais e métodos O Projeto Vivências tem como objetivo valorizar as narrativas dos pacientes como um elemento-chave na formação dos profissionais de saúde, possibilitando aumentar a tolerância à incerteza da prática clínica e propiciar a atenção empática a pacientes (Hunter, Charon, Coulehan, 1995). Estratégias pedagógicas mediadas pela internet, especificamente, os recursos de interação e comunicação da Web 2.05 , são possíveis caminhos a serem explorados para oferecer, aos alunos, novos espaços para experimentarem e vivenciarem o fenômeno do adoecimento e tratamento em sua diversidade e complexidade (Struchiner, 2008). Especialmente, se considerarmos a carga horária minimizada pelo excesso de disciplinas e a impossibilidade da presença de grande número de pacientes com experiências diferenciadas. O Ambiente Vivências vem sendo desenvolvido por uma equipe multidisciplinar, formada por: pesquisadores de tecnologia educacional (TE) (n=2), professores de medicina (n=3), web designer (n=1), alunos de doutorado e mestrado em TE (n=2), e alunos de iniciação científica de biologia (n=1), informática (n=2) e medicina (n=2). Seguindo a dinâmica de trabalho orientada pela equipe de TE, a análise do problema educativo ocorreu em reuniões semanais com os participantes, para que todas as decisões fossem tomadas coletivamente. Nessas reuniões, os professores da saúde e os pesquisadores em tecnologia educacional discutiam os problemas e desafios da área do ensino da saúde, especificamente relacionados à desvalorização da dimensão subjetiva sobre o adoecimento e tratamento do paciente na formação em saúde. A discussão e 230

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5 A Web 2.0 é a segunda geração de serviços na rede, caracterizada por ampliar as formas de produção cooperada e compartilhamento de informações online (Primo, 2006).


RAMOS, P. STRUCHINER, M.

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compreensão desse problema ofereceu subsídios para a equipe planejar em conjunto o ambiente virtual de aprendizagem “Vivências”. Para analisar as negociações e formulações do grupo ao longo do percurso, as reuniões foram observadas e as discussões gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas. Foram analisadas três reuniões referentes à fase de análise do problema, totalizando cerca de quatro horas de gravação. Como os dados para a realização desta pesquisa eram as interações entre os participantes, foi realizado um estudo de natureza qualitativa com base no método de análise de conteúdo (Minayo, 1994; Bardin, 1977). Optou-se pela técnica de análise temática, que consiste na classificação do texto em temas, sendo necessário identificar os núcleos de sentido que compõem a comunicação (Minayo, 1994). Essa técnica é dividida em três etapas: (1) pré-análise, (2) exploração do material e (3) tratamento e interpretação dos resultados. De acordo com Spink e Lima (2004), como é comum em pesquisas que buscam compreender os sentidos dos fenômenos sociais, “a análise inicia-se com uma imersão no conjunto de informações coletadas, procurando deixar aflorar os sentidos, sem encapsular os dados em categorias, classificações ou tematizações definidas a priori” (Spink, Lima, 2004, p.106). Isso não significa que as categorias e tematizações prévias não façam parte da análise, contudo, não são impositivas (Spink, Lima, 2004). Há, portanto, um diálogo possível entre os sentidos construídos durante a pesquisa e aqueles decorrentes da familiarização prévia com o campo (revisão bibliográfica) e teorias de referência. Dessa forma, as categorias não foram identificadas previamente, mas a partir da escuta e análise das transcrições das reuniões do grupo. Para discutir os resultados, apresentamos o processo de análise do problema educativo, destacando os principais aspectos que influenciaram a negociação da equipe.

Resultados e discussão Organizamos a narrativa do processo de pesquisa em função dos elementos constitutivos da análise do problema: definição do problema educativo, dos objetivos da intervenção e da teoria norteadora. Os integrantes da equipe foram representados por códigos, para garantir o anonimato, da seguinte forma: PTE (pesquisadora em tecnologia educacional); PVE (pesquisador em vídeo educativo); PPM (professora da disciplina de Psicologia Médica); PPT1 (professor-coordenador de Psicopatologia); PPT2 (professora de Psicopatologia). Selecionamos trechos ilustrativos dos diálogos, para fundamentar as questões discutidas, e grifamos os fragmentos considerados mais significativos para análise.

Definição do problema educativo A proposta de desenvolvimento do Projeto Vivências teve início quando três professores das disciplinas Psicologia Médica e Psicopatologia, de um curso de Medicina, envolvidos em um grupo de pesquisa sobre medicina baseada em narrativas, procuraram a parceria de pesquisadores da área de Tecnologia Educacional em Saúde, com o objetivo de construir um site com depoimentos sobre experiências de adoecimento e tratamento de pacientes com transtornos mentais e doenças neoplásicas. Os pesquisadores de TE, já no primeiro encontro, situaram o foco do trabalho no campo da pesquisa educacional. Os professores se interessaram em refletir sobre o problema educativo de suas áreas, questionando sobre como um material com depoimentos poderia contribuir para a formação médica. PPM: “[...] tudo começou porque nós resolvemos fazer um site com experiências de adoecimento e tratamento [...] As experiências dos doentes estariam disponíveis, como um banco de dados, onde as pessoas falam (ou filmadas ou gravadas) e aí os alunos, os professores, podem usar desde exemplarmente, como também podem fazer pesquisa. Aí, a PTE criou o seguinte: ‘não, mas eu quero mais. Eu quero que haja um espaço para formação, para o aprendizado da experiência’”.

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Nesse processo, desafios e oportunidades relacionados aos contextos da formação em saúde foram discutidos, aprofundando necessidades do ensino médico. PPM: “[...] o problema é que todo o ensino médico, seja pelo problem-based, seja o método tradicional, o paciente, a experiência do paciente é um mero exemplar [...] a dimensão experiencial sempre fica de fora [...] fica no limbo”.

Os questionamentos centraram-se, sobretudo, no desequilíbrio existente entre a abordagem técnica das patologias e a dimensão subjetiva envolvida no processo de adoecimento. Sem desconsiderar o papel do conhecimento técnico-científico na formação, ressaltaram a necessidade de se valorizarem as narrativas dos pacientes para se transformar e humanizar a relação médico-paciente.

Definição dos objetivos do ambiente virtual A equipe de TE buscou articular os desafios do contexto educativo com as possibilidades de uso das TICs para enriquecer a experiência de aprendizagem e interação entre os alunos. PTE: “[...] o eixo central é uma base de informações, de vídeos com entrevistas dos pacientes que ele pode acessar. Só que a nossa intenção não é só criar uma base de informação [...] a gente queria construir outras oportunidades de aprendizagem e interação [...] É isso que eu acho que é o nosso objetivo”.

Definiu-se que o ambiente seria restrito a professores, alunos e pacientes envolvidos nas disciplinas de Psicologia Médica e Psicopatologia. Devido às especificidades de cada disciplina, definiu-se que o ambiente teria como foco tanto a experiência do paciente sobre o adoecimento e tratamento, quanto a do aluno que se depara com o desafio e responsabilidade de lidar com a vida humana. PPT2: “[...] são as duas dimensões da experiência que no nosso trabalho a gente não pode deixar de fora: a experiência do aluno e do paciente”.

Concluiu-se, então, que o ambiente teria como objetivo oferecer, aos estudantes, a possibilidade de entrarem em contato com experiências de pacientes no adoecimento e tratamento, por meio de uma diversidade de depoimentos em vídeo, áudio, texto e outros recursos da Web 2.0 (tais como blogs, wiki e comunidades), possibilitando, ainda, que as impressões sobre estas experiências fossem compartilhadas.

Definição da teoria norteadora para pesquisa e desenvolvimento do ambiente Para definir a teoria norteadora, na medida em que as discussões apontavam questões pedagógicas críticas, a equipe de TE pesquisava o referencial teórico que pudesse fundamentar a análise do problema. Esse referencial era discutido nas reuniões e norteava buscas subsequentes. Foram identificados três principais momentos nesse processo de construção coletiva: 1º momento - discussão sobre a valorização da experiência e vivência do aluno O ponto de partida foi a compreensão do aluno como centro do processo de ensino-aprendizagem, que constrói conhecimentos a partir da interação com o meio e com outros indivíduos. Esta discussão fez com que a equipe de TE buscasse um referencial sobre: aprendizagem experiencial, afetiva e situada. PTE: “Do ponto de vista educacional, a maior contribuição desse projeto, em termos de inovação educacional, é que a gente sai do problem-based, que é a aprendizagem baseada em problema para a questão do experiential-based. Que o cara vai vivenciar, ele não vai estudar um caso e pegar um caso para distrinchar. Ele vai vivenciar o sofrimento afetivo...”. 232

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RAMOS, P. STRUCHINER, M.

artigos

2º momento - discussão sobre os princípios da aprendizagem experiencial, afetiva e situada (situated learning) Essa discussão apontou a necessidade de se buscar um referencial que valorizasse a experiência na perspectiva do sujeito da ação. PPT2: “[...] essa exposição pode se dar do ponto de vista do sujeito no aprendizado na perspectiva da terceira pessoa e não da primeira. E, na verdade, o que a gente estava querendo ressaltar era a exposição do aluno à experiência em si”. PPT1: “Você falou de situated... Situated e embodied, eu pensei agora.... Porque no campo de discussão da ciência cognitiva, o tipo de abordagem próxima ao que a gente tenta trazer para a Psicopatologia, tem sido chamada de embodied ou situated cognition”. PTE: “Eu vou procurar embodied também”.

3º momento - discussão sobre aprendizagem corporificada (embodied learning) A equipe de TE buscou um referencial teórico sobre: “aprendizagem corporificada” e identificou a aprendizagem situada e a corporificada como sendo as teorias norteadoras (Dall’alba, Bernacle, 2005; Billet, 1994). PTE: “[...] quando você aprende embodied você tem uma transformação de você integral, não é só do compartimento intelectual. Você não constrói só um conhecimento, você constrói uma ética [...] O que eu achei muito adequado para essa questão que a gente está discutindo da problemática da relação médico-paciente [...] Da escuta, do entendimento do que é o sofrimento [...] Isso aqui foi uma direção fundamental, que de uma certa maneira isso não estava tão explícito... Hoje, a gente fala: “nós vamos trabalhar com embodied learning”.

O construtivismo foi, portanto, a matriz teórica que orientou as opções da equipe na seleção da teoria norteadora para fundamentar o design e análise desta intervenção. A abordagem construtivista de aprendizagem considera que o conhecimento não é algo acabado e objetivo, mas construído pelo sujeito por meio de suas interações no mundo, mediadas por artefatos culturais (Rogoff, 2003; Cole, Wetsch, 1996). Essa filiação evidenciou-se, desde o primeiro momento, na fala da pesquisadora de TE sobre o papel dos alunos ao vivenciarem o processo de aprendizagem. A aprendizagem situada compreende que o contexto é fundamental e indissociável da aprendizagem que nele se realiza, uma vez que tem o poder de interferir na postura e nas ações dos alunos, influenciando, de maneira significativa, a construção do conhecimento (Billett, 1994). A aprendizagem corporificada, por sua vez, considera que a cognição envolve, além dos aspectos cognitivos, os aspectos físicos, emocionais e afetivos (Dall’alba, Bernacle, 2005). Segundo Dall’alba e Bernacle (2005), tal reconhecimento favorece uma aprendizagem “corporificada”, pois assume a indissociabilidade entre corpo e mente na aprendizagem. Com base na análise da negociação da equipe sobre o problema educativo, foi possível identificar, de acordo com Jonassen (2000), Tardif (2002) e Olafson e Schraw (2006), as crenças epistemológicas e os saberes docentes dos pesquisadores que influenciaram este processo.

Análise das crenças epistemológicas Em função dos campos de conhecimento dos pesquisadores envolvidos, as crenças epistemológicas que se destacaram na negociação da equipe foram as relacionadas à formação em saúde, saúde e tecnologia educacional.

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Crenças sobre formação em saúde Kang (2008) classifica as crenças dos professores sobre a formação a partir de um continuum cujas extremidades são: “centrado no aluno” e “centrado no professor”. Na análise das falas, verificou-se que as crenças sobre formação médica foram “centradas no aluno”, uma vez que foi valorizado, na aprendizagem, o papel ativo do aluno na construção do conhecimento (Kang, 2008). PTE: “Eu sinto que a vivência do aluno é que é mais importante que a experiência que você vai oferecer para ele [...]. Porque ele vive isso no cotidiano dele, ele vai para a enfermaria e vive isso... E a gente quer tentar potencializar e trazer essa vivência para dentro de um contexto”.

Os pesquisadores apresentaram crenças compatíveis com a aprendizagem corporificada, que pressupõe que não existe separação entre mente e corpo e, dessa forma, todas as dimensões do indivíduo (cognitiva, afetiva e ética) devem ser consideradas na aprendizagem (Dall’alba, Bernacle, 2005). Inclusive, no diálogo a seguir, destaca-se a convergência de crenças entre o professor (PPT1) e a pesquisadora de TE. PPT1: “tem uma cisão tradicionalmente estabelecida entre cognição e afeto... Para não parecer que a gente está do outro lado. PTE: Nós também temos, um preconceito em relação a isso. Porque a gente também entende que não existe saber sem sentir. Dentro de uma perspectiva construtivista essa separação é inexistente...”.

Além disso, consideraram que, na formação médica, valorizar a experiência do adoecimento e tratamento do paciente possibilita a construção de um conhecimento sobre o sofrimento humano capaz de transformar a relação médico-paciente. PPM: “O problema é dar lugar à experiência como um lugar de valor. E utilizar isso do ponto de vista pedagógico. Que como disse bem o PPT1. Não é que ela não exista no cenário pedagógico, ela até existe, mas ela é rapidamente substituída”. PTE: “Ela é vivenciada de uma outra maneira. Ela é terceirizada...”. PPM: “Gostei dessa classificação... Isso é coisa de paciente... A terceirização é isso. Os médicos e os alunos não precisam se preocupar... Ou melhor, não precisam se deixar afetar”.

Nota-se que, nos dois trechos anteriores, os professores (PPT1 e PPM) apresentaram suas crenças sobre formação em saúde, fazendo uma crítica ao ensino tradicional - que fragmenta afeto e cognição e desvaloriza a experiência do paciente. Essa discussão indica uma compreensão de que a formação deve preparar os profissionais para estabelecerem uma relação humanizada na prática médica, não reduzindo o paciente a órgãos e sistemas, mas o compreendendo como um sujeito em sua totalidade (Sucupira, 2007). Nas discussões da equipe, verificou-se que essa crença ancorou a definição do problema educativo. Crenças sobre saúde A equipe pautou-se no conceito amplo de saúde, em que esta não é considerada ausência de doença, mas inclui as esferas biológica, histórica, sociológica e tecnológica (Amancio Filho, 2004). Isso fica claro nos argumentos dos pesquisadores sobre a importância de o médico considerar a narrativa dos pacientes como um aspecto do cuidado em saúde. Essa é uma crença que reforça a compreensão do paciente como o “centro e o objeto da atenção”, considerado em todas as suas dimensões (Sucupira, 234

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2007, p.626). Os pesquisadores também questionaram os valores éticos dos serviços de saúde e da formação, em que há diferenças no cuidado de acordo com a classe social. PPM: “[...] O ensino médico da universidade, por exemplo, qual é a moldura que nós temos que ter no sentido de fazer limites do que é aceitável? [...] O aluno só faz determinadas coisas, porque sabe que pode fazer. Agora, quando [...] acabam a residência e vão trabalhar na rede privada, lá ouvem todos os pacientes. Por que? Porque é um valor de mercado. Vai não ouvir na rede privada para você ver”. PPT1: “Mas o valor não é ouvir o paciente, o valor é sua posição no mercado”. PPM: “Então, é esse o valor que vai nos reger? É o valor do mercado? [...]”. PVE: “Mesmo na rede privada? Será que realmente escuta o paciente?”. PPM: “[...] Mas escuta muito mais, porque a rede privada é infiltrada pela universidade, e eu fiquei 11 dias internada e fiquei impressionada, porque eu vi [...] a força dos protocolos, da rotina, da burocracia [...] Agora ali no HU se permite umas tantas coisas”. PTE: “Como se não pagasse caro por aquilo, imposto...”.

Os questionamentos evidenciaram crenças de saúde baseadas nos princípios de integralidade da assistência e de equidade no acesso aos serviços de saúde. Esses princípios foram compartilhados por todos os participantes, como evidenciado nos diálogos, em que a participação dos pesquisadores de TE (PVE e PTE) reforçou os argumentos dos professores (PPM e PPT1). Indicam, portanto, convergência nas crenças sobre saúde e prestação de serviço à saúde. Crenças sobre tecnologia educacional A equipe se posicionou criticamente em relação à tecnologia, questionando sua contribuição à formação. Os pesquisadores demonstraram uma compreensão de que a tecnologia deve ser apropriada pelos sujeitos, integrando valores substantivos aos contextos de ensino-aprendizagem, como: colaboração, ética e inserção social. PPT1: “[...] estávamos falando da questão dos valores. Como se transmite valor? A gente transmite conhecimento, unidade cognitiva e valores a gente pouco transmite. Esse tipo de instrumento pode ser uma maneira de transmitir valor”. PPT1: “Inclusive para a clientela que nos procura, essas coisas são meio extraordinárias também. Acesso a internet... Acho que tem esse ganho também”. PTE: “Tem um ganho social enorme [...] Com esse caráter mesmo, terapêutico”.

Essas reflexões apontaram crenças compatíveis com a Teoria Crítica da Tecnologia – TCT (Feenberg, 2003), que pressupõe que a tecnologia não é neutra. Isto significa que, ao se incluir a tecnologia, não se está adicionando apenas novos métodos aos processos de aprendizagem, mas também novos valores. Contudo, a TCT não considera que esses valores são impostos, mas definidos pelos sujeitos ao se apropriarem da tecnologia. PTE: “A gente tem que buscar formas de que os alunos tenham outra função [...] Que instrumentos a web pode oferecer para que a gente parta do aluno? Da experiência do aluno, da experiência do paciente”.

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Verificou-se uma convergência de crenças, entre os pesquisadores das duas áreas, no sentido de compreenderem a tecnologia como uma ferramenta para a autonomia de alunos e pacientes e transformação da formação médica.

Análise dos saberes docentes Foram analisados os saberes docentes experienciais (construídos na prática pedagógica) e disciplinares (construídos na formação), discutindo-se como estes foram integrados na análise do problema. Saberes experienciais Para a análise do problema educativo, Mion e Angotti (2005) consideram relevante aprofundar a discussão sobre a prática educativa e a situação social em que esta se realiza, as mudanças desejáveis e os caminhos para transformar essa prática. Os saberes experienciais dos professores ofereceram uma compreensão sobre as questões vivenciadas no contexto da formação e do serviço em saúde, apontando desafios e oportunidades para caracterizar o problema educativo do ponto de vista da prática. A professora PPM relatou os desafios enfrentados pelos alunos ao se depararem com o sofrimento do paciente. PPM: “Qual é o barato do M64? [...] ele está no vão central da ponte Rio-Niterói. Ele está no meio do paciente e do médico. Ele está no meio do caminho diante de toda aquela ventania. Ele vive um drama de pela primeira vez atender um paciente. E o paciente tem o drama dele. É desse encontro de dramas que saem as histórias mais ricas...”.

A professora PPT2, ao narrar a participação dos pacientes na disciplina, refletiu sobre o papel que lhes atribui em suas atividades de ensino. Assim, as discussões sobre as práticas dos professores possibilitaram compreender as estratégias adotadas para enfrentar o problema educativo. PPT2: “Os pacientes contam para os alunos o que é a experiência de ter um problema psiquiátrico. Com temáticas que eles escolheram (eles os pacientes). Então, eles escolhem as temáticas e contam para os alunos o que é isso”. PTE: “Vocês não têm nenhuma ingerência sobre o que o paciente vai falar?”. PPT2: “Nenhuma. Mas por outro lado... Obviamente, esses pacientes que estão trabalhando comigo há dois anos, não são mais os mesmos pacientes...”.

A partir destes relatos, identificou-se que, mesmo compartilhando abordagens comuns, os professores envolvidos neste projeto problematizaram diferentes experiências marcadas pelos contextos em que se desenvolvem suas disciplinas. A fala da professora de Psicologia Médica voltou-se para a vivência do aluno diante do sofrimento do paciente no leito hospitalar (doenças neoplásicas). Já, a professora de Psicopatologia, concentrou-se na experiência do paciente - pautada pelo atendimento ambulatorial - e no papel ativo que ele desempenha na definição e condução de questões que considera importantes sobre seu adoecimento e tratamento. 236

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6 O M6 é o 6º período da Faculdade de Medicina, quando os alunos entram em contato, pela primeira vez, com pacientes internados, como parte integrante da equipe de saúde.


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Com base nessas especificidades, os pesquisadores de TE contribuíram com saberes experienciais sobre educação e tecnologia educacional, aliando as necessidades dos contextos com as características e potencialidades das TICs. PTE: “[...] vamos pensar na realidade: vocês dão aula, de tanto em tanto tempo, para um grupo x de alunos, vocês dividem a turma em três, trazem os pacientes, os pacientes apresentam o seu depoimento. Os alunos perguntam para ele? [...] o que eu estou fazendo é vendo as situações que eles já vivenciam. Não que a tecnologia vá substituir, mas que pode enriquecer...”. PPM: “O problema é que eu não dou aula com pacientes, eles estão nas enfermarias. [...] os alunos falam sobre seus pacientes da enfermaria [...]”. PTE: “Então, o aluno pode ter espaço de voz também... Ele trazer os casos, as vivências”. PPT1: “Acho que é isso, a gente pode incluir a experiência do aluno”.

O diálogo revelou como a proposta de uso das TICs foi sendo construída de acordo com as necessidades dos professores apontadas durante as discussões. A integração dos saberes experienciais de ambos os campos foi crucial para análise do problema educativo e uso das TICs como um dos possíveis caminhos para mudar a prática. Saberes disciplinares Enquanto os pesquisadores de TE contribuíram com conceitos relacionados à educação e ao uso de TICs, os pesquisadores da saúde contribuíram com aqueles referentes à relação com os pacientes. O foco principal da discussão foi o conceito de “experiência”, com base na perspectiva de ambas as áreas. A pesquisadora de TE discutiu o conceito de experiência, contrapondo com a abordagem da aprendizagem baseada em problemas. PTE: “No problem-based a gente coloca o aluno no centro do processo, o aluno está diante de um problema, mas ele está todo organizado [...] A diferença da experiência que eles vivenciam na Psiquiatria é exatamente essa: trazem o paciente para falar o que o paciente sente. E não para ter um estudo de caso [...] É isso que eu acho que é inédito”.

A pesquisadora fez o contraponto entre as duas abordagens, porque ambas têm como pressuposto a experiência ativa do aluno no processo de ensino-aprendizagem, já que, na aprendizagem baseada em problemas (ABP), os alunos resolvem problemas e refletem sobre suas experiências (Hmelo-Silver, 2004). Na sua fala, a pesquisadora reconheceu o valor da experiência na ABP e apontou a necessidade de se buscar uma abordagem que fundamentasse a valorização da experiência do aluno, não só cognitiva, mas, também, afetiva, ao entrar em contato direto com o sofrimento do paciente. Os professores analisaram o conceito de experiência com base na perspectiva dos pacientes. PPT1: “Você pode falar da experiência de fora [...] tem artigos que tratam da experiência e que valorizam a perspectiva da primeira e da segunda pessoa, ou seja, trata disso a partir de relato, valoriza os relatos. O relato de quem ouve vozes é uma peça fundamental ou não. Ou simplesmente você pode dizer ‘pessoas ouvem vozes e eu falo dessa experiência na terceira pessoa’”. PPT1: “[...] tem essa perspectiva mais fenomenológica e corporificada [...] que se chama teoria da interação. Que isso é dado de forma imediata no próprio sentido... Intermodalidade sensorial se dá na relação intercorporal que você pode ter acesso, o que

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não significa que sinta o que o outro sente, mas pela sua perspectiva de ser dotado de consciência e corporificado... Acho que a questão da corporificação [...] a gente pode tomar como central também aqui”.

Os professores se basearam nos conceitos de “primeira pessoa” e “corporificação” para caracterizar a experiência do paciente, em sua dimensão subjetiva. Para eles, o relato do paciente é uma questãochave para proporcionar uma aprendizagem que possibilite ao aluno compreender o adoecimento e o tratamento, a partir de suas próprias vivências. O conceito de corporificação, discutido pelo PPT1, e adotado em sua linha de pesquisa, foi fundamental na seleção da aprendizagem corporificada, identificada como a fundamentação teórica do problema educativo e do desenvolvimento do ambiente. Essa discussão conceitual permitiu compreender o problema educativo, com base em diferentes perspectivas, e definir a teoria norteadora do projeto.

Considerações finais O objetivo deste trabalho foi investigar a fase inicial de análise do problema educativo, da pesquisa e desenvolvimento de um ambiente virtual para ensino de Medicina, apoiado na Pesquisa Baseada em Design (DBRC, 2003); e analisar os principais aspectos que influenciaram no processo de negociação da equipe. O problema educativo discutido foi o modelo tradicional da formação médica e a necessidade de se criarem oportunidades pedagógicas que valorizem a experiência subjetiva dos pacientes como um caminho para transformar a relação médico-paciente. A análise desse problema não foi organizada em divisões de tarefas, como é comum em projetos com o uso das TICs, em que os professores contribuem com o conteúdo e, a equipe de TE, com o modelo pedagógico. A dinâmica fundada na parceria possibilitou negociar e construir uma compreensão integrada do problema, do ponto de vista teórico-prático. Os principais aspectos que influenciaram esta atividade foram as crenças epistemológicas (Jonassen, 2000) e saberes docentes (Olafson, Schraw, 2006; Tardif, 2002) dos pesquisadores. Os pesquisadores manifestaram crenças sobre saúde, formação em saúde, e tecnologia educacional. Em relação à saúde, assumiram um conceito amplo, atribuindo papel central aos pacientes e às suas experiências subjetivas na tomada de decisão do profissional. No que diz respeito à formação em saúde, apontaram a necessidade de a formação médica investir não apenas no ensino técnico-científico mas, também, na transmissão de valores humanísticos aos alunos. Com base em crenças compatíveis com a aprendizagem corporificada, a equipe compreendeu que, ao entrarem em contato direto com a experiência subjetiva dos pacientes, os alunos mobilizam aspectos cognitivos, afetivos e éticos, que permitem a compreensão aprofundada sobre o adoecimento e tratamento, a partir de suas próprias vivências. O ambiente virtual foi compreendido como um meio de potencializar o ensino, conferindo cooperação, interação, autonomia ao processo de ensino-aprendizagem. Pôde-se observar que, neste estudo, as crenças dos pesquisadores foram convergentes, delineando um processo equilibrado de negociação. Esta característica contribuiu para o desenvolvimento de um trabalho marcado pelo consenso, facilitando a compreensão do problema e a construção da identidade coletiva indispensável para o trabalho em equipe em projetos dessa natureza (Fazenda, 1995). Essa convergência foi uma característica peculiar deste grupo, porém, isto nem sempre ocorre em trabalhos em equipe, tornando-se necessário o enfrentamento dos conflitos para se viabilizar um projeto comum (Pinho, 2006). Destacou-se, também, a integração dos saberes experienciais e disciplinares, possibilitando a articulação de diferentes perspectivas na análise do problema. Como os sujeitos da equipe possuem diferentes expertises e, portanto, relações diferenciadas com o campo do ensino médico, o compartilhamento de saberes permitiu que a análise incluísse diferentes dimensões do problema, relacionadas: às práticas na formação e no serviço de saúde; às estratégias pedagógicas adotadas nas disciplinas; às potencialidades das TICs para solucionar o problema, e aos conceitos teóricos sobre 238

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artigos

educação, saúde e relação médico-paciente. Os diferentes saberes teóricos e práticos se complementaram, configurando, assim, um trabalho interdisciplinar (Winters, Mor, 2008). Em relação aos saberes disciplinares, isso ficou claro na definição da teoria norteadora, em que a equipe de TE não impôs um modelo predefinido. A aprendizagem corporificada não era conhecida pelos participantes e foi selecionada por ser adequada ao projeto e compatível com a abordagem narrada pelos professores da área médica sobre suas pesquisas e práticas. Em relação aos saberes experienciais, o trabalho interdisciplinar se destacou nos objetivos do ambiente virtual, já que estes foram definidos a partir da integração dos conhecimentos sobre o uso pedagógico das TICs e aqueles relacionados ao contexto das disciplinas, incluindo as diferentes estratégias utilizadas pelos professores: valorizar o papel ativo dos pacientes psiquiátricos na interação com os alunos e valorizar a reflexão dos alunos sobre suas experiências diante de pacientes com doenças neoplásicas no leito hospitalar. Outro aspecto que se destacou foi o papel da pesquisadora de TE, que orientou as discussões e organizou o trabalho em equipe. A pesquisadora buscou escutar os participantes, sintetizando saberes, problematizando o ensino e propondo caminhos compatíveis com as necessidades pedagógicas do contexto. Barab et al. (2005) consideram que essa postura colaborativa do pesquisador de TE, privilegiando a escuta e a compreensão do problema educativo, é indispensável para se construírem intervenções ancoradas nas necessidades sentidas na prática. Concluiu-se, portanto, que, na análise de problemas complexos, como os da saúde, a parceria é essencial para o desenvolvimento de intervenções pedagógicas inovadoras. Isso porque os sujeitos envolvidos na prática educativa, especificamente os professores, vivenciam o contexto da formação, podendo, portanto, problematizá-lo. Por outro lado, os pesquisadores de TE contribuem para instigar a reflexão sobre ensino e aprendizagem e sugerir possibilidades de intervenção adequadas às necessidades do contexto educacional. Com isso, quanto mais o problema educativo for compreendido em sua complexidade, maiores as possibilidades de superá-lo (Mion, Angotti, 2005). Trabalhos desta natureza podem contribuir para o campo das Tecnologias de Informação e Comunicação no Ensino da Saúde, já que assumem a singularidade das intervenções pedagógicas. O ensino tecnicista da saúde, a necessidade de se investir na humanização do cuidado e de se valorizar a dimensão subjetiva do adoecimento são questões bastante discutidas na literatura (Sucupira, 2007; Amâncio Filho, 2004; Ceccim, Feuerwerker, 2004). Contudo, com a análise do problema, essas questões foram compreendidas em suas especificidades, incluindo as situações e práticas específicas nas quais estes professores estavam envolvidos, assim como suas crenças e saberes. Nesse sentido, a pesquisa no campo de ensino da saúde, orientada pela PBD, possibilita desenvolver intervenções relevantes para o contexto de ensino e, também, construir conhecimentos sobre o próprio processo de desenvolvimento.

Colaboradores Paula Ramos responsabilizou-se pela escrita do artigo, parte de sua pesquisa de tese de doutorado. Miriam Struchiner, orientadora da tese e coordenadora da pesquisa na qual se insere este estudo, responsabilizou-se pela orientação do artigo.

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DESENVOLVIMENTO DE UM AMBIENTE VIRTUAL ...

RAMOS, P. STRUCHINER, M. Desarrollo de un ambiente virtual para la enseñanza de la medicina por un equipo multi-disciplinario: factores que influyen en el análisis del problema educativo. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.227-42, jan./mar. 2011. Este estudio investiga la fase de análisis del problema educativo en el proceso de investigación y desarrollo de un ambiente virtual para la enseñanza de Medicina apoyado en la metodología de la Investigación Basada en Design. El equipo multidisciplinario, compuesto por investigadores de tecnología educacional y salud, discutió el problema de la formación tecnicista y la necesidad de enfatizar experiencias subjetivas de los pacientes como forma de incluir valores éticos en la formación. Con base en el análisis de contenido de las transcripciones de las reuniones de equipo, se discuten los aspectos que influyen en la negociación para definición del problema educativo, de los objetivos del ambiente y de la teoría norteadora de su desarrollo. Se concluye que, en el análisis de problemas complejos como los de la salud es fundamental la integración de las creencias epistemológicas, y de los saberes docentes.

Palabras clave: Investigación basada en design. Ambiente virtual de aprendizaje. Formación médica. Creencias epistemológicas. Saberes docentes. Recebido em 09/09/09. Aprovado em 03/08/10.

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artigos

Modelos de comunicação e uso de impressos na educação em saúde: uma pesquisa bibliográfica *

Fernanda Valéria de Freitas1 Luiz Augusto Rezende Filho2

FREITAS, F.V.; REZENDE FILHO, L.A. Communication models and use of printed materials in healthcare education: a bibliographic survey. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.243-55, jan./mar. 2011.

This paper presents the results from a bibliographic survey on the use of printed materials in healthcare education. The focus was on communication models, users’ representations and the dynamics of content selection and assessment. An analysis was conducted on 11 articles surveyed in the Scielo database. In this analysis, the articles indicated that the communication was characterized by a linear model and impersonality. The receivers were considered to be mere consumers of scientific concepts. In most cases, health professionals were the only people responsible for the selection of content. In the articles surveyed, a conflict between their authors’ perspective (dialogical) and the printed materials producers’ perspective (unilinear) can be found.

Keywords: Health education. Communication. Models of communication. Representations. Educational and promotional materials. Printed material.

O artigo apresenta os resultados de uma pesquisa bibliográfica sobre o uso de materiais impressos na educação em saúde, enfocando os modelos de comunicação, as representações dos usuários e as dinâmicas da seleção de conteúdos e de avaliação. Realizou-se uma análise de 11 artigos pesquisados a partir da base Scielo. Nessa análise, os artigos apontam que a comunicação se caracteriza predominantemente pelo modelo unilinear e pela impessoalidade. Os receptores são considerados meros consumidores de conceitos científicos. Na maioria das vezes, os profissionais de saúde são os únicos responsáveis pela seleção dos conteúdos. Nos artigos pesquisados pode-se encontrar um conflito entre a perspectiva dos seus autores (dialógica) e a dos produtores dos impressos (unilinear).

Palavras-chave: Educação em Saúde. Comunicação. Representações. Materiais educativos e de divulgação. Material impresso.

