v.20 n.58, jul./set. 2016

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Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa. EDITOR-CHEFE/CHIEF EDITOR/EDITOR JEFE Antonio Pithon Cyrino, Unesp EDITORES/EDITORS/EDITORES Denise Martin Covielo, Unifesp Lilia Blima Schraiber, USP EDITORA JÚNIOR/JUNIOR EDITOR/EDITORA JUNIOR Francini Lube Guizardi, Fiocruz EDITORES ASSISTENTES/ASSISTANT EDITORS/EDITORES ASISTENTES Claudio Bertolli Filho, Unesp Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORA SENIOR/SENIOR EDITOR/EDITORA SENIOR Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORES ASSOCIADOS/ASSOCIATE EDITORS/EDITORES ASOCIADOS Alejandro Goldberg, UBA, Argentina Ana Domínguez Mon, UBA, Argentina Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP Angelica Maria Bicudo, Unicamp Charles Dalcanale Tesser, UFSC Cássio Silveira, FCM, Santa Casa Chiara Pussetti, Universidade de Lisboa, Portugal Dagmar Elisabeth Estermann Meyer, UFRGS Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elisabeth Lima, USP Elisabeth Meloni Vieira, USP Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Janine Miranda Cardoso, FioCruz Joana Raquel Santos de Almeida, Universidade de Londres, Inglaterra Lígia Amparo da Silva Santos, UFBa Maria Antônia Ramos Azevedo, Unesp Maria Dionísia do Amaral Dias, Unesp Mónica Petracci, UBA, Argentina Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Rosamaria Giatti Carneiro , UnB Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Silvio Yasui, Unesp Simone Mainieri Paulon, UFRGS Soraya Fleischer, UnB Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ

EDITORA DE RESENHAS/ REVIEWS EDITOR /EDITORA DE RESEÑAS Francini Lube Guizardi, Fiocruz EDITOR DE ENTREVISTAS/INTERVIEWS EDITOR/EDITOR DE ENTREVISTAS Pedro Paulo Gomes Pereira, Unifesp EDITORA DE CRIAÇÃO/CREATION EDITOR/EDITORA DE CREACIÓN Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias de Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Paula Carpinetti Aversa, USP Renata Monteiro Buelau, USP EDITORA EXECUTIVA/EXECUTIVE EDITOR/EDITORA EJECUTIVA Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface - Comunicação, Saúde, Educação PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Identidade visual/Visual identity/Identidad visual Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Assistente administrativo/Administrative assistent/Asistente administrativo Juliana Freitas Oliveira Normalização/Normalization/Normalización Enilze de Souza Nogueira Volpato Luciene Pizzani Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) Félix Héctor Rígoli (Inglês/English/Inglés) Ana Gretel (Espanhol/Spanish/Español) Web design IDETEC Manutenção do website/Website support/Manutención del sitio Nieli de Lima

Capa/Cover/Portada: Projeto My body is my history: Cristina Santinho. Desenhos de Sara Serrão, 2012


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Projeto Ghetto Six: Lorenzo Bordonaro; Fotografias: Vitor Barros, 2012

ISSN 1807-5762

GRAF

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

IA

2016; 20(58)


Interface - comunicação, saúde, educação/ UNESP, 2016; 20(58) Botucatu, SP: UNESP Trimestral ISSN 1807-5762 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I UNESP Filiada à A

B

E

C

Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

2016; 20(58)

editorial

artigos 537 Metodologias participativas de pesquisa e educação popular: reflexões sobre critérios de qualidade Danilo Romeu Streck

549 Uma política da narratividade: experimentação e cuidado nos relatos dos redutores de danos de Salvador, Brasil

Rafael Mendonça Dias; Eduardo Passos; Marco Manso Cerqueira Silva

Magda Duarte dos Anjos Scherer; Camila Izabela de Oliveira; Wania Maria do Espírito Santo Carvalho; Marisa Pacini Costa

703 O caso Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e a medicalização da educação: uma análise a partir do relato de pais e professores Murilo Galvão Amancio Cruz; Mary Yoko Okamoto; Daniele de Andrade Ferrazza

715 Mentoring: uma vivência de humanização e desenvolvimento no curso médico

Ana da Fonseca Martins; Patrícia Lacerda Bellodi

727 Ensino da segurança do paciente na graduação em saúde: reflexões sobre saberes e fazeres

Elena Bohomol; Maria Aparecida de Oliveira Freitas; Isabel Cristina Kowal Olm Cunha

559 Discursos práticos sobre ocorrências, processos decisórios e decorrências de Conferências Municipais de Saúde Alcides Silva de Miranda; Ana Ester Maria Melo Moreira; Caio Garcia Correia Sá Cavalcanti; Fernanda Machado Bezerra; Jéssica da Costa de Oliveira; Regiane Rezende

debates 743 A justa dose da medida: o tratamento compulsório da tuberculose em questão Pablo Dias Fortes

573 Trabalho gerencial em Unidades Básicas de Saúde de municípios de pequeno porte no Paraná, Brasil

752 755 757 760 763

Elisabete de Fátima Polo de Almeida Nunes; Brigida Gimenez Carvalho; Sônia Cristina Stefano Nicoletto; Luiz Cordoni Junior

585 Organizações sociais como modelo de gestão da assistência à saúde em Pernambuco, Brasil: percepção de gestores

Hélder Freire Pacheco; Garibaldi Dantas Gurgel Júnior; Francisco de Assis da Silva Santos; Simone Cristina da Costa Ferreira; Eliane Maria Medeiros Leal

597 O cuidado à saúde na perspectiva de trabalhadores homens portadores de doenças crônicas

Valéria Cristina Yoshida; Maria da Graça Garcia Andrade

611 Enfrentamento ao tráfico sexual de mulheres na ótica dos agentes institucionais de Brasil e Portugal José Gonçalo Zúquete; Edinilsa Ramos de Souza; Suely Ferreira Deslandes

625 O apoio matricial em saúde mental: uma ferramenta apoiadora da atenção à crise Maura Lima; Magda Dimenstein

767 Medida educativa estabelecida em razão do porte ilegal de drogas: relato de experiência André Bomfim Dias; Eliseu de Oliveira Cunha; Vania Nora Bustamante Dejo

777 Trabalho de Campo Supervisionado II: uma experiência curricular de inserção na Atenção Primária à Saúde

Patty Fidelis de Almeida; Matheus Oliveira Bastos; Michele Agostinho Condé; Natália Janoni Macedo; Julia de Mattos Feteira; Felipe Pacelli Botelho; Rodolpho Luiz da Silva

787 Educação interprofissional e o programa de educação pelo trabalho para a saúde/Rede Cegonha: potencializando mudanças na formação acadêmica

Franklin Delano Soares Forte; Hannah Gil de Farias Morais; Shirley Arruda Guimarães Rodrigues; Joyce da Silva Santos; Priscila Farias de Albuquerque Oliveira; Maria do Socorro Trindade Morais; Talitha Emanuelle Barbosa Galdino de Lira; Maria de Fátima Moraes Carvalho

Érika Sales dos Santos; Emanuella Cajado Joca; Ângela Maria Alves e Souza

Marcelo José Monteiro Ferreira; Mário Martins Viana Júnior

661 Representações dos participantes de uma intervenção psicossocial para melhoria da adesão ao tratamento da aids

entrevistas 797 Poderes da liberdade, governamentalidade e saberes psi: diálogos com Nikolas Rose (Parte 2) Sergio Resende Carvalho; Elizabeth Maria Freire Araújo Lima

Ana Cristina Arantes Nasser; Maria Ines Battistella Nemes

679 Avaliação do profissionalismo em estudantes da área da saúde: uma revisão sistemática

Erica Toledo de Mendonça; Rosângela Minardi Mitre Cotta; Vicente de Paula Lelis; Paulo Marcondes Carvalho Junior

Jacqueline de Souza Gomes Diego Gracia Ricardo Rodrigues Teixeira Elma Zoboli Réplica

espaço aberto

637 Teatro do oprimido em saúde mental: participação social com arte

649 A expansão do agronegócio no semiárido cearense e suas implicações para a saúde, o trabalho e o ambiente

ISSN 1807-5762

691 Cursos de especialização em Saúde da Família: o que muda no trabalho com a formação?

531 Paradigmas médicos e Atenção Primária à Saúde: vigilância da população e/ou produção de vida?

Sérgio Resende Carvalho; Henrique Sater de Andrade; Gustavo Tenório Cunha; David Armstrong

educação

809

resenhas

811

criação Nenhuma ferida fala por si mesma. Sofrimento e estratégias de cura dos imigrantes por meio de práticas de ethnography-based art Chiara Pussetti


comunicação

saúde

2016; 20(58)

editorial 531

Medical paradigms and Primary Health Care: surveillance of the population and/or production of life? Sérgio Resende Carvalho; Henrique Sater de Andrade; Gustavo Tenório Cunha; David Armstrong

articles 537

Participatory research methodologies and popular education: reflections on quality criteria Danilo Romeu Streck

549

A politic of narratives: experimentation and care in the reports by agents of harm reduction in Salvador, Brazil

Rafael Mendonça Dias; Eduardo Passos; Marco Manso Cerqueira Silva

559

Managerial work in Basic Health Units of small municipalities in Parana, Brazil

703

715

727

625

743

752 755 757 760 763

637

Combat sexual trafficking in women from the viewpoint of institutional agents of Brazil and Portugal

777

787

Theater of the oppressed in mental health: social participation with art

Ana Cristina Arantes Nasser; Maria Ines Battistella Nemes

679

Assessment of professionalism in students of healthrelated courses: a systematic review

Erica Toledo de Mendonça; Rosângela Minardi Mitre Cotta; Vicente de Paula Lelis; Paulo Marcondes Carvalho Junior

Interprofessional education and the Education through Work for Health Program “Stork Network”: leveraging changes in education

Franklin Delano Soares Forte; Hannah Gil de Farias Morais; Shirley Arruda Guimarães Rodrigues; Joyce da Silva Santos; Priscila Farias de Albuquerque Oliveira; Maria do Socorro Trindade Morais; Talitha Emanuelle Barbosa Galdino de Lira; Maria de Fátima Moraes Carvalho

The expansion of agribusiness in Ceará semiarid region and their implications for health, work and environment Participants’ representations of a psychosocial intervention to improve adherence to AIDS treatment

Supervised Field Work II: a curricular experience of insertion in Primary Health Care

Patty Fidelis de Almeida; Matheus Oliveira Bastos; Michele Agostinho Condé; Natália Janoni Macedo; Julia de Mattos Feteira; Felipe Pacelli Botelho; Rodolpho Luiz da Silva

interviews

Marcelo José Monteiro Ferreira; Mário Martins Viana Júnior

661

Educational intervention due to illegal possession of drugs: an experience report

André Bomfim Dias; Eliseu de Oliveira Cunha; Vania Nora Bustamante Dejo

Érika Sales dos Santos; Emanuella Cajado Joca; Ângela Maria Alves e Souza

649

Jacqueline de Souza Gomes Diego Gracia Ricardo Rodrigues Teixeira Elma Zoboli Reply

open space 767

Maura Lima; Magda Dimenstein

The fair measure of treatment: compulsory treatment of tuberculosis in debate Pablo Dias Fortes

Health care from the view of male workers with chronic diseases

Matrix support in mental health: a tool for support in care in crisis situations

Patient safety teaching in undergraduate health programs: reflections on knowledge and practice

debates

Social organizations as management model of healthcare in Pernambuco, Brazil: perceptions of managers

José Gonçalo Zúquete; Edinilsa Ramos de Souza; Suely Ferreira Deslandes

Mentoring in medical students: a humane and developmental experience

Elena Bohomol; Maria Aparecida de Oliveira Freitas; Isabel Cristina Kowal Olm Cunha

Valéria Cristina Yoshida; Maria da Graça Garcia Andrade

611

Attention Deficit/Hyperactivity Disorder case (ADHD) and the medicalization of education: an analysis from parents and teachers’ reports

Ana da Fonseca Martins; Patrícia Lacerda Bellodi

Hélder Freire Pacheco; Garibaldi Dantas Gurgel Júnior; Francisco de Assis da Silva Santos; Simone Cristina da Costa Ferreira; Eliane Maria Medeiros Leal

597

Specialization courses on Health Family: what can training change in the work?

Murilo Galvão Amancio Cruz; Mary Yoko Okamoto; Daniele de Andrade Ferrazza

Elisabete de Fátima Polo de Almeida Nunes; Brigida Gimenez Carvalho; Sônia Cristina Stefano Nicoletto; Luiz Cordoni Junior

585

ISSN 1807-5762

Magda Duarte dos Anjos Scherer; Camila Izabela de Oliveira; Wania Maria do Espírito Santo Carvalho; Marisa Pacini Costa

Practical discourses about events, decisions processes and effects of Health municipal conferences in Brazil

Alcides Silva de Miranda; Ana Ester Maria Melo Moreira; Caio Garcia Correia Sá Cavalcanti; Fernanda Machado Bezerra; Jéssica da Costa de Oliveira; Regiane Rezende

573

691

educação

797

Powers of freedom, governamentality and the psy knowledges: dialogues with Nikolas Rose (Part 2)

Sergio Resende Carvalho; Elizabeth Maria Freire Araújo Lima

809

reviews creation

811

Wounds don’t speak for themselves. Suffering and migrants’ healing strategies through ethnography-based art practices Chiara Pussetti


comunicação

saúde

2016; 20(58)

editorial

artículos 537 Metodologías participativas de investigación y educación popular:reflexiones sobre criterios de calidad Danilo Romeu Streck

549 Una política de la narratividad: experimentación y cuidado en relatos de reductores de daños de Salvador, Brasil Danilo Romeu Streck

Magda Duarte dos Anjos Scherer; Camila Izabela de Oliveira; Wania Maria do Espírito Santo Carvalho; Marisa Pacini Costa

703 El caso del Transtorno do Déficit de Atención e Hiperactividad (TDAH) y la medicalización de la educación: un análisis a partir de la narración de padres y profesores

Murilo Galvão Amancio Cruz; Mary Yoko Okamoto; Daniele de Andrade Ferrazza

715 Tutoría/mentoring: una vivencia de humanización y desarrollo en el curso de medicina Ana da Fonseca Martins; Patrícia Lacerda Bellodi

727 Enseñanza sobre seguridad del paciente en el pregrado en salud: reflexiones sobre saberes y prácticas

Elena Bohomol; Maria Aparecida de Oliveira Freitas; Isabel Cristina Kowal Olm Cunha

559 Discursos prácticos sobre hechos, procesos decisorios y consecuencias de las Conferencias Municipales de Salud en Brasil Alcides Silva de Miranda; Ana Ester Maria Melo Moreira; Caio Garcia Correia Sá Cavalcanti; Fernanda Machado Bezerra; Jéssica da Costa de Oliveira; Regiane Rezende

573 Gestión del trabajo en Unidades Básicas de Salud de pequeñas ciudades en Paraná, Brasil

debates 743 La medida de un trato justo: el tratamiento obligatorio de la tuberculosis en cuestión Pablo Dias Fortes

Elisabete de Fátima Polo de Almeida Nunes; Brigida Gimenez Carvalho; Sônia Cristina Stefano Nicoletto; Luiz Cordoni Junior

752 755 757 760 763

585 Las organizaciones sociales como modelo de gestión de la asistencia sanitaria en Pernambuco, Brasil: percepciones de los gestores

Hélder Freire Pacheco; Garibaldi Dantas Gurgel Júnior; Francisco de Assis da Silva Santos; Simone Cristina da Costa Ferreira; Eliane Maria Medeiros Leal

597 El cuidado de la salud desde el punto de vista de los trabajadores varones portadores de enfermedades crónicas

Valéria Cristina Yoshida; Maria da Graça Garcia Andrade

611 Enfrentamiento al tráfico sexual de las mujeres desde la perspectiva de los agentes institucionales de Brasil y Portugal

José Gonçalo Zúquete; Edinilsa Ramos de Souza; Suely Ferreira Deslandes

767 Medida educativa establecida por razones de posesión ilegal de drogas: un relato de experiencia

André Bomfim Dias; Eliseu de Oliveira Cunha; Vania Nora Bustamante Dejo

777 Trabajo de Campo Supervisado II: una experiencia curricular de inserción en la Atención Primaria para la Salud

787

Maura Lima; Magda Dimenstein

Érika Sales dos Santos; Emanuella Cajado Joca; Ângela Maria Alves e Souza

661 Representaciones de los participantes de una intervención psicosocial para mejorar la adhesión al tratamiento del SIDA

Ana Cristina Arantes Nasser; Maria Ines Battistella Nemes

679 Evaluación del profesionalismo en los estudiantes de la salud: una revisión sistemática

Erica Toledo de Mendonça; Rosângela Minardi Mitre Cotta; Vicente de Paula Lelis; Paulo Marcondes Carvalho Junior

Patty Fidelis de Almeida; Matheus Oliveira Bastos; Michele Agostinho Condé; Natália Janoni Macedo; Julia de Mattos Feteira; Felipe Pacelli Botelho; Rodolpho Luiz da Silva

Educación interprofesional y Programa de Educación para el trabajo en Salud/Red Cigüeña: potencializando cambios en la formación académica

Franklin Delano Soares Forte; Hannah Gil de Farias Morais; Shirley Arruda Guimarães Rodrigues; Joyce da Silva Santos; Priscila Farias de Albuquerque Oliveira; Maria do Socorro Trindade Morais; Talitha Emanuelle Barbosa Galdino de Lira; Maria de Fátima Moraes Carvalho

637 Teatro del oprimido en la salud mental: participación social a través del arte

Marcelo José Monteiro Ferreira; Mário Martins Viana Júnior

Jacqueline de Souza Gomes Diego Gracia Ricardo Rodrigues Teixeira Elma Zoboli Respuesta

espacio abierto

625 Apoyo Matricial en salud mental: una herramienta de apoyo de la atención durante crisis

649 La expansión del agronegocio en la región semiárida de Ceará y sus implicaciones para la salud, el trabajo y el medio ambiente

ISSN 1807-5762

691 Cursos de especialización en Salud de la Familia: qué cambia en el trabajo con la formación?

531 Paradigmas médicos y Atención Primaria para la Salud: vigilancia de la población y / o producción de la vida? Sérgio Resende Carvalho; Henrique Sater de Andrade; Gustavo Tenório Cunha; David Armstrong

educação

entrevistas 797 Poderes de la libertad, gubernamentalidad y saberes psi: dialogos con Nikolas Rose (Parte 2)

Sergio Resende Carvalho; Elizabeth Maria Freire Araújo Lima

809

reseñas creación

811 Ninguna herida habla por sí misma. Sufrimiento y estrategias terapéuticas curativas de los inmigrantes a través de prácticas de arte basado en la etnografía Chiara Pussetti


DOI: 10.1590/1807-57622016.0410

Ao longo das últimas décadas, tem acontecido, no Brasil, um importante debate sobre alternativas à Medicina Hospitalar no cuidado em saúde. Discussões em torno de proposições como Vigilância/Promoção à Saúde; Ações Programáticas; Defesa da Vida; Clínica Ampliada; Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde; Clínica Peripatética; Redução de Danos; entre outras1-3; preencheram este debate, mas, talvez, uma das questões centrais possa ser melhor compreendida por meio da análise da natureza contemporânea e o futuro papeldo médico generalista. A história e lugar da Medicina Hospitalar estão bem estabelecidos no interior do sistema público de saúde brasileiro (SUS), mas como a Atenção Primária à Saúde, com seus diferentes experts, discursos, tecnologias e práticas, integram-se ao sistema hospitalar para criar uma ‘Rede de Atenção à Saúde’? Existem lições a serem aprendidas dos outros países sobre como manejar esse problema de integração? Alguns países anglo-saxões com sistemas de saúde universal, como o Reino Unido, enfrentaram esse problema priorizando a construção de um sólido setor primário de atenção à saúde. No entanto, não basta, simplesmente, transferir esses arranjos organizativos dos países desenvolvidos para o Brasil, uma vez que eles têm poucas chances de sucesso num país com histórias e tradições culturais distintas. Além disso, uma série de autores4-7, influenciados pelo pensamento pósestruturalista, argumentam que essas novas formas de integração na assistência à saúde, observadas em outros países, estão sustentadas por importantes mudanças na natureza do conhecimento médico e da prática clínica. Entender tais mudanças pode mostrar as possibilidades e limites das reformas da atenção à saúde no Brasil. O ponto de partida de várias dessas análises é a obra “O Nascimento da Clínica”8 de Michel Foucault, onde o autor descreve as origens da medicina moderna, que, por mais dois séculos, tem caracterizado a atividade clínica nos hospitais. No final do século XVIII, a Medicina Hospitalar emergiu a partir da ideia central de que a doença podia ser localizada em uma lesão patológica intracorpórea. Antes disso, a doença havia percorrido os corpos, o espaço entre corpos e o meio ambiente; não havia um ponto específico onde a doença ‘parava’, onde ela poderia ser capturada ou tratada. A ideia da lesão patológica localizada significou, no entanto, a possibilidade de se realizar um exame clínico do corpo do paciente para identificar a lesão (bem como realizar uma necrópsia para confirmar o diagnóstico). E que melhor lugar para conduzir esse exame que no espaço “neutro” do hospital, livre de todas as distrações dos lares “naturais” dos pacientes? Esse arcabouço para entender a natureza da doença/ enfermidade(a) dominou a provisão do cuidado à saúde nos últimos dois séculos, mas isto não significa que esta situação continuará pelos séculos futuros. Como observou Foucault8 (p. 3): “esta ordem do corpo sólido e visível é apenas uma das maneiras – que tudo indica não será a primeira, nem a mais fundamental – da medicina espacializar a doença. Houve e haverá outras distribuições da enfermidade”.

Perspectivas médicas no século XX: a emergência da Medicina de Vigilância e Comunidade

editorial

Paradigmas médicos e Atenção Primária à Saúde: vigilância da população e/ou produção de vida?*

* Este editorial é um resultado parcial dos diálogos do autor principal com David Armstrong, durante suas investigações de pós-doutorado junto ao King’s College de Londres, sob os auspícios da CAPES/Ciências Sem Fronteira – no King’s College de Londres.

Traduzimos aqui o termo ilness como enfermidade buscando nela destacar aspectos sociais, culturais e subjetivos (experiência de se sentir ‘doente’) vis a vis a ênfase no componente patológico biologicamente definido que usualmente encontramos no termo ‘doença’. (a)

Durante o século XIX, a Medicina Hospitalar dominou a provisão da atenção à saúde nos países ocidentais, e, durante a maior parte do século XX, esta COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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dominação se disseminou num fenômeno de dimensão mundial. Para a maioria dos cidadãos do mundo moderno, o termo “atenção à saúde” invoca a imagem do hospital, com suas clínicas e seus leitos. Não é de se estranhar, neste contexto, que as alternativas ao hospital sempre tiveram de lutar por reconhecimento e recursos. Ainda assim, há indicações de que importantes mudanças começaram a ocorrer na medicina clínica a partir de meados do século XX, que tiveram como consequência um novo modo de se pensar a saúde e a enfermidade. Essas mudanças, por sua vez, indicavam que alternativas ao hospital poderiam começar a emergir nos distintos cenários da atenção à saúde. Um novo tipo de medicina emergiu logo no início do século XX em alguns países ocidentais. Respondendo, inicialmente, ao problema de como gerir as novas doenças “sociais” – como a tuberculose, doenças venéreas e infecções infantis –, a medicina toma como objeto de intervenção a população e, menos, os corpos individuais dos pacientes. Tuberculose ou doenças venéreas, por exemplo, exigiam algum tipo de programa de vigilância comunitária para monitorar sua disseminação. Em consequência, a medicina começa a prestar mais atenção às interações entre pessoas na comunidade: Esse espaço multifacetado da população engloba a brecha física entre corpos que necessitam de monitoramento constante para protegê-los contra a transmissão de doenças contagiosas. [...] Essa nova Medicina de Vigilância envolve um remapeamento fundamental dos espaços da enfermidade. Isto inclui a problematização da normalidade, a reconfiguração das relações entre sintoma, sinal e enfermidade, e a localização da enfermidade fora do espaço do corpo físico [...] cada enfermidade é apenas um ponto nodal de uma rede contínua de monitoramento do status de saúde de uma população.5 (p. 393, 400, 401)

Nessa nova conceitualização, a patologia não era, na sua essência, um fenômeno estático a ser localizado em um ponto específico, mas era vista como algo que percorre todo o corpo social, aparecendo apenas esporadicamente. Uma nova forma de medicina é demandada para inspecionar esta população “normal”. A identificação de “fatores de risco” na segunda metade do século XX consolidou essa análise. Todos possuem fatores de risco; todos estão em risco. Seria alguém, neste contexto, verdadeiramente saudável? Ou todos estariam num estágio precário de pré-enfermidade? A solução foi a de ampliar o papel de vigilância da medicina buscando abarcar as populações “normais” e as pessoas “saudáveis”. Pacientes que pareciam saudáveis talvez poderiam ter doenças incipientes que seriam identificadas por meio do screening; populações que pareciam normais poderiam ser ofertadas com ações de promoção à saúde e aconselhadas a terem comportamentos saudáveis; pacientes em atendimento de consultas nos serviços de saúde poderiam ter seus perfis de risco averiguados. Além de se conceber novos formatos de provisão de cuidados à saúde foram ‘inventados’ novos problemas de saúde. As neuroses (ansiedade, depressão, etc.), por exemplo, que potencialmente afetavam a todos, substituíram a insanidade (a aflição de poucos) como principal problema da saúde mental, e as doenças crônicas foram ‘descobertas’ em todos os lugares no século XX. Ambas as “invenções” justificaram o aumento do monitoramento e mais vigilância4,5,9. O hospital surgiu quando a doença foi localizada na lesão patológica no interior do corpo. O hospital separou aqueles com enfermidades/doenças (que possuíam uma lesão patológica) daqueles que eram saudáveis (sem lesão patológica). O tratamento bem-sucedido se traduzia na alta hospitalar, e o 532

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editorial

reencontro com o saudável, no lado de fora de seus muros. A função central do hospital na provisão do cuidado à saúde era então baseada em uma separação binária entre doença e não-doença, hospitalização e não-hospitalização. Outras formas de provisão do cuidado à saúde deram suporte a essa divisão binária, uma vez que o hospital dependia de trabalhadores de saúde da periferia do sistema (como os médicos generalistas) para realizar a identificação preliminar da patologia e os arranjos necessários para a admissão em um leito hospitalar. Assim, era inevitável que as alternativas não hospitalares fossem subservientes ao hospital; e mais do que isto, elas deviam sua existência ao “sistema” hospitalar e às formas patológicas de doenças que o sustentavam10. Mas se a ‘enfermidade’ não se encontra mais localizada na lesão patológica, se ela deve ser encontrada nos fatores de risco, na população, nas pessoas saudáveis, então, a principal justificativa da medicina hospitalar – e do sistema de saúde que lhe dá suporte – começa a perder sua ascendência. Esse é o momento que o debate sobre “alternativas” torna-se possível. A Atenção Primária, identificada e nomeada como tal na década de 1960, é um produto dessas mudanças da natureza do conhecimento médico e da prática clínica. O movimento brasileiro da Saúde Coletiva e, nele, os debates sobre as práticas clínicas e de gestão da atenção à saúde após os anos 1980, parecem, para nós, ser, em parte, um produto dessas forças paradigmáticas que começaram a impactar a prática e a organização da medicina há cerca de meio século em países como o Reino Unido. Eles têm, como um pano de fundo em comum, a ênfase nos elementos biográficos que estão presentes junto aos problemas dos pacientes, representando uma ruptura significativa com a velha medicina hospitalar clínicopatológica10.

Problematizações Quando Foucault descreveu a emergência da medicina hospitalar no final do século XVIII, ele também argumentou que essa nova forma de prática clínica se espelhou em outras inovações na vigilância dos corpos individuais (como a prisão, a escola e a fábrica)11. Na verdade, ele argumentou que a análise meticulosa dos corpos, realizada em atividades como o exame clínico e a necropsia, produziu, mais do que isto, um mecanismo para a invenção desses corpos. Em outras palavras, a percepção de um corpo anatômico de células, tecidos e órgãos, que parece tão comum nos dias de hoje, tem suas origens em práticas clínicas introduzidas há dois séculos. De maneira similar, o advento da Medicina de Vigilância e Comunidade tem, também, efeitos para além de seus objetivos práticos imediatos. Enquanto sua lógica manifesta é a da identificação da enfermidade, presente e futura, sua prevenção e aperfeiçoamento, a vigilância constante da população normal e a demanda de que todos devam continuamente proteger-se contra riscos ocultos estabelece uma nova identidade. A proteção contra riscos, a maioria não visualizada e comumente desconhecida, – requer auto-vigilância e este estado de permanente atenção que pode ser descrito como o de reflexividade. Em outras palavras, a prática da Medicina de Vigilância e Comunidade constrói uma identidade tão inquestionável quanto a do exame clínico que, dois séculos atrás, começou a dar materialidade ao corpo anatômico do indivíduo. A promoção de novas formas de prover a atenção à saúde nas suas disputas com a antiga medicina hospitalar é mais do que uma batalha de como a atenção à saúde deve ser suprida. Em última análise, o que está em jogo aqui são os caminhos e possibilidades da existência de indivíduos e coletivos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Os argumentos acima reforçam a importante ideia de que a medicina não tem uma essência ontológica (ela não existe em si), nem uma epistemológica (não existe apenas um modelo médico). A medicina não tem essência política (os efeitos da ação médica não são, necessariamente, o do exercício da disciplina e controle do social), nem uma patriarcal (a medicina e os médicos não querem, simplesmente, exercer o controle sobre as mulheres e seus corpos)7. A medicina, Foucault8 nos ensinou, é uma prática social que responde a distintas e complexas relações de poder que operam nos planos micro e macrossociais; os efeitos de seus discursos e práticas são sempre um campo aberto de disputa. Tal atitude crítica pode ser útil, por exemplo, para o aprimoramento de perspectivas médicas que procuram contribuir para uma política de vida que busque a mudança do status quo. Para ter um posição crítica, por exemplo, em relação à abordagem biopsicossocial da enfermidade – que é um aspecto central do projeto hegemônico de ‘Medicina de Família e Comunidade’ no Brasil nos dias de hoje –, que vem sendo ofertada como um “novo modelo” ou uma panaceia para reconstruir o universo da enfermidade, apesar de suas imensas limitações12. Nós pensamos, também, que, em algumas situações, devemos estarmos mais atentos (e críticos) sobre o uso do conceito e estratégia do “risco”. Este não é um conceito neutro e “científico”, mas um conceito histórico que muitas vezes dissolve os contornos entre os saudáveis e os doentes no campo da saúde, colocando todos em uma teia de observação onde experts fabricam normas de classificação e têm grande influência naquilo que se afirma como problemas de saúde nos dias de hoje13,14. Sérgio Resende Carvalho Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas (FCM/Unicamp). Campinas, SP, Brasil. sresende@fcm.unicamp.br Henrique Sater de Andrade Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, Brasil. hsatera@gmail.com Gustavo Tenório Cunha Departamento de Saúde Coletiva, FCM/Unicamp. Campinas, SP, Brasil. gustc@fcm.unicamp.br David Armstrong Department of Primary Care & Public Health Sciences. Londres, Reino Unido. David.armstrong@kcl.ac.uk

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0443

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Metodologias participativas de pesquisa e educação popular: reflexões sobre critérios de qualidade Danilo Romeu Streck(a)

Streck DR. Participatory research methodologies and popular education: reflections on quality criteria. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):537-47.

The paper, a consequence of the author’s research experience and the evaluation of research in popular education, discusses the criteria for quality and validity of participatory methodologies, which since their origin in Latin America present significant affinities with popular education. The following topics are discussed in the perspective of participatory methodologies: the social relevance; the quality of description and interpretation; the collective reflexivity; the quality of the relations among the stakeholders in the research process; and the practicability of the produced knowledge. In the conclusion it is pointed out that the discussion about the quality of research in education and popular education can contribute to confront the academic productivism, where qualitative and quantitative criteria are confused, to be able to overcome the dichotomization between producers and consumers of research, thus enhancing the area’s theoretical density.

Keywords: Popular education. Research in education. Research quality. Participatory methodologies. Social relevance.

O artigo, derivado da experiência de pesquisa do autor e de avaliações de trabalhos de pesquisa na educação popular, propõe a discussão de critérios de qualidade e validade das metodologias participativas, as quais, desde sua origem na América Latina, apresentam importantes afinidades com a educação popular. São discutidos, na ótica das metodologias participativas, os seguintes tópicos: a relevância social, a qualidade de descrição e de interpretação, a reflexividade coletiva, a qualidade da relação entre os sujeitos da pesquisa e a praticabilidade do conhecimento. Na conclusão, argumenta-se que a discussão sobre a qualidade da pesquisa em educação e educação popular pode contribuir para fazer frente ao produtivismo acadêmico, onde são confundidos critérios de quantidade e qualidade, a superar a dicotomização entre produtores e consumidores ou usuários de pesquisa, e para fomentar a densidade teórica da área.

Palavras-chave: Educação popular. Pesquisa em educação. Qualidade da pesquisa. Metodologias participativas. Relevância social.

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(a) Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS, Brasil. 93022-750. dstreck@unisinos.br

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Introdução A pesquisa na educação popular enquadra-se, geralmente, no amplo espectro da pesquisa em educação e das ciências sociais. Há, no entanto, uma tendência a favorecer as metodologias participativas, ou seja, aquelas metodologias nas quais os sujeitos da pesquisa são considerados coprodutores de conhecimento. O presente texto, derivado, tanto da experiência pessoal em projetos de pesquisa, quanto da análise de teses e dissertações na área, busca identificar alguns indicadores ou critérios de qualidade e validade nas pesquisas com esta família de metodologias que, na América Latina, tem, desde a sua origem, uma grande afinidade com a educação popular. A pesquisa participante¹, a investigação temática², a IAP (investigación acción) participativa³; a sistematização de experiências4, em que pesem as suas diferenças, comungam com a educação popular o propósito de desenvolver um conhecimento inserido na emancipação do sujeito e na transformação da realidade. A pergunta sobre o que pode ser considerado boa pesquisa é pertinente para a área da educação, como apontado em várias críticas recentes por pesquisadores da área5,6. Por um lado, a pesquisa educacional é, hoje, um campo profissional consolidado internacionalmente, como atestam as muitas instituições dedicadas à pesquisa na área e a grande quantidade de publicações. Por outro lado, são tantos e tão variados os fatores que entram na avaliação de uma pesquisa que a discussão se impõe sob o ponto de vista científico. Também, entre áreas de conhecimento diferentes e entre pesquisadores com distintos matizes teóricos e epistemológicos, encontramos diferentes compreensões de qualidade, reforçando o desafio de explicitar perspectivas e critérios. Na acepção deste texto, a qualidade refere-se ao valor ou aos valores atribuídos não apenas ao produto, mas, acima de tudo, ao processo de pesquisa, sendo, por isso, o tema da qualidade necessariamente perpassado pela ética. Esta compreensão de qualidade vincula-se a uma opção ético-política em favor da transformação das condições que produzem a injustiça, também uma das premissas básicas da educação popular7. A partir dessas ponderações preliminares, o presente trabalho pretende contribuir para a discussão das metodologias da pesquisa em educação, tendo, como pressuposto, que: a) os critérios de qualidade são social e historicamente construídos; b) não se pode, simplesmente, transferir critérios de outras áreas, sobretudo as chamadas ciências duras ou exatas; c) a objetividade, que não se contrapõe à subjetividade, pode ser compreendida como busca por rigorosidade. A complexidade de um objeto ou fato poderá ser melhor descrita e compreendida com olhares múltiplos, nos encontros e cruzamentos de sujeitos que se propõem a conhecer algo. A negação da busca da objetividade como condição para o entendimento mútuo leva a um discurso solipsista, que contribui para a já grande fragmentação da pesquisa na área da educação. Nas palavras de dois pesquisadores8 que discutem critérios de confiabilidade e validade na pesquisa qualitativa: Objectivity, though the term has been taken by some to suggest a naive and inhumane version of vulgar positivism, is the essential basis of all good research. Without it, the only reason the reader on the research might have for accepting the conclusions of the investigator would be an authoritarian respect for the person of the author.8 (p. 20)

É, sem dúvida, uma ironia: ao ser contra um tipo de autoritarismo se pratica outro. Claro que ninguém é obrigado a ler o que o outro produz, mas há, na atividade de pesquisa, uma dimensão pública (mais ainda se é feita com recursos públicos!), que implica disposição de partilhar o processo e os resultados. Buscando contribuir para o desenvolvimento de critérios ao mesmo tempo abertos e consistentes para a pesquisa em educação, em especial para a educação popular, identifico alguns temas que têm a marca das metodologias participativas, mas que, em muitos aspectos, coincidem com o que se entende por pesquisa qualitativa. São eles: a relevância social, a qualidade de descrição e de interpretação, a reflexividade, a qualidade da relação entre os sujeitos e a praticabilidade do conhecimento. Todos esses aspectos podem ser entendidos como constituintes da qualidade acadêmica e científica no conjunto das pesquisas de cunho participativo.

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A questão da relevância social “O trabalho aborda um tema relevante...” é uma frase muito comum em pareceres de teses e dissertações, ou de avaliação de artigos submetidos para periódicos. O que vem a ser relevância? O que o adjetivo “social” acrescenta? Basta um discurso politicamente correto para ser relevante? Enfim, haveria algo que não é relevante? Ou a relevância de um objeto de pesquisa é uma construção feita pelo pesquisador, que o torna relevante por meio de sua observação rigorosa? Sendo esse o caso, o que está envolvido nessa construção? A construção da relevância passa, necessariamente, pela pergunta sobre a finalidade da busca ou produção de conhecimento, que é o objetivo da pesquisa. Como posto por Hugo Zemelman9: Una de las primeras preguntas que tendríamos que formularnos cuando nos planteamos un problema, una investigación, es algo tan obvio como lo seguiente: Para qué quiero conocer esto? [...] Lo que estoy señalando es que un primer momento de la reflexión es ‘para qué me planteo el problema’ y esa pregunta es de muy difícil respuesta. (p.107)

Trata-se de uma pergunta de difícil resposta porque a realidade social está em movimento e é polissêmica e multifacetada. Delimitar o objeto de investigação e formular o problema, portanto, é um exercício que exige paciência e dedicação, como a maioria dos mestrandos e doutorandos aprende em sua experiência de pesquisa. Dificilmente, o problema apresentado no projeto de ingresso dos cursos será o mesmo do projeto de qualificação, e esse, possivelmente, será modificado até a versão final do trabalho. O grande desafio, como formulado por Zemelman, consiste em pensar a especificidade do objeto em seu movimento. Essa, ainda segundo ele, teria sido a grande contribuição de Karl Marx para as ciências sociais, relegada a segundo plano em detrimento da sobrevalorização do fator econômico. Apresento, a seguir, três conceitos que, a meu ver, ajudam a avançar na definição de critérios de relevância social. O primeiro deles, “realidade potenciável”, é proposto pelo próprio Zemelman; o segundo, “sensibilidade teórica”, é emprestado da grounded theory (teoria de pesquisa fundada em dados); por fim, da investigación-acción partipativa (IAP), segundo Orlando Fals Borda, tomo a ideia de praxis com phronesis. O conceito de realidade potenciável pressupõe que o conhecimento e a produção de conhecimento não se dão em espaços isentos de interesses e fora das relações e conflitos de poder. Segundo Zemelman9, possivelmente, a irrelevância de parte da grande quantidade de pesquisa em educação se deve ao fato de não dar atenção à potencialidade do conhecimento produzido. A seguinte afirmação deveria fazer-nos parar e pensar: Piensen quienes están preocupados em la investigación educativa y pongan algunos ejemplos em esa área, y sería muy interesante, porque hay uma cantidad enorme de investigación educativa, hasta donde estoy informado, profundamente irrelevante, y donde – probablemente – ló relevante no este siendo estudiado. 9 (p. 112)

Essa potencialidade está vinculada ao conhecimento do contexto social e histórico no qual se constrói o sentido do problema. A pesquisa, assim entendida, coloca-se junto com o movimento da sociedade para potenciar determinados processos sociais. A construção da relevância passa, também, pela sensibilidade teórica. Esse conceito da grounded theory está relacionado com a capacidade de ler o mundo, lançando mão de ferramentas teóricas existentes ou criando novas que sejam mais adequadas. Essa não é uma capacidade inata, mas uma aquisição por meio de estudos na área e em áreas afins. Glaser10, referindo-se ao sociólogo, coloca a questão nos seguintes termos: “The analyst’s theoretical sensitivity, which is developed through intensive reading in sociology and other fields is also not only sharpened by learning what kinds of categories to generate, but also by learning a multitude of extant categories that could possibly fit on an emergent basis”10 (p. 4).

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Isso, certamente, se aplica à educação, onde os “referenciais teóricos”, muitas vezes, são assumidos de forma automática, por serem a base teórica de uma linha de pesquisa ou de um orientador. A ideia de sensibilidade teórica desafia a olhar para construções alternativas, tanto para reforçar quanto para modificar compreensões anteriores. A pesquisa em educação popular se desenvolve em meio às contradições da sociedade, e, por isso, junto com o para que é necessário questionar a serviço de quem se coloca. O conceito de phronesis foi utilizado, por Orlando Fals Borda3, junto com práxis para indicar o direcionamento dessa e do saber que dela se origina. No grego, phronesis significa a habilidade para pensar como agir para mudar as situações, e mudá-las no sentido da justiça. Tal como a verdade, trata-se de uma virtude que não existe no abstrato, mas se mostra na ação do pesquisador e na ação dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

Densidade descritiva e interpretativa Esse tema tem a ver com aquilo que é obtido por meio do processo investigativo e aparece como resultado de pesquisa, desde a correção e adequação da linguagem até o potencial interpretativo contido no texto. Aproprio-me do conceito de “densidade”, que tem sua formulação mais expressiva em Cliffort Geertz11 – e que é hoje amplamente usado na pesquisa qualitativa – de uma maneira livre. O termo original inglês “thick” (grosso, denso) sugere, quase que imediatamente, o seu contrário “thin” (esparso, fino), um pouco diferente do português, onde não temos na ponta da língua o seu antônimo. No Dicionário Aurélio encontramos os seguintes sinônimos para denso: compacto, cerrado, espesso. Para o que seria seu contraponto, esparso, temos: solto, disperso. Geertz assume este conceito do filósofo inglês Gilbert Ryle, trazendo um exemplo deste autor do que seria essa descrição densa. Dois meninos piscam os olhos, um deles num movimento reflexo e o outro usando o piscar de olhos como um gesto de conspiração com o seu amigo. O mesmo movimento dos olhos poderia, ainda, ser um sinal entre namorados, a imitação de alguém, e assim por diante. Uma descrição densa se caracteriza por muito mais do que o registro, mesmo que detalhado, do fechar e abrir os olhos. Há um contexto social, uma intencionalidade, uma história, e pessoas que compõem o significado do piscar de olhos. “A good interpretation of anything – a poem, a person, a history, a ritual, an institution, a society – takes us into the heart of that which is being interpreted”11 (p. 18). Seria esse o papel da descrição em uma perspectiva antropológica. Há uma semelhança com o que Bruno Latour12 diz sobre a descrição. Um olhar para a sua compreensão marca, também, o encontro com outra área das ciências sociais, a sociologia. Em sua teoria ator-rede, Latour vê a sociedade não como entidade estruturada, mas como movimento de atores que vão conformando redes. Daí sua ênfase naquilo que os atores efetivamente fazem, cada um deles como parte essencial dessa rede. O papel da descrição seria captar o movimento dos atores em seus detalhes, que revelariam em si mesmos as bases teóricas e o contexto. Daí sua insistência no aprendizado da “arte” de escrever, que é o principal instrumento de trabalho do pesquisador. Sua advertência aos sociólogos traz, também, uma importante lição para a pesquisa em educação. Segundo ele, para trazer à luz o social, uma boa sociologia tem de ser bem escrita. Traduzindo para a pesquisa em educação, pode até existir boa escrita sem pesquisa, como quando alguém conta uma história, mas não pode existir boa pesquisa sem boa escrita. O exemplo abaixo, transcrito de uma pesquisa de Carlos Rodrigues Brandão13 sobre lugares onde se aprende ao participar da vida em comunidade, traduz essa densidade tanto de descrição quanto de interpretação. Embora não dito, no texto estão expressas as relações de poder, os sentimentos, o contexto social e cultural como parte de uma imensa trama dentro da qual se ensina e aprende. E está presente o observador atento e participante. Reunidos e solenizados, os gestos são poderosos e ensinam com mais força do que outros, iguais, mas cotidianos. Poucas vezes vi donos de casa chorando de emoção, como nos momentos da ‘despedida’ de uma Folia de Reis. Por outro lado, os olhos atentos dos meninos indicam que também eles se tocam, se divertem e aprendem. Como tudo tem sua ordem e o seu lugar, e como todo o ritual não é mais do que uma sequência cerimonial de gestos que são 540

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e tornam explícitas regras sociais, tudo o que acontece ensina. Cantos, falas e rezas repetem, todos os anos, uma pequena fração do rito, torna-se, mais do que apenas legítima, uma ideia amada. O rito religioso recria, grandiosa e, ao mesmo tempo, afetiva, a ordem das relações entre as pessoas: pais e filhos, irmãos, compadres, outros parentes, vizinhos e companheiros. Os meninos que acompanham a Companhia e são foliões, com cargos e lugares na equipe de devotos, aprendem, como veremos mais adiante, para serem os continuadores do ritual da Folia. Mas as crianças e os adolescentes que a tudo assistem como moradores ou como acompanhantes, aprendem também. Aprendem ali as crenças que sustentam as normas que codificam a vida camponesa. [...] Todos os ‘do lugar’ compartilham crenças e conhecimentos comuns. Pouca coisa pode ser improvisada, e é porque desigualmente se sabe o que vai acontecer e desigualmente se sabe como proceder, que o rito recria o conhecido e, assim, renova a tradição: aquilo que se deve repetir todos os anos como conhecimento, para ser consagrado como valor comum. Renova um saber cuja força é ser o mesmo para ser aceito. Repetir-se até vir a ser, mais do que apenas um saber sobre o sagrado, um saber socialmente consagrado.13 (p. 34)

Do ângulo de metodologias participativas e da educação popular, dentro do qual se insere o trabalho de Brandão, cabem alguns destaques especiais. Primeiro, a ideia de movimento entre os diferentes sujeitos que nessa festividade assumem determinados papéis. Podemos aprender, com o autor do relato, que tanto melhor se puder captar esse movimento, melhor será o texto no sentido de densidade descritiva e interpretativa. Além disso, é no movimento entre os diferentes sujeitos, tornado objeto de reflexão, que se gera o conhecimento que o autor capta e traduz. Uma segunda observação diz respeito à voz dos diferentes sujeitos. No relato acima, não há transcrição de falas, mas os protagonistas estão pintados de uma forma muito viva. Em outros textos, Brandão se vale de longas transcrições e deixa seus companheiros de pesquisa falar, ficando numa atitude de escuta. Excertos maiores, geralmente, oferecem uma visibilidade melhor de quem está falando, enquanto os menores possibilitam uma construção discursiva mais fluente. Independente do estilo usado para integrar os sujeitos da pesquisa no relato, é importante considerar a possibilidade de outros produtos, com outras formas de protagonismo. Orlando Fals Borda14, em Historia Doble de la Costa, elaborou, literalmente, dois textos, juntados num mesmo livro, em páginas paralelas: de um lado a versão acadêmica e, de outro lado, a versão popular com contos, cantos e outros elementos. Telmo Adams15 serviu como “escritor” da história de uma associação de reciclagem de resíduos sólidos (os membros da associação se consideraram seus autores), enquanto escrevia sua tese de doutorado16. Em nossa prática de pesquisa, fizemos vídeos que serviram para reflexão nos grupos. Ou seja, existe a possibilidade de compartilhar a autoria da descrição e interpretação com outros sujeitos, com outras linguagens.

Reflexividade A reflexividade é apontada, por muitos autores, como uma característica central da boa pesquisa. No campo da educação, é bem conhecido o trabalho de Donald Schön17 sobre o “professor reflexivo”. Paulo Freire18 insiste que uma das maneiras de pensar certo é pensar a própria prática. Isso, possivelmente, vale também para outras disciplinas e campos profissionais, considerando que a reflexividade num sentido amplo é uma capacidade evolutiva construída pelos humanos e não é o privilégio de alguns. Uma boa prática de agricultura exige tanta reflexividade quanto uma pesquisa social, embora com características próprias. Por isso, convém se debruçar sobre o sentido da reflexividade na pesquisa enquanto uma atividade especializada. A reflexividade de que aqui tratamos tem três dimensões. A primeira delas é o incremento do potencial de reflexividade dos sujeitos da prática que é o objeto de estudo. Retomo aqui o conceito de práxis, no sentido aristotélico19, e ampliado pela tradição do materialismo histórico3. No primeiro sentido, a qualidade da práxis é medida por critérios derivados da própria práxis. Por exemplo, os violinistas saberão distinguir a qualidade intrínseca na execução de uma peça em detalhes que passam COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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despercebidos a alguém não familiarizado com o manejo do instrumento. Um corolário disso é que o aperfeiçoamento na arte de tocar violino não virá pela leitura de manuais, que podem ser úteis para algumas informações, mas pela prática. Isso vale para todas as práticas, inclusive, a pesquisa. Nas palavras de Eykeland19: “Praxis requires sharing and communicating minds in a dynamic community of masters and apprentices. Everyone thereby becomes an experimenter, not an ‘experimentee’” (p. 40). A práxis, na tradição latino-americana de pesquisa ação participante, adquiriu, também, o sentido de ação-reflexão dentro do movimento da história. O ser humano é um ser de práxis não apenas porque pode aperfeiçoar a sua prática profissional, mas porque pode fazer um projeto de seu destino. Como visto antes, Fals Borda acrescentou o conceito de phronesis à práxis para reforçar que se trata de uma ação-reflexão direcionada à justiça. Um terceiro sentido da reflexividade se refere ao autoconhecimento do pesquisador, de suas motivações, seus interesses, seus limites e suas emoções. Marianne Kristiansen e Joergen Bloch-Paulsen20, por isso, fazem uma distinção entre intervenção e envolvimento mútuo na pesquisa. Segundo eles, “The interventionist has to risk his logical-analytical sense, while we, in a way, end up risking ourselves as human beings” (p. 254). Isso implica a possibilidade de compartilhar, com indivíduos e com o grupo, os sentimentos que afloram no processo. Este movimento não é um processo automático, mas se insere no estabelecimento de condições para o que eles chamam de “conversas de partejamento”. Entre essas condições, está a construção de “espaços maiêuticos”, nos quais se inserem três padrões de relacionamento: co-humor, disponibilidade mútua descontraída e coprodução verbal. Esse seria um espaço propício para o pensamento criativo. O “ritmo maiêutico” se refere à criação de condições para colocar o grupo todo em sintonia. Na América Latina, em especial entre os grupos populares, este espaço e ritmo maiêuticos são muito facilitados pela mística, que cria ambientes propícios à expressão de cada participante. Colocar um objeto pessoal numa toalha estendida no centro da sala e falar sobre o significado deste objeto na experiência ajuda a criar vínculos afetivos, além de permitir o espaço para que cada um exercite a sua fala em grupo. Fazem parte disso, também, os cantos e danças ou as comidas compartilhadas.

Qualidade da relação entre os sujeitos “Agora, eu que antes confiava em mim diante do outro, confio no outro diante de mim. E não mais como um fiel e confiável doador de si mesmo para mim, entre dados, discursos, histórias e memórias, mas como um coparticipante da criação solidária de saberes”21 (p. 45). Nessa passagem, Carlos Rodrigues Brandão se refere ao “difícil salto” não apenas para além das metodologias quantitativas, onde confio nos métodos e instrumentos, ou da pesquisa qualitativa, onde confio em mim como sujeito responsável e autocontrolado, mas confio no outro como coparticipante na criação de conhecimento. Coloca-se aqui, como fundamental, o tema da qualidade de relações interpessoais na pesquisa. À primeira vista, parece que há uma hierarquia nesses três lugares de confiabilidade(b). Um segundo olhar sobre a síntese de Brandão permite uma leitura menos discriminatória. É importante, em qualquer pesquisa, desenvolver instrumentos que permitem a confiabilidade. A estatística tem as suas regras matemáticas; um roteiro de observação ou de entrevista tem a sua “lógica” 542

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Confiabilidade e validade são dois conceitos que provêm da área da psicometria. O primeiro refere-se à qualidade de um teste produzir os mesmos resultados em situações diferentes; o segundo diz respeito à qualidade dos dados, de acordo com os fins estabelecidos7. São conceitos amplamente usados fora desse contexto específico, como é o caso neste texto. (b)


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de acordo com os objetivos; um diário de campo tem também os seus requisitos de rigorosidade. A confiança em mim, como pesquisador, tem a ver com o autoconhecimento das motivações, da informação sobre o objeto de investigação e das capacidades individuais. É o “controle” do elemento subjetivo que está presente em todo o processo de pesquisa e que se traduz na abertura empática para sentir e perceber coisas que talvez contradigam minhas crenças e pressupostos. O terceiro lócus da confiança, a confiança no outro, enquanto desejável para toda a pesquisa e para todas as relações humanas é, no entanto, um elemento imprescindível quando se trata de pesquisa participante, ou de pesquisa que se define numa perspectiva dialógica. O que significa a qualidade da relação entre os sujeitos? Por que se preocupar com isso? É possível avaliar a qualidade da relação na pesquisa? Iniciemos com um exemplo. Na primeira reunião com um grupo num centro comunitário na periferia de uma grande cidade, uma das mulheres disse a seguinte frase: “Ah, sim, vocês estão fazendo pesquisa! Muitos vêm fazer pesquisa aqui e nós já sabemos o que dizer.” Não sei a que pesquisadores ela se referia, mas posso imaginar um professor enviando seus alunos para as vilas, com meia dúzia de perguntas, para fazer uma pesquisa de campo. Talvez o exercício traga alguma lição para os alunos e para o professor, sobretudo, sobre o que não é pesquisa, mas é de duvidar se essa pesquisa acrescenta algo útil à vida das pessoas nessa comunidade. Aumentemos o zoom sobre este exemplo. Primeiro, a pesquisa aparentemente não tinha a ver com o grupo que se pretende conhecer. Responder ao questionário era visto como uma obrigação ou como sinal de respeito, muitas vezes, implicitamente atribuído ao meio acadêmico, especialmente pelas assim chamadas “pessoas simples”. É bem provável que pessoas com nível de escolarização mais elevado tivessem se negado a responder o questionário, num gesto mais explícito de desconfiança. Em segundo lugar, os sujeitos de pesquisa não estabeleceram vínculos que permitissem um engajamento mútuo para conhecer determinado aspecto da vida dessa comunidade. Num processo participativo, é importante que a atitude de querer saber seja estimulada e desenvolvida por ambos os lados. Em terceiro lugar, a pesquisa parece não ter deixado nenhuma marca na vida da comunidade. A qualidade das relações refere-se tanto a situações formais quanto informais. As primeiras são aqueles espaços estruturados de entrevistas com hora marcada, de reuniões de grupo e de negociação da proposta de pesquisa. As situações informais podem ser criadas nos intervalos entre reuniões e seminários, ou são os momentos em que o pesquisador se dispõe a participar da vida do grupo. Por exemplo: acompanhar determinado trabalho que está sendo executado, alguma festa da comunidade, reuniões de alguma associação ou escola, entre outras muitas possibilidades. Eykeland21 diz que, para se compreender uma situação, tem que se tornar nativo. Com isso, ele não quer dizer que o pesquisador precisa se disfarçar de aluno, de professor, de pedreiro, de jovem ou idoso, mas estabelecer a empatia para apreender o conhecimento gerado dentro e a partir da situação. Empatia significa a capacidade de sentir o que outros sentem, no entanto, sabendo que não se é este outro. Pesquisas mostram que também existe o “contágio emocional” entre animais ou entre crianças recém-nascidas, por exemplo, quando o choro de uma provoca o choro das demais sem que pudesse haver uma explicação para isso. A empatia, por seu turno, é uma condição desenvolvida socialmente, e implica a possibilidade de assumir a perspectiva do outro. Por exemplo, significa participar do sofrimento do outro, mesmo sabendo que não é o meu, mas foi desencadeado pelo sofrimento do outro23. Na pesquisa, é uma forma de estar junto com o outro, sentir com o outro, ao mesmo tempo, sabendo que o envolvimento possível tem os seus limites.

A praticabilidade do conhecimento Ao acompanharmos reuniões do orçamento participativo na qualidade de pesquisadores, alguém nos apresentou como o grupo que vai “contar a nossa história”. Nessa afirmação, está expressa a expectativa de que, para os organizadores desse movimento, que todos os anos envolve milhares de pessoas no Estado do Rio Grande do Sul, o nosso trabalho seja útil. A afirmação pode ter até um viés partidário no sentido de “dizer” o que foi essa política de um governo que se define como popular e democrático, mas não deixa de ser o objetivo de um dos sujeitos envolvidos. Num encontro informal, um representante comunitário manifestou a baixa representatividade no movimento das organizações COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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populares e comunitárias. Não estava dito, mas a expectativa implícita era de que a pesquisa captasse, também, esse elemento ao compor a história. Uso o termo praticabilidade para distinguir o conhecimento produzido na pesquisa participante tanto da pesquisa aplicada, que gera o conhecimento para, então, aplicar ou “transferir” para a prática, quanto de praticidade, que tem uma conotação de comodidade e adaptação. Praticabilidade refere-se à possibilidade de retroalimentar a prática no processo de pesquisa para, assim, gerar uma teoria mais coerente com a prática. Para John Dewey24, uma referência clássica na pesquisa ação e na educação, “[…] knowledge is a mode of participation, valuable in the degree in which it is effective. It cannot be the idle view of an unconcerned spectator” (p. 338). Paulo Freire2 (p. 73), citando Sartre, critica a “compreensão digestiva” ou “alimentícia do saber” e, também, o que é mais conhecido, a compreensão “bancária” de conhecimento. A crítica bate num mesmo ponto, ou seja, um conhecimento desvinculado da experiência de vida e da práxis do sujeito como ser histórico. Essa “alimentação” (feeding in) do processo do grupo não necessariamente se dá na forma de recomendações e conclusões. Num dos seminários com membros de grupos que participavam da pesquisa, um secretário de educação disse que a contribuição da pesquisa na comunidade tinha sido no sentido de fazer novas perguntas. Ou seja, não se esperava respostas de alguém “de fora”, mas se podia contar com alguém que ajudasse a fazer perguntas que contivessem esse elemento de praticabilidade. Foi o caso de ajudar a comunidade a ver que a pouca participação dos jovens à noite tinha a ver com o fato de estarem na escola. Transferir certas reuniões para o sábado à tarde foi uma proposta que emergiu da comunidade. No caso, a teoria inicial sobre a falta de participação dos jovens nas reuniões foi mudada pela prática. A pesquisa de que tratamos propõe-se a ser útil, não no sentido de um utilitarismo estreito, mas de contribuir tanto para o campo da prática, quanto para a comunidade científica. Palshaugen25, tratando da pesquisa ação numa perspective participante, coloca a questão da seguinte forma: The purpose of action research is a combined one: both to make use of scientific knowledge to contribute to practical development and change within some particular field, and to generate new knowledge of some particular aspects of this field, knowledge that may be of general interest to the scientific community and which in turn may be useful to the practitioners. (p. 237)

Não por último, deve ser útil para os objetivos de crescimento pessoal e profissional do pesquisador.

Considerações finais O texto, como anunciado na introdução, pretende contribuir para a construção de critérios de qualidade e de validade de pesquisas em educação que ajudem a superar algumas deficiências conhecidas e já denunciadas na área. Cabe à própria comunidade acadêmica refletir sobre esses critérios que, como argumentamos, não são fixos e nem universais, mas que, ao mesmo tempo, devem servir como ponto de encontro para o diálogo, uma vez que a finalidade última é a mesma, ou seja, uma melhor educação para todos. É em torno do supostamente “melhor” que, no fundo, se centra a discussão. Uma atenção aos critérios do que se considera uma boa pesquisa pode ajudar-nos a encontrar mecanismos para superar algumas questões prementes na academia brasileira. A primeira delas tem a ver com o produtivismo que entrou no campo da educação e se evidencia pela enorme quantidade de periódicos e publicações na área. A pergunta é se essa proliferação contribui para qualificar a pesquisa ou se serve, prioritariamente, para engordar currículos e estatísticas de instituições. Tal como nas metodologias de pesquisa, seria errôneo contrapor quantidade e qualidade, mas dar-nos conta de que a quantidade sem a qualidade é inócua. Uma segunda questão diz respeito ao público “usuário” das pesquisas. Quanto das pesquisas sobre educação e educação popular de fato chega aos olhos e ouvidos dos professores e de 544

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outros educadores? Está a pesquisa cerrada num círculo autorreferenciado? A clássica definição da universidade como integrando ensino, pesquisa e extensão dá conta do compartilhamento dos resultados? Deveriam ser criados novos canais de divulgação e discussão? Ou o problema está (também) na metodologia de pesquisa que entende os sujeitos de pesquisa como informantes e, posteriormente, como receptores de conclusões, e não como participantes na produção dos conhecimentos sobre si e sua realidade? Por fim, a reflexão sobre os critérios de qualidade traz à tona a relação entre teoria educacional e pesquisa em educação. Em boa medida, essas duas atividades são desenvolvidas de forma paralela, com pouca interlocução entre si, ou, então, na forma de uma instrumentalização mútua. A teoria é utilizada como quadro de referência, e os resultados de pesquisa são utilizados como ilustração ou confirmação de determinada teoria. Não raro a pesquisa empírica é vista como irmã menor da teoria, talvez pela proximidade supostamente contaminadora da prática. Se a teoria é o momento reflexivo da prática, essa não pode prescindir das mediações que a pesquisa proporciona pelos caminhos tortuosos das práticas. A educação popular tem se revelado um campo de experimentação e inovação metodológica, não apenas em termos de ensino, mas, também, de pesquisa. Costa e Fleuri26, analisando a pesquisa apresentada no Grupo de Trabalho de Educação Popular da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (Anped) na última década do século passado, indicavam que a busca de repensar os pressupostos epistemológicos e metodológicos da pesquisa teria sido “motivada pela necessidade de entender a diversidade e a especificidade dos saberes e dos interesses das classes populares emergentes em práticas de educação popular”26 (p. 26). Estudos de trabalhos apresentados entre 1999 e 2010 confirmam a presença de novos sujeitos, tais como: movimento dos trabalhadores desempregados, casa de mulheres, rodas de capoeira, ateliês de tecelagem e economia solidária; e de novos temas, entre os quais: a ética do cuidado, sensibilidades pós-modernas, teorias intercomunicantes e colonialidade27. Na medida em que fizer do seu trabalho investigativo tema de reflexão, sistematizando experiências e buscando o diálogo teórico com interlocutores de diferentes lugares epistêmicos, políticos e culturais, a educação popular poderá consolidar-se como um campo específico, referenciado numa prática com características próprias e, também, desde aí, contribuir para o direcionamento e o fortalecimento da área da educação em geral, bem como para subsidiar pesquisas e práticas em áreas afins.

Referências 1. Brandão CR, organizador. Pesquisa participante. 8a ed. São Paulo: Brasiliense; 1981. 2. Freire P. Pedagogia do oprimido. 9a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1981. 3. Fals Borda O. La investigación acción en convergencias disciplinarias. Lasa Forum [Internet]. 2007 [acesso 2012 Nov 22]; 38(4):17-22. Disponível em: http://lasa. international.pitt.edu/forum/files/vol38/LASAForum-vol38-Issue4.pdf 4. Jara HO. La sistematización de experiencias: práctica y teoria para otros mundos posibles. Costa Rica: CEP, CEAAL, Intermon-Oxfam; 2012. 5. Mejía MR. La educación popular: una construcción colectiva desde el sur y desde abajo. In: Streck DR, Esteban MT, organizadores. Educação popular: lugar de construção social coletiva. Petrópolis: Vozes; 2013. p. 369-98.

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METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS DE PESQUISA E EDUCAÇÃO POPULAR:

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Streck DR. Metodologías participativas de investigación y educación popular: reflexiones sobre criterios de calidad. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):537-47. El presente texto, derivado de la experiencia de investigación del autor y de otras evaluaciones de trabajos de investigación en educación popular, propone la discusión de criterios de calidad y validez de metodologias participativas, las cuales desde su origen en América Latina presentan importantes semejanzas con la educación popular. Son discutidos, a partir de la perspectiva de las metodologias participativas, los seguientes temas: relevancia social, calidad de la descripción y de interpretación, reflexividad colectiva, calidad de la relación entre los sujetos de la investigación y practicabilidad del conocimiento. En la conclusión, se argumenta que la discusión sobre la calidad de la investigación en educación y educación popular puede contribuir para enfrentar el productivismo académico, donde son confundidos criterios de cantidad y calidad, para superar la dicotimización entre productores y consumidores o usuarios de investigación y para fomentar la densidad teórica del área.

Palabras clave: Educación popular. Investigación en educación. Calidad de la investigación. Metodologias participativas. Relevancia social.

Recebido em 16/06/15. Aprovado em 03/11/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0342

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Uma política da narratividade: experimentação e cuidado nos relatos dos redutores de danos de Salvador, Brasil

Rafael Mendonça Dias(a) Eduardo Passos(b) Marco Manso Cerqueira Silva(c)

Dias RM, Passos E, Silva MMC. A politic of narratives: experimentation and care in the reports by agents of harm reduction in Salvador, Brazil. Interface (Botucatu). 2016; 20(58): 549-58.

This paper investigates the politic of narratives featured in field reports conducted by agents in a Harm Reduction Program of Salvador (Brazil) in 2012. The research had a starting point in the field diaries to then analyze which narrative strategies are originated in the daily routine of Harm Reduction (HR) in the context of the Brazilian public health. The exploration of these narrative strategies reveals an unique experience of care with drug users in the streets. This experience also encompasses the care given to the experience of field work and research itself. As a consequence emerges in the narratives of the agents a link between experimentation and care.

Keywords: Harm reduction. Mental health. Narratives. Experimentation. Care.

O presente artigo investiga a política da narratividade vigente no relato das experiências de campo realizadas por redutores de danos de um Programa de Redução de Danos (PRD) de Salvador, Brasil, em 2012. Partimos dos diários de campo dos agentes redutores de danos para analisar quais são as estratégias narrativas engendradas no cotidiano das práticas da RD no campo da saúde pública brasileira. A apreciação das narrativas revela uma singular experiência de cuidado com os usuários de substâncias psicoativas nas ruas da cidade, que se desdobra no cuidado com a própria experiência de campo e de pesquisa. Dessa forma, emerge nas narrativas dos redutores de danos uma articulação entre experimentação e cuidado.

Palavras-chave: Redução de dano. Saúde mental. Narrativas. Experimentação. Cuidado.

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(a) Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense/ Volta Redonda. Volta Redonda, RJ, Brasil. Rua Desembargador Ellis Hermydio Figueira, Aterrado. Volta Redonda, RJ, Brasil. 27213-145. rafaeldias@id.uff.br (b) Instituto de Psicologia, UFF/Niterói. Niterói, RJ, Brasil. e.passos@ superig.com.br (c) Aliança de Redução de Danos, Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia (FAMEB/ UFBA). Salvador, BA, Brasil. marcomansso@ gmail.com

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Introdução Os diários de campo constituem uma ferramenta de registro e análise do trabalho dos agentes redutores de danos. Os relatos aqui apresentados expressam o trabalho de campo desenvolvido pela Aliança de Redução de Danos – Fátima Cavalcanti (ARD-FC), Serviço de Extensão Permanente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em parceria com o Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas (CAPSad) Gregório de Matos. Os relatos dos redutores de danos, disponibilizados pela ARD-FC, documentam as experiências vividas durante o trabalho realizado no centro histórico de Salvador. Nesse artigo, analisamos dez diários de campo escritos pelos redutores de danos no ano de 2012. A análise do material foi feita tendo como foco o mapeamento de uma política da narratividade construída na experiência de cuidado com as pessoas que fazem uso de drogas. Na ARD-FC, os relatos de campo são apresentados nas práticas de supervisão institucional. Essas narrativas, de modo mais amplo, registram a memória das estratégias de Redução de Danos (RD) no Brasil. A metodologia da RD influenciou experiências participativas com a juventude de bairros populares com elevados índices de homicídios e violência policial em Salvador1 e no Rio de Janeiro2. A história da RD no Brasil passou por três períodos: o primeiro iniciou-se em 1989, em Santos; o segundo em 1994, por meio do Programa Nacional (PN) - DST/aids; e o terceiro em 2003, quando a RD surgiu, como um método clínico-político e um paradigma da Política do Ministério da Saúde de Atenção Integral para Usuários de Álcool e outras Drogas3. As primeiras práticas da RD no Brasil estão ligadas às experimentações das políticas públicas de saúde realizadas na cidade de Santos, em 1989, baseadas nas diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), e à adoção de práticas de prevenção entre usuários de drogas injetáveis (UDI) daquela cidade. Em 1994, o “Projeto Drogas” da PN-DST/aids foi realizado no Brasil com o apoio da Organização das Nações Unidas. Suas principais iniciativas foram os Programas de Redução de Danos (PRDs), implantados, inicialmente, em dez estados brasileiros. Em 2003, com a Política de Atenção Integral para Usuários de Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, a RD passou a se consolidar como o paradigma das políticas públicas para álcool e outras drogas no Brasil, em contraste com o paradigma da “guerra às drogas”4. Em 2005, são editadas as Portarias (nº 1.028 e 1.059) do MS que tratam da regulamentação da RD no SUS e o seu incentivo no Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras drogas (CAPSad)5. Inicia-se, então, uma maior articulação com os dispositivos de saúde mental e a atenção básica. Em 2006, a Lei nº 11.343 instituiu um novo marco legal para as políticas sobre drogas no país, mas não alterou o sistema proibicionista6. A RD vai paulatinamente deixando de ser uma medida exclusivamente de prevenção às DST/aids e torna-se um paradigma para a política de drogas, que teve o seu campo de intervenção ampliado devido à participação direta das pessoas que fazem uso de drogas nas práticas de gestão e atenção7. Atualmente, o paradigma da RD se apresenta como uma concepção do cuidado integral8. Essa ampliação segue hoje com a articulação das estratégias de RD com outros dispositivos. A consolidação da RD como paradigma da política de drogas é inseparável da ampliação da perspectiva de cuidado, com a participação ativa das pessoas que fazem uso de drogas e dos seus processos de subjetivação. Os modos de gestão e atenção são indissociáveis para o paradigma da RD. A função de gestão é concebida em uma visão de compartilhamento. Por outro lado, a prática de cuidado é entendida e experimentada a partir da lateralidade da experiência dos sujeitos implicados no processo de produção de saúde, ampliando o sentido da clínica9. Tal prática desenvolve um “olhar de dentro” da experiência com as drogas10 que se coloca ao lado do cuidado, frente ao cenário deflagrado pela guerra às drogas e sua linha totalitária. A gestão do cuidado11,12 e a cogestão dos coletivos13 são propostas com que o paradigma da RD filia-se para romper com as práticas de saúde baseadas na gestão dos riscos14. A RD, na sua prática clínico-política, vai além da racionalidade epidemiológica e contrasta com os modos de governo 550

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do corpo e das populações “vulneráveis” e sua gestão administrativa, uma tecnologia política que Foucault15 denominou de biopoder. Para a discussão que realizamos neste artigo, além dos diários dos redutores de danos, utilizaremos o diário de campo de pesquisa realizada por nós em 2012.

Narrativas de campo como cartografias da experiência René Lourau16 considera que os diários de pesquisa revelam aquilo que está “fora do texto” das publicações científicas, o que é considerado marginal na experiência acadêmica. Esse “fora do texto” expõe a implicação do pesquisador, pois “falam sobre a vivência de campo cotidiana e mostram como, realmente, se faz pesquisa”16 (p. 74). Para Lourau17, a análise das implicações do pesquisador com o campo é um caminho fértil para investigar os pertencimentos e as referências institucionais que comparecem na experiência de pesquisa. Tal análise retoma aquilo que é experimentado e comporta certa dose de perigo na travessia de determinado território existencial18. Os relatos de campo aqui analisados apresentam uma cartografia das práticas de cuidado com usuários de drogas, nas quais estão imbricadas a produção de saúde e a produção de subjetividade. Escóssia e Tedesco19 afirmam que o método da cartografia visa analisar o plano coletivo das forças envolvido na dimensão processual da realidade, ampliando a perspectiva de análise. O método cartográfico pressupõe que o ato de investigar intervém sobre a realidade investigada na forma da pesquisa-intervenção, e requer a habitação de um território para traçar um plano comum, que coloca lado a lado aquele que conhece e aquele que é conhecido20,21. Os modos de narrar a experiência na pesquisa em saúde têm implicações políticas, uma vez que definem perspectivas sobre o mundo e si mesmo22. Por outro lado, o problema da narratividade envolve tanto dimensão política quanto estética, já que as formas de intervenção nos sentidos da realidade pressupõem o que o filósofo Jacques Rancière23 (p. 15) definiu como partilha do sensível, isto é, “o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas”. É a partir desse comum em partilha que as experiências política e estética se articulam. A experiência narrativa expressa um modo de tomar parte nas relações do campo analisado, onde se atravessam políticas de saúde, políticas de drogas e políticas da subjetividade. As pesquisas qualitativas em saúde têm se interessado na utilização de narrativas como ferramenta metodológica24 e que servem para acessar a experiência compartilhada25,26. A análise de narrativas e a produção de dispositivos coletivos são ferramentas cada vez mais presentes no campo da saúde mental para lidar com os desafios atuais da atenção psicossocial. Esse é o caso, por exemplo, da pesquisa-intervenção em saúde mental realizada com a diretriz da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) a partir da experiência do uso de psicofármacos nos CAPS. A produção de narrativas dos usuários de psicofármacos e a gestão compartilhada com familiares, trabalhadores de saúde e gestores propiciaram a oportunidade, mais ampla, de avaliar as práticas de cuidado em saúde mental27-29. Nos diários de campo dos redutores de danos podemos ver, também, que a prática de cuidado emerge na experiência narrativa que Walter Benjamim30 designa como a dignidade de contar sua vida de maneira inteira.

O centro histórico, a rua e o CAPSad As narrativas analisadas evidenciam a articulação do trabalho de campo e práticas de cuidado no centro histórico da cidade31. A ação no território da ARD-FC está integrado ao CAPSad Gregório de Matos e sua área de atuação. Em 26 de julho de 2012, o redutor de danos descreve o contato com a comunidade tradicional da Gamboa, que fica ao lado do Solar do Unhão e perto dos prédios de classe média do Campo Grande, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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centro de Salvador. Ele tece a cartografia da cidade sob a ótica da experiência de cuidado: “A comunidade da Gamboa, muito conhecida pelo seu local privilegiado em frente à baía de Todos os Santos, é habitada em grande maioria por pessoas sem acesso adequado à moradia, lazer e cultura”. O narrador é sensível às desigualdades sociais que permeiam e constituem o mapa da cidade, se deparando com uma ação da polícia civil no local: “Com suas armas em punho, os quatro policias civis desceram a Gamboa à procura de mais uma vítima para se colocar na conta do Estado. Percebemos o clima de insatisfação por parte de alguns catadores que trabalham na cooperativa de recicláveis e decidimos então fazer um breve roteiro e voltarmos para a faculdade de medicina, já que o campo hoje se encontrava muito tenso devido a tais visitas extras”.

O relato é irônico ao discutir a presença da polícia e a possibilidade de haver mais uma vítima do Estado; a ação da polícia é uma visita esperada que constrange as ações de cuidado no campo. Na chegada da polícia, há a saída do redutor de danos, havendo uma incompatibilidade entre as duas ações. O cuidar e o controlar se fazem em direções opostas, a presença de um impedindo a do outro. O mapa da cidade se compõe das linhas duras dos autoritarismos e das linhas que fogem por meio de estratégias de resistências, muitas vezes, perigosas. O redutor está em meio a esta cartografia enquanto a traça. No relato do dia 31 de julho de 2012, outro redutor de danos começa avaliando a situação do centro histórico de Salvador, perto da rua 28 de Setembro. “As ruas do centro histórico estão bastante deterioradas por conta do descaso da ordem pública, neste momento o Pelourinho está em reforma e os grandes casarões antigos estão repletos de trabalhadores da construção civil. Seus prédios e monumentos têm paredes nuas e rachadas e suas ruas estão repletas de entulho e lama”.

O redutor de danos nos pinta uma cena em cores fortes. A paisagem é apresentada de maneira a compartilhar com o leitor sua impressão ao habitar o território. O relato segue descrevendo um contato com uma pessoa atendida que, pela singularidade do seu caso, valeria ter sua história projetada nas telas de cinema. O personagem não se enquadra em um estereótipo do usuário de drogas. A figura estereotipada do “crakudo”(d) não corresponde à narrativa que acompanha a singularidade de uma vida. Sim, há uma vida na experiência do usuário de crack. “Também neste dia encontramos um usuário de crack muito engraçado [...], que fuma apenas 1 ou 2 pedras por dia, durante a noite, para não ficar viciado, falou-nos de como utilizava o crack antes de fazer relações sexuais, mas que, porém, preferia fumar maconha, inclusive nos contou suas desventuras com o uso de cocaína, algo que valeria uma produção cinematográfica com certeza”.

Ocorre um contato dos redutores de danos com operários da construção civil que trabalham na reforma do centro histórico, na região do Gravatá. O relato apresenta o cenário:

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No Rio de Janeiro, os usuários de crack são chamados, de modo pejorativo, de “crackudos”. Em Salvador, são chamados de “sacizeiros”, em referência ao tradicional personagem do Saci Pererê e o seu uso constante do cachimbo. Já em São Paulo são os “noias”, referência aos efeitos paranoicos dessa substância psicoativa. (d)


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“Passamos pela Rua 28 [de Setembro], como de costume entregamos muitos preservativos aos trabalhadores da construção civil que estão trabalhando na reforma dos casarões. Este tem sido um público bastante receptivo ao nosso trabalho; chegaram a nos convidar para falarmos sobre o uso de drogas com todos os colegas [...]”.

Nessa rua, existe uma cena de uso de crack, e os operários da reforma trabalham no mesmo espaço. O narrador anota: “[...] a relação dos trabalhadores com os usuários de crack parece ser amistosa”. A paisagem ganha a complexidade própria da cidade, onde se distinguem sem se separar personagens de histórias distintas. O operário e o usuário de crack podem ficar lado a lado porque a vida pública não é homogênea. O redutor de danos toma a complexidade da cidade como matéria de seu trabalho. No lugar de julgar, acolhe esta diferença e negocia com ela. Certamente, nem todos são igualmente diferentes, pois a presença da força policial confere à cidade um tom grave e judicativo. Talvez não seja possível ser diferente, mas coloca-se, para a RD, o desafio de pensar as políticas públicas de saúde negociando com as diferentes experiências. Os agentes redutores de danos mostram, no relato, a mobilidade dos usuários de crack atendidos pelo projeto, de acordo com a presença da polícia militar no território: “O número de usuários de crack tem reduzido bastante; nas últimas semanas não têm passado de 05, o oposto do Gravatá que alterna bastante. Temos percebido que, de três visitas que fizemos, em duas havia presença de PM nas adjacências e em uma outra não havia nenhum policial. Neste dia, o número de usuários fazendo uso nas ruas subiu consideravelmente, além de presenciarmos cenas de tráfico intenso”.

Os matizes da paisagem complexa da cidade não contrastam apenas usuários e força policial. Na verdade, parte da sociedade se sente representada na ação repressora da polícia. O uso de drogas tem uma representação social negativa e o usuário, muitas vezes, se vê frente à avaliação do outro, necessitando de alguém que facilite a mediação. A narrativa do redutor descreve ainda um acontecimento no centro histórico de Salvador: o encontro com uma pessoa que recebe cuidados no Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras drogas (CAPSad) Gregório de Matos e seu pedido para que eles interviessem junto a seu chefe e colegas no trabalho, que não o compreendiam. “Hoje, quando nos aproximávamos do Gravatá, fomos abordados por um usuário do CAPS que pediu nossa ajuda para conversarmos com seu chefe no seu trabalho. Ele parecia estar bastante emocionado por se sentir não compreendido por seus colegas de trabalho. Apesar de estar de licença do trabalho, ele vem visitando o local frequentemente. Chorou várias vezes, ao falar do seu internamento em uma CT (comunidade terapêutica)[…]”.

No momento do relato, o usuário está sendo acompanhado pelo CAPS, mas já passou por internação em comunidades terapêuticas. Os redutores, de acordo com a solicitação, se deslocam até o trabalho dele. O narrador observa: “Percebi um sofrimento do usuário ao se declarar um ‘dependente’ e ‘doente’ e dizia não ter culpa de estar assim”. No contato do redutor de danos com o CAPSad, verificamos a importância dessa função de mediação, uma vez que o cuidado ganha aqui o sentido de negociação e manejo. O redutor se posiciona entre realidades, trabalhando pela ampliação da abertura comunicacional entre o usuário de drogas e outros setores da sociedade, aí incluídos os próprios trabalhadores de saúde, como é o caso dos profissionais do CAPSad. É indispensável, ao redutor, colocar em questão as crenças estabelecidas, não só nos trabalhadores de saúde como, também, nos usuários de drogas. O paradigma biomédico aparece no discurso do usuário de droga que se considera um “dependente” e “doente”. No entanto, na experiência de cuidado, se possibilita a criação de outros sentidos para o sofrimento. Quando o redutor narra a situação vivida, ele sublinha os termos empregados para descrever a experiência com as drogas, estranhando o sentido naturalizado. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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No mesmo cenário do centro histórico de Salvador, é exposto o trabalho de campo na Rua 28 de Setembro e no Gravatá. “Foi um dia de campo dos bons”. Os redutores de danos notam o aumento da demanda por preservativos na sexta-feira. O relato enfatiza que o movimento estava intenso e que muitas pessoas paravam para ouvir o que os redutores tinham para dizer. Na narrativa desse trabalho de campo, lemos a conversa que o redutor teve com uma pessoa em situação de rua. Ele comenta sobre esse encontro: “[...] o que mais me marcou nesse campo foi a longa conversa que eu tive com [...] um morador de rua e usuário de crack e álcool, que me contou sua história de vida. Ele descreveu as coisas que determinaram a situação atual dele; falou muito de um filho que cuidou com muito esforço até os seis anos de idade e depois, em decorrência de um relacionamento problemático e já sem o apoio da família, terminou por tornar-se usuário de crack e posteriormente morador de rua. Em vários momentos do diálogo ele se emocionou, chorou bastante; me vi num papel importante de acolher e fazer uma escuta que proporcionasse a catarse dele”.

Esse relato, assim como aparece em outros, indica a possibilidade de o usuário narrar sua própria experiência. O redutor descreve seu estímulo à narrativa do usuário e, neste exponencial narrativo, deparamo-nos com uma direção do cuidado: cuidamos quando damos sentido à narrativa do outro, a legitimamos quando damos ouvidos a ela. A experiência do cuidado dá passagem a histórias que bifurcam, ganhando consistência vital onde não parecia haver saída. Em alguns casos, há o perigo de tudo desabar, como podia acontecer com os casarios do Pelourinho. A descrição do cenário de restauração do centro histórico pelos redutores de danos nos apresenta a possibilidade de restaurar, também, relações de cuidado, onde as drogas aparecem como um componente a mais nessa cartografia. No curso desse contato, surge a descrença do usuário no tratamento no CAPSad. “Ao longo da conversa eu tentei por vezes inspirá-lo a vir ao CAPSad, iniciar um tratamento e um acompanhamento, já que ele relatou ter interesse em parar de usar, porém ele sempre se mostrava descrente no tratamento devido à sua condição de vida”. O relato marca a gratidão que foi gerada no encontro e as estratégias de vida e trabalho. A princípio, é o usuário que está grato frente à disponibilidade do trabalhador de saúde: “Ele em diversos momentos mostrou-se muito grato pela atenção e pela humildade em estar lá com ele”. Mas a gratidão é, por definição, recíproca, já que o sucesso na prática de cuidado afeta a todos implicados na produção de saúde. Afetar e ser afetado são faces de uma mesma experiência entre redutor e usuários de drogas. O redutor de danos termina sua narrativa em primeira pessoa, destacando sua implicação e a “vontade imensa” que surgiu nesse campo de experiências com o outro. “Eu fiquei com uma vontade imensa de ajudar este homem. Penso que tudo o que eu mais quero nesse campo é reencontrar [...] e despertar nele interesse em iniciar um tratamento no CAPSad, se fosse possível eu mesmo gostaria de fazer acompanhamento psicológico dele”.

A possibilidade de o redutor de danos fazer o acompanhamento psicológico no CAPSad indica a consistência de uma linha de cuidado que abrange o território e os diferentes dispositivos. O relato de 06 de novembro de 2012 aponta um acontecimento que envolve a ação de um policial na Rua 28 de Setembro. O policial, tentando estacionar, joga o carro em cima de uma redutora de danos e da pessoa que ela atendia. Diante da situação, o narrador reflete sobre sua impotência e silêncio diante da violência de um agente do Estado. “Estávamos na 28 [de Setembro] quando um fato retirou minha atenção, e dos meus companheiros, onde um policial, na ânsia neurótica de estacionar seu carro no passeio, não teve trato algum com nossa colega redutora e a uma mulher que recebia um atendimento. Não posso negar que tive que controlar um ímpeto raivoso para não entrar na ação de protesto, 554

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pois a ele, policial, foi dado pelo Estado o poder do uso da violência, e diante disso meu único recurso de protesto foi o silêncio. As pedras falam, eu me calo”.

A violência policial autorizada pelo Estado tem como contrapartida o protesto silencioso. O silêncio, no entanto, não pactua com a violência que vira material de análise na narrativa de uma situaçãolimite. O redutor se cala, mas entende que as pedras do calçamento da cidade guardam a narrativa da violência. Há uma memória política da cidade; há uma linguagem em surdina das ruas, que o redutor aprende a ouvir. No mesmo relato, o redutor de danos reflete sobre sua posição no campo e faz análise da relação com o “outro a quem pretendemos cuidar”. “Desde já, pude me deparar com um sentimento comum no trabalho com o território que o Redutor precisa lidar, a saber: a impotência. Trabalhamos com nossos limites, no limiar do desejo do outro a que pretendemos cuidar, formar vínculo, mobilizar para a própria condição. Lidamos com o nosso próprio desejo de implicação, de transformação, por isso, ao que já me parece, resiliência às frustrações é essencial”.

A prática do cuidado é uma experiência-limite onde está em jogo a violência do Estado. No limiar das forças, com o corpo esgotado pela exigência do trabalho nas ruas, o encontro com a violência faz o redutor de danos colocar em xeque a possibilidade de intervenção sobre a realidade. Seu trabalho se realiza no limite da vida e da morte, lá onde experimenta sua alteridade como agente de saúde e a alteridade daquele que demanda cuidado. As narrativas dão passagem para as histórias de vida no encontro com o outro no contexto da rua: “Nesse dia, houve também escuta de histórias, inclusive de um senhor que se encontrava catando lixo em um balde. Ele contou a história de todos os seus filhos e netos, sua luta diária pela sobrevivência, revelando muita honestidade de um homem trabalhador, sua fala aparentava um homem sedento de escuta, pois não parava de falar por um bom tempo”.

A experiência de cuidado abre a possibilidade de escuta das histórias simples que aparecem no caminho. O paradigma da RD se concretiza nessas práticas de cuidado em que os elementos éticos, estéticos e políticos ganham consistência crítica a partir da práxis. Multiplicidade de contatos que surgem no campo e os desafios em sustentar a posição ética do cuidado e da escuta. A história da cidade se enlaça com as histórias contadas pelos seus habitantes, pessoas simples que narram suas existências singulares. Outro narrador analisa as transformações operadas pela mudança dos moradores de Pilar, localizada no centro histórico de Salvador. Os moradores serão removidos dessa localidade para um conjunto habitacional. Ele escreve: “O local estava passando por um processo onde os moradores estavam se mudando para o novo conjunto habitacional instalado na localidade. Muitos barracos abandonados e destruídos e outros em processo de remoção. Por conta desse evento muitas pessoas estavam na rua e dentro do próprio conjunto fazendo justamente a transição de morada”.

Também observa a condição de insalubridade do lugar, com o lixo jogado no chão e a degradação por que passa todo o ambiente. Ele relata: “A ladeira pela qual iniciamos o campo é bastante insalubre. Muito lixo, coisas jogadas no chão [...]”. Ele vai compondo um quadro do Pilar com seu “terreno acidentado” e os “casarões que estão por cair”. A circulação das pessoas nessa localidade não é a mais adequada, mas, muitos deles, acostumados com as condições, já desenvolveram suas estratégias para enfrentar as adversidades: “Para as pessoas, as condições de circulação não são as melhores. Há momentos na ladeira que podem nos fazer escorregar, mas os moradores já têm as manhas.” As “manhas” vêm da experiência em transitar por COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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aquele território. É, ao mesmo tempo, uma malícia, técnica e esperteza adquiridas. Para andar nesse terreno, é preciso saber onde se pisa. Os relatos aqui apresentados contam um pouco da trajetória da RD no Brasil. Mesmo que a paisagem esteja restrita à cidade de Salvador, podemos ver as linhas de força que constituíram a RD e que fizeram que ela ganhasse o estatuto de paradigma das políticas públicas sobre álcool e outras drogas. As cenas descritas confirmam o objetivo do redutor de danos no trabalho de campo: entender o contexto em que as drogas se inserem ao invés de focar em uma causalidade linear entre o sujeito e a droga. A metodologia cartográfica, com o recurso dos diários de campo, ajuda a perceber as forças que se fazem presentes na prática de campo, aí incluídas as implicações do próprio redutor, que produz e colhe narrativas. O diário de campo mapeia o campo de intervenção e serve de análise da experiência.

Conclusão

A partir da apreciação dos relatos de campo, entendemos que o paradigma da RD orienta uma experiência de cuidado que evidencia a inseparabilidade entre as práticas de atenção e as de gestão do processo de trabalho na rede de dispositivos de saúde. O cuidado do outro, o cuidado de si e da cidade se apresentam, também, como faces indissociáveis do trabalho com pessoas que fazem uso abusivo de drogas. A prática do cuidado é, dessa maneira, uma experimentação clínico-política que resiste ao ideal preventivo baseado nas noções de periculosidade e de população de risco. No lugar de tomar o usuário de drogas como um perigo e risco social, as práticas de RD descritas constroem um plano de contato com o outro, acolhendo-o em sua diversidade, para avaliar e negociar com ele a redução dos danos psicossociais que estão associados ao uso abusivo de drogas. Por isso, estamos falando de um processo de produção compartilhada da experiência e de cogestão dos coletivos13. As narrativas dos redutores de danos localizam-se nesse espaço intersticial entre a experiência de cuidado de si e o cuidado com a experiência dos usuários de substâncias psicoativas no contexto da rua. Tal complexidade da prática do cuidado articula a proposta da RD com os movimentos sociais que dão consistência a esse campo de problematização do uso e abuso das drogas. O cuidado da experiência se define como abertura às produções subjetivas singulares. Valoriza-se a experiência dos usuários de drogas, seus saberes e práticas, e legitima-se a experimentação dos agentes redutores de danos como caminho ético para a prática de cuidado.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Espinheira G, organizador. Sociedade do medo: teoria e método da análise sociológica em bairros populares de Salvador: juventude, pobreza e violência. Salvador: Edufba; 2008. 2. Rodriguez A. A rede Rotas: desafios e possibilidades do trabalho em rede. In: Fernandes F, organizador. Redes de valorização da vida. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas; 2009.

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Dias RM, Passos E, Silva MMC. Una política de la narratividad: experimentación y cuidado en relatos de reductores de daños de Salvador, Brasil. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):549-58. En este artículo se investiga la política de narratividad vigente en los relatos de campo llevado a cabo por trabajadores de un Programa de Reducción de Daños (PRD) de Salvador en el año 2012. A partir de los diarios de campo, se analizan cuáles son las estrategias narrativas que se engendraron en la práctica diaria de la RD en el campo de la salud pública en Brasil. La evaluación de las narraciones revela una singular experiencia de cuidado con los usuarios de sustâncias psicoactivas en las calles de la ciudad, que se reproduce en el cuidado de su propia experiencia de campo y de investigación. De esta manera surge en las narrativas de reductores de daños una articulación entre la experimentación y el cuidado.

Palabras clave: Reducción de daños. Salud mental. Narrativas. Experimentación. Cuidado.

Recebido em 11/06/15. Aprovado em 25/10/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0300

artigos

Discursos práticos sobre ocorrências, processos decisórios e decorrências de Conferências Municipais de Saúde Alcides Silva de Miranda(a) Ana Ester Maria Melo Moreira(b) Caio Garcia Correia Sá Cavalcanti(c) Fernanda Machado Bezerra(d) Jéssica da Costa de Oliveira(e) Regiane Rezende(f)

Miranda AS, Moreira AEMM, Cavalcanti CGCS, Bezerra FM, Oliveira JC, Rezende R. Practical discourses about events, decisions processes and effects of Health municipal conferences in Brazil. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):559-71.

What can be elicited from the discourse analysis of Municipal Health Conferences attendees regarding these meetings, its decision-making processes and results? This is a multiple case study of events that took place in six towns in the State of Ceará (Northeast of Brazil) in 2007, based on documental review, interviews and focus groups, with a hermeneutics and dialectic analysis. Throughout these meetings, there are evidences of the voice and the advocacy of groups with specific requests, under a landscape of competitive dialogue and the search of political mediations pursuing symbolical effectiveness. From the decision-making process point of view, the more relevant elements are the statements concerning the negligence of municipal governments on incorporating these resolutions on their political agenda and its corresponding institutional implantation strategies, as well as the absence of supervision by the Municipal Health Councils.

Keywords: Health Conferences. Health Councils. Brazilian National Health System. Citizen participation.

Que significados podem ser evidenciados em discursos de participantes de Conferências Municipais de Saúde acerca de tais eventos, seus processos decisórios e decorrências? Para analisar tais discursos práticos, referidos a eventos ocorridos em seis municípios do Ceará em 2007, realizou-se estudo de casos múltiplos, a partir de análise documental, entrevistas e grupos focais, com análise hermenêutica e dialética. Sobre as ocorrências dos eventos, evidenciam-se as oportunidades de expressão e mobilização de alguns grupos de interesses por demandas específicas, em cenários de interlocução competitiva e busca de mediações políticas visando eficácia simbólica eventual. Dentre as decorrências a partir das decisões deliberadas, destacam-se discursos sobre a negligência de governos municipais na incorporação dessas demandas em suas agendas políticas e na implantação de estratégias institucionais correspondentes. Como, também, a ausência de monitoramento a fim por parte dos respectivos Conselhos Municipais de Saúde.

Palavras-chave: Conferências de Saúde. Conselhos de Saúde. Sistema Único de Saúde. Participação cidadã.

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Departamento de Apoio e Orientação Profissional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Anexo I da Saúde, UFRGS. Rua Ramiro Barcelos, 277, sala 155. Porto Alegre, RS, Brasil. 90035-007. alcides.miranda@ufrgs.br (b) Departamento e Curso de Psicologia, Universidade Federal do Piauí. Parnaíba, PI, Brasil. estermelouniversidade@ gmail.com (c) Direção de Educação Profissional em Saúde, Escola de Saúde Pública do Ceará. Fortaleza, CE, Brasil. caio.cavalcanti@ esp.ce.gov.br (d,e) Departamento de Saúde Comunitária, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE, Brasil. fernandamb1901@ gmail.com; jessica.kinha.oliveira@ hotmail.com (f) Unidade Técnica de Determinantes Sociais da Saúde, Riscos para a Saúde, DCNT e Saúde Mental, OPAS/OMS. Brasília, DF, Brasil. rezenderegiane@ yahoo.com.br (a)

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Introdução Em estudos e publicações recentes, têm sido cada vez mais proeminentes os enfoques que tratam da participação e controle de representações da sociedade civil e grupos de interesses sobre a formulação, a decisão e a implementação de políticas e estratégias governamentais de Saúde. Muitos autores têm discutido sobre as influências e decorrências da institucionalização de espaços e processos de gestão participativa e de decisões para o controle público/social sobre as políticas governamentais de saúde. Tal discussão se insere num contexto mais abrangente, que trata de questões relacionadas com as reformas contemporâneas de Estado e os modos de participação social, governabilidade e governança. Considerados os estudos e publicações afins, observa-se ênfase em assuntos que versam sobre: - análises de normas e marcos regulatórios para a participação e controle público/social; - relatos de experiências de gestão institucional participativa a partir de instâncias e processos decisórios correlatos; - descrições sobre grupos e dinâmicas de representação de interesses no setor governamental de Saúde; - análises sobre tipos de vocalização e mobilização por demandas de grupos específicos; - descrições sobre os modos e meios de controle social e de fiscalização sobre a proatividade e as ações governamentais afins. Tendo em vista as publicações internacionais mais relevantes sobre essa temática, predominam enfoques sobre as modalidades e impactos de participação referida como “comunitária”, além de processos de responsabilização e controle da sociedade sobre sistemas e serviços de saúde de âmbito local1-3. Alguns autores já realizaram revisões sistemáticas de estudos sobre a participação social em sistemas e políticas governamentais de saúde. Por exemplo, Evans et al.4 revisaram cinco mil e quatrocentas publicações sobre o impacto de abordagens participativas em unidades de saúde do Reino Unido, tendo considerado somente oito estudos mais relevantes, a partir de critérios preestabelecidos para a avaliação metodológica de qualidade. O que os levou a concluir que existe pouca evidência de estudos empíricos acerca do impacto da participação e controle da sociedade sobre as políticas governamentais de saúde naquele país. No Brasil, as instâncias de controle social já estão institucionalizadas há quase duas décadas. Desde então, muitos estudos buscam evidenciar a importância e relevância de tais instâncias no processo de intermediação de interesses políticos, técnicos e administrativos para as representações da sociedade civil5-8. Têm sido abundantes as publicações sobre a participação e controle de representações da sociedade civil, notadamente a partir de Conselhos de Saúde, em políticas, sistemas, serviços e ações governamentais de Saúde. Nos estudos brasileiros sobre a participação popular e as instâncias de controle social em Saúde, predominam abordagens e análises pautadas em princípios e atributos de representação social e caráter de representatividade sob a égide democrática. Embora existam análises teóricas mais abrangentes9,10, predominam publicações sobre relatos de casos e análises sobre a atuação de Conselhos de Saúde municipais, estaduais e o nacional6,10-12. Nota-se que têm sido escassas as publicações sobre estudos brasileiros que analisam a proatividade governamental em função das deliberações oriundas de instâncias de controle social no setor de Saúde. Isso ocorre em termos da observância, da incorporação, da implantação e da implementação de políticas e estratégias governamentais coerentes e correspondentes com as diretrizes estabelecidas nas deliberações de Conferências e Conselhos de Saúde. Apesar da abundância de estudos e publicações sobre os Conselhos de Saúde, ainda são escassos os estudos e publicações que tratam especificamente sobre Conferências de Saúde5,13,14, instâncias formais de Controle Social de ocorrência periódica cujos propósitos normativos consistem em realizar avaliações sobre situações de saúde, além de formular, propor e deliberar diretrizes para as políticas públicas do setor. 560

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Nesse recorte particular, sobre Conferências de Saúde, pode ser enfatizado um estudo feito no estado de Mato Grosso, em que se analisaram diretrizes e demandas deliberadas em municípios14. No exemplo referido, utilizou-se estudo de casos múltiplos, com seleção de municípios por região e porte populacional, tendo sido realizadas entrevistas com participantes dos eventos e análise documental correspondente. A partir da análise do estudo, os autores evidenciam que as Conferências Municipais eram consideradas importantes pelos participantes, notadamente por favorecerem a explicitação das demandas locais. Entretanto, constatam o predomínio de uma percepção sobre a restrita influência de tais conferências na definição de prioridades para as respectivas políticas governamentais. Considerada a exiguidade de estudos empíricos específicos sobre Conferências de Saúde no Brasil, observam-se lacunas em termos de substratos e subsídios para análises afins. No estudo ora apresentado, o substrato primordial para a análise de ocorrências e decorrências de Conferências Municipais de Saúde são discursos práticos proferidos por alguns participantes selecionados. Segundo Jürgen Habemas, discursos práticos são: proferimentos de caráter mais regulativo, avaliações sobre prescrições, tensões normativas e fatos constatados em termos da aplicabilidade e eficácia de determinadas normas (idealizações, situações ideais, regras, diretrizes, procedimentos correlatos, etc.) no mundo real, nas relações cotidianas15. Tais discursos práticos podem evidenciar contradições e/ou convergências com validações consensuais e modos de legitimação para determinadas normas problematizadas16. Convém realçar que, muitas vezes, a pretensão discursiva de aplicabilidade e eficácia para determinadas normas também pode ser evidenciada por interações mais dramatúrgicas, sem maiores decorrências efetivas. Nesses casos, os discursos práticos limitam-se aos “jogos de cena”, notadamente em processos decisórios, em que prepondera o exercício de competências dramatúrgicas em busca de eficácia simbólica circunstancial. No caso dessa abordagem, a ideia de eficácia simbólica serve para caracterizar interações mais dramatúrgicas, limitadas aos processos decisórios eventuais, contudo, sem maiores decorrências práticas em temos de aplicabilidade e efetividade política. Nos termos específicos desse estudo, as referências e tensões normativas estão estabelecidas pelo que se define ou se prescreve idealmente para a realização de Conferências Municipais de Saúde; e, também, pelo que se prescreve a partir das decisões deliberadas nessas instâncias, estabelecidas como diretrizes estratégicas para as políticas governamentais de saúde. Em perspectiva dialética, os discursos práticos de representantes de grupos de interesses (singulares e plurais, particulares e gerais) implicados diretamente em processos decisórios e deliberações formais de tal natureza e caráter podem denotar contradições, tensionamentos, mediações e arranjos sintéticos possíveis; podem auxiliar no entendimento acerca da constituição de uma cultura de participação formal e de representação de interesses no campo da Saúde. Eis o foco e propósito dessa publicação, com a pretensão de que possa ter alguma utilidade para um melhor conhecimento acerca das Conferências de Saúde no Brasil, seu aprimoramento organizativo e maior efetividade.

Aspectos metodológicos Realizou-se um estudo de casos múltiplos com níveis de análise imbricados17, de enfoque mais qualitativo e com análise hermenêutica e dialética, a partir de proferimentos discursivos provenientes de análise documental, entrevistas e grupo focal. Como requisito primordial para a definição da amostra intencional, buscaram-se municípios localizados nas três Macrorregiões de Saúde do estado do Ceará e com a ocorrência de Conferências Municipais de Saúde no ano de 2007. A amostragem intencional visou uma diversidade de condições e situações a partir de alguns indicadores demográficos, socioeconômicos e epidemiológicos. A seleção intencional de municípios não se amparou em premissa ou hipótese de que quaisquer das condições consideradas implicassem em interferência ou influência específicas sobre os casos-eventos estudados, mas, tão somente, na intenção de buscar a diversificação de contextos onde os eventos ocorreram. Assim, definiram-se seis casos-eventos como unidades de análise, correspondentes às Conferências ocorridas em 2007 em três Macrorregiões de Saúde: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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- Macrorregião do Cariri: Brejo Santo e Baixio; - Macrorregião de Fortaleza: Fortaleza e Tauá; - Macrorregião de Sobral: Barroquinha e Sobral. Para o processamento e análise documental, consideraram-se os relatórios finais das seis Conferências Municipais de Saúde listadas e Relatórios Anuais de Gestão em Saúde dos respectivos municípios (período 2004-2009). Para a consecução de entrevistas com informantes-chave, realizou-se, inicialmente, o treinamento dos entrevistadores. Em seguida, ocorreram as primeiras visitas aos municípios selecionados, com identificação e seleção inicial de informantes e indicação dos demais (técnica “bola de neve”). Como critério de inclusão para os informantes, definiu-se a participação efetiva deles nos eventos-casos. Além disso, adotou-se o critério de diversidade dos segmentos de representação nas Conferências de Saúde: usuários, profissionais, prestadores de serviços e dirigentes governamentais. Para a definição do limite de entrevistas individuais, levaram-se em conta os critérios de exaustividade e recorrência dos conteúdos discursivos analisados. No total, foram realizadas 32 entrevistas com distintos informantes dos municípios selecionados. Após a análise inicial de entrevistas, constatou-se a necessidade de maior ênfase em enfoques discursivos de participantes não vinculados a Conselhos Municipais de Saúde (conselheiros) e governos municipais (dirigentes). Para a obtenção de discursos específicos desse perfil de participantes, em perspectiva mais dialógica, optou-se pela técnica de grupo focal, realizando-se duas sessões de grupo focal, com a participação de onze convidados oriundos dos municípios selecionados (exceto Brejo Santo). Tanto as entrevistas individuais como as sessões de grupos focais foram gravadas e transcritas literalmente. O material escrito, constituído pela análise documental e a transcrição das gravações, foi processado e analisado com o auxílio dos programas Logos, para categorização, e Xmind, para montagem de redes de significados. Para a categorização temática do material transcrito, adaptou-se uma técnica auxiliar referida no método de Análise de Conteúdo, do tipo “categorial e temático”18. Em seguida, procedeu-se com a análise intertextual dos discursos práticos, com a formulação de categorias de síntese a partir de analogias e/ou contradições identificadas. Para o tratamento de análise hermenêutica e dialética, em perspectiva de sentido e síntese, realizouse o percurso de logística de integração analítica proposto por Testa19: - análise extensiva com descrição de fatos; - análise intensiva com explicação de significados (categorização); - análise hermenêutica intertextual com compreensão de sentido; e - análise dialética de síntese contextual. O projeto do estudo foi submetido e aprovado no Comitê de Ética da Pesquisa da Universidade Federal do Ceará. No decorrer do estudo, observaram-se e cumpriram-se os requisitos de procedimentos éticos da, então vigente, Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados Em se tratando de material extenso, a descrição sumária de resultados se atém a aspectos descritivos e temas considerados mais relevantes pelos pesquisadores. De início, em termos de enfoque extensivo (descrições) e intensivo (explicações), são descritos aspectos da análise documental e proferimentos discursivos mais significativos, sintagmas provenientes da análise de entrevistas e grupo focal. Em seguida, em termos de enfoque intertextual hermenêutico (interpretações) e contextual dialético (contradições e síntese), apresenta-se uma figura com a esquematização de categorias e circuitos proeminentes.

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Descrições evidenciadas em discursos formais, a partir da análise documental Em consonância com o contexto normativo do Sistema Único de Saúde, as demandas e diretrizes identificadas na análise documental podem ser classificadas a partir das dimensões de promoção, proteção e recuperação, ou seja, assistência e reabilitação da saúde. Denota-se, na análise sobre os registros documentados acerca das deliberações das Conferências Municipais de Saúde – notadamente, naquelas realizadas nos municípios do interior –, pouca ênfase na deliberação de diretrizes afins com os componentes de promoção e proteção da saúde, assim como quanto a determinados campos de atuação, tais como: Vigilância Sanitária, Vigilância Epidemiológica, Vigilância Nutricional, Orientação Alimentar, Saúde do Trabalhador e Proteção do Meio Ambiente. Evidencia-se maior ênfase nas deliberações atinentes ao componente de recuperação da área da Saúde, particularmente em seu aspecto assistencial, referido: aos campos de atuação de estratégias e serviços hospitalares e de Atenção Básica (estratégia programática de Saúde da Família), acessibilidade a insumos, sobretudo, farmacêuticos, e demandas de profissionais de saúde. Quanto ao aspecto de reabilitação em saúde, constatou-se uma exiguidade de deliberações associadas a: políticas, estratégias institucionais, programas, serviços e ações dessa natureza. Particularmente dois temas referentes aos direitos e princípios previstos na legislação do SUS são mais enfatizados: o tema da preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral, e o tema da “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”, consideradas as seguintes características distintivas e proeminentes: demandas referentes ao campo de Saúde Mental na Conferência da capital e demandas de populações rurais nas Conferências dos municípios interioranos. As questões relativas à participação popular são recorrentes, com ênfase nas demandas de formação e capacitação dos representantes de usuários que atuam nos Conselhos Municipais de Saúde. Nesse tema particular, cobra-se uma maior participação e implicação das instituições públicas de ensino. No contexto extrínseco aos municípios estudados, estão explicitadas demandas acerca de uma melhor integração e complementaridade entre as ações governamentais oriundas das três esferas de governo. O governo federal, muitas vezes, é caracterizado como plenipotenciário e detentor da maior capacidade de investimento e sustentação financeira; ao mesmo tempo, é responsabilizado pela maior parte das dificuldades associadas à escassez de recursos financeiros. No que se refere ao contexto intrínseco dos municípios, existem frequentes demandas de investimentos estruturais para os sistemas e serviços de saúde. Denota-se que algumas dessas demandas extrapolam o caráter meramente setorial da Saúde e estão orientadas para investimentos intersetoriais, como: habitação, lazer, escolas, creches, etc. O que coaduna com a perspectiva de políticas e estratégias institucionais orientadas para a Promoção de Saúde. Ainda assim, predominam as reivindicações para investimentos estruturais, tais como: construção e reformas de serviços de saúde, em especial, de Atenção Básica e Saúde Mental, aquisição e manutenção de equipamentos e melhorias nos transportes. Acerca do componente de trabalho profissional, são mais recorrentes as demandas para a contratação de profissionais médicos. Também existem demandas para a contratação de outros profissionais de nível Superior, sobretudo para os serviços da Estratégia de Saúde da Família, inclusive, de profissionais especializados em práticas integrativas e complementares. Há ênfase em deliberações acerca da modalidade de contratação pela via de concursos públicos, e críticas acerca das modalidades de contratação por terceirização e por fundações ou organizações sociais, reiteradas, especialmente, nos municípios de maior porte populacional. Há muitas deliberações para a ampliação dos horários de atendimento nos serviços de saúde, com a inclusão do horário noturno nos municípios de maior porte populacional. Observa-se, ainda, que existem queixas e cobranças por um maior controle do cumprimento de carga horária e permanência de profissionais nos serviços de saúde, notadamente nos serviços de Pronto-Atendimento de Urgência e Emergência.

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Também são recorrentes as demandas para o incremento de iniciativas de educação permanente e outras modalidades de formação e capacitação de profissionais na própria rede de serviços de saúde. Estão registradas muitas demandas específicas de trabalhadores da área, com destaque para as solicitações de aumento salarial e regulamentação de Planos de Cargos, Carreiras e Salários. De modo geral, observa-se que os registros das deliberações sobre demandas e asserções propositivas (diretrizes), provenientes de sínteses realizadas pelos relatores das Conferências Municipais, estão dispostos em conotações mais reivindicatórias, com delineamentos muito vagos e genéricos, sem melhor definição de metas específicas ou de dimensionamentos operativos (objetivação, quantificação, delimitação de prazos, etc.). Em se tratando de documentos que deveriam servir, primordialmente, como substratos para a definição de diretrizes políticas e estratégicas para as políticas e ações governamentais de âmbito municipal, tal proeminência de conotação reivindicatória e caráter genérico requer processamento técnico e logístico posterior, o que não ocorreu em nenhum dos casos analisados. Nem agentes governamentais e nem outros agentes, representantes ou técnicos dos respectivos Conselhos Municipais de Saúde, relataram ou apresentaram registros documentais sobre iniciativas ou tratativas posteriores para o processamento técnico-político ou logístico a partir dos relatórios e outros registros das Conferências em questão. Infere-se que não ocorreu nenhum tipo de processamento desse tipo e que os registros permaneceram em seu estado original. Alguns discursos práticos, evidenciados em relatos analisados a partir das entrevistas e Grupo Focal, dão conta de que tais relatórios e registros ficam arquivados e não são retomados como referenciamentos diretivos ou logísticos para pautas de discussões ou orientação de agendas de âmbito governamental e dos respectivos Conselhos Municipais de Saúde. Na análise dos relatórios das Conferências Municipais realizadas em 2007, não foram encontrados registros ou informes sobre quaisquer ocorrências de avaliações ou balanços acerca da efetivação de políticas governamentais orientadas por diretrizes deliberadas nos eventos anteriores, realizados em 2003. Sequer existiam registros sobre discussões avaliativas e retrospectivas de grupos específicos ou de plenárias gerais sobre o alcance de metas ou resultados da efetivação de políticas governamentais correspondentes às diretrizes estabelecidas nas deliberações das Conferências anteriores.

Explicações evidenciadas em entrevistas e grupo focal No aspecto da análise de discursos práticos oriundos das entrevistas e grupos focais, as principais categorias de análise identificadas reportam a conteúdos temáticos específicos, atinentes aos processos de organização das Conferências Municipais, sua realização e às decorrências posteriores. No que tange ao processo de organização e mobilização para essas Conferências, observam-se queixas sobre a parca divulgação e comunicação insuficiente para o público em geral. Reitera-se a importância da realização de pré-conferências ‒ locais e temáticas ‒ não somente pela necessidade de se contemplarem demandas mais específicas, mas pelo caráter pedagógico, de incremento comunicativo e de agregação participativa. Existem, também, muitas alusões aos eventuais constrangimentos e tensões provocados pela partidarização política e aparelhamento político-partidário desses eventos e, notadamente, dos próprios Conselhos Municipais de Saúde. Essa temática é mais recorrente nos municípios de menor porte populacional, sendo que, em um deles, de porte médio, a temática tornou-se muito significativa em razão de um contexto de intensa polarização partidária. De acordo com relatos, os momentos e cenários de encontros, interlocuções e celebrações são informais, e ocorrem nos entreatos das Conferências Municipais de Saúde. Tendem a ser muito valorizados em alguns proferimentos discursivos, interpretados como oportunidades de muitos perceberem que não estão isolados em suas lutas cotidianas por melhores condições de saúde, que “fazem parte de uma comunidade de ‘construtores do SUS’” (Entrevista 8). Há também proferimentos que conotam a participação e representação de alguns delegados nas Conferências como “elitizada”, restrita àqueles iniciados no ativismo ou militância de movimentos sociais, afeitos a “discursos prontos, mais panfletários” (Participante 4, grupo focal). 564

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Alguns proferimentos denotam uma percepção de “repetitividade” nas pautas e temas tratados, caracterização também aludida a muitos representantes (delegados) e seus discursos proferidos por ocasião dos referidos eventos. Em outros termos, identifica-se uma repetição exaustiva de pautas, assuntos, representantes e discursos, o que, para alguns, dificultaria uma participação mais ampla de novos representantes e novas pautas. Especificamente sobre as lembranças oriundas das Conferências Municipais de Saúde realizadas, há determinados proferimentos que denotam uma espécie de “lacuna de memória” acerca das principais deliberações. A maior parte dos entrevistados demonstra facilidade para lembrar de deliberações mais específicas, decorrentes de suas próprias demandas e contextualizadas localmente ou em perspectiva mais corporativa, no caso da representação de categorias profissionais ou de determinados grupos de interesses. Porém, revelam dificuldades para lembrar das decisões mais gerais, de caráter diretivo mais amplo. Para alguns entrevistados, a dificuldade em memorizar questões consideradas como substanciais nesses eventos deve-se ao período de tempo decorrido para a realização das mesmas. Alguns dos entrevistados tentam explicar essa dificuldade de lembrança a partir da assertiva de que as deliberações “caem no esquecimento” porque o poder público, a gestão governamental, não busca efetivá-las posteriormente. Outros entendem que os próprios Conselhos e Conselheiros Municipais de Saúde não assumem a responsabilidade de tomar tais deliberações como pauta e agenda, não buscam o monitoramento cotidiano de sua efetivação por parte da gestão governamental. Para constatar ou refutar tal afirmação, seria necessária uma análise sobre as agendas e pautas decisórias dos respectivos Conselhos Municipais de Saúde, o que não se tornou possível em razão da inexistência ou incompletude de registros desse tipo na maior parte dos municípios estudados. No caso específico do Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza, a análise das agendas e pautas decisórias registradas no período analisado evidencia que, em raríssimas ocasiões, houve discussões ou decisões acerca da implementação de deliberações provenientes das Conferências Municipais ocorridas em 2003 e 2007. Quanto ao encaminhamento das diretrizes deliberadas nas Conferências aos entes governamentais e o seu concomitante monitoramento por parte das instâncias de Controle Social, muitos dos entrevistados e participantes do grupo focal exprimem sensações de desânimo, desmotivação e descrédito. Há uma recorrente constatação de que as deliberações não são tomadas como prioridades pelos governos municipais nem tampouco monitoradas ou avaliadas pelos respectivos Conselhos Municipais de Saúde. Alguns dos entrevistados e participantes do grupo focal, na condição de conselheiros municipais de saúde (na ocasião ou em períodos anteriores), revelam que não ocorreram discussões ou avaliações nos conselhos acerca da inclusão de deliberações das Conferências Municipais em agendas governamentais, ou, mesmo, de monitoramento sobre a aplicabilidade e consecução de ações governamentais pertinentes e compatíveis com as referidas deliberações. Da sua parte, alguns entrevistados e participantes do grupo focal, na condição de representantes do segmento governamental, afirmam que a inclusão de deliberações provenientes das conferências em agendas governamentais ocorre de modo “assistemático” (Participante 4, grupo focal) e “natural” (Entrevista 11). Enfatizam que a consecução de ações governamentais correspondentes são monitoradas pelos próprios governos municipais e apresentadas em relatórios de “prestação de contas” (relatórios de gestão e congêneres) para a apreciação e aprovação dos Conselhos Municipais de Saúde. Evidencia-se concordância de interpretação, tanto nas entrevistas como no grupo focal, na constatação de que, nas próprias Conferências Municipais de Saúde, não houve avaliações prévias ou ocasionais e nem discussões específicas sobre o encaminhamento e consecução de ações governamentais correspondentes ou compatíveis com deliberações estabelecidas em conferências anteriores. Assim como consta na análise documental, muitos proferimentos discursivos expressam necessidades e demandas para a “formação” e “capacitação” de conselheiros municipais de saúde, de modo a qualificar as suas intervenções de representação e de acompanhamento das deliberações ocorridas nas Conferências Municipais.