Elaborado com base em Freitas (2009), pesquisa iniciada em março de 2008. 1 Enfermeira educadora em diabetes, Ministério da Saúde, Hospital Federal do Andaraí. Rua Leopoldo, 280, Andaraí. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.541-170. fernandadefreitas@ globo.com 2 Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro. *

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Introdução A necessidade de manter os pacientes informados é amplamente reconhecida e praticada nos atendimentos clínicos. Tal fato motiva a produção de materiais impressos para diversos propósitos, como: orientar e adaptar comportamentos, promover a saúde, prevenir futuros acometimentos ou informar sobre riscos e estilos saudáveis de vida. Assim, de uma forma geral, os materiais impressos usados na educação em saúde têm como objetivo divulgar conteúdos considerados importantes para a prevenção ou tratamento de enfermidades. De maneira mais específica, estes materiais informam sobre mecanismos que determinam ou favorecem estados ideais de saúde, procuram reforçar orientações transmitidas oralmente em consultas e contribuir na implementação, pelo próprio indivíduo, de cuidados necessários ao tratamento ou prevenção de doenças. Esses materiais de divulgação - nos formatos de cartazes, cartilhas, folders, panfletos, livretos - são, convencionalmente, chamados de “materiais educativos” nos serviços de saúde, por fazerem parte da mediação entre profissionais e população (Monteiro, Vargas, 2006). O problema da pesquisa refere-se à necessidade de se conhecer o processo comunicativo por materiais educativos, tendo em vista que o uso de materiais educativos de forma adequada pode resultar em benefícios na vida do indivíduo. Sendo assim, realizamos uma pesquisa bibliográfica que procurou apresentar e discutir alguns dos problemas e características encontrados, por pesquisas brasileiras, na comunicação e educação em saúde por meio de impressos. O objeto de estudo deste artigo refere-se, portanto, ao uso de materiais impressos na educação em saúde, tendo como base a descrição e análise de pesquisas que enfocam a utilização desses materiais. Diante do uso disseminado de materiais impressos na prática educativa e da sua importância; do entendimento dos processos de educação e comunicação em saúde como práticas sociais orientadas por questões e situações contextuais, que se traduzem em formas de ver a realidade e de construir significados (Oliveira, 2007); e do compartilhamento e negociação de sentidos, valores e motivações que caracterizam o uso, a produção e a recepção de impressos na educação em saúde (Kelly-Santos, 2009; Araújo, 2006), estabelecemos como objetivos deste trabalho: 1) identificar os modelos de comunicação presentes nos materiais impressos analisados pelos artigos pesquisados; 2) conhecer as representações do receptor/sujeito adotadas pelos materiais; 3) descrever a dinâmica de seleção do conteúdo dos materiais; 4) identificar como se dá - sempre segundo os artigos pesquisados - a avaliação da produção e/ou uso dos impressos na educação em saúde.

Procedimentos metodológicos A pesquisa bibliográfica foi realizada no Scientific Eletronic Library Online (Scielo) em dois momentos: a primeira busca utilizou o descritor “educação em saúde”, para a pesquisa inicial, combinado com unitermos; e a segunda, o descritor “impressos”, para uma busca mais precisa. Usando o primeiro descritor, realizamos um levantamento inicial totalizado em 277 artigos. Todos os resumos destes artigos foram lidos e analisados, buscando-se os unitermos: materiais didáticos; material educativo; material informativo; impressos; folhetos; cartazes; cartilhas educativas; e manuais de orientação. Esta seleção resultou num total de 21 artigos. Desse total, foram excluídas ainda, também por meio da leitura dos resumos, as pesquisas que: utilizavam como contexto a saúde escolar; utilizavam os folhetos apenas como tipos de publicação incluída em uma revisão bibliográfica; utilizavam material informativo somente como instrumento de pesquisa com sujeitos, sem que a utilização desse material fosse o enfoque da pesquisa; apenas descreveram formalmente a produção de impressos por profissionais de saúde; e utilizaram os materiais educativos como meio de comunicação e aprendizagem em jogos educativos. Do total de 21 artigos, selecionaram-se dez artigos, que compuseram a análise deste trabalho. Para revalidar a representatividade da pesquisa bibliográfica realizada, utilizamos, como segundo descritor, “impressos”, mais específico para a temática da pesquisa. Obtiveram-se 53 artigos. Foram excluídos os trabalhos já selecionados na primeira busca e, também, após leitura dos resumos, aqueles 244

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que não tratavam de impressos na educação em saúde. Dos 53 artigos, apenas um contemplava os critérios de escolha descritos acima. Acrescidos dos dez artigos obtidos na primeira busca, foram analisados, no total, onze trabalhos que contemplavam os critérios desta pesquisa. Não incluímos, na pesquisa, artigos da literatura internacional, pois se objetivou revisar a prática educativa por impressos desenvolvidos nos serviços de saúde do SUS no Brasil. O ano de publicação não foi utilizado como critério de exclusão. A Tabela 1 lista os títulos dos artigos analisados, seus autores, o ano de publicação e o periódico em que foram publicados.

Tabela 1. Artigos analisados Título do artigo Análise de cartazes sobre esquistossomose elaborados por escolares. Avaliação de material educativo: adequação de quatro volantes sobre alimentação da criança de 0 a 12 meses de idade. Impressos hospitalares e a dinâmica de construção de seus sentidos: o ponto de vista dos profissionais de saúde. O desenvolvimento compartilhado de impressos como estratégia de educação em saúde junto a trabalhadores de escolas da rede pública do Estado do Rio de Janeiro. Comunicação instrumental, diretiva e afetiva em impressos hospitalares. Próteses de comunicação e alinhamento comportamental sobre impressos hospitalares. Programa educativo em esquistossomose: modelo de abordagem metodológica. Comunicação por impressos na saúde do trabalhador: a perspectiva das instâncias públicas. Estudo de recepção de impressos por trabalhadores da construção civil: um debate das relações entre saúde e trabalho. Modelo explicativo popular e profissional das mensagens de cartazes utilizados nas campanhas de saúde. Avaliação de uma cartilha educativa de promoção ao cuidado da criança a partir da percepção da família sobre temas de saúde e cidadania.

Autores

Ano

Periódico

Lefèvre, F.

1980

Rev. Saúde Pública

Kubota, N. et al.

1980

Rev. Saúde Pública

Rozemberg, B.; Silva, A.P.P.; Vasconcellos-Silva, P.R.

2002

Cad. Saúde Pública

Souza, K.R. et al.

2003

Cad. Saúde Pública

Vasconcellos-Silva, P.R.; Rivera, F.J.U.; Castiel, L.D. Vasconcellos-Silva, P.R.; Rivera, F.J.U.; Rozemberg, B. Ribeiro, P.J. et al.

2003

Cad. Saúde Pública

2003

Rev. Saúde Pública

2004

Rev. Saúde Pública

Kelly-Santos, A.; Rozemberg, B.

2005

Ciência & Saúde Coletiva

Kelly-Santos, A.; Rozemberg, B.

2006

Cad. Saúde Pública

Oliveira, V.L.B. et al.

2007

Texto Contexto Enferm

Grippo, M.L.V.S.; Fracolli, L.A.

2008

Rev. Esc. Enferm

Referencial de análise Para a discussão dos resultados encontrados serão apresentados, nesta seção, os referenciais que nortearam, de forma teórica e crítica, a análise das questões pesquisadas nos artigos. Tais referenciais dizem respeito às formas como podem ser concebidos, para este trabalho, o processo de comunicação por impressos e o papel do sujeito-receptor nesse processo. Para a análise dos artigos, adotamos o esquema interpretativo sugerido por Teixeira (1997), sob a forma de diferentes “modelos de comunicação” que caracterizariam os impressos. Em seu artigo, o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.243-55, jan./mar. 2011

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autor indica quatro modelos principais (unilinear, dialógico, estrutural e diagramático), dos quais faremos referência apenas aos três primeiros, já que isto nos parece atender aos objetivos deste trabalho. O modelo unilinear se caracteriza por tomar a comunicação como, essencialmente, uma relação entre um emissor e um receptor, na qual o emissor aplica determinados estímulos e obtém, do receptor, determinadas respostas. Trata-se, fundamentalmente, de um modelo marcado pela unilinearidade, porque supõe o primado de uma direção única de comunicação (do polo emissor ao receptor), e pela causalidade de um polo sobre o outro, ou seja, as ações do emissor causam reações razoavelmente previsíveis no receptor. A comunicação seria uma consequência mecânica (efeitos) de ações de A sobre B (Fausto Neto, 1995). A este modelo corresponderia, segundo Teixeira (1997), a visão historicamente hegemônica nas práticas de comunicação/educação em saúde, pela qual o fornecimento de informações (ação do emissor) produziria mudanças de comportamento em benefício de uma vida mais saudável (resposta previsível do receptor). Este modelo está fortemente enraizado nas práticas de saúde pública vigentes, em que se valoriza o saber médico para fomentar hábitos e práticas de promoção à saúde e a adesão da população aos procedimentos médico-sanitários. Essas ações retratam o modelo tradicionalista da saúde pública com uma perspectiva controladora e adaptativa, como uma estratégia de controle social, ditando normas de conduta moral, social e higiênica (Santos, Westphal, 1999). No que diz respeito à comunicação por impressos como prática de educação em saúde, esta se encontra, segundo Teixeira, balizada pelo modelo unilinear e pelo “núcleo técnico fundamental” que o caracteriza. Primeiramente, supõe-se que há uma falta ou atraso a ser superado e que a superação desses se dará por meio de conhecimentos técnico-científicos. Em um segundo momento, o emissor elabora mensagens (impressos) com elementos comuns e em sintonia com o receptor, realizando uma “decodificação da retórica técnica para uma retórica popular” (Teixeira, 1997, p. 22). Essas mensagens devem se oferecer como “um ‘poder organizador’ do conhecimento de um outro” (Teixeira, 1997, p. 21) de forma a produzir um comportamento mais saudável que leve à superação do problema inicial. Supõe-se, portanto, que o êxito da prática educativa se fundamenta apenas, ou sobretudo, na transmissão de informações, e que o importante é informar, independente do contexto e dos indivíduos envolvidos, pois “quanto mais se dá mais se sabe” (Freire, 1994, p.3). Os modelos dialógico e estrutural, por sua vez, são marcados pela oposição ao modelo unilinear (Teixeira, 1997). Em ambos os modelos, a educação em saúde deixa de ser um instrumento de manipulação, em um processo persuasivo para transferência de informações, e passa a ser um processo de potencialização de transformações da realidade, por meio de uma relação de diálogo, de troca, bidirecional e democrática (Assis, 1992). Seguindo este panorama, os modelos comunicacionais questionam o modelo unilinear, seja por sua “eticidade” (modelo dialógico), seja por sua ineficiência (modelo estrutural) (Teixeira, 1997). O primeiro se filia às abordagens freireanas dos problemas da comunicação e educação em saúde, e critica a comunicação unilinear como “invasão cultural” (Freire, 1983) realizada pelo profissional de saúde ou pelo educador, ao pretender impor a sua cultura/saber sem considerar a cultura/saber do outro, e considera a ação de saúde como espaço de diálogo e negociação. Como alternativa ao modelo unilinear, o modelo dialógico propõe a “problematização” da realidade dos educandos para que estes atuem de forma crítica e autônoma sobre ela e em direção à sua transformação. Segundo Teixeira, tal modelo traz, no entanto, a dificuldade que se encontra em assumir, em profundidade, o “risco do diálogo conflitivo” e em oferecer, de forma concreta, sustentável e aplicável, uma alternativa às práticas persuasivas características do modelo unilinear, sem “demonizá-las”. Já o modelo estrutural coloca em questão “a participação do sujeito nos processos de produção de sentido, nas trocas comunicacionais” (Teixeira, 1997, p.29). Para este modelo, as trocas entre emissor e receptor não se dão apenas em uma única direção, pois o receptor transforma a mensagem ao significála. O próprio ato de recepção da mensagem demanda uma atividade de leitura e interpretação: o sentido não está inteiramente posto pela mensagem, já que depende de uma situação de leitura e de um leitor particular. Neste modelo, o receptor é considerado elemento ativo e criador de sentido, fundamental no processo de comunicação. O sentido já não é um ato unilinear e “transmissional” (Fausto Neto, 1995, p.204). 246

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artigos

Na discussão a seguir, procuramos analisar como os modelos de comunicação podem ser relacionados e identificados com base nas análises realizadas pelos autores dos artigos estudados. Para isso, dividimos a discussão em quatro seções, das quais as duas primeiras são mais importantes: os modelos de comunicação presentes e as representações do receptor. As duas últimas seções, sobre seleção dos conteúdos e avaliação da produção e/ou uso dos impressos, complementam as primeiras na medida em que fornecem mais informações para se respaldarem as conclusões tiradas a respeito das duas primeiras. É importante dizer que essa organização atende não apenas aos objetivos deste artigo, mas também respeita as características das publicações analisadas, uma vez que os quatro núcleos de sentido aqui destacados também foram destacados pelos autores dos artigos pesquisados, ainda que não nos mesmos termos ou de forma homogênea.

Resultados e discussão Modelos de comunicação presentes nos materiais educativos impressos Os trabalhos de Lefèvre (1980); Kubota et al. (1980); Rozemberg, Silva e Vasconcellos-Silva (2002); Vasconcellos-Silva, Rivera e Castiel (2003); Vasconcellos-Silva, Rivera e Rozemberg (2003); Kelly-Santos e Rozemberg, (2005); Kelly-Santos e Rozemberg, (2006); e Oliveira et al. (2007) apontam que os processos comunicativos e educativos por materiais impressos se baseiam na lógica transmissional, característica do modelo unilinear de comunicação. Podemos afirmar que tais autores encontraram, em suas pesquisas, a presença hegemônica deste modelo nos materiais educativos analisados. Esses autores comentam que o modelo unilinear de comunicação e o discurso unidirecional restringem os espaços para negociação de sentidos, já que os sentidos seriam considerados unívocos pelos próprios produtores dos materiais. Esse modelo de comunicação filia-se ao paradigma biomédico, em que os indivíduos são vistos como carentes de informações acerca dos cuidados que devem manter para promover a boa saúde (Severo, Cunha, Ros, 2001). Como veremos mais detalhadamente na próxima seção, a este modelo subjaz uma certa representação do sujeito-receptor: acredita-se que os indivíduos são homogêneos, como se estivessem fixados semântica e socialmente em um universo de sentidos únicos e imutáveis, e assimilassem os conteúdos dos materiais educativos da mesma forma. Kelly-Santos e Rozemberg (2005), por exemplo, comentam sobre a tendência à generalização, do público, pelos produtores de materiais, tratando-o de maneira homogênea. Neste caso, a preocupação é “distributiva”, ou seja, abranger um maior número possível de pessoas, sem levar em consideração a segmentação do público. Esse posicionamento é bastante característico do modelo unilinear de comunicação, já que este supõe uma primazia do emissor sobre o receptor e a “irrelevância” das diferenciações do público, uma vez que a mensagem “bem produzida” teria a capacidade de eliminar as possíveis diferenças de leitura produzidas pelas diferenças socioculturais dos leitores (Fausto Neto, 1995). Essa mesma tendência também foi apontada pela pesquisa de Rozemberg, Silva e Vasconcellos-Silva (2002, p.1692), que entrevistaram profissionais de um hospital para investigar o conjunto de pressupostos e estratégias de que eles se valem ao produzirem as mensagens impressas. Os autores apontaram que os produtores idealizam a mensagem como geradora de um mesmo efeito nos receptores. É como se existisse um sentido universal “adequado e correto” que pudesse ser encontrado e, então, disponibilizado aos pacientes. Consolida-se, assim, a ideia segundo a qual o grupo de leitores potenciais é homogêneo e estático. Os autores discutem ainda que os produtores dos materiais supõem, em geral, que a doença é fruto da “ignorância” da população. Dessa forma, os materiais representam, para eles, um instrumento que pode combater essa ignorância ao difundir informações técnicas e eliminar hábitos inadequados. Os materiais educativos são considerados, portanto, recursos que possuem a tarefa de alinhar comportamentos, de inserir, na sociedade, normas e padrões de comportamentos, noções adequadas de higiene e mudanças de hábitos (Vasconcellos-Silva, Rivera, Castiel, 2003; Rozemberg, Silva, Vasconcellos-Silva, 2002). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.243-55, jan./mar. 2011

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Pressupõe-se, também, que a disseminação/divulgação das informações garante a adesão dos pacientes às orientações. Isto foi apontado pelo estudo de Kelly-Santos e Rozemberg (2005) quando investigaram processos comunicativos mediados por impressos no binômio saúde-trabalho sob a perspectiva dos produtores. Identificaram que o polo emissor confere a esta prática comunicativa a função de possibilitar o acesso às informações sobre os serviços de saúde e os determinantes do processo saúde-doença. Nota-se, assim, como o modelo unilinear de comunicação está “naturalizado” pelos produtores de impressos. Esta pode ser uma das razões pelas quais a pesquisa de Vasconcellos-Silva, Rivera e Castiel (2003) encontrou uma separação entre profissionais de saúde e usuários, apesar da proximidade física que ambos os grupos precisam estabelecer nos serviços de saúde. De um lado, os profissionais transmitem informações, de forma unidirecional, sem interesse pelo diálogo, excluindo a percepção dos diversos conteúdos sociais, biográficos e culturais que influenciam essa prática. Do outro lado, estão sujeitos dotados de saberes, experiências e vivências próprias, que elaboram ativamente diversos significados diante das mensagens e que buscam auxílio para algum comprometimento. Os impressos, geralmente, não levam em consideração esta assimetria e, portanto, não favorecem a interação e o diálogo entre profissionais e população, provavelmente porque os produtores não veem sentido em tais práticas dialógicas, já que “pensam” de acordo com o modelo unilinear de comunicação. Como consequência, ocorrem “deficits” comunicativos entre a população e os profissionais e, muitas vezes, os materiais não passam de uma extensão do discurso médico hegemônico dirigido aos pacientes (Oliveira et al., 2007). Este também é o sentido que Vasconcellos-Silva, Rivera e Castiel (2003) encontraram nos materiais impressos analisados: representam próteses comunicativas no contexto hospitalar. Ou seja, são extensões de um discurso originado em outro contexto que reforçam a assimetria e a verticalidade existentes no processo comunicativo entre profissional de saúde e paciente, como já indicado acima. É como se os impressos operassem um tipo de substituição da comunicação direta entre profissionais e pacientes, no intuito de ganhar tempo e objetividade no trabalho. Essas próteses são “como resíduos de atos de fala especialistas no formato de mensagens de natureza fragmentária, amiúde redundantes e, por vezes, contraditórias” (Vasconcellos-Silva, Rivera, Castiel, 2003, p.1668). Na visão destes profissionais-produtores, é indispensável que pacientes sigam uma regulamentação técnica que é validada em normas apoiadas em um saber complexo, pouco acessível aos leigos. Lefèvre (1980) também discute, em relação à produção de impressos para a educação em saúde, a não-observação das referências culturais do indivíduo como forma de “invasão cultural” das próteses comunicativas. Essa foi a situação encontrada pelo autor em uma prática educativa que tentava mudar os hábitos tradicionais de populações afetadas pela esquistossomose. Nessa prática, o autor notou que a esquistossomose era considerada resultado de hábitos inadequados que deveriam ser inibidos e substituídos por novas práticas. Mas ao tentar modificar os hábitos, que são comportamentos ancorados na cultura e considerados bons, normais, naturais, os profissionais não conseguiram reduzir a incidência de esquistossomose. Comprovou-se que o desrespeito à cultura do indivíduo dificilmente permitiria alcançar a “mudança efetiva, profunda e duradoura de comportamentos” (Lefèvre, 1980, p.403). No mesmo sentido da desconsideração sobre a cultura, a linguagem conferida aos conteúdos abordados nos materiais também é sintomática do modelo unilinear e de sua visão de “tradução” entre retórica técnico-científica e retórica popular (Teixeira, 1997). Esse processo de “tradução”, no entanto, não é inequívoco, já que a linguagem adotada pode dificultar a compreensão das prescrições veiculadas. Vasconcellos-Silva, Rivera, Castiel (2003, p.1672) citam exemplos de expressões que dificultam a compreensão do discurso prescritivo presente nos impressos, que podem ser de uso corriqueiro para os profissionais, mas não fazem parte do vocabulário da população. Da mesma forma, Oliveira et al. (2007) apontam que, quando existe uma preocupação com a adequação da linguagem, ela é orientada pela pressuposição de que a população tem deficits de cognição e dificuldades de compreensão (Oliveira et al., 2007). Rozemberg, Silva e Vasconcellos-Silva (2002) também encontraram esse tipo de orientação ao detectarem a crença segundo a qual uma “linguagem acessível” estaria em usar termos de fácil entendimento, que apenas traduzissem, para os leitores, os termos técnico-científicos. Entretanto, os autores destacam que utilizar uma linguagem adequada não significa verter para uma forma simplificada determinado conteúdo científico, mas 248

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artigos

compreender a linguagem e os códigos do interlocutor e atingi-lo por meio de uma expressão que faça sentido em seu universo cultural e que seja compatível com sua realidade. A linguagem dos impressos também é marcada pela impessoalidade manifesta na preferência dada a termos técnicos em lugar de termos mais correntes. Quanto maior a complexidade na fundamentação dos argumentos acerca de instruções a serem acatadas, maior a impessoalidade dos discursos que se apresentam, geralmente, em tônicas imperativas (Vasconcellos-Silva, Rivera, Castiel, 2003). Em contrapartida, três dos artigos analisados (Grippo, Fracolli, 2008; Ribeiro et al., 2004; Souza et al., 2003) relataram usos de impressos cujo modelo de comunicação tendia a se afastar do unilinear e a se aproximar do dialógico, como caracterizaremos a seguir. Ribeiro et al. (2004) elaboraram materiais educativos contendo informações sobre a clínica, tratamento e prevenção da esquistossomose, no intuito de facilitar o entendimento da população sobre a doença. Por tentarem incluir o saber do outro na produção do material impresso e reduzir a dimensão de “invasão cultural” presente nas ações de saúde tradicionais, podemos considerar que a prática educativa realizada se filia, de forma predominante, aos princípios do modelo dialógico de comunicação e à base filosófica pedagógica freireana. Já Grippo e Fracolli (2008) relatam terem produzido uma cartilha sobre desenvolvimento infantil, gestação e crescimento saudável, propondo facilitar o processo de aprendizado e promover o “empowerment” dos indivíduos. As autoras se preocuparam em utilizar uma linguagem acessível aos familiares e chamar a atenção para ações simples que, muitas vezes, eram pouco valorizadas pelos pais, mas que continham um impacto muito significativo no desenvolvimento da criança. Por utilizar instrumentos facilitadores do processo de aprendizado voltados para a realidade e contexto do indivíduo, este material educativo pode ser considerado, pelo menos em parte, como dotado de características do modelo dialógico de comunicação. Souza et al. (2003) delinearam os passos do desenvolvimento compartilhado de um material educativo, junto com merendeiras e serventes de escolas públicas, a partir de uma investigação participativa. Neste estudo, encontravam-se, de um lado, o saber formal (as pesquisadoras), amparado pela concepção de que o sujeito pode transformar sua realidade, e, de outro, o saber da prática cotidiana (merendeiras e serventes). Os autores relatam a preocupação com a construção de um espaço de fala, em que os trabalhadores e pesquisadores puderam expor suas ideias, de maneira a superar seus preconceitos e construir coletivamente um novo sentido para suas experiências. Como resultado, elaborou-se um material informativo/educativo que socializava os conteúdos problematizados pelos trabalhadores nas oficinas em saúde. Esse processo, além de discutir os significados presentes na realidade dos indivíduos, possibilitou, segundo as autoras, a reflexão dos mesmos e o aumento de sua autonomia. As ações relatadas nesse trabalho se alinham ao modelo dialógico de comunicação.

Representações do sujeito receptor nos materiais educativos Após analisarem os impressos, os autores Rozemberg, Silva e Vasconcellos-Silva (2002); VasconcellosSilva, Rivera e Rozemberg (2003); Vasconcellos-Silva, Rivera e Castiel (2003); e Kelly-Santos e Rozemberg (2005) observaram que os receptores/sujeitos são vistos como “consumidores” à procura de conceitos científicos diante dos materiais, pois necessitariam de entendimento para se salvaguardarem dos riscos à saúde. Rozemberg, Silva e Vasconcellos-Silva (2002, p. 1969) apontam, também, que os produtores dos materiais referem-se à clientela como “receptores passivos” dos conteúdos das mensagens transmitidas nos materiais impressos, cuja atividade intelectual seria bloqueada pela sutileza e complexidade das informações. Tais representações poderiam ser consideradas mais um indício da predominância do modelo unilinear de comunicação, já que esse modelo, como vimos, assume que o receptor se apresenta como uma clientela “passiva”, de “saber vazio” a ser preenchido ou corrigido por saberes científicos. Oliveira et al. (2007) apontam que, na opinião dos profissionais de saúde, a clientela apresenta deficits cognitivos que, somados à precariedade da situação econômica e pelos baixos níveis de escolaridade, representam empecilhos ao bom entendimento das mensagens dos materiais educativos. Os autores usam, como exemplo, uma frase dita por um profissional: “O QI do povo ainda é muito baixo” (Oliveira et al., 2007, p.291). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.243-55, jan./mar. 2011

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As autoras Kelly-Santos e Rozemberg (2006, p.980) relataram, explicitamente, a “condição de assujeitamento, via ‘desqualificação’ e ‘desvalorização’ do saber da clientela”, ao estudarem as relações de produção do binômio saúde-trabalho. Ao investigarem a prática comunicativa por impressos em curso nos Programas de Saúde do Trabalhador, essas autoras evidenciaram que o saber operário é totalmente desacreditado. Predomina o ponto de vista do especialista, em detrimento dos saberes do público a que se destina, como acontece no modelo unilinear de comunicação. Em um caso extremo, pacientes analfabetos foram comparados a crianças pequenas, evidenciando como o profissional de saúde pode “infantilizar” o adulto sem escolaridade. A comparação com uma criança tem um peso significativo, já que, segundo essa visão, o indivíduo sem escolaridade precisaria aprender tudo sobre o mundo, como se fosse uma criança de saber vazio que precisa ter o mundo desvelado por um adulto (Rozemberg, Silva, Vasconcellos-Silva, 2002). Essa “infantilização” do paciente é confirmada pelo estudo de Vasconcellos-Silva, Rivera e Castiel (2003), que, ao analisarem imagens em impressos, apontam que é muito frequente o uso de personagens de quadrinhos nos impressos utilizados em câncer e pediatria. Esses materiais procuram “amenizar” os conteúdos, já que circulam em contextos de sofrimento e dor, mas acabam utilizando um estilo textual e gráfico que simplifica excessivamente as informações. Consequentemente, pode-se concluir que os destinatários são subestimados e compreendidos como sujeitos incapazes de dialogar em condições de igualdade, reforçando a lógica transmissional do modelo unilinear de comunicação que caracteriza tais materiais. Também criticando esse modelo, a pesquisa de Lefèvre (1980, p.403) aponta que os sujeitos são vistos como “ignorantes” pelos profissionais de saúde, pois possuem hábitos “primitivos” que causam doenças e, por isso, deveriam ser substituídos por hábitos “modernos”, por meio da difusão de informações.

Seleção de conteúdo para os materiais De acordo com os autores Lefèvre (1980); Kubota et al. (1980); Rozemberg, Silva e VasconcellosSilva (2002); Vasconcellos-Silva, Rivera e Rozemberg (2003); Vasconcellos-Silva, Rivera e Castiel (2003); Kelly-Santos e Rozemberg (2005); Kelly-Santos e Rozemberg (2006); e Oliveira et al. (2007), a seleção do conteúdo dos impressos é feita pelos próprios profissionais de saúde. Nas pesquisas desses autores, quando os profissionais entrevistados foram perguntados sobre como os conteúdos são selecionados, verificou-se que essa seleção não aparece como objeto de problematização. A inclusão dos grupos de pacientes no processo de elaboração de impressos raramente ocorre. Por este motivo, pode-se considerar que a contribuição e/ou interferência que estes grupos poderiam ter sobre a seleção dos conteúdos é pouco usual. Tal fato denota um desinteresse do produtor desse tipo de impresso pelo diálogo com os seus receptores. Rozemberg, Silva e Vasconcellos-Silva (2002) comentam que os profissionais se baseiam em manuais técnicos e, sobretudo, na própria experiência do atendimento para definirem as informações consideradas importantes. Dessa forma, são contemplados, nos materiais, algumas dúvidas e questionamentos mais comuns da clientela sobre problemas específicos, muitas vezes usando-se o formato de “perguntas e respostas” para proporcionar uma leitura dinâmica do material. A este respeito, o estudo de Vasconcellos-Silva, Rivera e Castiel (2003, p.1677) afirma que, apesar de ser útil abordar as dúvidas mais frequentes da clientela, esta estratégia pode resultar na valorização de questões que não são importantes para os clientes e na desvalorização daquelas que o são. Vasconcellos-Silva, Rivera e Rozemberg (2003) ressaltam que os profissionais da área da educação em saúde confundem, sistematicamente, as dimensões comunicacionais – que envolvem interação humana – com as transmissionais – que envolvem tecnologia da informação. Por isso, recomendam que os interesses dos participantes e a experiência de cada um deva orientar a seleção dos conteúdos, promovendo a construção compartilhada de conhecimentos pelo diálogo (Ribeiro et al., 2004). Souza et al. (2003) também referem que é necessário que os sujeitos participem ativamente da seleção dos conteúdos dos materiais, pois o ponto de partida para a produção de novos conhecimentos é a experiência e a cultura dos sujeitos envolvidos, buscando um espaço de aprendizagem coletiva. 250

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artigos

Somente os autores Rozemberg, Silva e Vasconcellos-Silva (2002); Souza et al. (2003); Ribeiro et al. (2004); e Grippo e Fracoli (2008) descreveram o uso de impressos em que a seleção de conteúdos ocorreu em meio ao diálogo com os sujeitos sobre suas experiências e necessidades. Ribeiro et al. (2004), por exemplo, elaboraram impressos com a proposta de atenderem as necessidades educativas da população. Tendo em vista o índice de analfabetismo e o baixo nível de escolaridade, os autores selecionaram os assuntos a serem abordados partindo dos interesses e experiências dos participantes, estimulando a troca de experiências. O estudo de Rozemberg, Silva e Vasconcellos-Silva (2002) apontou a inexistência de pesquisas prévias para a seleção de conteúdo dos impressos. Esses autores acreditam que, ao não se realizarem pesquisas, resultam simplificações, generalizações e reducionismos, porque os conteúdos passam a se referir ao que os profissionais acreditam que “o paciente quer”. De acordo com esses autores, os únicos estudos prévios à produção, apontados na literatura, restringem-se ao conhecimento do nível de escolaridade do público, como se esta informação fosse suficiente para traçar um perfil consistente dele. Na verdade, desta forma, reforçam-se estereótipos sobre a baixa escolaridade.

Avaliação da produção e/ou uso dos materiais Kubota et al. (1980) referem que é fundamental avaliar o resultado do uso dos materiais educativos para conhecer o papel que esses materiais efetivamente desempenham na comunicação entre profissionais e usuários dos serviços de saúde. De acordo com Kelly-Santos e Rozemberg (2005), a ausência de experiências que avaliem os materiais educativos se contrapõe à quantidade de impressos que são utilizados. São precárias as referências que pesquisam sobre a eficiência ou comunicabilidade dos materiais educativos. De acordo com Kubota et al. (1980), existem dois procedimentos de avaliação que podem ser considerados para o material impresso: um pré-teste aplicado durante o processo de produção, para se conhecer a percepção e interpretação das informações pelos sujeitos receptores; e uma avaliação da eficiência durante o seu uso, destinada a analisar o comportamento dos indivíduos em relação ao material. Rozemberg, Silva e Vasconcellos-Silva (2002, p.1686) apontam que a avaliação do material educativo, quando ocorre, raramente escapa do enfoque quantitativo e mecanicista das “escalas de atitudes e opiniões”, ou oferece resultados já mais ou menos previstos, como os exemplos que os autores citam: “o público está sensibilizado...”, “os pacientes agora sabem melhor”, ou “aprendeu um pouquinho mais sobre a doença”. Estas supostas avaliações nada esclarecem sobre as estratégias e experiências de apropriação das mensagens por parte dos usuários. Para os autores, é importante conhecer as racionalidades, motivações, lógicas de utilização e sentido das mensagens informativas/ educativas, no universo do público ao qual são endereçadas. Kelly-Santos e Rozemberg (2006, p.983) consideram a análise dos materiais educativos, por seus próprios destinatários, como um lugar privilegiado de negociação de sentidos e, sobretudo, um espaço de apreensão dos modos de viver de diferentes grupos sociais. “Dessa forma, os materiais educativos em saúde são componentes do processo de aprendizagem, e quando usados de maneira participativa e interativa podem facilitar a produção de conhecimento por seus leitores”. Oliveira et al. (2007) também defendem a participação ativa dos sujeitos nos processos de desenvolvimento dos materiais e na avaliação dos mesmos, já que isto seria parte de uma abordagem que coloca os materiais a serviço da autonomia do paciente no cuidado. Tal ação caracterizaria os modelos de comunicação dialógico e estrutural, pouco encontrados, no entanto, nas pesquisas analisadas. Rozemberg, Silva, Vasconcellos-Silva (2002) afirmam que, como o objetivo da maioria dos impressos é o convencimento unilateral, com poucas oportunidades de interação com a clientela, a potencialidade do uso desse tipo de material é restrita, já que esses não “falam realmente” com os pacientes. Da mesma forma, os autores Grippo e Fracolli (2008) ressaltam a necessidade de os sujeitos receptores serem ouvidos na construção dos materiais, na utilização e avaliação destes. Para esses autores, quando os indivíduos são levados em consideração na avaliação dos materiais, há melhor chance de que a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.243-55, jan./mar. 2011

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educação em saúde por impressos se transforme em uma experiência rica e aumente a identificação dos sujeitos com o material educativo. Kubota et al. (1980) referem-se ao uso de materiais educativos como algo que deve ser complementado por outras práticas educativas, pois esses materiais não podem ser considerados como fins em si mesmos. Deve-se, sempre, complementar a distribuição do material com orientações sobre seu conteúdo. A educação em saúde representa um processo, portanto, utilizar somente um material educativo não garante bons resultados. Qualquer material educativo utilizado isoladamente resultará na pouca validade para a ação educativa.

Conclusão Como pudemos notar a partir da análise dos artigos levantados por esta pesquisa, na maior parte das vezes, o uso de materiais impressos na educação em saúde é descrito de forma crítica e caracterizado como deficiente e/ou de alcance ou eficácia limitada. Da mesma forma, podemos afirmar que esses materiais estão quase sempre fundamentados por um mesmo modelo de comunicação (o modelo unilinear) e uma mesma visão estereotipada da clientela, além de carecerem de processos mais ampliados de seleção dos conteúdos e de avaliação. Tais conclusões parecem estar relacionadas. Seria preciso pesquisar melhor como esta relação se dá. No que diz respeito aos modelos de comunicação encontrados, vimos que, de acordo com o universo pesquisado, o modelo unilinear de comunicação predomina nos materiais impressos para educação em saúde. Esse modelo está naturalizado entre produtores e profissionais de saúde, e a clientela é vista, quase sempre, como um todo homogêneo. A separação entre profissionais de saúde e usuários do sistema está claramente indicada pela forma como os impressos funcionam, como “próteses” ou extensões do discurso médico hegemônico, que reforçam a “invasão cultural” presente, de forma predominante, nas ações de saúde. A linguagem dos impressos é tratada, geralmente, como mero instrumento de “tradução” entre o científico e o popular. Apesar de as interações ativas entre profissional e clientela serem valorizadas nos estudos analisados, como forma de alcançar resultados mais positivos, a predominância do modelo unilinear de comunicação parece limitar este tipo de ação. Poucos artigos relataram perspectivas de produção de impressos caracterizadas pelo modelo dialógico e nenhum pelo modelo estrutural de comunicação. No que diz respeito às representações mais frequentes do sujeito receptor (clientela dos impressos), esses são vistos como “consumidores” de informação, passivos, ignorantes e/ou deficitários no que diz respeito às capacidades cognitivas, à inteligência e ao uso da língua. A infantilização da clientela é o resultado mais frequente desta representação. A “homogeneização” da clientela, característica do modelo unilinear, também encontra repercussões nas representações e reforça os laços entre elas e o modelo de comunicação adotado pelo produtor/profissional de saúde. Já no que diz respeito à seleção de conteúdo, esta é feita, predominantemente, pelos profissionais de saúde envolvidos na produção do impresso, a partir de manuais técnicos e/ou de suas experiências profissionais. Essa seleção não é problematizada pelos produtores. São raras as pesquisas prévias e a participação de usuários na seleção dos conteúdos. Quanto à avaliação dos materiais, quando encontrada, se apresenta de forma inconsistente, assistemática e com pequena participação dos sujeitos receptores. Este panorama aponta para a predominância do modelo biomédico na prática educativa em saúde por impressos, em que o sujeito é impotente na relação estabelecida com os profissionais da área - o que distancia ainda mais o saber científico do popular. Entre as principais recomendações dos autores dos artigos analisados, podemos destacar, como as mais frequentes: a consideração da cultura e do saber dos receptores na produção de materiais impressos, e a criação de espaços para reflexão e compartilhamento de conhecimentos entre profissionais e clientela (Grippo, Fracolli, 2008; Rozemberg, Silva, Vasconcellos-Silva, 2002). Desta perspectiva, uma outra representação da clientela ganha força: o sujeito receptor é um ser dotado de saber e de razão, cujos conhecimentos e experiências devem ser valorizados, e não subestimados, 252

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como afirmam Kubota et al. (1980), Souza et al. (2003), Ribeiro et al. (2004), Grippo e Fracolli (2008), por exemplo. Vasconcellos-Silva, Rivera e Rozemberg (2003) reforçam essa visão ao reafirmarem a importância do estabelecimento de relações interpessoais baseadas em regras de reconhecimento mútuo para a negociação de sentidos, que garantam o questionamento e uma escuta ativa. Podemos, assim, afirmar que é predominante, na perspectiva teórico-crítica adotada pelos artigos analisados, o entendimento segundo o qual a clientela é potencialmente criativa e sensível, e que o processo de educar-cuidar deve ocorrer em uma relação horizontal, dialógica, recíproca e humana. A partir destas conclusões, podemos inferir que as análises realizadas nos artigos pesquisados são marcadas por um conflito de perspectivas entre os analistas dos materiais impressos e os produtores dos materiais. Os analistas, ou seja, os autores dos artigos aqui descritos, filiam-se, claramente, a uma perspectiva de inspiração freireana e, portanto, ao modelo dialógico de comunicação, enquanto os produtores de materiais impressos, de acordo com as análises encontradas nesta pesquisa, se alinhariam, mais frequentemente, ao modelo unilinear hegemônico de comunicação. Tal conflito fica claro nas recomendações dadas pelos artigos, quase sempre questionando as ações comunicativas tradicionais e hegemônicas. Os trabalhos que propuseram experiências educativas “alternativas” a essas ações hegemônicas, por sua vez, não relatam as dificuldades apontadas pelo referencial de análise aqui adotado, o que não nos permite avaliar a sua viabilidade como prática contra-hegemônica. De nossa parte, acreditamos que, apesar do olhar eminentemente crítico da pesquisa na área, a comunicação e a educação por materiais impressos podem ainda abrir caminhos novos para a promoção da saúde, seja pela participação da população numa construção compartilhada de conhecimentos (conforme os modelos dialógico e estrutural), seja por outros meios que venham a ser implementados (Teixeira, 1997). No entanto, se aceitarmos que o receptor de materiais educativos tem papel ativo na produção de significado, devemos atentar não só para a melhoria da produção desses materiais, mas também para a pesquisa sobre a sua recepção/consumo. Portanto, a consideração sobre o papel do receptor/cliente na recepção de materiais educativos em saúde deve estar refletida não só na produção de novos materiais, mas também na pesquisa sobre como os processos de recepção e mediação se dão efetivamente.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ARAÚJO, I.S. Materiais educativos e produção dos sentidos na intervenção social. In: MONTEIRO, S.; VARGAS, E.P. (Org.). Educação, comunicação e tecnologia: interfaces com o campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. p.49-69. ASSIS, M. Da hipertensão à vida: por uma práxis comunicativa na educação e saúde. 1992. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1992. FAUSTO NETO, A. A deflagração do sentido: estratégias de produção e de captura da recepção. In: SOUZA, M. (Org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.181-217. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. ______. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

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FREITAS, F.V. Leitura de materiais educativos usados na educação em diabetes: uma análise por meio da semiótica social. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) - Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2009. GRIPPO, M.L.V.S.; FRACOLLI, L.A. Avaliação de uma cartilha educativa de promoção ao cuidado da criança a partir da percepção da família sobre temas de saúde e cidadania. Rev. Esc. Enferm. USP, v.42, n.3, p.430-6, 2008. Disponível em: <http:// www.scielo.br/pdf/reeusp/v42n3/v42n3a02.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2009. KELLY-SANTOS, A. A palavra & as coisas: produção e recepção de materiais educativos sobre hanseníase. 2009. Tese (Doutorado) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2009. KELLY-SANTOS, A.; ROZEMBERG, B. Estudo de recepção de impressos por trabalhadores da construção civil: um debate das relações entre saúde e trabalho. Cad. Saude Publica, v.22, n.5, p.975-85, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ csp/v22n5/10.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2009. ______. Comunicação por impressos na saúde do trabalhador: a perspectiva das instâncias públicas. Cienc. Saude Colet., v.10, n.4, p.929-38, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232005000400016&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 30 mai. 2009. KUBOTA, N. et al. Avaliação de material educativo: adequação de quatro volantes sobre alimentação da criança de 0 a 12 meses de idade. Rev. Saude Publica, v.14, n.1, p.101-22, 1980. Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89101980000100009>. Acesso em: 30 mai. 2009. LEFÈVRE, F. Análise de cartazes sobre esquistossomose elaborados por escolares. Rev. Saude Publica, v.14, n.3, p.396-403, 1980. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ rsp/v14n3/10.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2009. MONTEIRO, S.; VARGAS, E.P. (Orgs.). Educação, comunicação e tecnologia: interfaces com o campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. OLIVEIRA, V.L.B. et al. Modelo explicativo popular e profissional das mensagens de cartazes utilizados nas campanhas de saúde. Texto Contexto Enferm., v.16, n.2, p.287-93, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v14n3/10.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2009. RIBEIRO, P.J. et al. Programa educativo em esquistossomose: modelo de abordagem metodológica. Rev. Saude Publica, v.38, n.3, p.415-21, 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v38n3/20659.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2009. ROZEMBERG, B.; SILVA, A.P.P.; VASCONCELLOS-SILVA, P.R. Impressos hospitalares e a dinâmica de construção de seus sentidos: o ponto de vista dos profissionais de saúde. Cad. Saude Publica, v.18, n.6, p.1685-94, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v18n6/13265.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2009. SANTOS, J.; WESTPHAL, M. Práticas emergentes de um novo paradigma de saúde: o papel da universidade. Est. Avançad., v.13, n.35, p.71-88, 1999. SEVERO, D.O.; CUNHA, A.P.; ROS, M.A. Articulação nacional de movimentos e práticas de educação popular e saúde no estado de Santa Catarina: fortalezas e fragilidades. Texto Contexto Enferm., v.16, n.2, p.239-45, 2001. SOUZA, K.R. et al. O desenvolvimento compartilhado de impressos como estratégia de educação em saúde junto a trabalhadores de escolas da rede pública do Estado do Rio de Janeiro. Cad. Saude Publica, v.19, n.2, p.495-504, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v19n2/15415.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2009.

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artigos

TEIXEIRA, R.R. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.1, n.1, p.7-40, 1997. VASCONCELLOS-SILVA, P.R.; RIVERA, F.J.U.; CASTIEL, L.D. Comunicação instrumental, diretiva e afetiva em impressos hospitalares. Cad. Saúde Pública, v.19, n.6, p.1667-79, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v19n6/a11v19n6.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2009. VASCONCELLOS-SILVA, P.R.; RIVERA, F.J.U.; ROZEMBERG, B. Próteses de comunicação e alinhamento comportamental sobre impressos hospitalares. Rev. Saude Publica, v.37, n.4, p.531-42, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v37n4/ 16791.pdf>. Acesso em: 30 mai. 2009.

FREITAS, F.V.; REZENDE FILHO, L.A. Modelos de comunicación y uso de impresos en educación en salud: una pesquisa bibliográfica. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.243-55, jan./mar. 2011. El artículo presenta los resultados de una encuesta sobre el uso de materiales impresos en la educación en la salud, con enfoque sobre los modelos de comunicación, las representaciones de los usuarios y las dinámicas de selección de contenidos y de avaliación. Se realizó un análisis de 11 artículos de búsquedas en la base SciELO. En este análisis, los artículos indican que la comunicación se caracteriza por el modelo unilinear y la impersonalidad. Los receptores son considerados meros consumidores de conceptos científicos. En la mayoría de los casos, el profesional de la salud es el único responsable de la selección de contenido. En los artículos pesquisados se encuentra un conflicto entre la perspectiva de sus autores (dialógica) y la de los productores de los impresos (unilinear).

Palabras clave: Educación para la salud. Comunicación. Modelos de comunicación. Representaciones. Materiales educativos y de divulgación. Material impreso. Recebido em 11/04/09. Aprovado em 17/06/10.

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artigos

Evidências produzidas por pesquisas qualitativas sobre diabetes tipo 2: revisão da literatura *

Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos1 Nelson Filice de Barros2 Cristiane Spadacio3 Sarah Monte Alegre4 Philip Tovey5 Alex Broom6

CASTELLANOS, M.E.P. et al. Evidence produced by qualitative investigations on type 2 diabetes: a review of the literature. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.257-73, jan./mar. 2011. Type 2 diabetes has a major impact on patients’ lives and the healthcare network. Given the growth in qualitative information on diabetes, it becomes important to systematize this knowledge. A meta-study on diabetes was conducted through analysis on 42 articles that were made in journals at the periodicals portal of the Coordination Office for Advancement of Higher-level Personnel (Capes). We found that the studies reviewed had a good theoretical basis, which included: care management, health-disease concepts, professionalpatient relationships, professional practices and treatment compliance. The articles clearly described the methodological procedures used. The use of interviews and focal groups for data gathering predominated, and it was sought to explore different views of the individuals investigated. It was reaffirmed that it was important for health professionals and managers to implement healthcare policies, programs and models that are appropriate for the specific features of chronic illness, guided by comprehensive care and co-responsibility.

Keywords: Diabetes Mellitus. Qualitative research. Chronic disease. Sociology.

O diabetes tipo 2 produz um grande impacto sobre a vida dos pacientes e a rede assistencial. Diante do crescimento de informações qualitativas sobre diabetes, torna-se importante a sistematização desse conhecimento. Foi realizado um metaestudo sobre diabetes, por meio da análise de 42 artigos disponibilizados em revistas do portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Identificamos bom grau de teorização nos estudos revisados, os quais abordaram: gerenciamento do cuidado, concepções saúde-doença, relação profissionalpaciente, práticas profissionais e adesão ao tratamento. Os artigos descreveram claramente os procedimentos metodológicos adotados. Houve predomínio do uso de entrevistas e grupos focais para a coleta de dados, buscando explorar diferentes visões dos sujeitos investigados. Afirma-se a importância dos profissionais de saúde e gestores implementarem políticas, programas e modelos de atenção adequados às especificidades do adoecimento crônico, orientados pelo eixo da integralidade e corresponsabilização pelo cuidado.

Palavras-chave: Diabetes Mellitus. Pesquisa qualitativa. Doença crônica. Sociologia.

* Elaborado com base em pesquisa vinculada ao Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas, em desenvolvimento desde 2008, com financiamento pelo Economic and Social Research Council (UK) (Barros, 2008). 1 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/n. Campus Universitário Canela, Salvador, Ba, Brasil. 40.110-040. mcastellanos@ufba.com 2 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (DMPS/ FCM/Unicamp). 3 Laboratório de Pesquisa Qualitativa em Saúde, DMPS/ FCM/Unicamp. 4 Departamento de Clínica Médica, FCM/Unicamp. 5 Traditional, Alternative, Complementary Program, Healthcare School, University of Leeds. 6 Faculty of Health Sciences, University of Sydney.

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EVIDÊNCIAS PRODUZIDAS POR PESQUISAS QUALITATIVAS ...

Introdução O diabetes tipo 2 representa um importante problema de saúde pública, com grande impacto sobre a vida dos pacientes e sobre a rede assistencial (Sociedade Brasileira de Diabetes, 2005; Monteiro, 2004). A forte carga dessa doença (Centers for Disease Control and Prevention, 2004; Schramm et al., 2004; Leite et al., 2002), em termos de anos de vida perdidos e do ônus econômico, tem justificado a formulação de políticas públicas especificamente direcionadas ao seu controle (Brasil, 2005; 2001), promovendo, inclusive, uma recente discussão sobre a adequação dos modelos de atenção às especificidades dos pacientes crônicos, com especial referência aos diabéticos (Brasil, 2006; Bodenheimer et al., 2002; Bodenheimer, Wagner, Grumbach, 2002). São muitas as questões relativas ao controle do diabetes, em termos individuais e populacionais. Essas questões têm sido exploradas em pesquisas quantitativas e qualitativas. De modo geral, no campo da saúde, ainda que o primeiro tipo de abordagem predomine sobre o segundo, observa-se um crescimento na publicação de evidências produzidas por pesquisas qualitativas, assim como no interesse e relevância que essa produção tem apresentado aos formuladores de políticas públicas. As pesquisas qualitativas sobre diabetes têm investigado, dentre outros temas, os significados da experiência do adoecimento e da organização dos cuidados entre pacientes diabéticos, produzindo conhecimentos relevantes para o campo científico, assistencial e das políticas públicas. Assim, diante do crescimento de informações qualitativas sobre diabetes, torna-se importante a sistematização desse conhecimento para a comunidade científica. Diferentes metodologias têm sido empregadas para realizar revisões sistemáticas da literatura com o objetivo de produzirem evidências qualitativas – genericamente denominadas metassínteses (Bondas, Hall, 2007; Thorne et al., 2004; Finfgeld, 2003). Dentre essas, o metaestudo (Thorne et al., 2002) se destaca como técnica privilegiada para analisar um grande número de pesquisas. Na literatura nacional, faltam metassínteses que sistematizem o conhecimento produzido sobre diabetes/diabéticos em pesquisas qualitativas, não somente para avaliar a qualidade da informação produzida por pesquisas qualitativas, mas também para apontar lacunas de conhecimento e a possível necessidade de redirecionamento dos enfoques e perspectivas metodológicas adotadas. A carência desse tipo de estudo pode ser facilmente identificada ao se consultarem as bases eletrônicas de dados bibliográficas brasileiras. Em uma busca recentemente realizada na Biblioteca Virtual em Saúde (http://regional.bvsalud.org/php/index.php?lang=pt), com os termos “revisão” e “diabetes”, encontramos apenas um trabalho que pode ser considerado uma revisão de literatura focada exclusivamente em pesquisa qualitativa sobre diabetes (Motta, 2009). Essa lacuna torna-se tanto mais problemática quanto levamos em consideração: a relevância epidemiológica do diabetes no Brasil e no Mundo; a importância dos estudos qualitativos para a compreensão de aspectos fundamentais do processo saúde-doença-cuidado; e a necessidade de revisões sistemáticas para descrever e avaliar a produção científica sobre o tema. Este artigo apresenta um metaestudo de pesquisas qualitativas realizadas sobre diabetes, publicadas em periódicos indexados e disponíveis no portal de periódicos da Capes. A realização de metassínteses nesse universo torna-se uma ferramenta valiosa para orientar e estimular o uso da produção científica disponibilizada à comunidade científica brasileira.

Material e métodos Os procedimentos metodológicos, descritos em seguida, foram discutidos e empreendidos por uma equipe de pesquisa composta por cientistas sociais do Brasil, Inglaterra e Austrália, além de uma médica com atuação especializada em diabetes.

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CASTELLANOS, M.E.P. et al.

artigos

Fonte de dados Circunscrevemos a busca em revistas disponibilizadas no portal de periódicos da Capes, sem englobar outras fontes consagradas de dados bibliográficos, pois esse portal disponibiliza, aos programas de pós-graduação brasileiros, acesso integral e gratuito ao conteúdo de importantes revistas de circulação nacional e internacional. Priorizamos, assim, a revisão sistemática de um universo bibliográfico acessível a 268 instituições de ensino e pesquisa no Brasil, com “acesso aos textos completos de artigos selecionados de mais de 15.475 revistas internacionais, nacionais e estrangeiras, e 126 bases de dados com resumos de documentos em todas as áreas do conhecimento” (Capes, 2009).

Critérios de inclusão e de exclusão Incluímos artigos originais de pesquisas qualitativas que produziram dados primários sobre diabetes, publicados de 1997 a 2008, escritos em português, inglês ou espanhol. Excluímos artigos que não atenderam àqueles critérios. Os artigos que abordaram práticas alternativas, complementares e integrativas de saúde foram analisados em um metaestudo específico, onde se procurou revisar artigos que abordam essa questão em relação a um conjunto mais amplo de problemas de saúde (Spadacio et al., 2010).

Procedimentos de busca e seleção Para definir as revistas do portal de periódicos da Capes, lançamos as palavras-chave “diabetes”, “qualitative/qualitativa” e “social” em seu campo de busca, encontrando 43 periódicos cujas linhas editoriais apontavam para, pelo menos, uma das seguintes diretrizes: estudos sobre diabetes, estudos socioantropológicos em saúde, pesquisas qualitativas. Para identificar artigos de interesse para nossa metassíntesse, de maneira ampla, optamos por utilizar as palavras de busca: “diabetes” e “qualitative”. Esses termos foram lançados nos campos de busca das homepages das revistas (ou de suas editoras), para palavras do título ou do resumo. Os resumos dos artigos encontrados foram lidos, independentemente, por dois membros da equipe de pesquisa, para aplicação dos critérios de inclusão. As discrepâncias na seleção foram discutidas e eliminadas a partir da leitura dos artigos originais.

Tabulação Os artigos incluídos foram lidos na íntegra, fichados e classificados segundo sua temática principal. Essa classificação foi verificada e discutida pela equipe de pesquisadores, que utilizou o Excel 2003 para quantificar as principais características dos estudos revisados.

Análise Os metaestudos caracterizam-se por analisar, separadamente, aspectos teóricos, metodológicos e dados produzidos no conjunto de pesquisas revisadas. Isso permite aprofundar a análise sobre cada um desses aspectos, assim como refletir sobre suas inter-relações e implicações para o campo da saúde. Assim, privilegiamos: . na metateoria, a análise dos problemas, conceitos e teorias que levaram os pesquisadores a explorarem determinadas questões; . no metamétodo, a análise da abordagem metodológica adotada nos estudos e de suas consequências para a perspectiva lançada sobre os problemas investigados; . na meta-análise de dados, confrontar e sintetizar as interpretações dos autores, destacando suas implicações para o contexto científico, assistencial e das políticas públicas.

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EVIDÊNCIAS PRODUZIDAS POR PESQUISAS QUALITATIVAS ...

Neste metaestudo, optamos por realizar uma síntese mais descritiva dos aspectos teóricos e metodológicos dos artigos revisados, privilegiando a ênfase em uma síntese analítica de seus resultados - quando será melhor explorado o caráter meta-analítico do texto. Mesmo assim, ainda em relação aos aspectos teóricos e metodológicos, procuramos utilizar duas categorias analíticas, no intuito de não restringirmos nossa avaliação a uma mera compilação de características autodeclaradas nos artigos. Assim, primeiramente, procuramos classificar cada artigo em relação ao esforço de teorização empreendido na problematização e análise dos objetos de pesquisa enfocados. Para tanto, o primeiro autor procurou identificar se os problemas de pesquisa levantados se dirigiam a questões teóricas estruturadas a partir de outras investigações sobre a temática enfrentada. Em seguida, esse mesmo autor procurou identificar se a análise dos resultados desenvolveu questões teóricas levantadas na problematização do tema de pesquisa. A partir da avaliação da presença desses elementos teóricos na estruturação da investigação, todos os artigos foram submetidos a uma classificação dicotômica (presente/ausente) para avaliar se a enunciação e análise dos problemas de pesquisa enfrentados estiveram teoricamente fundamentadas no campo de investigações científicas sobre o tema. Posteriormente, procurou-se identificar se, ao longo dos artigos, as escolhas metodológicas dos autores foram por eles retomadas para refletir sobre a produção dos resultados da investigação realizada. Avaliou-se, assim, a presença ou ausência de reflexividade nos artigos. Considerou-se a presença de reflexividade nos artigos em que foram identificados comentários acerca dos alcances e limites metodológicos das pesquisas empreendidas. Ambas as classificações, após a primeira elaboração, foram verificadas por dois coautores, e as poucas discrepâncias existentes foram debatidas entre todos os autores, sendo eliminadas a partir de sua discussão.

Resultados e discussão Identificamos, aproximadamente, duzentos artigos nos periódicos por meio dos campos de busca. Após a leitura de seus resumos, descartamos aqueles que não atendiam aos critérios de inclusão, obtendo, assim, uma seleção final de 42 artigos. Os artigos revisados foram publicados em seis diferentes periódicos: Social Science and Medicine, Social Science Information, Qualitative Health Research, Diabetes Spectrum, Diabetes Educator, Diabetes Care. Houve concentração de artigos publicados em duas revistas, Social Science and Medicine e Qualitative Health Research, onde foram encontrados trinta estudos. Dentre os três periódicos dedicados especificamente ao diabetes, encontramos 11 artigos, na sua maioria publicados no Diabetes Educator. Pesquisas realizadas em países de língua inglesa foram tema de 34 artigos, sendo 22 nos Estados Unidos, quatro no Canadá, três na Inglaterra, três na Escócia e dois na Austrália. Entre os oito restantes, três foram realizados no México, um na Dinamarca, um na Finlândia, um em Gana, um na Suécia e um na Tailândia. Todos foram publicados em inglês. Não foi identificado nenhum artigo nacional ou escrito em língua portuguesa na seleção realizada. Registrou-se tendência crescente do número de publicações sobre o tema ao longo do período analisado. Assim, entre 1997-2002, foram publicados 14 artigos, ao passo que entre 2003-2008 encontramos 28 publicações. A seguir, são apresentados os resultados da análise dos aspectos teórico, metodológico, e dos resultados das investigações revisadas.

Metateoria Nesta parte, analisamos a forma como os temas de pesquisa são problematizados e os principais conceitos adotados. Na sua maioria, independentemente do tema, os estudos revisados problematizam, 260

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teoricamente, seus objetos de investigação, a partir de diferentes perspectivas e preocupações das ciências humanas e sociais em saúde. No entanto, um terço dos artigos não insere as questões de pesquisa e/ou a análise de dados em um contexto teórico de discussão. Conforme pode ser observado no Quadro 1, os artigos com ausência de teorização concentraram-se em revistas especializadas em diabetes. Em contrapartida, os artigos que estruturaram teoricamente as questões enfrentadas se concentraram em revistas com enfoque em estudos qualitativos e/ou de ciências sociais. Essa situação, provavelmente, reflete os parâmetros formais e interesses das linhas editoriais que devem ser observados pelos autores para publicarem seus artigos nesses periódicos. Assim, por exemplo, enquanto a Social Science and Medicine se dirige, especialmente, a pesquisadores interessados em questões teórico-metodológicas levantadas no campo de investigação socioantropológica em saúde, a Diabetes Care aborda questões de pesquisa que respondem de modo mais próximo ao âmbito das práticas assistenciais. Evidentemente, não assumimos, a partir dessa observação, a ideia de que as práticas assistenciais não estejam orientadas pela dimensão teórica, resumindo-se a sua dimensão técnica. Pelo contrário, entendemos que tanto as práticas científicas de pesquisa quanto as práticas assistenciais se orientam por parâmetros teóricos, técnicos, morfológicos e epistemológicos. Porém, a forma de abordagem desses aspectos difere de acordo com interesse do público leitor das revistas, refletindo na forma, conteúdo e linguagem dos artigos. Procuramos classificar os estudos, também, por grupos de problemas de pesquisa enfrentados (Quadro 2). Para isso, procuramos identificar a questão central do estudo e o tipo de problematização dado pelos autores na sua exposição. Procedendo assim, identificamos cinco temáticas principais: gerenciamento do cuidado, concepções de saúde-doença, relação profissional-paciente, práticas profissionais e adesão ao tratamento. Vale ressaltar que essa identificação, ainda que, por vezes, seja autodeclarada pelos autores, nem sempre é assumida textualmente por eles. Assim, as temáticas representam, antes de mais nada, o foco principal que ilumina e justifica o problema de pesquisa formulado nos estudos revisados, segundo identificado por nossa equipe de pesquisa. Apresentamos, em seguida, as características dos estudos dedicados a cada uma daquelas temáticas. Gerenciamento do cuidado Foram identificados 14 estudos sobre o tema, sendo metade realizada nos Estados Unidos. Esses estudos investigaram fatores socioculturais relacionados ao cuidado (gênero, raça, pobreza, religião, etnia, família), problematizando temas, como: estresse, medicalização, controle glicêmico, espiritualidade, organização dos cuidados e, especialmente, processo de decisão. Diversos conceitos orientaram a problematização desses temas, destacando-se aqueles que analisaram: . o compartilhamento de decisões no processo de cuidado, tais como: atividades de gerenciamento de caso, decisões de autocuidado, cuidado colaborativo e concordância; . os modelos explicativos e a experiência de adoecimento e de cuidado a partir das trajetórias de vida e do itinerário terapêutico dos pacientes, tais como: modelos explicativos, trajetória e curso da vida. Concepções de saúde-doença Identificamos 13 estudos sobre essa temática, sendo mais da metade realizados nos Estados Unidos. Esses estudos procuraram identificar, sejam as percepções corporais e concepções etiológicas de diabéticos (relevantes para a prática assistencial), seja a influência cultural dos recortes étnicos e/ou raciais sobre as concepções de saúde-doença. Relação profissional-paciente Os cinco estudos com esse enfoque procuraram analisar como a interação profissional-paciente influencia tanto estratégias de enfrentamento de situações vivenciadas no processo de adoecimento, quanto o desencadeamento de mudanças no estilo de vida dos pacientes. Especial atenção é dada às relações de poder presentes nessa interação, tendo em vista a construção de modelos de atenção que privilegiam o compartilhamento de decisões entre pacientes e profissionais. O conceito de “negociação COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.257-73, jan./mar. 2011

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da identidade” assume importância nesses estudos, pois analisa as repercussões da identidade de doente para o paciente e a complexidade de sua negociação nas interações profissional-paciente. Práticas profissionais Utilizando conceitos como narrativa e modelo explicativo, quatro estudos procuraram compreender diversos aspectos da prática profissional, a partir da análise dos conceitos e perspectivas adotados pelos próprios profissionais de saúde, em contextos institucionais específicos. Adesão ao tratamento Publicados, especialmente, a partir de 2004, quatro estudos procuraram problematizar teoricamente o tema, objetivando, assim, ampliar o espectro de questões envolvidas na investigação científica e na abordagem assistencial da adesão ao tratamento. Seus autores tratam o tema para além da perspectiva normativa da biomedicina – quando adesão é considerada como obediência do paciente às orientações dos profissionais de saúde. Para romper com a visão biomédica, os autores procuraram contextualizar a adesão ao tratamento na trajetória de vida, cotidiano e itinerário terapêutico dos pacientes. Desse modo, evidenciaram que a organização do cuidado se elabora em movimentos de assimilação, resistência, modificação e ressignificação do tratamento, presentes nos contextos familiares, étnicos, religiosos e socioculturais dos pacientes. Desempenharam papel central nesses estudos conceitos como: concordância, modelos explicativos, lócus de controle em saúde, modelo de crenças em saúde, teoria do comportamento planejado. Outros Dois artigos não se enquadraram em nenhumas das temáticas anteriores, pois investigaram o acesso de diabéticos com problemas visuais a programas educativos e a experiência de pacientes com a terapia medicamentosa.

Metamétodo Nesta seção, são analisados os aspectos técnicos e conceituais da abordagem metodológica, com destaque para a coleta e análise de dados. No Quadro 2, sintetizamos os principais resultados, discriminando-os por artigo revisado. De modo geral, não foram identificadas tendências temporais entre técnica de coleta e análise de dados, tipos de sujeitos investigados e temas pesquisados. Em geral, os artigos descreveram, claramente, os procedimentos de seleção dos sujeitos e as técnicas de coleta e análise de dados – geralmente gravados e transcritos. Porém, 13 artigos não discriminaram o local de coleta de dados e nove não declararam a adesão a uma linha teórica de análise de dados. Dentre os estudos que adotaram linhas analíticas alternativas à análise de conteúdo, destacou-se a influência da fenomenologia, da etnografia, da etnometodologia, da perspectiva ecológico-cultural e do estudo de caso. Em sua maioria, as pesquisas investigaram exclusivamente pacientes. Ainda assim, sete pesquisas procuraram estudar pacientes e profissionais, cinco estudaram profissionais e cinco envolveram indivíduos não-doentes selecionados em comunidades com características étnicas ou socioeconômicas específicas. Foram realizadas entrevistas individuais em 21 pesquisas. No caso de investigações com pacientes, as entrevistas foram realizadas, preferencialmente, na casa do entrevistado. Apenas dois estudos realizaram entrevistas por telefone (Cabassa et al., 2008; Montez, Karner, 2005). Grupos focais foram utilizados em nove estudos, realizados preferencialmente na instituição de saúde. Onze estudos adotaram técnicas múltiplas, geralmente, complementando entrevistas com observação direta. Esta técnica seguiu os parâmetros clássicos da etnografia, relativos à observação participante, ainda que um estudo tenha analisado consultas gravadas em vídeo (Karhila et al., 2003). 262

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Quadro 1. Artigos segundo autor, ano, local de publicação e rigor teórico 1º autor Larme Mulvaney Samuel-Hodge Egede Hayes Liburd Mayer Sarkadi Willams Anderson-Loftin Brown Karhila Chesla Evans Mercado-Martinez Montez Polzer Rhodes Robles-Silva Shepherd Struthers Thorne Weiss Zoffmann Loewe Savoca Arcury Bissell Broom Cabassa Ciechanowski Daaleman Entwistle Garcia Iwasaki Lawton Lawton Lutfey Naemiratch Schoenberg Thompson Aikins

Ano 2001 2006 2000 2002 2006 1999 2006 2003 2002 2000 2004 2003 2005 2005 2002 2005 2007 2006 2008 2000 2008 2003 2000 2005 1998 2004 2004 2004 2004 2008 2006 2001 2008 2007 2005 2008 2005 2007 2006 1998 2000 2002

Revistas Diabetes Care Diabetes Care Diabetes Care Diabetes Educator Diabetes Educator Diabetes Educator Diabetes Educator Diabetes Educator Diabetes Educator Diabetes Educator Diabetes Spectrum Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Qual Health Res Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Soc Sci Med Social Science Information

Teorização Ausente Ausente Ausente Ausente Ausente Ausente Ausente Ausente Ausente Presente Ausente Ausente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Presente Ausente

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Dois estudos (Lawton, Peel, Parry, 2008; Lawton et al., 2005) realizaram seguimento longitudinal dos sujeitos pesquisados, por meio da observação direta ou de entrevistas sucessivas, procurando compreender como o itinerário terapêutico e as fases do adoecimento crônico influenciam a visão dos pacientes a respeito do diabetes e do cuidado. A grande maioria das pesquisas empregou análise temática de conteúdo para interpretação dos dados, ainda que uma pequena parte delas tenha adotado outras perspectivas. Em 17 pesquisas foram utilizados softwares para análise de dados qualitativos, com destaque para o Ethnograph (Arcury et al., 2004; Broom, Whittaker, 2004; Savoca, Miller, Quandt, 2004; MercadoMartinez, Ramos-Herrera, 2002; Liburd et al., 1999) e o NUD.IST (Lawton et al., 2005; Sarkadi, Rosenqvist, 2003; Daaleman, Cobb, Frey, 2001; Samuel-Hodge et al., 2000; Loewe et al., 1998), seguidos pelo Atlas.ti (Cabassa et al., 2008; Lutfey, Freese, 2007) e pelo NVivo (Polzer, Miles, 2007; Lawton, Peel, Parry, 2008). Em mais da metade dos estudos foram empregados protocolos de verificação/validação dos procedimentos de coleta e análise de dados. Geralmente, foi adotado um processo de validação “intraequipe” para os procedimentos realizados para o registro e/ou análise dos dados, os quais foram checados por um ou mais pesquisadores. As discrepâncias identificadas foram discutidas e eliminadas pela equipe. Eventualmente, os pesquisadores solicitaram, aos entrevistados, a verificação das transcrições e/ou, a pesquisadores de fora da equipe, a validação das análises realizadas. Em cerca de um terço dos artigos, os autores não refletem sobre as implicações do desenho metodológico do estudo para os resultados encontrados. Porém, o restante apresenta reflexividade metodológica. Em cerca de um quarto dos artigos, os autores não mencionam a obtenção de aprovação da investigação em comitês de ética de pesquisa e a utilização de termos de consentimento livre e esclarecido durante a realização do trabalho de campo. Em apenas um artigo, há uma reflexão mais detida sobre aspectos éticos da pesquisa no desenvolvimento da investigação (Sheperd, Hattersley, Sparkes, 2000). Na análise de métodos realizada, identificamos a tendência de ampliação dos estudos que utilizam concomitantemente diversas técnicas de coleta de dados, com seguimento longitudinal dos sujeitos pesquisados, adoção de perspectivas teóricas alternativas à análise de conteúdo e valorização do rigor metodológico no processo de validação da análise de dados.