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Categorias constituídas na análise intertextual hermenêutica e contextual dialética Para além dos aspectos descritivos e explicativos evidenciados em discursos formais e informais acerca dos casos-eventos analisados, a interpretação de sentido intertextual e contextual advém da configuração de uma rede de significados, com ênfase na interpretação de interações, associações e contradições discursivas expressas em categorias dialéticas. Não há, propriamente, relações de causa e efeito ou de associações hierarquizadas entre as categorias evidenciadas. Tampouco trata-se de configuração rizomática, pois busca-se apenas uma caracterização reticular de significados conexos a partir de uma matriz categorial em determinada intepretação de sentido. Nessa configuração ilustrativa de temas evidenciados (Figura 1), as categorias dialéticas constituídas a partir dos proferimentos discursivos derivam de uma matriz dialética primordial: democracia participativa/representativa. Tal matriz está conectada com os cenários e processos decisórios em questão, as Conferências Municipais de Saúde, dinamizadas também por tensões dialéticas preponderantes entre o instituinte e o instituído. As diversas derivações estão referidas a aspectos tematizados acerca de determinações, ocorrências e decorrências que perfazem suturas dialéticas em um circuito hermenêutico com compreensão de sentido.

Cenário e processo decisório mais participativo

Representação efetiva Decisões democráticas

Cenário e processo decisório mais figurativo

Representação figurativa Decisões democráticas Ilegitimidade

Legitimidade

Tensões instituintes

Efetividade política

Tensões do instituído

Poder político Poder administrativo

Poliarquia

Pluridirecionalidade

Informalidade

Eficiência administrativa Unidirecionalidade

Interesse público

Hierarquia Formalidade

Poder técnico

Controle social/público Esfera pública

Eficácia simbólica

Controle governamental “Grande política” Democracia participativa

“Pequena política” Democracia representativa

Esfera privada Interesse privado

Figura 1. Configuração ilustrativa de categorias temáticas evidenciadas sob o enfoque intertextual hermenêutico e contextual dialético na análise sobre ocorrências, processos decisórios e decorrências de Conferências Municipais de Saúde no Ceará.

Em perspectiva instituinte, o circuito parte de tensões por melhor participação e inovações em termos de estratégias sociais e institucionais (administrativas, programáticas, etc.) para a direcionalidade política por meio de combinações entre razões, modos, meios e dispositivos de democracia direta (participativa) e indireta (representativa). Em tal combinação, há expectativa de preponderância da direcionalidade participativa e da condução governamental compatível e coerente. Representações tidas como efetivas e legítimas visam salvaguardar ou promover o interesse público e a esfera pública (res pública) em conotação positiva para a política (“grande política”, “política de Estado”). Admite-se que tais representações tendem: à informalidade, poliarquia (interesses diversos, 566

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ordenamentos plurais, arranjos múltiplos, margens de autonomia interdependentes), pluralidade de instâncias e de disputas direcionais, que requerem mediações políticas permanentes e consensos formais. Além disso, também requerem compromissos políticos de incorporação e efetivação de uma agenda direcional por parte dos governos, que são os responsáveis pela viabilização política, técnica e administrativa e pela condução, operacionalização e execução das deliberações provenientes das conferências. Na perspectiva dos sistemas institucionalizados de ação, portanto, do polo instituído, o circuito também parte de tensões por mais participação direta e inovações estratégicas, em combinações de democracia participativa e representativa. Entretanto, em tal combinação, prevalece a expectativa da preponderância de atuações mais figurativas, ou seja, expressividades e interações dramatúrgicas, figurações expressivas das instâncias de Controle Social, com direcionalidade e condução governamental autônomas. Em outros termos, os governos proporcionam meios de participação e convivem com as instâncias de controle social (conferências com figuração dramatúrgica direcional, conselhos com figuração dramatúrgica fiscalizadora), mas operam com agendas próprias, autônomas e dissociadas das mesmas. Representações tidas como figurativas ou ilegítimas visam os interesses privados, corporativos e de determinados grupos ou pessoas, em conotação negativa para a política (“pequena política”, “mercado da política”). Admite-se que tais representações tenderiam a valorizar mais a disputa em expressões figurativas por demandas de grupos de interesses, enquanto as representações governamentais tenderiam a valorizar mais: as formalidades do burocratismo, as hierarquias de poder institucional (político, técnico, administrativo), as instâncias formais de governo e as disputas direcionais entre grupos de interesse que sustentam a governabilidade conjuntural. As deliberações das Conferências de Saúde servem mais como simulacros de participação, com alguma eficácia simbólica para demonstrar que os governos estão abertos à participação, mas suas deliberações não são incorporadas nas agendas governamentais e, portanto, não possuem quase nenhuma efetividade. Haveria disputas por poder efetivo (político, técnico e administrativo), mas, intrinsicamente, na institucionalidade governamental. É claro que a definição esquemática e ilustrativa de circuitos, como interpretação de proferimentos discursivos e expectativas em questão, reduz a perspectiva dialética ao sentido dual, às vezes, maniqueísta (circuito virtuoso/vicioso). Daí, pois, convém reiterar que tais dinâmicas dialéticas não são assim redutíveis. Nos circuitos hermenêuticos, busca-se somente evidenciar uma expectativa acerca de tipo ideal (democracia participativa como elemento combinatório de circuito virtuoso) e, notadamente, a predominância de uma constatação hegemônica: de democracia participativa como figuração de eficácia simbólica eventual, em circuito vicioso. A constatação mais evidente de circuito hermenêutico preponderante refere-se a formas de democracia participativa com representação figurativa em conotação de que Conferências Municipais de Saúde analisadas possibilitaram diversas expressões e disputas por demandas predominantemente particulares em interações mais dramatúrgicas16, visando eficácia simbólica, aprovação pela maioria na forma de deliberações, ou eventual, restrita às ocorrências dos eventos. Entretanto, após o término dos referidos eventos, as diretrizes deliberadas mostraram-se sem efetividade política em termos de inclusão nas agendas governamentais dos respectivos municípios; e, menos ainda, em sua implementação e consecução sob a forma de políticas públicas governamentais.

Discussão Em se tratando do contexto brasileiro no período contemporâneo de redemocratização da institucionalidade republicana, a política setorial de saúde pode ser definida como inovadora no que se refere às prerrogativas, razões e modos de ser e (atu)ações das instâncias de controle social em termos de conformação de tensões normativas, de configurações de estratégias institucionais e de inovações tecnológicas correlatas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A partir de indução normativa e num curto período de tempo, ocorreu ampla disseminação de instâncias e eventos de natureza plural e caráter mais participativo. As Conferências de Saúde, como instâncias máximas do controle social em Saúde, possuem uma importância capital não somente em razão de sua atribuição legal de deliberar sobre diretrizes políticas e estratégicas para o Sistema Único de Saúde, mas em virtude de configurarem cenários de estímulo e renovação do ativismo no setor. Em dados momentos históricos, algumas conferências, em suas diversas etapas, tiveram uma função primordial de síntese e proatividade para mudanças institucionais significativas. Ainda para além de suas atribuições legais e de tensão normativa, as conferências de Saúde promovem ritos de celebração, encontros, conexões e interações entre diversos atores sociais e grupos de interesse setoriais no setor de Saúde. São momentos muito ricos e estimulantes, quando se imbricam tramas e dramas de expressão e de vocalização de demandas, mobilizações de vontades entre os diversos e distintos grupos de interesse setoriais. As Conferências Municipais de Saúde têm sido instâncias mais propícias para a atuação de ativistas e/ou militantes de causas e representantes de grupos de interesses com demandas mais específicas As inovações institucionais que propiciam formas de democracia participativa demandam tensões e dinâmicas instituintes orientadas para a mudança, o crescimento e a busca de legitimação na institucionalidade pública; em contradição com tensões e movimentos instituídos, orientados para a conservação, o controle e a consolidação de determinados grupos de interesses que também buscam legitimação social. Nos cenários das Conferências Municipais, evidenciam-se disputas políticas por legitimidade social entre as tensões instituintes e do instituído. Nos casos analisados, os cenários decisórios, como instâncias eventuais, ainda possuem uma conotação meramente simbólica e figurativa, o que ocorre, em certa medida, dada a assimetria de capitais políticos e a deficiência de competências de (inter)ação social da parte dos atores implicados. Mesmo assim, observa-se a emergência de uma tensão instituinte que: demanda mais autonomia política, busca enxertar modalidades de práticas participativas sob a hegemonia da institucionalidade representativa, busca o cultivo e exercício do diálogo e negociação, com vista a conformar modos de publicização e representação de interesses na esfera pública. Por sua vez, a tensão instituída de democracia representativa tende a sobrepujar uma lógica de: reificação e subordinação às regras do mercado político, especialização e permanência, institucionalização de representações formais, intercâmbio entre representações de interesses particulares, cooperação ou adesão em troca de compensações ou premiações ‒ às vezes, sob a forma de clientelismo. Alguns estudos recentes4,10,11,14 apontam evidências acerca de certo esgotamento desse potencial de aproximação e implicação proativa entre modalidades de institucionalidade democrática representativas e participativas. De modo hipotético, não se trata do esgotamento das iniciativas de enxerto das modalidades de democratização participativa, mas da permanência e reiteração da cultura institucional de representação democrática nos moldes convencionais da democracia representativa, em que as novas representações e os novos representantes passam a atuar conforme as regras institucionais vigentes. Mesmo alguns representantes experientes de movimentos sociais passam a atuar de um modo típico da institucionalidade da democracia representativa, com uma especialização de papel e, muitas vezes, a perpetuação no cargo de representação. Algumas questões devem ser apresentadas para a exploração, análise e argumentação acerca desse fenômeno de aparente esgotamento ou (re)colonização da esfera pública e de espaços decisórios tão importantes. Quando instâncias formais de democracia participativa que visam estabelecer diretrizes (tensões normativas) para as políticas públicas e governamentais, mesmo que enxertadas perifericamente na institucionalidade democrática representativa, passam a adquirir caráter meramente figurativo, então, prepondera a racionalização instrumental e a indiferença estrutural1 ‒ o que implica a substituição das prerrogativas decisionais de agentes públicos identificáveis (no caso, atores sociais proativos em interação dialógica) por operações seletivas incorporadas às rotinas de sistemas administrativos hierarquizados. Quem termina por definir o que é politicamente relevante, o que merece atenção e o 568

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que cai na área da indiferença não são os agentes públicos em instâncias de democracia participativa, mas os agentes governamentais em instâncias formais de governo e instâncias informais de mercado político, em intercâmbio de soma positiva restrito aos agentes e intermediadores das dinâmicas formais e informais de democracia representativa. O que disfarça tal indiferença estrutural é, essencialmente, o discurso ideológico de cunho tecnoburocrático, que busca obstruir e interditar a abertura dos discursos práticos e impedir a tematização dos fundamentos do poder16. Algumas normas institucionais tendem à pseudolegitimação quando cumprem a dupla função de impedir que elas próprias e seus propósitos sejam tematizadas discursivamente. Em tal perspectiva, busca-se substituir as tensões normativas sociais por regras técnicas e administrativas. Assim, se as prerrogativas e os fundamentos do poder institucional não precisam ser tematizados, não é porque repousam sobre a normatividade legítima, mas porque a lógica das coisas passa a ser preponderante16. As diretrizes deliberadas nas Conferências de Saúde não recebem quase nenhum processamento ou tratamento posterior de adequação em termos de reformulações como estratégias institucionais em busca de viabilização política, técnica e administrativa ou em termos de formulações de políticas institucionais viáveis. Permanecem como expressões de demandas genéricas, o que facilita a sua subordinação ou substituição por imposições técnicas e administrativas oriundas da normatividade governamental instituída. O circuito hermenêutico vicioso da democracia representativa dependente do mercado político, pautada por interesses particulares, e da democracia participativa meramente figurativa, simulacro conveniente apenas em termos de eficácia simbólica eventual, gera desencanto e desânimo para os participantes de instâncias decisórias, como as conferências de Saúde, o que contribui para a deslegitimação dessas modalidades de participação. Existe ainda uma contradição primordial entre perspectivas de gerar demandas políticas e gerir políticas governamentais no entorno das próprias instâncias de Controle Social. Contradições entre as prerrogativas das Conferências Municipais para gerar demandas, apontar diretrizes, proposições, requerer mais investimentos, mais autonomia, e as prerrogativas dos Conselhos Municipais de Saúde para gerir agendas deliberativas, fazer o controle e a fiscalização dos atos do poder executivo. As demandas geradas a partir das deliberações das conferências tendem a encontrar pouca ressonância nos Conselhos Municipais Saúde, mais pautados pelas demandas governamentais. Enfim, os casos analisados podem ser contextualizados na perspectiva de contradições, tensões e mediações substanciais para a democratização do Estado brasileiro, a consolidação da sociedade civil e a constituição de instâncias da esfera pública. Os discursos analisados, embora reiterem diversas contradições, também expressam expectativas de que as referidas Conferências Municipais possam se tornar algo mais do que cenários rituais de vocalizações simbólicas e eventuais de demandas fadadas ao confinamento em relatórios arquivados e esquecidos no limbo figurativo. Em conclusão, denota-se que o presente estudo enfatiza interpretações acerca de fatos e fenômenos que podem ser analisados em muitas perspectivas teóricas e por meio de diversas metodologias. Assim sendo, muitos dos aspectos evidenciados como significativos nesse estudo requerem tratamento mais aprofundado e diversificado de análise. Requerem o balizamento com evidências e interpretações advindas de outros estudos similares ou de estudos com enfoques e métodos de análise distintos.

Colaboradores O autor Alcides Silva de Miranda elaborou a versão inicial do artigo e participou de sua discussão, redação e da revisão do texto. Os demais autores participaram, igualmente, da discussão e da revisão do texto.

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Miranda AS, Moreira AEMM, Cavalcanti CGCS, Bezerra FM, Oliveira JC, Rezende R. Discursos prácticos sobre hechos, procesos decisorios y consecuencias de las Conferencias Municipales de Salud en Brasil. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):559-71. ¿Qué significados pueden destacarse en los discursos de participantes de las Conferencias Municipales de Salud? Se analizaron conferencias realizadas en el Noreste de Brasil durante el año 2007. Este fue un estudio de múltiples casos, de fundamentación teórica hermenéutica y dialéctica, basado en técnicas de análisis documental, entrevistas y grupos focales. En las conferencias se destacaron la posibilidad de expresión y movilización de algunos grupos de intereses por demandas específicas, escenarios de interlocución competitiva y búsqueda de mediaciones políticas orientadas para la obtención de cierta eficacia simbólica eventual. Sobre las consecuencias de las decisiones deliberadas, se destacaron ciertos discursos sobre la negligencia de los gobiernos municipales en la incorporación de estas demandas en sus agendas políticas, así como en el despliegue de estrategias institucionales correspondientes. También se reveló la ausencia de monitoreo por parte de los respectivos Consejos Municipales de Salud.

Palabras clave: Conferencias de Salud. Consejos de Salud. Sistema Brasileño de Salud. Participación ciudadana.

Recebido em 11/06/15. Aprovado em 13/10/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0065

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Trabalho gerencial em Unidades Básicas de Saúde de municípios de pequeno porte no Paraná, Brasil Elisabete de Fátima Polo de Almeida Nunes(a) Brigida Gimenez Carvalho(b) Sônia Cristina Stefano Nicoletto(c) Luiz Cordoni Junior(d)

Nunes EFPA, Carvalho BG, Nicoletto SCS, Cordoni Junior L. Managerial work in Basic Health Units of small municipalities in Parana, Brazil. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):573-84.

In order to understand how the organizational, political and relational dimensions affect the everyday managerial work in Basic Health Units of small municipalities in northern Paraná, a qualitative study was developed, using focus groups to gather the information. Nurses are the group that develops the majority of the managerial roles, even though in an informal fashion. The vertical and authoritarian management model prevails, in spite of the weakness of this function when confronting the autonomy and collegiality of professionals. In the political dimension, politically biased interests override the managerial decisions; and in the relational dimension, conflict is expressed with disrespect and disputes, but also collaboration with dialogue and teamwork. In these municipalities, the management processes are poorly developed, requiring professionalization and formalization of the managerial positions, in addition to the permanent education development.

Keywords: Primary Health Care. Health services administration. Management. Health Manpower. Conflict.

Visando compreender como as dimensões organizacional, política e relacional afetam o cotidiano do trabalho gerencial em Unidades Básicas de Saúde de municípios de pequeno porte do norte do Paraná, realizou-se estudo qualitativo cujos dados foram obtidos por meio de grupos focais. O enfermeiro é o que mais desenvolve a função gerencial, porém, informalmente. O modelo gerencial verticalizado e autoritário predomina, e há fragilidade no exercício frente à autonomia e ao corporativismo de profissionais. Na dimensão política, interesses político-partidários sobrepõemse às decisões gerenciais; e, na dimensão relacional, há manifestação de conflito, com desrespeito e disputas, mas, também, colaboração, com diálogo e trabalho em equipe. Nesses municípios, os processos gerenciais são pouco desenvolvidos, necessitando de profissionalização e oficialização do cargo, além do desenvolvimento de educação permanente.

Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde. Administração de serviços de Saúde. Gerência. Recursos humanos em Saúde. Conflito.

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(a,d) Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Departamento de Saúde Coletiva, Universidade Estadual de Londrina (UEL). Avenida Robert Kock, nº 60. Vila Operária. Londrina, PR, Brasil. 86038-350. alnunes.3@ gmail.com; cordoni@ sercomtel.com.br (b) Departamento de Saúde Coletiva, UEL. Londrina, PR, Brasil. brigidagimenez@ gmail.com (c) Secretaria Estadual de Saúde do Paraná, 18ª Regional de Saúde. Cornélio Procópio, PR, Brasil. sonianicoletto@ sesa.pr.gov.br

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Introdução O processo de construção do sistema de saúde brasileiro é considerado inacabado diante das dimensões do projeto da Reforma Sanitária1 e dos desafios para a organização jurídico-administrativa, com vistas a desenvolver a atenção integral, por meio da descentralização e da regionalização2. A heterogeneidade dos municípios brasileiros produz dificuldades distintas ao processo de descentralização. Para os municípios de grande porte, a complexidade administrativa tem representado um obstáculo a ser vencido no processo de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS)3. Para os municípios de pequeno porte (MPP), com até vinte mil habitantes, maioria no Brasil (71%)2, as condições técnicas deficitárias e a reduzida base econômica têm sido os grandes desafios4. Independentemente do porte municipal, a atenção básica (AB) tem sido impulsionada com incentivo financeiro ministerial, com o intuito de oferecer à população serviços de saúde e ações de prevenção e promoção, impulsionando a intersetorialidade5. A Unidade Básica de Saúde (UBS), porta de entrada preferencial do usuário à rede de serviços públicos de saúde, é importante lócus de inter-relações dos atores no cotidiano da produção da saúde6. Apesar dos esforços para a estruturação da AB, persistem problemas relacionados: à infraestrutura, às formas de contrato dos trabalhadores de saúde, à dinâmica da atenção ao cuidado; e ao processo de trabalho, às expectativas contraditórias dos atores, aos conflitos existentes entre integrantes das equipes de saúde da família e os poderes locais, às condições sociopolíticas, entre outros6,7. Para a superação desse quadro, precisam ocorrer mudanças em múltiplas dimensões: políticas, ideológicas, jurídico-legais e organizacionais no nível macro, mas, também, no processo de trabalho, nas relações pessoais e nas práticas individuais de saúde, no nível micro8. Nesse cenário, modelos de gestão com caráter pluricêntrico vêm sendo propostos, considerados necessários diante das demandas diferenciadas e complexas do campo da saúde9. Esses devem estar apoiados não somente nos aspectos macrossociais, mas, também, em “perspectivas de análise que valorizem particularmente aspectos microssociais e relacionais/comunicacionais, presentes no cotidiano dos serviços de saúde, assim como o papel dos sujeitos na dinâmica organizacional”10 (p. 2346). Devem superar o aspecto restritivo das teorias administrativas, pautadas nas normas e na padronização de técnicas para uma gestão democrática e participativa11. Em MPP, a gestão em saúde é assumida formalmente por um secretário municipal de saúde ou um diretor, que defende sua posição política produzindo disputas no interior do estado12. O secretário de saúde, na maioria dos municípios, conta com apoio e assessoria de uma equipe gestora, sendo o gerente, que coordena a atenção em saúde produzida na UBS, um dos integrantes dessa equipe. A principal atuação da gerência de UBS se dá na organização do trabalho e na gestão de recursos humanos13, não podendo ser uma atividade meramente funcional, voltada para as atividades burocráticas, de manipulação dos papéis e rotinização do trabalho predeterminado14. Pelo contrário, pressupõe maior autonomia e poder decisório dos atores nas ações e nos serviços produzidos, considerados imprescindíveis para um cuidar em saúde qualitativo e resolutivo14. Diante das reflexões expostas, surgiu a seguinte inquietação: em que condições o trabalho gerencial nas UBS de MPP vem sendo produzido? Com intuito de elucidar, ao menos em parte, essa questão, realizou-se este estudo, com objetivo de compreender os aspectos que podem afetar o cotidiano do trabalho gerencial em UBS de MPP de três Regionais de Saúde do norte do Paraná.

Procedimentos metodológicos Estudo de caráter compreensivo e interpretativo, com abordagem crítico-hermenêutica, com base em técnicas de coleta e de análise do empírico que vislumbrem a compreensão da realidade. A Hermenêutica, segundo Ricoeur, oferece marcos para a compreensão do sentido da comunicação entre seres humanos, e considera a linguagem um terreno comum da intersubjetividade e do entendimento humano15. Para esse autor, o “paradigma da leitura” (método de interpretação textual que está centrado na compreensão do texto) pode fornecer um caminho metodológico para uma 574

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investigação científica para análise dos fenômenos sociais15. Ricoeur considera que a hermenêutica e a dialética não devem ser reduzidas a simples teorias e/ou métodos de tratamento dos dados, mas que são abordagens complementares, que possibilitam uma reflexão que se funda na práxis; e que a aliança dessas abordagens é fecunda na condução do processo que pretende, ao mesmo tempo, ser compreensivo e crítico da realidade social15-17. Portanto, a análise critico-hermenêutica propicia, neste estudo, a compreensão dos aspectos que afetam o cotidiano do trabalho gerencial em UBS de MPP. O estudo teve como área de abrangência três regionais de saúde (RS) do Paraná – 16a, 17a e 18a –, nas quais os MPP representam 83% da totalidade dos municípios. Foram realizados cinco grupos focais (GF) com gerentes de UBS de MPP da região estudada. Essa técnica de coleta de dados foi selecionada devido ao interesse na interação e no debate dos participantes em torno do tema pesquisado18. Nos 49 municípios estudados, havia 82 UBS. Foram convidados a participar dos grupos focais 48 gerentes de UBS cujo trabalho gerencial apresentava-se mais consolidado no momento da pesquisa. Desse total, compareceram 33. Os GF foram realizados em julho de 2011, nos municípios-sede das RS, sendo um grupo na 16a, dois na 17a e dois na 18a RS, de forma que, em cada grupo, participaram entre seis e nove gerentes. Os gerentes, depois de esclarecidos sobre a pesquisa e de terem lido o termo de consentimento livre e esclarecido, concordaram em participar e assinaram o termo. As discussões dos GF seguiram roteiro com as seguintes questões norteadoras: o que você faz no cotidiano do trabalho da coordenação? Que estratégias/instrumentos utiliza na condução do trabalho gerencial? Como se dá o apoio para o desenvolvimento do trabalho de vocês? Como é a interação com os trabalhadores? Quais as facilidades e dificuldades existentes no desenvolvimento do trabalho gerencial? As discussões foram conduzidas pelos pesquisadores, gravadas e transcritas na íntegra. Para evitar a identificação dos participantes, suas falas foram codificadas com letras do alfabeto, na ordem em que surgiam: AGF1 (primeiro participante a se manifestar no grupo focal 1), e assim por diante (BGF1 [...] AGF2 [...], AGF5 [...]), representando cada um dos participantes e os GF, respectivamente. Foi realizada a conferência da fidelidade das transcrições e, na sequência, a análise, em três etapas. Primeiramente, com leituras da totalidade do material empírico, para permitir a impregnação do teor. A seguir, leitura vertical, ou seja, uma leitura repetida e aprofundada de cada GF separadamente, possibilitando a constituição de sínteses. Por último, foi realizada a leitura horizontal dessas sínteses, das quais emergiram as seguintes categorias empíricas denominadas: dimensão organizacional, dimensão política e dimensão relacional. A análise das três categorias permite destacar aspectos que afetam o cotidiano do trabalho gerencial em UBS de MPP. Para análise do fenômeno estudado, foi aplicado o referencial teórico marxista do trabalho, em especial, sobre o trabalho gerencial13. Nesse referencial, o processo de trabalho da gerência é composto por um conjunto de atividades próprias e inter-relacionadas, para cumprir uma determinada finalidade – o estabelecimento e a manutenção de condições favoráveis à implementação de um dado modelo assistencial13, com vistas à integralidade da atenção ao usuário, ou seja, à satisfação de suas necessidades de saúde. Atua sobre determinado objeto, a partir de determinados instrumentos. O objeto de intervenção da gerência é a própria organização do trabalho e dos trabalhadores da unidade de saúde. Desta forma, o processo de trabalho gerencial se efetiva por meio de relações humanas (dimensão interativa/intersubjetiva), envolvendo a relação com os demais profissionais de saúde, de diversas categorias profissionais, e, também, com usuários/população do território. Portanto, ao se considerar a intersubjetividade presente no exercício cotidiano do trabalho gerencial, cabe reconhecer que este constitui a execução de atividades permeadas pela comunicação e pela interação humana. Com o intuito de elucidar as dimensões processuais e intersubjetivas das práticas gerenciais e de saúde, o referencial teórico do processo do trabalho de Marx foi articulado à teoria do Agir Comunicativo, de Habermas19. O cerne dessa teoria está na racionalidade comunicativa, uma dimensão não instrumental da racionalidade, que, por sua natureza essencialmente dialógica e intersubjetiva, tem como objetivo fomentar o entendimento entre os homens e produzir acordos intersubjetivos. Na teoria do agir comunicativo, o conhecimento se produz a partir da experiência da interação, da linguagem e da intersubjetividade19. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição a que estão vinculados os pesquisadores. 575


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Resultados e discussão A gerência de UBS em MPP revelou-se uma atividade complexa, dialeticamente afetada por aspectos relacionados às dimensões organizacional, política e relacional. Optou-se por apresentar os resultados nessas três categorias separadamente, para facilitar a compreensão dos mesmos, apesar da clareza de que tais dimensões não ocorrem de forma estanque. Pelo contrário, são imbricadas e, por vezes, sobrepostas.

Dimensão organizacional A dimensão organizacional compreende a divisão técnica e social do trabalho20, bem como questões estruturais que afetam a produção do trabalho em saúde. Sobre o perfil dos atores que ocupam a função gerencial, dos 33 participantes dos GF, 28 eram do sexo feminino e cinco do masculino, entre os quais, um era funcionário administrativo e um zootecnista. A maioria era de profissionais da enfermagem: trinta enfermeiros e um auxiliar de enfermagem. A presença de um maior percentual de mulheres pode estar relacionada ao fato de a enfermagem ser essencialmente feminina e de, na formação desses profissionais, diferentemente do que ocorre na de outros, estarem incluídos conteúdos de administração, de gerência21. Mas a formação não garante uma prática gerencial democrática e participativa, conforme apontado nas falas: “Eu já tive muita dificuldade com médico [...], de não aceitar que você como coordenadora esteja acima dele” (EGF3). “O que a gente tenta [...] é conscientizar o funcionário que ele é subordinado ao enfermeiro” (FGF1). Assim, enfermeiros, ao exercerem a liderança, podem fazê-la forçando sua equipe a simplesmente obedecer às ordens em virtude da “hierarquia” que consideram existir, corroborando os achados em pesquisa realizada por Amestoy et al.22. Essa lógica gerencial está orientada pela racionalidade estratégica que se apoia em regras racionais e busca exercer influência sobre decisões daqueles que são seus parceiros de interação. Nesse sentido, afasta-se de uma postura baseada na escuta e no compartilhamento de decisões, numa atuação dialógica, de articulação e interação interprofissional23. Historicamente, a gerência em saúde sofre forte influência do modelo Taylorista/Fayolista, da administração clássica e do modelo burocrático24. Nesse contexto, Campos11 aponta que, no desempenho dessa importante função, é habitual que a gerência assuma o papel de controlar e regulamentar o trabalho dos demais trabalhadores da unidade de saúde, eliminando todo traço de subjetivismo no momento da execução das tarefas. Há enfermeiros que, realmente, assumem uma prática autoritária no trabalho diante da equipe, “mas em alguns momentos não passam de imagens e estereótipos da figura deste profissional, que foram historicamente construídos ao longo do tempo e que, atualmente, necessitam ser (des) construídos”25 (p. 126). A postura desses gerentes, orientada pela racionalidade estratégica, pode estar influenciada pela existência de um sistema que, na sociedade contemporânea, aponta para o avanço da racionalidade técnica ou do sistema e dos subsistemas (financeiro, jurídico, entre outros) sobre o mundo da vida, ou seja, uma colonização das ações instrumentais e estratégicas em esferas da vida que deveriam ser orientadas pelo agir comunicativo19. Sobre sua função, a maioria dos gerentes de unidades relata que a mesma não é exercida formalmente, devido à inexistência do cargo no organograma das secretarias de saúde. Em muitos casos, são contratados como profissionais da equipe da saúde da família e acabam assumindo, também, responsabilidades gerenciais. Assim, a não-formalidade do cargo e a consequente não-gratificação pela função exercida traz um paradoxo. Ao mesmo tempo que alguns gerentes se encontram em posições de superioridade hierárquica, também há situações em que outros evitam posições e atitudes de confronto ou que desagradem trabalhadores pelo fato de não se sentirem respaldados para tais enfrentamentos, como exemplificado no trecho a seguir: “Não é que eu não quero me indispor com o funcionário, mas eu não tenho uma formalidade para me indispor com o funcionário, então eu não vou ter um respaldo” (AGF2). Portanto, o caminho não é somente institucionalizar o cargo de gerente, mas produzir a 576

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cogestão de coletivos em que exista: troca de informações, escuta de todos para a tomada de decisão, transcendendo a subjetividade e o desejo do sujeito, formando uma rede de relações9. A esse respeito, Habermas defende que, quando o entendimento não for possível e a interação resultar em conflito, há, também nesse caso, na vigência de uma ação comunicativa, maior possibilidade de enfrentamento e solução dos problemas, ou seja, de construção e reconstrução de consensos no nível local19. A diferença de exigência ao cumprimento da carga horária de trabalho entre os profissionais traz conflitos. O profissional médico é tido como o mais “privilegiado” e com “liberdade” sobre sua carga horária, como exemplificam os excertos a seguir: “O médico [...] não fica o dia inteiro [...]. Lá, ele fica assim: três horas, duas horas” (FGF3). “Não atende todos os dias na minha unidade. Ele vai duas vezes por semana, e é para ficar quatro horas, mas não fica” (EGF1). Junqueira et al.7 verificaram que a categoria médica era a que menos cumpria o horário estipulado no contrato de trabalho da estratégia saúde da família (ESF). Uma problemática que permanece na gestão do trabalho médico, em geral, diante do não-domínio sobre o horário, do controle da produtividade e da qualidade do cuidado prestado aos usuários/pacientes26. Em 2011, a portaria no 2.027 apresenta algumas alternativas de jornada de trabalho para os médicos da ESF27, podendo minimizar a questão em alguns contextos, mas não resolver a problemática, pois a mesma não se resume à carga horária. Ney e Rodrigues28 (p. 1301) demostraram a “indignação” de médicos sobre “a política municipal de recursos humanos”, com destaque para a remuneração “considerada muito ruim e inadequada [...] em comparação a salários praticados em outros serviços de saúde e a inexistência de plano de cargos, carreira e salários adequados ao regime da estratégia”. Portanto, no âmbito do SUS, é urgente o desenvolvimento de uma gestão do trabalho que proporcione adequadas condições de atuação, incentivos financeiros e efetivação da carreira profissional, não só para a categoria médica, mas para todos os trabalhadores que atuam na AB. A vinculação ao trabalho por meio de relações não precarizadas é fundamental em qualquer área de trabalho. Em serviços públicos, muitos trabalhadores ingressam por meio de concurso público, sendo regidos pelo estatuto do servidor público, o que garante estabilidade para o trabalhador. Já para o gerente, pode acarretar dificuldade, pois, “a partir do momento que eles [médicos] foram concursados, eles pegaram uma força tamanha que eles não cumprem mais com o dever deles” (DGF4). Por outro lado, a estabilidade proporcionada pelo concurso público garantiu o emprego do gerente, conforme ilustra uma das entrevistadas, com base em uma situação conflituosa vivenciada com o prefeito de um município: “eu [gerente] só não ganhei a conta ainda porque sou funcionária concursada” (DGF4). Essas relações de trabalho têm potencialidade de se constituírem em situações geradoras de conflito no ambiente de trabalho. A esse respeito, Carvalho8 aponta que tal fato se deve à existência de certo descompasso entre dois sistemas jurídicos: o do direito individual desse segmento de trabalhadores – o estatuto do funcionário público – e o do direito geral, constitucional – a normativa do SUS. Problemas relacionados a inadequação, insuficiência ou inexistência de infraestrutura, tais como falta de material de consumo, equipamentos, computadores e viaturas, foram dificuldades referidas: “Nunca tem um carro [...] para fazer uma visita no sítio” (EGF5). Nesse caso, além de prejudicar o trabalho do profissional de saúde, também compromete o acesso do cidadão ao cuidado em saúde.

Dimensão política A dimensão política refere-se às relações de poder intrínsecas a todas as organizações29. Cabe esclarecer que, aqui, serão analisados os resultados que envolvem mais explicitamente questões político-partidárias e eleitorais subjacentes. Mesmo tendo clareza de que toda ação humana é eminentemente política30, outras relações estabelecidas entre diferentes atores, e que podem, de alguma forma, ter implicação política, serão analisadas na dimensão relacional. A política foi apontada como “dificuldade”. O acesso fácil de trabalhadores e de usuários ao prefeito e/ou ao secretário de saúde, os quais detêm o poder “maior”, faz com que seja necessário “contornar as coisas, pois, às vezes, [...] bater de frente não é bom, é ruim” (AGF1). O secretário de saúde procura desenvolver suas atividades e exerce influência nos serviços de saúde segundo o interesse do prefeito, fazendo valer esse poder “maior”. De acordo com um dos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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relatos, isso se deve ao fato de o secretário ocupar um cargo de confiança: “não é concurso, não é por graduação, é por indicação, mas que está lá e representa uma chefia maior do que a gente” (FGF1). Os funcionários da saúde foram definidos como detentores de um poder político “menor”, cujas ações também geram entraves no cotidiano do trabalho em saúde. O gerente toma uma decisão, mas o funcionário se reporta ao prefeito e, no fim, acaba por prevalecer outra determinação. “Cada um quer ver o que é melhor para si” (FGF1). Assim, parece existir falta de participação e compartilhamento das decisões, ou seja, prevalece a centralidade do poder político, como reafirma o trecho a seguir: “A grande verdade [...], o secretário não manda nada, Conselho Municipal de Saúde não manda nada, quem manda é o prefeito, não adianta” (EGF4). No exercício da política, em vez de prevalecer o interesse coletivo, o bem-estar de todos, tem predominado um “realismo político que considera ingênua qualquer postura que não traga para o centro do palco a conquista e manutenção do poder” 31, (p. 26). Os gerentes expressaram que as relações interpessoais no ambiente de trabalho, entre trabalhadores da mesma categoria funcional, são permeadas por interesses político-partidários e, frequentemente, acabam por se manifestar como situações conflituosas, como exemplifica a fala: “Então, acaba acontecendo os conflitos entre os próprios funcionários [...]. Ocorre conflito de motorista com motorista, de agente da dengue com agente da dengue, de ACS com ACS [...], de ACS chegar a se pegar no tapa por questões políticas” (FGF1). No contexto das organizações de saúde, a disputa por interesses e posições, muitas vezes, manifesta-se como conflito32. Nesse sentido, Carvalho8 aponta que, se no ambiente de trabalho, na busca da satisfação de seus interesses e projetos pessoais, algum trabalhador passa a descumprir normas e acordos validados juntamente aos seus parceiros de interação e assumidos como válidos pela organização, esse fato tem potencial para produzir sentimentos de desrespeito, de injustiça naqueles que foram afetados pelo seu descumprimento. Ou seja, a violação das expectativas normativas de comportamento tem potencial para despertar sentimentos capazes de mobilizar sujeitos e desencadear conflitos33. Também em suas ações, os cidadãos, usuários dos serviços de saúde, interferem politicamente nas organizações. Mesmo que não seja intencional, a reivindicação da população usuária do sistema de saúde, dependendo do período/contexto social em que é feita, adquire conotação política. Sobre isso, as falas destes gerentes, em tom de desabafo, são ilustrativas: “O grande problema de todos os municípios é que não existe uma decisão técnica. Na hora das decisões, existe a decisão política [...], a partir do momento que ele vai até o prefeito, o prefeito não vai pensar na decisão técnica [...]. Vai pensar: eu estou precisando do voto” (DGF4). E, “na hora que você fala um não para a população, você está falando um não para o voto” (DGF3). Assim, a proximidade das pessoas em cidades pequenas pode levar a política a uma transversalidade orientada para os interesses pessoais dos envolvidos, e não para o interesse coletivo da saúde da comunidade. Novamente, prevalece nessas relações a racionalidade estratégica, em que um sujeito visa, simplesmente, a manipular outros ou tratá-los como meios para alcançar sua finalidade, suas metas. Segundo Habermas19, essa interação tem natureza monológica e ocorre por meio de um sujeito que conhece, que nomeia objetos, e sua ação se dá a partir de sua perspectiva individual, apoiada em regras racionais com influência sobre as decisões dos seus parceiros de interação para alcançar seu intento, ou seja, interesses particulares. Diante desse cenário, os gerentes referem não ter autonomia, o que faz surgir uma sensação de impotência, conforme sugere a fala a seguir: “Você acaba coordenando e não coordenando, na verdade. Você fala uma língua, o outro fala outra. A política influencia muito” (AGF1). O desafio na construção de um novo jeito de operar a gestão e a gerência no SUS devem se pautar na superação de situações nas quais o mando político prepondera excessivamente. A interação que se pretende entre os atores no campo da saúde é a de produzir um consenso obtido comunicativamente, de forma solidária, sem coerção. Para Rivera23, esses são os pressupostos de um novo paradigma organizacional, em que a escuta organizacional deve articular-se a um projeto de comunicação e a um novo padrão de liderança gerencial que consiga mobilizar os trabalhadores. 578

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Os resultados apresentados permitem compreender que diferentes atores influenciam politicamente a produção em saúde e que o secretário de saúde, que é o ator ocupante efetivamente do cargo político, exerce esse poder político mais fortemente que os demais.

Dimensão relacional A dimensão relacional na saúde se situa no espaço microssocial. Refere-se às relações que se estabelecem entre aqueles que produzem a atenção à saúde, ou seja, às dimensões processuais e intersubjetivas dessas práticas. O termo intersubjetividade nos remete à experiência de contínua reconstrução de identidades que se dá a partir da vivência em sociedade e dos reconhecimentos e das resistências que cada um experimenta no contato com o Outro. Nesse processo, a identidade dos sujeitos vai sendo construída em cada experiência de encontro com esse Outro34. Os resultados apontam que a dimensão relacional afeta de modo significativo o trabalho gerencial. Houve manifestação de gerentes quanto ao fato de terem dificuldades no estabelecimento de relações com os demais trabalhadores da unidade: “Para mim, uma coisa que atrapalha bastante são as relações interpessoais [...]. Você tem que ter muito tato, muito jogo de cintura para conseguir chegar a um desfecho melhor” (FGF1). A gerência se constitui numa ação interprofissional, interdisciplinar e intersetorial, que interage e se articula, por meio de relações intersubjetivas, a vários outros atores8. Desta forma, espera-se da gerência uma ação integrativa no nível local, capaz de articular as necessidades de organização e qualificação do trabalho e de expor as contradições que se fazem presentes na relação entre trabalhadores de saúde14. Contudo, os resultados apontam fragilidade da gerência para lidar com questões cotidianas do trabalho gerencial, especialmente com relações conflituosas. Na gerência de serviços de saúde, as relações interpessoais ora se configuram como aproximativas, ora como conflituosas7. Os conflitos sempre estiveram presentes nas organizações, especialmente naquelas em que os processos de trabalho são mediados pela interação social, como é o caso da saúde. Apresentam-se como algo que escapa, que denuncia, que invade a agenda de quem faz a gestão, que incomoda. Aliás, lidar com conflitos é uma constante no cotidiano dos gerentes e da direção superior, em toda e qualquer organização32. Lidar com essas situações implica que o gerente esteja qualificado para compreender, suportar e interagir com os dramas intersubjetivos do grupo, com situações conflituosas. Ele deve reconhecerse como integrante da equipe de trabalho, porém, como aquele que desempenha uma função de mediador dessas situações35. Entretanto, isso nem sempre acontece, e é usual que os gerentes não se sintam preparados para o desempenho dessas funções, como apontado: “Acho que a maior dificuldade minha em relação ao gerenciamento da equipe está em mim mesmo. Eu [...] tenho dificuldade em determinar ações” (BGF1). Além da falta de preparo, há de se destacar a complexidade da atuação gerencial nesse campo, como exposto nas falas a seguir: “Igual a minha ACS, ela é [...] pós-graduada e, lá dentro, ela não quer fazer visita” (EGF2). “Nós tivemos uma funcionária que ela era um problema, em todo lugar ela causava problema” (BGF3). Para lidar com essa complexidade, Campos11 defende que o gerente, além de buscar promover a desalienação dos trabalhadores, proporcionando autonomia e espaço para a criatividade, deve utilizarse de mecanismos regulatórios da autonomia e do corporativismo dos profissionais, pois não é possível operar sistemas de saúde sem certo grau de controle institucional. Além de relações conflituosas, foram manifestadas relações aproximativas, como as vivências do trabalho em equipe, com vínculo entre os integrantes e complementaridade das ações desenvolvidas. Como exemplifica a fala: “Tenho uma equipe boa da enfermagem. As meninas são muito profissionais, [...]. Então, é uma coisa que facilita você trabalhar bem com a equipe” (AGF1). No contexto contemporâneo das práticas de saúde, há a necessidade de que o trabalho seja desenvolvido em equipe, numa lógica de colaboração, ou seja, com a articulação das ações e interação entre os profissionais36. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Um dos aspectos mais relevantes relacionados à equipe de trabalho, referido por gerentes de serviços públicos de saúde, seria o profissional ter compromisso com o projeto institucional36, e esse aspecto, ou seja, a corresponsabilidade, foi referido nesta pesquisa como uma questão relevante para o trabalho gerencial. “Então, a corresponsabilidade é uma facilidade” (BGF1). “Uma coisa que eu tenho facilidade na equipe de enfermagem é que eles são bem comprometidos, [...] se preocupam com o serviço, com o paciente” (DGF3). Porém, para que o trabalhador se corresponsabilize pelo projeto político-institucional, ele precisa se sentir partícipe, sentir-se reconhecido como pessoa de valor. Precisa ser respeitado em suas ações e decisões, tanto pelo gerente como pelos demais trabalhadores. Fato apontado como relevante para tornar o ambiente de trabalho menos propício a conflitos, como expresso: “Funcionário tem que te respeitar, não tem que ter medo de você” (GGF1). “E eu falo para minha equipe que a gente não precisa ser todo mundo amigo de todo mundo [...], mas pelo menos o diálogo entre eles, o respeito tem que ter” (DGF1). Um trabalho que seja efetivamente realizado em equipe pressupõe a construção de um projeto compartilhado, ou seja, é um processo que implica a existência de acordos com relação a objetivos e resultados a serem alcançados pelo conjunto de trabalhadores em diferentes momentos, desde planejamento, execução e avaliação, e, também, nos momentos de tomada de decisões36. Nesses processos, a ação comunicativa é utilizada em seu sentido forte e volta-se, ativamente, para que os partícipes coordenem suas ações e construam, com seus atos de fala, ao se entenderem mutuamente, acordos solidários19. Para que isso ocorra, é necessário que a equipe se aproprie e assuma a construção de seu projeto de trabalho, ou seja, que assuma a gestão do trabalho. No relato de gerentes, é possível observar que isso nem sempre acontece, ou seja, que depende de quem esteja naquele momento na direção de uma secretaria de saúde, conforme apontam os excertos a seguir: “A nossa diretora de saúde, hoje [...], temos até o privilégio [...] de ser uma pessoa aberta, de fácil relacionamento, que respeita a enfermagem [...]. Quando o funcionário faz a ponte, não passa pela gente, e vai direto para ela, primeiro. Ela passa para a gente. Então, hoje, nós temos esse privilégio, mas não são em todos os momentos”. (FGF1) “Eu acho que a administração pesa muito [...]. Em várias administrações atrás, mais ou menos umas três administrações atrás, a gente conseguia ter essa autonomia, [...] a gente conseguia organizar. Hoje em dia, nós não temos autonomia de nada”. (DGF4)

Segundo Bonaldi et al.37, gestão e atividade de trabalho são categorias inseparáveis, pois trabalhar é gerir e, acima de tudo, exige gestão. Um projeto compartilhado requer a gestão de diferentes saberes, orientada por valores éticos que norteiam escolhas coletivas, dificilmente isentas de conflito, na efetivação da integralidade da atenção e do cuidado em saúde.

Considerações finais A gestão da saúde é altamente complexa, e o trabalho de gerentes de UBS integra esse cenário. Este estudo explicita essa complexidade, ao desvendar aspectos que afetam o cotidiano do trabalho gerencial relacionados às três dimensões analisadas. Na dimensão organizacional, constata-se que a gerência é exercida de modo informal na maioria dos municípios estudados, e que o enfermeiro é o profissional que mais tem assumido essa função. Identificou-se a predominância do modelo gerencial verticalizado. Além disso, foram identificados dois gerentes com formação de nível Médio, o que pode dificultar, ainda mais, o desenvolvimento do trabalho. Foram referidos problemas relacionados à infraestrutura dos serviços e às exigências diferenciadas no cumprimento da carga horária de trabalho entre os profissionais.

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Na dimensão política, averiguou-se que interesses político-partidários e eleitorais subjacentes se sobrepõem às decisões gerenciais, demonstrando falta de autonomia, o que leva à desmotivação, ao desinteresse e ao descrédito pelo exercício da função gerencial. Na dimensão relacional, verificaram-se fragilidades no exercício da gerência na mediação dos conflitos e no estabelecimento de mecanismos regulatórios da autonomia dos profissionais. Foram identificadas tanto situações conflituosas, com desrespeito entre trabalhadores, como situações colaborativas, com diálogo entre os profissionais e a gerência, e o desenvolvimento do trabalho em equipe. Com base nos resultados apresentados, pode-se inferir que, nos pequenos municípios, os processos gerenciais são pouco desenvolvidos, o que compromete a gestão do trabalho no SUS nessas localidades. Para superação dos problemas apontados, recomenda-se legitimar a função gerencial, ou seja, que seja instituída e formalizada nos municípios. Também se faz necessário que aqueles que ocupam essa função passem por processos de formação gerencial em que seja desenvolvida a liderança, a atitude dialógica, mas que não se descarte o uso da autoridade. Nos pequenos municípios, esse trabalho deveria ser apoiado mais efetivamente pelas esferas estadual e federal, com atuação estratégica em questões de gestão do trabalho no SUS, como a formulação de políticas orientadoras de gestão, formação e qualificação gerencial, por meio de processos de educação permanente. Outra recomendação seria o apoio, aos gerentes, para o desenvolvimento de uma gestão mais participativa, com maior simetria nas relações e maior apropriação, pelos trabalhadores, do projeto de atenção à saúde que desenvolvem, de forma que se tornem copartícipes da gestão do trabalho. Também seriam necessários aprovação e apoio do controle social aos projetos desenvolvidos. Isso certamente contribuiria para que a ingerência política afetasse menos o desenvolvimento cotidiano do processo do trabalho nas UBS. Conclui-se que a pesquisa apresentada reúne informações relevantes para a compreensão dos aspectos que afetam o cotidiano do trabalho gerencial em unidades básicas de saúde de municípios de pequeno porte. No entanto, recomenda-se a continuidade de pesquisas que aprofundem a compreensão do trabalho gerencial nesses municípios.

Colaboradores Os autores Elisabete de Fátima Polo de Almeida Nunes; Brigida Gimenez Carvalho; Sonia Cristina Stefano Nicoletto participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação, e da revisão do texto. Luiz Cordoni Junior participou da análise dos dados, discussão e revisão do texto. Referências 1. Guizardi FL, Cavalcanti FOL. A gestão em saúde: nexos entre o cotidiano institucional e a participação política no SUS. Interface (Botucatu). 2010; 14(34):633-45. 2. Santos L, Andrade LOM. SUS: o espaço da gestão inovada e dos consensos interfederativos: aspectos jurídicos, administrativos e financeiros. 2a ed. Campinas: Saberes; 2009.

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Nunes EFPA, Carvalho BG, Nicoletto SCS, Cordoni Junior L. Gestión del trabajo en Unidades Básicas de Salud de pequeñas ciudades en Paraná, Brasil. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):573-84. Para entender cómo la dimensión organizativa, política y relacional afecta el cotidiano del trabajo de gestión en pequeños municipios del norte de Paraná, se llevó a cabo este estudio cualitativo con datos recogidos en grupos de discusión. La enfermera suele desarrollar la función gerencial, aunque informalmente. El modelo de gestión vertical y autoritaria es predominante, y existe fragilidad frente al ejercicio de la autonomía profesional y el corporativismo. En la dimensión política, intereses político-partidarios se superponen a las decisiones gerenciales; en cuanto a lo relacional, es posible observar manifestación de conflictos, con falta de respeto y disputas, pero también hay colaboración con diálogo y trabajo en equipo. En estos municipios los procesos de gestión están poco desarrollados, lo que requiere la profesionalización y formalización del puesto, además de educación continua para los gerentes.

Palabras clave: Atención Primaria de Salud. Administración de los servicios de Salud. Gerencia. Recursos humanos en Salud. Conflicto.

Recebido em 06/02/15. Aprovado em 23/11/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0338

artigos

Organizações sociais como modelo de gestão da assistência à saúde em Pernambuco, Brasil: percepção de gestores Hélder Freire Pacheco(a) Garibaldi Dantas Gurgel Júnior(b) Francisco de Assis da Silva Santos(c) Simone Cristina da Costa Ferreira(d) Eliane Maria Medeiros Leal(e)

Pacheco HF, Gurgel Júnior GD, Santos FAS, Ferreira SCC, Leal EMM. Social organizations as management model of healthcare in Pernambuco, Brazil: perceptions of managers. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):585-95.

The study examines the perception of public officials on the adoption of a management model based on the transfer of management responsibilities to the so-called ‘social organizations” in health care. We use a multi-method qualitative approach incorporating as research techniques semi-structured interviews with Pernambuco state public managers and focus groups with municipal levels of this State, and analysis of documentary data. The results show differences in the perception of managers regarding the state regulation of these organizations and political disagreements about the model itself. As conclusions, there are different views with respect to the management model adopted, depending on the position occupied by the public manager in the Health System in the State.

Keywords: Organizations in Health. Health manager. Health Policy and Health management.

O estudo analisa a percepção dos agentes públicos quanto à adoção do modelo de gestão baseado na transferência de responsabilidades gestoras para Organizações Sociais na assistência à saúde. Utiliza-se uma abordagem qualitativa multimétodo, tendo, como técnicas de pesquisa, entrevistas semiestruturadas com gestores públicos estaduais, e a realização de grupo focal com gestores municipais da saúde, no Estado de Pernambuco, além de análise de dados documentais. Os resultados apontam divergências quanto à percepção dos gestores no tocante à regulação do Estado sobre essas organizações e discordâncias políticas sobre o modelo em si. Conclui-se que existem visões distintas, com respeito ao modelo de gestão adotado, de acordo com a posição que ocupa o gestor público no Sistema Único de Saúde no Estado.

Palavras-chave: Organizações em Saúde. Gestor de Saúde. Política de Saúde e Gestão em Saúde.

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(a) Mestrando, Departamento de Saúde Coletiva, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Av. Prof. Moraes Rêgo, s/n, Cidade Universitária. Recife, PE, Brasil. 50740-465. helder-pacheco@ bol.com.br (b) Departamento de Saúde Coletiva, Fiocruz. Recife, PE, Brasil. gurgel@ cpqam.fiocruz.br (c) Centro Acadêmico do Agreste, Universidade Federal de Pernambuco. Caruaru, PE, Brasil. francisco.a.santos@ hotmail.com (d) Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. scriscf@gmail.com (e) Secretaria Municipal de Saúde, Ipojuca, PE, Brasil. eliane.medeiros. leal@gmail.com

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Introdução Os projetos de reforma do setor saúde no Brasil, nas últimas duas décadas, têm sido baseados em modelos teóricos, cuja diversidade de propósitos e objetivos políticos-institucionais têm provocado intenso debate e significativas mudanças estruturais no Sistema Único de Saúde. Souza e Carvalho1, de forma mais ampla e didática, esclarecem que os processos da Reforma do Estado, onde estão contextualizados esses processos de reforma setorial, ocorreram em dois estágios. A primeira geração foi pautada: na implantação de medidas de ajuste fiscal, abertura dos mercados, desregulamentação e privatizações. No entanto, tendo em vista a crise permanente que se abateu sobre os serviços públicos, diante de tais medidas contracionistas, os países iniciaram uma segunda geração de reformas estruturais. Essa reforma vem sendo pautada pela tentativa de reconstrução das capacidades administrativas e institucionais do serviço público. Portanto, duas gerações de reforma, na atualidade, se superpõem no país, sendo a primeira de cunho neoliberal, e a segunda de caráter regulador. Porém, ambas orientadas por diretrizes de mercado. No SUS, esses processos vêm sendo operacionalizados pelos gestores públicos, e o debate institucional tem provocado uma grande variação na forma de aplicação de novos modelos de gestão. Desde meados dos anos 1990, no Brasil, a expressão concreta destas mudanças, com medidas que se superpõem, está representada pelo Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), proposto pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (Mare), ainda no primeiro governo FHC (1995-2002). Na área dos serviços não exclusivos do Estado, como a saúde, uma das questões centrais do debate diz respeito à implantação de novas formas de gestão e provisão dos serviços públicos2. Nesse contexto, o PDRAE3 defendia a substituição paulatina das funções de provisão de serviços para a função de regulação da produção, especialmente, em organizações complexas, como os hospitais. Estes passariam a ser geridos por entes sem fins lucrativos, de natureza jurídica de direito privado, as Organizações Sociais (OSs), limitando a produção estatal no serviço público. De acordo com o PDRAE3: As Organizações Sociais em Saúde (OSSs) são definidas como entidades de interesse e de utilidade pública, associação sem fins lucrativos, surgidas da qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, nas atividades de ensino, pesquisa tecnológica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio-ambiente. (p. 60)

Segundo Carneiro e Elias4, as OSSs tornaram-se uma das principais naturezas jurídicas na redefinição do perfil e tamanho do setor público, executando atividades antes consideradas de caráter estatal, o que marca o início da efetiva participação de novos atores sociais e agentes econômicos na prestação de serviços à sociedade no SUS. As OSSs foram institucionalizadas no Brasil e regulamentadas na forma da Lei nº 9.6375, de 15 de maio de 1998, por meio do Programa Nacional de Publicização. A partir daí, os estados da federação também implantaram as OSSs como modelos de gestão no âmbito da saúde, destacadamente o Estado de São Paulo. Em Pernambuco, a qualificação dessas organizações sem fins lucrativos foi regulamentada pelo decreto nº 11.743/20016. Entretanto, somente em 2009, o governo estadual inicia o repasse da gestão dos novos serviços de saúde para as OSSs. O Hospital Miguel Arraes foi o primeiro dos novos serviços inaugurados a ser repassado à gestão das OSSs, sendo estabelecido o primeiro contrato de gestão. Em dezembro de 2014, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco informa, em seu site, que oito hospitais estão sob contrato de gestão com OSS, sendo: três metropolitanos e cinco no interior do Estado, 15 Unidades de Pronto Atendimento (Upas), e cinco Unidades Pernambucanas de Atenção Especializada (UPA-E), totalizando 28 unidades de média e alta complexidade7. O objetivo deste estudo é analisar a percepção dos gestores públicos da saúde quanto à operacionalização do modelo de gestão com execução de serviços e ações por meio das OSSs, no Estado de Pernambuco, dentro do contexto da segunda geração de reformas da administração pública. 586

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Método Trata-se de uma pesquisa analítica, com abordagem qualitativa multimétodo. Gomes et al.8 afirmam que esse tipo de pesquisa contribui e dá força ao conjunto de conhecimentos produzidos em saúde coletiva, ampliando um fazer ciência que seja, de fato, rigoroso e alicerçado em bases teóricas. Os sujeitos foram constituídos por gestores ligados à Secretária Estadual de Saúde do Estado de Pernambuco e Secretários Municipais de Saúde membros do Conselho de Secretários Municipais Cosems - PE. Os gestores ocuparam cargos no período de implantação e operacionalização das OSSs no Estado e nos municípios, participando, efetivamente, desse processo. Foi considerado, para este estudo, um universo composto de oito gestores estaduais e dez secretários municipais de saúde que representavam todas as quatro macrorregiões administrativas do Estado, totalizando dezoito sujeitos participantes da pesquisa. A coleta de dados ocorreu entre junho de 2012 e junho de 2013. Foram utilizados dados primários coletados a partir de entrevista semiestruturada, realizada com gestores estaduais. E a realização de um grupo focal com gestores municipais. Também foram coletados dados documentais de caráter oficial. A análise do conteúdo do material coletado foi realizada mediante a análise de condensação de significados de Kvale9. Assim, após a obtenção dos dados, foram selecionadas as unidades naturais de análise, constituídas por trechos das falas transcritas relacionados à pergunta da pesquisa, sendo, então, apresentados os temas centrais, que representam o conteúdo obtido da análise das respostas, a partir da compreensão do pesquisador. Ao final, isso contribuiu para a descrição essencial da questão da pesquisa, conforme a interpretação do pesquisador acerca da questão comentada pelo entrevistado. A pesquisa foi realizada de acordo com a resolução n. 466/12, do Conselho Nacional de Saúde, respeitando-se a integridade física e moral dos participantes. Para o sigilo das informações, foi utilizado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães.

Resultados e discussão A partir da leitura das respostas dos gestores, foram definidas três categorias centrais que permearam a execução da pesquisa para facilitar a compreensão e o aprofundamento das questões mais relevantes do estudo. Os temas trabalhados foram definidos após a pesquisa de campo, pelo fato de representarem o resultado da análise preliminar das falas dos atores, que resultou nas seguintes categorias emergentes: gestão estadual do SUS e o papel das OSSs; influências, decisões e questionamentos quanto à implementação das OSSs, e à eficiência e autonomia gerencial.