Meta-análise de dados Nesta seção procuramos sintetizar as evidências produzidas pelos estudos analisados, refletindo sobre suas implicações para os contextos científico, assistencial e das políticas públicas. Em geral, as análises sobre pacientes adotaram, pelo menos, um dos seguintes recortes: a) étnico/racial (Cabassa et al., 2008; Struthers et al., 2008; Polzer, Miles, 2007; Naemiratch, Manderson, 2006; Chesla, Chun, 2005; Lawton et al., 2005; Arcury, et al., 2004; Aikins, 2002; Egede, 2002; Daaleman, Cobb, Frey, 2001; Anderson-Loftin, Moneyham, 2000; Samuel-Hodge et al., 2000; Thompson, Gifford, 2000; Liburd et al., 1999); b) gênero (Mayer, Rosenfeld, 2006; Iwasaki, Bartlett, O’Neil, 2005; Sarkadi, Rosenqvist, 2003; Mercado-Martinez, Ramos-Herrera, 2002; Liburd et al., 1999; Schoenberg, Amey, Coward, 1998); c) socioeconômico (Cabassa et al., 2008; Robles-Silva, 2008; Mercado-Martinez, Ramos-Herrera, 2002). Alguns estudos sobre pacientes os selecionaram segundo características clínicas, enfocando pacientes não insulino-dependentes (Schoenberg, Amey, Coward, 1998) ou com um determinado nível de controle glicêmico (Garcia et al., 2007; Zoffmann, Kirkevold, 2005; Savoca, Miller, Quandt, 2004), ou ainda segundo a sua vulnerabilidade (Ciechanowski, Katon, 2006; Williams, 2002). Dois estudos privilegiaram o recorte etário (Mulvaney et al., 2006; Schoenberg, Amey, Coward, 1998) e um, o fato de o paciente ser portador de necessidades especiais (Williams, 2002).

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Quadro 2. Caracterização temática e metodológica dos artigos revisados 1º autor Bissell Lawton Naemiratch Schoenberg Anderson-Loftin Broom Entwistle Garcia Iwasaki Polzer Samuel-Hodge Savoca Thorne Brown Montez Chesla Mulvaney Robles-Silva Shepherd Larme Loewe Lutfey Ciechanowski Karhila Rhodes Weiss Zoffmann Cabassa Daaleman Egede Evans Lawton Liburd Mayer Mercado-Martinez Sarkadi Thompson Arcury Struthers Aikins Hayes Willams

Ano 2004 2008 2006 1998 2000 2004 2008 2007 2005 2007 2000 2004 2003 2004 2005 2005 2006 2008 2000 2001 1998 2007 2006 2003 2006 2000 2005 2008 2001 2002 2005 2005 1999 2006 2002 2003 2000 2004 2008 2002 2006 2002

Temática Ades Ades Ades Ades GC GC GC GC GC GC GC GC GC GC GC GC GC GC Prof Prof Prof Prof Rel Rel Rel Rel Rel SD SD SD SD SD SD SD SD SD SD SD SD SD OT OT

Sujeitos Pac Pac Pac Pac/prof Pac Pac Pac Pac Pac Pac Pac Pac Pac Pac/prof Pac/prof Com Com/pac Prof Com/prof Prof Prof Prof Pac Pac/prof Pac/prof Pac/prof Pac/prof Pac Pac Pac Pac Pac Pac Pac Pac Pac Pac Com Com Prof Pac Pac

Técnica de coleta Entrevista Entrevista Multi Entrevista Grupo focal Multi Entrevista Entrevista Grupo focal Entrevista Grupo focal Entrevista Multi Entrevista Entrevista Entrevista Grupo focal Multi Entrevista Entrevista Multi Multi Entrevista Observação Multi Entrevista Multi Multi Grupo focal Grupo focal Entrevista Entrevista Grupo focal Entrevista Entrevista Multi Multi Entrevista Entrevista Entrevista Grupo focal Grupo focal

Análise Conteúdo Conteúdo Conteúdo Outras Conteúdo Conteúdo ND Conteúdo Conteúdo Conteúdo Conteúdo ND Outras ND ND Conteúdo Conteúdo Conteúdo Outras ND ND Conteúdo ND Outras Conteúdo Conteúdo Conteúdo Conteúdo ND Outras Conteúdo Conteúdo Conteúdo Conteúdo Conteúdo Conteúdo Conteúdo Conteúdo Outras ND Conteúdo Outras

Reflexividade Não Sim Não Sim Sim Não Sim Sim Sim Sim Não Sim Não Não Sim Sim Sim Sim Sim Não Não Não Sim Sim Sim Sim Não Sim Não Sim Não Sim Não Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Não Sim

Legenda: Adesão ao Tratamento (Ades); Gerenciamento do Cuidado (GC); Práticas profissionais (prof); Relação profissional-paciente (rel); Concepções Saúde e Doença (SD); Outros (OT).

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Os estudos buscaram identificar diferentes visões, valores e ações dos sujeitos investigados, no sentido de ampliar o leque de questões e contextos que envolvem o processo saúde-doença-cuidado. Há um claro interesse sobre as representações sociais dos diversos sujeitos envolvidos nesse processo (pacientes, familiares, profissionais de saúde e outros). Porém, muitas vezes, privilegia-se a análise dos efeitos das interações sociais desses sujeitos sobre os problemas vivenciados pelo doente e suas estratégias de enfrentamento. Nesse sentido, o conceito de trajetória orientou algumas das reflexões particularmente interessadas na dimensão processual do adoecimento crônico e da organização do cuidado. Procuramos, a seguir, sintetizar as principais evidências produzidas pelos estudos e apontar suas implicações para o campo da saúde, no que se refere às práticas assistenciais, científicas e às políticas públicas. Processo de adoecimento crônico vivenciado por diabéticos Nessa parte tomamos a essência dos estudos qualitativos sobre a experiência dos pacientes com a condição crônica instalada com o diabetes e o seu tratamento. Esse processo implica momentos de desestabilização no cotidiano dos diabéticos, de forma que os pacientes recém diagnosticados precisam assimilar a doença não só individualmente, mas também integrá-la em suas atividades diárias e em suas redes sociais. Assim, as percepções, concepções e desejos instaurados no contexto familiar e dos serviços de saúde, implicam negociações em torno da doença, da organização do cuidado e da identidade do diabético. O processo de normalização do cotidiano assume diferentes direções e significados a partir dessas negociações, desdobrando-se em várias estratégias de cuidado. Apesar disso, é possível verificar algumas regularidades. Geralmente, o diagnóstico é recebido de forma negativa pelos pacientes, seja por ser um velho conhecido (relacionado ao medo e a perdas na família), seja porque surge como uma realidade inesperada, obrigando os portadores do diabetes a lidarem, de forma repentina e intensa, com a medicalização do cuidado (e de sua própria vida!). Alguns estudos mostram como o discurso dos profissionais de saúde, geralmente, desqualifica o paciente como um agente legítimo e competente para decidir sobre o cuidado e sobre a própria vida (Montez, Karner, 2005; Broom, Whittaker, 2004). Ao sobrevalorizarem os parâmetros técnico-assistenciais, os profissionais afastam os pacientes dos processos de decisão relativos ao tratamento, reduzindo-os a objetos manipuláveis e/ou a meros espectadores passivos de si mesmos. Essa situação é, especialmente, frustrante para os pacientes que desejam discutir o tratamento com os profissionais de saúde (Entwistle et al., 2008; Hayes et al., 2006), chegando a eliminar expectativas e desejos de dialogar e compartilhar responsabilidades (Bissell, May, Noyce, 2004). Nesse sentido, o modelo biomédico agrava, ainda mais, uma situação inquietante e indesejável: a dificuldade demonstrada pela maioria dos pacientes para controlar a situação de adoecimento crônico. Quando radicalizado, esse efeito negativo do modelo biomédico pode, inclusive, propiciar uma dissociação entre o “self” e o corpo do paciente. Quando isso ocorre, a pessoa doente não mais se reconhece em um corpo que lhe parece estranho, inscrito no domínio da doença, sob a jurisdição dos profissionais de saúde (Montez, Karner, 2005). No contexto do modelo biomédico, a dificuldade encontrada pelos pacientes para mudarem seu estilo de vida e para realizarem um bom controle glicêmico, frequentemente, é compreendida pelos profissionais de saúde como incompetência ou desobediência dos pacientes à ordem médica. Porém, os estudos sobre adesão ao tratamento, aqui revisados, mostram como essa dificuldade pode ser uma forma de resistência ao próprio modelo biomédico. Nesse caso, ao não “obedecerem” à ordem médica, os pacientes procuram assumir uma relação mais autônoma frente à doença e ao cuidado, pois se sentem “agindo” sobre a realidade, recusando o lugar de meros “espectadores” ou “sofredores” de uma realidade que se impõe em suas vidas. São exploradas as relações entre as concepções etiológicas dos pacientes e a maneira como organizam e vivenciam o cuidado. Descobrimos que pacientes com diabetes que atribuem o surgimento da doença a um estilo de vida anteriormente mantido – a despeito dos avisos recebidos de familiares e profissionais de saúde (ou de um histórico familiar de diabetes) – são mais propícios a alterarem esse estilo de vida, obtendo maior sucesso no controle glicêmico. Ao contrário, aqueles que enfatizam os 266

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aspectos genéticos da etiologia da doença mantêm uma postura mais resignada e passiva sobre uma situação determinada de modo “externo” à sua vontade pessoal. Os estudos que apontam essas relações trabalharam com conceitos psicossociais clássicos, como a Teoria de Crenças em Saúde e o Lócus de Controle da Saúde, os quais propõem que a ação sobre o problema está diretamente associada ao tipo de explicação dada à situação enfrentada e à identificação da capacidade de intervenção sobre o problema. Lawton, Peel e Parry (2008) criticam o caráter preditivo dessa linha de análise, lembrando que não podemos automatizar as relações existentes entre concepções de saúde-doença e cuidado, generalizando-as em diferentes contextos, sem considerar as experiências elaboradas ao longo do processo de adoecimento e do itinerário terapêutico. Explorando o conceito de reconstrução narrativa (Williams, 2002) e o de trajetória, alguns estudos (Lawton, Peel, Parry, 2008; Garcia et al., 2007; Naemiratch, Manderson, 2006; Thorne, Paterson, Russell, 2003) mostram como o cuidado é ressignificado ao longo do processo de adoecimento e do itinerário terapêutico, sem que se possam identificar relações aprioristicamente determinadas entre concepções etiológicas, reações ao diagnóstico e organização do cuidado. Ao colocar a experiência de adoecimento e de cuidado em uma perspectiva temporal, esses estudos mostram a relevância de se compreender a trajetória de pessoas que convivem com e a partir do diabetes. Dessa forma, o conceito de narrativa torna-se importante para mostrar a complexidade da experiência de adoecimento e de cuidado crônico ao enfocar leituras sobre o passado e o futuro, reelaboradas a cada evento significativo vivenciado no presente. Sem desconsiderar a crítica de Lawton, Peel e Parry (2008), identificamos alguns estudos que apresentam uma tipologia útil dos pacientes com bom ou mau controle glicêmico. Entre estes últimos, os autores identificaram uma posição passiva dos pacientes em relação à doença e aos profissionais de saúde, pois esses sujeitos entendem que a doença é uma fatalidade determinada de forma externa em suas vidas, assumindo uma atitude ora de resignação, ora de indignação. Assim, esses pacientes procuram apagar as marcas que evidenciam a doença em seu cotidiano (medicamentos, restrições alimentares etc.), para que não se sintam responsáveis pelo cuidado, realizando-o apenas como reflexo aos estímulos dos outros, ou seja, de forma reativa. Eles acreditam que o poder da biomedicina ou de Deus pode resolver a situação, ainda que, como mostra Polzer e Miles (2007), a crença em Deus nem sempre esteja associada a essa posição passiva. Os profissionais de saúde, muitas vezes, acabam por enfatizar a sensação de fracasso desses pacientes quando: adotam o nível de glicemia como único parâmetro para avaliar o sucesso terapêutico; enfatizam alertas tenebrosos sobre o prognóstico da doença; desconhecem elementos da trajetória de vida dos pacientes possivelmente associados à falta de controle. Gera-se, assim, um “ciclo vicioso” em que os pacientes com maior dificuldade são progressivamente desqualificados para tomarem decisões, perpetuando-se e aprofundando-se a falta de controle (Zoffmann, Kirkevold, 2005). Em contrapartida, pacientes com um bom controle glicêmico mantêm uma posição proativa em relação ao tratamento. Ao identificarem responsabilidade pessoal no desencadeamento da doença, sofrem bastante com o diagnóstico, mas mantêm uma reação automotivada em relação às perdas geradas pela doença, concentrando-se em diminuir os riscos de sequelas. Em geral, aceitam imperfeições e ambiguidades na condução dos cuidados, ao mesmo tempo em que são disciplinados e perseverantes. Além disso, contam com apoio familiar, com estabilidade financeira e emocional e se fiam em exemplos de outros pacientes bem-sucedidos. Muito embora as fases de organização do cuidado relativo aos doentes crônicos possam ser enquadradas em etapas gerais, elas são vivenciadas diferentemente pelos indivíduos, variando em sua duração e direção (Robles-Silva, 2008) e se desdobrando em diferentes estratégias de cuidado (Savoca, Miller, Quandt, 2004). Além disso, alguns pacientes enfrentam, também, comorbidades que somam problemas e desafios ao gerenciamento do diabetes. Assim, eles podem enfrentar problemas relativos à vida íntima e sexual (Sarkadi, Rosenqvist, 2003), à depressão (Cabassa et al., 2008; Egede, 2002) e à gravidez (Evans, O’Brien, 2005). Poucos estudos abordaram diretamente questões éticas assistenciais (Montez, Karner, 2005; Sheperd, Hattersley, Sparkes, 2000). Finalmente, alguns estudos procuraram explorar as relações existentes entre a inserção social do doente e sua visão de mundo, não raramente, analisando o tema da espiritualidade (Struthers et al., 2008; Polzer, Miles, 2007; Iwasaki, Bartlett, O’Neil, 2005; Daaleman, Cobb, Frey, 2001). 267


EVIDÊNCIAS PRODUZIDAS POR PESQUISAS QUALITATIVAS ...

Quando a análise dessa relação objetivou a compreensão das práticas de cuidado, identificou-se a existência de diferenças, mas não de antagonismos absolutos, entre a biomedicina e a medicina tradicional (Aikins, 2002). No seu conjunto, esses estudos procuraram mostrar a existência de múltiplos contextos socioculturais de cuidado em interação em sistemas de representação holísticos sobre o processo saúde-doença. De maneira sintética, identificamos, nesta meta-análise dos resultados dos artigos, um conjunto de implicações para o campo da saúde, pertinentes a profissionais, pesquisadores e gestores. Assim, os profissionais de saúde devem: . evitar a excessiva burocratização da assistência e do cuidado, concretizada em uma anamnese centrada na patologia e na rotinização do atendimento clínico; . reconhecer os critérios adotados pelos pacientes para identificar alterações corporais que monitorem suas condições de saúde, para além do mero controle glicêmico; . abandonar uma atitude prescritiva desinteressada e diminuir o lugar da proibição nas orientações dadas aos pacientes, procurando envolvê-los na formulação dos problemas e das soluções aos desafios encontrados no gerenciamento do cuidado; . apoiar a resolução de problemas que dificultam a organização dos cuidados, mesmo que não sejam de ordem assistencial; . acolher de maneira mais atenta e cuidadosa aqueles pacientes com maior dificuldade para criar vínculo e aderir ao tratamento, pois estes são os mais vulneráveis às incongruências assistenciais e às dificuldades na obtenção de apoio nas redes sociais; . estimular os pacientes a realizarem o monitoramento cotidiano do seu nível glicêmico, com o fim de gerar reflexões sobre a efetividade das medidas de cuidado. E os pesquisadores e gestores de saúde devem: . lembrar que os profissionais de saúde são pessoas sujeitas às determinações dos contextos institucionais e sociais, ainda que assumam perspectivas particulares sobre esses contextos; . investigar a narrativa sobre o adoecimento elaborada pelos pacientes (e seus familiares), assim como as produzidas pelos profissionais de saúde, uma vez que estes não se reduzem a meros reprodutores das diretrizes assistenciais; . adequar os programas educacionais e os modelos de atenção à saúde às especificidades socioculturais e físicas dos pacientes (por exemplo, garantindo o acesso dos deficientes visuais a material impresso e aos testes-diagnóstico autoaplicáveis). Esses apontamentos devem ser levados em consideração na formulação e implementação das políticas públicas voltadas às práticas assistenciais, pedagógicas e científicas que procuram atuar de modo amplo no campo da saúde e, especialmente, daquelas que procuram incidir sobre o controle do diabetes. Assim, políticas voltadas à organização assistencial e à formação de recursos humanos em saúde, de um lado, e políticas voltadas à detecção precoce e controle do diabetes devem realizar investimentos no sentido de fortalecerem iniciativas e propiciarem condições para que as recomendações acima expostas sejam efetivamente seguidas.

Considerações finais Este artigo analisou pesquisas qualitativas sobre diabetes em revistas científicas indexadas, de circulação internacional e disponibilizadas no portal de periódicos da Capes. A utilização exclusiva dessa fonte de dados deve-se à garantia de acesso aos artigos na íntegra e limita a análise a uma parcela da totalidade de artigos publicados sobre o tema. Os critérios de seleção dos periódicos indexados no portal, com as palavras “diabetes”, “qualitative/qualitativa” e “social”, podem ter ignorado periódicos com publicações de interesse para a revisão aqui apresentada. Destaca-se o fato de não terem sido identificadas publicações em periódicos brasileiros. No entanto, a análise realizada tem grande relevância para a comunidade científica nacional, destacando implicações diversas para o campo da saúde, ao enfocar questões pertinentes ao dimensionamento social do processo saúde-doença-cuidado, conforme realizado nas pesquisas qualitativas sobre diabetes. 268

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artigos

Os estudos analisados investigaram a experiência de adoecimento e de cuidado focalizada, especialmente, na perspectiva dos pacientes. Assim, em geral, os autores analisaram a visão desses sujeitos a respeito do diabetes e das práticas de cuidado. Dentre os resultados, destaca-se que o cuidado envolve mudanças pessoais, reestruturações das atividades cotidianas e arranjos organizacionais modificados ao longo do tempo, cujos sentidos são negociados em diferentes contextos, aumentando o interesse no seguimento longitudinal dos sujeitos. Tendo isso em vista, os significados do adoecer e do cuidar podem ser mais bem compreendidos nas interações sociais travadas entre os pacientes e seus cuidadores, tanto nas instituições de saúde quanto no contexto familiar e/ou de suas redes sociais. Esses processos de significação sofrem os efeitos do curso da doença, da cultura assistencial institucional e da trajetória de vida dos indivíduos doentes, de maneira que se identifica a necessidade de se explorarem, cada vez mais, as inter-relações entre essas dimensões. Daí a importância da utilização de múltiplas técnicas de coleta de dados, da realização de um seguimento longitudinal dos sujeitos, no sentido de aprofundar a compreensão de seus pontos de vista, rompendo com estereótipos e visões muito fragmentadas sobre as questões investigadas. Por fim, os profissionais devem contrapor as características gerais do adoecimento crônico à diversidade sociocultural e singularidade das trajetórias de vida dos pacientes, para compreenderem e atuarem melhor sobre a experiência de adoecimento e sobre a organização do cuidado. Assim como os gestores devem implementar e fortalecer políticas, programas e modelos de atenção adequados às especificidades do adoecimento crônico, orientados pelo eixo da integralidade e da corresponsabilização pelo cuidado.

Agradecimentos Agradecemos à profa. Lilia Schraiber pelas considerações feitas ao manuscrito do presente artigo, colaborando generosamente para a exposição mais clara de seus propósitos, alcances e limites. Colaboradores Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos responsabilizou-se pela concepção, planejamento, análise e interpretação dos dados; elaboração do rascunho, revisão crítica do conteúdo e preparação da versão final do conteúdo. Nelson Felice de Barros, Cristiane Spadacio, Sarah Monte Alegre, Phillip Tovey e Alex Broom responsabilizaramse pela concepção e planejamento, análise e interpretação dos dados; revisão crítica do conteúdo e aprovação da versão final do manuscrito. Referências AIKINS, AD-G. Exploring biomedical and ethnomedical representations of diabetes in Ghana and the scope for cross-professional collaboration: a social psychological approach to health policy. Soc. Sci. Inf., v.41, n.4, p.625-52, 2002. ANDERSON-LOFTIN, W.; MONEYHAM, L. Long-term disease management needs of southern african americans with diabetes. Diabetes Educ., v.26, n.5, p.821-32, 2000. ARCURY, T.A. et al. Diabetes meanings among those without diabetes: explanatory models of immigrant Latinos in rural North Carolina. Soc. Sci. Med., v.59, n.1, p.218393, 2004.

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artigos

CASTELLANOS, M.E.P. et al.

CASTELLANOS, M.E.P. et al. Evidencias producidas por investigaciones cualitativas sobre diabetes tipo 2: revisión de literatura. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.36, p.257-73, jan./mar. 2011. La diabetes tipo 2 produce un gran impacto sobre la vida de los pacientes y la red asistencial. Ante el crecimiento de informaciones cualitativas sobre diabetes, llega a ser importante la sistematización de este conocimiento. Se ha realizado un meta-estudio sobre diabetes por medio del análisis de 42 artículos disponibles en revistas del portal de periódicos de la Coordinación de Perfeccionamiento de Personal de Nivel Superior (Capes). Identificamos un buen grado de teorización en los estudios revisados que tratan de la dirección del cuidado, concepciones de salud-enfermedad, relación profesional-paciente, prácticas profesionales y adhesión al tratamiento. Los artículos describen claramente los procedimientos metodológicos adoptados. Ha predominado el uso de entrevistas y grupos focales para la colecta de datos buscando explorar diferentes visiones de los sujetos investigados. Se afirma la importancia de los profesionales de salud y gestores que implementan políticas, programas y modelos de atención adecuados a las especificidades del enfermo crónico orientados por el eje de la integralidad y co-responsabilización por el cuidado.

Palabras clave: Diabetes Mellitus. Investigación cualitativa. Enfermedad crónica. Sociología. Recebido em 11/02/10. Aprovado em 06/08/10.

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espaço aberto

Oficinas de atividades com jovens da escola pública: tecnologias sociais entre educação e terapia ocupacional *

Roseli Esquerdo Lopes1 Patrícia Leme de Oliveira Borba2 Natalia Keller de Almeida Trajber3 Carla Regina Silva4 Brena Talita Cuel5

Acredito Acredito ser o mais valente, nessa luta do rochedo com o mar E com o ar! É hoje o dia da alegria E a tristeza, nem pode pensar em chegar Diga espelho meu... Didi e Mestrinho (1982)

Introdução Este trabalho discute a proposição de Oficinas de Atividades com jovens no interior da escola pública. São elaborações que partem de atividades de extensão universitária que vêm sendo realizadas pelo Núcleo UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) do Projeto METUIA6 em uma escola pública da periferia da cidade de São Carlos (SP), e, também, de pesquisas desenvolvidas por esse mesmo grupo, as quais se debruçaram sobre a temática da Educação de Tempo Integral. Compreendemos a Extensão como uma prática acadêmica que integra as atividades de Ensino e Pesquisa articulada às demandas sociais [...], o que propicia não só o diálogo entre a Universidade e a Sociedade, mas possibilita, também, a democratização do saber acadêmico e a busca de respostas às demandas suscitadas pelo desejo permanente de aperfeiçoamento sociocultural e profissional gerado pelos próprios cursos de graduação e pós-graduação, e, mais amplamente, pela Sociedade. (Lopes et al., 2008a, p.119-20)

O METUIA/UFSCar, desde 2001, tem acumulado experiências no campo da infância e, sobretudo, da juventude brasileira. Temos focalizado a juventude pobre7 urbana, buscando atender à necessidade contemporânea de desenvolvimento e ampliação de alternativas de prevenção às situações de vulnerabilidade e violência, por meio da educação e da defesa da cidadania, bem como assumindo o desafio de criação de metodologias participativas. Trata-se de uma temática complexa e para a qual há um pequeno acúmulo de produção de

Trabalho elaborado com apoio da Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação (SESu/MEC), da PróReitoria de Extensão da UFSCar, do CNPq e da Capes. Parte deste texto foi apresentada no IV Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, realizado na Universidade Federal da Grande Dourados (MS), em 2009. Todos os procedimentos da intervenção que integra este relato estiveram submetidos aos preceitos éticos necessários à sua realização. 1 Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Laboratório METUIA, Departamento de Terapia Ocupacional da UFSCar. Rod. Washington Luís, km 235 - SP-310. Caixa Postal 676. São Carlos, SP, Brasil. 13.565-905. relopes@ufscar.br 2 Núcleo UFSCar do Projeto METUIA. Bolsista Fapesp. 3 Núcleo UFSCar do Projeto METUIA. Bolsista Capes. 4 Departamento de Terapia Ocupacional, UFSCar. 5 Núcleo UFSCar do Projeto METUIA. Bolsista CNPq. *

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OFICINAS DE ATIVIDADES COM JOVENS ...

material sobre as possibilidades de intervenção direcionadas para a produção de tecnologias sociais que se dediquem à criação de espaços de participação democrática e ampliem a rede de sociabilidades e oportunidades daqueles jovens, na direção de envolvê-los concretamente numa atenção personalizada que tenha como parâmetro a possibilidade de construção de perspectivas de futuro a partir da autonomia do sujeito envolvido (Lopes et al., 2008b). Sabe-se que a escola pública brasileira tem passado por um intenso processo de transformação e, apesar de o país ter instituído legalmente sua universalização no Ensino Fundamental, o que tem garantido o ingresso de crianças, jovens e adultos, ainda apresenta inúmeras dificuldades frente aos processos de permanência, progressão e conclusão na idade adequada. O direito à educação democrática, que se define pela equidade e qualidade para todos8, permanece como meta (Lopes, Silva, Malfitano, 2006).

O Projeto METUIA se constituiu, desde 1998, como um grupo interinstitucional com ações no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão, em defesa da cidadania das populações em processos de ruptura das redes sociais de suporte. Dentre as atividades que vem realizando, temos os programas de intervenção de terapia ocupacional, em suas interconexões com os setores da assistência social, da cultura, da educação e, também, com a saúde. Atualmente, dois núcleos estão em atividade: o da USP e o da UFSCar (Barros, Lopes, Galheigo, 2007). 6

7 “a designação utilizada – jovens pobres – é intencional, uma vez que não se pretende aceitar alguns adjetivos que vêm sendo adotados, como ‘excluídos, vulneráveis, em situação de risco ou miseráveis’”. (Sposito, Corrochano, 2005, p.146)

Figura 1. Elaboração de vídeos e documentários

8 Para Gramsci, não há, em termos educacionais, qualidade sem quantidade (escola para todos), mas esta última, por si só, não representa a primeira (Mancacorda, 1989).

Figura 2. Construções e apresentações de esquetes

O campo da escola pública Ferreira Jr. e Bittar (2006) apontam três grandes problemas na conjunção educacional da atualidade, quais sejam: o acesso, a permanência e a aprendizagem efetiva, dentre os quais o professor tem influência direta nos dois últimos se tiver uma formação adequada e uma remuneração condizente. Porém, a questão do acesso tem sido a única atacada concretamente pelos sucessivos governos, o que é pouco para transformar nossa realidade educacional. 278

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LOPES, R.E. et al.

Compreendido como o conjunto de bens, saberes, crenças, práticas, comportamentos e habitus da humanidade, a partir das reflexões de Paulo Freire sobre patrimônio cultural (1979) e de Bourdieu (2008) acerca do capital cultural. 9

espaço aberto

Para Gimeno Sacristán e Pérez Gómez (1998), somente a escola pode cumprir a função de reelaboração crítica e reflexiva da cultura dominante, devendo disso se ocupar, considerando o fato de que, na contemporaneidade, perdeu o papel hegemônico na transmissão e distribuição da informação. No Brasil, na década de 1990, o prolongamento da escolaridade tornou-se impositivo, sobretudo em relação ao mercado de trabalho, que passou a exigir uma escolaridade maior e mais sofisticada. Nesse contexto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 reformulou o Ensino Médio com o objetivo de expandi-lo e melhorar sua qualidade (Marcílio, 2005). Apesar de ser um setor fundamental nas políticas públicas para a juventude, o Ensino Médio enfrenta cotidianamente o embate entre seus objetivos e suas reais condições de projetar a imensa maioria de adolescentes e jovens brasileiros em direção a uma vida de realizações, seja no mercado de trabalho, seja na formação para o Ensino Superior. Um percentual absolutamente relevante de jovens é excluído da escola no Brasil, num processo em que vivenciam a violência dessa discriminação produzida no contexto escolar, com a não-manutenção do acesso, com a falta de qualidade de ensino e, por fim, com a enorme barreira da desigualdade na construção de seus projetos de vida (Lopes, Silva, 2007). Conforme Silva (2007b), percorremos, na escola, um caminho de formação do “eu”, iniciamos uma busca pelo significado da vida; no entanto, somos submetidos a uma razão de controle exercida pelas instituições, que nos localizam, nos observam, nos expõem e buscam determinar aquilo que achamos que desejamos. Considerando que o papel da escola seja o de emancipar os indivíduos, instala-se um paradoxo: se, por um lado, deve-se possibilitar aos alunos compreenderem os processos de submissão e dominação aos quais estão expostos (para propiciar emancipação e autonomia), levando-os a resistir, a procurar por transformações; por outro lado, ela de fato mantém e legitima as desigualdades sociais (Bourdieu, 2008). Caberia à escola “o desafio de ser um grande palco de projetos coletivos” (Debortoli, 2002, p.44), buscando transformar-se para realizar sua função na produção e difusão do patrimônio cultural9 e na formação de sujeitos autônomos, deixando de produzir diferenças instituintes e lidando com a diversidade que lhe é inerente. Uma escola que não se conforme em ser uma máquina de hierarquizar pode oferecer a oportunidade de rompimento com a lógica da dominação, passando a ser um lugar de expressão, de subversão e de criação.

Figura 3. Elaboração de vídeos e documentários

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A pedagogia, como prática cultural e intencional, deve lançar mão de todo seu potencial para transformar e efetivar a formação dos cidadãos nas mais diferentes instâncias da vida contemporânea – escola, trabalho, família, grupos sociais, etc. – valendo-se, para isso, de dois fatores inerentes à prática pedagógica: a intencionalidade e a diferença. A escola, em particular, como local destinado a essa prática, deve ser um espaço de encontro e valorização das diferenças como multiplicidade referencial. Ao abraçar a diferença, a escola pode repensar e desconstruir flagelos clássicos de sua história, como a evasão, a repetência, a violência, vistos tradicionalmente como “fracasso escolar”, ou melhor, como “fracassos individuais”, quando, na verdade, são fracassos sociais, intencionais e educacionais (ou pedagógicos). A questão do exercício do poder na escola precisaria ser assumida e explicitada para que houvesse a possibilidade de transformá-la; contudo, temos a clareza da dimensão dessa tarefa e de suas dificuldades, diretamente ligadas ao que Bourdieu (1998) denomina ritos de instituição. Estes se referem a todo e qualquer rito que exerce um efeito de consagração, que notifica a alguém sua identidade (Bourdieu, 1998). Para entrar na escola e nela permanecer, todos são submetidos a ritos que os instituem como pertencentes ou não ao sistema escolar e a uma escola específica. Tais ritos são: provas objetivas, cadastros com uma infinidade de dados e documentos, filas, esperas, disputas (mesmo aquelas supostamente despersonificadas, como a satisfação de requisitos socioeconômicos, por exemplo), relações e comportamentos. É importante ressaltar que o rito tem caráter arbitrário e este, muitas vezes, está dissimulado, oculto, sob uma naturalização de certas “diferenças” artificialmente promovidas. Porém, segundo Bourdieu: “prega-se apenas aos convertidos”, ou seja, apenas se instituem aqueles que, de certa maneira, já interiorizaram essas diferenças como reais, naturais e legítimas (Bourdieu, Saint-Martin, 2008, p.200). Nossa escola, em vez de contribuir para a emancipação dos sujeitos, institui quem chegará até o final e quem não o logrará. Uma das funções da instituição seria desencorajar duradouramente a possibilidade da passagem, da transgressão, da deserção, da demissão. Em nossas escolas - aqui com foco naquelas frequentadas pela maioria dos jovens brasileiros, ou seja, na escola pública -, é assustadora a violência (física ou simbólica) a que estão submetidos os alunos; nelas, a evasão escolar se dá como uma deserção, um ato demissional, a partir da constatação clara de que aquele espaço pouco lhes diz respeito. Vale pensar também na constatação de que os ritos de instituição aos quais os alunos se sujeitam não têm sequer cumprido seu papel de promover o “sentir-se parte”, uma vez que há sempre ritos mais intransponíveis, para não dizer excludentes, num processo de dentro para fora, isto é, expulsando quem havia sido “aceito”. Para lidar com essa questão, Carvalho e Pinto (2002) resgatam a pedagogia da autonomia proposta por Freire (1999), partindo de experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, tendo, como parâmetros, o respeito e a liberdade. A disposição para a ação, participação, autonomia e democracia é uma força propulsora do desenvolvimento, e não um obstáculo a ser vencido. Construir a democracia no ambiente escolar não é uma tarefa fácil. Para Sorrentino (2002), a participação de fato poderia ser garantida com a efetivação: da disponibilidade de informações, dos espaços de locução, da infraestrutura básica, da coletivização das decisões e do comprometimento (ou “pertencimento”) de cada sujeito em relação ao processo. As experiências extensionistas desenvolvidas pelo METUIA/UFSCar, nessa perspectiva, têm lidado com essas problemáticas e contribuído com propostas de intervenção que buscam solucioná-las. Este relato é uma síntese do trabalho que o grupo tem desenvolvido no interior da escola pública desde 2005. Assim, o que aqui reunimos em “Oficinas de Atividades” é fruto de diferentes processos e formatos de proposições que procuraram responder a demandas da própria escola e dos jovens. Inicialmente, as oficinas ocorreram em cinco escolas estaduais de Ensino Médio de diferentes regiões da cidade de São Carlos (SP), tendo como eixos o levantamento e a reflexão acerca da violência na e da escola. Aconteciam semanalmente, agregadas transversalmente ao currículo de três turmas de cada escola, durante o primeiro semestre de 2006, no período diurno e noturno; trabalhou-se com cerca de quatrocentos e cinquenta alunos. A equipe era composta por terapeutas ocupacionais e estudantes de graduação da UFSCar.

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Em agosto de 2006, a partir de necessidades verificadas junto às escolas e aos jovens participantes, bem como pelo interesse de desenvolvimento de ensino e pesquisa, decidiu-se pela permanência do Projeto METUIA em uma daquelas escolas, justificada pelo fato de estar inserida numa região carente de bens sociais, por atender a alunos de grupos populares urbanos e por “implementar”as Diretrizes da Escola de Tempo Integral (São Paulo, 2006). Ao se pensar a escola como um espaço de trocas democráticas, Figura 4. Jogo interativo e roda de conversa concorrendo para a busca da ampliação de direitos, propôs-se aos jovens inseridos no Ensino Médio protagonizarem ações sociais junto àquela comunidade escolar, desenvolvendo oficinas para adolescentes do Ensino Fundamental, na Escola de Tempo Integral. A equipe passou a contar com alunos de Ensino Médio dessa escola, na realização de Oficinas de Atividades com as 5as. e 6as. séries do Ensino Fundamental, com 145 alunos participantes. Em relação às estratégias para lidar com a demanda reconhecida, as intervenções foram orientadas para se fazerem, também, ouvir os professores, oferecendo-se espaços para a troca de ideias. Isso ocorria, apesar de algumas restrições, nas Horas de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC), realizadas semanalmente com professores e a direção escolar. Em 2007, a opção foi trabalhar com alunos inseridos nas 5as. e 8 as. séries (cento e quarenta alunos). Esse fato originou-se de necessidades levantadas pelos próprios professores, que colocavam inúmeras dificuldades no desempenho de suas funções, em virtude de indisciplina, desrespeito e falta de motivação por parte dos alunos. Passamos a realizar, também, oficinas semanais abertas a todos os alunos, no pátio da escola, no horário do almoço, tendo como foco a temática da sexualidade. No segundo semestre de 2007, as atividades foram reduzidas por conta da não-continuidade do financiamento, mas, a partir do apoio de outras parcerias firmadas e do empenho da própria equipe, algumas ações prioritárias puderam permanecer. Dessa maneira, as oficinas aconteciam com alunos do período noturno (Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos, atingindo diretamente 25 jovens e adultos), com enfoque na relação trabalho/emprego. No período diurno foi realizada uma oficina que capacitou seis adolescentes para o trabalho com recursos audiovisuais. Em 2008 e 2009, mantivemos nossa inserção nessa escola com ações voltadas para alunos que apresentavam dificuldades cotidianas, especialmente no comportamento na escola. Muitos eram jovens que já estavam vinculados à nossa equipe, assim, as oficinas buscavam criar, dentro da escola, espaços que favorecessem a permanência desses jovens na educação formal. Acolhiam-se aproximadamente quarenta alunos de diferentes séries em duas oficinas semanais. Num primeiro momento, o espaço era para aqueles que apresentavam dificuldades na aquisição da leitura e da escrita; um segundo horário era destinado para os que apresentavam problemas em relação ao comportamento. Em 2009, passamos novamente a intervir em sala de aula, fazendo uma parceria com a disciplina de Sociologia. Além disso, uma estratégia que permaneceu foi a do trabalho na hora do intervalo, com a criação de recursos interativos, com vistas a informar, esclarecer e tensionar os jovens acerca de temáticas de suas realidades. As ações são semanais durante o período letivo, coordenadas por terapeutas ocupacionais, que contam com alunos de graduação e pós-graduação de diferentes níveis e cursos, com a presença de alunos da área de Terapia Ocupacional, Educação e Imagem e Som.

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A Oficina de Atividades é uma ferramenta que tem propiciado um diálogo próximo com os jovens, permitindo ampliar as formas de se conceber a ação educativa inserida no interior da escola, objetivando seu fortalecimento e sua ressignificação para esses sujeitos. É importante evidenciar um ponto fundamental com relação à escola pública: nela ainda encontramos o jovem pobre; disso decorre ser esse o espaço propício para o desenvolvimento de estratégias para a promoção e o fomento de projetos que possam garantir a esses jovens melhores condições de vida e experiências acerca da participação política e democrática. Para nós, a garantia dos direitos deve ser calcada na ampliação da esfera pública, apoiada no fortalecimento das ações e das políticas públicas com relação a setores sociais essenciais, como é o da educação (Lopes, Silva, 2007).

As Oficinas de Atividades A proposição das Oficinas de Atividades tem base nos pressupostos teórico-metodológicos da Terapia Ocupacional Social, desenvolvidos por Barros, Ghirardi e Lopes (2002, 1999), e nas reflexões do educador Paulo Freire (2005, 1978). A Terapia Ocupacional Social lança mão de atividades como recurso mediador do trabalho de aproximação, acompanhamento, apreensão das demandas e fortalecimento dos sujeitos, individuais e coletivos, para os quais direciona sua ação. A utilização da atividade possibilita o aprendizado e o reconhecimento de necessidades do sujeito e o desenvolvimento de sua capacidade para buscar soluções próprias e criativas, tornando a técnica dependente da interpretação e da apreensão da realidade, e não o inverso (Barros, Ghirardi, Lopes, 2002). Por intermédio desse instrumento de trabalho, sobre o qual o terapeuta ocupacional deve ter amplo domínio, pode-se conhecer o universo imediato dos sujeitos e ser conhecido dentro dele, aumentando, de maneira significativa, a possibilidade de criação de vínculos e, a partir disso, gerar oportunidades para uma atuação profissional que contribua para a construção conjunta de planos e projetos de vida. Um dos modos de concretização dessa metodologia tem sido nomeado de Oficinas de Atividades: espaços constituídos por um agrupamento social nos quais são estabelecidas propostas relacionadas ao fazer, à ação humana, que promovem a aprendizagem compartilhada. Ressalta-se o caráter ativo do sujeito nesse processo assim como o caráter dinâmico dessas experiências relacionais: entre participantes, espaço, materiais, memória, sensações. (Silva, 2007a, p.213)

Dessa maneira, criam-se, potencialmente, espaços de experimentação e aprendizagem, concebendo cada participante como ser ativo no processo de construção de subjetividade, um ser da práxis, da ação e da reflexão. A conjunção de fazeres, embebidos na leitura da função educativa de Paulo Freire, ganha um tom político, buscando: uma educação que, por ser educação, haveria de ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no [...] clima cultural [...], que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade [...] no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção. (Freire, 1978, p.59)

É a partir das (escolhas de quais) e nas (durante o processo) atividades que se objetiva a constituição de sujeitos históricos, sujeitos capazes de apreenderem sua realidade, de se conscientizarem e agirem sobre ela – transformando-a (Freire, 1978).

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No entrelaçamento de pressupostos teórico-metodológicos e na perspectiva do trabalho coletivo10, intervimos por meio de diferentes recursos: jogos interativos, rodas de conversa, músicas, criação de paródias, leitura de imagens, fotografia, vídeo (elaboração e/ou fruição de documentários), construção de textos, esquetes, apresentações culturais, debates, dinâmicas de trocas de informações, entre outros. Esses recursos são comumente selecionados tendo como parâmetro a temática que se deseja focalizar: situações de violência, sexualidade, drogas, cidadania, política, trabalho, questões históricas sobre violações e conquistas de direitos, educação, projetos futuros. O recurso da atividade permite um contato mais próximo com os jovens, a partir do qual se torna possível aprofundar a leitura das necessidades individuais e coletivas; também promove um maior contato e convivência entre os próprios participantes; proporciona a experimentação de um espaço prazeroso de sociabilidade e trocas que pode extrapolar o espaço físico da Oficina e transcender para o contexto escolar mais amplo. Outro impacto decorrente das atividades nas oficinas tem sido a ressignificação, por parte dos alunos, da importância da apreensão dos conteúdos curriculares da escola, pois as atividades, normalmente, preveem o domínio, em diferentes níveis, de “ferramentas” - como leitura, escrita, habilidades matemáticas, elementos históricos -, concretizando o que, convencionalmente, se denomina de trabalho com temas transversais.

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Ressalta-se que as atividades, além de serem criadas conjuntamente com os jovens na leitura de suas necessidades, desejos e vontades, contam com a participação de estudantes das áreas de Terapia Ocupacional, Psicologia, Pedagogia e Imagem e Som da UFSCar. Esse coletivo potencializa a condição de pluralidade de oferta de atividades nas oficinas, uma vez que cada sujeito tem em si um repertório criativo a ser explorado e utilizado. 10

Figura 5. Leitura e fruição das imagens fotográficas das Oficinas

Figura 7. Trocas de informações acerca da sexualidade Figura 6. Construção de jogo interativo para trocas de informações

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A forma de condução das oficinas ganha centralidade quando se aposta no desenvolvimento da proposição da Educação de Tempo Integral, em especial, na sua última versão, amparado no projeto do governo do estado de São Paulo (São Paulo, 2006). Isso porque, segundo suas diretrizes gerais, as escolas devem oferecer oficinas curriculares, especialmente instituídas para a vivência de atividades de natureza prática, inovadora, integradas às temáticas, conhecimentos e saberes já interiorizados ou não pelos alunos. Seriam oficinas articuladas aos planos de ensino dos diferentes professores, cujas prioridades estariam asseguradas na proposta de um processo que se destinasse à formação de pessoas aptas a exercerem sua plena cidadania. Essas oficinas deveriam buscar, em tempos complementares à educação formal: educar e cuidar da construção da imagem positiva do aluno; atender a diferentes necessidades de aprendizagem; promover o sentimento de pertinência e o desenvolvimento de atitudes de compromisso do aluno para com a escola e com a comunidade, instrumentalizando-o com as competências e habilidades necessárias ao desempenho do “protagonismo” juvenil e à participação social; promover a cultura da paz pelo desenvolvimento de atitudes de autorrespeito, respeito mútuo, solidariedade, justiça e diálogo (São Paulo, 2006). Abrangeriam uma ação política e social, com uma abordagem calcada na valorização da função social de uma escola de cunho humanista, qual seja: promover uma educação que se caracterize pelo exercício democrático tanto na construção de conhecimentos, quanto no desenvolvimento da individualidade e, também, como espaço privilegiado de construção de cultura e de sentidos (Lopes, Cuel, 2009). Todavia, percebemos inúmeras dificuldades enfrentadas pelos atores escolares frente à implantação da Escola de Tempo Integral, primeiro por sua “implementação” ter acontecido de forma abrupta e verticalizada, seguida pela falta de subsídio físico e teórico-metodológico na forma da condução das oficinas curriculares (Castro, 2009; Lopes, Cuel, 2009). Assim, a escola de tempo integral experimenta, muitas vezes, práticas incoerentes com as propostas e reivindica condições materiais e estruturais para que possa alcançar efetivamente os objetivos declarados. Compreendemos que a metodologia de trabalho das Oficinas de Atividades, como vimos desenvolvendo, oferece parâmetros significativos para a discussão da temática da educação integral, inclusive com propostas concretas para as oficinas curriculares a serem realizadas nas escolas de tempo integral, que precisam extrapolar esse modelo e ocorrerem, igualmente, na escola formal de meio período, bem como em outros espaços que se imbuem da ação educativa como missão.

Considerações finais As metodologias empregadas têm oportunizado a criação de vínculos importantes com os jovens que, desdobrando-se em acompanhamentos individuais, potencializam a ampliação das redes de suporte social; produzem espaços de convivência que possibilitam o respeito e a discussão, apresentando um novo referencial de como podem ser pautadas as relações dentro do espaço escolar. Isto porque, por um lado, promove-se a transferência de vínculos positivos para a escola, uma vez que eles, estimulados pelas vivências nas oficinas e pelos conhecimentos ali acessados e/ou construídos, ressignificam os processos e as experiências formais da escola; por outro lado, também temos nos deparado com situações conflitantes, sobretudo com parte do corpo docente, que encara as atividades das oficinas como ações concorrentes ao seu fazer “pedagógico”, ao mesmo tempo em que os alunos passam a questionar, desde a perspectiva do direito, formas de tratamento que lhes são conferidas por alguns professores e funcionários. A questão da escola e da educação como instâncias de exercício e reprodução das estruturas de poder parece tão clara quanto “inevitável”, algo que perpassa a discussão das diferenças dentro da escola, característica que lhe é inerente, afinal, “a questão da diferença não é um componente externo, recentemente incorporado à reflexão pedagógica, mas um componente configurador [...] da prática pedagógica” (Candau, Koff, 2006, p.488). Deve, portanto, ser considerada e assumida para que se possibilite à escola cumprir seu papel de espaço democrático de confluência das diferenças, que a torne 284

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capaz de contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade mais rica e complexa culturalmente, e com mais possibilidades de promover os ideais de igualdade, respeito e solidariedade. A questão do exercício do poder dentro da escola deveria ser assumida e explicitada para que tivéssemos a possibilidade de transformá-la, no momento mesmo que refletimos sobre ela e sobre a possibilidade de subverter a lógica que rege essas relações, construindo novas arquiteturas, tecendo novas redes, que produzam tensões mais construtivas. Enquanto a escola se mantiver apenas como reprodutora dos processos de exclusão que regem as relações em nossos contextos sociais, marcados por um modelo econômico e político que deles se alimenta, não realizará sua mais forte potencialidade: a de ser espaço de transformação social, capaz de permitir, a quem por ela passe (todos, por direito), trilhar caminhos para a conquista da autonomia. É justamente no rompimento com a “tradicional” função reprodutora do ordenamento vigente e na ressignificação da função educativa da escola que se dá a possibilidade de transformação da escola e da sociedade. A função educativa da escola [...] deve-se concretizar em dois eixos complementares de intervenção: – organizar o desenvolvimento radical da função compensatória das desigualdades de origem, mediante a atenção e o respeito pela diversidade; – provocar e facilitar a reconstrução dos conhecimentos, das disposições e das pautas de conduta que a criança assimila em sua vida paralela e anterior à escola. [...] preparar os alunos/as para pensar criticamente e agir democraticamente numa sociedade não democrática. (Gimeno Sacristán, Pérez Gómez, 1998, p.22)

Concordamos com esses autores quando pontuam que a escola obrigatória, que forma cidadãos, não pode se permitir o “fracasso escolar”, pois este é o fracasso da cidadania e da sociedade. A questão que ganha dimensão central nos estudos que correlacionam juventude e educação é o desafio que nos é apresentado por Manacorda, um dos principais educadores da contemporaneidade: diante das exigências do mundo moderno, nós precisamos mirar o mais possível na preparação do aluno não somente para ser ele mesmo, mas também para entrar na sociedade, senão com a capacidade de ser um produtor de cultura em todos os campos, pelo menos para ter a capacidade de desfrutar, de saber gozar, de todas as contribuições da civilização, das artes, das técnicas, da literatura. A cultura deve ser direcionada para todos, facilitando as disposições intelectuais e ao mesmo tempo forçando todo mundo, com firme doçura a aprender e a participar de todos os prazeres humanos. (Manacorda apud Nosella, Lombardi, Saviani, 2007, p.23)

Talvez seja um tanto pretensioso considerarmos, com o acúmulo de experiências em que se baseia este relato, que avançamos no sentido desse processo anunciado por Manacorda; contudo, esta é uma de nossas utopias, entendida como direção do que temos tentado efetivar junto aos jovens frequentadores das Oficinas de Atividades.

Figura 8. Elaboração de vídeos e documentários

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Agradecimentos Aos alunos dos cursos de graduação da UFSCar que compuseram, e continuam compondo, as equipes de trabalho do METUIA/UFSCar. Em especial, aos jovens que têm participado conosco neste percurso de buscas e descobertas, por sua confiança. Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito, com a coordenação da primeira. Referências BARROS, D.D.; GHIRARDI, M.I.G.; LOPES, R.E. Terapia ocupacional social. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.13, n.2, p.95-103, 2002. ______. Terapia ocupacional e sociedade. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.10, n.2-3, p.69-74, 1999. BARROS, D.D.; LOPES, R.E.; GALHEIGO, S.M. Projeto Metuia: apresentação. In: SIMPÓSIO DE TERAPIA OCUPACIONAL SOCIAL, 1.; Congresso Brasileiro de Terapia Ocupacional, 10., 2007, Goiânia. Anais ... Goiânia: Associação dos Terapeutas Ocupacionais de Goiás e Associação Brasileira dos Terapeutas Ocupacionais, 2007. s/p. BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2008. ______. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1998. BOURDIEU, P.; SAINT-MARTIN, M. As categorias do juízo professoral. In: BOURDIEU, P. (Org.). 10.ed. Escritos da educação. Petrópolis: Vozes, 2008. p.185-216. CANDAU, V.M.; KOFF, A.M.N.S. Conversas com... sobre a didática e a perspectiva multi/intercultural. Educ. Soc., v.27, n.95, p.471-93, 2006. CARVALHO, A.; PINTO, M.V. Ser ou não ser... Quem são os adolescentes? In: CARVALHO, A.; SALLES, F.; GUIMARÃES, M. (Orgs.). Adolescência. Belo Horizonte: UFMG/PROEX, 2002. p.11-29. CASTRO, A. A escola de tempo integral: a implantação do projeto em uma escola do interior paulista. 2009. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. 2009. DEBORTOLI, J.A. Adolescência(s): identidade e formação humana. In: CARVALHO, A.; SALLES, F.; GUIMARÃES, M. (Orgs.). Adolescência. Belo Horizonte: UFMG/PROEX, 2002. p.31-47. DIDI e MESTRINHO. É hoje. Samba Enredo G.R.E.S. União da Ilha do Governador. Rio de Janeiro: Top Tape Música Ltda, 1982. Disnponível em: <http://pt.wikipedia.org/ wiki/GRES_Uni%C3%A3o_da_Ilha_do_Governador#cite_ref-14>. Acesso em: 10 jan. 2010. FERREIRA JR., A.; BITTAR, M. Proletarização e sindicalismo de professores na ditadura militar (1964-1985). São Paulo: Terras do Sonhar/Edições Pulsar, 2006. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 4.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. ______. Pedagogia da autonomia. 12.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ______. Educação como prática da liberdade. 8.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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Discute-se uma experiência, na forma de Oficinas de Atividades, com jovens de uma escola pública. Trata-se de ações que decorrem de atividades de extensão universitária, caracterizadas por intervenções que buscam o exercício de metodologias participativas, fundamentadas na defesa de direitos que compõem a cidadania. Com o apoio dos pressupostos teórico-metodológicos da terapia ocupacional social e da educação para a liberdade defendida por Paulo Freire, as Oficinas de Atividades têm se constituído como uma tecnologia social de aproximação, (re)construção de projetos e ampliação de redes de suporte junto a jovens advindos de grupos populares urbanos em situação de vulnerabilidade social. O acúmulo dessas experiências tem nos oferecido subsídios para a discussão acerca da implantação desses dispositivos nos espaços da educação formal, com vistas à construção de propostas socieoeducativas fundadas em bases democráticas que carregam um movimento de tensionamento do ordenamento vigente, contribuindo para o enfrentamento de problemáticas sociais contemporâneas.

Palavras-chave: Juventude. Cidadania e direitos. Educação. Terapia Ocupacional. Tecnologias sociais. Activities workshops with public school youngsters: Social technologies between education and occupational therapy This article discusses an experience with youngsters from a public school, developed as Activities Workshops. The experience included actions resulting from university extension activities, characterized by interventions that seek to exercise participative methodologies, based on the defense of the rights which compose citizenship. With the support of the theoretical and methodological presuppositions of social occupational therapy and education for freedom advocated by Paulo Freire, the Activities Workshops have been constituted as a social technology for approaching students, (re)building projects and enlarging support networks conducted with youngsters who come from urban popular groups and are in situations of social vulnerability. The sum of these experiences has provided us with subsides related to the discussion about the implementation of these devices into the schools’ curriculum, in order to establish educational proposals founded on democratic bases that support a tensioning movement of the current situation, contributing to face contemporary social issues.

Keywords: Youth. Citizenship and rights. Education. Occupational Therapy. Social technologies. Talleres de actividades con jóvenes de la escuela publica: tecnologías sociales entre la educación y terapia ocupacional Se discute una experiencia en forma de talleres de actividades con jóvenes en una escuela pública. Se trata de acciones que resultan de actividades de extensión universitaria, caracterizadas por las intervenciones que buscan ejercer los métodos participativos, basados en la defensa de los derechos que componen la ciudadanía. Con el apoyo de los principios teóricos y metodológicos de la terapia ocupacional social y de la educación para la libertad defendida por Paulo Freire, los talleres de actividades han surgido como una tecnología social de aproximación, (re)construcción de proyectos y expansión de redes de apoyo a los jóvenes provenientes de grupos populares urbanos en situaciones de vulnerabilidad social. La acumulación de estas experiencias nos ha dado subsidios para la discusión sobre la implementación de estos dispositivos en la escuela que desea la construcción de propuestas sociales y educativas basadas en los fundamentos democráticos y con un movimiento de tensión de la situación actual.

Palabras clave: Juventud. Ciudadanía y derechos. Educación. Terapia Ocupacional. Tecnologías sociales. Recebido em 22/11/09. Aprovado em 08/09/10.

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“Boa noite, bom dia HUAP!”, uma experiência de humanização na formação de profissionais da área de saúde* Pedro Gemal Lanzieri1 Lenita Barreto Lorena Claro2 Fernando Cesar Ranzeiro de Bragança3 Vera Regina dos Santos Montezano4 Célia Sequeiros da Silva5

Introdução Entre os problemas da atenção à saúde que a Política Nacional de Humanização, do Ministério da Saúde, propõe-se a enfrentar, estão: a “fragmentação do processo de trabalho e das relações entre os diferentes profissionais”, a “precária interação nas equipes e despreparo para lidar com a dimensão subjetiva nas práticas de atenção”, e um “modelo de atenção centrado na relação queixa-conduta”. Entre os componentes do conceito de humanização, expressos por essa política de saúde, estão: a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde, enfatizando sua autonomia, corresponsabilidade, o estabelecimento de vínculos solidários e a participação coletiva nos cuidados em saúde; o incentivo à união e à colaboração interdisciplinar de todos os envolvidos, dos gestores, dos técnicos e dos funcionários, assim como a organização para a participação ativa e militante dos usuários nos processos de prevenção, cura e reabilitação (Brasil, 2004, p.11-3). Nos debates sobre a formação de profissionais de saúde e nas diretrizes curriculares dos cursos da área de saúde, a humanização e a integralidade da atenção têm sido temas relevantes (Rego et al., 2008; Souza, Moreira, 2008; Koifman, 2001). O trabalho em saúde e a formação de seus profissionais pressupõem aspectos técnicos e relacionais, a busca da “cura” e o “cuidado” dimensões estas que ainda são vistas como separadas, dicotômicas, em paralelo à dicotomia entre corpo e mente/alma (Ferreira, 2005). A dimensão da cura, envolvendo conhecimentos e habilidades técnicas, é priorizada nos currículos profissionais, especialmente dos médicos. Superar essa dicotomia e mesclar, à técnica, a dimensão relacional, “humana”, é um desafio que se coloca nos currículos de graduação e nas políticas e práticas de saúde (Ayres, 2004). As reformas curriculares têm procurado responder a essa questão, incorporando o ensino das ciências sociais e das humanidades. Esse ensino destina-se ao desenvolvimento de habilidades e atitudes, tais como a comunicação, a empatia, a solidariedade e o acolhimento, as quais capacitam o estudante a desenvolver uma relação mais próxima, ética e satisfatória, tanto com clientes, quanto com outros profissionais (Turini et al., 2008; Ruiz-Moral, 2007; Sucupira, 2007). A introdução de saberes inovadores no campo da saúde, como as artes, também atende a essa finalidade, entre outras (Ayres, 2005; Tapajós, 2002). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Relato de experiência. 1 Acadêmico, Departamento de Saúde e Sociedade, Instituto de Saúde da Comunidade, Universidade Federal Fluminense (ISC, UFF). Av. Marquês do Paraná, 303, Prédio Anexo – 3º andar. Centro, Niterói, RJ, Brasil. 24.030-210. pegemal@hotmail.com 2,3,5 Departamento de Saúde e Sociedade, ISC, UFF. 4 Hospital Universitário Antônio Pedro, UFF. *

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Outra questão preocupante na formação desses futuros profissionais é a dificuldade encontrada para integrá-los por meio de seus currículos, com a finalidade de promover maior convivência, troca de conhecimentos e respeito ao saber alheio, e facilitar o aprendizado do trabalho em equipe (Souza, Moreira, 2008; Garcia et al., 2007; Saupe, Budó, 2006). Os projetos de extensão universitária têm se revelado como instrumentos pedagógicos importantes ao propiciarem essa desejada integração multiprofissional, o desenvolvimento da dimensão relacional e a prestação do “cuidado” na formação dos estudantes da área da saúde, por meio de atividades práticas (Saraiva, 2007; Hennington, 2005). O projeto “Boa noite, bom dia HUAP!” nasceu da proposta do acadêmico de Medicina da UFF, Rodrigo Mello Ferreira, apresentada na disciplina Iniciação Científica. Tornou-se um projeto de extensão universitária no início de 2008 e, desde então, tem sido coordenado por professores do Departamento de Saúde e Sociedade, que compõe o Instituto de Saúde da Comunidade da UFF. Atualmente, participam, como profissionais, dois professores desse departamento, com formação médica, uma terapeuta ocupacional, do mesmo departamento, e uma enfermeira do Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP), com pós-graduação em arteterapia.

Objetivos A finalidade do presente trabalho é avaliar a contribuição do projeto de extensão “Boa noite, bom dia HUAP!” à formação humanística dos estudantes da área de saúde, por intermédio dos significados atribuídos pelos mesmos a essa experiência. Os objetivos do projeto são: a) Contribuir para a formação humanística dos estudantes da área de saúde, possibilitando maior integração entre estudantes de diferentes cursos e a aquisição de: competências comunicacionais, sensibilidade estética, capacidade para exercer o cuidado e para melhor lidar com a afetividade envolvida nas relações entre profissionais e clientes, por intermédio de atividades práticas. b) Contribuir para a recuperação da saúde e melhoria da qualidade do período de hospitalização de clientes do HUAP por meio do diálogo entre estudante e cliente e do compartilhamento de atividades lúdicas criativas.

Método O público-alvo do projeto são os estudantes de cursos de graduação na área de saúde e a clientela hospitalizada. O público atingido indiretamente é formado por acompanhantes, visitantes e familiares dos pacientes, assim como funcionários do HUAP. Atualmente, conta-se com cerca de cinquenta estudantes, com predomínio dos cursos de medicina e enfermagem. Participam, também, estudantes de farmácia, psicologia, serviço social e de outros cursos de graduação. Conta-se, ainda, com um aluno bolsista de extensão. Alguns estudantes integram o projeto desde sua criação, a maioria permanece vinculada ao mesmo durante um ou dois semestres. Os participantes são divididos em grupos, coordenados por um profissional de saúde ou docente, e realizam visitas semanais a enfermarias do HUAP, no horário de 18h30 às vinte horas, sendo feita a preparação e organização da visita nos trinta minutos que a antecedem. O projeto dispõe de fantasias, adereços, instrumentos musicais, materiais gráficos e expressivos diversos. Faz-se ainda uso de dobraduras (origami) e jogos (de tabuleiros, memória etc). A interação entre estudantes e clientela é estimulada por meio de conversas, escuta e de atividades que são propostas. A música, assim como outras atividades lúdicas (mágicas, fantoches, brincadeiras, palhaçaria etc.), complementam as intervenções. Semanalmente, um grupo se reúne para estudo de artigos e textos sobre temas afins ao projeto. Periodicamente, os participantes de todos os grupos se reúnem para avaliar, discutir as estratégias 290

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e atividades realizadas e sugerir novas abordagens. Oficinas de capacitação são promovidas para favorecer e aprimorar o desenvolvimento de habilidades artísticas e comunicativas. Além disso, desenvolvem-se projetos de pesquisa, dando oportunidade de participação a alunos interessados na Iniciação Científica, que é uma atividade optativa nos currículos. O projeto dispõe de página na internet e um e-mail de grupo, que permitem maior agilidade na divulgação das atividades e comunicação entre os participantes. A participação dos estudantes neste projeto de extensão é opcional (não recebem créditos curriculares), embora recebam certificados de participação. Como a carga horária dos currículos na saúde é muito extensa, o tempo e a disponibilidade para atividades de extensão são restritos, o que desestimula a inserção de muitos estudantes e limita o número de horas semanais que podem ser solicitadas de participação. Assim, não tem sido possível discutir com todos os estudantes, em profundidade, após as visitas, as vivências ocorridas. Optou-se, então, por se compartilhar as impressões sobre essas experiências através do e-mail de grupo. Após cada visita dos grupos às enfermarias, pede-se que um dos estudantes elabore um relatório das atividades realizadas, situações, experiências e sentimentos vivenciados. Outros estudantes são estimulados a contribuir com o “diário”, acrescentando suas impressões. Esses “diários” são compartilhados através do “e-mail de grupo”, ficando disponíveis para todos consultarem, bem como as “respostas” de alguns dos demais participantes, ou seja, a reação que expressaram à leitura. Foi solicitada, dos autores de diários, sua autorização para a utilização dos mesmos para avaliação das atividades do projeto, sendo, neste caso, preservado seu anonimato. Utilizou-se a metodologia qualitativa para analisar o material composto pelos diários produzidos desde o início das atividades do projeto, por intermédio da análise de conteúdo, na modalidade temática, e realizada uma leitura compreensiva do conjunto do material, seguida de sua categorização e interpretação (Pope, Mays, 2009; Minayo, 2006).

Resultados e discussão Da observação do conjunto de diários das visitas, destacam-se três temas principais: as dificuldades dos estudantes em lidarem com a afetividade envolvida na interação com os clientes; a oportunidade de interagirem com os clientes de forma diferenciada; os efeitos benéficos percebidos como resultantes desses encontros, tanto para os clientes quanto para os estudantes. Esses temas são discutidos a seguir, sendo ilustrados com trechos reproduzidos dos diários.