A gestão estadual do SUS e o papel das Organizações Sociais em Saúde A disseminação de projetos de Reforma do Estado, a partir da década de 1980, nos países desenvolvidos, e na década de 1990, no Brasil, assume que o modelo da administração pública vigente não era mais capaz de atender às novas demandas da sociedade. A partir disso, se propagou um novo paradigma gerencial que trouxe, para a gestão pública no Brasil, alguns princípios típicos da gestão privada, como: eficiência, concorrência e produtividade10. Assim como, a ênfase para o caráter regulador do Estado baseado na transferência da execução das ações públicas no segundo estágio das reformas estruturais do setor público. No SUS em Pernambuco, esse processo tem início a partir do novo desenho institucional do Estado no PDRAE onde é dada a diretriz para o papel regulador da autoridade sanitária; e a gerência das unidades de saúde passaria a ser realizada pelas OSSs. Isto fica claro nas falas dos gestores estaduais de saúde:

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“[...] A gestão é sempre por parte do Estado. As OSSs têm auxiliado na gerência de algumas unidades hospitalares [...], quem determina o perfil das unidades e as metas é a Secretaria Estadual de Saúde. Vamos deixar sempre claro que a gestão é do Estado [...]”. (E1) “[...] Os equipamentos são todos tombados pelo Estado, [...] aqui esta questão ainda está muito amarrada. [...] toda a estrutura física é do Estado, então as OSSs só entram com recursos humanos e a expertise em gestão [...]”. (E3)

Os gestores estaduais reiteram que, com a delegação de serviços às OSSs, o Estado não perde a importância, mas apenas desloca-se para o papel primordial de coordenação e controle das OSSs, estabelecendo as metas para a execução dos serviços. Críticas ao modelo de gestão direta dos serviços públicos têm sido utilizadas como argumento para reforma do aparelho estatal e uma das principais justificativas para a cessão desses serviços às OSSs. Por outro lado, os gestores municipais membros do Cosems também apontam como importante as mudanças na forma de gestão do SUS. Mas, esses gestores apresentam uma visão mais crítica em relação ao modelo, demonstrando receio quanto ao propósito da operacionalização dos serviços a partir desse arranjo jurídico no sistema de saúde estadual. As questões abaixo demonstram algumas críticas e diferenças observadas: As OSSs operam com base em contratos de gestão. Nesse sentido, evidencia-se que a relação do Estado com as entidades tem por base o cumprimento de metas e alcance dos objetivos adotados pela gestão, como prescreve o PDRAE. “[...] As OSSs são executoras, e gerenciam pelo padrão imposto pela secretaria por meio do contrato de gestão, e produzem dentro do que está pactuado no contrato, e o grande mérito da secretaria é fazer o monitoramento, vale salientar que existem cláusulas no contrato que penalizam e que até podem afastar a OSS, uma vez que ela não cumpre as metas [...]”. (E7)

Alcoforado11 chama a atenção quanto aos três passos para a contratualização: a negociação, que se inicia com a intenção de contratar o serviço, que vai desde a identificação dos indicadores de desempenho até a respectiva orçamentação; a construção do instrumento, no qual se formaliza tudo que foi negociado, aperfeiçoando e aferindo todos os pontos acordados; e o gerenciamento, sendo este último permanente, pois compreende todas as atividades de supervisão e monitoramento posterior da entidade, previamente submetida a processos regulatórios. Um dos pontos mais conflitantes desse processo, e objeto de crítica, é a ausência de procedimentos regulatórios prévios – que deveriam ser realizados anteriormente à elaboração do contrato de gestão com as OSSs por parte de diversos órgãos públicos no Estado. Dentre esses, se destacam os processos de governança do SUS e a necessidade da tomada de decisão colegiada nas comissões gestoras e nos órgãos de controle social. Observa-se que o primeiro passo nesse processo de transferência se refere à negociação e pactuação necessários desde os primeiros passos da introdução do modelo. Quanto a isso, há divergências explícitas nas seguintes falas do grupo focal: “[...] As ações do estado, no qual se fez a transferência da gestão para OSS, foi por cima dos municípios, sem conversar com o município, só fez abrir o processo, porque havia uma ansiedade, a gente vinha pedindo pra resolver o problema na maior oferta de serviços, e o estado resolveu da forma que quis, fez o que quis, independente de ter conversado com a gente [...]”. (GF) “[...] Nós não tivemos a capacidade de sentar numa mesa de negociação de gestores e negociar aqui. Então os arranjos eles foram postos como possibilidades, possibilidades interessantes, mas colocadas como uma decisão unilateral da gestão do Estado. Isso não pode ser regra. Tudo deve ser bem discutido pelos foros de pactuação [...]”. (GF)

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No tocante aos processos de controle, o estado de Pernambuco faz o acompanhamento das atribuições, responsabilidades e obrigações das OSSs, e instrumentos são estabelecidos para isso, com foco em diferentes níveis e dimensões do controle interno e externo, tais como: o contrato de gestão, renovado anualmente, o relatório financeiro e o relatório de execução e desempenho, com periodicidade mensal. Uma vez estabelecidos os parâmetros, o controle sobre as OSSs ocorre a partir do acompanhamento e da avaliação dos resultados obtidos pela entidade, que devem ser comparados com o que foi previamente acordado no contrato de gestão. Porém, aqui também se evidenciam algumas dificuldades desse processo no contexto da governança do SUS. Segundo Leite12, em Pernambuco, nos contratos de gestão firmados entre a administração pública e as organizações sociais de saúde, verifica-se a existência de cláusulas que estabelecem metas pouco ambiciosas, a exemplo do simples envio de relatório para o cumprimento de determinada meta. Contudo, em 2013, o Governo de Pernambuco publicou a Lei Estadual nº 15.210, a qual ampliou consideravelmente cláusulas essenciais dos contratos firmados com OSS. Um exemplo disso foi que a Secretaria Estadual de Saúde passou a exigir o envio mensal de todas as notas fiscais relacionadas aos recursos repassados por meio do contrato de gestão, assim como a exigência de CNPJ próprio para cada unidade de saúde administrada pela OSS mantenedora, ou seja, não é mais aceitável que a OSS realize contratações ou pagamentos com o CNPJ da mantenedora. No caso de órgãos de controle externo, tem evoluído a prestação de contas a partir da garantia de acesso aos dados técnicos e financeiros, seja pelo site da Secretaria de Saúde do Estado ou por solicitação, contribuindo para a redução na assimetria de informação, mediante a publicização do comparativo de metas e resultados, contido, inclusive, no relatório de execução12. Portanto, Violin13 destaca que o processo de fiscalização das OSSs ainda tem percalços, como a dificuldade de acesso às informações por parte dos órgãos de controle externo, como os Tribunais de Contas, e, mesmo, internamente pelos órgãos de Controle Social do SUS. Esse autor afirma que, por serem as OSSs entidades que recebem recursos públicos, devem garantir transparência e acesso irrestrito e sem burocracia a qualquer informação solicitada de forma ágil. O que fica mais evidente é a mudança na estrutura organizacional da administração pública, com o gestor público estadual optando por uma função cada vez mais voltada à regulação e uma nova forma de executar os serviços seguindo diretrizes contidas nos PDRAE e nos documentos congêneres da SARE-PE aprovados ainda na década de 1990. Assim, é importante destacar uma percepção divergente dos gestores públicos municipais, quando não consideram o modelo de gestão por OSSs como única via para a efetividade da ação pública, mas como uma alternativa do Estado em fazer escolhas diante das diversas situações estratégicas na saúde.

Influências, decisões e questionamentos quanto à implementação das Organizações Sociais em Saúde A análise de documentos oficiais aponta que o processo de aprovação do projeto de reforma do aparelho estatal em Pernambuco teve início ainda no governo Jarbas Vasconcelos, em 1999, a partir da premissa de que não havia recursos financeiros suficientes para atender à expansão de serviços dentro dos padrões de gestão tradicional. Assim, seria necessário fomentar o desenvolvimento de redes hospitalares públicas não estatais, objetivando criar entidades com capacidade de gestão e execução, que pudessem vir a assumir a assistência à saúde, mediante contratualização da prestação dos serviços14. Entretanto, a operacionalização desse processo só começou a entrar efetivamente na agenda partir de 2006, quando o então candidato Eduardo Campos, em seu programa de governo, apontou que um novo modelo de gestão precisava ser construído, orientado por três eixos: o da organização gerencial, o da democratização da relação com servidores públicos, e o do sistema de controle das funções estatais. Nesse contexto é que, apenas em 2009, o Governo do Estado define como prioridade a transferência da gestão de novas unidades hospitalares às OSSs14. Assim, o modelo de gestão baseado na execução de serviços por OSSs no SUS em Pernambuco é baseado na qualificação de entidades filantrópicas com objetivo de expandir a oferta de serviços COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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e garantir melhores resultados no SUS. Aqui se evidencia uma mudança no discurso no tocante à primeira geração de reformas de natureza gerencialista. Diretrizes restritivas e redução do gasto público na saúde não aparecem como motivo para o gestor público adotar o modelo. Já que a gestão estadual do SUS tinha como principais objetivos dar rapidez à operacionalização dos novos hospitais, com a ampliação do número de equipamentos e serviços oferecidos à população. Essa visão fica mais clara no depoimento abaixo, coerente com as medidas de segunda geração contidas no PDRAE3, enfatizando que, mesmo com essa delegação de serviços pelo Estado, o equipamento não deixa de ser responsabilidade do Estado: “[...] Se entendeu que para as novas unidades seria interessante o modelo de Organizações Sociais, porque pra nossa opinião ele mantinha toda uma estrutura pública, o serviço como público, apenas você incorporava um prestador, uma OSS que faria esta prestação de serviços, e integrado à rede já existente [...]”. (E3)

A influência externa e a experiência em outros governos foram salientadas com ênfase pelos gestores estaduais para priorizar o modelo de gestão por OSSs: “[...] Nós nos espelhamos em algumas experiências internacionais, como na Espanha. Além disso, implantamos um modelo que já funcionava no Sul do país, principalmente em São Paulo, no Paraná, em Minas Gerais, e nós enfrentamos questões políticas, corporativas, mas tivemos maturidade para enfrentar essa questão [...]”. (E2)

A opção por esse modelo de gestão foi referenciada como resultado, sobretudo, da história pregressa de prestação de serviços de algumas OSSs no Estado, já que algumas delas já atuavam como entidades filantrópicas em caráter complementar ao SUS. “[...] No nosso caso aqui em Pernambuco a maior parte das entidades é 100% SUS e algumas têm um pequeno percentual de atendimento fora do SUS. São unidades que têm história, mais de 150 anos, unidades como o IMIP, Fundação Manoel de Almeida que opera o hospital Maria Lucinda, o hospital Tricentenário. São unidades que já tinham grande experiência de décadas de SUS [...]”. (E3)

A partir da opção pelas OSSs para execução dos serviços no modelo de gestão, um dos principais questionamentos diz respeito à possibilidade de privatização das unidades estatais. Esse tem sido um dos fatores de resistência explícita ao modelo, pelos atores políticos do SUS, nos espaços de decisão colegiada. Segundo Bresser15, o repasse dos serviços para as OSSs não se configura como um processo de privatização, mas de publicização, ou seja, a transferência da gestão de bens e serviços públicos a cargo de entidades autárquicas e fundacionais. O conceito em si difere de uma privatização, que seria a venda de ativos públicos que não devem mais permanecer no setor público. Esse entendimento é colocado pelo gestor estadual: “[...] Nós nunca permitimos que a gestão do sistema ficasse na mão de uma OSS, e nunca privatizamos nada. Todo o patrimônio das UPAs, dos hospitais, é público. Privatizar é quando um patrimônio que é público passa a ser de outro alguém, e isso não aconteceu aqui. Patrimônio no sentido permanente é público. Além disso, todas essas unidades atendem 100% ao SUS [...]”. (E6)

Contudo, Di Pietro16 discute que uma entidade não estatal, ao exercer as atividades antes exercidas diretamente pelo Estado, nada mais é do que uma forma de orientar os processos de reforma por diretrizes do mercado. Ou seja, para esse autor é uma forma de privatização em sentido amplo. Essa é uma das razões para observação de divergências de opinião entre os gestores do SUS no estado de 590

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Pernambuco. Para gestores municipais, a saúde é dever do Estado, que não pode se afastar de suas funções, atribuindo-as a terceiros. “[...] Eu sou ideologicamente contrária. Eu acho que o SUS tem todas as condições que a gente precisa. Eu quero falar que não precisa de OS, a gente precisa é de dinheiro, qualificação e menos burocracia para que se possa fazer a própria gestão [...]”. (GF)

Além disso, gestores municipais avaliam que a transferência para OSSs, de alguma maneira, desmoraliza o papel do gestor do SUS, já que denotaria, de sua parte, uma falta de competência para gerir um serviço de sua responsabilidade, motivo pelo qual ele é repassado para um novo prestador privado. “[...] Acho que o serviço continua público sim, porque foi construído com recursos públicos, então ele é público. Agora o que é revoltante é que na hora que eu ponho a unidade na OSS eu tô dizendo que eu não tenho competência administrativa gerencial para fazer meu próprio atendimento [...]”. (GF)

Outro dado que chama a atenção nos relatos dos gestores municipais é que, embora defendam a gestão dos serviços direta pela administração estadual, há uma constatação das dificuldades impostas com o limite prudencial da Lei de Responsabilidade Fiscal, que facilita a opção por esses novos arranjos jurídicos. “[...] A gente tem uma coisa muito ruim no serviço público que é o limite prudencial, que impede que o gestor faça mais alguma coisa, e aí porque às vezes eu sou obrigada terceirizar algo porque eu não tenho condições de contratar, não é porque eu não tenho dinheiro, mas meu limite de prudência não deixa [...]”. (GF) “[...] Para você continuar garantindo a assistência, você tem que ampliar serviços. E, se você quiser ampliar qualquer coisa, a lei diz logo, pare se não você vai pagar uma multa, porque ultrapassou o limite prudencial [...]”. (GF)

O limite prudencial estabelece um teto para pagamento de funcionários públicos, sendo muito criticado pelos gestores do SUS. Em 2012, a despesa com pessoal, em Pernambuco, já somava 56,26% da receita corrente líquida, quando o limite autorizado é 60%, para o cumprimento da meta fiscal17. Sendo assim, há uma percepção comum dos gestores públicos sobre OSS que enfatiza os limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa percepção está associada, também, à redução de entraves burocráticos e flexibilização da gestão de recursos humanos. Fica claro, portanto, que existem diferenças de visão dos gestores sobre o processo de adoção do novo modelo de gestão baseado em OSSs em Pernambuco. Os gestores estaduais defendem o modelo de gestão como forma de expandir a prestação de serviços públicos. Enquanto, para os gestores municipais abordados no estudo, a autoridade sanitária estadual deveria se fortalecer para atuar na execução direta dos seus próprios serviços. Assim, a rápida expansão de serviços públicos de saúde no SUS, sob responsabilidade direta do gestor estadual, especialmente os novos serviços de média e alta complexidade, de acordo com o novo modelo de gestão, são transferidos para OSSs num ambiente de conflitos e resistência. Dentre as justificativas para agilização desse processo por parte da Secretaria Estadual de Saúde, está a necessidade de ampliação do acesso, enfrentando, assim, problemas de saúde que perpassam pelo social. De outro lado, visões distintas evidenciadas, por parte de gestores municipais, enfatizam que a forma como esse processo vem se dando está mais relacionada à vontade política em priorizar tal modelo, em detrimento do modelo tradicional da administração pública. Essa situação observada em Pernambuco pode ser a razão pela qual a implantação do modelo enfrentou significativo atraso pela divergência aqui evidenciada. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Eficiência e autonomia gerencial e os resultados As OSSs estão submetidas a incentivos e estímulos do mercado na administração dos serviços públicos. Tais características possibilitam maior agilidade à gestão, comparativamente à administração estatal tradicional, sobretudo quanto às amarras e burocráticas, contribuindo para a ampliação da capacidade de resposta rápida da organização às demandas em saúde18. Na percepção dos gestores, a capacidade de agilizar os processos e a flexibilização na administração dos serviços permitem uma melhor alocação de tempo e atenção a uma agenda de prioridades. “[...] Foi um modelo que está dando certo, e apesar de inovador, já conseguiu um espaço de reconhecimento da população, inclusive pela qualidade do serviço, agilidade no funcionamento, porque como é um modelo centrado no resultado, os resultados não são só de produção, são resultados de qualidade. Então hoje a gente tem o público com as regras do privado [...]”. (E7) “[...] O papel das OS era muito claro: gerenciar essa unidade e atingir determinados resultados, trazendo agilidade. Nós chamamos o sistema privado naquilo que eles têm de melhor: eficiência. Nós chamamos eles pra fazerem isso, porque a gente não foi capaz de fazer isso, por muitos anos [...]”. (E6)

A agilidade, como citada nas entrevistas, está associada à flexibilização de alguns controles típicos da administração publica. No caso das compras, por exemplo, previu-se um regime diferenciado na realização de licitação, podendo a OSS criar um procedimento próprio adaptado à natureza dos serviços que presta. Entretanto, de acordo com a própria lógica da gestão por resultados essa forma de gerir deve ser complementada pela exigência do cumprimento de metas pactuadas por meio da contratualização19. Segundo Ibanez et al.20, isso configura um processo de ‘responsabilização pelo controle de resultados’. Porém, com potencial fragilização do controle de processos pelo modelo em si. No que se refere à gestão de Recursos Humanos, sabe-se que, nas unidades da administração direta e indireta, os limites institucionais para execução das ações de saúde por unidades próprias estão relacionados ao condicionamento estabelecido por instrumentos que regulam os gastos públicos, que incluem tetos para gastos com pessoal, além de uma legislação que define a forma de ingresso e permanência no serviço público2. “[...] O quadro de recursos humanos do Estado de Pernambuco não iria comportar naquela época a administração de todas essas unidades, então a questão de recursos humanos foi mais um fator que contribuiu para a adoção desse modelo [...]”. (E8) “[...] A facilidade de contratação na OSS, ancorada principalmente em análise de currículo e entrevistas para identificação do perfil do candidato, é um fator de qualidade pra os serviços, como também elimina qualquer risco de interrupção na continuidade da assistência. Além do que todos os admitidos na organização têm seus vínculos de trabalho ordenados segundo a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [...]”. (E4)

Segundo Rinne21, o modelo gerencial adotado exime o Estado quanto à classificação dos gastos públicos com pagamento de recursos humanos, tendo em vista que, ao delegar a função de administração a outro ator, a despesa deixa de ser classificada como despesa especificamente com recursos humanos. Isso contrasta com a situação dos órgãos da administração pública estatal e paraestatal, que devem obedecer aos tetos para gastos com pessoal, além de uma legislação que define a forma de ingresso e permanência no serviço público. Ademais, as formas de contratação via concurso público, muitas vezes, dependem de autorização da área econômica dos governos. Pontes Filho22 coloca em dúvida se as OSSs são exemplos de boa e moderna administração e com instrumentos mais ágeis de satisfação dos interesses públicos. Justifica sua posição porque a elas não se impõem as mesmas restrições das entidades da Administração Pública. Esse ponto é destacado na visão 592

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de gestores municipais, pois, a partir do momento em que a rede de saúde cresceu, com as limitações do poder público, isso facilitou a adesão do modelo de OSS. “[...] Lá atrás ninguém pensou que a rede ia crescer e a ampliação foi imensa, mas nunca se pensou numa política de recursos humanos, nem de financiamento, que pudesse dar conta desse crescimento. Acho que essas são as principais deficiências da administração pública, levando a recorrer a novos arranjos [...]”. (E11)

Sob a ótica dos gestores, a criação de novas figuras jurídicas no âmbito da administração pública, como as OSSs, tem sido justificada, sobretudo, pelos argumentos elencados; e, dentre eles, a falta de autonomia administrativa das organizações estatais, quando se consideram peculiaridades do setor saúde. Daí a opção por esse novo modelo está em franca expansão, ainda que de forma conflituosa, dentro do SUS no Estado.

Considerações finais Os gestores estaduais se mostram mais favoráveis e defensores do modelo de gestão baseado na transferência da administração dos serviços para as OSSs; enquanto o discurso dos gestores municipais apresenta vários aspectos críticos. Essas críticas estão relacionadas tanto ao processo de implementação, como ao modelo de gestão em si. Essas divergências de opiniões justificam os conflitos observados nos espaços de governança do SUS no Estado e, provavelmente, dificuldades na sua implementação. O estudo aponta, ainda, a necessidade de se fortalecerem as instâncias colegiadas, aprimorando o controle social, como, também, os mecanismos de diálogo entre os gestores estaduais e municipais, pois, no caso específico das OSSs, a introdução desse novo arranjo resulta em implicações políticas e econômicas para o Estado, sendo relevante que essa discussão envolva todos os atores que fazem parte da governança do SUS. O modelo carece de uma sofisticada capacidade de regular a ação de novos agentes econômicos, com inúmeras possibilidades e reforço à assimetria de informação e potencial descontrole de processos. Ao que parece, apesar dos processos de resistência e divergência de opinião, de acordo com o lócus de gestão do SUS, há evidências, elementos estruturais e aspectos centrais da Reforma do Estado que induzem a adoção desse modelo, sobretudo, quanto às diretrizes consubstanciadas em leis que impõem limites para a administração direta dos serviços de saúde no SUS

Colaboradores Hélder Pacheco, Garibaldi Gurgel e Francisco Santos participaram em todas as etapas de produção do manuscrito. Simone Cristina responsabilizou-se pela elaboração do artigo e da revisão crítica do conteúdo intelectual, e Eliane Leal responsabilizou-se pela revisão final.

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Pacheco HF, Gurgel Júnior GD, Santos FAS, Ferreira SCC, Leal EMM. Las organizaciones sociales como modelo de gestión de la asistencia sanitaria en Pernambuco, Brasil: percepciones de los gestores. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):585-95. El estudio analiza la percepción de los funcionarios públicos sobre la aprobación del modelo de gestión en la atención de salud basado en la transferencia de las responsabilidades de gestión hacia las organizaciones sociales. Utilizamos un enfoque cualitativo multi-método, utilizando en la investigación una serie de entrevistas semiestructuradas con los gestores públicos del Estado que llevan a cabo grupos de discusión con los niveles municipales, en el estado de Pernambuco. Otra técnica utilizada fueel análisis de datos documentales. Los resultados muestran diferencias en la percepción de los directivos en relación con la regulación estatal de estas organizaciones, así como desacuerdos políticos sobre el propio modelo. Se concluye que hay diferentes puntos de vista con respecto al modelo de gestión adoptado en conformidad con la posición ocupada por el gestor público en el Sistema Único de Salud en el Estado.

Palabras clave: Organizaciones de Salud. Gestores en salud. Política de Salud y Gestión de la Salud.

Recebido em 18/05/15. Aprovado em 23/11/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0611

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O cuidado à saúde na perspectiva de trabalhadores homens portadores de doenças crônicas Valéria Cristina Yoshida(a) Maria da Graça Garcia Andrade(b)

Yoshida VC, Andrade MGG.Health care from the view of male workers with chronic diseases. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):597-610.

This qualitative study is intended to understand how male, hypertensive and diabetic workers, with low-level education, patients of a primary health care service in Campinas-SP, Brazil, manage their treatment. The results aim to improve the primary health care and the recognition of the special needs of this kind of users. As a result of semi-structured interviews, two categories are reported: one of them is the masculinity-related particularity regarding health care and the other is the experience on caring for chronic disease. Despite the difficulties related to socially constructed male behavior, as work value, reluctance to seek health care, habits like alcoholism and smoking and difficulties with adherence to diet and medication recommendations, there was identified the will and acceptance to treatment. Therefore these findings show the feasibility to promote men’s health care, providing attention to their needs.

Keywords: Primary Health Care. Men’s health. Hypertension. Diabetes.

O estudo, de natureza qualitativa, buscou conhecer de que forma trabalhadores homens, com pouca escolaridade, hipertensos e diabéticos, acompanhados num serviço da rede básica de Campinas-SP, Brasil, relacionam-se com sua condição de saúde e tratamento, no intuito de contribuir com a atenção básica no (re)conhecimento das necessidades de cuidado desses usuários. A partir de relatos colhidos por meio de entrevistas semiestruturadas, foram analisados os atributos da masculinidade e a experiência do cuidado da doença crônica. Encontraram-se vários aspectos do comportamento masculino socialmente construído, como: a importância do trabalho, a resistência à procura por serviços de saúde, a presença de hábitos como alcoolismo e tabagismo, associados às dificuldades no controle da doença, ligadas, sobretudo, às mudanças na alimentação e ao uso contínuo de medicamentos. A despeito disso, foram identificadas motivação e aceitação do tratamento, permitindo vislumbrar um caminho que promova o cuidado desses usuários.

Palavras-chave: Atenção Primária. Saúde do homem. Hipertensão. Diabetes mellitus.

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(a) Doutoranda, Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas (FCM), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitária Zeferino Vaz. Campinas, SP, Brasil. 13083-887. valeria.yoshida@ gmail.com (b) Departamento de Saúde Coletiva, FCM, Unicamp. Campinas, SP, Brasil. mgraa@fcm.unicamp.br

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Introdução A gente faz a loucura da gente. A gente é meio cabeça dura, mas tem que tá tratando. (Camilo)

Um dos desafios atuais da atenção básica consiste no cuidado continuado de doentes crônicos, particularmente daqueles com hipertensão e diabetes, por sua frequência e, habitualmente difícil, seguimento, à medida que exigem mudança de hábitos e comportamentos e a vinculação a um serviço que os acompanhe no curso da doença. Apesar de a maior parte de seus portadores conhecerem as orientações básicas do tratamento, isso não tem se mostrado suficiente para que haja um controle adequado1. O abandono de alguns hábitos significa, muitas vezes, a perda de prazeres num contexto de vida marcado por poucas oportunidades de satisfação pessoal. Assim, para que as propostas sejam coerentes com a realidade em que o indivíduo se insere, é importante considerar o que as pessoas pensam e sentem frente a determinada condição de saúde2,3. Nessa perspectiva, ganham destaque as condições enfrentadas por trabalhadores homens, portadores de doenças crônicas, quando inseridos num contexto sociocultural desfavorável, caracterizado pela baixa escolaridade e pela dificuldade de acesso aos serviços de saúde4. Estudo sobre a desigualdade de gênero na mortalidade por doenças crônicas no Brasil mostrou que, nas últimas duas décadas (1991-2010), ela foi consideravelmente maior no sexo masculino, e que a manutenção dessa tendência, aliada ao maior risco de morte por causas externas, contribuirá para o aumento progressivo da mortalidade prematura entre os homens5. Na Pesquisa Nacional de Saúde de 20136, as prevalências referidas de Hipertensão e Diabetes nos indivíduos com 18 anos ou mais foram, respectivamente, 21,4% e 6,2%, com menor proporção de homens entre os que receberam assistência médica nos últimos 12 meses. Em geral, os homens apresentam maior morbimortalidade em todas as faixas etárias e menor esperança de vida5,7. Dados do censo de 2010 evidenciaram sobremortalidade masculina em quase todas as idades, sendo que, do total dos óbitos, 57,2% foram do sexo masculino5,8. Apesar disso, é menor a presença dos homens nos serviços de saúde, sobretudo naqueles que realizam prevenção e promoção da saúde, como os da atenção básica7,9. Em 2009, foi publicada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH)7, que prioriza a faixa etária de 25 a 59 anos e busca promover ações que reduzam a morbimortalidade, enfatizando a necessidade de ampliar o acesso dos homens à atenção primária. A implantação efetiva de suas diretrizes ainda é bastante tímida, apesar de ter sido identificado interesse dos homens pelas atividades das unidades básicas de saúde (UBSs) quando essas acolhem suas necessidades10. Entender por que os homens morrem mais cedo e utilizam menos os serviços de saúde envolve analisar fatores socioculturais e organizacionais dos serviços4. É histórica a figura do homem como provedor da família, constituído socialmente como um ser forte e invulnerável, sendo o trabalho um elemento marcante para sua identidade11. Alguns autores destacam que as diferenças ditas culturais e sociais, na verdade, traduzem desigualdades de poder entre homens e mulheres12. Embora essa construção mantenha a dominação masculina na sociedade, o homem é colocado numa situação de maior vulnerabilidade pela maior exposição a riscos e à possibilidade de adoecimento, tornando-o prisioneiro do que se denomina masculinidade hegemônica13,14. Homens e mulheres exercem distintos papéis sociais, diferem quanto à percepção de riscos e necessidades de saúde e na procura por atendimento. A maior frequência das mulheres nas UBSs relaciona-se às necessidades reprodutivas e à responsabilidade pela saúde de crianças e idosos, associada à ênfase desses serviços na saúde materno-infantil, tornando-se espaços marcados pelo feminino4,15. Alguns autores afirmam que os homens procuram as UBSs, mas suas necessidades ficam invisíveis para o serviço, que reproduz o imaginário social de gênero ao reforçar valores tradicionais que afastam o homem do cuidado16. Necessidades de saúde são histórica e socialmente construídas, e transformam-se em demanda ao se modelarem à disponibilidade das ações ofertadas, cabendo à equipe (re)traduzi-la, de modo a responder adequadamente às reais necessidades dos usuários17. A procura dos indivíduos por determinados serviços de saúde é influenciada pelo reconhecimento dos que, historicamente, mostram-se melhor sucedidos na identificação daquelas necessidades18. 598

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Yoshida VC, Andrade MGG

artigos

Nesse sentido, a partir da percepção da alta prevalência de hipertensão arterial e diabetes mellitus em trabalhadores homens que frequentam um serviço da rede municipal de saúde de um grande município brasileiro, desde 2009 iniciou-se o acompanhamento dos mesmos. Com base nos relatos desses usuários, o presente estudo, de natureza qualitativa, buscou conhecer de que forma trabalhadores homens, com pouca escolaridade, hipertensos e diabéticos, relacionam-se com sua condição de saúde e tratamento, de modo a contribuir com os serviços da atenção básica no (re) conhecimento das necessidades dessa parcela da população.

Sujeitos e métodos O serviço onde se realizou o estudo localiza-se na CEASA (Centrais de Abastecimento S/A) de Campinas-SP, e faz parte da rede municipal do SUS. Assiste a uma clientela formada predominantemente por homens e, embora não seja uma UBS típica, oferece atenção longitudinal aos usuários. Os sujeitos da pesquisa foram identificados a partir do cadastro de pacientes do serviço, tendo sido incluídos trabalhadores homens, com idades entre 25 e 59 anos, portadores de hipertensão arterial e/ou diabetes mellitus, que estavam trabalhando regularmente e em acompanhamento no referido serviço. O intervalo de 25-59 anos corresponde à faixa etária priorizada na PNAISH. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, no ano de 2013, com dez trabalhadores, para se conhecer como eles lidam com seus problemas de saúde e vivenciam as exigências impostas pelo tratamento da doença crônica. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo CEP/Unicamp. Os participantes receberam nomes fictícios para garantir o sigilo de suas identidades. Os Quadros 1 e 2 apresentam as características sociodemográficas dos participantes, o diagnóstico de hipertensão e/ou diabetes e o tempo de conhecimento da doença pelo trabalhador. A idade média dos entrevistados foi de 43,4 anos, em geral, apresentavam baixa escolaridade, realizavam trabalho que exige muito esforço físico, eram casados e chefes de família. A metade apresentava hipertensão e, a maior parte, diabetes com mais de cinco anos de diagnóstico. A análise do material empírico constituído pelos relatos desses homens permitiu trabalhar centralmente duas categorias: os atributos da masculinidade em sua relação com o cuidado à saúde e a experiência do cuidado da doença crônica.

Quadro 1. Características sociodemográficas dos participantes do estudo Nome

Idade (anos)

Escolaridade (anos)

Ocupação

Estado Civil

Posição na família

Camilo

45

2

Carregador autônomo

Casado

Chefe

Gustavo

54

1

Carregador autônomo

Casado

Chefe

Jeremias

46

8

Carregador autônomo

Casado

Chefe

Luciano

37

8

Conferente

Separado

Chefe

Matias

59

3

Manutenção e limpeza

Casado

Não é chefe

Messias

32

8

Gerente de compras

Casado

Chefe

Paulino

41

8

Ajudante geral

Casado

Não é chefe

Ricardo

41

10

Auxiliar financeiro

Casado

Chefe

Severino

36

10

Caminhoneiro autônomo

Casado

Chefe

Walfrido

43

6

Carregador autônomo

Casado

Não é chefe

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O CUIDADO À SAÚDE NA PERSPECTIVA DE TRABALHADORES HOMENS ...

Quadro 2. Diagnóstico de Hipertensão (HAS) e/ou Diabetes mellitus (DM) e tempo de conhecimento da doença Usuário

Diagnósticos

Tempo de doença (anos)

Jeremias

HAS

4-5

Messias

HAS

5

Luciano

DM

6

Severino

DM

Paulino

HAS + DM (usa insulina)

Camillo

DM (usa insulina)

12

Ricardo

DM

13

Matias

HAS + DM (usa insulina)

Walfrido

DM (usa insulina)

23

Gustavo

HAS

26

6 10 (HAS/DM)

20 (HAS/DM)

Resultados e discussão Atributos da masculinidade e o cuidado à saúde A masculinidade hegemônica é entendida como a construção social do comportamento masculino, influenciado por valores patriarcais e machistas, que levam à adoção de atitudes caracterizadas pela virilidade, força e invulnerabilidade. Embora haja, atualmente, outros modelos de masculinidade, que colocam o homem mais próximo das mulheres e das crianças e permitem que ele expresse mais suas emoções, esses modelos ainda não são predominantes19. Nos relatos, foi possível identificar vários aspectos do comportamento masculino que interferem no cuidado à saúde. Destacaram-se: a importância do trabalho, a resistência à procura por serviços de saúde e a interferência do alcoolismo e do tabagismo, que constituem hábitos mais frequentes entre os homens.

A importância do trabalho O trabalho apareceu como uma referência forte, sendo considerado prioritário em relação ao cuidado à saúde, exceto nas situações emergenciais. Foram expressas: a preocupação com o sustento da família e a responsabilidade relacionada ao trabalho, sobretudo no caso dos autônomos. “Então, eles marca e diz que eu não posso escolher o horário [...] Foi marcado (fisioterapia) uma segunda-feira, vê lá. Ah, então passa pra outro, já passei umas 2-3 veis [...] Eles fala que me dá atestado, pra quê atestado? Eu não sou registrado”. (Gustavo) “E eu não queria ser internado não. Eu tenho que trabalhar, eu tenho que trabalhar. Que trabalhar o quê [...] Aí fiquei lá vinte e poucos dias internado, só pele e osso”. (Camilo) “[…] comecei a trabalhar desde os meus 9 anos. Eu falo [...] ó doutora eu tenho 59 anos, 50 trabalhado e não me aposentei ainda [...] Isso dá um pouco de tristeza […] A mulher fala, acho que é melhor você trabalhar, porque dentro de casa eu fico, sabe, eu não sei... o cara acostumado a trabalhar [...] você fica naquela situação [...] se eu tô trabalhando é ruim, se eu não tô é pior”. (Matias)

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“[...] não tem como saí do serviço pra pegar fila pra fazer avaliação (tratamento odontológico) [...] Porque avaliação é sempre assim, é de manhã pra pegar fila [...] e nunca dá porque é num horário que tá corrido o trabalho”. (Messias)

Pesquisa multicêntrica16 realizada em serviços de atenção primária de quatro estados brasileiros apontou a maior presença dos homens em unidades com horário de funcionamento expandido, como aos sábados e à noite, sugerindo que restrições ligadas aos horários de trabalho têm real influência sobre o acesso à assistência.

A resistência à procura por serviços de saúde Outro aspecto identificado refere-se à resistência manifestada, pelos homens, para procurar ajuda e atendimento para suas necessidades de saúde. Trabalhadores homens em idade produtiva adiam a procura por serviços de saúde, fazendo-o apenas em situações mais graves. “[...] fui internado [...] quase 900 (de glicemia) [...] mas isso foi porque deu uma orquite [...] Aí eu fui (Pronto Socorro), tava com muita dor [...] Aí foi uma correria [...] já quis falá que é negócio grave, era por causa da diabetes”. (Walfrido) “[…] eu media (pressão arterial) em farmácia [...] daí ele falou pra mim procurar um médico né. Demorei, que eu falei que não vou […] porque remédio na verdade é um só [...] cê toma um remédio assim, vai com o tempo ele vai fazendo efeito, chega certo tempo ele já vai acabando aqueles efeito, né?”. (Jeremias) “Vai procurar um médico, cê tá mal demais [...] fiquei uma semana em casa, e não fui procurar médico [...] eu achava que não era nada […] fui pegar uma caixa de tomate do chão [...] mas não cheguei a tirar a caixa do chão [...] falei, meu Deus, eu tô ruim mesmo. Aí […] minha mãe (falou) agora eu vou te levar no médico […] Quando mediu, falou […] Interna ele agora [...] eu tava desnutrido, tava em 800 e pouco (a glicemia)”. (Camilo)

Essa resistência em procurar atendimento também foi encontrada em estudo com homens usuários de UBSs, que relataram retardar ao máximo a procura por se sentirem invulneráveis, alegando falta de tempo devido ao trabalho20. Pesquisa anterior envolvendo duzentos trabalhadores da própria CEASACampinas mostrou, também, procura preferencial pelos serviços de urgência, e não pela atenção básica21.

Alcoolismo e tabagismo O uso de bebidas alcoólicas e de cigarro foi frequentemente relatado pelos entrevistados. Fumar e beber costumam ser hábitos relacionados à masculinidade, reforçados na socialização dos homens, e que interferem no cuidado da doença crônica. “Fumo [...] nem (no hospital) eu parava, porque eu internado e as mulher me davam cigarro [...] Mas não consigo (parar de fumar), sou estressado pra caramba [...] Fumo desde os meus 16 anos [...] Nunca parei, agora tenho vontade de parar, mas não dá. E pra aprender é tão facinho, né?”. (Camilo) “Eu sempre gostei de tomar minha cervejinha de final de semana, é [...] Eu sempre fui aquele fumante bem relaxado, que só fuma 1-2 por dia e no final de semana você vai tomar a cervejinha e acaba fumando 3-4 [...]”. (Ricardo)

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Estudo22 realizado no município de Campinas com 449 homens, de 20-59 anos, identificou que aqueles com menor escolaridade apresentam maior consumo e dependência de álcool e tabaco. Pesquisa anterior na CEASA identificou que 54% dos trabalhadores faziam uso frequente ou esporádico de bebida alcoólica e que 26% fumavam21. A dificuldade em não beber é maior nos finais de semana, quando geralmente suspendem a medicação para não “misturá-la com a bebida”. “[…] eu também gosto de final de semana tomar uma cerveja [...] Durante a semana não. É só cerveja também […] eu tomo uma meia dúzia. Mas é garrafinha pequena [...] cigarro eu fumava, parei [...] desde quando eu infartei [...] a cerveja eu [...] parei somente um ano”. (Paulino) “Tomo cerveja [...] mais final de semana […] E olha que final de semana, eu tomo bem [...] mas só que eu tomo assim sabe […] eu vou sair no sábado, nóis vai num churrasco […] faço o testinho do dedo lá, eu vejo que ela tá alta, eu tomo a minha insulina, aí eu já manero. Já não bebo [...]”. (Camilo) “[…] eu gosto muito de pescar final de semana [...] acaba bebendo à noite, noutro dia já começa cedo de novo a pescaria e vai beber na hora do almoço, então às vezes eu pulo um dia sem tomar remédio, pra não misturar remédio com a bebida”. (Messias)

Nesse mesmo sentido, estudos23,24 relacionados ao Diabetes mostraram a dificuldade dos homens para gerenciar o controle da doença quando mantêm o uso de bebida alcoólica.

A experiência do cuidado da doença crônica

Vários autores25,26 apontam a necessidade de investimento em ações de prevenção e promoção da saúde voltadas para o controle das doenças crônicas. Outros23,24,27 destacam que é necessário conhecer o contexto e singularidades dos sujeitos para ampliar as possibilidades de comunicação entre usuários e profissionais de saúde e ofertar ações mais próximas à realidade dos grupos sociais. Neste trabalho, as dificuldades enfrentadas no tratamento da doença crônica apareceram com frequência nos relatos dos homens, relacionadas às exigências para o controle da doença e exercendo interferência na busca e aceitação do tratamento. Nessa perspectiva, destacam-se: a alimentação, o uso contínuo de medicamentos, a motivação para se tratar e a aceitação do tratamento. A alimentação A dificuldade em adequarem a dieta aos horários de trabalho e à condição socioeconômica, assim como de se privarem do que gostam, esteve presente na fala dos usuários. “Alimentação, bem dizer eu como de tudo [...] De vez em quando dá vontade de comer doce e eu como [...] é um pedaço. Ou se não eu como 2, 3 pão doce, eu gosto de comer pão doce”. (Paulino) “A gente sempre compra, porque quem é diabético sente falta de doce [...] porque não, não tem jeito, você não aguenta”. (Matias) “Antigamente [...] me dava uma vontade de comer doce, não tinha jeito [...] cê comia um pedaço, de repente tava comendo 2...3... mas graças a Deus parou essa vontade. Só que é assim, eu não passo vontade. Se agora mesmo me deu vontade de comer um doce, eu vou lá cato um doce”. (Camilo) 602

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Como afirma Barsaglini24, “o diabetes se traduz numa vida de restrições, censuras e proibições, impondo regras de comportamento que não combinam com o valor de liberdade que integra a construção do universo masculino” (p. 182). “Não, não tem horário (almoço), passa 2, 3 horas da tarde, meio dia, 11 horas, depende”. (Severino) “[…] tem hora que eu só vou comer porque [...] se vê que está escurecendo a vista, tá dando moleza. Você come sara, mas tem hora que você não quer parar (trabalho) porque não tem tempo, tem hora que eu pego o lanche e saio com ele na mão comendo”. (Gustavo) “[...] eu faço [...] uma dieta mais ou menos, não faço dieta forçada porque o dia a dia da gente também não dá […]”. (Luciano)

Um outro aspecto referido pelos trabalhadores diz respeito ao custo mais elevado dos alimentos da dieta. “Comi (pão integral), é bãozinho, mais é [...] meio carinho né? Meio carinho né, pão com alpiste, é por causa do alpiste que eles põe em cima”. (Walfrido) “[…] já comprei, já comi também [...] é gostoso, mas só que também é mais caro, tem todas essas coisas né [...]”. (Luciano)

Parte deles traz reflexões sobre a abordagem dos profissionais de saúde, porém, muitas orientações recebidas não são compatíveis com a realidade do paciente, comprometendo a resolutividade do cuidado. “Aí ele passou uns remédio pra mim lá e uma folha desse tamanho assim, não pode comer feijão, não pode comer nada, aí eu fiquei uma semana, aí eu comecei a não aguentar, serviço pesado aqui, aí eu parei”. (Jeremias) “[…] eu vim na nutricionista [...] só que eu vou ser muito sincero, eu achei um programa muito [...] fora daquilo que eu posso tá fazendo todo dia, não só financeiramente, mas tempo, dedicação [...]”. (Ricardo) “[...] não pode comer isso, não pode comer aquilo. Eles falam sempre da comida né. Por que eles falam da comida? [...] ah cê não pode comer isso, comer aquilo [...] valeu doutor, brigado, já tá de bom caminho. Saí do postinho […] em frente [...] tinha um bar, fui lá comi uns 3 sargados, bebi uma coca e fui embora pra casa”. (Walfrido)

Schraiber et al21 identificaram que as UBSs têm seu funcionamento centrado na consulta médica individual, rápida e com foco nas queixas e no tratamento. O contexto em que o usuário vive não é abordado e, em geral, não são desenvolvidas ações de promoção da saúde e, quando ocorrem, costumam ser práticas educativas de caráter disciplinador e autoritário. O uso contínuo de medicamentos Outra dificuldade encontrada diz respeito à necessidade de uso regular de um ou mais medicamentos, exigindo adequar os horários das tomadas com as demandas cotidianas, adequação que se torna mais improvável pela falta de convencimento de muitos usuários quanto à real necessidade do uso continuado. A dificuldade na aplicação da insulina e os efeitos do uso prolongado são destacados por alguns trabalhadores, assim como o uso concomitante de vários medicamentos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“Eu tomo glibenclamida [...] uma hora antes [...] do almoço [...] eu não tenho bem hora certa pra almoçar, dependendo do movimento lá [...] aí quando é meio dia, aí eu vou lá, tomo remédio, eu ando até com remédio no bolso [...] pra não esquecer [...] aí [...] surge [...] imprevisto que não dá pra almoçar uma hora [...] eu vejo que abaixa a taxa de açúcar [...] dá aquele desgaste no estômago [...] e as mãos trêmula [...] Às vezes a gente esquece de tomar, um dia ou outro […] mas eu faço o máximo pra não esquecer”. (Luciano) “[…] eu tinha um medo de injeção [...] que se visse uma injeção, eu tava correndo [...] Aí [...] devagarzinho [...] essa pequenininha, a da insulina [...] eu tava tomando nas pernas, aí me deu uma coceira [...] que eu não aguentava, mandaram eu parar de tomar na perna, então, só tomo na barriga [...] às vezes, ontem mesmo, eu não tomei [...] Dormi [...] tava frio pra caramba [...] jantamo era umas 7 horas, aí deitemo, eu e a mulher, vim acordar hoje às 3 e meia”. (Camilo) “[...] tudo isso, comprimido para pressão acho que eu tomo uns quatro, cinco [...] É uma receita do lado e do outro [...] Agora eu esqueci, não tomei nem o remédio. Só tomei insulina. Quando me levanto de jejum eu tomo a insulina. [...] Depois eu tomo os comprimido, acho que uns quatro comprimidos. Aí quando é a noite [...] tomo a insulina, aí depois eu janto e tomo os comprimido. Eu já aqui to que não aguento mais, faço assim e tudo duro de tanta furada. Porque de tanto que você vai furando [...] vai ficando dolorido”. (Matias)

Muitos doentes se mostram relutantes em aceitar o uso crônico de medicações. Kelly e May(c), citados por Barsaglini24, destacam que esse comportamento de “dono da situação” reflete uma tentativa de maior autonomia e domínio sobre a doença, como expressa um dos trabalhadores: “[…] agora eu tomo certinho, mas logo no começo eu não levava a sério [...] Tomava de vez em quando [...] eu tomava mas não tomava certo, aí foi aonde deu até infarto […] eu tomava um dia sim, aí ficava uns 2, 3 sem tomar [...] achava que não ia, que a pressão não subia”. (Paulino)

A motivação para o tratamento Entender o que determina a busca por serviços de saúde leva a refletir sobre os valores culturais e sociais que interagem com a organização dos serviços e seus saberes, e com as informações recebidas através da mídia28. Nesse sentido, os relatos dos trabalhadores trazem aspectos que correspondem a essas distintas dimensões. O desejo de se curar, apesar das dificuldades impostas pelo tratamento, é uma das preocupações expressas na fala de Gustavo. “Como eu já falei procê, dá vontade de chutá o barde, largá tudo, mais eu preciso da saúde né. Eu quero sará. Eu tô fazendo por onde, já quase 7 ano né. Então eu tô me sujeitando (tratamento da hepatite) [...] porque não tem outro meio mesmo”. (Gustavo)

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Kelly MP, May D. Good and bad pacients: a review of the literature and a theorical critique. J Adv Nursing. 1982; 7(2):147-156. (c)


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Um dos estigmas relacionados ao comportamento do homem é o de que eles não se preocupam com a prevenção, buscando serviços de saúde somente quando sentem o agravamento das doenças. Entretanto, em alguns relatos, observa-se a preocupação em evitar que a doença avance e em obter um cuidado integral. “Se ele tivesse feito particular [...] Se cê tem a doença tem que procurar adiantar [...] cê vai demorando, vai agravando né [...] aí acho que ele demorou mais de 2 anos e não era caro, acho que era uns 600, 700 reais para fazer (cateterismo) particular [...] sempre uma vez no ano eu faço […] (check up)”. (Jeremias)

O agravamento do estado de saúde não depende apenas do comportamento de busca por atendimento, mas, sobretudo, das condições de acesso e qualidade da atenção recebida. “[...] meu pai é agente de saúde [...] Mora lá no Piauí [...] lá é o seguinte [...] as pessoas […] tem problema, mas não sabe que tem [...] não faz o acompanhamento que a gente faz na cidade grande, lá é cidade pequena, eles não ligam muito pra saúde […] se [...] for fazê […] uma pesquisa […] a quantidade de pessoas que tem problema, não só o diabetes [..] é muito grande, porque eles não procuram o médico, e quando vai procurar o médico, já tá bem avançado”. (Luciano) “Ah, não sei se eu tive sorte de pegar um cara (médico) fera, era muito bom, era meio rígido, me puxava muito a orelha, eu sabia que precisava daquele puxão de orelha, que por eu ser muito novo [...] achava que não tinha problema ter uma vida normal”. (Ricardo)

Estudo9 realizado com 86 homens com idade média de 40,5 anos mostrou que a segunda causa de procura pela atenção básica é o desejo de realizar exames de prevenção, revelando preocupação com a saúde. Entretanto, há lacunas nas UBSs ligadas à adequação da estrutura, organização do atendimento dos homens e desenvolvimento de ações de promoção voltadas para os agravos mais frequentes nessa população. Em alguns casos, o estímulo para seguir as orientações do tratamento ocorre pelo convívio pessoal ou familiar com casos graves da doença ou suas complicações. “[...] era um problema heredit.. minha família foi problemática [...] meu pai sempre teve diabete, meu avô, desde muito novo diabético, e mesmo muito cuidadoso como era, ele teve um problema de amputar a perna [...] cortou o dedinho, depois o pé, depois a perna [...] você vai assistindo tudo aquilo [...] eu periodicamente fazia, pedia esse exame e com 28 anos foi constatado essa alteração [...] hoje eu [...] mudei muito minha cabeça, eu tento me cuidar um pouco mais, pra não tê o mesmo futuro que ele teve”. (Ricardo)

Estudo de Cyrino23 sobre as competências desenvolvidas por portadores de diabetes relacionadas ao autocuidado também mostrou que, apesar de muitos deles relatarem o sofrimento de familiares com a doença, é possível um despertar para a vida, ou seja, uma ressignificação da doença. “Ah, é depois que a água bate na [...], negócio do meu dedo […] Não, depois que já deu o negócio no meu dedo [...] antes quando eu vinha aqui, era 300, 350, aí depois que deu [...] o máximo que chega é 250, não passa disso”. (Walfrido) “Teve um que cortou até aqui, olha. Até o ponto de ponhá um aparelho [...] Na verdade por isso que eu sempre respeito o que a doutora fala, porque esse um que aconteceu que cortou o dedo, o outro dedo e depois cortou aqui”. (Gustavo)

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“Sabe de uma coisa, ele tá lá hoje com um pé cortado até a canela e o outro cortado até metade. E [...] as vistas dele, uma parece que operou e enxerga fraquinho. Olha aí tá vendo, disse que ele mesmo cuidava, olha no que deu”. (Camilo)

Muitas vezes, as informações sobre riscos à saúde são obtidas por meio da mídia, sobretudo da televisão, sensibilizando e alertando para a gravidade do problema. “[…] eu já vi muita gente. Colega meu, amigo, lá no norte que morreu sem as perna [...] que era diabético […] Você […] deve saber muito bem que o diabetes é uma doença que vai matando o cara aos poucos. O médico fala diretamente [...] na televisão [...] isso é uma doença crônica, se você não se trata ainda é pior”. (Matias) “Ah, não sei, eu acho que [...] porque casos que eu já vi assim, que nem, eu já vi passar na televisão, sempre que eu vejo passar de diabete na televisão, eu tô ali prestando atenção”. (Camilo)

Embora a televisão seja um meio importante para veicular informações, estudo29 abordando as concepções de homens hospitalizados sobre a relação gênero e saúde destaca que, na maior parte dos programas televisivos, há mais informações sobre a saúde da mulher do que do homem. A aceitação do tratamento O conceito de aceitação do tratamento não se confunde com obediência, à medida que trabalha com a autonomia do paciente frente às orientações recebidas, considerando que ele é possuidor de concepções e experiências que influenciam na sua relação com os profissionais de saúde e com o que é prescrito por esses23. Nesse sentido, levando em consideração a vivência da doença e do autocuidado, a aceitação do tratamento pôde ser identificada, mesmo que de forma sutil, em vários momentos da fala dos homens, seja no uso contínuo das medicações... “[…] a pressão faz muito tempo que não exagera, não sobe... por causa que os remédios eu tomo tudo certinho agora”. (Paulino)

Nas mudanças na alimentação.... “Eu como mais carne magra, então eu como bife grelhado, a salada ela sempre faz [...] Não falta salada, alface, tomate, o chuchu cozido, uma abobrinha feita refogada [...] Eu passei aqui na sexta-feira [...] com a doutora, aí ela mediu a pressão e tava 12 por 8 [...] Ela disse, pressão de garoto. E a glicemia? Tava 170 [...]”. (Matias)

Na realização de exames preventivos... “Então, a doutora [...] anualmente agora ela me pede exames [...] sempre que tenho tempo faz [...] tira a medida pra vê como é que tá a pressão. Mais essa última [...] umas cinco, seis vezes que eu medi tava controlado [...] 12 por 8 [...] Valeu a pena deixar o convênio, que por fim só tava me trazendo prejuízo. O remédio era caro [...] e um remédio que tava só me fazendo mal”. (Messias)

Na aceitação da cronicidade da doença... “[...] jamais, não penso dessa forma, porque eu sei que a doença é crônica [...] é tanto que a médica [...] o último que eu fiz [...] ela falou assim, ó seu diagnóstico tá muito bom, os

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resultados dos seus exames tá muito bom [...] eu vou tirar seu remédio pra metade, eu vou deixar só a metade do comprimido, porque a gente vem fazendo o acompanhamento e tá muito bom”. (Luciano)

Na suspensão do uso da bebida alcoólica... “[…] mais aí fiz uns tratamento [...] aí parei de beber, evitei comer muito essas carne [...] muito espeto, carne assada [...] e ele explicou umas coisa, abacaxi, laranja [...] limão que tem muito ácido [...] parei a bebida, acho que ajudava muito [...] aí parou graças a Deus”. (Jeremias)

Estudo realizado por Barreto e Figueiredo30 mostrou que a presença de doença crônica contribui para a redução de alguns comportamentos de risco, como fumo, dieta gordurosa, sedentarismo e adição de sal na comida, sendo possível estabelecer uma associação positiva, especialmente para os homens, entre mudanças no estilo de vida e a presença de doença, provavelmente porque o indivíduo passa a frequentar mais os serviços de saúde e receber orientações de cuidado.

Considerações finais O cuidado à saúde é um processo com forte dimensão sociocultural, com particularidades relacionadas a ser homem ou mulher, dependente do contexto e da interação entre os sujeitos. O presente estudo trouxe relatos de homens, com pouca escolaridade, portadores de Hipertensão e de Diabetes, sobre a relação com a doença crônica e seu tratamento, na perspectiva de sensibilizar os diversos profissionais e serviços de saúde para o cuidado de uma parcela da população que, a despeito de seu destaque nos dados epidemiológicos e nas diretrizes da política, ainda persiste afastada do cuidado continuado nos serviços de saúde. Identificar as reais necessidades dos usuários exige que os profissionais levem em consideração os desejos e as diferentes possibilidades para o cuidado, ampliando a clínica e a percepção que atribui a baixa procura e adesão a preconceitos e barreiras somente por parte do usuário, buscando, também, os aspectos de funcionamento dos próprios serviços que interferem no acesso dos homens a um cuidado integral. Embora não tenha sido feita uma análise voltada especificamente para as representações dos homens sobre a doença crônica, pretendeu-se contribuir no sentido de “explorar as possibilidades de reconhecer e valorizar os saberes da experiência de quem vive a enfermidade”24 (p. 208). O controle da pressão arterial e da glicemia exigem, no contexto biomédico, o uso regular das medicações prescritas e a mudança de hábitos de vida. O estudo mostrou a dificuldade dos usuários para alcançarem um bom controle da doença crônica, dada a influência de inúmeros fatores que permeiam o cotidiano, em especial, as exigências do trabalho e o próprio comportamento masculino; mas, ainda assim, foram identificadas motivação e aceitação do tratamento, permitindo questionar o pensamento hegemônico de que os homens não se cuidam. Os fatores que motivaram a busca e a aceitação do tratamento, a despeito das dificuldades, relacionam-se a reflexões e considerações do próprio usuário a partir da vivência da doença e da interação com os profissionais de saúde, num determinado contexto social. Isto reforça a ideia de que a doença crônica e seu cuidado exigem repensar o ‘modo de andar a vida’31, sendo papel dos serviços de saúde auxiliarem os pacientes a reinventarem novos modos de viver, independente de serem homens ou mulheres.

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Colaboradores VC Yoshida é responsável pela concepção do estudo e trabalhou na metodologia, na coleta, análise e interpretação do material empírico e na redação do manuscrito. MGG Andrade trabalhou na concepção do estudo, na metodologia e análise do material empírico, na redação final e na revisão crítica do artigo. Referências 1. Mantovani MF, Maciel KF, Pelinski A, Gaio DM, Fusuma F, Ulbrich E. Dificuldades no tratamento da doença crônica: relato de experiência de atividade de extensão. Cienc Cuid Saude. 2011; 10(1):157-61. 2. Baldissera VDA, Paludo D, Moreira NM, Garbelini LF, Carvalho MDB. Mudanças vivenciadas por hipertensos após o diagnóstico. Rev Inst Cienc Saude. 2008; 26(3):304-9. 3. Barsaglini RA. Com açúcar no sangue até o fim: um estudo de caso sobre o viver com diabetes. In: Canesqui AM, organizadora. Olhares sócio-antropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 53-85. 4. Levorato CD, Mello LM, Silva AS, Nunes AA. Fatores associados à procura por serviços de saúde numa perspectiva relacional de gênero. Cienc Saude Colet. 2014; 19(4):1263-74. 5. Stevens A, Schmidt MI, Duncan BB. Gender inequalities in non communicable disease mortality in Brazil. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2627-34. 6. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde – PNS 2013. Percepção do estado de saúde, estilos de vida e doenças crônicas. Brasil, grandes regiões e unidades da federação. Rio de Janeiro: IBGE; 2014. 7. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes. Brasília (DF): MS; 2008. 8. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BR). Censo demográfico 2010. Características da população e dos domicílios. Resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE; 2011. 9. Moura EC, Santos W, Neves ACM, Gomes R, Schwarz E. Atenção à saúde dos homens no âmbito da Estratégia de Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2014; 19(2):429-38. 10. Ministério da Saúde (BR). Fortalecimento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH): compromisso versus ação na atenção básica. Brasília (DF): MS; 2013. 11. Schraiber LB, Gomes R, Couto MT. Homens e saúde na pauta da saúde coletiva. Cienc Saude Colet. 2005; 10(1):7-17. 12. Araújo MF, Schraiber LB, Cohen DD. Penetração da perspectiva de gênero e análise crítica do desenvolvimento do conceito na produção científica da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu). 2011; 15(38):805-18. 13. Courtenay WH. Constructions of masculinity and their influence on men’s well-being: a theory of gender and health. Soc Sci Med. 2000; 50(10):1385-401. 14. Braz M. A construção da subjetividade masculina e seu impacto sobre a saúde do homem: reflexão bioética sobre justiça distributiva. Cienc Saude Colet. 2005; 10(1):97-104. 15. Laurenti R, Jorge MHPM, Goltlieb SLD. Perfil epidemiológico da morbimortalidade masculina. Cienc Saude Colet. 2005; 10(1):35-46.