Dificuldades para lidar com a afetividade A formação do profissional de saúde, especialmente do médico, no modelo da medicina ocidental, envolve, prioritariamente, a aquisição de conhecimentos e habilidades técnicas que pressupõe a utilização da racionalidade e objetividade, características da ciência moderna. A dicotomia razão X emoção, e a superioridade da primeira sobre a segunda, orientam essa formação, durante a qual é estimulado o uso da razão em detrimento das emoções, resultando em obscurecimento dos sentimentos e dos afetos, com consequente distanciamento emocional do cliente. Nos diários analisados, a dificuldade dos estudantes para lidarem com a afetividade – aqui entendida como o conjunto de emoções e sentimentos – tornou-se evidente. Alguns diários assemelham-se a um relato impessoal, descritivo, das atividades realizadas. A dificuldade em aproximar-se, em abordar os clientes, em estar ali, numa enfermaria do hospital, num papel diferente do esperado para um estudante da área da saúde, foi observada em muitos relatos. Outras vezes, a emoção aflorada nos encontros promoveu embaraço e tentativas de ocultação da mesma: “Combinamos que entraríamos na ala infantil cantando uma música e assim o fizemos. As crianças olharam meio assustadas, nem deram muita atenção. Resolvemos parar de cantar. Bateu um desespero enorme nessa hora, não tinha a menor idéia do que dizer a elas. [...] COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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pediram para irmos à ala dos pacientes com problemas no coração e isso gerou uma nova tensão, porque não seriam mais crianças...”. (estudante de psicologia, 4º período) “[...] chegou a hora e tivemos que nos despedir. Seu E. estava visivelmente emocionado, com direito a sinceras lágrimas. Eu e A. nos seguramos para não chorar também”. (estudante de medicina, 3º período)

Destacaram-se os relatos de dificuldades para lidar com o sofrimento do outro, especialmente com os pacientes com doenças graves, ou com a morte: “Fiquei muito apreensiva quando soube que iríamos à hematologia, sem dúvida um desafio para mim, tendo em vista meu cansaço, principalmente mental. Assim que chegamos na enfermaria nos deparamos com Dona S. que não gostou muito da idéia de cantarmos por lá. Houve, por alguns minutos, um silêncio profundo por parte de nós que atentamente escutávamos sua justificativa. Ela estava muito enjoada, pois acabara de sair de uma sessão de quimioterapia, passando muito mal. [...] Que momento de agonia, não sabíamos muito o que fazer, apenas ouvíamos ela balbuciar pedindo ajuda e forças à Deus enquanto vomitava. No momento, assim como ela, apenas consegui balbuciar que tudo ia ficar bem, que ela ia melhorar, que tudo aquilo ia passar. Mas, por Deus!! Que angústia no meu coração naquele momento!”. (estudante de medicina, 3º período) “Íamos percorrendo os leitos, e eu continuava acompanhando o aparelho da paciente crítica. F. resolveu cantar para ela, e descobrimos que seu nome era T. Conforme F. falava, ela acenava com a cabeça. Parecia concordar com a gente. Antes de sairmos, olhei o aparelho uma última vez: ele mostrava ‘10’. Quando saímos da sala, ela faleceu. Descemos em silêncio, até que alguém disse algo do tipo “Caramba, ela morreu!” Minha cabeça estava a mil: o que era pra ser uma visita simples se tornou numa experiência sem igual. Não sabia o que dizer, não tinha o que dizer. Aquelas pessoas percorriam minha mente incessantemente. As macas, a enfermagem, as fantasias, as bolhas de sabão, as crianças, a T...”. (estudante de psicologia, 4º período) “Cheguei ao CTI e me sentei ao lado dela, olhando a cama, pensando no nada [...] A mãe de R. entrou, pedi desculpa pela invasão e a abracei. [...] Chorei, claro. Ali estava a mesma R. que quis tirar mil fotos com acessórios, que brincou com as bolas de sabão, que cantou com um grupo enorme numa sexta lá na hematologia. Só que havia somente o barulhinho do respirador, uma menina que teve as unhas compridas cortadas, as enfermeiras conversando no balcão. Despedi-me perguntando se poderia voltar no dia seguinte, um pouco mais cedo por causa da aula que teria depois. [...] Foi difícil acordar cedo no dia seguinte, mas lembrei que ela estava me esperando. Cheguei cedinho. O aparelho apitava de maneira diferente. Não sabia o que tinha acontecido, mas sabia que R. tinha piorado. Fiquei parada, meio sem saber o que fazer. O médico analisando, ouvindo, palpando... Saí quando precisei ir pra aula. Já estava até atrasada. Sabia que R. tinha piorado, sabia que era inevitável, mas ainda sim, mesmo sem ter parentesco nenhum, mesmo só a tendo visto uma vez, era doloroso, era triste. Não fui ao BNBD naquela quarta-feira, mas também não chegaríamos a tempo. R. morreu à tarde. Eu fiz o que poderia ter feito: conversado, dado carinho. E percebi como a prática médica (e da saúde) é difícil, como nos é exigido domínio das emoções e racionalidade. Senti-me como se tivesse perdido uma paciente, e mal comecei minha estrada num hospital”. (estudante de medicina, 1º período)

Experiências como essas, de compartilhar momentos de dor e de vivenciar o sofrimento com a morte de um paciente que se tornou muito próximo, ao mesmo tempo em que trazem para o estudante desconforto ou tristeza, são consideradas por este como sumamente importantes para sua formação. 292

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Em geral, a disciplina de anatomia é que proporciona o primeiro contato do estudante com a morte, uma morte despersonalizada, sem identidade e sem história (Sadala, Silva, 2008), com a qual o estudante deve lidar de forma objetiva, reprimindo as emoções. Durante a formação, o estudante é estimulado a manter o distanciamento emocional em relação à morte e conta com pouco apoio para lidar com as questões emocionais envolvidas. O tema é discutido em algumas disciplinas, como psicologia médica, porém de forma teórica, e o aprendizado prático por meio do convívio com médicos, nos anos mais avançados do curso, frequentemente se contrapõe ao que foi aprendido em sala de aula. A noção comum, do profissional de saúde como alguém que evita a morte e salva vidas, resulta em sentimentos de frustração e impotência diante de pacientes terminais. A oportunidade de conviver com essa clientela, conhecendo-a melhor e possibilitando novas formas de ajuda, além do saber técnico, colabora para que se formem profissionais que saibam cuidar de pessoas mesmo quando consideradas tecnicamente “incuráveis”.

Encontros estudantes-clientes Apesar das dificuldades observadas para a interação, na maior parte dos diários aparece a gratificação dos estudantes por terem conseguido estabelecer vínculos mais próximos com alguns dos pacientes, por poderem conhecê-los melhor, não como portadores de um problema de saúde, mas como pessoas com uma rica e variada bagagem de vida: “[...] fui tocar para o senhor ao lado, o qual me recebeu muitíssimo bem. Após tocar, começamos a conversar e acabei ficando por ali até o momento de ir embora. Ele me falou de sua família, seu trabalho, e de sua fé. Ele me desejou tantas coisas boas, as quais nem saberei mais detalhar. O que sei é que saí de lá com a vontade de retornar no dia seguinte”. (estudante de medicina, 1º período) “Assim que chegamos pertinho e começamos a conversar com ele enquanto o pessoal fazia a festa do outro lado, descobrimos que ele era cego há alguns anos! Antes disso, nos enrolamos no portunhol para engrenar a conversa porque o sotaque dele parecia meio que de argentino, depois ele revelou que é peruano e está no Brasil acho que desde seus oito anos, portanto é mais brasileiro que peruano. Foi um bate-papo muito animado descobrimos que ele é um artista multifacetado! Artes plásticas, cênicas... Vai desde um simples professor de espanhol, até um cantor de bolero!!!”. (estudante de medicina, 3º período)

O convívio entre clientes e estudantes permite que estes exercitem a capacidade de se comunicarem, a habilidade de ouvir, compreender o outro de uma forma mais ampla e ser por este compreendido, estabelecendo relações mais próximas e afetivas, as quais, em alguns casos, permanecem mesmo depois da alta hospitalar.

Efeitos das interações

A percepção de efeitos benéficos desses encontros, não só para os clientes e seus acompanhantes, mas também para si próprios, foi destacada em muitos relatos dos estudantes: “Todos nós estávamos muito animados, porém tivemos um imprevisto que nos deixou constrangidos. No segundo box que entramos, encontramos uma paciente com depressãopós-parto. Ela não falava, e conforme cantávamos ela fazia caras de dor e se contorcia. Não lembrava seu nome e nem conseguia passar para nós o que ela sentia. Alguns de nós saímos e fomos continuar a visita. Outros ficaram conversando com aquela paciente. Sua companheira de box até disse ‘Gente, chamem a enfermeira, vocês conseguiram um milagre. Ela não fala com ninguém e está conversando com vocês!’”. (estudante de enfermagem, 4º período) COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“Primeiro, foi muito gratificante ver a calma dos lactentes após algumas músicas que tentei tocar na flauta. Ainda não estou muito boa, mas tenho me esforçado e acho que as crianças captam meu carinho e me retribuem de uma maneira inexplicável [...] Após um tempinho, voltei para a enfermaria dos lactentes e uma mãe fez a seguinte observação: ‘depois que você saiu ele começou a chorar’. Então voltei a tocar flauta e ele se acalmou”. (estudante de medicina, 1º período) “Na última sexta-feira, chegando numa das enfermarias, uma senhora me olhou com olhar de dor. Num primeiro momento me senti impotente e sem ação. De repente, percebi que somente meus ouvidos seriam suficientes naquele momento e que nada a mais poderia surtir o mesmo efeito que tal atitude. Um semblante de alívio surgiu na face dela e eu não conseguia entender ainda o motivo. Foi quando ela me deu um abraço, um abraço tão cheio de verdade que pouca ou nenhuma vez senti”. (estudante de farmácia, 9º período)

Estar hospitalizado é ser despojado temporariamente de uma complexa identidade social para adquirir a identidade limitada e passiva de doente (Sant’Anna, 2000; Toralles-Pereira et al., 2004). As atividades propostas pelo projeto destinam-se a ajudar o estudante a acessar e comunicar-se com a essência saudável daquele que está, temporariamente, desempenhando o papel de doente. Esse contato especial entre estudante e cliente pode ser compreendido, com base na obra do filósofo Espinoza (2009, p.1677), como “bons encontros”, pois elevam o grau de potência de ambos os lados e produzem bons efeitos, tais como a alegria. Para Espinoza, não há oposição entre razão e emoção, e esta é fundamental para se conhecer o outro.

Reflexões finais Almeja-se, que, ao final do curso de graduação, tenha-se um profissional de saúde mais humano, capacitado para o cuidado integral. Os “campos de significado” propostos por Phenix (Tapajós, 2008), como as seis áreas básicas da educação, incluem: o campo simbólico, voltado para a comunicação; o campo estético, voltado para a singularidade da experiência, e o campo sinoético, que abrange o conhecimento de si e do outro, a introspecção e a conscientização (Tapajós, 2008). A formação profissional nesses campos requer o investimento em estratégias pedagógicas que privilegiem a experiência, considerada fundamental nas palavras do educador Bondía (2002, p.24): A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

Este autor nos chama a atenção para o fato de que a experiência é cada vez mais rara pelo excesso de informação, pelo excesso de opinião, pela falta de tempo e pelo excesso de trabalho. O saber da experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana e traz, em si, a capacidade de formação ou de transformação (Bondía, 2002) Nos cursos de graduação na área da saúde, a ênfase na aquisição de conhecimentos técnicos, que se multiplicam de forma acelerada, deixa poucos espaços (internos e externos) para a aquisição do saber da experiência. Projetos de extensão universitária, como o “Boa noite, bom dia HUAP!”, permitem abrir esses espaços. Entre as limitações do projeto está o curto período em que o estudante participa semanalmente das atividades, tendo em vista o excesso de exigências curriculares a que é submetido. Ainda assim, consideramos que essas atividades e seus efeitos, que perduram para além das visitas, consistem 294

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em recursos pedagógicos inovadores e relevantes para sua formação, além de contribuírem para a manutenção da saúde e equilíbrio emocional dos estudantes, muitas vezes afetados pelas pressões a que são expostos. As impressões exteriorizadas por esses estudantes nos falam de encontros muito especiais, envoltos em emoções, música, cor, sorrisos e, às vezes, lágrimas, e que ocorrem num ambiente habitualmente frio e sem cor. Mesmo a vivência da morte é relatada com tons de suavidade. Encontros que certamente contribuem para formar profissionais de saúde mais sensíveis e habilitados para lidarem com a complexidade do ser humano e com a complexidade da saúde humana.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências AYRES, J.R.C.M. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.549-60, 2005. ______. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc., v.13, n.3, p.16-29, 2004. BONDÍA, J.L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev. Bras. Educ., v.26, n.9, p.20-9, 2002. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização – Humaniza SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. ESPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. FERREIRA, J. O Programa de Humanização da Saúde: dilemas entre o relacional e o técnico. Saude Soc., v.14, n.3, p.111-8, 2005. GARCIA, M.A.A. et al. A interdisciplinaridade necessária à educação médica. Rev. Bras. Educ. Med., v.31, n.2, p.147-55, 2007. HENNINGTON, E.A. Acolhimento como prática interdisciplinar num programa de extensão universitária. Cad. Saude Publica, v.21, n.1, p.256-65, 2005. KOIFMAN, L. O modelo biomédico e a reformulação do currículo médico da Universidade Federal Fluminense. Hist. Cienc. Saude - Manguinhos, v.8, n.1, p.48-70, 2001. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2006. POPE, C.; MAYS, N. Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. Porto Alegre: Artmed, 2009. REGO, S.; GOMES, A.P.; SIQUEIRA-BATISTA, R. Bioética e humanização como temas transversais na formação médica. Rev. Bras. Educ. Med., v.32, n.4, p.482-91, 2008. RUIZ-MORAL, R. Relación médico-paciente: desafíos para la formación de profesionales de la salud. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.11, n.23, p.619-35, 2007.

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“Boa noite, bom dia HUAP!” é um Projeto de Extensão da Universidade Federal Fluminense, cuja proposta é: contribuir para a humanização da formação na área de saúde, facilitando a integração de estudantes de diferentes cursos, a aquisição de competências comunicacionais, capacidade para cuidar e melhor lidar com a afetividade; contribuir para a recuperação e melhor qualidade do período de hospitalização de clientes do Hospital Universitário Antônio Pedro. São realizadas três intervenções por semana nas enfermarias, ocasiões em que os participantes são estimulados a interagir com a clientela por meio do diálogo e de atividades lúdicas criativas. Este trabalho avalia a contribuição do projeto na formação dos estudantes mediante os significados atribuídos pelos mesmos a essa experiência. Os relatos mostram que, apesar das dificuldades iniciais para lidar com sentimentos e emoções, as atividades têm proporcionado aos estudantes experiências consideradas gratificantes e importantes para sua formação.

Palavras-chave: Humanização. Formação de recursos humanos. Saúde. Extensão. “Good evening, good morning HUAP!”, an experience of humanization within training for healthcare professionals “Good evening, Good morning HUAP!” is an extension project at Universidade Federal Fluminense in which the aim is to contribute towards humanizing training within healthcare through facilitating integration between students on different courses, acquisition of communication skills and capacity to care for and cope better with feelings and emotions. This will contribute towards recovery and better quality of hospital stay among patients at the Antônio Pedro University Hospital. Three interventions are made in the wards every week and, on these occasions, the participants are encouraged to interact with the clientele through dialogue and creative play activities. This study evaluated the contribution of the project towards the students’ training, by analyzing the meanings that they ascribe to this experience. The reports showed that, despite the initial difficulties in dealing with feelings and emotions, the activities provided the students with experiences that they considered to be rewarding and important for their training.

Keywords: Humanization. Human resources development. Healthcare. Extension.

“İBuenas noches, buenos días HUAP!”, una experiencia de humanización en la formación de profesionales del área de salud “İBuenas noches, Buenos días HUAP!” es un Proyecto de Extensión de la Universidad Federal Fluminense en el estado de Rio de Janeiro, Brazil, cuya propuesta es: contribuir para la humanización de la formación en el área de la salud, facilitando la integración de estudiantes de diferentes cursos, la adquisición de competencias de comunicación, capacidad para cuidar y tratar mejor con la afectividad; contribuir para la recuperación y mejor calidad del periodo de hospitalización de clientes del Hospital Universitario Antonio Pedro. Se realizan tres intervenciones por semana en las enfermarías, ocasiones en que se estimula a los pacientes a interaccionar con la clientela por medio del diálogo y de actividades lúdicas creativas. Este trabajo evalúa la contribución del proyecto en la formación de los estudiantes mediante los significados que ellos atribuyen a esta experiencia. Los relatos muestran que, a pesar de las dificultades iniciales en tratar con sentimientos y emociones, las actividades han proporcionado a los estudiantes experiencias consideradas gratificantes e importantes para su formación.

Palabras clave: Humanización. Formación de recursos humanos. Salud. Extensión.

Recebido em 11/08/2009. Aprovado em 03/03/2010.

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Estratégias de intervenção da Terapia Ocupacional em consonância com as transformações da assistência em Saúde Mental no Brasil Daniela Tonizza de Almeida1 Érika Renata Trevisan2

Introdução Historicamente, a assistência psiquiátrica no Brasil se organizou por meio de um modelo de atenção caracterizado por práticas assistenciais que enfatizavam a sintomatologia e se efetivavam por intermédio de longas internações em hospitais psiquiátricos, negligência e maus-tratos. Entretanto, essa realidade vem sendo transformada gradativamente. A mudança iniciou-se com o movimento de reforma psiquiátrica, no final da década de 1970, inspirada nos pressupostos teóricos e práticos do Modelo da Psiquiatria Comunitária Italiana (Amarante, 1998). Um grande avanço neste processo foi a aprovação da Lei Paulo Delgado, em 2001, que prescreve a construção de uma rede de serviços substitutivos ao modelo manicomial que respeitasse o direito social e aumentasse o poder contratual dos usuários. No conjunto dessas transformações, as identidades profissionais dos técnicos e a cisão entre diferentes disciplinas são permanentemente colocadas em questão. Trata-se de uma nova concepção de saúde e assistência que privilegia a prática e reordena o trabalho, valorizando o trabalho inter e transdisciplinar (Ballarin, Carvalho, 2007). As transformações estruturais e ideológicas dessa nova concepção de tratamento em saúde mental trouxeram implícitas algumas inovações para a profissão. Neste contexto, a Terapia Ocupacional vem buscando legitimidade como área de atuação e de produção de saber. A profissão, por congregar conhecimentos interdisciplinares das áreas da saúde, educação, social e cultural, e se ocupar das necessidades e dificuldades das pessoas no cotidiano, apresenta um instrumental condizente com a assistência comunitária (Ribeiro, Oliveira, 2005). Ao refletir sobre a Terapia Ocupacional, com base no conceito de Reabilitação Psicossocial, Benetton (2001) confirma essa afirmação ao apontar que os terapeutas ocupacionais brasileiros têm se mostrado mais arrojados que os colegas americanos e canadenses, participando ativamente dos processos de desospitalização e investimento em programas de intervenção na comunidade. Ballarin e Carvalho (2007) ressaltam a heterogeneidade das práticas e dos recursos da Terapia Ocupacional que, apesar de compartilhados no trabalho em equipe, se mostram pontuais ao auxiliar no processo de desinstitucionalização COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Universidade Presidente Antônio Carlos. Av. Nossa Senhora do Carmo, 1805/1402. Carmo, Belo Horizonte, MG, Brasil. 30.320-000. daniela_tonizza@ yahoo.com.br 2 Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

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de um paciente. A partir da identificação e validação de potencialidades e interesses, da observação sistemática de seu cotidiano, do fortalecimento de vínculos e contratualidade, possibilita-se o resgate da identidade abalada com o processo de institucionalização. Segundo Lopes e Leão (2002), como estratégia de atuação, a Terapia Ocupacional tem priorizado atendimentos grupais e, mais especificamente, as oficinas terapêuticas, pela similaridade com a proposta da profissão e priorização da atividade como uma oportunidade para a promoção de autonomia e participação social. Nesta proposta, o terapeuta ocupacional divide espaços com oficineiros, artistas e outros profissionais da saúde de forma pouco diferenciada, o que impõe a seguinte questão: essa tendência interfere na identidade e delimitação do espaço profissional? Partindo do pressuposto de que a identidade se constitui a partir de semelhanças e diferenças, ou seja, da comparatividade com o outro, conforme Caníglia (2005), questiona-se: há possibilidade de este profissional se inserir num contexto de práticas coletivas, onde se propõe a superação do antigo paradigma da fragmentação disciplinar e, ainda assim, conservar a própria identidade? Nessa conjuntura, surgem ainda outras indagações relativas à especificidade da profissão: de que forma o terapeuta ocupacional tem se inserido no cenário da rede de serviços substitutivos? Que ações e instrumentais ele tem utilizado para atender aos objetivos da inclusão social propostos por este novo paradigma?

Metodologia Trata-se de uma revisão bibliográfica que pretende oferecer, ao campo interdisciplinar da Saúde Mental, um panorama geral da produção técnica e teórica da Terapia Ocupacional no período de 2002 a 2008. Para tanto, realizou-se uma busca aos artigos brasileiros relacionados ao tema, publicados em revistas científicas indexadas nas seguintes bases de dados: LILACS e SCIELO. Os artigos foram selecionados, analisados e discutidos com base nas categorias de análise: o processo da reforma psiquiátrica e a democratização da assistência; concepção de saúde; conceito de atividade, e a especificidade do terapeuta ocupacional. Duas perspectivas teóricas, Fundamentos de Terapia Ocupacional (Caniglia, 2005) e Terapia Ocupacional em Saúde Mental (Mângia, Nicácio, 2001), ofereceram subsídios para a discussão. A Ergologia de Schwartz e Durrive (2007) também contribuiu com elementos que a enriqueceram.

Resultados A pesquisa realizada constatou que a maior parte dos artigos publicados sobre Terapia Ocupacional no campo da Saúde Mental, no período referido, concentrava-se na Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo. Nesse período, os terapeutas ocupacionais brasileiros publicaram, sobretudo, artigos que descrevem: - as modalidades de novos serviços substitutivos (Nicácio, Campos, 2005, 2004; Mângia, Marques, 2004; Vecchi, 2004; Mângia, Rosa, 2002); - projetos e ações interdisciplinares propostos nestes serviços (Fontes, 2008; Lima, Ghirardi, 2008; Mângia, Muramoto, 2006; Nicácio, Mângia, Ghirardi, 2005; Mângia et al., 2002); - discussão dos fundamentos teóricos da utilização da arte como recurso terapêutico para a Terapia Ocupacional em Saúde Mental, mas que não mencionam a inserção do profissional na rede de serviços substitutivos (Castro, Silva, 2002; Lima, Pelbart, 2007; Lima, 2006a, 2006b); - a história da Terapia Ocupacional no campo da Saúde Mental, correlacionada às concepções de saúde vigentes na sociedade e às transformações da assistência (Ribeiro, Machado, 2008; Lima, 2006a; Ribeiro, Oliveira, 2005; Oliver, Barros, Lopes, 2005); - a Terapia Ocupacional Social que não trata especificamente da questão da saúde mental, mas inclui os sujeitos com transtorno mental em ações direcionadas a uma “população heterogênea” e a 300

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“grupos sociais em processos de ruptura das redes sociais de suporte”. Tal inclusão parece evidenciar uma tendência à compreensão de que, independente dos sintomas ou do diagnóstico, existe uma população que está vulnerável ou excluída socialmente; e as ações da Terapia Ocupacional, segundo o paradigma da Reabilitação Psicossocial, devem propor-se a enfrentar essa condição, construindo, assim, uma interlocução entre a saúde mental e os processos sociais (Nicácio, Mângia, Ghirardi, 2005; Lima, 2003; Barros, Ghirardi, Lopes, 2002). Dentre todas as publicações pesquisadas, três atenderam diretamente ao objetivo deste estudo, uma vez que descrevem ações específicas do terapeuta ocupacional (Ribeiro, Oliveira, 2005; Lopes, Leão, 2002) ou discutem pressupostos teóricos para a prática nos serviços substitutivos (Mângia, 2002). No entanto, mais três artigos que abordam pressupostos teóricos de terapia ocupacional relacionados à desinstitucionalização, em especial, contribuíram para ampliar a discussão (Mângia, Muramoto, 2006; Barros, Ghirardi, Lopes, 2002; Castro, Silva, 2002).

Discussão Com base nas publicações analisadas, puderam ser observados alguns aspectos comuns. Primeiramente, a prevalência dos pressupostos da Reabilitação Psicossocial como referencial teórico, o que, de acordo com Mângia e Nicácio (2001), aponta para uma necessidade de se contextualizar a prática num cenário de transformação das instituições e de surgimento de uma nova concepção de assistência em Saúde Mental, reconhecendo as novas questões presentes nos processos de superação do modelo asilar e, ao mesmo tempo, considerando a construção de redes territoriais. Deve-se considerar que a Reforma Psiquiátrica no Brasil ainda não está finalizada e que a Terapia Ocupacional tem contribuído com reflexões e elaboração de projetos acerca de ações e estratégias interdisciplinares para a constituição de instituições e políticas de saúde que estejam de acordo com esses novos pressupostos (Fontes, 2008; Nicácio, Mângia, Ghirardi, 2005; Nicácio, Campos, 2005, 2004; Oliver, Barros, Lopes, 2005; Mângia, Marques, 2004; Mângia, Rosa, 2002; Mângia et al., 2002). A preocupação em criar estratégias para inclusão das diversidades no contexto sociocultural orienta, de forma direta ou indireta, os discursos da assistência social, saúde e educação. Consequentemente, a Terapia Ocupacional, ao contribuir com a construção desse conhecimento, marca sua presença neste cenário de práticas interdisciplinares. Outro aspecto, que pode ser apontado como comum, refere-se à noção de democratização da assistência, assegurando: os direitos dos usuários, a inclusão de novas tecnologias provenientes de disciplinas de outros campos de conhecimento fora da área da saúde, um maior empoderamento dos usuários nas decisões referentes ao seu projeto terapêutico e na relação com a equipe, em busca de parceria e coparticipação. Ocorreu um deslocamento da atenção dada à doença e seus sintomas para a promoção de saúde mental e inclusão social. Referências à reformulação da concepção de saúde que orientam a prática também se mostram presentes nos artigos. Neste novo paradigma, a saúde distancia-se do conceito de ausência de doença ou de estado de completo bem-estar ou equilíbrio para a concepção de projetos de vida (Castro, Silva, 2002) que aumentam as possibilidades de trocas de recursos e afetos em uma rede de relações articuladas e flexíveis, aumentando a participação real dos sujeitos na sociedade (Saraceno, 1989 apud Mângia, Nicácio, 2001). A Saúde Mental passa a ser compreendida como uma questão complexa que envolve fatores psicológicos, culturais, históricos, econômicos e sociais. A nova concepção de saúde que orienta a prática não se restringe à manutenção da vida, mas a viver com qualidade nos diferentes modos de vida, com criatividade (Lima, 2006a, 2006b). A especificidade da ação do terapeuta ocupacional apresentada nos artigos pode ser avaliada a partir de dois pontos de vista: referenciais teóricos e ações. Mângia e Nicácio (2001) sugerem dois referenciais que se tornaram importantes para a Terapia Ocupacional no processo de constituição do campo da saúde mental: a Socioterapia e a Psicodinâmica. Segundo tais autoras, tais referenciais surgiram a partir da intenção de humanizar as instituições psiquiátricas, criticar o Tratamento Moral, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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a Ergoterapia, as práticas de ocupação do tempo ocioso e violações da identidade presentes nos ambientes asilares, sem, no entanto, romper com sua lógica. Observa-se que, nas publicações analisadas neste trabalho, esses referenciais não são citados, com exceção de Ribeiro e Oliveira (2005) que cita a Psicodinâmica a partir de uma perspectiva histórica. Estima-se ainda que a escassez de publicações científicas dos referenciais Psicodinâmico, Chamoniano, Junguiano e Sistêmico, no período referido, dificulta o reconhecimento desses instrumentos como prioridades da profissão. Esta questão mostra-se como um fator limitante desse estudo, uma vez que as publicações encontradas talvez não sejam suficientes para representar a abrangência da prática do terapeuta ocupacional no contexto atual da saúde mental. No entanto, o que se percebe é que as novas práticas destinam-se a promover o desenvolvimento de projetos não mais num setting terapêutico fechado, mas nos espaços de vida da pessoa e em atividades do cotidiano que lhe sejam significativas, garantindo sua participação ativa no processo terapêutico. Por intermédio da Prática Centrada no Cliente - abordagem canadense que privilegia a interação terapeuta e cliente no processo terapêutico -, rompe-se com uma prática diretiva, permitindo que o terapeuta torne-se um facilitador em tal processo. Tal abordagem propõe habilitação nas áreas de desempenho ocupacional referentes ao lazer, produtividade e autocuidado, desde que dotados de sentido para a pessoa e adequados a seu momento e contexto de vida. Verifica-se que este referencial constitui uma ferramenta de trabalho que coincide com os pressupostos da Reabilitação Psicossocial por enfatizar a coparticipação e responsabilização do usuário por seu projeto terapêutico, e por demonstrar flexibilidade quanto à utilização de modelos de intervenção diversos que atendam as demandas de cada caso (Mângia, 2002). A noção de atividade em Terapia Ocupacional, no contexto das novas práticas, também é ressignificada, se inscrevendo nas relações entre as pessoas e os contextos, na produção de possibilidades materiais, subjetivas, sociais e culturais que viabilizem a convivência com as diferenças (Barros, Ghirardi, Lopes, 2002). As diferentes linguagens conferidas pela atividade artística também são apontadas como viabilizadoras do tratamento, ao permitirem a expressão, a comunicação e o desenvolvimento da criatividade, além da inserção sociocultural (Ribeiro, Oliveira, 2005; Castro, Silva, 2002; Lopes, Leão, 2002), assim como o engajamento em atividades produtivas de trabalho cooperado, viabilizando a participação e a contratualidade (Ribeiro, Oliveira, 2005; Lopes, Leão, 2002). Ainda em relação às atividades, Barros, Ghirardi e Lopes (2002) consideram que a maneira como o terapeuta ocupacional as utiliza também é foco de discussão tanto em ambientes institucionais quanto extrainstitucionais. Afirmam que essas devem se constituir num meio de socialização e inter-relação, instrumento de inserção no universo do trabalho/estudo e da emancipação econômica; ser pensadas singularmente para cada pessoa, em cada situação, sempre referidas à história grupal. Abandonase, portanto, a ideia de potencial terapêutico da atividade com possibilidade de prescrição segundo patologia, sintomas ou situações hipotéticas. Do ponto de vista das ações do terapeuta ocupacional, os relatos de experiência são poucos e abordam a questão de forma inespecífica nos textos selecionados. Lopes e Leão (2002) consideram que, no contexto de práticas coletivas que enfocam a atividade humana, o terapeuta ocupacional se diferencia pela capacidade de análise e adaptação das atividades, bem como por avaliar as relações que se estabelecem a partir delas. Outro diferencial que especifica a atuação da Terapia Ocupacional, segundo os mesmos autores, seria a priorização dada à ação, ao processo de ‘fazer’, em detrimento do produto final. As autoras apontam a formação profissional como fator determinante para a valorização deste profissional nos novos equipamentos de saúde mental. Atribuem, como diferencial para a terapia ocupacional, o ‘olhar’, ou seja, como se compreende e intervém em cada situação (Lopes, Leão, 2002). Essas afirmações sugerem, em suma, que o diferencial da Terapia Ocupacional não estaria no objeto de estudo - a atividade humana -, mas no processo e na forma como trabalha. A fim de ampliar a discussão sobre a especificidade da Terapia Ocupacional, pode-se recorrer a Caniglia (2005). Esta autora propõe refletir a profissão com base no processo de trabalho. Ela afirma que, em saúde, o trabalho pressupõe uma ação no sentido de fazer com que os instrumentos atuem sobre o objeto produzindo um efeito útil. Esse efeito útil definiria a especificidade de uma profissão. 302

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Situa o indivíduo enquanto a matéria-prima/objeto, com uma história, uma demanda e um contexto; o profissional de saúde, enquanto um dos sujeitos produtores; os instrumentos de trabalho referem-se à metodologia, às técnicas e aos recursos terapêuticos e, finalmente, o produto seria promover, tratar ou recuperar a saúde humana. Assim, na Terapia Ocupacional, o processo de trabalho, o raciocínio clínico e o ato terapêutico ocupacional se realizam no sentido da produção de seu objeto de trabalho, o que, no âmbito mais geral, corresponde à promoção, tratamento e recuperação da saúde humana e, num âmbito mais específico e disciplinar, do fazer humano relativo ao trabalho, lazer e atividades domésticas. Ao mesmo tempo em que busca reduzir limitações, dificuldades ou barreiras, investiga talentos, habilidades e aptidões, favorecendo o encontro entre essas habilidades e as ocupações oferecidas no mundo contemporâneo. Da mesma forma, o ato terapêutico ocupacional deve convergir ao contexto disciplinar sem limitar-se a ele, uma vez que a disciplina se alimenta da inter e da transdisciplinaridade. Partindo desse raciocínio, o ‘olhar’ (Lopes, Leão, 2002) refere-se à metodologia. Sendo assim, serviria para definir a especificidade? Pode-se recorrer a uma analogia a fim de se visualizarem os termos dessa discussão: um marceneiro não se define pelo conhecimento sobre a madeira ou pela forma como serra ou martela, mas pela capacidade de produzir um objeto útil, por exemplo, uma cadeira. Ora, qualquer um que queira pode produzir uma cadeira, mas somente torna-se marceneiro quando esse ofício passa a defini-lo como pessoa, quando o produto desse trabalho se constitui em possibilidade de estabelecer trocas sociais. Essa analogia não se verifica quando se trazem as reflexões acerca do processo de trabalho do terapeuta ocupacional para o campo da Saúde Mental. Observa-se que o produto do trabalho do terapeuta ocupacional coincide com o produto proposto pela Reabilitação Psicossocial, uma vez que autonomia e participação social se articulam com o engajamento em atividades significativas no contexto de vida (Youngstrom, 2002) e “a terapia ocupacional tem como propósito final a inclusão social” (Benetton, 2001, p.147), dificultando a definição da especificidade a partir do produto. Portanto, com relação à especificidade do trabalho do terapeuta ocupacional no campo de transformações da assistência em Saúde Mental, o terapeuta ocupacional vive algumas contradições num contexto político que está sofrendo profundas modificações. Tal contexto propõe: descentralização, desospitalização, novos equipamentos de assistência ao portador de transtorno mental, ampliação dos recursos humanos, horizontalidade nas relações, presença de profissionais não “psi” e insuficiência da clínica psicoterapêutica. Ao mesmo tempo, a proposta de se trabalhar de forma inter e transdisciplinar coloca em questão a exclusividade das técnicas do conhecimento de cada profissional, uma vez que as intervenções passaram a ser coletivas. A formação do conhecimento e técnicas passou a ser de todos e para todos. Da mesma forma, o setting terapêutico se amplia da instituição fechada para o espaço comunitário. O trabalho aparece revitalizado, não mais como um recurso terapêutico, mas como um direito. Dessa forma, o terapeuta ocupacional pôde verificar a valorização da atividade humana e do trabalho para a saúde mental e inserção social das pessoas e, ao mesmo tempo, se propôs a superar a ideia da atividade como recurso terapêutico ou como ocupação do tempo ocioso, presente nas práticas tradicionais. Trata-se de um momento de revisão de conceitos, o que pode causar uma sensação de estranheza com relação à identidade profissional. No entanto, este momento mostra-se crucial para contribuir com seu conhecimento sobre atividade humana para a construção do modelo teórico-assistencial interdisciplinar pautado na Reabilitação Psicossocial. Para a reabilitação psicossocial e mais especificamente para a terapia ocupacional, o desafio da inserção social de pessoas vulneráveis e o desenvolvimento de formas de convívio com a diferença exigem transformações profundas nos modos de conceber o cuidado e organizar os serviços em confronto com as concepções e estratégias tradicionais o que implica na definição de novos perfis profissionais. (Mângia, Muramoto, 2006, p.116)

Ao analisar as mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho, Schwartz e Durrive (2007) ressaltam que, cada vez que há novos princípios técnicos a serem empregados, criam-se entidades COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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coletivas para operá-los de forma a sempre reconfigurá-los. Dessa forma, quando o trabalho aparecia circunscrito apenas por gestos visíveis e diferenciados por cada membro de uma equipe multidisciplinar, podiam-se definir as qualificações no coletivo de trabalho. Frequentemente, as qualificações eram restritivas tanto em relação às prescrições quanto à realidade do trabalho. A partir do momento em que aparece a necessidade de se gerirem as interfaces técnicas e humanas no trabalho - como é o caso da Reabilitação Psicossocial -, desenvolve-se um deslizamento da qualificação para a competência, que, segundo os mesmos autores, refere-se à capacidade de gestão de todas as interfaces do trabalho, tanto técnicas quanto humanas. Desse modo, a profissão, por apresentar um instrumental condizente com a assistência comunitária (Ribeiro, Oliveira, 2005), mostra-se qualificada. No entanto, o domínio da técnica não garante mais a inserção neste campo. Para tanto, é necessário mostrar competência no confronto cotidiano com as variabilidades e diversidades que esse contexto impõe. Nesse sentido, salienta-se a efetiva participação do terapeuta ocupacional na Reforma Psiquiátrica no Brasil, que vem compondo as novas equipes e as novas modalidades de serviços substitutivos em Saúde Mental, muitas vezes coordenando equipes ou inovando propostas de trabalho. Portanto, talvez o aspecto que aproxime seja exatamente aquele que permite a diferenciação num campo de práticas interdisciplinares. Recorrendo a analogia anterior, pode-se pensar na habilidade de se produzir uma cadeira, mas não qualquer cadeira. Ofertas predefinidas e compartimentarizadas, de acordo com as diversas especialidades profissionais que operam com pouca ou nenhuma interação ou interatividade, resultam na concepção de um projeto terapêutico como somatória de diferentes procedimentos, desprovidos de um sentido claro para o usuário. A fim de criar processos de saber-fazer mais integrados e interativos e que, no limite, sejam capazes de superar as barreiras entre as diferentes disciplinas, Mângia e Muramoto (2006, p.118) ressaltam “a necessidade de reinventar e dotar de sentido as nossas profissionalidades e assim também, nos desinstitucionalizarmos”.

Considerações finais Observa-se que a Terapia Ocupacional, em Saúde Mental, tem se respaldado no discurso da Reabilitação Psicossocial para consolidar sua ação e inserção nos novos equipamentos da rede de serviços substitutivos. Houve uma mudança de paradigma referente aos conceitos de saúde mental no âmbito da Terapia Ocupacional, ressignificação das atividades e a ampliação do setting terapêutico, desenvolvendo ações no próprio espaço de vida dos sujeitos. Nota-se uma tendência em abandonar um modelo de atenção centrado na doença para enfocar promoção de saúde, cidadania e participação social. O foco passa a ser a singularidade de cada indivíduo, sua história, sua cultura, seu cotidiano, em um processo que facilita o exercício da autonomia e funções na comunidade. A Arte vem se consolidando como possibilidade de se alcançarem os objetivos tanto de expressão e comunicação, quanto de inclusão social. Trata-se da possibilidade não só de criar, mas de, a partir da manipulação de uma matéria de expressão, pensar as relações entre a criação e a produção de saúde, de enfrentamento da doença, solidão ou isolamento. Da mesma forma, a Prática Centrada no Cliente constitui um referencial teórico específico do terapeuta ocupacional, que permite desenvolver ações em parceria com os usuários, auxiliando-os no processo de identificação de suas demandas e superação das barreiras que se interpõem à sua participação social e desempenho satisfatório nas atividades cotidianas. Quanto à especificidade do terapeuta ocupacional, pode-se apontar que todas as ações interdisciplinares propostas pelos serviços substitutivos estão de acordo com os pressupostos teóricos que sustentam a profissão; e, ao terapeuta ocupacional, cabe o desafio de demonstrar competência no cotidiano do trabalho em equipe, pontuando o quanto sua formação e seu conhecimento sobre a atividade humana podem contribuir para alcançar os objetivos da Reabilitação Psicossocial.

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Apesar de a escassez de publicações científicas relacionadas à prática de Terapia Ocupacional em Saúde Mental no Brasil dificultar a delimitação do campo, pode sugerir que a questão da especificidade não se constitui mais no foco de estudos da profissão. A Terapia Ocupacional tem contribuído na produção de estudos, reflexões e elaboração de projetos acerca de ações e estratégias para a constituição de instituições e políticas de saúde que estejam de acordo com os pressupostos da Reabilitação Psicossocial, superando a fragmentação disciplinar, as práticas tradicionais e definindo um novo perfil profissional. Nesse sentido, considera-se que, Trabalhar é produzir, mas é também acumular história, constituir um patrimônio. [...] A partir do momento que alguém pode mostrar o que ele transformou em patrimônio, num lugar relativamente estável, sua participação na história toma sentido, torna-se passível de leitura. Desse ponto de vista, a história ganha consistência para ele. (Schwartz, Durrive, 2007, p.101)

Colaboradores Daniela Tonizza de Almeida responsabilizou-se pela coleta de dados e redação; Érika Renata Trevisan pela revisão e edição final do manuscrito. Referências AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. BALLARIN, M.L.G.; CARVALHO, F.B. Considerações acerca da reabilitação psicossocial: aspectos históricos, perspectivas e experiências. In: CAVALCANTE, A.; GALVÃO, C. (Orgs.). Terapia Ocupacional: fundamentação e prática. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007. p.162-70. BARROS, D.D.; GHIRARDI; M.I.; LOPES, R.E. Terapia Ocupacional Social. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.13, n.3, p.95-103, 2002. BENETTON, M.J. Terapia Ocupacional e Reabilitação Psicossocial: uma relação possível? In: PITTA, A. (Org.). Reabilitação psicossocial. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2001. p.143-9. CANIGLIA, M. Terapia Ocupacional: um enfoque disciplinar. Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2005. CASTRO, E.D.; SILVA, D.M. Habitando os campos da arte e da terapia ocupacional: percursos teóricos e reflexões. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.13. n.1, p.1-8, 2002. FONTES, B.A.S.M. Dos pavilhões às ruas: a âncora territorial da reforma psiquiátrica. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.19, n.3, p.183-92, 2008. LIMA, E.M.F.A. A Saúde Mental nos caminhos da Terapia Ocupacional. O Mundo da Saúde, v.30, n.1, p.117-22, 2006a. ______. Por uma arte menor: ressonância entre arte, clínica e loucura na contemporaneidade. Interface- Comun., Saude, Educ., v.10, n.20, p.317-29, 2006b. ______. Desejando a diferença: considerações acerca das relações entre terapeutas ocupacionais e as populações tradicionalmente atendidas por esses profissionais. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.14, n.2, p.64-71, 2003. LIMA, E.M.F.A.; GHIRARDI, M.I.G. Transdisciplinaridade e práticas híbridas em saúde mental. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.19, n.3, p.153-8, 2008.

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Almeida, D.T.; Trevisan, E.R.

espaço aberto

Este estudo investigou como as mudanças que estão ocorrendo na atenção à Saúde Mental no Brasil vêm transformando a prática recente do terapeuta ocupacional, por meio de uma análise de artigos científicos publicados no período de 2002 a 2008. Considera-se que houve mudanças significativas quanto ao conceito de Saúde Mental, abandonando a assistência centrada na doença para enfocar a promoção da saúde, o resgate da cidadania e a participação social. A noção de atividade foi ressignificada e o setting terapêutico ampliou-se para o território, assim como, foram apresentados novos referenciais teóricos condizentes com a proposta de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial. As ações interdisciplinares propostas pelos serviços substitutivos estão de acordo com os pressupostos teóricos que sustentam a profissão. Da mesma forma, o terapeuta ocupacional tem contribuído efetivamente para consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Palavras-chave: Terapia Ocupacional. Saúde Mental. Desinstitucionalização. Interventions strategies within Occupational Therapy consonant with the transformations in mental health care in Brazil This study investigated how the changes that have been taking place within mental health care in Brazil have recently been transforming occupational therapists’ practices, through an analysis on scientific articles published between 2002 and 2008. It was considered that there were significant changes relating to the concept of mental health, in which diseasecentered care was abandoned in order to focus on health promotion, revival of citizenship and social participation. The idea of activity was given new meaning and the therapeutic setting was expanded to the territory. In addition, a new theoretical framework in line with proposals for deinstitutionalization and psychosocial rehabilitation was presented. The interdisciplinary actions proposed by substitutive services were in agreement with the theoretical assumptions that sustain the profession. Likewise, occupational therapists have made effective contributions towards consolidating psychiatric reform in Brazil.

Keywords: Occupational Therapy. Mental Health. Deinstitutionalization. Estrategias de intervención de la Terapia Ocupacional de acuerdo con las transformaciones de la asistencia en Salud Mental en Brasil Este estudio ha investigado el modo en que p los cambios que ocurren en la atención a la Salud Mental en Brasil vienen transformando la práctica reciente del terapeuta ocupacional, por medio de un análisis de artículos científicos publicados durante el periodo de 2002 a 2008. Se considera que han habido cambios significativos en relación al concepto de Salud Mental, abandonado la asistencia centrada en la enfermedad para encarar la promoción de la salud, el rescate de la ciudadanía y la participación social. La noción de actividad ha sido nuevamente significada y el setting terapéutico ampliado para el territorio, así como también se han presentado nuevos referenciales teóricos adecuados a las propuestas de evitar la institucionalización y de la rehabilitación psico-social. Las acciones interdisciplinarias propuestas por los servicios substitutivos están de acuerdo con los presupuestos teóricos que sustentan la profesión. De la misma forma, el terapeuta ocupacional ha contribuido efectivamente para la consolidación de la Reforma Psiquiátrica Brasileña.

Palabras clave: Terapia Ocupacional. Salud Mental. Desinstitucionalización.

Recebido em 03/06/2009. Aprovado em 19/05/2010.

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espaço aberto

Exame Clínico Objetivo Estruturado (ECOE):

uma experiência de ensino por meio de simulação do atendimento farmacêutico

Dayani Galato1 Graziela Modolon Alano2 Tainã Formentin França3 Ana Cristina Vieira4

Introdução A avaliação in loco de práticas clínicas é considerada como a mais fidedigna (Newble, 2000), no entanto, no processo educativo nem sempre é possível e, às vezes, apenas quando o futuro profissional de saúde está diante de um paciente real é que são identificados problemas relacionados às habilidades, atitudes e conhecimentos. Com o objetivo de realizar esta identificação antes da entrada no campo de estágio (Rutter, Hunt, 2003), ou mesmo de avaliar o desempenho de um profissional já formado (Fernandez, Franco, 2005; González et al., 2004; Weiss, 2004) é que foi desenvolvida a avaliação por simulação de atendimento. Esta atividade é conhecida como Exame Clínico Objetivo Estruturado (ECOE), e tem sido aplicado, sobretudo, em escolas médicas (Carraccio, Englander, 2000). Portanto, o ECOE é uma ferramenta de medida de competências clínicas com a adoção de pacientes padronizados (Rushforth, 2007; Newble, 2004; Carraccio, Englander, 2000). Este exame pode ser filmado para facilitar o processo de avaliação (Humphris, Kaney, 2000). Instituir a simulação de atendimento na formação acadêmica significa incluir o enfoque problematizador, que, segundo Batista et al. (2005), auxilia na construção do conhecimento. No Brasil, o ECOE foi utilizado pioneiramente pela faculdade de Medicina de Marília (Mazzoni, Moraes, 2006), e, na de Farmácia, foi inicialmente adotado durante uma gincana acadêmica nos anos 1990, em uma Universidade do Nordeste. No curso de Farmácia da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) começou a ser adotado em 2003, como fruto de um projeto aprovado em 2002 pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Santa Catarina (FAPESC), com o objetivo de construir um Programa de Desenvolvimento de Práticas Farmacêuticas (PDPFar). Em julho desse mesmo ano, os integrantes do grupo de pesquisa foram convidados, pela Agência Nacional de Vigilância de Medicamentos (ANVISA) e pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), a realizarem um curso de capacitação para a prescrição racional. Durante a realização desse curso, os integrantes tiveram a experiência de passar por um ECOE de simulação de prescrição médica, padronizado pela Organização Mundial de Saúde, o que favoreceu o aprimoramento da simulação e o desenvolvimento de um instrumento de avaliação direcionado ao atendimento farmacêutico. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Curso de Farmácia, Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Avenida José Acácio Moreira, 787. Bairro Dehon, Tubarão, SC, Brasil. 88.704-900. dayani.galato@unisul.br 2,4 Curso de Farmácia, Unisul. 3 Acadêmica, curso de Farmácia, Unisul. 1

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Exame clínico objetivo estruturado (ECOE):...

Posteriormente, o ECOE foi vinculado ao Estágio Supervisionado em Farmácia, que acontecia no último período curricular obrigatório. Sendo realizado ao final de um curso preparatório para o estágio. Nesse curso eram abordados conteúdos relativos à busca de informação, comunicação, processo de dispensação com prescrição e de automedicação responsável, além de um tutorial sobre o ECOE, onde era apresentado aos estudantes o instrumento de avaliação. Esta atividade prévia à simulação de atendimento mostrou-se bastante adequada para reduzir a ansiedade dos acadêmicos ao ECOE e, ao mesmo tempo, é considerada pelos alunos como fundamental para a entrada no campo de estágio. Segundo os mesmos, transmite confiança e preenche lacunas advindas de um projeto pedagógico que não estava adequado às necessidades do profissional no mercado de trabalho. Cabe ressaltar que, a partir de 2007, foi implantado o currículo reformulado com base nas novas diretrizes curriculares (Leite et al., 2008), com estágios a partir do segundo ano de curso, no intuito de proporcionar ao acadêmico oportunidades de desenvolvimento de atitudes e habilidades em sua formação desde o início do curso. Neste contexto, este curso introdutório foi transformado em uma disciplina oferecida no segundo semestre do novo currículo. O objetivo deste artigo, portanto, é apresentar a experiência de ensino no curso de Farmácia da Unisul no processo de ensino-aprendizagem por meio da simulação de atendimento farmacêutico (ECOE).

Percurso metodológico Este trabalho refere-se a um relato de experiência com abordagem qualitativa (Minayo, 2004) da experiência educacional de simulação de atendimento farmacêutico vivenciada no curso de Farmácia da Unisul no período de 2005 a 2009. O processo foi desenvolvido por professores tutores da Disciplina de Estágio Supervisionado em Farmácia e aplicado aos acadêmicos do último período do curso. O processo de simulação de atendimento farmacêutico foi construído em três etapas: a primeira relacionada com a preparação dos cenários e dos casos a serem simulados; a segunda, ao processo de filmagem, e, a terceira, ao processo de avaliação da simulação com aplicação do instrumento desenvolvido. Nos resultados deste artigo, essas etapas estão descritas de modo detalhado.

A descrição do processo de simulação de atendimento farmacêutico e seus resultados A primeira etapa: elaboração dos casos a serem simulados, padronização do paciente e preparação do cenário Os casos simulados A definição dos problemas de saúde e dos medicamentos utilizados nas simulações de atendimento farmacêutico é realizada pela equipe de professores tutores do estágio, que selecionam os problemas de saúde mais prevalentes na região, e a lista de medicamentos usados para tratamento desses transtornos, os quais são repassados aos acadêmicos. Os casos são elaborados com base na seleção anterior (problemas de saúde e medicamentos) e dividem-se em duas partes. A primeira é o relato do caso, onde o paciente (padronizado) repassa as informações essenciais, imediatamente ao iniciar sua conversa com o farmacêutico (acadêmico) e, a segunda parte, é composta por informações complementares, as quais o paciente expõe somente se for estimulado pelo farmacêutico por meio de indagações. Desta forma acredita-se que a simulação se aproxime da realidade enfrentada no atendimento farmacêutico, onde, na maioria das vezes, o paciente somente apresenta o motivo da procura ao Serviço solicitando um medicamento e, apenas se incentivado, fornece as informações sobre a situação clínica e as experiências com medicamentos. A seguir, um exemplo de caso utilizado na simulação.

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Galato, D.; ALANO, G.M.; FRANÇA, T.F.; VIEIRA, A.C.

espaço aberto

Descrição do caso Bruna, 35 anos, vai à farmácia, se aproxima do balcão e solicita uma medicação para tosse. Informações complementares • O medicamento não é para Bruna, mas para seu marido; • Bruna é esposa de Jorge que tem 48 anos e está com tosse seca há três meses; • Jorge não apresentou qualquer sintoma de gripe/resfriado recentemente; • A tosse começou na mesma época em que houve alteração de seu tratamento medicamentoso da hipertensão, sendo prescrito, pelo médico, o captopril; • A tosse incomoda muito o marido de Bruna, e, por isso, ela insiste em levar uma medicação para este problema. O paciente padronizado Inicialmente, os pacientes eram simulados por alunos voluntários das primeiras fases do curso de farmácia. No entanto, não foram observados bons resultados, pois, muitas vezes, os acadêmicos em processo de simulação, realizavam indagações referentes ao caso que não estavam contempladas nas informações complementares e, pelo fato de os voluntários não possuírem conhecimento suficiente do medicamento ou da doença em questão, acabavam por não responder aos questionamentos ou, mesmo, criavam respostas que confundiam os acadêmicos. A partir de 2006, a simulação dos pacientes passou a ser realizada por professores-padronizados e, com isso, foram evitados os problemas descritos anteriormente. Outra situação vivenciada pelo grupo foi a caracterização dos pacientes simulados (roupas, maquiagem e outros acessórios), nem sempre fácil. Isto, às vezes, atrapalhava o atendimento feito pelo acadêmico devido à dificuldade do mesmo em reconhecer o paciente simulado como uma pessoa idosa, por exemplo. Uma estratégia criada para esta situação foi substituir o paciente idoso e criança, por um indivíduo adulto que vai à farmácia no lugar do paciente para adquirir o medicamento. Dessa forma, o paciente simulado representa o cuidador ou alguém que está realizando um auxílio. Montagem do cenário Inicialmente, o cenário foi montado em uma sala de aula com disponibilidade de mobília adquirida no projeto PDPFar (um balcão e prateleiras), além de diversas caixas vazias de medicamentos, entre eles, aqueles selecionados anteriormente. A organização dos medicamentos no armário era realizada por sistemas, para facilitar a localização dos mesmos pelo acadêmico. A organização por ordem alfabética de nome comercial ou por princípio ativo também poderiam ser adotadas, mas nunca foram testadas. No cenário, ficavam, à disposição do acadêmico: telefone, calculadora, bloco de anotações, caneta, aparelho para aferição de pressão arterial e cadeira para realizar a aferição, além de bibliografia, como o Dicionário de Especialidades Farmacêuticas e a revista de preços de produtos comerciais. Nesse momento também se posicionava a câmera para a filmagem. Um detalhe a ser observado é que o acadêmico deve ser o principal sujeito da cena a ser filmada, assim, a câmera era posicionada para permitir a observação de detalhes, como a movimentação dos olhos. Posteriormente, utilizou-se o espaço da Farmácia-Escola para a simulação, estando à disposição dos alunos toda a estrutura da mesma, incluindo medicamentos, sistema de gerenciamento informatizado, bibliografias, entre outros recursos.

A segunda etapa: o processo de filmagem Apresentação do cenário e filmagem da simulação A etapa de apresentação do cenário ocorre individualmente, cerca de cinco minutos antes da simulação. O professor tutor apresenta todo o cenário e coloca-se à disposição para o acadêmico esclarecer possíveis dúvidas sobre os medicamentos, a simulação e a utilização das fontes de informações disponíveis no cenário.

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Exame clínico objetivo estruturado (ECOE):...

Na simulação realizada na farmácia-escola, esta etapa de apresentação do cenário foi, na maioria das vezes, suprimida, pois os acadêmicos do estágio conhecem o cenário em questão e sua organização, sendo realizada esta etapa de apresentação apenas em situações pontuais. O tempo de duração da filmagem depende do caso simulado e, também, do estilo de atendimento do acadêmico, levando em torno de três a sete minutos. Uma vez concluída a filmagem, inicia-se a avaliação.

A terceira etapa: O processo de avaliação e a descrição do instrumento desenvolvido O processo de avaliação A sala preparada para essa etapa precisa ter um televisor e um aparelho de vídeo. Além disso, disponibiliza-se o material contendo a descrição completa do caso e o instrumento de avaliação. A avaliação é realizada de modo individual, porém pode ser observada por outros colegas da turma com prévio consentimento do acadêmico. Abaixo são apresentadas as etapas da avaliação: 1 Leitura do caso: faz-se a leitura do caso incluindo as informações complementares; 2 Assiste-se a filmagem; 3 Faz-se uma breve discussão do caso; 4 Realiza-se a avaliação utilizando o instrumento de avaliação; 5 Calcula-se a nota a partir dos pesos estabelecidos para cada critério da ficha de avaliação; 6 É solicitada a assinatura do acadêmico no instrumento, juntamente com as assinaturas dos professores tutores. A nota do atendimento era convertida em uma das notas da Disciplina de Estágio Supervisionado em Farmácia - no entanto, entendendo o processo educativo desta avaliação, por consenso entre os professores tutores, considerou-se que a participação do aluno nesta atividade seja a forma de conversão para a nota de estágio, e não mais o desempenho na simulação. Com esta alteração não se observou modificação no desempenho dos acadêmicos ao simularem, no entanto, percebeu-se mudança na postura dos mesmos frente às colocações dos professores tutores, ou seja, aumentou a receptividade dos acadêmicos às observações e às sugestões de aperfeiçoamento de algumas habilidades e atitudes na simulação de atendimento. A descrição do instrumento de avaliação O instrumento de avaliação está descrito no Quadro 1, sendo dividido em cinco etapas: definição do problema, indicação farmacêutica, informações e orientações ao paciente, estilo de comunicação e resolução do problema. Alguns destes tópicos estão subdivididos em itens que auxiliam o avaliador a ter um olhar sobre todos os aspectos que necessitariam ser observados durante o processo de atendimento farmacêutico. Para o cálculo da nota final, o primeiro critério, identificação do problema, corresponde a 20% da nota e é obtido pelo acadêmico ao receber conceito 4,0. Caso o acadêmico não alcance este conceito, é calculada a nota de acordo com o conceito equivalente. O segundo critério é a indicação farmacêutica, entendida, neste contexto, como automedicação responsável (World Health Organization, 1998) - somente será avaliada quando o caso simulado puder envolver a indicação de um tratamento medicamentoso, correspondendo a 20% da nota; do contrário, o terceiro critério, informações e orientações ao paciente, passará a valer 40% da nota ao invés de 20%. O quarto critério, estilo de comunicação, corresponde a 20% da nota, e o último critério, resolução do problema, vale 20%.

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Galato, D.; ALANO, G.M.; FRANÇA, T.F.; VIEIRA, A.C.

espaço aberto

Quadro 1. Instrumento de avaliação da simulação de atendimento farmacêutico Exame Clínico Objetivo Estruturado (ECOE) - Avaliação do professor tutor Farmacêutico (estagiário): Avalie cada um dos critérios abaixo de acordo com os conceitos: 0 - não realizou; 1 - realizou de forma inadequada; 2 - realizou de forma incompleta; 3 - realizou bem; 4 - realizou muito bem; NA - não se aplica 1. Identificação do problema (20%) O farmacêutico identifica as necessidades do paciente e define claramente o problema que está tentando resolver 0 1 2 3 4 NA 2. Indicação Farmacêutica (20%) O farmacêutico indica corretamente o tratamento ou fármaco (seleção adequada) 0 1 2 3 4 NA Apresentação e posologia (forma farmacêutica, dose e intervalo de doses) 0 1 2 3 4 NA Duração do tratamento 0 1 2 3 4 NA Tratamento não medicamentoso 0 1 2 3 4 NA 3. Informações e orientações ao paciente (20 ou 40%)* Efeitos positivos do medicamento (qual o efeito esperado, início, duração da ação) 0 1 2 3 4 NA Instruções de uso (como tomar/administrar, frequência e intervalos de administração, quanto tempo utilizar, quais os cuidados com armazenamento) 0 1 2 3 4 NA Advertências de uso (interações, contraindicações, dose máxima diária, efeitos adversos, quando e como suspender o tratamento) 0 1 2 3 4 NA Necessidade de seguimento dos resultados (o que fazer na sequência do tratamento) 0 1 2 3 4 NA Orientações não farmacológicas 0 1 2 3 4 NA *O percentual de 40% será utilizado nas situações em que não se aplica o processo de Indicação Farmacêutica no atendimento

4. Estilo de comunicação (20%) Fala de forma clara e compreensível (o tom/volume da voz é adequado, usa uma linguagem adequada ao nível de compreensão do paciente, usa paráfrases) 0 1 2 3 4 NA Fala de forma coerente e sequencial 0 1 2 3 4 NA Dá abertura a perguntas e expressões do paciente 0 1 2 3 4 NA Assegura-se que o paciente compreende as instruções realizadas 0 1 2 3 4 NA Comunicação não verbal 0 1 2 3 4 NA 5. Resolução do problema (20%) O farmacêutico atendeu as necessidades e resolveu ou orientou para a resolução dos problemas do paciente. 0 1 2 3 4 NA Avaliação:__________________ Justificativas e/ou Comentários do avaliador: Assinatura (avaliador ):_________________________________________________­__ Data:____/___/____ Assinatura (aluno):_______________________________________________________ Data:____/___/____

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Exame clínico objetivo estruturado (ECOE):...

Discussão As Diretrizes Curriculares do Curso de Farmácia estabelecidas pelo Ministério da Educação (Brasil, 2002) preconizam uma formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, e que o profissional seja competente para realizar os seus recursos cognitivos, afetivos e psicomotores diante da situação problema. Para tanto é fundamental, a uma Instituição de Ensino, o desenvolvimento do diálogo e da autoestima na relação professor-aluno, buscando o equilíbrio psicoemocional e ambiental do educando (Castro, 2004). Neste sentido, podem ser criados espaços de troca de experiências entre os professores tutores e os acadêmicos, buscando mais adequadamente a expressão da afetividade na relação com os pacientes. Neste contexto, o ECOE auxilia o acadêmico a desenvolver habilidades necessárias ao atendimento clínico realizado na farmácia. Além do que, esta ferramenta auxilia na identificação de lacunas de conhecimento. Portanto, o ECOE constitui tanto uma ferramenta de avaliação quanto uma atividade educativa. Segundo Troncon (2007), para a formação na área da saúde, constituem habilidades clínicas fundamentais: a comunicação, o exame físico, o raciocínio clínico e a proposição de medidas diagnósticas e terapêuticas. Para a realização das atividades clínicas farmacêuticas, como a dispensação e automedicação responsável, muitas destas habilidades também são destacadas (Galato et al., 2009, 2008). Segundo Garcia (2001), o estágio realizado durante a graduação de cursos na área da saúde é fundamental, configurando-se a mais nobre ferramenta de ensino-aprendizagem. No entanto, o ECOE pode constituir uma alternativa complementar que pode ser adotada tanto na capacitação dos acadêmicos para o exercício profissional, quanto na avaliação desta atividade. Portanto, este exercício da prática, seja ele real ou simulado, é fundamental para a aquisição de proficiência nas habilidades clínicas (Troncon, 2007). Na realização da atividade do ECOE, os docentes tutores devem estar envolvidos no Serviço de Saúde de forma que as situações criadas sejam as mais próximas do cotidiano. Pois, a educação do processo de cuidado se realiza cuidando e, segundo Garcia (2001, p.96), “educar é cuidar e para cuidar se educa”. Para Noro e Noro (2002), quando o educador respeita a dignidade do acadêmico e trata-o com compreensão e ajuda construtiva, ele desenvolve a capacidade de procurar em si mesmo as respostas para seus problemas, tornando-o agente de seu próprio processo de aprendizagem. Segundo Mazzoni e Moraes (2006), no ECOE, o acadêmico pode cometer equívocos sem prejudicar o paciente real, e o erro passa a ser visto como virtude, que pode ser modificada, e não penalizada. Uma vez identificado este erro, devem ser definidas estratégias para se evitar a recorrência do mesmo. A identificação destas limitações é fundamental na formação do profissional da saúde. Este benefício também é ressaltado por Troncon (2007), que destaca que o paciente simulado torna o aprendizado mais ativo, possibilitando homogeneidade nas oportunidades de treinamento e repetições, facilitando as correções nas ações realizadas. Segundo Galato et al. (2008), a prática clínica farmacêutica é aperfeiçoada pelo processo de ação-reflexão-ação. Este processo é facilitado no ambiente do ECOE, visto que, segundo Troncon (2007), entre as principais estratégias que envolvem o aprendizado das habilidades clínicas, estão: o desenvolvimento do conhecimento por meio de leituras, aulas e demonstrações; a prática inicial com paciente; os comentários do observador (professor tutor); a reflexão, seguida de novas ações, avaliações e reflexões. Neste contexto, um dos aspectos que pode ser analisado com bastante propriedade no ECOE é a comunicação, em especial a não verbal, por envolver uma etapa de filmagem (Humphris, Kaney, 2000). A comunicação pode ser verbal e não verbal (Silva, 1993). A primeira expressa o ser social e, a segunda, o ser psicológico (Silva et al., 2000; Silva, 1993). O conhecimento da linguagem corporal pode melhorar o cuidado em saúde, uma vez que possibilita a ampliação da percepção profissional (Weil, Tompakow, 2004; Silva et al., 2000). Assim, quando se aborda o tema comunicação, destaca-se que, entre os componentes essenciais para o desenvolvimento da relação terapêutica, está a empatia (Cipolle, Linda, Morley, 2000). Desta forma, é importante que o profissional de 314

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Galato, D.; ALANO, G.M.; FRANÇA, T.F.; VIEIRA, A.C.

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saúde controle seus sentimentos e emoções, mas sem desumanizar o Serviço. A comunicação durante a simulação de atendimento sofre a influência direta do grau de conhecimento do acadêmico. Isto se reflete na forma como é realizada a coleta de dados do paciente (identificação do problema), bem como no repasse de informações. Cabe ressaltar que, segundo Troncon (2007), quando se realiza a simulação de atendimento utilizando-se pacientes padronizados, existe a possibilidade de se terem algumas desvantagens, que, no caso da adoção do professor tutor como paciente padronizado, como realizado nesta experiência, podem ser, em parte, amenizadas. Por outro lado, a adoção de professores pode inibir a atuação do acadêmico no atendimento clínico. Porém, quando o professor envolvido nessa atividade mantém uma relação igualitária, demonstrando habilidades de criticar e elogiar com estímulo, facilita o processo de ensino-aprendizagem (Nuto et al., 2005). No atendimento clínico farmacêutico, é possível que o profissional busque informações, e esta busca pode ocorrer durante o atendimento, em especial em literaturas disponibilizadas no próprio serviço, bem como, em outro momento, na ausência do paciente. As informações disponíveis no ambiente da farmácia, na sua grande maioria, caracterizam-se como sendo comerciais. Franceschet e Farias (2005) demonstraram que o Dicionário de Especialidades Farmacêuticas foi descrito como principal fonte de informação por 95,6% dos farmacêuticos entrevistados. Tentando reproduzir este contexto no cenário do ECOE, são disponibilizadas fontes de informação comercial. Destaca-se que a busca de informação e a atualização profissional é uma atitude requerida pelos pacientes que procuram o estabelecimento farmacêutico com a visão de um estabelecimento de saúde, e não apenas um comércio de medicamentos (Galato, Angeloni, 2009). Um resultado importante deste trabalho foi o instrumento para a avaliação da simulação de atendimento farmacêutico. Destaca-se que o mesmo foi desenvolvido com base no modelo apresentado pela Organização Mundial da Saúde (Organização Mundial da Saúde, 2001). Considerando-se alguns dos fundamentos do atendimento clínico farmacêutico (Galato et al., 2009, 2008), o ECOE foi adaptado pelos professores tutores, estruturando-se de forma a possibilitar a avaliação desse processo de atendimento. Os resultados obtidos com a aplicação do instrumento possibilitam a identificação dos erros, que, muitas vezes, podem refletir lacunas de conhecimento ou falta de habilidades. Estes pontos auxiliaram os professores tutores no processo de ensino-aprendizagem (Garcia, 2001), bem como serviram, no curso de Farmácia/ Unisul, como indicadores para a elaboração do novo currículo pedagógico voltado às novas diretrizes curriculares, inserindo, desta forma, várias atividades simuladas desde o início do curso. Como já mencionado anteriormente, a nota resultante da aplicação desse instrumento (desempenho) deixou de ser convertida para o Estágio Supervisionado em Farmácia, observandose maior receptividade dos acadêmicos às sugestões de aperfeiçoamento de habilidades e atitudes na simulação de atendimento. No estudo de Nuto et al. (2005) com estudantes da área da saúde, ficou evidente que a preocupação maior dos alunos é com algum erro no atendimento ao paciente, e, consequentemente, com a avaliação que o professor fará, ficando o bem-estar do paciente em segundo plano. Dessa forma, o fato de o ECOE não estar centrado na produção de uma nota, além de facilitar as intervenções do professor tutor no sentido de aprimoramento do atendimento, permite ao acadêmico deixar de lado a ansiedade e focar sua atenção na melhoria de suas habilidades. O curso preparatório do estágio feito antes dessa atividade contribui para reduzir a ansiedade dos alunos ao ECOE e trazer autoconfiança. O aumento da autoconfiança melhora seu desempenho técnico e humano, de acordo com Nuto et al. (2005). Os processos emocionais na aprendizagem geram as mudanças cognitivas. Assim, os sentimentos de ansiedade, tensão, curiosidade, entusiasmo, frustração, alegria, impaciência, obstinação, surgidos no processo ensino-aprendizagem, são importantes e acompanham o ato de perceber, analisar, comparar e entender (Bordenave, Pereira, 2002). Os professores tutores do ECOE identificam que, tanto os acertos quanto os erros ou limitações apresentadas pelo acadêmico durante o atendimento costumam ficar na sua memória, pois trata-se de uma experiência bastante intensa e, portanto, o conduz ao aprendizado.

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Considerações finais O processo aqui descrito apresenta a aplicação e adaptação desta ferramenta pedagógica na formação acadêmica, voltada ao desenvolvimento de habilidades clínicas fundamentais aos profissionais da saúde. Desta forma, a simulação de atendimento farmacêutico possibilita ao acadêmico uma oportunidade de melhorar as suas habilidades e atitudes na prestação dos serviços clínicos farmacêuticos e na educação em saúde do paciente, além de aprofundar os conhecimentos a respeito das situações simuladas por meio do processo ação-reflexão-ação. O ECOE contribui para o desenvolvimento do equilíbrio psicoemocional e ambiental do educando, a fim de reduzir suas ansiedades acerca da aplicação, na prática, dos conhecimentos abordados na universidade, levando-o a adquirir autoconfiança e melhorando, em especial, os aspectos relacionados à comunicação com o paciente. Destaca-se que o uso de pacientes padronizados em situações simuladas favorece, em especial, a padronização do processo de ensino-aprendizagem, bem como reduz os possíveis equívocos que possam a vir a causar dano ao paciente real. Os principais desafios para a adoção desta ferramenta de ensino estão relacionados ao perfil adequado do corpo docente e à capacidade de formulação dos problemas clínicos a serem trabalhados. No entanto, uma vez superados estes desafios, esta ferramenta de ensino permite uma formação clínica dos farmacêuticos por intermédio da articulação dos conhecimentos teóricos aplicados à resolução de problemas clínicos reais. Neste contexto, o ECOE é visualizado como uma ferramenta que auxilia na formação dos profissionais da saúde em consonância com as novas Diretrizes Curriculares, e que pode ser facilmente reproduzido em outras instituições de ensino.