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Yoshida VC, Andrade MGG. El cuidado de la salud desde el punto de vista de los trabajadores varones portadores de enfermedades crónicas. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):597-610. Este estudio cualitativo buscó entender cómo trabajadores varones, con poca educación, hipertensos y diabéticos, bajo la atención de un servicio de salud de Campinas-SP, Brasil, se relacionan con su estado de salud y tratamientos. A través de entrevistas semi-estructuradas, se analizaron los atributos de la masculinidad sobre sus relaciones con la atención con la salud y su experiencia de cuidadorelativos a enfermedades crónicas. Aunque exista una conducta masculina socialmente construida, caracterizada por la importancia del trabajo, la resistencia a buscar los servicios de salud, el consumo de licores y tabaco, la dificultad en controlar las enfermedades (sobre todo las relacionadas con la alimentación) y uso continuado de medicamentos, fue posible notar certa motivación y aceptación del tratamiento. Por lo tanto, concluimos que es posible vislumbrar medios de mejorar el cuidado con esos usuarios, a partir del conocimiento con respecto a sus necesidades.

Palabras clave: Atención Primaria para la Salud. Salud del hombre. Hipertensión. Diabetes mellitus. Recebido em 14/09/15. Aprovado em 23/11/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0366

artigos

Enfrentamento ao tráfico sexual de mulheres na ótica dos agentes institucionais de Brasil e Portugal José Gonçalo Zúquete(a) Edinilsa Ramos de Souza(b) Suely Ferreira Deslandes(c)

Zúquete JG, Souza ER, Deslandes SF. Combat sexual trafficking in women from the viewpoint of institutional agents of Brazil and Portugal. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):611-23.

This article proposes a reflection on the facilitators and obstacles in addressing sex trafficking. This is an exploratory qualitative study, that interviews representatives of governmental and nongovernmental institutions in Brazil and Portugal. A thematic analysis was performed on the collected material. Several obstacles were found, ranging from dubious legislation, stigmatization of women, delays in investigation, usual and accepted transgressive practices and lack of resources. On the other hand, we see advances such as the gradual visibility and social sensitivity to the subject; partnership actions between institutions and the search for dialogue and learning with representative groups of the victims. It is recommended the integration of actions, services, policies and sectors that deal with trafficking; the training of professionals with the participation of people who have suffered such an experience, and the inclusion of this issue in policies addressing violence against women.

Este artigo reflete sobre as facilidades e dificuldades no enfrentamento ao tráfico sexual de mulheres. Trata-se de um estudo exploratório de natureza qualitativa; entrevistaram-se representantes de instituições governamentais e não governamentais do Brasil e de Portugal. O material coletado foi submetido à análise temática. Verificou-se a existência de vários obstáculos: desde uma legislação dúbia, estigmatização das mulheres, morosidade investigativa, naturalização de práticas violadoras até falta de recursos. Em contrapartida, percebem-se avanços, como: a gradativa visibilidade e sensibilidade social ao tema; ações de parceria entre as instituições, assim como a busca de diálogo e aprendizado com os grupos representativos dessas pessoas. Recomenda-se: a integração das ações, serviços, políticas e setores que lidam com o tráfico; a formação dos profissionais com a participação de pessoas que já sofreram tal experiência, e a inserção deste assunto nas políticas de violência contra a mulher.

Keywords: Trafficking in women. Sexual exploitation. Public policy.

Palavras-chave: Tráfico de mulheres. Exploração sexual. Políticas públicas.

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(a,c) Instituto Fernandes Figueira (IFF), Saúde da Criança e da Mulher, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Av. Rui Barbosa, 716, Flamengo. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.250020. jgzuquete@ yahoo.com.br; desland@iff.fiocruz.br b) Centro LatinoAmericano de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. edinilsaramos@ gmail.com

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Introdução Este artigo busca refletir sobre as facilidades e os obstáculos encontrados por quem lida institucionalmente com o enfrentamento ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual (TMFES), seja no atendimento às vítimas, como seu acolhimento, prevenção e repressão, nos contextos do Brasil e de Portugal. O TMFES é um fenômeno de grande complexidade, envolvendo questões relacionadas com a imigração ilegal, a prostituição e o crime1. Constitui um grave problema social que tem sido reconhecido por meio de leis e medidas de atuação nacional e transnacional. No século XIX e início do XX, mulheres migravam da Europa para o continente americano buscando melhor qualidade de vida. Parte delas recorria à prostituição. Nesta época, o Brasil era um país de destino2,3. Atualmente, a migração é para a Europa, mas o contexto português não é apenas um país de destino. Ele também apresenta vulnerabilidades ao TMFES. O Tráfico de Seres Humanos (TSH) é considerado crime, tanto no Brasil como em Portugal. No caso brasileiro, esse crime consta nos artigos 231 e 231-A do Código Penal, que tratam da punição a quem promove, intermedeia ou facilita a entrada, no território nacional, de pessoa que venha a exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro. O primeiro plano de enfrentamento ao TSH foi implantado no Brasil, por meio do Decreto n° 5.948, de 26 de outubro de 2006, e implementado de 2006 a 20104. Atualmente, está vigente o segundo plano, iniciado em 2011, e suas metas estão previstas até o ano de 20165. Em Portugal, o TSH consta no artigo 160 do código penal, que define como traficante quem oferece, entrega, alicia, aceita transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual, exploração do trabalho, escravidão ou extração de órgãos. No âmbito da União Europeia, Portugal adotou, em 6 de junho 2007, o primeiro Plano Nacional Contra o TSH (2007-2010). Encontra-se em vigor o terceiro Plano Nacional de Prevenção e Combate ao TSH, 2014-20176. Dados da Red Espanola contra la trata de personas7 informam que, na Europa, há, anualmente, cerca de um milhão de imigrantes forçadas à prostituição. Segundo este relatório, a revenda de mulheres, muitas delas menores de idade, aumentou em 50% nos últimos cinco anos, e movimenta cerca de US$ sete bilhões por ano (R$ 12 bilhões). Apesar da magnitude destes números, não há consenso sobre os dados divulgados, o que pode ser, em parte, atribuído às diferentes concepções sobre o que é entendido como exploração8. No Brasil, entre o ano 2005 e 2013, foram registradas 382 vítimas de tráfico para fins de exploração sexual. Dados de 2013 apontam 41 vítimas deste crime9. Em Portugal, os dados de 2014 apresentam 86 vítimas de tráfico para fins de exploração sexual10. O protocolo de Palermo, datado do ano de 2000, define o TSH como o “recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso de força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra, para fins de exploração”11 (p. 42). Entretanto, a incorporação desse conceito nas políticas públicas tem sido complexa, devido às especificidades de cada país. Considerando a perspectiva dos direitos humanos das mulheres e do protocolo de Palermo, existem três elementos centrais na configuração de tráfico: o movimento de pessoas, seja dentro do território nacional ou entre fronteiras; o uso de engano ou coerção, incluindo o uso ou ameaça da força ou abuso de autoridade ou situação de vulnerabilidade; e a finalidade de exploração (exploração sexual; trabalho ou serviços forçados, incluindo o doméstico; escravatura ou práticas similares; servidão; remoção de órgãos; casamento servil). Nesta definição, o consentimento da vítima é tido como irrelevante quando há uma situação de vulnerabilidade em sua condição de origem12. O tema ainda é pouco estudado em ambos os países, havendo necessidade de estudos exploratórios sobre o processo de produção e de enfrentamento do TMFES.

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Material e método Foi efetuado um estudo exploratório de natureza qualitativa, com o objetivo de investigar o que facilita e o que dificulta a atuação das instituições que lidam com o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. A escolha de Brasil e Portugal deve-se à importância destes países no circuito migratório América Latina/Europa. Foram aplicadas entrevistas semiestruturadas a representantes de instituições governamentais e não governamentais do Brasil e de Portugal. Esse tipo de entrevista se baseia em um guia de assuntos, e o pesquisador tem a liberdade de introduzir questões a fim de obter maior precisão de conceitos ou mais informação sobre os temas desejados13. Foi construído um roteiro orientador com 11 questões centrais do estudo, sendo este flexibilizado no decorrer da entrevista14. Neste artigo, foram analisadas apenas as questões referentes ao foco aqui proposto. No Brasil, foram aplicadas 12 entrevistas aos representantes das instituições localizadas nos estados da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo e em Brasília/Distrito Federal, das quais dez foram governamentais e duas não governamentais. Em Portugal foram feitas sete entrevistas em instituições do Algarve, Lisboa e Porto. Dessas, cinco são governamentais e duas não governamentais. A relação delas encontra-se a seguir: No Brasil . Bahia: Núcleo de Enfrentamento Estadual ao Tráfico de Pessoas . Rio de Janeiro: Posto Avançado de Atendimento ao Migrante de Guarulhos do Aeroporto Galeão; Núcleo de Enfrentamento Estadual ao Tráfico de Pessoas da Secretaria de Direitos Humanos; Projeto Trama . Brasília: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome/MDS; Secretaria Nacional da Justiça/SNJ; Secretaria de Políticas para a Mulher da Presidência da República/SPM-PR; Ministério da Saúde/MS; Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime/UNODC . São Paulo: Núcleo de Enfrentamento Estadual ao Tráfico de Pessoas da Secretaria de Justiça/ SJDC; Posto Avançado de Atendimento ao Migrante do Aeroporto de Guarulhos; Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude/ASBRAD Em Portugal . Algarve: Ministério da Saúde/MS . Lisboa: Observatório do Tráfico de Seres Humanos/OTSH; Polícia Judiciária/PJ; Serviço de Estrangeiros e Fronteiras/SEF; Associação de Apoio à Vítima/APAV . Porto: Comissão de Igualdade de Gênero/CIG; Associação de Planejamento Familiar/APF A amostra de Portugal é menor que a do Brasil visto que as dimensões dos países são bastante diferentes. Assim como o número de organizações não governamentais é menor, mas crucial, visto que seus representantes têm uma maior experiência de contato direto com as vítimas, tanto no acolhimento como no acompanhamento de casos. Buscou-se diversificar as instituições, considerando-se sua atuação no âmbito das políticas públicas, no atendimento direto às vítimas, bem como na repressão criminal. As instituições incluídas foram indicadas como as mais importantes por diferentes atores que lidam com este fenômeno. A única dificuldade encontrada para a realização das entrevistas referiu-se à conciliação dos horários na agenda de alguns representantes institucionais nos dois países. Entretanto, uma vez superada, procedeu-se o agendamento e a sua realização nas próprias instituições, ou em lugares escolhidos pelo entrevistado. As entrevistas foram gravadas e duraram, em média, quarenta minutos. O material foi posteriormente transcrito, processado e submetido à análise temática, cuja finalidade é trazer os significados e sentidos atribuídos, nos relatos, sobre os temas em questão15. A análise foi efetuada em três etapas: 1) a pré-análise a partir da leitura flutuante do material; 2) a exploração do material, em que foram classificados temas e os núcleos de sentido do texto por meio de categorização das falas, onde cada conteúdo de uma fala foi examinado; 3) por último, a produção de inferências e interpretações sobre os resultados14. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A partir das categorias “facilidades” e “dificuldades” existentes no enfrentamento ao TMFES, propostas pelos autores, foram encontrados os seguintes temas e respectivos núcleos de sentido para as “facilidades”: trabalho em rede (“rede de confiança: parceria alargada”); visibilidade do tema (“as pessoas já sabem o que é”); política estruturada (“esforços do país para honrar compromissos assumidos”); conhecimento e reconhecimento (“experiência adquirida”). Para os temas e núcleos da categoria “dificuldades” destacam-se: escassez de recursos (“processos caros e portas que se fecham”); preconceito (“questão moralizante”); acessar e ser acessado (“buscando aprender estratégias de aproximação e ganhar a confiança”); tempo de investigação (“demora leva a outras tipificações”); configuração da rede de aliciamento (“parentes envolvidos”); legislação (“confusão entre prostituição e tráfico”), e naturalização de práticas violadoras dos direitos dos trabalhadores sexuais (“elas naturalizam”). Esta pesquisa foi aprovada por comitê de ética em pesquisa reconhecido pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.

Resultados Questionar os representantes das instituições governamentais e não governamentais sobre as facilidades para lidar com o TMFES desencadeia, em um primeiro momento, respostas que apontam para a inexistência de quaisquer facilidades, e, contrariamente, enseja uma necessidade de falar mais facilmente sobre as dificuldades, conforme exemplificado por alguns dos depoimentos abaixo: “Facilidades? Tem alguma, não? (risos)”. (OG/BR) “Bem... vou começar pelas dificuldades”. (OG/PT)

No entanto, em um segundo momento, alguns elementos se destacam no discurso dos representantes quando buscam elaborar suas reflexões sobre o que falicita a sua atuação em relação ao tema em questão. Um deles se refere ao trabalho em rede, realçado, sobretudo, pelas organizações governamentais de ambos os países (quatro do Brasil e três de Portugal). O trabalho em rede foi considerado como um dos aspectos mais importantes, por possibilitar, entre outras coisas: o diálogo nacional e internacional entre os parceiros, o estabelecimento de relações de confiança entre os diferentes atores que atuam no TMES, a comunicação entre os distintos níveis de gestão, e o fortalecimento das políticas púbicas. “Ah! eu acho que as facilidades são os contatos da rede, são os contatos em geral, tanto do município como do estado...”. (OG/BR) “Há uma grande, diria eu, rede de confiança entre todos e isto é algo que nos facilita o trabalho”. (OG/PT)

Embora nenhuma ONG tenha mencionado o trabalho em rede como fator facilitador da sua atuação, os representantes das OG consideram fundamental a interlocução com os órgãos não governamentais, dada a importância desses últimos no tocante ao acolhimento das vítimas. O segundo ponto mais destacado, também pelos representantes das OG de ambos os países, se refere à visibilidade do tema, que é essencial para descortiná-lo, colocando-o em pauta e trazendo-o para o debate público. Nesse sentido, os meios de comunicação, no Brasil e em Portugal, têm contribuído para a reflexão, conscientização e sensibilização da sociedade para o problema. No Brasil, essa questão foi tema de uma novela, e, em Portugal, ela foi objeto de um documentário. Ambas as experiências trouxeram uma consciência coletiva acerca do tráfico para exploração sexual, passando uma mensagem, tanto na novela brasileira como no documentário português, de situações migratórias repletas de violência contra a mulher. 614

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“A sociedade está um pouco mais sensível ao tema, um pouco pela novela, que falou um pouco sobre o tema, as campanhas do próprio Ministério da Justiça que têm levado uma maior sensibilização…”. (OG/BR) “[o documentário] Veio desocultar de alguma forma este fenómeno e transmitir uma outra realidade que leva a que as pessoas falem sobre o fenómeno...”. (OG/PT)

A visibilidade do tema, recentemente adquirida, tem sido reforçada também pelas campanhas e planos governamentais nacionais, assim como por políticas específicas dirigidas à mulher e pela legislação, conforme a percepção dos atores pesquisados. “Encontro mais facilidades neste momento, porque é mais fácil falar do tráfico: a maioria das pessoas já sabe o que é; em 2008 ninguém sabia o que era tráfico de seres humanos […] Já há muito mais parcerias formadas. Por exemplo, os órgãos de polícia criminal estão quase todos formados na área do tráfico. Há uma legislação já muito natural...”. (ONG/PT) “Facilidade... acho que o próprio reconhecimento de hoje. Hoje a gente tem a política para as mulheres, elas são fundamentais”. (OG/ BR)

Para esta maior visibilidade do tema, tem contribuído e constitui uma facilidade a discussão sobre a violência contra a mulher, no bojo da qual se encontra o tráfico para exploração sexual. “Eu acho que uma das facilidades é a questão da violência agora, estar muito na ordem do dia. Se fala muito sobre na violência sobre as mulheres […] as pessoas já estão mais sensíveis pra essas temáticas, pra esse fenômeno, isso facilita também o trabalho, não é?”. (OG/PT)

Assim, a existência de políticas estruturadas, como os planos nacionais, e a assinatura do protocolo de Palermo foram apontadas como facilidades em relação aos objetivos e metas a atingir. “É importante destacar que o governo brasileiro tem feito esforços de honrar seus compromissos assumidos com a assinatura da convenção do Protocolo e em todos esses fóruns da comunidade internacional”. (OG/BR)

Os conhecimentos adquiridos pela experiência de atuação e pelas ações de formação com a finalidade de alertar para este fenômeno também foram mencionados, embora com menor freqüência, como importantes facilitadores da atuação. Todavia, um repertório diversificado de dificuldades para a atuação frente ao TMFES foi apontado pelos representantes institucionais. Em ambos os países, a carência de recursos financeiros e humanos foi a dificuldade mais mencionada, sobretudo por representantes de OG, mas, também, referida pelos de ONG. As demandas por variados e elevados gastos, para as quais os recursos financeiros são insuficientes, se referem: aos processos judiciais demorados, ao acolhimento, à garantia de segurança das mulheres, ao transporte e à reinserção das vítimas. “... o que mais tem fechado a porta de organizações não governamentais fantásticas, e diria precursoras desse enfrentamento: Os financiamentos internacionais”. (ONG/BR) “É preciso contactos com os países, com as pessoas que ficaram nos países de origem destas pessoas. Os contatos são caríssimos. Para integrarmos uma pessoa precisamos de documentos, precisamos certificar as habilitações, e tudo isso são processos demorados e caríssimos. O transporte: tem que ser um transporte seguro [...] estamos a falar de redes ardilosas, [...] violentas”. (ONG/PT)

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Também a carência de recursos humanos foi apontada como um problema. A insuficiência e a rotatividade de técnicos para um trabalho tão amplo e complexo têm gerado descontinuidades nas ações que precisam ser desenvolvidas. “A gente tem uma equipe reduzida pra dar conta de muitas temáticas, […] essa é a dificuldade que eu digo que é estrutural, né, de questão de equipe, de orçamento”. (OG/BR) “Nós, para implementar um trabalho desse, temos um grande constrangimento que são os recursos humanos. [...] Então temos que aproveitar quem está dentro. Mas quem está lá dentro também tá sobrecarregado, não é? Com uma carga horária intensa, com uma multiplicidade de funções”. (OG/PT)

Apenas uma ONG portuguesa apresentou perspectiva discordante, pois seu representante considerou que houve um crescimento dos financiamentos, levando-o a considerar que o tema TMFES “está em alta”. É interessante destacar que tal questão é um item bastante sensível às agências não governamentais, pois dele depende a sua sustentabilidade. “Eu acho que no âmbito do tráfico, eu acho que as dificuldades têm diminuído cada vez mais, porque a noção do que está em alta, né. Então tem havido mais financiamentos, uma preocupação maior”. (OG/PT)

No Brasil, os representantes de OG destacaram problemas quanto à gestão e o preconceito em torno do TMFES, derivado de questões morais, sendo necessária uma sensibilização dos técnicos que realizam o atendimento. Eles também ressaltaram a necessidade de mais conhecimento, por meio de pesquisas nas universidades e capacitações para os técnicos, a fim de entenderem as dificuldades derivadas do conceito de tráfico, identificarem os fatores de vulnerabilidade e de proteção, e criarem estratégias mais eficazes para a denúncia e para as redes de proteção. Também em Portugal, foi referido que o denominado TMFES é envolto em estereótipos em relação à figura da vítima e da prostituta. “A gente sabe que é um tipo de violação [...] envolta de muito preconceito, [...] muito desconhecimento. Tem aspectos moralizantes, principalmente quando a gente fala na questão sexual e do trabalho sexual. Existe [...] a questão moralizante e isso é difícil […] Então, a dificuldade é essa: Dentro do Brasil, tão grande, a gente conseguir sensibilizar o técnico que está lá na ponta”. (OG/BR)

Os depoentes identificaram, como importante dificuldade, a gestão pública, verticalizada, que ignora as realidades de cada município. “Como você estrutura uma rede? Eu acho que tudo no Brasil... qualquer coisa que der certo num país de dimensões continentais [...] pode dar certo em países menores, porque como que você envolve várias unidades federativas que cada uma tem uma estrutura intersetorial diferente da outra, de atendimento, que vai desde atenção a saúde, percepção, orientação, etcetera, como que você articula isso? Isso é um grande desafio”. (OG/BR)

Acessar as vítimas e ser acessado por elas também parece ser uma das dificuldades, tendo em vista que, em ambos os países e tanto nas OG como nas ONG, essa questão teve destaque, demonstrando que a articulação e o relacionamento estabelecido no trabalho em rede, apontado pelos entrevistados como um aspecto positivo nas políticas contra o tráfico, não ocorre em relação às vítimas ou público vulnerável à exploração sexual. De fato, o grande desafio é ser acessado pelas vítimas, e aprender com elas indo aos seus ambientes e aos eventos de associações de defesa de seus direitos. Essa é uma preocupação central, visto que é por meio do acesso ao público mais vulnerável que o tráfico para fins de exploração sexual se insere, que se podem ter as informações mais importantes desta realidade. 616

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“Acessar as vítimas e ser acessado por elas. Por quê? Porque as pessoas, mesmo aquelas que comparecem... Não manifestam o desejo de acompanhar processo criminal, ou ver o aliciador responsabilizado. São pessoas que querem virar a página né. Então, ser acessado por elas também é um desafio pra nós. O que nós procuramos é [...] estabelecer uma interlocução e aprender um pouco mais. E tentar, com isso, estabelecer uma relação de confiança”. (ONG/BR)

Reconhecem que são necessários diálogos com as mulheres que trabalham na indústria do sexo, para conhecer suas opiniões sobre o que resulta ou não em ações práticas para a construção de políticas públicas ajustadas ao cuidado da sua saúde e à garantia dos seus direitos, prevenindo situações de revitimização e exploração. “As próprias mulheres, elas não se vinculam numa continuidade de diálogo com o poder público, pra dizer assim: ‘Poxa, isso aqui adiantou! Poxa, isso aqui não adiantou nada! Poxa, isso me ajudou’. Não têm esse feedback”. (OG/BR) “Olha o, é, eu acho que uma dificuldade, é você ter que ir conhecer os casos né, identificar onde tem... queria conhecer os caras [...] se inserir na comunidade das prostitutas, dos transgêneros, do mundo sexual. E a gente não conseguiu porque não chamavam a gente, ou não tinha ou é uma coisa muito fechada. A gente tinha dificuldade de chegar, de falar sobre isso”. (ONG/BR)

Se, por um lado, o acesso a este público vulnerável é considerado difícil, por outro, também são percebidas dificuldades para atuar no contato direto com ele em um serviço de atendimento, pois, muitas destas pessoas já vivenciaram experiências negativas quando foram deportadas, e nem sempre é possível um trabalho nesse sentido quando atendidas num primeiro contato, para não revitimizá-las. No âmbito da investigação criminal, o medo e a falta de confiança nos órgãos policiais bloqueiam os depoimentos das vítimas de exploração sexual, seja porque já vivenciaram ou porque conhecem casos de violência policial contra prostitutas em seus países de origem. Tal desconfiança as leva, igualmente, a não confiarem na polícia dos países para onde são levadas, como é referido no caso europeu. “Em termos de dificuldades, é as dificuldades de investigação criminal e [...] a dificuldade do relacionamento. Quando falo em relacionamento é que a vítima confie nas autoridades... porque o peso polícia e o peso Serviço Estrangeiros e Fronteiras, continua a ser pesado para essas pessoas...”. (OG/PT)

O tempo para a investigação criminal de um crime como TSH foi relatado como uma dificuldade, pois requer uma intervenção cuidadosa para se recolherem as provas e desmantelar uma rede. No entanto, nem sempre esse tempo requerido é possível, devido aos riscos que as vítimas podem correr. Quando isso ocorre, frequentemente, o crime de tráfico de pessoas acaba sendo definido por outra tipologia criminal. “... dificuldades normais de investigação criminal. Se temos tempo podemos fazer um bom trabalho, se não temos tempo, temos de reagir a um indício que não o crime de tráfico de pessoas. Pode originar que a finalização seja aquele único crime… rapto, sequestro, lenicínio, auxilio à imigração ilegal... portanto, em que não haja, digamos, o tempo para aprofundar e conseguirmos porque muitas vezes provar… nem sempre é fácil, não é?”. (OG/PT)

Foi ainda referido como dificuldade para a investigacão criminal o fato de ser frequente a presença de familiares ou conhecidos nas redes de tráfico. Isto torna difícil a denúncia por parte das vítimas. “... neste tipo de situação de mulheres que são trazidas para exploração sexual temos um cariz muito grande familiar […] por exemplo a situação romena, muitas das vezes, é a família que

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mete aquelas crianças [...] de 15 a 16 anos [...] na prostituição, para seu benefício pessoal não é? Abordar uma criança dessas, ela não vai dizer que é o tio ou que é o primo ou o pai que a coloca aí não é... porque o factor família ali pesa muito”. (OG/PT)

Conseguir provas para criminalizar as redes também é uma tarefa difícil, visto que, mesmo quando em segurança, as vítimas têm receio do que lhes poderá acontecer ou a seus familiares. ”O explorador é muitas vezes do país de origem e o receio de represálias não é só sobre a mulher vítima que está aqui em Portugal, é um receio também de represália sobre a família... E isso é outra dificuldade que encontramos: conseguir um testemunho claro e evidente da parte da própria vítima”. (OG/PT)

Outra das dificuldades apontadas é a legislação brasileira, que considera o tráfico como apenas derivado da prostituição, no seu artigo 231, e não leva em conta os outros tipos de tráfico, como para exploração laboral, limitando este, e criminaliza a atividade prostitutiva. “Um desafio que a gente tem, ainda aqui no Brasil, é a nossa legislação; que ela ainda vê o tráfico só pra exploração sexual, e hoje a gente tem uma visão muito mais ampla”. (OG/BR)

Talvez por isso tenha surgido, como uma das dificuldades mencionadas, o temor de que as políticas relativas ao TMFES criminalizem ou contribuam para estigmatizar ainda mais a prostituição. Embora essa seja uma atividade reconhecida como categoria de trabalho no Brasil, na prática, ela ainda é envolta de preconceito, e a prostituta que decide ir para outro país para trabalhar é quase sempre considerada como vítima, não sendo essa ação reconhecida como uma opção de mercado. “Porque prostituição é forma de trabalho catalogada no Brasil. Não é crime. E é forma de trabalho considerada pelo Ministério do Trabalho e Emprego como ocupação. […]. A prostituta ela pode vir a ser forçada a praticar, mas ela... como profissional o que ela tá praticando não é forçado. [...]. O que a gente na verdade tem que tentar fazer, não é tirá-la da situação de prostituição, é tirá-la de uma situação de exploração. Ponto! [...] O papel do estado é garantir que a pessoa tenha autonomia de se autodeterminar”. (OG/BR) “Então isso é uma preocupação de não tornar as prostitutas mais vulneráveis do que elas já estão. [...] Então conseguir fazer um debate, avançar na garantia de direitos das mulheres profissionais do sexo, que eu acho que é um desafio”. (OG/BR)

Os poucos casos existentes de mulheres traficadas para fins de exploração sexual foram uma das dificuldades mencionadas por representantes de OG, sobretudo do Brasil. Entretanto, no caso brasileiro, esse não constitui um crime prioritário, até porque ainda tem pouca visibilidade e existem outros crimes com maior magnitude. “Primeiro, por mais que o esforço seja grande de o governo brasileiro assumir o compromisso, se você for pensar nos problemas associados à criminalidade, o tráfico de seres humanos não é? não estaria no top cinco, pra não dizer que não estaria no top dez. Porque poxa! tem homicídio no país que morre mais de [...] cinquenta mil pessoas por ano. Sérios problemas de contrabando, crime organizado, corrupção”. (OG/BR)

Por outro lado, consideram que a naturalização de práticas do trabalho sexual que violam direitos leva as mulheres a não se considerarem vítimas de tráfico, contribuindo para baixa consciência social e ocultamento da real magnitude deste problema. “A gente sente que a pessoa naturaliza muito aquilo, aquela violação que ela tá sofrendo...”. (ONG/BR) 618

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“As maiores dificuldades é ainda a ocultação do fenómeno, o fenómeno é ainda muito oculto”. (OG/PT)

Apesar de as articulações entre os serviços serem referidas como uma das facilidades, uma ONG menciona que ainda é um obstáculo, sobretudo, entre os órgãos de polícia criminal e as ONG.

Discussão Os depoimentos dos representantes das instituições governamentais e não governamentais, quando refletiram sobre os aspectos que facilitam ou dificultam a atuação das suas instituições para lidar com o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, indicaram um amplo e complexo espectro de aspectos: sejam de ordem estrutural, como a existência ou não de políticas públicas, legislação e financiamento para a prevenção e atendimento às vítimas, até a recente preocupação teórica com relação aos conceitos adotados, as técnicas e métodos de trabalho em rede e articulado. A visibilidade do tema TMFES, aspeto apontado como relevante e facilitador da atuação das instituições que lidam com ele, parece indicar, em sua complexidade, uma via de mão dupla. Por um lado, quanto mais visível se torna este problema, mais facilidade haverá para a geração de conhecimentos teóricos e aplicados no trabalho em rede e articulado transnacionalmente, e para a criação de legislação adequada e que garanta os direitos das mulheres, resultando em mais financiamento e na construção de políticas de prevenção e de atenção às vítimas16,17. Por outro lado, a ausência ou insuficiência de tais condições colabora para a invisibilidade do TMFES, mostrando o imbricamento entre os distintos aspetos envolvidos neste grave problema social. Talvez, por isso, os órgãos que atualmente lidam com esta problemática tendam a superestimar os números, na tentativa de chamar atenção para ela16,18. Questões de ordem administrativa e organizacional, como a difícil gestão e articulação dos serviços de controle, prevenção e atenção às vítimas envolvidas no TMFES, parecem se associar com outras de ordem estrutural, de carência de recursos humanos e financeiros, e de legislação, compondo um quadro de dificuldades bastante desafiador. Além disso, parecem existir, ainda, intrincadas relações entre a dificuldade da investigação criminal do caso, o acesso às vítimas e dessas às organizações de apoio e proteção, e a necessidade de avanço e aprimoramento do conhecimento técnico para atuar; tudo isso agravado por questões de ordem sociocultural do preconceito contra as mulheres que se envolvem com esta problemática, assim como questões relacionadas com vulnerabilidade, consentimento e naturalização da violência19-21. Diante das questões aqui levantadas, parece ser imprescindível desenvolver políticas de enfrentamento ao tráfico descentralizadas, adaptando-as às diversidades, especificidades e necessidades das realidades locais19,22. A tônica dessas políticas tem sido a divulgação de casos de extrema violência e terror, com ênfase no combate ao crime. Embora haja casos exemplares que simbolizam as violências mais cruéis do tráfico de pessoas, na prática, a maioria dos casos se insere no mundo da prostituição18,23,24. No entanto, não há um documentário ou panfleto destinado a informar sobre os direitos das mulheres que trabalham na indústria do sexo, isso as estigmatiza e as exclui das políticas públicas, dificultando seus depoimentos e confiança nos serviços que as atendem. Portanto, falar de tráfico de mulheres para fins sexuais é falar de preconceitos referentes a um conjunto de relações complexas vinculadas à exploração sexual, prostituição e migração8,25. Como exemplo desta complexidade, hoje em dia, fala-se de tráfico de seres humanos como uma forma de escravidão moderna. De acordo com Davidson26, isto gera um consenso político mundial porque ninguém é a favor da escravidão. No entanto, a linha entre restrição e liberdade é uma construção social que varia mediante diferentes contextos do que é entendido como exploração. Ainda mais quando se fala de prostituição, onde existem diferentes ideologias sobre a restrição ou não do trabalho sexual. Sabe-se que muitas destas mulheres que optam pela indústria do sexo, não se colocam no lugar de vítima, ao contrário, consideram que este trabalho lhes permite sair de uma situação social precária, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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seja marcada por episódios de violência, emprego mal pago ou falta de oportunidades de trabalho, onde, de certa forma, se consideravam vítimas8,27,28; ou mesmo, por meio do mercado do sexo ligado ao turismo em seus países de origem, viajarem para países europeus2 4. A necessidade de acessar as vítimas e entender suas realidades foi destacada neste estudo; para tal, é importante ouvir a experiência local com trabalhos etnográficos29. Também foi apontada, como um dos entraves, a desconfiança da vítima com os órgãos de polícia criminal, visto haver a experiência de intervenções estatais com o intuito de repressão à prostituição em seus países de origem30. Estas ações policiais, por vezes, se refletem numa violência sobre as prostitutas, com graves consequências de violação dos direitos humanos31. O tempo de investigação do crime de tráfico de pessoas é, por vezes, longo. Assim, para manter a segurança das vítimas, ele acaba sendo enquadrado em outras tipologias. A dificuldade de se conseguirem provas é referida em outros estudos30. Por outro lado, é frequente haver parentes envolvidos nas redes de tráfico, o que também dificulta as denúncias32. Dada a complexidade do assunto, muitos dos entrevistados destacaram a necessidade de formação para o tema do tráfico para fins de exploração sexual. De acordo Doezema15, ele está perpassado por mitos e ideologias sobre a prostituição, resultando em ações que julgam quem deve ser protegido ou criminalizado. No Brasil, os depoimentos salientaram uma legislação inadequada que penaliza a prostituição no seu artigo 23116,19. Verificou-se, nas falas de representantes de algumas instituições, entenderem que as mulheres naturalizam certas práticas do trabalho sexual, que são características de uma situação de exploração. Isto faz com que estas mulheres não se considerem vítimas. Para além disso, referem não haver uma consciência social sobre o tráfico de mulheres para fins sexuais, o que justifica os baixos números. Jeffereys33 menciona que a aceitação social da expansão da indústria do sexo, por meio dos governos que a aceitam ou toleram, é responsável por esta normalização da prostituição. No entanto, autores alertam para as confusões de se considerar o tráfico para fins sexuais igual a viagem com fins de prostituição15,19. O feminismo abolicionista traduz esta visão, onde toda prostituição é considerada uma forma de violência contra a mulher, e pouco importam os direitos das mulheres que trabalham na indústria do sexo, visto serem criminalizadas e vítimas sociais3. Uma restrição a ser mencionada neste estudo é a ausência dos discursos das mulheres sinalizadas como vítimas de tráfico para fins sexuais que pudessem ser comparados com a ótica dos representantes institucionais.

Considerações finais Foram mencionadas muito mais dificuldades que facilidades na atuação frente ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, talvez pela complexidade inerente à sua dinâmica e ao seu enfrentamento. Entre as dificuldades, foram mencionadas: Legislação dúbia, estigmatização de pessoas, respostas sociais inadequadas que levam à impunidade, morosidade investigativa, naturalização de práticas violadoras, tudo isso agravado pela falta de recursos financeiros e humanos. Em contrapartida, percebem-se avanços na gradativa visibilidade e sensibilidade social ao tema, nas parcerias interinstitucionais, bem como na busca de diálogo e aprendizado com os grupos representativos das pessoas que viveram tais experiências. Identificar os entraves e o que facilita a atuação das OG e ONG no que se refere ao tema aqui abordado é de extrema pertinência, a fim de superar os obstáculos e reforçar as boas práticas. Uma dessas práticas, como indicado pelos próprios entrevistados, seria o estímulo à integração dos serviços/ setores que lidam com o tráfico, para que haja uma maior confluência das políticas públicas que norteiam suas ações. Um exemplo claro é a necessidade de formação para os profissionais, com a participação de prostitutas e representantes de organizações de defesas dos seus direitos. Políticas eficazes para um problema desta natureza, abrangendo todas as esferas sociais e mudando preconceitos e discriminação, ainda são necessárias. Mais do que criar novas políticas e legislação dirigidas ao tráfico de pessoas, ainda se mostra necessário aprimorar e fazer valer o que já existe, inserindo este tema nas políticas de enfrentamento da violência contra a mulher. 620

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artigos

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Santos BS. Tráfico de mulheres em Portugal para fins de exploração sexual. Lisboa: Coleção Estudos de Gênero CIG; 2008. 2. Rago M. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1991. 3. Blanchette TG, Silva AP. As American girls: migração, sexo e status imperial em 1918. Horiz Antropol. 2015;15(31):75-99. 4. Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Secretaria Nacional de Justiça. Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília (DF): SNJ; 2008. 5. Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Secretaria Nacional de Justiça. Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília (DF): Ministério da Justiça; 2013. 6. Comissão de Igualdade de Gênero [Internet] [acesso 2015 Fev 12]. Disponível em: http://www.cig.gov.pt/planos-nacionais-areas/trafico-de-seres-humanos/ 7. Rede Española contra la trata de personas [Internet] [acesso 2015 Out 15]. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/02/120130_exploracao_sexual_ai_ bg.shtml 8. Augustin L. Sex at the margins: migration, labour markets and the rescue industry. London: Zed Books; 2008. 9. Ministério da Justiça (BR). Relatório Nacional sobre tráfico de pessoas: dados de 2013. Brasília (DF): UNODC; 2015. 10. Observatório de Tráfico de Seres Humanos. Tráfico de seres humanos: relatório sobre 2014. Lisboa: OTSH; 2015. 11. United Nations on Transnational Organized Crime. The United Nations Convention against transnational organized crime and the protocols Thereto. New York: United Nations; 2004. 12. Secretaria de Políticas para as Mulheres (BR). Política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres. Brasília (DF): Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República; 2011. 13. Sampieri R, Collado C, Fernández L, Pilar B. Metodologia de pesquisa. São Paulo: MC Graw Hill; 2006. 14. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec; 2013. 15. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2009. 16. Santos BS, Gomes C, Duarte M. Tráfico sexual de mulheres: representações sobre ilegalidade e vitimação. Rev Crit Cienc Soc. 2009; (87):69-94. 17. Albano M. O combate ao tráfico de seres humanos em Portugal 2007-2010. In: Machado P, Wrabetz J, Teixeira M, Albano M, Pereira M, Santos BS, et al., organizadores. Tráfico desumano. Lisboa: Colecção de Direitos Humanos e Cidadania, OTSH; 2010. p. 63-71. 18. Kempadoo K. Mudando o debate sobre o tráfico de mulheres. Cad Pagu. 2005; 25(2):55-78.

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19. Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude. Direitos Humanos e gênero no cenário da migração e do tráfico internacional de pessoas. Cad Pagu. 2008; 31(2):251-73. 20. Sprandel MA, Dias GM. A temática do tráfico de pessoas no contexto brasileiro. REMHU. 2010; 18(35):155-70. 21. Gueraldi M, Dias J. Em busca do Éden: tráfico de pessoas e direitos humanos, experiência brasileira. São Paulo: Max Limonad; 2012. 22. Dias GM. Reflexões sobre políticas para migrações e tráfico de pessoas no Brasil. REMHU. 2011; 19(37):59-77. 23. Doezema J. Sex slaves and discourse masters: the construction of trafficking. New York: Zed Books; 2010. 24. Piscitelli A. Entre a praia de Iracema e a União Européia: turismo sexual internacional e migração feminina. In: Piscitelli A, Gregori MF, Carrara S, organizadores. Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond; 2004. p. 283-318. 25. Piscitelli A. Entre as “máfias” e a “ajuda”: a construção de conhecimento sobre tráfico de pessoas. Cad Pagu. 2008; (31):29-63. 26. Davidson OJ. New slavery, old binaries: human trafficking and the borders of ‘freedom. Global Networks. 2010; 10(2):244-61. 27. Lopes CS, Rabelo IVM, Pimenta RBP. A Bela Adormecida: estudo com profissionais do sexo que atendem à classe média alta e alta na cidade de Goiânia. Psicol Soc. 2007; 19(1):69-76. 28. Grupo Davida. Prostitutas, “traficadas” e pânicos morais: uma análise da produção de fatos em pesquisas sobre o “tráfico de seres humanos”. Cad Pagu. 2005; 25(2):153-84. 29. Piscitelli A. Tránsitos: circulación de brasileñas en el ámbito de la transnacionalización de los mercados sexual y matrimonial. Horiz Antropol. 2009; 15(31):101-36. 30. Teixeira M. Tráfico de pessoas da percepção social à realidade policial. In: Machado P, Wrabetz J, Teixeira M, Albano M, Pereira M, Santos BS, et al., organizadores. Tráfico desumano. Lisboa: OTSH; 2010. p. 53-62. (Colecção de Direitos Humanos e Cidadania). 31. Murray L. Victim management and the politics of protection: between “fazer direito” and “direitinho”. Rev Ártemis. 2014; 18(1):28-41. 32. Santos A, Penedo R. Novo modelo para o conhecimento em tráfico de seres humanos. In: Machado P, Wrabetz J, Teixeira M, Albano M, Pereira M, Santos BS, et al., organizadores. Tráfico desumano. Lisboa: OTSH; 2010. p. 179-207. (Colecção de direitos humanos e cidadania). 33. Jeffreys S. The Industrial Vagina: the political economy of the global sex trade. New York: Routledge; 2009.

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artigos

Zúquete JG, Souza ER, Deslandes SF

Zúquete JG, Souza ER, Deslandes SF. Enfrentamiento al tráfico sexual de las mujeres desde la perspectiva de los agentes institucionales de Brasil y Portugal. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):611-23. Este articulo reflexiona sobre las facilidades y dificultades en el enfrentamiento al trafico sexual de mujeres. em este estudio, exploratorio y de naturaleza cualitativa, se entrevistaron representantes de instituciones gubernamentales y no gubernamentales de Brasil y Portugal. El material recuperado fue sometido a un análisis temático. Se identificaron varios obstáculos, entre ellos una legislación con dificultades en su formulación, estigmatización, demoras, naturalización de prácticas de violación y falta de recursos. En contraposición, se encontraron avances relacionados con la sensibilidad social hacia el tema, asi como acciones compartidas entre las instituciones, así como la búsqueda de un diálogo y aprendizaje con los grupos que representan estas personas. Se recomienda la integración de acciones, servicios, politicas y sectores relacionados con el tráfico, la formación de profesionales con personas que sufrieron tal experiencia y la inserción de este asunto en las politicas de enfrentamento a la violencia contra la mujer.

Palabras clave: Trata de mujeres. Explotación sexual. Política pública.

Recebido em 28/05/15. Aprovado em 23/11/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0389

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O apoio matricial em saúde mental: uma ferramenta apoiadora da atenção à crise

Maura Lima(a) Magda Dimenstein(b)

Lima M, Dimenstein M. Matrix support in mental health: a tool for support in care in crisis situations. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):625-35.

Crisis attention and matrix support are crucial to the strengthening of psychosocial care in the psychosocial care network. Using matrix-like actions of a CAPS II team as a starting point, this paper discusses the influence of matrix support in crisis care. Being an interventional research, we used interviews and conversation sessions with service workers. Aiming to promote expansion in reception and care capacity of the Family Health Strategy teams, the matrix support proved to be a supportive tool for care in crisis situations, by preventing situations of crisis or addressing them before they get worse, avoiding more invasive interventions as the use of police, physical force, compulsory admission to emergency room, hospitalization and to the CAPS. This set of facilitating characteristics unveiled a mediator potential of the matrix tool for setting up schemes of crisis care based on the psychosocial model.

Keywords: Mental health. Crisis attention. Matrix support.

A atenção à crise e o apoio matricial são estratégicas para o fortalecimento da atenção psicossocial na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A partir das ações do matriciamento de uma equipe de CAPS II, este artigo discute as interferências do apoio matricial na atenção à crise. Como pesquisa interventiva, utilizamos entrevistas e rodas de conversas com trabalhadores do serviço. Identificando-se a necessidade de promover ampliação na capacidade de acolhimento e cuidado de equipes da Estratégia Saúde da Família, o matriciamento se revelou ferramenta apoiadora da atenção à crise, ao prevenir situações de crise ou abordá-las antes que se agravem, evitando manejos mais invasivos como: a utilização da polícia, uso da força física, conduções involuntárias para a emergência, internação hospitalar e para o CAPS. Esse conjunto de facilitações desvelou um potencial intercessor da ferramenta do matriciamento na constituição de uma atenção à crise pautada no modelo psicossocial.

Palavras-chave: Saúde mental. Atenção à crise. Apoio matricial.

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Ativadora de Rede de Atenção Psicossocial. Ministério da Saúde. Rua Cento e cinquenta e seis, n. 520, apto. 103, Laranjal. Volta Redonda, RJ, Brasil. 27255-005. mauralima@ig.com.br (b) Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, RN, Brasil. mgdimenstein@ gmail.com (a)

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Introdução Este artigo apresenta um recorte da pesquisa de doutorado intitulada Atenção à crise e matriciamento: analisadores da Estratégia Atenção Psicossocial. Nesta condição, a partir das ações do matriciamento de uma equipe de CAPS II, discute as interferências do apoio matricial na atenção à crise, sob a perspectiva da Atenção Psicossocial. A luta pela superação do aparato manicomial, disparada pela Reforma Psiquiátrica, implica, para os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a transformação da assistência às pessoas em situação de sofrimento psíquico. De acordo com Costa-Rosa1, funcionar numa lógica autenticamente substitutiva ao modo manicomial configura as ações em saúde mental como práticas de Atenção Psicossocial. Nesse sentido, a atenção à crise se revela como um eixo estratégico do cuidado da RAPS, uma vez que sua viabilização, fora do circuito das internações nos hospitais psiquiátricos, garante a permanência dos usuários em seus contextos familiares e sociocomunitários, possibilitando a territorialização do cuidado e interrompendo o já conhecido circuito segregador e cronificante. A Política Nacional de Saúde Mental (PNSM)2 posiciona os CAPS como serviços que ocupam função estratégica na missão de substituição da lógica manicomial. Componente da atenção especializada da RAPS, o CAPS é um serviço de referência no cuidado de pessoas em intenso sofrimento psíquico, em situações de crise, a partir do modelo de atenção e suporte psicossocial dirigido ao reposicionamento subjetivo do sujeito, e, como indica o Ministério da Saúde2, à reintegração dos usuários em seus territórios familiares, sociais, afetivos: espaços de contratualidade e cidadania. De acordo com Yasui e Costa-Rosa3, o modelo de Atenção Psicossocial é intensamente territorial. O espaço típico das práticas do paradigma psicossocial funciona como dispositivos integrais territorializados de Atenção Psicossocial em uma relação de porosidade com o território. Modelo focado no cuidado em liberdade, sustentar crise no território requer, portanto, intensa relação dos CAPS com as equipes da Atenção Básica. Atender a lógica territorial que requisita a PNSM, promover cuidados no território e interromper o circuito de internações e segregações implica viabilizá-los de forma articulada, tendo a Atenção Básica como um núcleo central. Garantir a assistência em saúde mental a partir desse campo é encaminhá-la na direção da integralidade do SUS, dos cuidados em rede e em liberdade. Com a perspectiva da integralidade e da desinstitucionalização, as equipes da Atenção Básica, também inscritas na lógica da Estratégia Atenção Psicossocial (Eaps), devem incluir ações de saúde mental em suas agendas. Se o trabalho das equipes da Estratégia Saúde da Família vem sinalizando para o encontro cotidiano com demandas de saúde mental, é reconhecida, porém, a dificuldade – muito intimamente ligada aos preconceitos e ao estigma da chamada doença mental – de realizá-lo de forma a responder satisfatoriamente às demandas que lhes são dirigidas4. Na realidade do país, observa-se pouca resolutividade das equipes da Atenção Básica, por resistências e fragilidades na corresponsabilização, na apropriação e no acompanhamento dos usuários com demandas de saúde mental pelas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF). Tal como observa Penido5, isto se reforça por essas demandas serem tradicionalmente consideradas de responsabilidade exclusiva dos serviços de saúde mental. Visando responder à perspectiva da integralidade, promover corresponsabilização e aumentar a capacidade resolutiva da Atenção Básica, a Política coloca em operação a ferramenta do apoio matricial: uma tecnologia de arranjo organizacional que viabiliza suporte técnico em áreas especializadas para as equipes responsáveis pelo desenvolvimento de ações de saúde mental na Atenção Básica6. Ofertar o apoio matricial a essas equipes é, portanto, também, uma missão dos CAPS. Assim, o matriciamento é outro elemento estratégico da PNSM. Ao passo que a atenção à crise e o apoio matricial são dois elementos estratégicos da PNSM, reconhece-se o desafio de fortalecê-los na prática dos serviços7. Comungando deste objetivo, elegemo-los como foco de investimento desse trabalho.

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Metodologia Apresentamos este estudo qualitativo como uma Pesquisa Intervenção, assumindo a posição de que o pesquisador, no campo de sua tarefa, transforma e é transformado pelo seu objeto de estudo. Nessa ótica, o “objeto” deixa de ser apenas um elemento de estudo, constituindo-se cenário de intervenção. De acordo com Rodrigues8, isso faz do pesquisador um agente de mudanças e, do método de investigação, um artifício de intervenção. Como recurso metodológico, realizamos entrevistas semiestruturadas com 27 trabalhadores de todas as categorias profissionais e níveis de escolaridade de um CAPS II, disparando reflexões sobre a atenção à crise e o apoio matricial. Além das entrevistas, em ação de restituição, realizamos três rodas de conversa, contando com a participação de vinte trabalhadores em cada uma. Como critério de participação nas entrevistas, estabelecemos a disponibilidade dos trabalhadores. Já nas rodas, condicionou-se a presença deles ao espaço destinado às reuniões de equipe. Com suas permissões, as entrevistas e rodas foram gravadas e registradas em diário de campo. À época de realização da pesquisa, em 2012, o CAPS contava com uma equipe de quarenta profissionais, sendo referência para 18 bairros do Distrito Sanitário ao qual pertence, bem como para seis Serviços Residenciais Terapêuticos. Sob a perspectiva da pesquisa-intervenção, por meio das entrevistas e das rodas, ofertou-se, aos trabalhadores, um espaço de reflexão sobre a atenção à crise e o apoio matricial, no modelo da Atenção Psicossocial. Nesse espaço, pela via da análise de implicação, impulsionou-se: a construção de compreensões do modo como operam, a finalidade de suas ações, seus horizontes éticos, bem como os desdobramentos dessas ações nos usuários e dos lugares que os trabalhadores ocupam na dinâmica da atenção à crise e nas ações de matriciamento. De acordo com Lourau9, a análise que produzimos acerca dos lugares que ocupamos nas instituições, nas relações, na vida e no mundo configura a análise de implicação. Nesse sentido, segundo Paulon10 (p.23), esta análise é compreendida como: [...] um instrumento por excelência do pesquisador-interventor”, na medida em que opera revelando “[...] as contradições de uma época, de um acontecimento, de um momento de um grupo”10 (p. 24). Em concordância com o pensamento dessa autora, afirmamo-nos na ideia de que é preciso “implicar-se para conhecer”.10 (p. 22) De acordo com Passos e Barros11, o questionamento do sentido da ação da pesquisa e do pesquisador é considerado um mote da pesquisa-intervenção. O sentido da ação de intervenção proposta busca movimentos e metamorfoses nas relações dos atores e do próprio pesquisador. Assim, a oferta daqueles espaços, as análises e as trocas de experiências mútuas – entre os trabalhadores e a pesquisadora – configuraram-se como uma ferramenta microinterventiva relevante aos propósitos ético-políticos da pesquisa, em sua intencionalidade de operar para o fortalecimento da lógica estratégica substitutiva do CAPS. Pela implicação mútua aberta entre os participantes, entende-se ter sido possível colaborar para impulsionar uma cultura de análise das práticas dentro do serviço pesquisado, imprescindível à perspectiva da Atenção Psicossocial.

Resultados e discussão O apoio matricial na ampliação do cuidado à saúde Ao propor a superação do modelo hospitalocêntrico no atendimento das pessoas com transtornos mentais, a Reforma Psiquiátrica nos conduz a um cuidado que não as afaste do seu espaço social. Nessa direção, Yasui e Costa-Rosa3 defendem que a Atenção Básica à saúde é locus privilegiado de intervenção na Atenção Psicossocial, apresentando-se, conforme sinaliza Dimenstein et al.12, estratégia fundamental para traçar ações territoriais, na medida em que está inserida na vida cotidiana e nos espaços comunitários de vida das pessoas, podendo atuar nos espaços onde a vida circula. Desta

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forma inscrita, considera-se que a ESF tem meios de “[...] interferir em situações que transcendem a especificidade do setor saúde e têm efeitos determinantes sobre as condições de vida e saúde dos indivíduos, famílias-comunidade”12 (p. 65). Dada essa relevância, o apoio matricial em saúde mental “[...] surgiu a partir da constatação de que a reforma psiquiátrica não pode avançar se a atenção básica não for incorporada ao processo”12 (p. 66). Nas entrevistas e nas rodas de conversa realizadas no curso de nossa pesquisa, o apoio matricial aparece compondo um conjunto amplo de estratégias e recursos utilizados pela equipe do CAPS no cuidado à crise: horário estendido; acolhimento; encaminhamento; intervenção medicamentosa; contenção física; cuidado intensivo; reinserção e reabilitação psicossocial; assistência domiciliar e familiar; ações territoriais. Desse conjunto, o matriciamento emerge da produção dos dados, propondo um debate que traz à tona sua relevância para a construção de uma Atenção Psicossocial à crise. O apoio matricial é ferramenta que opera processual e continuamente a serviço de responder às exigências da lógica territorial e garantir o desenvolvimento de ações integrais em saúde. Buscando atender ao princípio da integralidade do SUS, as ações em Saúde Mental não podem ficar de fora dos escopos de intervenção das Equipes da ESF4. Como um tipo de arranjo organizacional e, inclinado a responder ao princípio da integralidade, a prática do matriciamento almeja ampliar e qualificar o escopo de ações das equipes da Atenção Básica. A função apoio é enfatizada por Oliveira13 como uma alternativa à resolução da fragmentação dos saberes e das práticas de cuidado. Segundo Campos e Domitti14, uma das principais apostas do apoio matricial está focada na troca de saberes entre equipes, na construção de ofertas que tenham força para ampliar as ações e modificar os problemas de saúde13. No cruzamento de diferentes núcleos de saberes, promove-se ampliação nas ações de saúde14. Para tanto, atendimentos e intervenções conjuntas entre trabalhadores da equipe matricial e os da equipe de referência são previstos no rol de atividades do matriciamento. É por esta via que ele opera diminuindo as fragmentações do saber, do cuidado e dos processos de trabalho decorrentes da hiperespecialização das diversas áreas do conhecimento. Desta forma, integra saúde mental e saúde geral14. Por meio da operacionalização da ferramenta do matriciamento, inscreve-se a Saúde Mental no campo da Saúde Coletiva3. Pensando com Oliveira13 (p.40), o apoio matricial: “[...] aposta na produção de saberes, em ato, que ampliem a capacidade de análise e de ação dos trabalhadores (e usuários) no sentido da coprodução de saúde e de autonomia”. Assim, refletindo sobre o matriciamento no âmbito da Atenção Psicossocial, Figueiredo e Onocko Campos15 (p. 133) acrescentam: “[...] o profissional de referência pode aprender na prática como avaliar e intervir em saúde mental”. Isto possibilita o enfrentamento do problema da corresponsabilização e da fragmentação do saber, anteriormente indicado, que conduz ao tradicional pensamento de que somente as equipes de saúde mental têm responsabilidades sanitárias sobre as demandas de saúde mental, tal como expressa uma trabalhadora: “Às vezes casos reagudizam por falta de um cuidado da Atenção Básica [...] fazendo direcionar para o CAPS uma demanda que poderia ser acolhida na Atenção Básica”. Assim, Figueiredo e Onocko Campos15 (p. 135) apresentam um ganho do apoio matricial em saúde mental: “[...] a modificação do foco de orientação da assistência, que se desloca progressivamente dos serviços e seus cardápios de programas e ofertas, para se dar a partir das necessidades dos sujeitos, das famílias, do território e da rede de relações que nele acontecem”. Dessa forma, vê-se uma reorientação da assistência para fora dos serviços, assim como um importante enfraquecimento da tradicional lógica intramuros, significativamente segregadora. Pelo exercício do matriciamento, a lógica territorial, extramuros, tensiona e se impõe à tradicional da assistência, intramuros, ambulatorial, pautada nos especialismos, e, ainda, âncora de muitas práticas da atenção à saúde mental no campo da Atenção Psicossocial3. Pela inscrição do matriciamento na lógica territorial, detecta-se seu potencial de atuar como uma estratégia articuladora de rede16. Conforme revelam Bonfim et al.17 (p. 294) em estudo de avaliação, o apoio matricial, “[...] quando adequadamente implantado, ajuda na articulação da rede de serviços de saúde e na integração entre as equipes de saúde mental e da ESF”. Isto porque, se no território existem forças vivas, com elas

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interagindo, evita-se um tendencioso funcionamento de gueto psiquiátrico, de serviços pouco porosos ao tecido vivo do território, que reforça segregações e possibilidades de expansão de vida. Esta função articuladora do matriciamento tem grande relevância, posto que vem sendo analisado por autores16,18 que um dos fortes obstáculos dos CAPS tem sido a centralização em si mesmos, pela pouca abertura ao território. A dificuldade de interagir com o território é fenômeno reconhecido no cenário nacional. Em pesquisa de avaliação, desenvolvida pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo19 - Cremesp (p. 7), aponta-se: “Os CAPS pesquisados não conseguiram organizar a demanda e se articular efetivamente com os recursos da comunidade, o que pode comprometê-los no traço mais marcante de sua vocação [...] da reintegração dos pacientes às suas comunidades”. No CAPS da nossa pesquisa, esta foi uma dificuldade assinalada. Assim reflete uma trabalhadora: “O CAPS se habituou a ser um serviço predial, quase como um ambulatório. Começamos a nos trancar dentro dos portões e esquecer que lá fora existe um território vivo, pulsando, de onde vêm as pessoas que nos procuram”. Funcionar “quase como um ambulatório” é um analisador da centralização citada, fruto da fragilidade na inserção territorial. Reconhecendo essa dificuldade como um problema mais amplo, na IV CNSM7, aludiu-se a um fenômeno identificado em muitos CAPS, chamado de “encapsulamento”, expressando um tipo de isolamento destes serviços em relação à rede e seus atores, conformando uma solidão territorial impressa multifatorialmente em uma conjuntura complexa que envolve: fragilidades de resposta da RAPS; pouco investimento que os CAPS fazem nela via matriciamento; parca integração das políticas de saúde mental e da Atenção Básica; crise no suporte de outras políticas de bem-estar social. Articulando rede, o matriciamento se volta contra a ambulatorização dos CAPS, seu isolamento e “encapsulamento”, que os leva a operar um tipo de substituição indesejada: substituição total, inscrita na lógica da Instituição Total analisada por Goffman20. Em atitude de fechamento, muitos CAPS atuam “preenchendo” a função das equipes da Atenção Básica e o seu lugar na RAPS, mesmo com a compreensão de ser impossível dar conta de tal substituição. Pensando com Dias16, entende-se que qualquer serviço que opere deste modo substitutivo a outros pontos da rede termina funcionando como uma Instituição Total, distanciando-se do sentido de substitutividade da lógica hospitalocêntrica, intramuros, que se espera. De acordo com este autor16 (p. 10), a atenção em rede “[...] implica num inestimável avanço em relação à centralidade excessiva e isoladora dos CAPS”. É preciso que a rede se apresente como o próprio espaço de cuidado. Antes, pelo contrário, quando não consegue interagir com o território e seus recursos, quando os substitui, esmaecese a própria noção de rede. Apoiados no pensamento de Lobosque21, entendemos que não condiz com o princípio de rede a centralização de qualquer um de seus pontos de atenção, ainda que seja o CAPS. Ao articular rede, o apoio matricial se inclina contra o “encapsulamento” e esse tipo de substituição total, produzindo um efeito reorganizador das demandas de saúde mental na rede, com melhor distribuição e adequação dos usuários dentro dos pontos de assistência, em sintonia com suas demandas, evitando que todas elas sejam dirigidas ao CAPS, superlotando-o. Possibilitando melhor compreensão e diferenciação das situações que demandam cuidados nos CAPS e aquelas que podem ser acolhidas e/ou acompanhadas pela ESF, como refletem Bezerra e Dimenstein22, o matriciamento atua como um regulador de fluxos na assistência em saúde mental. Deixando entrever a Atenção Básica como porta de entrada do sistema de saúde, e, sobretudo, o papel estratégico do apoio matricial como regulador de fluxos e organizador das ações de saúde mental2, trabalhadores do CAPS pesquisado visualizavam não-admissões no CAPS como outra vantagem associada à realização do matriciamento no serviço. Isto se conecta com a análise de Penido5 (p. 26), quando observa que “[...] a superlotação dos CAPS se dá por casos considerados leves, os quais poderiam ser direcionados para as ESFs”. Com ações continuadas do matriciamento, espera-se disparar um processo gradativo de aumento de responsabilização e autonomia das equipes matriciadas, na medida em que vão incorporando, em seu campo de conhecimento, habilidades para intervir em situações anteriormente reconhecidas como possíveis apenas à equipe de especialistas e a eles frequentemente delegadas. Como prevê a PNSM6,

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ao contribuir para que as equipes da ESF se responsabilizem pela demanda de saúde mental do território, a ferramenta do apoio matricial opera em favor de racionalizar o acesso e o uso de recursos especializados14. Ampliada a capacidade de lidar com as demandas de saúde mental e de identificar casos que necessitariam de apoio especializado14, ocorreria uma filtragem dos usuários a serem encaminhados para a assistência no CAPS. Esse é um típico efeito de desmedicalização, no sentido de diminuir a faixa do tratável aludido por Costa-Rosa1 no Modo Psicossocial. Como também percebe uma trabalhadora do CAPS da nossa pesquisa: “Ficaria para a gente os casos que for, realmente, pra gente atuar. No matriciamento a gente deixa mais claro, também, o papel de cada serviço”. Assim operado, faz romper com a tendenciosa lógica indiscriminada e medicalizante do encaminhamento – adjetivada na IV CNSM7 de “empurroterapia” – utilizada por equipes como forma de “se livrarem” dos problemas de saúde mental que não se sentem capazes ou apoiadas para responder. A esse respeito, Minozzo e Costa23, em estudo com equipes da ESF, indicam que, sentindose auxiliadas pelas discussões de casos com os apoiadores do matriciamento, alguns encaminhamentos vão se tornando desnecessários. Colhendo efeitos de um bem-sucedido apoio matricial em saúde mental, ancorado em forte integração das equipes dos CAPS com as da ESF, Tófoli e Fortes24 sinalizaram que, na experiência de Sobral-CE, foi dado início a um processo de pré-triagem nas unidades de Saúde da Família, invertendo o fluxo mais tradicional, abrindo ineditamente triagens de saúde mental para a atenção secundária, inteiramente na Atenção Básica. A partir disso, segundo os autores24, contabilizou-se diminuição de 46% no número de usuários novos no CAPS.

A função apoiadora do matriciamento na atenção à crise: um caso de intercessão O efeito organizador de fluxos, racionalizador de recursos especializados e preventivo de medicalização, também se aplica às especificidades da atenção à crise. Como expressam Minozzo e Costa23 (p. 443-5): [...] a atenção a alguns tipos de crises vai demandar cuidados intensivos, mas crises mais brandas podem ser cuidadas pela SF, e as mais graves podem ser avaliadas, acolhidas e encaminhadas de forma responsável, favorecendo o vínculo, a responsabilização e a coordenação do cuidado, a partir da SF. A discussão dos casos fortalece a melhor avaliação da gravidade, dos riscos e vulnerabilidades e os encaminhamentos serão feitos quando houver legítima necessidade para tal [...] Possibilitando, assim, que sejam identificadas quais situações de crise podem ser cuidadas na SF e quais necessitam de um cuidado mais intensivo.

Dialogando com Santos25 e tomando o território como tecido vivo, entendemos que ele é, ao mesmo tempo, o espaço da crise, mas também da reabilitação, das trocas, da convivência. Como assinala uma trabalhadora: “A lógica do território é o grande salto do CAPS”. Assim, ampliando o nosso espectro de análise, entendemos que, pela inserção no território, via matriciamento, há, nessa ferramenta, um virulento potencial de disseminação e inovação na forma de produzir saúde e, no limite, no cuidado à crise. Esse potencial virulento permite visibilizar e contaminar o território e seus atores com as concepções antimanicomiais que sustentam o modelo de cuidado psicossocial por meio do qual se pretende operar. Assim, vão se produzindo vetores de interferências favoráveis à desmitificação de ideias e valores negativados associados à loucura, intervindo, portanto, no que Amarante26 classifica como dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica. Operando, em ato, um processo provocador de mobilização tipicamente desinstitucionalizante, seriam produzidas interferências no preconceito que tem dificultado, quando não interditado, tanto o cuidado das equipes aos portadores de transtorno quanto o apoio da comunidade. Pensando com Oliveira13 (p. 41), “O apoio matricial inscreve-se, nesse sentido, nas estratégias de implementação de novos arranjos que produzam outra cultura e outras linhas de subjetivação”. 630

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Ao disparar um processo de mobilização da comunidade rumo ao apoio dos usuários, o matriciamento contribui para difundir o modelo psicossocial que se defende. Nas palavras de uma trabalhadora: “É como se o matriciamento fosse mostrar para a população o modelo de saúde mental. Na medida em que eu estou matriciando, eu tô articulando a rede, visualizando o território. Vai dando visibilidade ao modelo”. Ao fortalecer a lógica territorial-comunitária, interagindo e provocando a cidade, produzindo expansão de territórios de vidas e conexões com seu entorno, o apoio matricial impulsiona processos de inserção. Assim, em situações de crise, o apoio matricial pode interferir para a mudança no itinerário dos usuários em crise: dos hospitais psiquiátricos para os serviços territoriais. De acordo com Oliveira13, um dos primeiros efeitos de uma experiência exitosa do matriciamento é o aumento da capacidade de manejo dos casos pela equipe de referência. Nesse sentido, trabalhadores do serviço de nossa pesquisa avaliavam que as ações do matriciamento, dando sinais de fortalecimento da Atenção Básica, conseguiam disparar, em algumas equipes matriciadas, abertura de um processo de corresponsabilização e implicação para com as demandas de saúde mental, alargando e diversificando possibilidades de cuidado no território. Observando incorporação de ações de saúde mental no trabalho de equipes da Atenção Básica a partir do apoio matricial, Figueiredo e Onocko Campos15, em pesquisa desenvolvida na rede de Atenção Básica de Campinas-SP, apontam na mesma direção do que foi sinalizado por trabalhadores da nossa pesquisa, quando indicaram a existência de equipe da ESF conseguindo desenvolver grupo de saúde mental na Atenção Básica. Na atenção à crise, operando como um facilitador, trabalhadores da nossa pesquisa avaliaram que a realização do apoio matricial é capaz, em alguns casos, de evitar situações de crise ou abordá-las antes que se tornem mais graves, evitando, também, outras formas de intervenção invasivas, tais como: a utilização da polícia, o uso da força física, as conduções involuntárias para a emergência, internação hospitalar ou, mesmo, para o CAPS. Assim também indica Penido5, ao pontuar que o apoio matricial contribui para evitar internações psiquiátricas arbitrárias. Isso porque, para muitas equipes, cuidar de pessoas em crise se revela ofício de difícil sustentação. A esse respeito, Minozzo e Costa23, compartilhando conhecimentos de pesquisa que articulam a atenção à crise e o apoio matricial, revelam que, frente a situações de crise, o encaminhamento para a internação psiquiátrica é uma das primeiras alternativas pensadas por trabalhadores da ESF. O sentimento de medo é indicado por estes autores como um fator que atravessa as equipes. Tal como identificado por trabalhadores de nossa pesquisa, estes autores também analisam que o processo de fabricação deste sentimento advém da suposição da periculosidade que uma pessoa em crise comporta. De posse dele, observam-se dificuldades nas equipes da ESF em se aproximar e escutar, para melhor compreenderem a demanda dos usuários, fragilizando a contratualização das intervenções, assim como a própria possibilidade de cuidado. Pelo matriciamento, porém, identificando-se provocar algum nível de interferência na capacidade de acolhimento e cuidado de equipes da ESF, em algumas situações de crise, observouse o caráter de facilitação que esta ferramenta tem potencial de promover na atenção à crise, no território. Expressando essa facilitação, uma trabalhadora do CAPS pesquisado analisa: “Quando o matriciamento funciona, o usuário não tem que sair de lá da comunidade com a polícia. O matriciamento faz isso: evita crises, ações mais contundentes policiais ou mesmo de familiares pra trazerem à força. Ele dá uma resposta positiva na crise”. Neste sentido, destacou-se a ferramenta do apoio matricial como “um importante instrumento de prevenção” da atenção à crise. Reforçando esse pensamento, um trabalhador revela: “Alguns casos, se conseguiu evitar que chegasse aqui em crise porque o matriciamento atuou, chegou antes da crise. A gente pôde evitar determinadas crises porque estamos em articulação com o território. Se estamos mapeando, se estamos conhecendo, se tem uma interlocução, se o PSF está nessa casa vendo essa família, o NASF também, a gente tem uma ferramenta maior que é de evitar a crise, evitar certas situações. Eu consigo ver que é essa articulação que pode dar um suporte e uma resposta também à crise”.

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Além de emergir como um facilitador da realização de intervenções à crise no território, alargando possibilidades de cuidado, de prevenir situações de crise ou abordá-las antes de se tornarem mais graves e de evitar formas de intervenção invasivas, a equipe do CAPS indicou que “nas equipes em que o matriciamento funciona, têm menos crises” e que, com o suporte da equipe matriciadora do CAPS, havia equipe da ESF acompanhando usuário em crise no território. Nesse sentido, de acordo com Minozzo e Costa23, “[...] o apoio matricial em saúde mental é considerado uma prática que auxilia as equipes de SF na avaliação e condução de casos e situações de crise” (p. 440). Dialogando com Lobosque21 (p. 4590), entendemos que a crise, “[...] dependendo de sua gravidade, do contexto sócio familiar, do vínculo entre usuário e equipe, pode também ser acolhida em diferentes pontos da rede: não só nos CAPS, mas na Atenção Básica, nos centros de convivência, e assim por diante”. Para tanto, é necessário, por meio dessa ferramenta, intensificar as estratégias que possam incluir e qualificar o acolhimento, a avaliação e intervenções à crise no cotidiano das equipes da Atenção Básica, como meio de fortalecer a prática dessas equipes na Atenção Psicossocial23, em sintonia com o que preconiza a portaria27 3.088, que instituiu a RAPS, no nível da Atenção Básica. A retaguarda dos CAPS em momentos que convêm cuidados intensivos, nesse sentido, é fundamental21. Esse conjunto de facilitações desvelou a ferramenta do apoio matricial interferindo no âmbito da atenção à crise, sendo considerada uma potencialidade dessa ferramenta. Assim, ressaltamos o apoio matricial como uma importante estratégia interventora em favor da ampliação e qualificação do cuidado em saúde mental, alcançando situações de crise. Nesse sentido, ele funciona como uma ferramenta apoiadora da atenção à crise. Na Atenção Psicossocial, sustentar crise no território é condição da própria sustentabilidade da ética de cuidar em liberdade do modelo psicossocial. Deste modo, fazer sustentação de crise no território envolve o matriciamento. Há, assim, um potencial intercessor na ferramenta do apoio matricial na constituição de uma atenção às intensidades do sofrimento pautada no modelo psicossocial. De acordo com Deleuze28, a criação de um espaço de interferências recíprocas, faz abrir um campo de intervenção em que os elementos envolvidos intercedem e alteram o outro, mutuamente. Isto configura um intercessor. A intercessão é campo potente, pois, em constante movimento, e atuando como que por contágio, abre múltiplas possibilidades de interferências, de fazer diferir. Analisando o apoio matricial com potência para atuar como um intercessor na construção de uma atenção à crise territorial e psicossocial – tecida em rede e orientada pela desinstitucionalização – a partir dele, vimos a vinculação do CAPS com o território, em alguma medida, como um serviço de referência à crise dentro do território. Este foi considerado um efeito do trabalho do apoio matricial no âmbito da rede local da nossa pesquisa, configurando-se uma potencialidade. Como expressa uma trabalhadora: “Não tem mais ninguém que não conheça o CAPS. Eu acho que o CAPS já tá legitimado como um lugar de crise”. A quebra no circuito do histórico de internações de alguns usuários e a diminuição de novas hospitalizações pode ser tomada como indicadores do lugar de referência à crise que o serviço pesquisado teria no território. Como refere uma trabalhadora: “Pessoas que passaram a vida indo para o hospital e quando a gente consegue quebrar, ele não procura mais o hospital, vem pra gente. Uma vez chegando ao CAPS, ele é a referência maior”. Assim, realça-se a interferência do apoio matricial na atenção à crise.

Considerações finais Neste artigo, destacamos um conjunto de funcionalidades do apoio matricial que o despontam como uma ferramenta fundamental no cenário da Reforma Psiquiátrica, na atenção à crise e, quiçá, para a formulação de indicadores da ampliação do cuidado em saúde mental. O caráter intercessor de uma operacionalização potente do apoio matricial se apresenta como um artifício que produz resistência à captura manicomial, em favor da desinstitucionalização e do modelo psicossocial. Isto, especialmente, quando a matriz apoiadora for capaz de disparar, nos encontros e entre os atores 632

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envolvidos, processos e sensibilidades desinstitucionalizantes, produtores de autonomia nas equipes matriciadas e nos sujeitos-alvo do cuidado. Com base na literatura especializada do campo, reconhecemos a existência de alguns problemas na operacionalização do matriciamento em nível nacional, a saber: fragilização da política de atenção básica; diversidade de concepções e modelos de atuação; falta de suporte das gestões e gerência dos serviços; falta de regularidade do processo e pouca interferência na regulação dos fluxos na RAPS; diferentes agendas e problemas relacionais entre a ESF e equipes apoiadoras; pouca presença do psiquiatra nas ações de matriciamento; lógica ambulatorial focada na prática do encaminhamento e marcação de consultas, assim como a forma de implantação da proposta em muitos municípios do país, dentre outros. Nacionalmente, reconhece-se que a prática do matriciamento se encontra em processo de germinação23, ainda a ser fortalecida; se ainda se reconhece a insuficiência do matriciamento e, ao mesmo tempo, um universo de dificuldades que o obstaculizam, pela potencialidade revelada desta ferramenta como intercessora e apoiadora de uma Atenção Psicossocial, urge reativá-la e fortalecê-la, reverberando no próprio modelo psicossocial. Neste sentido, enfatizamos que, apesar dos muitos condicionantes, o apoio matricial tem produzido efeitos importantes que podem ser interpretados com indicadores da ampliação do cuidado em saúde mental. Destacamos, por exemplo, redução das situações de crise e dos índices de internação psiquiátrica; detecção precoce, evitando-se novas hospitalizações; aumento das ações ofertadas na atenção básica e especializada, indicando maior cobertura assistencial; aumento da capacidade de referência em saúde mental para a população adscrita de um território; diminuição das demandas para o CAPS; maior articulação entre o médico da ESF e o psiquiatra do CAPS, impactando no seguimento e continuidade de cuidados; atenção mais sensível em casos de pessoas em sofrimento psíquico e aumento da responsabilização em casos de maior complexidade; maior qualificação dos encaminhamentos e transformações na vida dos usuários no sentido de ampliação de vínculos e redes de sociabilidades. Concordando com o pensamento de Figueiredo e Onocko Campos15, de que a inserção da saúde mental na Atenção Básica é necessária para o avanço da própria Reforma Psiquiátrica, defendemos que o apoio matricial não é uma panaceia resolutiva de todos os problemas, mas ferramenta indispensável ao campo da Atenção Psicossocial. É identificando a potência da ferramenta do apoio matricial que, junto com Yasui e Costa-Rosa3, defendemos que a Eaps não se operacionaliza sem que seja pela via de um trabalho de apoio potente de matriciamento.

Colaboradores Maura Lima participou da elaboração do artigo, de sua discussão e redação e da revisão do texto. Magda Dimenstein participou da revisão bibliográfica, de discussões e revisão do texto.

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Lima M, Dimenstein M. Apoyo Matricial en salud mental: una herramienta de apoyo de la atención durante crisis. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):625-35. La atención durante crisis y el apoyo matricial son estrategias para el fortalecimiento de la atención psicosocial en Rede de Atención Psicosocial (RAPS). A partir de las acciones matriciales de un equipo de CAPS II, este artículo discute la contribución del apoyo matricial en la atención durante crisis. Como investigación interventora, utilizamos entrevistas y conversaciones con trabajadores del servicio. En la misma, se identificó la necesidad de promover una ampliación en la capacidad de cuidado de equipos de la Estrategia de Salud de la Familia. El apoyo matricial se reveló como una herramienta de apoyo de atención durante crisis al prevenir efectivamente situaciones de crisis o abordarlas antes que se agraven, así como evitando manejos más invasivos como el uso de la policía, fuerza física, conducciones involuntarias para emergencia, internación hospitalaria y para el propio servicio. Este conjunto de facilitaciones indica un potencial intercesor del apoyo matricial en la constitución de una atención en crisis pautada en el modelo psicosocial.

Palabras clave: Salud mental. Atención durante crisis. Apoyo matricial.

Recebido em 01/06/15. Aprovado em 16/11/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0469

artigos

Teatro do oprimido em saúde mental: participação social com arte*

Érika Sales dos Santos(a) Emanuella Cajado Joca(b) Ângela Maria Alves e Souza(c)

Santos EA, Joca EC, Alves e Souza AM. Theater of the oppressed in mental health: social participation with art. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):637-47.

This paper is about an experience report of the intervention project: Theater of the Oppressed in mental health care, at a Psychosocial Care Center (CAPS) in Fortaleza, Ceará, Brazil. It describes how this intervention can be an effective tool helping to strengthen social participation. The project was elaborated by a group of residents and preceptors of the Integrated Health Residency, with emphasis on Collective Mental Health of the Public Health School of Ceará. The study used qualitative research. Considering the troublesome context in which mental health policies are implemented, we realized that art can contribute to the making of a more effective and emancipatory mental health care, able to embrace diversity. From this perspective, the Theater of the Oppressed is an important tool for strengthening social participation and to reinvent it, questioning stigmas and ensuring social rights.

Relato de experiência de intervenção do projeto Teatro do oprimido na saúde mental em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Fortaleza, Ceará, Brasil, no qual descrevemos como esta ferramenta é capaz de contribuir para o fortalecimento da participação social. O projeto foi elaborado por um grupo de residentes e preceptores da Residência Integrada em Saúde, com ênfase em Saúde Mental Coletiva, da Escola de Saúde Pública do Ceará. Utilizamos a pesquisa qualitativa. Em face do difícil contexto de efetivação da política de saúde mental no município, percebemos que a arte pode contribuir para a construção de uma atenção em saúde efetiva, emancipatória e apta a acolher as diversidades. Na nossa ótica, o teatro do oprimido é uma ferramenta importante para fortalecer a participação social e para reinventá-la, problematizando estigmas e impulsionando a garantia de direitos.

Palavras-chave: Saúde mental. Participação social. Teatro do oprimido.

Keywords: Mental health. Social participation. Theater of the oppressed.

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Elaborado com base na experiência de intervenção do projeto Teatro do oprimido na saúde mental de Fortaleza, CE, Brasil. Financiado pelo Ministério da Saúde. (a) Centro de Educação Permanente em Atenção à Saúde, Escola de Saúde Pública do Ceará. Av. Antonio Justa, nº 3161, Meireles. Fortaleza, CE, Brasil. 60165-090. erika.ess@hotmail.com (b) Psicóloga. emanuellapsi@ yahoo.com.br. (c) Departamento de Enfermagem, Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE, Brasil. amas@ufc.br *

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Aproximação com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em Fortaleza Em Fortaleza, capital do estado do Ceará, a RAPS, atualmente, possui 14 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): cinco CAPS gerais tipo II, um CAPS geral tipo III, quatro CAPS AD tipo II, dois CAPS AD tipo III e dois CAPS Infantis. A rede conta, ainda, com: uma Unidade de Desintoxicação na Santa Casa de Misericórdia; três Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); uma Unidade de Acolhimento Transitório; um consultório de rua, e quatro ocas terapêuticas (espaços que trabalham com terapias integrativas e complementares). Além destes dispositivos, existem três instituições hospitalares que realizam internações psiquiátricas: o Hospital de Saúde Mental de Messejana (vinculado ao governo do estado do Ceará); o Hospital de Saúde Mental Nosso Lar (onde existem leitos de internação credenciados no SUS); e o Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paula1. Em novembro de 2014, foi inaugurada uma Unidade de Referência em Saúde Mental, Álcool e Drogas para crianças e adolescentes, dentro de um hospital infantil. Esta Rede de Atenção Psicossocial abrange cerca de 2.452.200 habitantes, os quais ocupam uma extensão de 314.930 km² divididos em sete(d) Secretarias Regionais (SR)2. De acordo com estes dados, é possível perceber que a baixa quantidade de serviços substitutivos (comparada ao número de habitantes do município) demonstra insuficiência de cobertura da Rede de Atenção Psicossocial em Fortaleza, em contraposição ao disposto na portaria 3088 (de 23 de dezembro de 2011), a qual institui a RAPS no Sistema Único de Saúde (SUS). A RAPS de Fortaleza vivencia um contexto marcado por diversas questões. Entre estas: instabilidade dos vínculos empregatícios das equipes componentes dos CAPS, falta de insumos básicos para o funcionamento destes, infraestrutura precária, escassez de atividades no território, dificuldade de acolhimento de pessoas em crise de modo eficiente, dificuldade de acesso aos serviços, demanda excessiva, entre outras limitações. Evidenciam-se, pois, a precarização desses serviços e a consequente violação do acesso à saúde como direito constitucional1. Tal cenário repercute negativamente na construção do processo de cuidado. Segundo a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará2, o número de óbitos notificados tendo como causa os ‘transtornos mentais ou comportamentais’ aumentou de 196 em 2007, para 343 em 2010. Conforme os referidos dados, este fator é a décima maior causa de morte no município. Paralelo a isso, os ‘transtornos mentais e comportamentais’ aparecem como a sétima maior causa de internação no município, com 9.206 internações em 2011. Neste universo, a esquizofrenia destaca-se como o principal diagnóstico atribuído aos indivíduos submetidos a estas internações: 1.861, no total. O número elevado de internações mostra a existência de barreiras na garantia da assistência em saúde mental nos moldes preconizados pela Reforma Psiquiátrica, a qual defende a garantia do cuidado em liberdade.

Teatro do oprimido em saúde mental No contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, o cuidado à saúde ofertado no campo da atenção psicossocial deve ter, como um dos objetivos primordiais, a criação de ações voltadas para pessoas com demandas em saúde mental, de modo a propiciar ou fortalecer sua (re)inserção no convívio comunitário. Acreditase que isto pode se dar por intermédio de inúmeras estratégias, entre elas, o viés da arte3. 638

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O município teve sua organização administrativa descentralizada por meio da Lei Municipal 8.000/1997, a qual criou seis Secretarias Executivas Regionais. Em 2010, a Lei Complementar 0077 deu origem à Regional Centro. Atualmente, Fortaleza possui sete Secretarias Regionais de mesma posição hierárquica. (d)


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(e) Trata-se de um dos CAPS mais antigos da capital, inaugurado em 8 de outubro de 2001. Possui, atualmente, cerca de dez mil e oitocentos prontuários. Sua área de cobertura abrange 19 bairros, com, aproximadamente, 305 mil habitantes.

(f) A categoria “preceptor” é referente aos profissionais que atuam na facilitação e na mediação dos processos pedagógicos e de trabalho dos residentes no território.

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Fundado pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal, o teatro do oprimido (TO) é uma proposta artística e pedagógica voltada para estabelecer atuação, debate, reflexão e transformação dos indivíduos que com ela se relacionam por meio da ação cênica. Nesta proposta, o lúdico e o político se relacionam e propiciam possibilidades de aprendizado vivencial onde a divisão de papéis entre atorespectador permite que todos os envolvidos participem ativamente das cenas e possam até mesmo transformá-las4. Na década de 1990, surgiram, no Brasil, as primeiras iniciativas de incorporar o teatro do oprimido à saúde mental. Segundo Santos5, o Centro de Teatro do Oprimido (CTO) começou a atuar na Saúde Mental em 1994, no Rio de Janeiro, nos hospitais psiquiátricos Dom Pedro II e Jurujuba. Estas experiências levaram Boal e os integrantes do CTO a investigarem se/como o delírio criativo da atividade artística poderia dialogar com delírios considerados patológicos. Para Caldeira3, no contato com a arte cênica, o sujeito vive diversos personagens e, por meio deles, experimenta outras possibilidades de vida e de existência. Este recurso pode ser importante para criar estratégias coletivas de enfrentamento ao modelo manicomial, uma vez que proporciona, aos seus participantes, um lugar, um espaço de convivência e de exercício da autonomia: elementos preconizados na atenção psicossocial. Por meio dos seus exercícios e jogos, o teatro propõe, entre outras estratégias, criar cenas e discutir problemas sociais. Conforme Boal7, a palavra exercício designa: os movimentos físicos, musculares, respiratórios, motores e/ou vocais que ajudam aquele que os realiza a (re)conhecer melhor o seu corpo. Os jogos, por sua vez, estimulam a expressividade do corpo como emissor e receptor de mensagens. No teatro do oprimido, o corpo humano é o elemento mais importante. Por esse motivo, os jogos e exercícios devem provocar prazer e ampliar a capacidade de compreensão de si e do outro. Diante disso, este artigo propõe relatar a experiência de intervenção do Projeto teatro do oprimido na saúde mental, no CAPS geral da SR IV(e) do município de Fortaleza, ao descrever como esta ferramenta é capaz de contribuir para o fortalecimento da participação social no campo da saúde mental, uma vez que o cenário contemporâneo no município é permeado por violações que demandam enfrentamentos criativos para garantia de direitos. Pretendemos, também, explanar o processo de criação e implementação do grupo de teatro do oprimido no CAPS mencionado e evidenciar as práticas de participação social existentes, e, ainda, compreender o uso da arte no processo de (re)construção da autonomia dos sujeitos, em especial, na saúde mental.

Metodologia Cabe ressaltar: o grupo de teatro do oprimido do CAPS geral da SR IV está inserido em um projeto maior, denominado Teatro do Oprimido na Saúde Mental de Fortaleza, financiado pelo Ministério da Saúde por meio de submissão à II Chamada para Seleção de Projetos de Fortalecimento do Protagonismo de Usuários e Familiares da RAPS. O projeto teatro do oprimido na saúde mental de Fortaleza foi elaborado em julho de 2013 por um grupo de residentes (enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicólogos) e preceptores(f) da Residência Integrada em Saúde, com ênfase em Saúde Mental Coletiva. As duas primeiras autoras deste artigo fizeram parte deste grupo. Referido projeto foi desenvolvido nos meses de outubro e novembro de 2014, em quatro CAPS (dois gerais e dois AD) do município. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Optamos pelo CAPS geral da SR IV para este estudo em virtude da aproximação prévia da primeira autora deste artigo com a unidade, com a equipe de trabalhadores, com os usuários, com os familiares e com o território, uma vez que já atuava neste serviço como assistente social residente. Após a implantação do grupo de teatro do oprimido no CAPS mencionado, a assistente social autora deste estudo percebeu que as vivências do teatro quase sempre levavam o grupo a refletir, discutir e encenar situações de opressão verificadas no cotidiano dos participantes e encontrar estratégias para enfrentá-las. Mediante o conhecimento adquirido na prática profissional, iniciou uma pesquisa teórica utilizando as categorias saúde mental, arte e participação social. No artigo, empregamos a pesquisa qualitativa como referencial metodológico. Como método, trabalhamos com a observação participante, em face da aproximação de uma das autoras com o grupo, ora como atriz, tal como os demais, ora como profissional e facilitadora. Segundo Flick8, a observação participante é usada quando o pesquisador observa numa perspectiva de membro, mas, também, influencia o que é observado graças à sua participação. Localiza-se no aqui e agora das situações e dos ambientes da vida cotidiana a serem considerados. Neste âmbito, o diário de campo foi uma ferramenta utilizada no registro de informações, diálogos e afetações. Ao longo do desenvolvimento desta experiência de observação participante, cumprimos os princípios e normas inerentes à pesquisa com seres humanos em conformidade com a Resolução 466/12, Conselho Nacional de Saúde. Como consta nesta resolução, o caráter ético da pesquisa envolvendo seres humanos deve contemplar alguns princípios fundamentais. São eles: autonomia; beneficência; não-maleficência; justiça e equidade9.

Desenvolvimento do projeto teatro do oprimido na saúde mental de Fortaleza Embora reconheçamos ser a participação social um desafio que demanda construção coletiva, ressaltamos o seguinte: os profissionais de serviço social (categoria à qual pertence a primeira autora deste artigo), ao atuarem junto a equipes interdisciplinares, têm desempenhado papel fundamental na articulação da rede de serviços em saúde mental, na efetivação da perspectiva de integralidade do cuidado, na viabilização do acesso às políticas públicas e, sobretudo, na criação de novos mecanismos e espaços de inclusão de pessoas com demandas em saúde mental no convívio comunitário. Desse modo, favorecem a conquista de autonomia por parte dos usuários, com incentivo à participação. É fundamental, portanto, que estes profissionais se apropriem da temática da participação social e, mediante reflexões teórico-práticas, criem estratégias capazes de superar mecanismos tradicionais de mobilização. Destacamos a importância da arte, especialmente do teatro do oprimido, para fomentar a participação social e contribuir para o fortalecimento da política de saúde mental em articulação com outras políticas sociais, a sociedade civil, usuários, familiares e profissionais que atuam nesta área. Resultante de um desejo individual, o projeto ganhou força ao alcançar o coletivo: uma psicóloga residente (segunda autora), que já possuía aproximação técnica, teórica e afetiva com o teatro do oprimido, apresentou-o aos demais residentes e preceptores, e, assim, provocou um encontro desencadeador de proporções até então inesperadas. O desejo de refletir coletivamente acerca das opressões cotidianas relacionadas ao universo da saúde mental esteve ligado não só à identificação pessoal de uma residente com essa linguagem artística, mas, também, ao fato de toda a equipe ser composta por profissionais que vivenciam o difícil contexto de efetivação da política de saúde mental no município e lutam por uma atenção em saúde efetiva e capaz de acolher as diversidades. Um dos desafios nesta caminhada foram os entraves burocráticos em acessar as condições financeiras com as quais o projeto foi contemplado. Como os recursos financeiros ficaram retidos no fundo municipal durante alguns meses, houve atraso na implantação do projeto. Por esse motivo, várias ações foram redimensionadas, entre elas, o tempo de duração do projeto, o qual passou de quatro meses (com uma oficina por semana) para dois meses (com duas oficinas por semana). Apesar do desgaste gerado na equipe, esta barreira foi superada com o apoio da Fundação Silvestre Gomes, instituição executora e parceira importante na viabilização do projeto. Trata-se de uma

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organização não governamental sem fins lucrativos, localizada na SR III de Fortaleza, embora atenda pessoas de todo o município. Fundamentada nas concepções de responsabilidade social, acesso à informação, apoio às artes e inserção no mercado de trabalho, a Fundação Silvestre Gomes é reconhecida por promover ações criativas que contribuem para a garantia e fortalecimento da cidadania. É também a organizadora do bloco de carnaval “Doido é Tu!”, tricampeão no carnaval de rua de Fortaleza. Para além do caráter festivo, as ações do bloco se estendem durante todo o ano, sobretudo ao resgatar e proporcionar visibilidade às questões relativas à autonomia dos sujeitos. O grupo de teatro do oprimido do CAPS geral da SR IV iniciou-se em outubro de 2014, com previsão de término no mês de novembro do mesmo ano, após a realização de 16 oficinas. No começo, foram disponibilizadas 25 vagas, com lista de espera a ser acionada caso houvesse desistência. O mencionado grupo foi facilitado por uma artista contratada pelo projeto, e teve o apoio técnico e logístico de duas residentes, uma preceptora e trabalhadores do CAPS. No processo de divulgação do grupo, contamos com o apoio da equipe técnica do CAPS, a qual se empenhou em convidar usuários e familiares para integrá-lo. Neste prisma, resgatou o contato com pessoas que estavam em abandono de tratamento; da equipe de apoio, sobretudo a recepção do serviço, a qual atuou fazendo o convite às pessoas que circularam no CAPS enquanto as inscrições estiveram abertas; e a mobilização de outros equipamentos do território (CAPS de outras regionais do município, Centros de Referência em Assistência Social, Unidades de Atenção Primária, entre outros) feita pelos residentes. Foram promovidas rodas de conversa e distribuição de panfletos e cartazes sobre o projeto. Conforme observamos, neste período entre a divulgação e os primeiros passos do grupo, um clima novo passou a circular no CAPS: um misto de curiosidade sobre a proposta, alegria por estar sendo ofertada nova possibilidade de cuidado, e desejo de conhecê-la. Nesta etapa, iniciou-se a articulação de diversos sujeitos (trabalhadores do CAPS, usuários, familiares, residentes e preceptores), os quais se agregaram ao processo de criação e implementação do grupo e se transformaram no coletivo capaz de dar vida, corpo e movimento ao projeto. Apesar das primeiras 25 vagas, circularam, pelo grupo de teatro do oprimido, cinquenta familiares e usuários do CAPS geral da SR IV ou de outros serviços da rede municipal. Em virtude da grande demanda, as vagas foram ampliadas para trinta. Sete pessoas estiveram presentes em parte das oficinas, mas não puderam acompanhar o processo até o final por questões de saúde; 13 conheceram o grupo, mas não permaneceram por falta de identificação, e trinta continuaram no grupo até o final. Segundo relatou a maior parte dos usuários que não tiveram identificação com a proposta, as questões trabalhadas no grupo suscitaram episódios doloridos, os quais ainda não se sentiam seguros para lembrar, discutir ou encenar. Ainda segundo os demais afirmaram, não se sentiam confortáveis com vivências corporais.

Oficinas do teatro do oprimido na saúde mental Neste tópico, destacaremos: alguns aspectos do primeiro encontro do grupo, episódios marcantes das vivências seguintes, e algumas repercussões do projeto. No primeiro encontro, realizado em 7 de outubro de 2014, o grupo foi acolhido com jogos e exercícios para “desmecanizar” o corpo e a mente, para utilizá-los de modo ampliado, explorando e (re)descobrindo suas possibilidades de existência, movimento e expressão. Foram também apresentados aspectos teóricos da metodologia do teatro do oprimido, por exemplo, como identificar uma situação de opressão. Consoante Boal10, o sistema neoliberal é opressor por natureza, e incentiva os indivíduos a atuarem em uma busca predatória e ilimitada por poder e riqueza. As classes dominantes utilizam a arte, a cultura e os meios de comunicação com o objetivo de anestesiar o cérebro dos cidadãos e induzi-los à obediência e à falta de criatividade, impondo códigos, rituais, modas e comportamentos. Nesse sentido, o teatro do oprimido propõe repensar as relações humanas e reverter esse cerceamento que vulnerabiliza a cidadania. Ao discutir temas como arte e cultura, estimula os indivíduos a se apropriarem conscientemente do mundo para transformá-lo.

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A discussão sobre as opressões cotidianas foi iniciada por meio da problematização do conceito de opressão e dos papéis de “opressor” (aquele que pratica a opressão), “oprimido” (aquele que sofre a opressão e luta para superá-la) e “deprimido” (pessoa que sofre a opressão, mas não consegue enfrentá-la). Tais papéis não são fixos, portanto, não pertencem a determinados indivíduos ou classes sociais. A seguir, os 16 participantes presentes neste momento foram divididos em quatro grupos, com vistas a compartilharem histórias de opressão. Nesse primeiro momento, muitas dúvidas surgiram nos grupos, e algumas foram discutidas com o grupo maior no final. Metade dos participantes teve dificuldade em identificar situações de opressão; outra parte, a princípio, teve receio em compartilhar suas histórias, e algumas pessoas ampliaram a discussão trazendo elementos novos: “Será que quando eu grito, xingo... Eu viro opressora? Acho que quando você é oprimido e reage com agressividade com a pessoa, como eu fiz, acaba se tornando opressor”. Com base nesta reflexão, foi possível discutir com o grupo que o oprimido deve lutar para superar a situação de opressão, e não para reproduzi-la, tomando-se o opressor. Dessa forma, iniciaram-se as problematizações que se ampliaram ao longo dos encontros e geraram aprendizado coletivo. Nos encontros seguintes, além dos jogos e exercícios do Teatro do Oprimido, foram discutidas inúmeras situações de opressão vivenciadas por participantes do grupo em diversos espaços: em casa, no trabalho, no CAPS ou no convívio comunitário. Uma das temáticas mais recorrentes nas discussões foi a discriminação sofrida por muitas pessoas por serem usuárias de um serviço de saúde mental. Outra temática bastante discutida foi o uso de medicamentos. Sob diversos aspectos, esta questão mostrou-se como geradora de angústia e sofrimento, seja em virtude: da dificuldade de muitos usuários em acessarem a medicação da qual necessitam (porquanto o fornecimento tem sido inconstante nos CAPS do município, motivo pelo qual muitas famílias, mesmo sem recursos financeiros, se veem forçadas a comprá-los); da dificuldade em lidarem com alguns efeitos colaterais da medicação (sobretudo, a sonolência) sem que estes atrapalhem o desenvolvimento de outras atividades; ou da medicalização da vida e do sofrimento humano. A questão da medicação surgiu nos discursos geralmente atrelada ao medo de ser estigmatizado como “louco” em virtude do uso de determinados medicamentos de uso restrito. Tal realidade reforça a necessidade de construção de novos paradigmas acerca da saúde/adoecimento mental. Ao mesmo tempo, em algumas discussões, a medicação era colocada como imprescindível no acompanhamento, como se sozinha pudesse minimizar ou solucionar a tristeza, angústia, frustração, entre outros sentimentos. Segundo Boal6, o teatro do oprimido é linguagem, portanto, por meio dele, é possível discutir todos os temas referentes à vida social humana. Perpassa a seara da política, da pedagogia, da psicoterapia, entre outras. Utilizando técnicas como o teatro-fórum, propõe potencializar a participação social, discutindo situações de opressão concretas e mobilizando as pessoas por meio de uma linguagem afetivo-criativa. Para Milhomens et al.10, dentre as inúmeras manifestações artísticas, o teatro é uma linguagem de forte expressão, que atua como um “fio” de conexão entre a loucura e a sociedade. Por esse motivo, o teatro na saúde mental pode ser capaz de invadir os campos da saúde e da doença e problematizar os elementos culturais que segregam a diversidade, a deficiência e a loucura. As autoras reafirmam o importante papel da arte teatral no processo de criação e reprodução de modos de ser e existir. No teatro-fórum, uma das vertentes principais do teatro do oprimido, constrói-se um espetáculo baseado em fatos reais mediante vivências dos participantes, no qual personagens oprimidos e opressores entram em conflito de modo claro e objetivo em defesa de seus desejos e interesses. Neste confronto, o oprimido fracassa e o público é convidado a entrar em cena, substituir o protagonista (o oprimido) e buscar alternativas para o problema encenado. Por meio desta estratégia, é possível romper a tradicional passividade do público, estabelecendo um diálogo entre atores e espectadores. Este diálogo é mediado por um “curinga”, pessoa que atua como interlocutor entre a peça e o público. Um dos intuitos deste momento é preparar os sujeitos para protagonizarem a vida real6. No teatro-fórum, não existe um texto convencional, as ações são improvisadas. Esta técnica foi bastante utilizada no grupo, desde as oficinas até o espetáculo final. Conforme percebemos, por 642

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meio dela, foi possível repensarmos inúmeras situações de opressão e ensaiarmos estratégias de enfrentamento individuais e coletivas, além de estimular usuários e familiares a criarem e/ou ocuparem espaços de articulação política. Consoante destacam Oliveira et al.11, ao refletirem acerca dos resultados de uma pesquisa que utilizou o teatro do oprimido para promover discussões sobre a violência contra a mulher com um grupo de catadoras(es) de material reciclável de duas cidades do interior paulista, por meio do teatrofórum, as mulheres conseguiram romper alguns padrões e problematizar a hegemonia dos discursos androcêntricos. Dessa forma, por intermédio da arte, repensaram os estereótipos e papéis de gênero, buscando criar estratégias de enfrentamento às barreiras (sociais, jurídicas e discursivas) que impedem a igualdade entre mulheres e homens. No grupo de teatro do oprimido do CAPS Geral da SR IV, a escolha da cena do espetáculo final ocorreu no 11° encontro, quando sugerimos que cada participante escrevesse, no papel, uma história de opressão vivenciada. A seguir, de posse de 25 histórias escritas (quantidade de participantes do encontro), solicitamos a autorização de todos para compartilharmos os escritos com o grupo e darmos início à votação para a escolha da história do espetáculo. A maior parte das histórias descrevia cenas de opressão no ambiente familiar. As demais referiam-se a opressões vivenciadas no CAPS, em outros espaços públicos ou no ambiente de trabalho. O grupo permaneceu atento à medida que cada história era lida (sem identificar o autor, a menos que este desejasse intervir) e discutida segundo critérios pensados e pactuados no momento: a narrativa descrevia uma situação de opressão? Estava superada? A história era representativa para a maior parte do grupo? Despertava afetos, desejos de mudança? No final da discussão, restaram apenas três histórias: a primeira relatava a opressão sofrida por uma usuária no ambiente familiar. Ela afirmava se sentir desrespeitada pelos filhos, os quais questionavam sua necessidade de cuidado em relação à saúde mental; a segunda relatava a opressão praticada pelo ex-companheiro de uma usuária, o qual ameaçava a família constantemente, gerando medo e insegurança diante da iminência de um acontecimento trágico; na terceira, um usuário afirmava se sentir oprimido pela tia (e também curadora) por não poder administrar suas finanças como gostaria. Durante a discussão para escolha do enredo do espetáculo final, o grupo considerou a primeira história mais representativa para o coletivo, consoante afirmou um usuário: “eu voto na primeira história porque tem muitas pessoas aqui que estão passando por isso. A gente precisa se sentir respeitado na família também, afinal, é lá que a gente convive mais”. A maior parte do grupo concordou. Por fim, escolhido o enredo, uma usuária comentou: “Achei legal essa história porque as outras são mais pra justiça e nisso eu sei que vocês [equipe técnica] podem ajudar a resolver, mas essa não, essa envolve dignidade, reconhecimento, é maior do que a justiça”. Ressaltamos que nenhuma das três histórias (assim como outras situações discutidas no grupo), apesar da gravidade e do sofrimento gerado por cada uma, era de conhecimento da equipe do serviço. Tal realidade nos fez refletir acerca da delicadeza do cuidado e da necessidade do fortalecimento de vínculo entre usuários, familiares e profissionais. Percebemos a importância de discutir estas questões com a equipe do serviço. Desse modo, outros espaços, além do grupo de teatro do oprimido, podem se tornar capazes de identificar e acolher as demandas que, muitas vezes, permanecem restritas ao ambiente privado, embora sejam recorrentes e requeiram conhecimento/acompanhamento da equipe do CAPS. Mais uma vez, agradecemos aos participantes por compartilharem suas histórias e por acolherem, de forma respeitosa, o sofrimento do outro. Alguns casos deveriam ser discutidos posteriormente. Assim, a assistente social residente e também facilitadora do grupo colocou-se à disposição do coletivo para atender individualmente os participantes e acompanhar cada situação. A seguir, iniciou-se a montagem do espetáculo, a escolha dos atores, das falas, do cenário e os ensaios. Para o êxito da encenação, eram indispensáveis diálogo, dedicação, coesão grupal e articulação com a plateia. O espetáculo não poderia acontecer com apenas uma pessoa. Diante disto, sua construção tornou-se coletiva. Montar o cenário também foi um exercício de criatividade e exigiu esforço conjunto para dar forma ao enredo. O espetáculo final foi amplamente divulgado. Diversos convidados estiveram presentes: grupos de teatro do oprimido de outros CAPS; trabalhadores do serviço (inclusive, os que por algum 643


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motivo se encontravam afastados); residentes que atuam em outros CAPS; artistas; usuários do serviço; familiares de usuários; representantes da gestão de saúde mental do município; professores universitários; entre outros convidados. Além de prestigiarem o espetáculo, a presença destes sujeitos tornou este momento um encontro acolhedor. Na apresentação do espetáculo, ocorrida no salão do CAPS, a lotação foi surpreendente, e a cena foi exibida com louvor, segurança e superação pelos atores principais. Esta foi interrompida pelo curinga no momento de conflito no qual os filhos da usuária agrediam verbalmente a mãe por ela não haver concluído as atividades domésticas quando eles retornaram do trabalho. Mobilizada pela injustiça provocada pela atitude dos filhos, a plateia estava em êxtase. Após ser convocada pelo curinga, a plateia tornou-se protagonista da cena. Várias pessoas aceitaram o desafio de assumir o papel da mãe e sugerir estratégias para enfrentar essa opressão. Algumas intervenções foram propostas: buscar um diálogo com os filhos; denunciá-los às autoridades competentes; pedir apoio aos vizinhos e amigos; expulsar os filhos de casa; sugerir que eles procurassem o CAPS para compreender o adoecimento da mãe, entre outras alternativas. Ao ver sua história colocada em cena, o usuário que a vivencia tem a possibilidade de tomar uma distância, muitas vezes necessária, para experimentar seu conflito sob outra perspectiva, além de poder contar com a contribuição de outras pessoas. Para Oliveira et al.12, o teatro do oprimido une técnicas terapêuticas à arte teatral. Conforme compreendem, mediante o autoconhecimento, é possível intervir em problemas mais amplos e coletivos. As autoras corroboram os achados deste estudo ao afirmarem que, no teatro-fórum, todas as pessoas podem contribuir para a resolução de um problema com base na história particular de um sujeito. Assim, o espetáculo passa a falar na primeira pessoa do plural. O sujeito que narrou a história passa a jogar com uma nova imagem artística sobre ela, extrapolando a realidade social em direção a uma realidade fictícia. A seguir, retorna à realidade social munido de elementos capazes de auxiliá-lo a enfrentar conflitos. Encerrada a cena, o espetáculo final tornou-se um espaço democrático de manifestação artística. Muitos usuários e trabalhadores apresentaram números de dança, música e poesia improvisados e que dialogavam com a temática da saúde mental e do direito à cidadania. Aplausos e agradecimentos emocionados construíram e reforçaram a atmosfera comemorativa. Após o término do projeto, o grupo foi convidado para exibir novamente o espetáculo na abertura do I Encontro Estadual dos Usuários e Familiares da Luta Antimanicomial, um importante espaço de mobilização e articulação política promovido pelo Fórum Cearense de Luta Antimanicomial. A apresentação foi mencionada por vários membros componentes das mesas de discussão do evento, cumprindo um dos objetivos do projeto: estimular usuários dos serviços de saúde mental e seus familiares a se tornarem protagonistas dos espaços de discussão acerca das políticas públicas. Segundo Silveira13, o teatro do oprimido propõe a democratização do teatro. Neste processo, torna-se possível refletir e/ou contestar construções que limitem o espaço subjetivo e as potencialidades dos sujeitos, tornando a arte mais próxima da vida coletiva. No CAPS geral da SR IV, o grupo de teatro do oprimido não se encerrou com o término do projeto, pelo contrário, ganhou vida e tornou-se parte do cotidiano do serviço, ao se transformar em um grupo de arte facilitado por uma psicóloga do CAPS e duas profissionais residentes (psicóloga e assistente social).

Reflexões acerca da vivência Consoante percebemos, a criação do grupo de teatro do oprimido gerou repercussões na gestão/ organização do CAPS. Desse modo, a rotina e os fluxos do serviço foram alterados para acolher o grupo, e uma parte da equipe aproximou-se do projeto, contribuindo para viabilizá-lo.

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A vivência do grupo trouxe inúmeros aprendizados para as autoras deste estudo. Para uma delas, discutir episódios muito íntimos e doloridos dos participantes em um grupo numeroso de pessoas desencadeava certo desconforto. Como observamos, o número de vagas iniciais do grupo precisou ser ampliado para acolher os interessados em participar. Seríamos capazes de cuidar de tantos afetos ao mesmo tempo, uma vez que estes, inevitavelmente, fariam parte do processo de execução do projeto? No entanto, aos poucos, os participantes apropriaram-se deste processo e conseguiram discutir, propor e intervir em diversas situações delicadas com criatividade e respeito. Dessa forma, conforme apreendemos, o cuidado em saúde mental é também um exercício de autonomia. Na nossa ótica, as relações horizontais, o vínculo criado no grupo e a flexibilidade nos papéis desempenhados permitiram que todos se sentissem aptos a acolher e cuidar, agregando leveza e fluidez às discussões mais complexas. Em muitos momentos, o saber técnico/científico tornou-se dispensável e deu lugar a intervenções afetivas. Outra grande fonte de aprendizado, em especial para os residentes integrantes da equipe técnica responsável pela elaboração/execução do projeto, foi o trabalho em equipes interdisciplinares, contando com artistas e profissionais de saúde mental. Cada membro pôde compartilhar conhecimentos, ideias e aprendizados, potencializando o cuidado e viabilizando a construção gradual do projeto. Outro aspecto a despertar nossa atenção ao longo das oficinas foi o modo como os participantes apropriaram-se do seu processo de conquista e exercício da cidadania. Em diversos casos, posturas tímidas e expressões tristes deram lugar a atores e atrizes que floresceram no grupo e adotaram uma nova forma de enfrentar as opressões antes mencionadas como adoecedoras. Mesmo cientes das limitações na execução do projeto Teatro do oprimido na saúde mental de Fortaleza, segundo evidenciamos, mediante as vivências, criamos um espaço de fala e acolhida coletiva, aproximando a vida e a arte de maneira dialógica. Por meio desse encontro, trabalhamos com a noção de um teatro ativo, questionador e problematizador das relações cotidianas e dos papéis sociais. Vivenciar esta experiência nos fez perceber que encontrar e efetivar novos modos de cuidar em saúde mental de forma integral e em liberdade é mais do que possível, é necessário, e demanda articulação coletiva (não só de usuários, familiares ou profissionais de saúde, mas de todos). A potência disparadora dos movimentos emancipatórios de cuidado tornou-se marcante nas diversas conquistas dos grupos de teatro e na interação da plateia nos espetáculos. Plateia esta que, no teatro do oprimido, é convidada a tornar-se protagonista, a discutir, a propor e a vivenciar uma existência situada além das amarras da alienação capitalista. A criação artística é sempre inovadora. Na nossa ótica, o teatro do oprimido é uma ferramenta poderosa não só para fortalecer a participação social, mas, também, para reinventá-la cotidianamente, sobretudo ao problematizar estigmas, garantir direitos, recriar as relações sociais, reafirmando-as como espaço de produção de vida. Com este estudo, pretendemos contribuir com o debate acerca da importância da participação social no contexto da saúde mental, e colaborar com a (re)construção de uma rede de atenção psicossocial de qualidade e capaz de atender às reais necessidades dos serviços que a compõem, fomentando o surgimento de novas práticas baseadas nesta experiência. Concluímos que o teatro do oprimido foi capaz de potencializar o cuidado em saúde mental conforme preconizado pela Reforma Psiquiátrica: em movimento, em liberdade e com autonomia. As vivências e discussões no projeto contribuíram para que cada participante encontrasse seu modo de criar, de se expressar como sujeito, de se reconhecer no outro, e de colaborar para a construção de uma sociedade sem opressões.

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Colaboradores Érika Sales dos Santos participou do projeto que originou este artigo, contribuiu com a revisão bibliográfica e redigiu o texto. Emanuella Cajado Joca foi a coordenadora do projeto, contribuiu nas problematizações do texto e participou da revisão bibliográfica. Ângela Maria Alves e Souza foi a orientadora na elaboração do manuscrito, além de contribuir nas discussões e revisão do texto. Referências 1. Grupo de Trabalho em Saúde Mental. Relatório. Fortaleza: Câmara de Vereadores de Fortaleza; 2014. 2. Secretaria de Saúde do Estado do Ceará. Caderno de Informação em Saúde: região de saúde [Internet]. Fortaleza; 2013 [acesso 2014 Out 12]. Disponível em: http://www. saude.ce.gov.br/index.php/downloads/category/83-cadernos-de-informacao-em-saude 3. Caldeira LRM. Trupe Maluko Beleza: percursos e sentidos de uma oficina de teatro no campo da saúde mental [dissertação]. São Paulo (SP): Universidade Estadual Paulista; 2009. 4. Teixeira TMB. Dimensões socioeducativas do teatro do oprimido – Paulo Freire e Augusto Boal [tese]. Barcelona: Universidade Autônoma de Barcelona; 2007. 5. Santos B. Ser & não ser. Metaxis (Rio de Janeiro). 2010; 4(7):3. 6. Boal A. Jogos para atores e não atores. 15a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2012. 7. Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3a ed. Porto Alegre: Artmed; 2009. 8. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União. 12 Dez 2012. 9. Boal A. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond; 2009. 10. Milhomens AE, Lima EMFA. Recepção estética de apresentações teatrais com atores com história de sofrimento psíquico. Interface (Botucatu). 2014; 18(49): 377-88. 11. Oliveira ECS, Araújo MF. O teatro fórum como dispositivo de discussão da violência contra a mulher [Internet]. Campinas; 2014 [acesso 2015 Nov 5]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0103-166X2014000200011 12. Oliveira ECS, Araújo MF. Aproximações do teatro do oprimido com a Psicologia e o Psicodrama [Internet]. Brasília; 2012 [acesso 2015 Nov 5]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932012000200006 13. Silveira E. A arte do encontro: a Educação Estética Ambiental atuando com o Teatro do Oprimido [Internet]. Belo Horizonte; 2014 [acesso 2015 Nov 5]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-46982009000300018.

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Santos EA, Joca EC, Alves e Souza AM

Santos EA, Joca EC, Alves e Souza AM. Teatro del oprimido en la salud mental: participación social a través del arte. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):637-47. El presente es el relato de uma experiencia de intervención del proyecto Teatro del oprimido en la salud mental en un Centro de Atención Psicosocial (CAPS) de Fortaleza, Ceará, Brasil, describiendo cómo esta herramienta es capaz de contribuir para el fortalecimiento de la participación social. El proyecto fue elaborado por un grupo de residentes y preceptores de la Residencia Integrada en Salud, con énfasis en Salud Mental Colectiva, de la Escuela de Salud Pública del Ceará. Para este estúdio utilizamos técnicas de investigación cualitativa. Ante el difícil contexto de efectivización de la política de salud mental en el municipio, percibimos que el arte puede contribuir para la construcción de una atención en salud que sea efectiva, emancipadora y apta a acoger las diversidades. De acuerdo com nuestra visión, el Teatro del Oprimido es una herramienta importante para fortalecer la participación social y para además reinventarla, problematizando estigmas e impulsando la garantía de los derechos.

Palabras clave: Salud mental. Participación social. Teatro del oprimido.

Recebido em 29/06/15. Aprovado em 07/12/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0029

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A expansão do agronegócio no semiárido cearense e suas implicações para a saúde, o trabalho e o ambiente Marcelo José Monteiro Ferreira(a) Mário Martins Viana Júnior(b)

Ferreira MJM, Viana Júnior MM. The expansion of agribusiness in Ceará semiarid region and their implications for health, work and environment. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):649-60.

Since 2008, Brazil is the worldwide leader in pesticide’s consumption. On the other hand, looking through a public health lens, the rates of intoxication by pesticides are rising - they reached 9.000 notifications in the year of 2012 only. The present paper aims to analyze the transformations occurred in lifestyles and its implications in health, work and environment due the insertion/expansion of agribusiness in Ceará’s semiarid. For that, we adopted research-action as methodology. As method, we used the Social Cartography and non-structured interview as technique. The analysis of the qualitative material was made by discourse analysis. Through participation in workshops it could be experienced a development of a collective consciousness in the participants of this research. Through the criticism of their own reality, they were able to question and achieve a deeper knowledge about transformations that affect their own territories, as a consequence of agribusiness.

Desde 2008, o Brasil é o líder mundial em consumo de agrotóxicos. Em contrapartida, do ponto de vista da saúde pública, aumentam as taxas de intoxicação por agrotóxicos que, somente em 2012, superaram as nove mil notificações. O presente artigo tem como objetivo uma análise das transformações ocorridas nos modos de vida – e suas implicações para a saúde, o trabalho e o ambiente – decorrentes da introdução/expansão do agronegócio no semiárido cearense. Para tanto, adotamos como metodologia a Pesquisa-ação. Como método, utilizamos a Cartografia Social e a entrevista não estruturada como técnica. A análise do material qualitativo deu-se por meio da Análise de Discurso. Por intermédio das oficinas, pudemos experimentar, na prática, o desenvolvimento da consciência coletiva dos sujeitos participantes da pesquisa. Ao problematizarem sua própria realidade, obtiveram maior profundidade sobre as transformações que incidem em seus territórios, decorrentes do agronegócio.

Keywords: Social vulnerability. Environmental exposure. Pesticides. Rural settlements. Consumer participation.

Palavras-chave: Vulnerabilidade social. Exposição ambiental. Agrotóxicos. Assentamentos rurais. Participação comunitária.