Colaboradores As autoras Dayani Galato e Graziela Modolon Alano trabalharam juntas em todas as etapas do manuscrito e do trabalho experimental. Tainã Formentin França atuou na elaboração do manuscrito e Ana Cristina Vieira esteve envolvida no trabalho experimental e revisão do manuscrito. Agradecimentos Agradecemos a todos que contribuíram no aprimoramento desta ferramenta de ensinoaprendizagem, em especial, ao professor Wellington Barros da Silva. Referências BATISTA, N. et al. O enfoque problematizador na formação de profissionais da saúde. Rev. Saude Publica, v.39, n.2, p.231-7, 2005. BORDENAVE, J.E.D.; PEREIRA, A.M. Estratégias de ensino-aprendizagem. 23.ed. Petrópolis: Vozes, 2002. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES 2, de 19 de fevereiro de 2002. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Farmácia. Disponível em: <http://www.portal portal. mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES022002. pdf>. Acesso em: 29 ago. 2009. CARRACCIO, C.; ENGLANDER, R. The objective structured clinical examination: a step in the direction of competency-based evaluation. Arch. Pediatr. Adolesc. Med., v.154, n.7, p.736- 41, 2000. 316

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Galato, D.; ALANO, G.M.; FRANÇA, T.F.; VIEIRA, A.C.

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Galato, D.; ALANO, G.M.; FRANÇA, T.F.; VIEIRA, A.C.

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A simulação de atendimento farmacêutico tem por finalidade avaliar as competências clínicas dos acadêmicos. Constitui uma ferramenta pedagógica que possui três etapas: a) preparação do cenário e dos casos; b) simulação; e c) avaliação. Os casos simulados consistem de informações essenciais que são fornecidas espontaneamente ao acadêmico no início da simulação e outras complementares, que somente tornar-se-ão conhecidas se forem investigadas. Toda a simulação de atendimento é filmada, o que permite a análise da comunicação. O processo de avaliação é iniciado com a leitura do caso, a análise do vídeo e a aplicação do instrumento desenvolvido. O ECOE possibilita ao acadêmico uma oportunidade de melhorar as suas habilidades e atitudes na prestação do atendimento farmacêutico, além de aprofundar os conhecimentos a respeito das situações simuladas.

Palavras-chave: Formação de profissionais da saúde. ECOE. Simulação. Metodologia de ensino. Educação em farmácia. Atendimento farmacêutico. Objective structured clinical examinations (OSCE): a teaching experience using simulation of pharmaceutical care Simulation of pharmaceutical care aims to assess students’ clinical skills. It comprises an educational tool that has three steps: (a) setting the stage and preparing the cases; (b) simulation; and (c) evaluation. The simulated cases consist of information that is provided spontaneously to students at the beginning of the simulation and other, complementary information that only becomes known if it is investigated. All of the simulated attendance is filmed, which enables analysis of the communication. The evaluation process starts with reading the case, analysis of the video and application of the tool that has been developed. This examination provides students with an opportunity to improve their skills and attitudes in relation to provision of pharmaceutical care, in addition to deepening their knowledge about the situations that were simulated.

Keywords: Training for healthcare professionals. OSCE. Simulation. Teaching methodology. Pharmacy education. Pharmaceutical care. Examen clínico, objetivo estructurado (ECOE): una experiencia de enseñanza por medio simulación de la atención del farmacéutica La simulación de atención farmacéutica tiene por finalidad la de evaluar las capacidades clínicas de los académicos. Constituye en una herramienta pedagógica que posee tres etapas: a) preparación del lugar y de los casos, b) simulación; y c) evaluación. Los casos simulados constan de informaciones esenciales proporcionadas espontáneamente al académico en el inicio de la simulación y otras complementarias que sólo se conocerán si son investigadas. Se filma toda la simulación de atención, lo que permite el análisis de la comunicación. El proceso de evaluación se inicia con la lectura del caso, el análisis del vídeo y la aplicación del instrumento desarrollado. El ECOE posibilita al académico una oportunidad de mejorar sus habilidades y actitudes en la prestación de la atención del farmacéutica, además de profundizar los conocimientos respecto a las situaciones simuladas.

Palabras clave: Formación de profesionales de la salud. ECOE. Simulación. Metodología de enseñanza. Educación en farmacia. Atención farmacêutica.

Recebido em 10/05/2009. Aprovado em 19/02/2010.

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livros

Le Breton, D. A sociologia do corpo. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

Ana Maria Canesqui1

A vasta obra de David Le Breton sobre a sociologia e antropologia do corpo, originalmente publicada em língua francesa, está pouco disponível em português e foi parcialmente divulgada em espanhol. O autor tem formação em sociologia, antropologia e psicologia, é professor de sociologia da Universidade Marck Block de Estrasburgo, França, e membro do laboratório Cultures et Sociétés en Europe. Desde a década de 1980, dedica-se à sociologia e antropologia do corpo, passando, também, sua produção científica pela dor; a paixão pelos riscos e aventura; as identidades e as marcas corporais; o silêncio; o uso de remédios e outros temas. O assunto recebeu atenção de um clássico da antropologia no século XX, Marcel Mauss (1950), que deixou seguidores, e, posteriormente, de autores como: Merleau-Ponthy; Norbert Elias; Bernard Michel; Luc Boltanski; Michel Foucault, dentre outros. Feministas, na década de 1970, reclamaram o controle sobre o próprio corpo, concedendo-lhe status político na luta contra sua exploração. A sociologia interessou-se, mais intensamente, pela corporeidade na década de 1980, sendo nítida sua importância para a sociologia da saúde

e doença, à medida que “a enfermidade limita o funcionamento “normal” do corpo, com profundas conseqüências sociais, políticas, econômicas e psicológicas, assim como o corpo é objeto das intervenções médicas” (Nettleton, 2003). Adeus ao corpo: antropologia e sociedade (2003) foi o primeiro livro de Le Breton editado em português e comentado por Gomes (2004), onde o autor reflete sobre o corpo moderno: acessório, modelado, fabricado, parceiro (alter ego); administrado, marcado, rascunho, transexualizado e body art. Chama a atenção para a forte intervenção das tecnociências nos rearranjos corporais, como a interferência do biopoder, que submete e aprisiona os sujeitos às ideologias dominadoras do aprimoramento corporal, que certamente ultrapassa a dimensão física, para inseri-la também em novas representações do corpo na ordem dos valores. Objeto incerto e ambíguo, o fenômeno da corporeidade é complexo, conclama a interdisciplinaridade entre as ciências sociais e humanas (etnologia, psicologia, sociologia, psicanálise) e as ciências biomédicas. Isto porque o “corpo é a interface entre o social e o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo,126. Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil. 13083-887. anacanesqui@uol.com.br

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LIVROS

individual, a natureza e a cultura, o psicológico e o simbólico” (Le Breton, 2003, p.97). Esta ambiguidade complexa requer prudência e precisão do sociólogo ou do antropólogo na delimitação das fronteiras de seu objeto de investigação simultânea à manutenção do diálogo e interlocução interdisciplinar. O pequeno livro comentado nesta resenha, A sociologia do corpo - editado originalmente na França, em 1992, e disponível em português, na sua quarta edição - é leitura obrigatória aos que querem investigar e compreender a corporeidade humana, como fenômeno cultural e social, repleto de simbolismo, representações e imaginários, inscrevendo-se o corpo nas moldagens social e cultural, tanto no plano do sentido e do valor, quanto no âmbito relacional, lugar e tempo do homem, imerso na singularidade de sua história. Le Breton recusa a sociologia do corpo como disciplina autônoma da reflexão sociológica, uma vez tributária de sua epistemologia e metodologia. Antes de apontar uma agenda de investigações sobre o corpo, alguns capítulos reconstroem, detalhadamente, as diferentes epistemologias das reflexões sociológicas e etnológicas do corpo, introduzindo o leitor na síntese do estado da arte deste objeto. O capítulo I dedica-se às etapas históricas da reflexão da corporeidade humana, nos primórdios das ciências sociais no século XIX, destacando três etapas: a primeira é a sociologia implícita ao corpo, ignorando-o e mostrando a miséria física e moral da classe trabalhadora na Revolução Industrial. A segunda etapa concentra-se na supremacia biológica do corpo, à qual se opuseram Hertz e Mauss e outros autores que desenvolveram pesquisas e inventários etnológicos sobre os usos sociais do corpo, enquadrados na terceira etapa, designada, pelo autor, de sociologia detalhista. O capítulo II indaga, pertinentemente, sobre as ambiguidades dos discursos sociológicos sobre o corpo, perguntando-se: de que corpo se está falando? “Corpo não é fetiche, omitindo o homem”, diz o autor (Le Breton, 2010, p.25), sendo imprescindível referir-se ao ator que o porta. Um conjunto de estudos etnográficos demonstra: as representações do corpo e da pessoa, inseridas na visão de mundo; a fisiologia simbólica da mulher e suas relações com o contexto; as concepções modernas do corpo, separadas do cosmos; as concepções anatômicas e 322

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fisiológicas do pensamento ocidental; o corpo enquanto imaginário social; a corporeidade humana e seus elos com a natureza; o corpo nas medicinas chinesa e indígena. O argumento central do capítulo reforça a imersão da corporeidade no imaginário, nas representações e condutas que variam segundo as diferentes sociedades. Para definir o corpo de que se fala, dos pontos de vista sociológico e antropológico (capítulo III), distancia-se da ideia de ser ele atributo da pessoa, um pertencimento da identidade em recusa à ideologia individualista. O autor abraça a ideia da realidade construída do corpo, com múltiplas significações culturalmente operantes e associadas aos atores, vistos como corporeidade. O corpo inexiste em estado natural, insere-se na trama dos sentidos, inclusive naquelas manifestações mais físicas, como na dor e na enfermidade, expressas nas percepções sensoriais e corporais dos atores. A análise sociológica distingue-se das intervenções corporais terapêuticas (médicas, xamânicas, religiosas, outras medicinas) que buscam reinserir o homem em sua comunidade. Nas palavras do autor, “a sociologia aplicada ao corpo distancia-se das asserções médicas que desconhecem as dimensões pessoal, social e cultural de suas percepções sobre o corpo” (Le Breton, 2010, p.36). Ao detalhar as investigações das lógicas sociais e culturais do corpo (capítulo IV), o autor parte de Marcel Mauss (1950), sobre as técnicas corporais e as expressões dos sentimentos, das emoções e da dor. Acrescenta contemporâneos que estudaram assuntos como: os especialistas das técnicas corporais circenses, desportivas, artesanais; de ars amandi; a gestualidade; as etiquetas corporais e infrações às regras; as percepções sensoriais, as inscrições corporais e as traduções físicas da enfermidade (sintomas ou comportamentos). O corpo, como universo das representações, dos valores e do imaginário social, ocupa o capítulo V, distinguindo esta abordagem dos enfoques biológicos e sociobiológicos, percorrendo-se estudos antropológicos clássicos e contemporâneos sobre: sexualidade; o uso do corpo; o corpo como suporte de valores e o corpo incapacitado. O capítulo VI enfoca os estudos sobre o corpo como reflexo do social-coletivo: suporte das relações de poder e do controle social; das apresentações das aparências corporais;

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livros

da modernidade; do estigma; do gosto pelo risco e aventuras; o envelhecimento do corpo e o imaginário do descartável ou das mudanças imprimidas ao corpo pelas tecnologias médicas, que nem sempre suscitam reflexões éticas pertinentes. Ao concluir sobre a situação da sociologia do corpo, no último capítulo, Le Breton reafirma a pertinência da corporeidade, a amplitude das pesquisas sociológicas e antropológicas no assunto, onde o pesquisador, como um verdadeiro artesão prudente e competente, é desafiado a entrecruzar saberes, diante de sua complexidade. Enfim, a sociologia aplicada ao corpo, segundo o autor, deve produzir muitas investigações significativas, cuja agenda inclui, dentre os vários itens: o inventário e a comparação das diferentes modalidades corporais, significações, representações e valores nos distintos grupos sociais; as mudanças das atitudes frente ao corpo em certas enfermidades, assim como as intervenções das novas tecnologias médicas sobre o corpo. A sociologia do corpo refere-se ao “enraizamento físico do ator no universo social e cultural” (Le Breton, 2010, p.99), não naturalizando o corpo. Recomenda-se a leitura deste pequeno e denso livro aos que pretendem iniciar-se nas abordagens sociológicas e etnológicas do assunto.

Referências GOMES, R. Resenha: LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Cienc. Saude Colet., v. 9, n.1, p.247, 2004. LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003. ______. A sociologia do corpo. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010. MAUSS, M. Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF, 1950. NETTLETON, S. The Sociology of health & illness. Cambridge: Polity, 2003.

Recebido em 13/08/10. Aprovado em 05/11/10.

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teses

Pesquisa-ação em Educação para a Saúde, cuidado e humanização no cotidiano profissional de enfermeiros Research-action in Education for Health, care and humanization in the daily professional nursing Pesquisa-acción em Educación para la Salud, atención y la humanización en el diário profesional de enfermería

Este estudo objetiva investigar enfermeiros assistenciais, acerca da concepção deles sobre os temas Educação para a Saúde, cuidado e humanização, procurando instrumentalizar esses enfermeiros sobre como esses eixos temáticos podem estar implicados na postura e na prática profissional em saúde, concernente aos ideais e princípios do SUS. A pesquisa caracterizou-se como de natureza qualitativa, apropriando-se de um estudo descritivo-exploratório, mediatizado pela metodologia da pesquisa-ação. Em relação às técnicas deste estudo, trabalhamos a observação participante, tendo, como instrumento para registro e anotação dos dados, o diário de campo; e utilizamos, ainda, a entrevista individual, para identificação dos participantes e com questões norteadoras sobre as temáticas centrais, sendo disponibilizado o questionário que serviu como instrumento para a coleta das respostas. A análise e interpretação dos dados foi feita por categorização, baseada em fundamentação teórico-metodológica de Paulo Freire e adaptada

por Bueno (2001), buscando-se, após, o desenvolvimento de ação conscientizadora e avaliação do processo educativo. Percebemos que os temas Educação para a Saúde, cuidado e humanização, norteados pelo universo conceitual freireano, não deixam de permear, sobremaneira, o respeito, a solidariedade, a ética e a cidadania, concernentes ao que o SUS pretende operacionalizar. Assim, as temáticas investigadas convergem para a necessidade de se revisar a postura educativa/profissional do enfermeiro e de seus valores para o cuidado e a humanização, visando a melhoria dos serviços, bem como a melhoria da saúde e da qualidade de vida, individual e coletivamente. Gisele Coscrato Dissertação (Mestrado), 2010. Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo gcoscrato@yahoo.com.br

Palavras-chave: Enfermagem. Pesquisa-ação. Humanização. Educação para a saúde. Cuidado. Keywords: Nursing. Research-action. Humanization. Education for heath. Care. Palabras clave: Enfermería. Pesquisa-acción. Humanización. Educación para la salud. Atención.

Texto na íntegra disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22131/ tde-16112010-100520/

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TESES

A abordagem à sexualidade masculina na atenção primária à saúde: possibilidades e limites El abordaje de la sexualidad masculina en la atención primaria de salud: posibilidades y límites The approach to male sexuality in Primary Health Care: possibilities and limitations

A relação masculinidades-saúde tem sido investigada por vários estudos nos últimos anos. A aproximação dos homens às práticas de cuidado e aos serviços de saúde é apontada como um desafio que esbarra na construção social das masculinidades e no direcionamento dos serviços para a atenção a mulheres e crianças. Este trabalho tem o objetivo de compreender como as questões relativas à sexualidade masculina são abordadas na Atenção Primária à Saúde. Para tanto, investiga: como homens, situados no contexto de pobreza urbana, percebem e lidam com a sexualidade e com necessidades em saúde sexual; como a sexualidade masculina se configura como tema e demanda nos serviços de saúde, e como interagem profissionais e usuários frente a ela. Trata-se de um recorte de pesquisa multicêntrica, voltada para a investigação da relação dos homens com os serviços de Atenção Primária à Saúde. Este recorte se detém na análise da observação etnográfica da estrutura e do funcionamento de duas Unidades Básicas de Saúde da cidade de Natal/RN, Brasil, e de entrevistas semiestruturadas com 57 homens, usuários desses serviços. O trajeto analítico-interpretativo foi orientado, no campo teórico, pela perspectiva de gênero e, no campo metodológico, pela hermenêutica filosófica. Os resultados permitem vislumbrar a relação entre diferentes construções do ser homem e o exercício da sexualidade. Nos serviços pesquisados, além de uma desigualdade na atenção dada a homens e mulheres, nota-se que a abordagem à sexualidade de ambos é feita de forma diferente. Está presente a imagem de uma sexualidade masculina ativa, impulsiva e exacerbada, em oposição à de uma sexualidade feminina passiva e atrelada à reprodução. Isso pode ser visto na distribuição de camisinhas, feita, para os homens, com sentido prioritário de prevenção de DST/AIDS e, para as mulheres, como método contraceptivo. Destacam-se ainda, 326

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como assuntos dessa abordagem: as DST/AIDS, problemas relativos à ereção e a prevenção do câncer de próstata. De forma geral, a abordagem à sexualidade masculina é reduzida aos termos da medicalização e cerceada por valores morais. Não são considerados os sentidos e significados que os assuntos apresentados podem assumir para os homens. Além disso, as demandas em saúde sexual, apresentadas pelos usuários, recebem pouca atenção e são, com frequência, consideradas objeto de serviços especializados. Configura-se, assim, um quadro em que a vulnerabilidade dos homens ao adoecimento sexual parece estar atrelada - para além dos aspectos individuais e sociais da construção das masculinidades - à elaboração das políticas públicas de saúde e à estrutura organizacional dos serviços. O trabalho aponta para a possibilidade de articulação do polo homem-sexualidade, pouco presente nos serviços, ao polo mulher-reprodução. Defende a adoção de uma noção de saúde sexual e uma abordagem da sexualidade masculina (e feminina) mais contextualizadas com a perspectiva de gênero, dos direitos sexuais, da promoção e proteção da saúde. Thiago Félix Pinheiro Dissertação (Mestrado), 2010. Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. thiagopinheiro@hotmail.com Palavras-chave: Sexualidade, Gênero e Saúde, Masculinidade, Saúde do Homem, Atenção Primária à Saúde. Keywords: Sexuality, Gender and Health, Masculinity, Men‘s Health, Primary Health Care. Palabras clave: Sexualidad, Género y Salud, Masculinidad, Salud del Hombre, Atención Primaria de Salud. Texto na íntegra disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/ tde-04112010-154702/pt-br.php

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notas breves

Compromisso social da escola médica* Medical School social responsability Compromiso social de la facultad de Medicina

1962

Introdução Afirmar que a Escola Médica teve, tem e terá compromissos sociais é dizer o óbvio. Nossa intenção é propor a discussão de alguns aspectos pouco explorados, a partir de dois marcos conceituais que o termo “compromisso” encerra. Quando se considera a natureza e os objetivos formais da Escola Médica, o compromisso social assume o caráter de obrigação, mais ou menos solene, aceita universalmente, de formar médicos (e outros profissionais de saúde), e de recuperar e preservar a saúde de contingentes da população, por meio de seus serviços. O desempenho da Escola Médica, quanto às duas vertentes desta obrigação, tem sido objeto de avaliações dentro de critérios tradicionais, mais quantitativos que qualitativos. Mas compromisso significa, também, acordo político, pacto. Dada a inserção da Escola Médica (como instituição) na estrutura social, as considerações sobre o compromisso social, como pacto, devem passar pela análise, ainda que sucinta, das articulações da Escola Médica (e educação médica) nessa estrutura. No dizer de Garcia (1978), a estrutura econômica determina o lugar e a forma da articulação da Medicina e da Educação na estrutura social, as alternativas educacionais não surgem de forma abstrata, mas se originam do

conjunto de relações objetivas dos homens entre si, na sociedade. Estas relações estão marcadas pelo desenvolvimento das forças produtivas e pelas contradições existentes nas relações de produção, numa sociedade de classes. Aceita esta premissa, antes de delinear quaisquer propostas alternativas de compromisso social e para suscitar discussões, cumpre tentar um diagnóstico, pelo menos sindrômico, das articulações atuais da Escola Médica, na estrutura social.

A realidade do compromisso, entendido como pacto Uma primeira constatação é a de que a Escola Médica conserva e transmite, em seu discurso e sua prática, quase sempre, uma ideologia que tenta colocar a Medicina como ciência neutra, visando exclusivamente à saúde, à vida e ao bem, impossibilitando criticá-la como ciência e como prática. Evitando relacionar a Medicina com a estrutura social, tal concepção idealista procura desvincular a Escola Médica das práticas políticas, econômicas e ideológicas (Binder, Magaldi, Lopes, 1981). Esse discurso e essa prática (de influência flexneriana) podem permear o processo formativo do médico e impedir ou refrear o desenvolvimento de seu senso crítico global e tentar reduzir questões sociais

*

Documento apresentado ao painel “A Escola Médica”, durante o XX Congresso Brasileiro de Educação Médica (ABEM), realizado de 13 a 16 de dezembro de 1982, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP, São Paulo. Publicado in memoriam.

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- de solução política - a problemas puramente técnicos - de solução científica e imediata (Rocha, 1980). Um exemplo desta postura é a limitação da Escola Médica, no dia-a-dia, à tarefa de recuperação da saúde da força do trabalho, mantendo-se à distância de suas condições de vida e de trabalho. Outro exemplo é a mística da modernização, na busca exclusiva da eficiência do serviço hospitalar, sem que se atente para as condições de trabalho de seus próprios funcionários, seu salário, seu grau de adaptação, de satisfação, etc. Na discussão de aspectos da desnutrição nem sempre se aprofunda a análise de sua gênese político-social: o tema é tratado como problema exclusivamente médico. Quando as ambulâncias do “governo itinerante” despejam doentes nos pátios de nossos hospitais de clínicas, trata-se de equacionar internamente o problema assistencial, abstendo-se a Escola Médica de intervir no planejamento de saúde, em seu âmbito de influência, pelo menos. E há inúmeros outros exemplos. Interessa indagar o porque e o como algumas Escolas Médicas transmitem mais eficazmente a ideologia da Medicina como neutra e continuam com uma visão parcial da realidade social em que estão implantadas, tornando-se mesmo verdadeiras “torres de marfim”, na expressão de Mahler, diretor da OMS (1977, p.10). Talvez seja porque a Escola Médica, como qualquer outra instituição educacional, acabe atuando, informalmente, como núcleo perpetuador do estatuto social vigente, na medida em que continua formando profissionais que defendam a estrutura social que a criou e mantém (Amâncio, Quadra, 1977). O poder dentro da Universidade (e da Escola Médica), com a acentuada centralização das decisões e de mando, onde a participação do corpo docente, discente e de funcionários é nula, reproduz a estrutura ou os interesses de classe. Tal estrutura de poder, em diversas universidades, refletem bastante a tecnoburocracia que vem vigorando em vários setores do governo, principalmente desde 1974, acrescentando-se, em anos recentes, da parte de alguns reitores, recomendações para seu aprimoramento “gerencial”, como solução para melhoria da qualidade do ensino superior. Os alunos saem e, para quem fica na torre de marfim, sem qualquer referencial externo, há o risco da auto-reprodução, ou seja, da manutenção 328

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de grupos cada vez mais elitistas (Salgado, 1979). Uma segunda constatação, a respeito do compromisso social como pacto, consiste em que o mercado de trabalho, no setor saúde, é que vem condicionando os objetivos da educação médica, o que à primeira vista, parece ser paradoxal, frente à ideologia da “neutralidade”. É que, na defesa e perpetuação da estrutura social, caberia à Escola Médica formar o profissional que o mercado necessita, para realizar os objetivos do capital. Mas a velha contradição, implicando em opções político-ideológicas diferentes de: “formar o médico de que o país necessita” versus “formar o médico de que o mercado necessita”, consegue ser dissimulada, porque a prática médica no Hospital Universitário, considerada “livre de tais injunções”, faz com que o corpo docente não se defina por uma dessas opções (Rocha, 1980). Aliás, prevalece quase sempre uma indefinição, ainda que, no discurso, a maioria das faculdades se proponha a formar o “médico geral”. Essas dificuldades também se refletem nas polêmicas sobre a caracterização do hospital-escola que, para muitos professores, não deve ser considerado “hospital assistencial que também ensina”, mas tão somente hospital para ensino e pesquisa. Neste segundo caso, os quadros nosológicos prevalentes e a prática ambulatorial intensiva pouco contam para a aprendizagem e o treinamento do aluno. A respeito dos objetivos da educação médica e do perfil do médico, Salgado (1979) observa que a definição do profissional que a Escola Médica deve formar tem que ser procurada fora dela, isto é, nas “necessidades sociais identificadas objetivamente dentro da realidade circundante”. Quem vem identificando cada vez mais, de forma objetiva, suas necessidades sociais é a própria população. Faltam-lhe, porém, o canal permeável e a ponte de ligação para comunicá-las e receber respostas adequadas. Em se tratando de realizar os objetivos do capital, a Escola Médica prepara médicos “equipamento-dependentes”, na expressão de Salgado (1979). Estes, se desprovidos de senso crítico, poderão mais assegurar o consumo de bens e serviços, condicionados por interesses econômicos, do que atender às necessidades de saúde identificadas. Este último ponto conduz à terceira constatação de que a educação médica, nas articulações com o nível econômico, tem

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Compromisso social inovado e qualidade do ensino médico Para atender adequadamente seus compromissos sociais formais: 1) graduar médicos competentes como técnicos e cientistas e conscientes, como cidadãos e 2) prestar assistência à saúde de bom nível às comunidades relacionadas, a Escola Médica deverá ter suas necessidades básicas atendidas e assumir a realização de alguns pressupostos. Basta aqui mencionar os principais itens como: dotação orçamentária governamental suficiente, destinada sem o caráter de favor concedido; corpo docente e pessoal administrativo de elevado

padrão, criteriosamente recrutados; participação ou mesmo coordenação de um sistema regionalizado e hierarquizado de saúde, de modo a se situar como centro de referência; utilização, além do hospital universitário, dos diversos serviços da rede assistencial, para treinamento de alunos e residentes e para reciclagem de professores; superação do enfoque organicista tradicional na formação médica. Convém assinalar algumas particularidades: a) quando se fala em recursos humanos, pressupõese uma política salarial condigna, para docentes e funcionários, como estímulo para sua fixação, ampliação do regime de trabalho e sua participação no desenvolvimento da instituição; b) em se tratando de recursos materiais, é indispensável que a Escola Médica e seu hospitalescoIa sejam dotados de equipamentos atualizados, mas cuja utilização, na assistência, mereça uma especial atenção pedagógica e crítica, por parte de professores e alunos; c) no tocante ao preparo científico e pedagógico dos docentes, devem ser facilitadas e estimuladas, ao máximo, pela instituição, as condições para seu aperfeiçoamento e progresso. Não será pela via da redução de vagas de todas as faculdades de medicina, de forma indistinta, que a qualidade do ensino médico, no país, irá melhorar. Tem sobeja razão Gentile de Mello (1982), em seu derradeiro artigo para a Folha de São Paulo, quando disse que “diminuir igualmente 50% das vagas na Faculdade de Medicina da USP como na Faculdade de Medicina de Valença, além de representar uma efetiva contribuição para a implantação do ensino pago, constitui, no mínimo, insensatez”. Que opinem os professores da Comissão de Ensino Médico, que a partir de 1972, visitaram e estudaram amplamente as condições de todas as escolas de medicina brasileiras. Que opinem, também, as populações servidas pelas Escolas Médicas e atendidas pelos médicos que as formam. Reprovar profissionais, depois de diplomados, mediante exame de suficiência, é apenas medir as conseqüências de falhas, cuja etiologia ainda está por ser resolvida. No que se refere ao compromisso social como pacto, se há intenção de mudar, em profundidade, as metas institucionais ou corrigir falhas, tudo deveria começar pela compreensão das articulações já citadas, por parte da Escola Médica como um todo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.36, p.327-31, jan./mar. 2011

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privilegiado a iniciativa privada (das 39 faculdades criadas de 1965 a 1976, 80% são particulares). Paralelamente, as políticas de saúde do Estado vem favorecendo, claramente, a prática médica curativa, especializada e privatizada. Esta situação, muito bem diagnosticada como “indústria da doença”, e a lógica interna do sistema que a preside foram denunciadas por Macedo, na VII Conferência Nacional de Saúde (1980). E é em serviço de hospitais contratados pela Previdência Social, cujo lucro tem representado a meta principal, que boa parte de alunos e residentes realizam seu treinamento. Por fim, constata-se que a educação médica ainda não transpôs, de todo, os muros dos hospitais-escola, para estender-se ao nível dos serviços oficiais de saúde, em suas respectivas regiões. Há experiências incipientes, outras mais antigas nem sempre, porém, assumidas pela Escola Médica como um todo. Em sua posição de “torre de marfim”, esta fica pairando acima do sistema de saúde, pouco ou nada colaborando no planejamento de saúde regionalizado, ou mesmo na correção de suas distorções. Esse encastelamento, por outro lado, não seria uma forma de evitar que alunos e professores percebam, com mais realismo, as contradições sociais? A qualidade do ensino médico tem muito a ver com os compromissos sociais da Escola Médica. A elevação de seu nível e a sua adequação social, inseparáveis, dependerão também do rumo que tomarão, no futuro, as articulações dessa escola na estrutura de nossa sociedade.

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Compreensão pressupõe consciência e esta vai se dar pela descoberta e discussão democrática dos problemas, quer da instituição, quer da realidade em que a Escola Médica se insere. Tratase de pré-requisito indispensável. Virchow, Guerin e Neumann, no século passado, sustentavam que quem era capaz de diagnosticar e remediar a dor individual, também o era para resolver os problemas políticos da sociedade a que pertencia. Isto significa que não é suficiente ficar no terreno da discussão pela discussão, mas sair, de fato, da torre de marfim, passar a ver o que está diante de nossos olhos, influenciar e atuar nos diversos setores, a começar pelo da saúde, participar mais efetivamente em entidades de classe, organizações sociais, políticas, etc. A discussão democrática, por sua vez, guarda estreita relação com a estrutura de poder, que necessita ser democratizada, em quase todas as Escolas Médicas, de resto, na universidade brasileira. A reformulação de estruturas burocráticas e autoritárias, no bojo da reforma universitária que se deseja,tem que se dar pela vontade e pelo envolvimento da comunidade universitária. Assim, deve-se ganhar antes e logo todo o espaço possível para o debate amplo. Democratização da universidade significa participação da comunidade universitária nas decisões da instituição. A primeira implicação deste processo é educacional, pois a educação plena, a formação do senso crítico, a criatividade dificilmente poderão nascer e frutificar em estruturas autoritárias. A segunda repercussão é social, na medida em que a estrutura aberta facilitará o intercâmbio e o trato da Escola Médica com as necessidades e os recursos regionais, criando-se ciência, tecnologia e assistência mais adequadas a essas necessidades. Os canais de comunicação com a realidade circundante tornarse-ão permeáveis e bilaterais, ao contrário do que temos agora: diretrizes e comandos, impostos, via de regra, de cima para baixo, encontrando-nos ainda, com viseiras e amarras. Na estrutura aberta, sob o ponto de vista de sua gestão, a prática que se faz fora da faculdade de medicina pode se dar também dentro e a partir dela, segundo Oliveira e Borges (1980). Esses autores observam, por exemplo, que a prática de uma medicina comunitária que alguns professores e alunos fazem “em suas horas vagas” deveria ser feita “nas suas horas cheias”; que a assessoria e orientação que estudantes e docentes dão às 330

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associações de bairro e outras organizações deveriam ser feitas como prática universitária e não como trabalho extra, facultativo, sem reconhecimento e apoio da instituição. Recentemente, a imprensa veiculou uma interessante e oportuna polêmica sobre democracia na universidade e qualidade. Para Leite (1982), algumas reivindicações que se fazem muito frequentemente em nome da democracia colidem com a busca da qualidade [...] para a sociedade é secundária a organização interna da Universidade [...] o que interessa é, portanto, que a Universidade sirva adequadamente à sociedade e apenas secundariamente aos seus professores e funcionários. Na visão de Pimentel (1982), no entanto, o dilema entre democracia e qualidade é falso, não havendo oposição entre as duas, exatamente por considerar a democracia uma das características fundamentais da vida universitária, tendo em vista, inclusive, que democracia é uma forma de existência social, de cidadania plena, com tudo o que ela envolve, não apenas o direito à representação, como também o direito de participação na gestão das instituições. E quanto à sociedade, nessa relação, Pimentel considera que a organização democrática não é uma questão supérflua para setores da sociedade, tendo em vista a função e os compromissos sociais da universidade e o destino do conhecimento que ela produz. O autoritarismo impede o equacionamento crítico dessas funções, por parte da escola. Por sua vez, Maar (1982), reafirmando que “o processo de democratização em curso real na prática universitária não procura jamais colidir com a busca da qualidade”, salienta que a universidade precisa conviver com a representatividade intelectual e a representatividade social; em outros termos, “o professor ou aluno é um cidadão, mas também um universitário”. Quanto à qualidade da produção, o autor preconiza que a universidade se liberte de “critérios que avaliam a qualidade de sua produção, apenas em termos da produtividade de acordo com o modelo econômico do País”. A Escola Médica, dentro do ensino superior, talvez seja a que melhor reúne as condições para essa revisão de critérios de qualidade de sua produção (e não só de seu produto). Isto porque, dadas a sua natureza e a especificidade de seus

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notas breves

compromissos formais e informais, poderá aumentar o seu potencial de inconformismo em relação ao modelo social vigente. Seria o caminho em direção a Escola Médica que precisamos reinventar.

1968

Cecilia Magaldi Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp.

s/d

1990

1986 s/d

2002 2010

fotos: arquivo pessoal

2003

1997

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