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(a) Departamento de Saúde Comunitária, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará (UFC). Rua Professor Costa Mendes, 1608, Bloco Didático, 5º andar, Bairro Rodolfo Teófilo. Fortaleza, CE, Brasil. 60430-140. marceloferreira@ufc.br (b) Departamento de História, UFC. Fortaleza, CE, Brasil. mario_ufc@hotmail.com

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Introdução Desde 2008, o Brasil lidera o ranking mundial como o país que mais importa agrotóxicos no mundo, sendo responsável por 86% do total consumido na América Latina1. Somente no ano de 2010, a taxa de crescimento das vendas no país foi de 190%, enquanto, no resto do mundo, foi de 93%2, ocupando, assim, um lugar de destaque no cenário internacional como o mais importante nicho para o crescimento econômico das empresas transnacionais produtoras desses insumos químicos. Durante o ano de 2011, o mercado nacional movimentou cerca de US$ 8,5 bilhões de dólares. As lavouras de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar foram responsáveis por 80% das vendas do setor3. Dentre os princípios ativos mais utilizados nas culturas, os herbicidas assumem o primeiro lugar. Suas vendas passaram de US$ 1.360.895, em 2010, para US$ 1.860.919 em 20124. Registra-se, também, o aumento do consumo médio de ingredientes ativos em relação às áreas cultivadas, saltando de 7,56 t/ha, em 2005, para 18,36 t/ha em 20123. Todavia, os números assinalados acima invisibilizam as consequências dos efeitos deletérios dos agrotóxicos para a saúde humana e o equilíbrio ecológico. Do ponto de vista da saúde pública, identificamos um incremento das taxas de intoxicações por agrotóxicos registradas pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), que, somente em 2012, notificou mais de nove mil casos5. Ressaltamos que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), para cada caso confirmado, estima-se a presença de outros cinquenta subnotificados, o que nos levaria a um quantitativo de, aproximadamente, quatrocentos e cinquenta mil casos, representando, assim, um grave problema de saúde pública. Somam-se, ainda, os acidentes de trabalho decorrentes de intoxicações por agrotóxicos que, em 2011, foram 126,77% a mais que em 20076. Outro aspecto preocupante diz respeito à faixa etária das intoxicações, atingindo, sobretudo, os indivíduos do sexo masculino de 20 a 34 anos7. Esse contexto de exposição a agrotóxicos reproduz-se, também, no semiárido cearense, mais precisamente no baixo Jaguaribe, distante cerca de duzentos quilômetros da capital Fortaleza, no Ceará. Desde a década de 1980, a região registra a chegada de grandes empresas transnacionais e regionais do agronegócio, que vêm modificando sobremaneira os modos de vida e o perfil de morbimortalidade daquela população8. Nesse contexto, estudo epidemiológico realizado em três municípios situados no baixo Jaguaribe (Limoeiro do Norte, Russas e Quixeré) evidenciou um incremento anual das taxas de internação por neoplasias 1,76 vezes maiores quando comparadas as de outros 11 municípios controle. Ademais, as análises registraram que a taxa de mortalidade por câncer é 38% maior nos três municípios supracitados, demonstrando a influência dos processos produtivos sobre o perfil de adoecimento e morte das populações9. No que tange à preocupação com os agravos à saúde, pesquisa realizada durante o período de 2007 a 2011, evidenciou, dentre outros, que 97% dos trabalhadores do agronegócio e dos agricultores familiares estudados estavam expostos a agrotóxicos. Tal exposição envolvia a presença de quatro a trinta ingredientes ativos distintos, distribuídos entre inseticidas, herbicidas e fungicidas. No conjunto dos dados, foi possível identificar a presença de 25 grupos químicos diferentes, dos quais 68,5% são classificados como extremamente tóxicos ou muito tóxicos8. Do ponto de vista da exposição ambiental, merece destaque a prática da pulverização aérea com fungicidas de classes toxicológicas I e II (extremamente e altamente tóxicos, respectivamente) nos cultivos de banana, extensamente produzidos na região9. Tais práticas contribuem sobremaneira para a contaminação ambiental, em especial dos lençóis freáticos. Acerca disso, estudos realizados pelo órgão estadual de recursos hídricos do Ceará detectaram a presença de Ingredientes Ativos (IA) em seis de dez amostras provenientes do aquífero Jandaíra, colocando em risco a segurança hídrica da população10. Além disso, é importante salientarmos que, em 2014, o estado do Ceará decretou estado de emergência em 92% dos seus municípios em virtude da severa e prolongada estiagem11. Desse modo, a conjuntura dos fatores elencados foi motivadora para adotarmos, como objetivo do presente manuscrito, uma análise das transformações ocorridas nos modos de vida – e suas implicações

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para a saúde, o trabalho e o ambiente – decorrentes da introdução/expansão do agronegócio na região do baixo Jaguaribe.

Delineamento metodológico O presente artigo inscreve-se na fronteira entre os campos da Saúde Coletiva e das Ciências Sociais e Humanas, por assumirem posições privilegiadas para a análise do objeto de investigação em foco. Ainda, filia-se ao enfoque qualitativo da pesquisa, tendo em vista a natureza dos fenômenos investigados. Quanto ao local de estudo, este foi realizado na comunidade do Tomé, pertencente ao município de Quixeré, situado no baixo Jaguaribe, região do semiárido cearense. Sua escolha se deveu ao fato de apresentar, em seu território, extensa área de monocultivo de banana onde é praticado o uso intensivo de agrotóxicos por meio da pulverização costal e aérea. Esse contexto foi favorável para que a comunidade aguçasse sua percepção quanto aos riscos a que estava exposta, reconhecendo o papel dos processos produtivos como agentes transformadores de seus modos de vida, influenciando, também, no seu perfil de morbimortalidade8,9. Para a realização dessa pesquisa, adotamos, como metodologia, a pesquisa-ação, entendida como: [...] um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos dessa situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo e participativo na sua resolução. 12 (p. 16)

Devido ao sincretismo teórico-conceitual que permeia o arcabouço da pesquisa-ação, alguns autores classificam-na como pesquisa participante. Porém, Thiollent12 esclarece que, apesar de identificar similitudes entre as abordagens, estas, muitas vezes, se resumem a uma dimensão semântica. Desse modo, segundo o autor: Nossa posição é que toda Pesquisa-ação é do tipo participativa: a participação das pessoas implicadas nos problemas de investigação é absolutamente necessária. No entanto, tudo o que é chamado de Pesquisa participante não é Pesquisa-ação. Isto porque Pesquisa participante é, em alguns casos, um tipo de pesquisa baseada numa metodologia de observação participante, na qual os pesquisadores estabelecem relações comunicativas com pessoas ou grupos da situação investigada, com o intuito de serem melhor aceitos. 12 (p. 17)

A argumentação acima convida-nos à reflexão de, pelo menos, duas questões fundamentais para a correta demarcação conceitual. Primeiramente, o caráter participativo dos sujeitos na pesquisa-ação apresenta-se como elemento fundante, uma característica estrutural e estruturante dessa abordagem. Em segundo lugar, o autor avança para uma qualificação acerca da participação dos sujeitos, distinguindo-a de mera observação, situação de conveniência ou simples estratégia que facilite a incursão de pesquisadores junto a sujeitos ou situações a serem investigadas. Outra característica singular da pesquisa-ação reside na sua estrutura ontológica de base fundamentalmente social-empírica, ou seja, origina-se a partir de uma situação concreta, em que se busca sua transformação envolvendo a participação horizontal de sujeitos sociais que vivenciam cotidianamente esses problemas. Nesse sentido, a opção pela pesquisa-ação proporciona o esteio para a superação da disjunção entre investigação e ação, ainda tão presente no campo de disputas em que se insere a produção do conhecimento13. Em essência, tais características a distanciam de um paradigma positivista, tendo em vista que ela pressupõe a integração dialética imanente entre o sujeito e sua existência, entre fatos e valores, entre pesquisador e pesquisado e entre pesquisa e ação14.

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Para Thiollent, uma das principais etapas da pesquisa-ação consiste na formação do grupo de pesquisa que trabalhará em conjunto na identificação e resolução do problema em foco. O autor denomina esse momento de “Seminário Central”, o qual, além de reunir os principais integrantes implicados no processo de investigação, tem o papel de examinar, discutir e tomar decisões acerca do percurso a ser adotado pelo grupo durante a pesquisa12. Dessa forma, realizamos o primeiro encontro em uma Escola de Ensino Infantil e Fundamental (EEIF), localizada na comunidade do Tomé. Na ocasião, convidamos: profissionais da Atenção Primária em Saúde (enfermeiras e agentes comunitárias de saúde), professores de quatro escolas municipais, estudantes, além de moradores da comunidade. Ao todo, constituímos um grupo de vinte e quatro pessoas, com o fito de planejar e pactuar coletivamente o cronograma de trabalho estabelecido pelo grupo em três oficinas com duração de oito horas cada14. Para cada uma das oficinas, foi elaborada uma pergunta geradora que serviu de subsídio para auxiliar o grupo a refletir sobre a problemática em questão. Dessa forma, propomos as seguintes indagações: i) Como era o passado antes da chegada das empresas do agronegócio? ii) Como avaliam o presente, a partir da chegada das empresas? iii) O que esperam do futuro? Em diálogo com essa metodologia, adotamos o método da cartografia social, uma vez que permite: A las comunidades conocer y construir um conocimiento integral de su território para que puedan elegir una mejor manera de vivirlo. Es una forma de investigación humanista y humanizadora. Este tipo de mapas [...] son creados por la comunidad en un proceso de planificación participativa poniendo en común el saber colectivo y, desta forma, legitimarlo.15 (p. 8)

Desse modo, acreditamos que a cartografia social potencializa e proporciona um melhor conhecimento dos processos que determinam os problemas por meio da participação efetiva das comunidades implicadas. Nesse sentido, defendemos a ideia de que as pessoas comuns merecem conhecer mais sobre suas próprias condições de vida para defender seus interesses. Ademais, a cartografia social, quando conjugada a metodologias que promovem uma verdadeira participação social, como a pesquisa-ação, contribui para que as comunidades construam um pensamento crítico, autônomo, libertário e emancipador, auxiliando-as a se instrumentalizarem para superar a condição de sujeitos vulnerabilizados. Dessa forma, o enfoque metodológico proposto colaborou para a estruturação de ambiências fecundas para o diálogo entre os conhecimentos científicos e populares com vistas à transformação social. Como técnica, recorremos à utilização de entrevistas não estruturadas, sendo estas importantes ferramentas para o registro e a recuperação de memórias e identidades ameaçadas pela expansão da modernização agrícola. Dessa maneira, as mudanças impingidas pelo agronegócio são tratadas aqui como formas de aceleração da história que drasticamente alteram, por um lado, a relação do indivíduo com o tempo e que, por outro, possuem um efeito devastador e destruidor sobre o espaço, significado como um dos principais pilares da identidade: “perdido o espaço, a identidade vacila à medida que tempo/espaço compõem o quadro no interior do qual o sujeito se re-conhece”16 (p. 273). Para a interpretação do material qualitativo, procedemos com as transcrições das gravações oriundas das entrevistas. Em seguida, submetemos os conteúdos a categorizações temáticas, estruturadas em diálogo com a literatura científica. Concluída a fase de categorizações, procedemos à Análise de Discurso (AD), a qual procura “descrever, explicar e avaliar criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos”17 (p. 7). Além disso, foi acordado entre os participantes da pesquisa que os discursos oriundos das entrevistas seriam tratados de maneira coletiva. Assim, entendemos que toda produção de discursos é uma forma de ação, exigindo-nos a adoção de uma postura de detetive sociocultural. Dessa forma, acreditamos que o “analista do discurso não interpreta, ele trabalha no limite da interpretação; não se coloca fora da história, do simbólico ou da ideologia. Ele se coloca em uma posição deslocada que lhe permite contemplar o processo de produção dos sentidos em suas condições sociohistóricas”18 (p. 61).

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Destarte, a referida pesquisa foi desenvolvida em consonância com a Resolução no 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, vigente à época, sendo também aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará.

Resultados e discussão 1ª Oficina – Territórios em transformação: o resgate do passado como instrumento de luta para o fortalecimento dos modos de vida camponeses Para a primeira oficina, o grupo de pesquisa promoveu uma análise coletiva do período anterior à chegada do agronegócio na região da Chapada do Apodi, buscando, com isso, resgatar as memórias populares relacionadas aos modos de vida tradicionais camponeses e o sentimento de pertença daquela comunidade aos seus territórios. Ao representar o Tomé antes da chegada dessas empresas, identificaram-se como fatores mais significativos: a vegetação nativa, a diversidade cultural, a economia de base camponesa familiar, a saúde, educação, alimentação, moradia e trabalho, conforme observamos na Figura 1.

Figura 1. Representação da comunidade de Tomé na década de 1970 Fonte: Ferreira14.

Nesse período, existia a presença significativa de agricultores familiares camponeses que gerenciavam o cultivo de suas terras voltado, sobretudo, para a produção de alimentos para a subsistência. A agricultura era predominantemente de sequeiro: plantavam milho, feijão, mandioca, além de frutas, como goiaba e mamão. O cultivo era feito utilizando-se técnicas simples, sem a intervenção de maquinários agrícolas, sem a necessidade de melhoramento genético das sementes, muito menos, de implementos, como herbicidas e fungicidas19.

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Outro ponto importante dessa oficina se refere ao resgate das memórias populares camponesas relacionadas ao período anterior à chegada dos empreendimentos de fruticultura irrigada. Esta oficina cumpriu um importante papel social na medida em que contribuiu para reafirmar a existência e a diversidade sociocultural da comunidade do Tomé. Dessa forma, conseguem contrapor os discursos difundidos pelos empresários do setor quando afirmavam que “não existia vida na Chapada do Apodi antes do agronegócio”20 (p. 48). Em verdade, tais condutas fazem parte da conformação de um mito ideológico, cuja finalidade reside em promover processos de invisibilização e de dominação para com as populações tradicionais e seus territórios. Esse contexto se insere no que Boaventura de Sousa Santos21 denomina por “sociologia das ausências”. De acordo com o autor, “há produção de não existência sempre que uma entidade é desqualificada e tornada invisível, inteligível ou descartável”21 (p. 102). Esse processo se espraia tanto na dimensão epistemológica quanto na jurídica: epistemológica porque tornam invisibilizadas e até marginalizadas as culturas e os conhecimentos tradicionais, relegados ao estatuto de magia, entendimentos subjetivos ou, na melhor das hipóteses, matéria-prima de investigações científicas; jurídica porque se consubstancia a partir de concessões feitas pelo próprio Estado, tendo, como principal expressão local, a construção dos Perímetros Irrigados durante as décadas de 1960 e 1970. Como corolário, cerca de trezentas e vinte famílias foram desapropriadas de suas terras para dar lugar aos canais de irrigação, promovendo, com isso, profundas modificações socioespaciais e simbólicas, reconfigurando a paisagem, os modos de vida das famílias e dando lugar a um novo território, “projetado para atender aos interesses econômicos e políticos do Estado”22 (p. 89). Nesse contexto, registra-se a chegada do agronegócio no baixo Jaguaribe, não para tornar produtivo um espaço “improdutivo”, muito menos povoar uma região inabitada, mas para extrair desses territórios os seus recursos, sejam naturais, humanos, políticos e econômicos20.

2ª Oficina – A reconfiguração socioespacial promovida pelo agronegócio Na segunda oficina, o grupo de pesquisa cartografou a comunidade na década de 2010, demonstrando, de forma clara, as profundas transformações nos territórios oriundas da chegada do agronegócio. Identificamos, na Figura 2, uma reconfiguração socioespacial que se inicia a partir da construção do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, servindo de infraestrutura física para a instalação das empresas de fruticultura irrigada.

Figura 2. Representação da comunidade do Tomé no presente. Fonte: Ferreira14.

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Desse modo, a agricultura de sequeiro, pouco a pouco, foi substituída pelos monocultivos, cuja produção é parcial ou totalmente vendida para as grandes empresas, estabelecendo, assim, um vínculo de dependência entre o pequeno agricultor camponês e os empresários do agronegócio. De acordo com o discurso abaixo: “As formas que as comunidades tinham de produzir e de plantar foram totalmente mudadas por conta do Perímetro, por conta da realidade que eles trouxeram e enganaram as pessoas dizendo que era uma coisa muito boa, que o certo [...] era plantar do jeito que eles plantavam. Foi uma história que eles inventaram e que muita gente acreditou e que até hoje estão pagando o preço”.

Além da perda da fauna e flora nativas, registrou-se, também, um expressivo número de expropriações entre os agricultores camponeses: Do total de 116 pequenos agricultores (irrigantes) da área-piloto (área com lotes de quatro e 16 hectares), permaneceram no projeto, em 2009, apenas dois, representando uma expropriação de 98%. Restavam assim, apenas 2% no projeto, ou seja, dos 334 ocupantes oficiais, apenas 0,6% desse número faziam parte dos selecionados em 1992. Após a expropriação, dois fenômenos, decorrentes desse processo, podem ser observados: o primeiro é a redução das áreas daqueles agricultores resistentes [...]; o segundo é a ampliação exponencial das áreas de médios/grandes produtores e das empresas, levando à concentração de terra, que se projeta por meio da compra da posse ou da invasão. 22 (p. 101-3)

Além disso, processos produtivos como o agronegócio contribuem para a introdução de contextos de risco que influenciam sobremaneira na saúde dos trabalhadores, bem como das populações circunvizinhas, incidindo, direta e indiretamente, sobre seu perfil de morbimortalidade. Acerca disso, cita-se um estudo epidemiológico, conduzido nos municípios de Limoeiro do Norte, Russas e Quixeré, que envolveu 545 trabalhadores rurais utilizando exames clínicos e provas laboratoriais. Destes, 46,6% relacionaram algum problema de saúde aos agrotóxicos, e 43,3% referiram-se a sinais e sintomas compatíveis com intoxicações agudas em sua história pregressa. Chamou a atenção o quantitativo de 30,7% de trabalhadores que, no momento do exame, apresentaram quadros semelhantes a intoxicações agudas por agrotóxicos23. Em relação à função hepática, dos nove indicadores laboratoriais utilizados para avaliação, todos apresentaram algum tipo de variação, sugerindo hipertrofia e necrose dos hepatócitos, colestase e danos das vias biliares. A transaminase oxalacética elevou-se em 6,2%, a transaminase pirúvica, em 14% dos casos, e a fosfatase alcalina, em 6,2%. Ressalta-se que esses três indicadores são utilizados pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) para correlacionar lesões hepáticas crônicas à exposição por agrotóxicos23. Outro estudo, realizado em Limoeiro do Norte com trabalhadores rurais produtores de banana, concluiu que a exposição crônica aos agrotóxicos levou à ocorrência de alterações cromossômicas em células da medula óssea. De 35 amostras viáveis, 11 apresentaram importantes alterações cromossômicas, sendo elas: deleções dos cromossomos 5, 7 e 11; monossomia do TP53 e a amplificação do TP53. As anormalidades encontradas são semelhantes às alterações descritas em doenças clonais da medula óssea, como síndromes mielodisplásica e leucemias mielóide agudas24. O incremento de neoplasias e outros agravos relacionados aos agrotóxicos na região da Chapada do Apodi também está presente nos discursos do grupo de pesquisa, conforme identificamos abaixo: “Quantas e quantas pessoas aqui já morreram de câncer? Quantas e quantas têm câncer ou estão em situação complicada? Se a gente for fazer hoje uma análise da nossa comunidade, 70% das famílias toma remédio para estômago. Na nossa comunidade já teve gente que morreu com problema de fígado, de úlcera, já tem gente operada que foi preciso tirar parte do estômago”.

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Todos esses dados dialogam com o contexto vivenciado pelas comunidades do baixo Jaguaribe. Um estudo transversal, realizado a partir de registros de dados secundários, calculou a Razão Proporcional de Incidência de Câncer (PCIR) nas principais localizações anatômicas de câncer no estado do Ceará. Os resultados demonstraram um maior risco de câncer em agricultores da região quando comparados a não-agricultores em 15, das 23 localizações estudadas, sendo as maiores diferenças para câncer no pênis (6,44), leucemias (6,35) e testículos (5,77)25. Do ponto de vista da exposição ambiental, destacamos, na Figura 2 (círculo), o canal que é responsável pela captação das águas do rio Jaguaribe até o topo da Chapada. Essas percorrem uma distância de 14 quilômetros a céu aberto e, apesar de serem apropriadas apenas para a irrigação, diversas famílias as utilizam para consumo próprio por falta de opção. Somam-se, ainda, registros imagéticos e relatos de que tratores e maquinários agrícolas utilizados na aplicação de agrotóxicos nas plantações lavam seus equipamentos nas águas desse canal, representando um grave risco de contaminação química, além da possibilidade de transmissão de doenças por veiculação hídrica14. Ademais, ressaltamos, na Figura 2, a representação de um avião próximo às plantações de banana, retratando a pulverização aérea praticada à época na comunidade. Quanto à classificação toxicológica dos agrotóxicos utilizados, são extremamente ou muito tóxicos. Importante salientarmos que, de acordo com as informações obtidas nas Fichas de Segurança Química dos diferentes fabricantes desses fungicidas, podem ser esperados sinais e sintomas clínicos em seres humanos acometendo desde a pele e as mucosas até o Sistema Nervoso Central11,26.

3ª Oficina – Em meio à expansão do agronegócio, um horizonte de esperanças transformadoras Na última oficina, tratamos de problematizar o futuro da comunidade do Tomé, caso perdurasse a expansão do agronegócio. Para tanto, o grupo realizou um trabalho dando destaque à contaminação por agrotóxicos, sobretudo dos trabalhadores e trabalhadoras dessas empresas. Chamou a atenção a forma como a comunidade retratou os problemas oriundos da contaminação ambiental e exposição a contaminantes químicos. O trabalho, que deveria ser fonte de realização e prosperidade, fora associado a uma caveira, demonstrando a correlação perigosa do agricultor com os agrotóxicos, conforme observamos na Figura 3.

Figura 3. Representação sobre o futuro da comunidade do Tomé Fonte: Ferreira14

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A insalubridade presente no cotidiano dos agricultores e agricultoras que trabalham no agronegócio também é reafirmada no discurso do grupo de pesquisa, conforme demonstramos abaixo: “A maioria das mulheres adoece de problemas no útero. É o que dá mais. E por que dá mais doenças de útero? Porque as mulheres passam o dia todo naquelas plantações cuidando das frutas e os homens atrás com as bombas nas costas expurgando [veneno]”.

Nesse quesito, estudo realizado sobre a percepção dos trabalhadores do agronegócio sobre seu trabalho evidenciou sua exposição direta aos pesticidas, ampliando os riscos de intoxicação aguda por inalação, além da absorção por via dérmica e digestiva27. Em relação à contaminação ambiental, observamos o destaque concedido pelo grupo, sobretudo envolvendo as águas para consumo humano. Mesmo inserindo imagens de crianças adoecidas e relacionando essas patologias à poluição das águas, ainda acrescentou-se a frase “pior que está fica”, retratando seu receio e insegurança quanto a essa questão para o futuro. Tal preocupação ganha relevo, tendo em vista que, em estudo realizado por Rigotto8, foram coletadas 24 amostras de água provenientes de diversos pontos, como canais que abastecem as comunidades, caixas d’água e poços profundos. Em todas as amostras, foram detectados princípios ativos de agrotóxicos. Somente em um poço profundo localizado no distrito de Tomé, foram identificados 12 princípios ativos. Dentre eles, a maioria era de classificação toxicológica I e II, extremamente e altamente tóxicos, respectivamente. A preocupação das comunidades ainda é potencializada, pois o estado do Ceará não possui dados referentes ao monitoramento de agrotóxicos na água para consumo humano no Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano28. Isso representa uma verdadeira invisibilidade para o Sistema Único de Saúde, que fica impossibilitado de reunir informações para o desenvolvimento de ações de vigilância e controle da qualidade da água para consumo humano. Além disso, a ausência dessas informações representa uma negação dos direitos das comunidades de conhecerem a real qualidade da água que consomem. Apesar de todas as denúncias e incertezas representadas na Figura 3, o grupo também apontou para soluções viabilizadas de forma coletiva, retratadas a partir de uma colagem de várias pessoas de mãos dadas, com a frase “descobrir que nós podemos mudar a realidade. Vamos fazer juntos?”. Talvez essa imagem represente a força existente nas organizações populares, aliada ao seu desejo de transformar suas comunidades em lugares melhores para se viver.

Considerações finais A crescente expansão do agronegócio no Brasil pode ser mensurada pela magnitude do seu faturamento, sobretudo nos últimos dez anos. A cada ano, esse “modelo” de produção químicodependente expande suas fronteiras para diversas regiões do país. Esse contexto favorece o surgimento de novos e mais complexos conflitos territoriais entre as comunidades tradicionais, sobretudo as camponesas. Como corolário, acentua-se o desequilíbrio ambiental materializado em diferentes dimensões, tais como: a perda da fauna e flora nativa em detrimento da introdução dos monocultivos; a contaminação dos solos e dos lençóis freáticos, contribuindo para acentuarem a insegurança hídrica, sobretudo no semiárido. Merecem destaque, ainda, as condições de trabalho, muitas vezes insalubres e adoecedoras, presentes no cotidiano dos agricultores que trabalham no agronegócio, contribuindo para ampliar o quantitativo de intoxicações agudas e acidentes de trabalho. Ressaltamos, ainda, a influência desses processos produtivos sobre o perfil de morbimortalidade das comunidades, sobretudo das que vivem no entorno desses empreendimentos, promovendo uma maior incidência no surgimento de neoplasias que podem estar relacionadas com os agrotóxicos utilizados nos cultivos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Nesse contexto, cresce cada vez mais a necessidade de novas parcerias entre Universidades, movimentos sociais e comunidades atingidas, de forma a contribuir com a organização popular, dando visibilidade aos conflitos socioambientais e qualificando suas reivindicações por melhores condições de saúde, trabalho e ambiente. Por meio das oficinas, pudemos experienciar, na prática, o desenvolvimento da consciência coletiva dos sujeitos nos planos cultural, ideológico e político. Ao problematizar sua própria realidade, dialogando com diferentes temporalidades, o grupo obteve maior clareza sobre as transformações que incidem em seus territórios desde a chegada do agronegócio. Essas características se aproximam dos pressupostos epistemológicos da pesquisa-ação, em que a práxis é concebida como mediação básica da construção do conhecimento. Nesse sentido, o saber produzido é necessariamente transformador de sujeitos e circunstâncias.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Sindicato Nacional das Indústrias de Defensivos Agrícolas (BR). Dados de produção e consumo de agrotóxicos [Internet]; 2010 [acesso 2010 Jan 10]; Disponível em: http://www.sindag.com.br 2. Pelaez V. Monitoramento do mercado de agrotóxicos [Internet]. Brasília (DF): Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2012 [acesso 2014 Jul 16]. Disponível em: http:// portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/c4bdf280474591ae99b1dd3fbc4c6735/estudo_ monitoramento.pdf?MOD=AJPERES 3. Sindicato Nacional das Indústrias de Defensivos Agrícolas. (BR) Dados de produção e consumo de agrotóxicos [Internet]; 2012 [acesso 2012 Maio 7]. Disponível em: http://www.sindag.com.br 4. Sindicato Nacional das Indústrias de Produtos para a Defesa Vegetal (BR). Dados de investimento em tecnologia [Internet]; 2013 [acesso 2013 Fev 5]. Disponível em: http//:www.sindiveg.org.br 5. Ministério da Saúde (BR). Sistema de Informação de Agravos de Notificação. Banco de dados eletrônicos [Internet]. Brasília (DF): SINAN; 2014 [acesso 2014 set 21]. Disponível em: http://drt2004.saude.gov.br/sinanweb 658

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Ferreira MJM, Viana Júnior MM

artigos

6. Ministério da Saúde (BR). DATASUS. Sistema de Informação de Agravos de Notificação [Internet]. Brasília (DF): SINAN; 2012 [acesso 2014 Abr 23]. Disponível em: http://tabnet. datasus.gov.br/sinanweb 7. Ministério da Saúde (BR). DATASUS. Sistema de Informação de Agravos de Notificação [Internet]. Brasília (DF): SINAN; 2013 [acesso 2014 Abr 30]. Disponível em: http://tabnet. datasus.gov.br/sinanweb 8. Rigotto RM. Agrotóxicos, trabalho e saúde: vulnerabilidade e resistência no contexto da modernização agrícola no baixo Jaguaribe/CE. Fortaleza: Edições UFC; 2011. 9. Rigotto RM, Silva AMC, Ferreira MJM, Rosa IF, Aguiar ACP. Tendências de agravos crônicos à saúde associados a agrotóxicos em região de fruticultura no Ceará, Brasil. Rev Bras Epidemiol. 2013; 16(3):763-73. 10. Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos. Plano de gestão participativa dos aquíferos da bacia Potiguar, estado do Ceará. Fortaleza: COGERH; 2009. 11. Ferreira MJM. Inflexões do Estado frente ao agronegócio e suas implicações para a Saúde e o Ambiente [Internet]. In: Anais do 2º Simpósio Brasileiro de Saúde Coletiva; 2014; Belo Horizonte; Brasil. Belo Horizonte: Associação Brasileira de Saúde Coletiva; 2014. p. 2-9 [acesso 2014 Nov 20]. Disponível em: http://www.sibsa.com.br/site/ anaisarquivoresumo. 12. Thiollent M. Metodologia da pesquisa-ação. 17a ed. São Paulo: Cortez; 2009. 13. Bourdieu P. O poder simbólico. 14a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2010. 14. Ferreira MJM. Contribuições epistemológicas/metodológicas para o fortalecimento de uma (Cons)ciência emancipadora [dissertação]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2012. 15. Soliz F, Maldonado A. Guia de metodologias comunitárias participativas. Quito: Clínica Ambiental; 2012. 16. D’alessio MM. Intervenções da memória na historiografia: identidades, subjetividades, fragmentos, poderes. São Paulo: Projeto História; 1998. 17. Pinto MJ. Comunicação e discurso: introdução a análise de discurso. São Paulo: Hacker Editores; 1999. 18. Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes; 2000. 19. Sampaio JLF, Lima AEF, Freitas BMC. As bases geo-históricas do Baixo Jaguaribe. In: Rigotto RM, organizador. Agrotóxicos, trabalho e saúde: vulnerabilidade e resistência no contexto da modernização agrícola no Baixo Jaguaribe/CE. Fortaleza: Edições UFC; 2011. p. 111-43. 20. Núcleo Tramas. Almanaque do Baixo Jaguaribe ou tramas para a afirmação do trabalho, meio ambiente e saúde para a sustentabilidade. Fortaleza: Expressão Gráfica; 2012. 21. Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2a ed. São Paulo: Cortez; 2008. 22. Freitas BMC. Marcas da modernização da agricultura do Perímetro Irrigado JaguaribeApodi: uma face da atual reestruturação socioespacial do Ceará [dissertação]. Fortaleza (CE): Universidade Estadual do Ceará; 2010. 23. Rosa IF, Pessoa VM, Rigotto RM. Introdução: agrotóxicos, saúde humana e os caminhos do estudo epidemiológico. In: Rigotto RM, organizador. Agrotóxicos, trabalho e saúde: vulnerabilidade e resistência no contexto da modernização agrícola no Baixo Jaguaribe/CE. Fortaleza: Edições UFC; 2011. p. 217-56.

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24. Ferreira Filho LIP. Estudo das alterações citogenômicas na medula óssea de trabalhadores rurais expostos à agrotóxicos [dissertação]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2013. 25. Ellery AEL, Arregi MMU, Rigotto, RM. Incidência de câncer em agricultores em hospital de câncer no Ceará. In: Anais do 18th IEA World Congresso of Epidemiology, 7º Congresso Brasileiro de Epidemiologia; 2008; São Paulo; Brasil. São Paulo: Abrasco; 2008. Disponível em: http://www.epi2008.com.br/ingles/index.php 26. Marinho AMCP. Contextos e contornos da modernização agrícola em municípios do baixo Jaguaribe-CE: o espelho do (des)envolvimento e seus reflexos na saúde, trabalho e ambiente [tese]. São Paulo (SP): Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2010. 27. Ferreira MJM, Teixeira AAT, Marinho AMCP. Centralidade do trabalho e sua caracterização nos diferentes contextos da produção agrícola no baixo Jaguaribe. In: Rigotto RM, organizador. Agrotóxicos, trabalho e saúde: vulnerabilidade e resistência no contexto da modernização agrícola no Baixo Jaguaribe/CE. Fortaleza: Edições UFC; 2011. p. 296-318. 28. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Monitoramento de Agrotóxicos na Água para Consumo Humano no Brasil, 2011/2012. Bol Epidemiol. 2013; 44(17):10.

Ferreira MJM, Viana Júnior MM. La expansión del agronegocio en la región semiárida de Ceará y sus implicaciones para la salud, el trabajo y el medio ambiente. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):649-60. Desde 2008, Brasil es el líder mundial en consumo de plaguicidas. Sin embargo, desde punto de vista sanitario, aumentan las tasas de envenenamiento por pesticidas. Sólo en el año 2012, las mismas superaron las 9000 notificaciones. Este artículo tiene como objetivo el análisis de las transformaciones ocurridas en los modos de vida – junto con sus consecuencias para la salud, trabajo y ambiente – derivados de la introducción/ expansión del agronegocio en Ceará. En la presente investigación, adoptamos la metodología de la investigación-acción. Como método, utilizamos la Cartografía Social y la entrevista no estructurada como técnica. Así mismo, el análisis del material cualitativo se produjo a través del Análisis del Discurso. Por medio de talleres, tuvimos la posibilidad de experimentar en la práctica el desarrollo de la conciencia colectiva de los sujetos participantes en la investigación. Al problematizar su propia realidad, obtuvieron una perspectiva de mayor profundidad acerca de los cambios que se recaen sobre sus territorios como consecuencia de la agroindustria.

Palabras clave: Vulnerabilidad social. Exposición a riesgos ambientales. Plaguicidas. Asentamientos rurales. Participación comunitaria. Recebido em 23/08/15. Aprovado em 09/10/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0149

artigos

Representações dos participantes de uma intervenção psicossocial para melhoria da adesão ao tratamento da aids Ana Cristina Arantes Nasser(a) Maria Ines Battistella Nemes(b)

Nasser ACA, Nemes MIB. Participants’ representations of a psychosocial intervention to improve adherence to AIDS treatment. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):661-77.

This paper presents the qualitative investigation and analysis of representations constructed by 29 patients on the experience of their participation in a psychosocial intervention to improve adherence to antiretroviral treatment. The intervention was performed at a reference service in STD/AIDS of the State of São Paulo (Brazil). Long, semi-structured interviews were conducted with the patients in order to apprehend, understand and explain the relationship between the patients’ everyday life and their adherence to treatment, investigating if, how and why the experience lived during the intervention transformed this relationship. The resulting qualitative analysis indicates that, by raising the patients’ awareness of the importance of (self)care regarding the prescribed and continued use of medication, the intervention enabled the patients to learn their own ways of including adherence in their everyday life, and they may transform it through the improvement in this adherence.

Keywords: Aids/treatment. Patient adherence. Everyday life. Representations. Psychosocial intervention.

Este artigo apresenta a investigação e a análise qualitativas das representações construídas por 29 pacientes sobre a experiência de sua participação em uma intervenção psicossocial para melhoria da adesão ao tratamento antirretroviral, realizada em serviço de referência em DST/ aids do estado de São Paulo (Brasil). Com o objetivo de apreender, compreender e explicar a relação entre o cotidiano dos pacientes e sua adesão ao tratamento, as entrevistas semiabertas de longa duração com eles realizadas buscaram investigar se, como e por que a experiência vivenciada durante a intervenção transformou a supracitada relação. A análise qualitativa resultante dessa investigação aponta que, ao oportunizar a conscientização sobre a importância do (auto)cuidado no uso prescrito e contínuo da medicação, a intervenção levou os pacientes a aprender formas próprias de inserir a adesão em seu cotidiano, podendo transformá-lo por meio da melhoria dessa adesão.

Palavras-chave: Aids/tratamento. Adesão do paciente. Cotidiano. Representações. Intervenção psicossocial.

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(a) Programa de Pós-Doutorado, Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (FMUSP). Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º andar, sala 2174. São Paulo, SP, Brasil. 01255-090. anarantes.nasser@ yahoo.com.br (b) Departamento de Medicina Preventiva, FMUSP. mibnemes@usp.br

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Introdução A adesão do paciente ao tratamento medicamentoso constitui importante questão no campo do cuidado em saúde a pessoas que vivem com HIV (PVHIV)1. Para além de seu papel crucial no alcance do resultado clínico, a adesão representa o modo como essas pessoas vivenciam em seu cotidiano a relação com a doença e o tratamento2. Para um conjunto de pacientes, essa relação expressa a fundamental contradição de seu viver, visto que a gravidade da doença, tornada crônica, não leva necessariamente à inserção e manutenção da adesão como uma atividade diária e regrada em seu cotidiano – com a tomada regular da medicação, o seguimento da dieta recomendada e a mudança do modo de vida. Assim, para compreender e explicar por que e como suas dificuldades de adesão ocorrem e podem vir a ser superadas, faz-se necessário conhecer o cotidiano desse segmento de PVHIV, por meio de suas relações com a doença e o tratamento, nos múltiplos âmbitos de sua prática social – trabalho, vida familiar e afetiva, lazer, etc. –; tendo em conta que tais relações são permeadas pela vivência de estigmas e discriminações, que, por sua vez, intensificam e tornam ainda mais complexas as referidas dificuldades. Para analisar as possibilidades de a adesão ao tratamento vir a ser plenamente inserida no cotidiano dessas PVHIV e, assim, transformá-lo, ao ser por ele simultaneamente transformada, é preciso conhecer a situação e as condições de vida dessas pessoas – o que só se torna possível, apreendendo as representações que elas constroem sobre esse viver cotidiano. É no contexto dessa proposição, que o presente artigo apresenta a análise qualitativa das representações construídas por um grupo de pacientes sobre sua participação em uma intervenção psicossocial para melhoria da adesão ao tratamento antirretroviral (TARV), testada em serviço público de referência de DST/aids do estado de São Paulo, na capital, para atendimento ambulatorial prestado por equipe multidisciplinar a aproximadamente quatro mil e quinhentos pacientes, de diferentes faixas etárias, escolaridade, condições sociais e lugar de origem. Os resultados dessa intervenção, descritos em publicações anteriores3,4, são complementados com o presente artigo, que a analisa do ponto de vista dos próprios pacientes (autodenominação), apreendendo suas histórias de vida enquanto sujeitos simultaneamente individuais e coletivos, para revelá-las em sua dupla determinação: como histórias cotidianas de sofrimentos físicos, psíquicos e sociais, mas também de sobrevivência diária aos mesmos; e que podem ser transformadas com a adesão ao tratamento, se esta for por elas transformada.

Metodologia A intervenção Dentre as várias modalidades de intervenção para melhoria da adesão à TARV, as intervenções psicossociais fundadas no Cuidado5(c) vêm se afirmando como referência importante na constituição das atuais práticas de saúde. Sua aplicação, enquanto alternativa ao modelo de assistência exclusivamente pautado pela dimensão técnica, preconiza que a atenção à saúde envolve uma dimensão ético-política, na “relação dialógica” entre profissionais de saúde e PVHIV, baseada na promoção da “escuta” individualizada aos pacientes, considerados 662

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Conceito grafado por Ayres5 com a inicial maiúscula, para diferenciar do sentido tradicional da assistência centrada no cuidado clínico. (c)


Nasser ACA, Nemes MIB

Nas “conversas em cenas”, os pacientes atuam como personagens que representam, para o “diretor de cena” (as profissionais de saúde), as dificuldades de tratamento em seus “contextos socioculturais”, buscando descobrir novas maneiras de encenar o próprio papel.6 (p. 165) (d)

artigos

como sujeitos dotados de um “saber prático”5 (p. 63), que lhes possibilita construir, na singularidade de seu cotidiano, a melhor forma de con/viver com o seu tratamento, a partir de novos entendimentos sobre suas dificuldades de adesão e, consequentemente, novas formas de enfrentá-las e superá-las4,5. Pautada, portanto, pelo pressuposto de que o paciente é capaz, em seu contexto de vida, de encontrar a melhor forma de seguir seu tratamento, fazendo da autonomia um estímulo ao cuidado individual, a intervenção psicossocial realizada no citado serviço de saúde buscou estimular os participantes a refletir sobre seu cotidiano de PVHIV, identificando os fatores que impedem sua adesão ao tratamento e, simultaneamente, interferem em sua qualidade de vida4. Para tanto, pacientes em TARV há mais de seis meses no serviço, e carga viral detectável no último exame, foram convidados a participar da pesquisa. Segundo o desenho do ensaio clínico, as medidas de adesão foram monitoradas por frascos de medicamentos antirretrovirais (MEMS – Medication Event Monitoring System) dotados de dispositivo eletrônico, registrando, por seis meses, os horários de abertura para sua utilização: dois meses, para randomização nos grupos controle e intervenção; dois meses, durante a intervenção psicossocial; e dois meses, após a mesma3. Conduziram o grupo intervenção três profissionais da equipe do serviço, previamente capacitadas - duas psicólogas e uma assistente social -, divididas entre subgrupos de pacientes que, individualmente, participaram de quatro encontros dialógicos, de aproximadamente uma hora quinzenal, sobre suas dificuldades de (auto)cuidado4,5. Com a representação dessas dificuldades em cenas6(d), tais encontros, realizados durante o 3º e o 4º meses da pesquisa, buscavam possibilitar-lhes a identificação e compreensão de seus impedimentos para seguir o tratamento, de modo a se reconhecerem como capazes de construir novas formas de se relacionar com seu (auto)cuidado4,5. O Quadro 1 apresenta a metodologia da intervenção.

A investigação qualitativa O protocolo da intervenção previu que, após os encontros, a etapa conclusiva da pesquisa deveria conhecer as representações dos pacientes sobre a experiência de sua participação na intervenção, buscando investigar e analisar se, como e por que a vivência desse processo teria oportunizado a melhoria da adesão capaz de mudar sua vida cotidiana, ao ser por esta simultaneamente transformada. Dentre os 44 pacientes que completaram, individualmente, os quatro encontros da intervenção, a autora principal deste artigo coletou os relatos orais de 29 deles, que se voluntariaram a participar da etapa qualitativa da pesquisa, com a assinatura de Termo de Consentimento. Esses relatos, obtidos por meio da técnica de entrevistas – considerada mais adequada para apreender a história de vida desses sujeitos de pesquisa –, e complementados em diário de campo – contendo anotações sobre as relações que eles estabeleceram com a pesquisadora e o contexto das entrevistas, o serviço e seus profissionais –, seguiram um roteiro de quarenta perguntas semiabertas, tiveram duração média de duas horas gravadas e posteriormente transcritas, e ocorreram entre setembro de 2008 e fevereiro de 2009. Essas entrevistas buscaram apreender as representações dos pesquisados sobre a sua trajetória de vida, desde antes do adoecimento, focando, no tempo presente, em suas representações sobre a experiência das cenas trabalhadas em cada um dos encontros6 da intervenção.

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REPRESENTAÇÕES DOS PARTICIPANTES DE UMA INTERVENÇÃO ...

Quadro 1. Metodologia da intervenção

Metodologia

Temas

Objetivos

Encontro 1

Encontros 2 e 3

Contrato;

Aumentar o conhecimento sobre o tratamento;

Aprofundar a compreensão de mudanças possíveis e desejadas no contexto e na própria conduta, visando ao autocuidado e à melhoria da qualidade do cuidado e da comunicação paciente-profissional;

Identificar situações e contextos da vida cotidiana, que constituem obstáculos para o tratamento;

Compreender e decodificar cenas da vida real;

Identificar recursos para busca e sustentação dos caminhos escolhidos para o enfrentamento das dificuldades com o tratamento antirretroviral;

Definir temas e questões prioritárias a serem trabalhadas nos encontros seguintes;

Ampliar as cenas para um contexto social e programático maior;

Finalizar o processo.

Resolver dúvidas técnicas sobre o tratamento.

Estimular a imaginação ativa e criativa sobre a vida cotidiana; Estimular novos repertórios para o enfrentamento dos obstáculos identificados para o tratamento.

Reconhecimento mútuo do paciente como expert da vida cotidiana, e do profissional/pesquisador como expert técnico;

Questões sobre o tratamento;

Questões sobre o tratamento;

Revisão do contexto social e intersubjetivo do paciente;

Episódios reais em que o tratamento não é seguido;

Revisão de caminhos, soluções e repertórios;

Questões sobre o tratamento.

Caminhos para o enfrentamento de obstáculos e soluções “em cena”.

Conversa sobre como enfrentar futuros obstáculos e dificuldades, e como manter as mudanças; Esclarecimentos e orientações finais da pesquisa.

Discussão dos procedimentos, objetivos e contrato;

Revisão do contrato e das questões levantadas;

Revisão do contrato e das questões levantadas;

Livre conversação e escuta atenta sobre a vida da pessoa;

Identificação de episódios típicos de não adesão;

Identificação e exploração de cenas de episódios reais;

Foco em questões do tratamento e em situações e episódios em que há dificuldade para seguir o tratamento;

O participante escolhe suas prioridades de uma lista de problemas;

Decodificação e reinvenção de cenas por meio da imaginação ativa e de role-playing;

Uso de recursos informativos (folders, guias, kits de adesão);

Identificação e exploração de cenas de episódios reais;

Informação sobre recursos sociais e programáticos, bem como sobre direitos constitucionais;

Registro das situações e episódios que parecem importantes para o enfrentamento, em folhas de registro.

Decodificação e reinvenção de cenas por meio da imaginação ativa e de role-playing;

Registro de decisões e planos para o futuro, em folhas de registro.

Conversa sobre obstáculos que estão além da ação individual e são compartilhados por outras pessoas vivendo com HIV; Discussão de recursos individuais e programáticos; Profissional e paciente registram e organizam hierarquicamente cenas e situações, em folhas de registro. Quadro adaptado de Basso et al.3, por Santos et al.4 (revisto em março 2016).

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Encontro 4

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Nasser ACA, Nemes MIB

(e) Baseada na comunicação dialógica profissional-paciente, por meio de sentidos construídos e compartilhados sobre a relação estabelecida com o tratamento.

artigos

Os conceitos de representação e cotidiano Partindo da mesma perspectiva teórica em que se baseou a intervenção, fundada na noção de Cuidado5 e na abordagem psicossocial construcionista6(e), a investigação qualitativa buscou apreender e analisar a relação entre condições e modo de vida dos pacientes e o seu (auto)cuidado, por meio de suas representações7. Para análise das representações construídas sobre/no/a partir do cotidiano dos pesquisados, tomaram-se como referencial teórico os conceitos de representação e de cotidiano, formulados por Henri Lefebvre. Entendidas como a mediação entre o vivido (simultaneamente, individual e coletivo) e o concebido (concernente aos conceitos teóricos e ideologias), as representações constituem o percebido: ou seja, a consciência que interpreta (ao nível do senso comum) o vivido e a prática, pois não é possível “compreender e viver uma situação, sem representá-la”7 (p. 63). É por meio de suas representações, que se buscou apreender e interpretar o cotidiano dos pesquisados, segundo a concepção lefebvriana, que considera a relação dialética entre os três elementos que compõem a vida cotidiana, na sociedade capitalista: o trabalho, a família e o lazer (enquanto atividades exercidas no tempo livre das obrigações do trabalho e da vida doméstica)8. A análise pautou-se, portanto, pelo entendimento de que é por meio das representações, que os pesquisados podem refletir sobre: o tempo passado, no qual a doença ainda não determinava suas relações cotidianas, nem era por elas determinada; o tempo presente, do cotidiano mediado pela enfermidade e por relações vividas como ausência - com a perda do trabalho, e/ou o rompimento dos vínculos familiares ou afetivos, e/ou a intermitência das atividades de lazer -; e o tempo futuro, das possibilidades de mudança do cotidiano e melhoria das condições de saúde e qualidade de vida. O Quadro 2 descreve os entrevistados.

Quadro 2. Características dos pacientes (autodeclaradas em entrevistas) Nome

Idade (em anos)

Tempo de diagnóstico (em anos)

Situação ocupacional

Orientação sexual

Heitor

50

20

desempregado; “bico” como catador

Pedro

44

9

aposentado; homossexual esposa começou a trabalhar quando ele adoeceu, para ajudar a sustentar a casa

Saulo

46

22

aposentado

Relacionamentos afetivos e de convivência

heterossexual solteiro; mora com a mãe, irmãos e sobrinhos (ao todo, 20 pessoas) casado, 2 filhos; mora com a família constituída

heterossexual solteiro; namora com uma paciente do mesmo serviço de saúde; mora com a mãe

Fragmentos do cotidiano

ex-morador de rua; usuário de drogas e álcool; estigmatizado pela família (sobretudo, a mãe); culpabiliza-se pela doença, e pela não adesão agravada pelo relacionamento familiar soropositividade e homossexualidade reveladas à esposa, que insiste em manter casamento; adesão dificultada por depressão com a situação conjugal ex-usuário de álcool e drogas; preconceito social enfrentado devido à lipodistrofia; há 6 anos, escreve diário sobre sua trajetória de PVHIV. continua

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REPRESENTAÇÕES DOS PARTICIPANTES DE UMA INTERVENÇÃO ...

Quadro 2. continuação Nome

Idade (em anos)

Tempo de diagnóstico (em anos)

Henrique

26

3

Felix

43

25

Cícero

46

Rogério

Fausto

Situação ocupacional

Orientação sexual

Relacionamentos afetivos e de convivência

Fragmentos do cotidiano

bancário e homossexual solteiro; não vive com estudante de a família há 8 anos; Matemática/USP divide moradia com amiga

“imaginava” diagnóstico, “devido a comportamento de risco”; adesão dificultada por ele próprio

cabelereiro autônomo; homossexual solteiro; mora com o trabalhou em parceiro há 5 anos prostituição como travesti, na Itália

ex-viciado em drogas; sofreu preconceito de ex-patrão e vizinhos; alega não ter problemas de adesão

8

bancário; com homossexual solteiro; mora com afastamento há a mãe 18 meses, devido a internações e cirurgias

preconceito de tios e primos (mãe revelou sua soropositividade à família); irmão morreu de aids. Adesão intermitente e sem horário

40

7

desempregado

homossexual solteiro; voltou a morar com os pais, após perder o benefício do INSS

usuário de crack (irmão também usuário e soropositivo; pai alcoolista); sofre de depressão; adesão dificultada pela vida familiar

41

4

jardineiro autônomo

homossexual casamento heterossexual por 3 anos; 1 filho; voltou a morar com os pais e a irmã, após separação

alega que a família não saber da soropositividade e da homossexualidade compromete a sua adesão; teme adoecer e ser obrigado a revelar sua dupla condição

não declarou a idade (45-50 anos)

8

desempregado; heterossexual casado, 2 filhos; motorista em mora com a família empresa, foi constituída. Esposa foi despedido contaminada por ele ao revelar e se trata no mesmo soropositividade; serviço “ajuda” esposa em negócio de buffet

episódios de violência doméstica praticada por ambos. Sofre de depressão; já tentou o suicídio. No dia da entrevista, relatou ter “esquecido” a medicação em casa

Raul

32

10

aposentado; era escriturário no CEAGESP; atualmente, “bicos” como corretor de imóveis

homossexual solteiro; mora com a irmã

não tem “empatia com a médica”, mas “tem medo” de trocar; afirma não ter problemas de adesão

Manoel

43

12

bancário

homossexual mora com o parceiro, nos finais de semana; e com a mãe, durante a semana

além do parceiro, ninguém da família e do trabalho sabe da sua soropositividade. Teve dificuldade em aceitar o uso do MEMS

Osvaldo

continua

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Nasser ACA, Nemes MIB

Nome

Idade (em anos)

Tempo de diagnóstico (em anos)

Situação ocupacional

Orientação sexual

Relacionamentos afetivos e de convivência

Benedito

58

13

aposentado; tem contrato temporário em prefeitura de Ermelino Matarazzo, em serviços gerais

heterossexual 3 casamentos heterossexuais (viúvo 2 vezes, separado da última, com quem teve 2 filhos); mora com a tia e sobrinhos

saiu do trabalho (maître de churrascaria), do qual se aposentou, por sofrer preconceito. Diz não saber como se contaminou

Antenor

46

3

desempregado; recebe auxíliodoença, além de donativos de ONGs

heterossexual casamento heterossexual pela 2ª vez; 1 filha. Filha do 1º casamento faleceu. Mora com a esposa, a 2ª filha e os 2 filhos da esposa

alega que começou a ter sintomas do HIV, depois de tratamento dentário; o qual também seria a causa de ter passado “dois anos sem ter relação com a mulher”

Alberto

44

12

desempregado; homossexual breve casamento recebe auxílioheterossexual; mora doença; sozinho; encerrou trabalhava com a relacionamento irmã em fábrica homossexual de 1 de pães e bolos ano, sem revelar soropositividade a parceiro

não fala com a mãe há 4 anos; irmã caçula divulgou sua soropositividade à família. Faz tratamento para depressão; vive isolado

Cláudio

60

20

consultório homossexual casamento de “filosofia heterossexual por 11 clínica para anos; 1 filho adulto; empresários”; mora sozinho pleiteia Mestrado em Psicologia/ USP

soropositividade revelada apenas à ex-mulher e ao filho; para a família de origem, alega: “sou leucêmico”

Paulo

40

11 ou 12

inspetor de homossexual solteiro; há 2 anos alunos em escola voltou a morar com Fundamental; os pais, após retorno frequentou 1 do Japão, onde viveu ano de curso 10 anos de Comércio Exterior

não sabe precisar se é soropositivo há 11 ou 12 anos. Demorou a procurar orientação e tratamento, após diagnóstico

Firmino

50

13

demitido como operador de máquinas; sem aposentadoria, vive da indenização e do aluguel de 3 casas

homossexual casamento heterossexual por 5 anos; mora sozinho. “Desconfiava” da homossexualidade, “confirmada” após casamento

acha que família sabe, mas faz que não sabe. Gostaria de trocar de medicação, para sentir menos efeitos colaterais

Ernesto

51

2

era auxiliar de limpeza em hospital público; recebe auxílio-doença

homossexual solteiro; mora sozinho longo relacionamento com parceiro soropositivo, que morreu; está sozinho há 1 ano e não quer novos relacionamentos

artigos

Quadro 2. continuação Fragmentos do cotidiano

continua

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REPRESENTAÇÕES DOS PARTICIPANTES DE UMA INTERVENÇÃO ...

Quadro 2. continuação Nome

Idade (em anos)

Tempo de diagnóstico (em anos)

Situação ocupacional

Orientação sexual

Relacionamentos afetivos e de convivência

Juvenal

51

10

professor de inglês (particular e em escola de idiomas); 1º ano de Letras UNINOVE; estudo particular de alemão e francês

homossexual teve casamento heterossexual; mora sozinho

apenas ex-esposa sabe da soropositividade e homossexualidade. Afirma não ter tido apoio do médico, para “se conscientizar” sobre tratamento; pretendia trocar de médico

Misael

42

7

desempregado

homossexual solteiro; morava sozinho

usuário de drogas e álcool; à época da entrevista, recuperava-se de queda “inexplicável” do terraço de um prédio; faleceu 2 anos depois da entrevista

João

72

20

aposentado há homossexual solteiro, mora na 6 anos; trabalha casa da família onde como cuidador trabalha; e, nas da idosa de quem folgas, na casa da foi mordomo por mãe já falecida 43 anos

só namora rapazes jovens: o do último relacionamento tinha 26 anos. Afirma: “nunca me revoltei por tomar remédio”

Janaína

51

15

auxiliar de enfermagem; aposentada

sofreu preconceito da própria família e da do marido; temia que os filhos, já sem pai, também perdessem a mãe; dificuldades no tratamento, por preocupações com filho usuário de drogas

Guiomar

39

10

empregada heterossexual casada pela segunda doméstica, vez; 2 filhas e 3 netos; demitida mora com o segundo devido à marido e o primeiro soropositividade; neto demorou a ter novo emprego, do qual saiu

ex-alcoolista; contaminada pelo 1º marido, que se trata no mesmo serviço; sofre preconceito da família, sobretudo da mãe; parou de trabalhar, porque o “trabalho atrapalhava o tratamento”

Cleonice

45

12

emprego heterossexual casada pela 2a vez; registrado em viúva do 1º, que firma de limpeza; a contaminou. 3 foi faxineira filhos (1 de cada no GAPA e no casamento e 1 de Solidariedaids, um relacionamento). onde frequentou Mora com o marido e cursos e grupos os dois filhos menores de adesão

alega esquecimento da medicação pela “vida corrida”, e que vive bem com o HIV. Sofreu preconceito da família do primeiro marido, e de tias e primas

Bianca

44

18

dona de casa; heterossexual solteira; 3 faz “bico” como relacionamentos, catadora e 3 filhos de cada; recebe donativos contaminada pelo da Igreja católica primeiro parceiro; mora com o filho do último relacionamento, a irmã e o sobrinho

sofreu muito preconceito da mãe falecida; e ainda enfrenta o da irmã, com quem mora. Alega não esquecer da medicação, mas “perde” os horários da manhã

heterossexual viúva há 13 anos (marido, que a contaminou, contraiu aids em relação homossexual); 3 filhos e 2 netos; mora com os 2 filhos mais novos

Fragmentos do cotidiano

continua

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Nasser ACA, Nemes MIB

Nome

Idade (em anos)

Tempo de diagnóstico (em anos)

Situação ocupacional

Orientação sexual

Relacionamentos afetivos e de convivência

Rita

30

8

trabalhava em heterossexual casada e separada loja de shopping; 2 vezes; mora está aguardando com os 3 filhos do auxílio- doença; primeiro casamento. quer voltar a Contaminada pelo trabalhar primeiro marido

1º marido tentou asfixiá-la, quando ela pediu a separação; 2º marido (não soropositivo) roubou todo o seu dinheiro, quando ela esteve à morte. Quis participar da pesquisa, por quase ter morrido

Vilma

46

8

empregada doméstica; quer pedir demissão, e encontrar trabalho mais leve

heterossexual 3 relacionamentos heterossexuais; contaminada pelo 2º parceiro, com quem viveu 4 anos. 3 filhas; mora com a solteira e dois netos

diagnóstico resultou em autopercepção como “mulher que não prestava”; temia ser estigmatizada pelos irmãos, que já julgavam seus relacionamentos não conjugais

Flávia

42

15

auxiliar de limpeza em hospital

heterossexual casada; 2 filhos; mora com a família constituída

marido, que a contaminou e se trata no mesmo serviço, impediu-a de colocar os MEMS à vista de visitas

Marta

43

16

aposentadoria e pensão do marido

heterossexual viúva com filho, foi infectada pelo marido. Teve mais 1 filho de relacionamento já desfeito. 1º filho nasceu soropositivo e negativou. Mora com os pais e os dois filhos

teve experiências com drogas e álcool. Disse compreender preconceito da família do 2º parceiro, por serem sorodiscordantes. Medo de 2º filho ter HIV levou-a a cogitar abortar

artigos

Quadro 2. continuação Fragmentos do cotidiano

Fonte: entrevistas coletadas pela autora principal, entre setembro de 2008 e fevereiro de 2009, no serviço de saúde mencionado.

Resultados e análise (f) Os nomes dos entrevistados são fictícios, para preservar seu anonimato.

“Quem atrapalha meu tratamento sou eu!” (Heitor)(f)

Essa afirmação, feita pelo entrevistado com objetividade cortante, mas olhar e voz carregados de sofrimento, repetiu-se sob diferentes formas nos relatos de outros homens que participaram da pesquisa. Reveladora de como as relações sociais são interpretadas como questões individuais e pessoais, quando as PVHIV autoavaliam seu papel e lugar na luta diária contra a doença, a fala de Heitor traz para a análise duas problemáticas complementarmente centrais, no conjunto das entrevistas: a dupla determinação da relação entre cotidiano e não/adesão à TARV; e as estigmatizações enfrentadas ao viver esse cotidiano.

a) A adesão e o cotidiano O termo “entrevistados” referese ao conjunto do(a)s pesquisado(a)s; enquanto “grupos” concerne às especificidades entre/ intra pesquisado(a)s. (g)

Inúmeras passagens das falas dos entrevistados(g) evidenciam seu reconhecimento de que as dificuldades - vivenciadas nas relações no trabalho, vida familiar, relacionamentos afetivos, lazeres - interferem diretamente em seu tratamento, levando-os a se descuidar da adesão: “pode ser que quando arrumar

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trabalho, isso vai me motivar pro tratamento” (Misael); “estava desempregado e com outras coisas... então, foi passando... Um tempo depois, fui informar, pra saber se precisava fazer o tratamento” (Paulo); “passei por um período muito complicado... [meu filho] usou crack, cocaína... e não tem como separar...! Um dia, eu tomava [medicação] às oito, outro às dez... meia-noite...” (Janaína). A doença é mais um dos graves e muitos problemas que enfrentam cotidianamente; mas não é o único, e, em certos momentos e circunstâncias, nem mesmo o principal: “na verdade, minha adesão não é adesão ao remédio; é mais adesão à vida... porque medicação... nunca tive problema de aceitar” (Pedro). São vários e complexos os fatores que os impedem de se relacionar plenamente com a vida, cuidando da doença. Quando descobriram a soropositividade, foram constantemente assombrados pela representação da iminente e inevitável brevidade da vida. Hoje, superada a crença nesse ‘sentenciamento’ – “eu achava que era pena de morte, mesmo!” (Antenor) –, e precisando buscar formas de con/viver com a doença tornada crônica, a adesão ao tratamento seria a grande questão de seu cotidiano, se tantas outras também não o fossem: a falta de trabalho, de relacionamento afetivo, de condições de vida, de (auto)cuidado; a falta, enfim, de “adesão à vida”, como bem resumiu Pedro. Nas rupturas de seu cotidiano de PVHIV, a adesão à TARV constitui um elemento fundamentalmente determinante para a realização das atividades diárias, que, entretanto, interpõem um constante desafio à inclusão do tratamento nesse viver: “eu trabalhava muito; às vezes, esquecia [do medicamento]... quando ia lembrar, estava no trem, no trabalho... chegava tão cansada... esquecia...!” (Rita). A possibilidade de aprender formas de enfrentar esse desafio é o fator que mais o(a)s motivou a aceitar participar da pesquisa: “não é fácil tomar essas medicações direitinho... é difícil nosso dia a dia... é tão tumultuado de coisas para fazer!” (Marta). Os ‘esquecimentos’ da medicação ocorrem pela quebra da rotina diária - “não vou falar que não esqueço; é impossível! Tem vezes, que não estou em casa... esqueço de levar...” (Firmino) -; ou, inversamente, por parte dessa rotina já ter sido cumprida: “é muito mais fácil alguma coisa me fazer acordar, do que evitar eu dormir” (Manoel). Se, nos finais de semana, atividades de lazer os fazem ‘esquecer’ a medicação, para evitar a discriminação de terceiros – “quando você vai pra casa de alguém, tem que tomar escondido” (Cleonice) -; nos dias de semana, esses ‘esquecimentos’ são mais comuns pela manhã, entre os homens sem trabalho, e as mulheres sobrecarregadas pela rotina doméstica: “à noite, sempre tomava mais certo, porque você ‘tá mais calma dos seus afazeres; mas, durante o dia, você desliga, porque você se liga em filho, nas coisas para fazer...” (Marta). Como a ocupação com as atividades cotidianas constituía a justificativa mais comum para esses ‘esquecimentos’, as profissionais da intervenção lhes sugeriam, durante as cenas, pequenos arranjos na rotina diária: afixar lembretes em locais visíveis (geladeira, espelhos); programar o celular para o horário da tomada: “falei pra ela [profissional], que comprei o celular por causa da pesquisa. Não tinha o hábito de tomar meus remédios na hora certa; não sabia da diferença de horário. E, durante esses encontros, chegamos no meio de como fazer” (Pedro). Mas, por que arranjos, aparentemente tão simples, não foram anteriormente pensados? Suas histórias de vida mostram um cotidiano opressivo, fragmentado8 e (auto)isolado, que dificulta o re/ conhecimento de formas de cuidado, que, entretanto, só podem ser formuladas e praticadas nesse cotidiano; pois “solução, a gente sempre tem, e, às vezes, não queremos ir de encontro a ela” (Pedro). Na intervenção, esse re/conhecimento é oportunizado pela vivência das cenas6, ao examinarem sua vida, como se estivessem fora dela, mas podendo atuar sobre ela, desvendando, graças ao diálogo com a profissional, algumas estratégias ocultadas em/por seu cotidiano. Intermitentemente ausente da realidade de seu cotidiano, a medicação está sempre presente em suas representações: “[o remédio] significa que tenho que ficar tomando ele pro resto da vida” (Bianca); “sem ele, é praticamente um atestado de óbito” (Marta). Entretanto, a consciência da importância da medicação nem sempre encontra tempo e espaço de inserção no cotidiano, resultando, então, na ‘rotina’ da não adesão, de que fala Juvenal: “essa perda do primeiro dia... de uma hora a mais, uma a menos... acaba te levando a um costume, uma frequência, porque a coisa é tão ingênua... [...] que você acaba acreditando que uma vez, duas, três, não vai acontecer nada. Mas, aí, você 670

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artigos

acaba entrando numa rotina: um dia, é aula; outro dia, vai sair... vai dormir mais cedo... não estava se sentindo bem... e assim vai...”. A ‘rotina’ da não adesão traduz a impossibilidade de seu cotidiano ser vivido em sua configuração plena8, seja pela perda das relações de trabalho, e/ou a esporadicidade das atividades de lazer, a deterioração dos vínculos familiares, a instabilidade dos relacionamentos afetivos: “hoje, falo que se não fosse minha mulher, eu tinha ficado na rua... porque a gente perde totalmente a referência de tudo” (Antenor). A vida da grande maioria é, então, pautada pelo (auto)isolamento e ocultações do viver com HIV, resultantes das situações de preconceito e discriminação enfrentadas nos múltiplos âmbitos de sua prática social. Com a ruptura de seu antigo modo de vida, passam a viver conforme as novas circunstâncias lhes permitem ou impõem. São particularmente sofridos alguns relatos de homens solteiros que, por dificuldade financeira associada ao agravamento das condições de saúde, foram obrigados a voltar a morar com familiares que desconhecem, ou não aceitam, a sua condição de PVHIV: “eu morava sozinho... com o benefício cortado, fui despejado, tive que vender minhas coisas. Infelizmente, voltei pra casa dos meus pais... entrei em depressão; não quero mais saber de tomar medicação!” (Rogério). Às mudanças ocorridas na vida familiar e de trabalho, soma-se a dificuldade de manter antigas atividades de lazer (“não estou mais com ‘pique’ pra sair” (Firmino)), e de estabelecer relacionamentos afetivos9 – “todas as vezes que me pergunto, acho que não vale a pena entrar num relacionamento” (Janaína) –, representados no dilema entre o desejo de construí-los e o medo de sofrer novas perdas: “[falta] de arrumar alguém que goste de mim, que queira ficar comigo... mas, não me vejo mais morando com ninguém” (Vilma). A representação dessa ambivalência é reforçada por condições de saúde que justificam a (auto) rejeição (“a lipodistrofia acabou comigo; não tem como manter autoestima com um corpo assim!” (Janaína)), e agravam a solidão afetiva: “tem sete anos, que não tenho relacionamento com homem nenhum” (Bianca); “pra mim, tem que ser uma pessoa... por isso, é só relacionamento volúvel... mais pra satisfação sexual, do que convivência emocional” (Pedro). A vivência dessas experiências de (auto)rejeição nos espaços de relações pessoais e sociais explica seu (auto)isolamento: “minha família mora perto de mim, mas não existo para eles. Isso machuca muito! Estou isolado. Só venho mais para as consultas; não saio de casa” (Alberto); “de repente, me isolei dentro de casa; a depressão veio de tal jeito... perdi meu controle... caí profundamente no álcool, comecei a usar drogas... estava quase perdendo minha esposa, porque ela não aguentava mais” (Osvaldo). Embora atingindo momentos de menor ou maior intensidade, a depressão9 constitui importante elemento de seu cotidiano, desde a descoberta da soropositividade, por geralmente combinados motivos: brigas com familiares, causadas por preconceito e discriminação; inconformismo com mudanças no antigo modo de vida e estranhamento ao novo; receio de depender da ajuda e/ou cuidados de familiares; temor de faltar aos filhos não criados; cansaço, desânimo, ou revolta, pelo tratamento “pro resto da vida”; mas também, medo da morte que, mesmo representada como sempre à espreita, não impede que continuem não se cuidando. Diante desse cenário, a ideia de suicídio9 já rondou e ainda atormenta vários deles, como Osvaldo, que chegou a tentar. A depressão também acarretou ou agravou o uso de álcool e/ou drogas9, representados como saída para escapar da opressão do cotidiano de PVHIV: “Depois que descobri [a soropositividade], tinha dia que nem ia em casa; saía do serviço e já ia beber. Fiquei assim seis meses. Imagina... vou morrer mesmo... não tenho nada que perder!” (Guiomar); “A gente quer ver se dá um jeito no sofrimento, através da droga, da bebida... Eu mesmo não consegui fazer tratamento. Sabia que estava doente, mas só eu sabia. Então, eu bebia, fumava, cheirava... mas ficava sozinho; sempre sozinho!” (Heitor). O (auto)isolamento é a resposta mais frequente ao preconceito, que apenas dois homens solteiros alegam não sofrer na família de origem: “minha família sabe; procuro não esconder nada, para facilitar as coisas; isso me ajudou muito” (Cícero). Enquanto os demais solteiros e os casados (auto)isolam-se da família (vivendo, ou não, com ela); as mulheres se (auto)isolam na família que constituíram, mas 671


REPRESENTAÇÕES DOS PARTICIPANTES DE UMA INTERVENÇÃO ...

geralmente se afastam da/ou são afastadas pela família de origem: “tenho dois irmãos aqui em São Paulo; faz dois anos que não vou na casa deles. Eles nem me ligam pra saber como estou; se ‘tô viva, se ‘tô morta...” (Vilma). As dificuldades de relacionamento familiar são uma constante na vida dos que acabaram revelando sua soropositividade, e que, salvo raras exceções, enfrenta(ra)m o preconceito: “venho de uma família muito machista e ignorante. Minha irmã... eu soube que o netinho dela não pode se aproximar de mim, que senão eu poderia estar acabando com a vida dele. Meu pai foi muito preconceituoso...!” (Juvenal); “minha irmã tinha nojo de mim... não deixava eu lavar a minha roupa no tanque... Até hoje, não come as coisas que faço” (Bianca). Os episódios de comprometimento das condições de saúde geralmente impossibilitam que o cotidiano de PVHIV permaneça ocultado: “contei, porque começou a aparecer a lipodistrofia” (Saulo); “principalmente quando eu ‘tava debilitado, dava a impressão de estar escrito na minha cara o que eu tinha” (Pedro). A revelação é feita, usualmente, a algum parente de maior proximidade afetiva e de convívio, que, contraditoriamente, encarrega-se de propagar a notícia, acarretando-lhes experiências de preconceito e discriminação: “por causa da minha família, o bairro inteiro sabe que tenho [HIV]. [...] Me revolto por causa disso. Não pela doença, e sim, pela sociedade... e pela minha família” (Alberto). Quando as dificuldades de saúde ficam evidenciadas por meio de mudanças na aparência, trazendo-lhes estigmatizações pelas abominações do corpo10 (p. 14), muitos tentam omitir a real finalidade da medicação, alegando sofrer de outra doença social e moralmente aceita – como câncer, que, aliás, alguns já tiveram (em decorrência da aids), “porque as pessoas têm a ideia que quem tem aids, é magro ... e eu, gorda, obesa, com lipodistrofia, não vou ter aids nunca! [risos]” (Janaína). Para tentar evitar a estigmatização pelas culpas de caráter individual10 (p. 14), buscam constantemente ocultar, sobretudo de familiares, as vivências de situações de vulnerabilidade (anteriores à soropositividade, ou atuais: relações sexuais sem proteção, diferentes parceiros ocasionais), agora representadas, por eles próprios, como comportamentos desviantes (p. 151): as relações HSH (homens que fazem sexo com outros homens), entre a maioria dos homens solteiros, e cinco ex-casados e um casado, também considerados adúlteros; a contaminação por relações heterossexuais de três homens casados – igualmente adúlteros –, e dois solteiros, já estigmatizados como drogados, pelos familiares; a recusa de um homem casado e uma mulher solteira em admitirem a causa de sua contaminação; e o atributo de duplamente traídas autoconferido pelas demais mulheres, que imputam sua contaminação aos maridos ou parceiros infectados em relações HSH (Quadro 2). Nesses contextos de dupla ocultação da soropositividade, a estigmatização dos entrevistados estaria precedida de estigmas atribuídos como identidade social a segmentos desacreditados10 na vida em sociedade (os homossexuais, os adúlteros, os drogados, as mulheres traídas); acarretando-lhes preconceitos e discriminações referentes a esses atributos10, que passam a aceitar como constitutivos de sua identidade individual. Enfrentam, assim, um dilema tão cruel quanto a soropositividade, entre revelar e ocultar esses atributos, como também o cotidiano de PVHIV, embora essa ocultação pareça quase um jogo, em que alguns familiares finjam não saber o que já sabem: “talvez deduzam que seja isso. Sabem que estou fazendo tratamento, mas não sei se sabem exatamente o quê; não perguntaram; não fizeram questão. Se perguntassem, eu contaria” (Paulo). Já, o grupo das mulheres não teve opção de ‘não/contar’ à família dos parceiros, visto que o adoecimento deles pela aids, culminando em morte (cinco casos), ou no fim do relacionamento (dois casos), revelou a contaminação delas próprias. Embora autorrepresentando-se como duplamente traídas, enquanto vítimas do adultério e da infecção transmitida pelos parceiros, elas são representadas como adúlteras, pelas mães e/ou irmãs de seus companheiros, sendo ainda responsabilizadas pela doença deles: “acredito, até hoje, que a mãe dele, a família pensa que quem passou para ele, fui eu” (Rita, separada do marido que a infectou); “ele fala que fui eu que contaminei ele” (Flávia, a única ainda casada, e cujo marido se trata no mesmo serviço de saúde). Também no relacionamento com a família de origem, a representação da possibilidade de estigmatização ou sua real experiência levam 672

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artigos

essas mulheres a se isolar no convívio exclusivo com filhos/e netos: “queria chegar na casa da minha mãe, e ela me dar atenção: ‘filha, como você ‘tá? Como ‘tá o seu tratamento?’. Ela nunca fez isso!” (Guiomar). Para os HSH, solteiros ou ex-casados, a estigmatização pelo HIV é representada como duplamente problemática, por conter implicitamente o estigma da homossexualidade, representado como ainda mais grave do que a doença, pela família de origem: “minha mãe morreu há 2 anos; nunca falei pra ela que tinha HIV... eu era o alvo maior do preconceito dela” (Claudio, ex-casado). Por isso, para a maioria deles, o (auto)isolamento ocorreu como uma forma de evitar a dupla revelação, acarretando a saída da casa paterna: “não vou quase nunca lá; eles nunca foram na minha casa. Nem por telefone, a gente se fala. Eles são pessoas muito preconceituosas em relação a tudo: não sabem que sou gay, mas têm muito preconceito em relação a homossexuais” (Henrique, solteiro). O (auto)isolamento é por todo(a)s representado como, talvez, a única forma possível de enfrentar a (auto)estigmatização, em seu cotidiano de PVHIV: “acho que o preconceito maior somos nós, conosco mesmo” (Pedro); “porque o que está na cabeça da gente não é tanto a doença, é o preconceito” (Flávia). Presente exclusivamente nos grupos dos homens, a (auto)culpabilização10 pela doença e pelo cotidiano que a determinou – “não foi muita surpresa... porque eu tinha tido relação de risco, sem preservativo” (Pedro); “se você chegou a contrair o vírus, é porque tinha uma vida mais desregrada do que o normal” (Manoel) – encontra no (auto)isolamento a alternativa possível para a remissão do passado. Assim, consideram a infecção quase como uma segunda chance de vida; como oportunidade para o exercício do autocuidado que poderá redimi-los do antigo comportamento desviante, mesmo que seja para viver em um cotidiano normalizado e normatizado pelo vírus: “o vírus tem um lado ruim, que é o preconceito, e um bom, que eu era drogado, e se não fosse o vírus, como eu ia parar? Então, o vírus ajudou!” (Saulo); “o HIV, para mim, veio na hora certa. Acho que se ainda não tivesse me contaminado, teria morrido de overdose, que acharia pior... espiritualmente falando” (Felix).

b) A intervenção e suas representações Mas, se o vírus o(a)s alerta para a necessidade do autocuidado, é com a intervenção, que a maioria passa a compreender a importância do próprio papel no enredo do tratamento: “a pesquisa me levou a essa aderência de responsabilidade comigo; me ajudou a conviver melhor com a doença” (Pedro). A participação na pesquisa possibilita-lhes reconhecer as dificuldades em assenhorear-se plenamente do tratamento, por julgarem-se incapacitados ou desautorizados a opinar sobre seu autocuidado. Reproduzindo a recorrente relação assimétrica médico-paciente2, somam ao bordão “meu médico sabe o que é melhor para mim”, a representação de que o médico não “está lá para ouvir problemas”: “consulta é aquela coisa: ‘‘tá tudo bem com você? ‘Cê tomou direitinho o medicamento?’ No encontro [da pesquisa], já falava mais de mim, dos meus problemas... que eu não posso pegar a doutora, que tem lá o horário corrido, pra ficar falando pra ela tudo!” (Raul). São comuns os relatos de que a intervenção oportunizou a compreensão da importância do diálogo médico-paciente, como instrumento para construção e/ou aprimoramento da adesão, pois “o relacionamento médico/paciente tinha que ser revisto... o médico tentar descobrir quem é o paciente. Nós não tínhamos grandes comunicações. Pra mim, a pesquisa em si foi o que ajudou” (Juvenal). Os encontros da intervenção também acarretaram mudanças na relação deles com o serviço, oportunizando a assistência por outros profissionais da equipe, para problemas relacionados à TARV: alimentação, depressão, ansiedade, dependência de álcool e drogas, baixa autoestima, etc.: “foi a partir da pesquisa, que comecei a fazer o tratamento com a psiquiatra... me ajudou muito!” (Cícero). Mesmo aceitando participar de pesquisa voltada à melhoria da adesão, alguns homens tentavam dissimular seu papel de sujeitos da pesquisa para o de meros colaboradores na descoberta de novos tratamentos - “contribuir com a pesquisa... não eu como pessoa... que eu estivesse precisando; e sim, ajudando” (Cícero); “porque algumas pessoas esquecem da medicação” (Paulo) -; ou, então, caracterizando suas dificuldades de adesão como pontuais: “como a minha carga viral passou a detectar, achei que tivesse alguma coisa a ver fazer a pesquisa” (Rogério). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Entretanto, cabe ressalvar que a quase totalidade dos entrevistados assumiu plena e convictamente seu papel de sujeito de um estudo, que, além de oportunizar o aprendizado sobre o uso correto da medicação – “na pesquisa... acho que vocês vão se interessando mais para saber, e eu também vou me interessando em saber melhor” (João); “aprendi muita coisa: o que fazer e não fazer, como tomar e não tomar o remédio” (Benedito) –, propiciava-lhes “conversar sobre coisas que a gente não quer aceitar; e se tem uma pessoa te orientando, depois você raciocina: ‘realmente, é verdade o que ela me falou’” (Rita). O aprendizado oportunizado pela pesquisa lhes permitiu identificar, como sua dificuldade maior, o seguimento dos horários do tratamento em seu cotidiano desordenado, de modo a garantir o nível de adesão conquistado quando a tomada das medicações era monitorada e incentivada nos encontros com as profissionais: “a pesquisa significou adesão ao tratamento; abriu minha mente para isso. No primeiro mês, fui 100% ‘britânico’ para tomar a medicação, no segundo, relaxei um pouco, e no terceiro, mais; agora, sou 60% ‘britânico’, mas não deixo de tomar...” (Manoel). É por meio das cenas6 trabalhadas na intervenção, que ‘tomam consciência’ dos fatores do cotidiano que dificultam ou impedem sua adesão, e passam a compreender a importância de fazer da conscientização do autocuidado, um instrumento de transformação do modo de vida: “Teve um momento da pesquisa que me marcou mais, que a gente fez uma espécie de vivência... sobre a hora que eu saía de casa pro trabalho, e pegava meus remédios. Na hora que estava fazendo isso... eu parei, eu travei! Justamente, na hora de pegar os remédios! Até hoje, não sei por que isso aconteceu; o que isso quer dizer... mas... se pudesse ‘chutar’ um momento da pesquisa, seria esse o momento que passei a tomar o remédio” (Henrique). Também outros entrevistados enfatizaram a importância desse terceiro encontro (realização das cenas), que costumavam relacionar ao quarto encontro (totalidade da experiência), representando ambos como momentos particularmente propiciadores do despertar da consciência para a adesão: “achei que eles faziam você pensar mais. Foi tipo uma reflexão... que era analisar tudo que você [mesmo] falou” (Saulo). Suas histórias de vida e a relação construída com a profissional determinaram a identificação dos encontros (Quadro 1) mais significativos para a conscientização da importância da adesão: que, exemplificando, foi para Fausto, “mais o primeiro... que eu contei tudo a minha história, desde que me conheço de gente, até o momento que estava com ela [a profissional]”; e para Cleonice, o segundo: “aquele que ela pegou no meu pé”, [sobre] “meu problema de esquecer” [a medicação]. Em contrapartida, a totalidade da intervenção é unanimemente valorizada pelos entrevistados, graças ao aprendizado adquirido: “gostei de todos, porque cada um era uma... vitória... uma diferença de vitória. É tipo uma escola, onde eu estava aprendendo... fui aprendendo e aprendendo mais...” (Saulo). Porém, isso não impede que alguns contraponham a positividade dos encontros, que legitimam sua participação na pesquisa, à obrigatoriedade do uso do MEMS3, pela qual declaram que “não gostariam” de participar novamente de estudo clínico semelhante: “achei aquela tampinha um porre! Não fico pegando o remédio na hora de tomar, pego tudo antes; mas, se pegasse antes, teria que anotar... imagina?! Eu mal tomava o remédio...!” (Henrique). Alguns homens também rejeitam o MEMS, por se recusarem a admitir sua não adesão (“sou um homem maduro; sei que tenho que tomar o remédio nessa hora” (Cláudio)); ou tentando justificar que a abertura dos frascos poderia dificultar sua adesão, expondo-os a novas experiências de discriminação, no ambiente doméstico e/ou de trabalho. Todos os entrevistados compreendem, contudo, a pertinência do uso do MEMS associadamente aos encontros, pois é graças ao aprendizado quanto à obrigatoriedade das doses diárias e regulares, que se evidencia para ele(a)s a relação, trabalhada nos encontros, entre a adesão e seu cotidiano, possibilitando-lhes compreender que, sem transformar seu modo de viver a vida e de se cuidar, não lhes será possível alcançar a adesão que tornará seu cotidiano viável: “[a pesquisa] te expõe a tudo; não esconde nada: tanto os efeitos [da medicação], como a vida pessoal... normal, diária do paciente, aqui [serviço de saúde] e em casa” (Alberto); “a pesquisa? Então, assim... a verdadeira consciência... tipo ‘já me ensinaram a andar; agora, vão me soltar’” (Juvenal). 674

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Com a intervenção, eles aprendem, portanto, a re/interpretar e re/inventar sua relação com o tratamento, podendo, oportunamente, fazer do legado desse aprendizado, o seu guia para encontrar a melhor forma possível de mudar a vida para viver a vida: “a pesquisa foi um reinício de tudo. Não significa que eu estivesse dormindo... mas estava num estado, talvez, semelhante: fazendo a coisa legalzinho, na maior parte do tempo, mas sem aquela verdadeira consciência: ‘PRE-CI-SO’!” (Juvenal); “eu era conivente comigo mesma” (Rita).

Conclusões A vida em segredo representa o cotidiano dos entrevistados. Na tentativa de evitar a estigmatização social relacionada ao HIV, o viver diário desses homens e mulheres é pautado por estratégias de ocultação, cuja consequência mais frequente, e também grave, é o comprometimento de sua adesão ao tratamento. São muitos os relatos de preconceitos e discriminações sofridos em diferentes espaços de relações sociais; mas, indubitavelmente, é no contexto familiar que as experiências são mais recorrentes e mais dramáticas, pois elas se somam a estigmatizações já existentes, ou virtualmente possíveis. A vulnerabilidade à doença acarretou, para todo(a)s, a permanente vulnerabilidade ao preconceito e à estigmatização. Daí, por exemplo, a dramática tentativa de ocultar das famílias de origem a homossexualidade, reportada por dez entre 12 entrevistados, do grupo dos homens solteiros; e seis entre nove, do grupo dos ex-casados, que se dissimularam no casamento heterossexual. A ocultação da identidade socialmente atribuída10 é representada como a forma possível de viver a identidade individual; mesmo para Pedro, que confinou dentro de casa a homossexualidade revelada à esposa, que, entretanto, insiste em não o libertar. Mas, se Pedro, assim como o grupo de mulheres, ocultam-se da família de origem, para viver em segredo a condição de PVHIV dentro do espaço doméstico da família constituída; os homens solteiros e ex-casados precisaram, inversamente, evadir dele, para poder assumir a homossexualidade e/ou enfrentar a soropositividade: Saulo se refugiou na itinerância e anonimato do trabalho em circo; Felix passou longo tempo na Itália, para poder viver anonimamente como travesti; Paulo viveu dez anos no Japão; Henrique passou um ano na Argentina; Heitor morou longo tempo na rua; Cláudio, Alberto, Firmino, Juvenal e Fausto casaram-se para ocultar da família os relacionamentos HSH; Raul, Ernesto e Rogério abandonaram a casa paterna; Benedito aproveitou oportunidades de trabalho, para ausentar-se da família por anos; Manoel mora durante a semana com a mãe, e nos finais de semana com o parceiro, ocultando sua homossexualidade de vizinhos e familiares, respectivamente; João viveu 43 anos na casa de família, onde trabalhou como mordomo; Osvaldo se ausentou de tudo, por meio da bebida e drogas; Antenor ‘trancou-se’ na depressão, isolando-se da esposa e filhos; Misael ocultou-se do próprio tratamento e faleceu dois anos depois da entrevista. A consequência imediata do rompimento das relações familiares é a vivência de um cotidiano fragmentado, em cuja desorganização e errância o (auto)cuidado não costuma encontrar tempo e lugar. Como tomar a medicação regularmente, realizar os exames clínicos, comparecer às consultas, alimentar-se e dormir bem, evitar álcool e drogas, manter a autoestima, afastar-se da depressão, man/ter relacionamentos afetivos, tendo, ao mesmo tempo, de ocultar a real identidade, para viver uma vida em segredo? A intervenção, por meio das longas conversas com as profissionais e a dramatização das cenas vividas no cotidiano, oportunizou aos entrevistados espaço e tempo para buscar novas formas possíveis de organizar sua vida e seu viver. Despertou neles a consciência – ocultada, para conseguirem ocultar o cotidiano de PVHIV – de sua capacidade para, com recursos e condições próprios, procurar inserir o tratamento em seu modo de vida. Mostrou-lhes, enfim, a possibilidade de protagonismo e autonomia para encontrar o caminho possível do (auto)cuidado, retirando os véus que ocultam o seu viver: “os encontros...? É a mesma coisa que... uma pessoa viva, carregando uma pessoa morta nas costas; quando tira aquele morto, você sente, né? Então, as coisas que eu consegui falar, eu me senti muito bem! Tirei aquele peso das minhas costas!” (Saulo). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Colaboradores A primeira autora, Ana Cristina Arantes Nasser, foi responsável pela concepção e desenvolvimento do estudo qualitativo, pela coleta e análise do material empírico, bem como pela redação e revisão do manuscrito. A segunda autora, Maria Ines Battistella Nemes, coordenadora da linha de pesquisa Qualiaids, foi responsável pela supervisão do estágio pós-doutoral da primeira autora, e também contribuiu na revisão do manuscrito.

Referências 1. Nemes MIB, Castanheira ERL, Helena ETS, Melchior R, Caraciolo JM, Basso CR, et al. Adesão ao tratamento, acesso e qualidade da assistência em Aids no Brasil. Rev Assoc Med Bras. 2009; 55(2):207-12. 2. Melchior R, Nemes MIB, Alencar TMD, Buchalla CM. Challenges of treatment adherence by people living with HIV/AIDS in Brazil. Rev Saude Publica. 2007; 41 Supl 2:87-93. 3. Basso CR, Helena ETS, Caraciolo JMM, Paiva V, Nemes MIB. Exploring ART intake scenes in a human rights-based intervention to improve adherence: a randomized controlled trial. Aids Behav. 2013; 17(1):181-92. doi: 10.1007/s10461-012-0175-4. 4. Santos MA, Nemes MIB, Nasser ACA, Basso CR, Paiva V. Intervenção em adesão baseada na abordagem construcionista do cuidado: perspectivas dos profissionais de saúde. Temas Psicol. 2013; 21(3):651-73. 5. Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Cepesc, IMS/UERJ, Abrasco; 2009. 6. Paiva V. Cenas da vida cotidiana: metodologia para compreender e reduzir a vulnerabilidade na perspectiva dos direitos humanos. In: Paiva V, Ayres JRCM, Buchalla CM, organizadores. Vulnerabilidade e Direitos Humanos: prevenção e promoção da saúde. Livro I: da doença à cidadania. Curitiba: Juruá; 2012. p. 165-207. 7. Lefebvre H. La présence et l’absence: contribution à la théorie des représentations. Bruxelas: Casterman; 1980. 8. Lefebvre H. La vida cotidiana en el mundo moderno. Madri: Alianza; 1972. 9. Peretti-Watel P, Spire B, Groupe ANRS-VESPA. Sida: une maladie chronique passée au crible: enquête nationale sur le quotidien des personnes infectées. Nantes: Presses de l’EHESP; 2008. 10. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar; 1978.

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Nasser ACA, Nemes MIB. Representaciones de los participantes de una intervención psicosocial para mejorar la adhesión al tratamiento del SIDA. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):661-77. Este artículo presenta la investigación y el análisis cualitativo de las representaciones construidas por 29 pacientes sobre la experiencia de su participación en intervención psicosocial para mejorar la adhesión al tratamiento antirretroviral, realizada en servicio de referencia en EST/SIDA del estado de São Paulo (Brasil). Con objetivo de aprehender, comprender y explicar la relación entre el cotidiano de los pacientes y su adhesión al tratamiento, se realizaron entrevistas semiabiertas de larga duración para investigar si, cómo y por qué la experiencia vivida durante la intervención transformó tal relación. El análisis cualitativo resultante de esta investigación indica que, al brindarles la oportunidad de concientizarse sobre la importancia del (auto)cuidado en el uso prescripto y continuo de la medicación, la intervención condujo a los pacientes a aprender formas propias de introducir la adhesión en su cotidiano, para poder transformarlo mediante la mejora de esa adhesión.

Palabras clave: SIDA/tratamiento. Adhesión del paciente. Cotidiano. Representaciones. Intervención psicosocial.

Recebido em 05/03/15. Aprovado em 23/10/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0274

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Avaliação do profissionalismo em estudantes da área da saúde: uma revisão sistemática Erica Toledo de Mendonça(a) Rosângela Minardi Mitre Cotta(b) Vicente de Paula Lelis(c) Paulo Marcondes Carvalho Junior(d)

Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM. Assessment of professionalism in students of health-related courses: a systematic review. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):679-90.

Professionalism has been intensely debated in the last decade on the global stage and especially in the USA, and has been recognized as a skill that should be developed by all health professionals. Objective: The aim of the present study was to assess professionalism among graduates of health-related courses on a worldwide scale. Methods: Systematic review following the recommendations of the Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA). Results: The review found seven studies that included an assessment of professionalism. Of these seven articles, two were close to the levels of “Knows” and “Knows how” on Miller’s adapted pyramid for assessing professionalism. The other five studies were more related to the levels of “Shows” and “Does”, demonstrating a practical dimension for the assessment. Evaluating professionalism is a great challenge. Further studies are required to measure other, more global aspects of professionalism.

Keywords: Professionalism. Teaching and learning. Assessment.

As discussões sobre profissionalismo ganharam destaque nos últimos dez anos no cenário mundial, especialmente nos Estados Unidos, ao ser reconhecido como uma competência a ser desenvolvida pelos profissionais. Objetivo: verificar as publicações sobre profissionalismo na literatura mundial, destacando como tem sido sua avaliação em estudantes da saúde. Métodos: estudo de revisão sistemática, conduzido a partir das recomendações do guia Preferred Reporting Intems for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) adaptado. Resultados: foram encontrados sete estudos que abordaram a avaliação do profissionalismo. Destes, dois artigos se aproximaram dos níveis “Knows” e “Knows how” da pirâmide adaptada de Miller para avaliação do profissionalismo, ao passo que cinco dos estudos foram inseridos nos níveis “Shows” e “Does”, demonstrando uma dimensão prática da avaliação. A avaliação do profissionalismo representa um grande desafio, o que evidencia a necessidade de estudos que mensurem seus aspectos mais globais.

Palavras-chave: Profissionalismo. Ensino e aprendizagem. Avaliação.

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Departamento de Medicina e Enfermagem, Universidade Federal de Viçosa (UFV). Avenida PH Rolphs, s/n, campus Universitário. Viçosa, MG, Brasil. 36570-900. erica.mendonca@ufv.br (b) Departamento de Nutrição e Saúde, UFV. Viçosa, MG, Brasil. rmmitre@ufv.br (c) Pró-Reitoria de Ensino, UFV. Viçosa, MG, Brasil. vlelis@ufv.br (d) Faculdade de Medicina de Marília. Marília, SP, Brasil. marcondes.paulo@ gmail.com (a)

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Introdução As tendências contemporâneas das práticas de cuidados em saúde têm se tornado alvo de debates e reflexões à medida que avançamos no século 21. As desigualdades em saúde visualizadas dentro e entre as nações, quer no âmbito cientifico, tecnológico, social e de formação, necessitam serem reexaminadas, trazendo, para o exercício dos papéis profissionais, os conceitos relacionados à cidadania plena, à globalização, à responsabilidade social e ao profissionalismo, engendrando caminhos possíveis para a superação dos desafios existentes na práxis1,2. Nesse sentido, os debates atuais sobre o processo de ensino e aprendizagem na área da saúde colocam em evidência uma formação profissional que prime pela qualidade dos cuidados prestados em saúde, com ênfase nas habilidades técnicas e científicas, além de acenar, com muito vigor, para a importância das competências ética e humanística, e para uma prática dedicada ao bem-estar dos pacientes acima dos interesses pessoais2. Sob essa perspectiva, as evidências cientificas sobre as práticas médicas destacam um momento de colapso de suas atividades, marcadas pelo tecnicismo e pelos interesses econômicos. Estes têm, muitas vezes, prioridade na tomada de decisões sobre os cuidados em saúde, desconsiderando as necessidades reais de indivíduos, famílias e comunidades3,4. Segundo Goldie5, nos últimos anos, o relacionamento da classe médica com a sociedade está sob tensão, sendo caracterizado por comportamentos pouco profissionais, nos quais estão deficientes os valores fundamentais de caráter e normas éticas. É neste contexto que as discussões sobre ‘profissionalismo’ ganharam destaque, ao inseri-lo como a pedra angular do contrato social entre a medicina e o público em geral. O profissionalismo surgiu num contexto no qual era premente a necessidade de renovação do ensino e da prática médica. A definição adotada para o termo o descreve como um conjunto de competências relacionadas ao uso criterioso: da comunicação, conhecimento, habilidades técnicas, raciocínio clínico, emoções, valores, ética e reflexões na prática diária, para o benefício do indivíduo e da comunidade4. Esta temática tem se tornado um componente dos currículos formais dos cursos de Medicina em todo o mundo e ainda, timidamente, no Brasil, mas com destaque maior nos Estados Unidos; e ainda pode ser desenvolvido nas práticas diárias do ensino em saúde, sob a forma do currículo oculto4. As discussões acerca da importância de sua inserção nos currículos e práticas já vêm sendo feitas há algum tempo, especialmente, a partir do ano de 2002. A partir desta data, as comunidades médicas europeias e americanas se mobilizaram para discussão das demandas que permeavam a área da saúde, o que culminou na elaboração de uma Carta que continha os princípios do profissionalismo, uma nova competência que foi agregada ao conjunto de habilidades médicas6. Dentre estes princípios, destacam-se: princípio da primazia do bem-estar do paciente, compreendido como uma atuação que leve em consideração os interesses do paciente; princípio da autonomia do paciente, o qual entende que os profissionais devem ser honestos com seus pacientes, empoderando-os para a tomada de decisões conscientes; e o princípio da justiça social, sendo a profissão médica responsável pela distribuição justa dos recursos de cuidado à saúde7. Inseridas nestes princípios estão as responsabilidades profissionais, que são compromissos dos médicos com: a competência, a honestidade com os pacientes, a confidencialidade, a manutenção de relações apropriadas com os indivíduos, a melhoria da qualidade e do acesso ao cuidado, a distribuição justa dos recursos, o conhecimento científico, a manutenção da confiança com o manejo adequado dos conflitos de interesse e compromisso com as responsabilidades profissionais7. Assim, o profissionalismo surgiu como uma competência essencial para os profissionais da área médica no mundo todo, e se gestou num contexto no qual se questionava o que era necessário para uma boa prática médica7. Esta se reflete nas atitudes, comportamentos, caráter e padrões de prática adequados, personificados por meio da familiaridade com os códigos de ética e padrões estabelecidos por organizações médicas institucionais8-10. Desta forma, o profissionalismo foi reconhecido, então, como a base do contrato social que legitima a profissão de médicos e demais profissionais da saúde, e um ideal a ser seguido por estes e especificado como um compromisso para o alcance de níveis de cuidados em saúde de qualidade1,11. 680

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artigos

Não obstante, a questão que se coloca refere-se a como ensinar/praticar/avaliar o profissionalismo de uma maneira responsável, priorizando o princípio da justiça, de maneira a formar, nos indivíduos, um ethos profissional que vincule as competências técnico-científicas à humana8,12. Na literatura cientifica são poucos os estudos que têm como objetivo avaliar a conjuntura do profissionalismo em estudantes da área da saúde, de forma a verificar como esta competência tem sido manejada por educadores em todo o mundo e aprendida/apreendida pelos estudantes de graduação. Corroborando com as inúmeras dimensões supracitadas que compõem o conceito de profissionalismo, evidenciadas por Rego7, Pearson and Hoagland13 concordam que o profissionalismo é um conceito multifacetado, e, por isso, de difícil mensuração. Muitas tentativas de medir este conjunto de competências têm sido feitas, porém, ainda prevalecem avaliações muito subjetivas, de baixa confiabilidade, centradas nos julgamentos de docentes e especialistas. Entretanto, alguns instrumentos objetivos têm sido utilizados para esta finalidade, no intuito de captar algumas das dimensões do profissionalismo14. Já se reconhece que o profissionalismo deve ser avaliado longitudinalmente, combinando distintas abordagens, e captando as dimensões pessoal, interpessoal, institucional e social do sujeito avaliado, sendo, dessa maneira, um grande desafio internacional sua avaliação15. Diante desta questão, há que se destacar ainda a importância da avaliação qualitativa dos atributos do profissionalismo, tendo em vista a complexidade do conceito e sua aplicação prática4,16. Definiu-se, a partir destas considerações, a seguinte questão norteadora deste estudo: como a temática da avaliação do profissionalismo em estudantes de graduação dos cursos da saúde tem sido abordada na literatura científica? Assim, o objetivo do presente estudo foi verificar as publicações sobre profissionalismo na literatura mundial, destacando como tem sido sua avaliação em estudantes de graduação da área da saúde.

Métodos Desenho do estudo: trata-se de um estudo de revisão sistemática da literatura, conduzida a partir das recomendações propostas no guia Preferred Reporting Intems for Systematic Reviews and MetaAnalyses (PRISMA) adaptado, tendo com eixo central a identificação de estudos que realizaram a avaliação do profissionalismo em estudantes de graduação da área da saúde em todo o mundo17,18. Estratégias de busca: realizaram-se consultas às bases de dados LILACS (Literatura Latinoamericana e do Caribe), Medline (Medical Literature Analysis and Retrieval System Online), Scielo (Scientific Eletronic Library Online), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Eric (Institute of Education Sciences) e Pubmed. As palavras-chave utilizadas foram: profissionalismo, educação e saúde, e seus equivalentes em inglês e espanhol. Foram selecionados artigos com texto completo e lidos os títulos e resumos, nos idiomas português, inglês e espanhol. A pergunta gatilho que motivou a revisão dos estudos e que permitiria uma maior aproximação dos pesquisadores com a temática foi: O que existe publicado acerca da temática do profissionalismo na literatura mundial, e, dentre as temáticas encontradas, como se insere a avaliação? Após análise dos estudos encontrados acerca desta questão, procedeuse à organização temática dos mesmos, e definiu-se, como tema central deste artigo, a avaliação do profissionalismo em estudantes de graduação, com definição de outros critérios de inclusão. Foram estabelecidos como recorte temporal, para seleção dos estudos, os anos de 2002 a 2014, sendo justificado pelo fato de que, em 2002, federações e organizações médicas europeias realizaram uma ampla discussão acerca da temática do profissionalismo e organizaram, a partir daí, uma Carta elencando os princípios fundamentais e as principais responsabilidades/compromissos profissionais para o exercício desta competência. Critérios de inclusão: foram incluídos os artigos que trabalharam a temática da avaliação do profissionalismo, que tivessem como público-alvo estudantes de graduação da área da saúde, que abordassem avaliações longitudinais das atitudes/habilidades relacionadas ao profissionalismo, realizadas duas ou mais vezes, ou avaliações antes e após intervenções que abordassem a temática COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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AVALIAÇÃO DO PROFISSIONALISMO EM ESTUDANTES DA ÁREA DA SAÚDE: ...

Identificação

do profissionalismo; e estudos pertencentes ao recorte temporal 2002-2014. A Figura 1 representa o fluxograma de identificação e seleção dos artigos para revisão sistemática.

Bases de dados: LILACS, Medline, PubMed, Scielo, BVS, Eric LILACS: No. = 9

Medline: No. = 297

PubMed No. = 177

Estudos excluídos por duplicidade: No. = 52

Scielo/BVS: No. = 120

Eric: No. = 25

Total: No. = 628

Estudos selecionados após leitura dos títulos e resumos: No. = 342 Avaliação do profissionalismo: No. = 64

TIC e profissionalismo: No. = 15

Discussões sobre profissionalismo: No. = 58

Percepção do profissionalismo: No. = 24

Currículo: No. = 86

profissionalismo, discussões acerca da importância do profissionalismo, pesquisas sobre percepção do profissionalismo, inserção da temática nos currículos , outros. Outros: No. = 95

Estudos que abordaram a temática da avaliação do profissionalismo, que foram selecionados para leitura na íntegra: N= 64. Critérios de inclusão: estudos que tivessem como público alvo estudantes de graduação de quaisquer cursos da área da saúde; estudos que tratassem de avaliações longitudinais das atitudes/habilidades relacionadas ao profissionalismo, realizadas duas ou mais vezes ou avaliações antes e após intervencões que abordassem a temática do profissionalismo; estudos pertencentes ao recorte temporal 2002-2014.

Incluídos

Elegibilidade

Seleção

Estudos selecionados após remoção das duplicações: No. = 576

Temas acerca do profissionalismo identificados nos estudos: avaliação, TIC, e

Estudos incluídos na revisão: 7

Figura 1. Fluxograma de identificação e seleção dos artigos para revisão sistemática sobre a temática do profissionalismo.

Utilizou-se, como referencial teórico para discussão das avaliações, o estudo de Consorti et al.15, que apresenta uma adaptação da Pirâmide de Miller para avaliar o profissionalismo (Figura 2).

Resultados A busca nas bases de dados resultou na identificação inicial de 628 artigos, dos quais, ao procederse à categorização temática, foram encontrados: 64 que abordaram a temática da avaliação do profissionalismo; 15 estudos que trabalharam as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) em interface com o profissionalismo; 58 artigos que trouxeram debates, opiniões e discussões acerca da importância do profissionalismo no ensino em saúde; 24 estudos que abordaram a percepção do profissionalismo por estudantes, profissionais e usuários dos serviços de saúde; 86 estudos que trabalharam como inserir o profissionalismo nos currículos e as estratégias didático-metodológicas que poderiam ser utilizadas para tal; e, por fim, 95 estudos que trouxeram pesquisas e experiências diversas acerca do profissionalismo. 682

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Examples of objectives

Pertinent tools of assessment

Does

To assist patients in their relationship with HC organization

P-MEX, assessment from clinical tutors

Shows

To show sensitivity to cultural issues in history taking

Assessment of videos P-MEX

Knows how

To assess critically the ethical implications of a case

Reflective texts, discussion of written vignettes

To describe the principles of professionalism

MCQs, short essays

Knows

artigos

Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM

Figura 2. Adaptação da Pirâmide de Miller para avaliar do profissionalismo. (A) Development of competencies (knowledge, skills and attitudes) necessary for the exercise of medical practice. (B) Examples of objectives relevant to progressive levels of professional competence. Examples of pertinent assessment tools. Abbreviations: HC (health care); MCQs (multiple-choice questions); P-MEX (Professionalism Mini Evaluation Exercise).

Após esta fase, foram definidos, como objeto de estudo e discussão, os artigos que abordaram a avaliação do profissionalismo, baseados nos critérios de inclusão descritos anteriormente. Ao final, incluíram-se sete artigos na presente revisão sistemática, que foram lidos na íntegra e analisados conforme são apresentados no Quadro 1.

Quadro 1. Resultados das principais avaliações sobre profissionalismo realizadas junto a estudantes de graduação da área da saúde de acordo com a literatura internacional Autor (es) Biagioli et al. 2011

Período 20072010

Local EUA

População Estudantes de Medicina que cursavam o estágio de cirurgia (n = 2034)

Objetivo

Método de avaliação

Principais resultados

To determine whether a brief student survey can differentiate amongst third-year clerkship student’s professionalism experiences and whether sharing specific feedback with surgery faculty and residents can lead to improvements.

Escala Likert que avaliou: Excelência, Honra/Integridade e Altruísmo/ Respeito.

Os escores dos estudantes que cursaram o estágio de cirurgia foram menores (nos itens Excelência Altruísmo/ Respeito) que os de outras especialidades médicas, como medicina interna, medicina familiar e rural. O subgrupo Altruísmo/Respeito, em todas as especialidades, foi a que recebeu os piores escores avaliativos. Após intervenções, os escores melhoraram significativamente. continua

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AVALIAÇÃO DO PROFISSIONALISMO EM ESTUDANTES DA ÁREA DA SAÚDE: ...

Quadro 1. continuação Autor (es) Huntoon et al. 2012

Período 2011

Chaytor et al. 20062012 2009

Redwood e Townsend 2011

Local

População

Método de avaliação

Principais resultados

EUA

Estudantes de Medicina (n = 158)

To evaluate the impact of a single, practical advocacy experience on the attitudes and perspectives of physicians-in-training in the context of a growing recognition of the need for advocacy training.

Escala Likert aplicada antes e após uma experiência de defesa legislativa em saúde. Escala com perguntas na pós-experiência.

Os resultados da melhoria das habilidades e atitudes pós-experiência em advocacia em saúde receberam uma pontuação alta, demonstrando que o treinamento desenvolveu competências importantes relacionadas ao profissionalismo nos estudantes avaliados.

Reino Unido

Três coortes de estudantes de Medicina dos anos 1 e 2 do curso

Não houve explicitação do objetivo. A key question is whether professionalism is a fixed characteristic os whether it can be promoted over time.

Foi utilizada Conscientiousness Index (CI). Quesitos avaliados: obediência, disciplina, comportamento organizado e integral na realização de suas atividades acadêmicas.

Os escores de CI foram elevados nas três coortes (mais de 90% para os anos 1 e 2), sugerindo que esses grupos se mostraram altamente conscientes. Não houve diferença significativa entre os anos 1 e 2 do estudo, sugerindo que é uma característica estável através do ensino e exposição clínica.

To investigate changes in dental students’ perceptions of professionalism, knowledge, and emotion over the period of dissection in a human anatomy course.

Competências avaliadas Escala Likert: Profissionalismo, Conhecimento e Emoção, antes e após curso de anatomia, num período de 8 a 10 semanas.

As avaliações revelaram escores distintos para cada pergunta realizada, sendo alguns atributos mais bem avaliados que outros (Resultados no artigo 23).

To evaluate medical students’ perceptions of the consultation skills teaching sessions on a five year undergraduate MB/BS programme at a new medical school.

Pesquisa longitudinal, quanti (Escala Likert) e qualitativa, que avaliou o desenvolvimento das competências referentes à consulta, antes e após cada sessão de ensino.

A pesquisa revelou que houve aprendizagem do profissionalismo pelos estudantes: melhoria das habilidades de comunicação com o paciente (linguagem verbal e não- verbal), manejo adequado das emoções, trabalho em equipe e equilíbrio de interesses do médico e do paciente.

2009 e Austrália Duas coortes 2010 de estudantes do segundo ano do curso de Odontologia

Papageorgiou 2006et al. 2011 2007

Objetivo

Reino Unido

Estudantes de Medicina dos anos 1, 2, 3, 4e5 (n = 2.519)

continua

Os artigos foram publicados entre os anos de 2006 a 2012, oriundos de pesquisas realizadas: nos EUA (Biagiole et al.19; Huntoon et al.20; Brehm et al.12; Zink, Halaas e Brooks4); Reino Unido (Chaytor et al.21; Papageorgiou et al.16) e Austrália (Redwood e Townsend22), sendo a maioria proveniente dos EUA e publicados após o ano de 2011. O fato de a maioria das publicações terem sido realizadas após 2011 mostra que as discussões sobre avaliação do profissionalismo têm ganhado destaque nos últimos anos. 684

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Autor (es)

Período

Local

População

Objetivo

Método de avaliação

Principais resultados

Brehm et al. 2006

Não foi EUA descrito.

Estudantes de To provide diferentes áreas interdisciplinary da saúde. structured activities in academic and clinical settings for.

A pesquisa desenvolvida em duas fases: orientação interdisciplinar sobre o profissionalismo e experiência de campo. Avaliação: Escala Likert.

≥ 91% dos estudantes revelou que o aprendizado/ conscientização sobre o profissionalismo beneficiou sua atuação profissional (respeito pelos pacientes e colegas de trabalho, responsabilidade, flexibilidade, confiabilidade, ética, trabalho em equipe, sigilo, honestidade).

Zink, Halaas e Brooks 2009

2004 e 2005

Estudantes de Medicina do terceiro ano (n =95).

Estudo qualitativo, longitudinal (9 meses) que avaliou o desenvolvimento do profissionalismo em estudantes durante as práticas de saúde rural.

A pesquisa revelou que a experiência promoveu uma modelagem positiva de comportamentos nos estudantes, relacionados a todos os domínios do profissionalismo, a partir dos bons exemplos dos preceptores, com atitudes frente ao paciente de compaixão e respeito pela diversidade.

EUA

Introducing the concept of professionalism to health professions students. To examine the components that are part of developing professionalism during the Rural Physician Associate Program experience, a 9-month rotation in a rural community during the third year of medical school.

artigos

Quadro 1. continuação

OBS: Os objetivos e algumas expressões não foram traduzidos para o português para evitar um deslocamento das ideias originais que os artigos apresentaram.

A caracterização dos estudos revelou que a maioria deles abordou pesquisas com estudantes de Medicina (n=5), Odontologia (n=1), Farmácia, Enfermagem e outras disciplinas (n=1). Quatro dos estudos analisados trabalharam com os resultados de pesquisas que avaliaram o profissionalismo de maneira quantitativa, por meio de Escalas Likert, abordando medidas de comportamentos dos estudantes nos estudos de Biagioli et al.19 e Chaytor et al.21 (em relação a conhecimento, emoção, excelência, honra/integridade e altruísmo/respeito; outro estudo abordou a questão da avaliação do profissionalismo quanto aos quesitos disciplina, organização e realização das tarefas acadêmicas); e avaliações relativas à aplicação de experiências de ensino visando o desenvolvimento do profissionalismo (treinamento em defesa legislativa em saúde; curso de dissecção de anatomia; ensino de habilidades de consulta pelo método Calgary-Cambridge; pesquisa que abordou uma orientação acerca do tema profissionalismo e uma experiência de campo; avaliação da experiência clinica de estudantes inseridos no estágio rural). A partir destas considerações, observou-se que os estudos de Biagioli et al19 e Chaytor et al.21 avaliaram o profissionalismo do ponto de vista das competências, sendo que o primeiro abordou as competências humanas, ligadas aos valores pessoais que os estudantes desenvolveram (avaliado por meio de escalas fechadas), para verificar as atitudes dos mesmos durante o estágio de cirurgia. Já no segundo estudo, a abordagem centrou-se na utilização da Conscientiousness Index (CI), um dos instrumentos validados existentes para avaliação do profissionalismo no que tange aos aspectos de conduta profissional e ética (organização, responsabilidade, disciplina, realização de tarefas, dentre COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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outros). Ambos os estudos se aproximam dos níveis “Knows” e “Knows how” da Pirâmide adaptada de Miller para avaliação do profissionalismo do estudo de Consorti et al.15. Já os demais estudos (Papageorgiou et al.16; Redwood e Townsend22; Huntoon et al.20; Brehm et 12 al. ; Zink, Halaas e Brooks4), que abordaram avaliações do profissionalismo relacionadas às vivências práticas e aplicação de estratégias de ensino em saúde, demonstrando uma dimensão do fazer, do simular, podem ser inseridos nos níveis “Shows” e “Does” da pirâmide apresentada na Figura 2 deste estudo, revelando uma dimensão da pesquisa no âmbito prático. A partir destes resultados, pode-se inferir que os estudos apresentados nesta revisão avaliaram alguns aspectos do profissionalismo, mas não o seu desenvolvimento na perspectiva mais global, relacionando as dimensões pessoais, interpessoais, sociais e institucionais, que representam facetas relevantes na avaliação do profissionalismo.

Discussão Os resultados deste estudo evidenciam que os processos de avaliação do profissionalismo ainda são tímidos em todo o mundo, sendo uma realidade praticada em poucas escolas de formação em saúde. Estas, muitas vezes, estão restritas a países desenvolvidos e naqueles em que a educação e a prática médica têm atingido seu grau máximo de crise, em função das práticas prioritariamente biológicocentradas e medicalizantes, como é o caso dos EUA. O campo do profissionalismo é tema que emergiu e ganhou destaque nos últimos dez anos, mas os estudos ainda se centram em discussões sobre sua importância e inserção nos currículos. É preciso reconhecer que a temática da avaliação do profissionalismo, com enfoque nos instrumentos e métodos utilizados para tal, é questão contemporânea, ficando, como mote central, a definição dos momentos da formação em que devem ser incluídos, bem como qual o papel dos atores envolvidos neste processo. Ademais, os estudos apresentados no Quadro 1 revelaram que o profissionalismo foi avaliado somente nos aspectos comportamentais (pessoais, avaliados pelo próprio estudante) e seu desenvolvimento no âmbito prático, o que denota uma restrição aos aspectos do sujeito. Goldie5 aponta, em seu estudo, que o comportamento profissional é também influenciado por fatores conjunturais e contextuais que aparecem durante a aprendizagem e a prática. Sendo assim, a avaliação do profissionalismo deve incluir outros intervenientes inseridos no ambiente de ensino, como, por exemplo, a avaliação dos colegas, dos profissionais de saúde, dos pacientes, devendo, assim, abordar outros aspectos: individuais, interpessoais, sociais e institucionais5. Este mesmo autor reconhece que nenhum instrumento sozinho é capaz de medir o desempenho de um indivíduo em todas as dimensões supracitadas, especialmente quando se refere a construções multidimensionais como o profissionalismo. Porém, atenção especial deve ser dada: à expertise da pessoa que avalia, à validade dos instrumentos utilizados, e, ainda, à amostragem adequada dos participantes. Para tal, sugere-se a triangulação de diferentes métodos avaliativos, além da capacitação dos envolvidos para tal. Atualmente, os métodos/ferramentas mais utilizados para medir o profissionalismo são: as avaliações por pares, as observações por membros do corpo docente (com o uso de listas de verificação padronizadas), portfólios reflexivos desenvolvidos pelos estudantes e discussão de dilemas éticos. No entanto, métodos de avaliação mais completos, que incluam a abordagem dos aspectos contextuais e sociais, necessitam ainda de maior desenvolvimento5. Além deste aspecto mais global da avaliação, um fator de grande relevância é que a mesma deve vir sempre acompanhada de feedback para melhorar o desempenho das equipes e estimular a reflexão sobre as atitudes apresentadas. O propósito da avaliação deve ser explicitado, se somativa ou formativa, e seu desenvolvimento e acompanhamento longitudinais. Goldie5 ainda revela que o

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artigos

uso de instrumentos que permitam a realização de comentários descritivos é interessante. A avaliação do profissionalismo ainda deve incluir situações que envolvem conflitos, por meio da proposição de soluções para o dilema. Sob este aspecto, o estudo de Biagioli et al.19 demonstrou que os escores avaliativos para os comportamentos profissionais de estudantes no estágio de cirurgia melhoraram significativamente após reuniões para discussões da primeira avaliação e posterior feedback acerca dos comportamentos pouco profissionais que precisavam ser melhor desenvolvidos (excelência e altruísmo/respeito). Esta experiência demonstrou que a prática de feedback deveria ser um componente importante dos processos de avaliação. Cabe destacar, ainda, que os escores destes quesitos foram menores para os estudantes de cirurgia do que os de medicina familiar, interna e rural. O estudo de Chaytor et al.21 demonstrou que os estudantes dos anos 1 e 2 do curso de Medicina apresentaram um conhecimento e consciência elevados de seus papéis profissionais (níveis 1 e 2 da Pirâmide de Miller apresentada na Figura 1), o que pode ser relacionado ao ideal profissional que os estudantes trazem consigo ao adentrarem as escolas médicas. Este ideal pode ainda não ter sofrido a influência do contexto, das práticas em saúde e dos modelos de comportamentos que os profissionais exibem em sua assistência, e que acabam por influenciar positiva ou negativamente a visão dos estudantes. Sabe-se que fatores como os recursos disponíveis e a estrutura dos serviços de saúde têm um grande efeito sobre as atitudes e o comportamento dos médicos. Educadores médicos que estudaram os meios para desenvolver atitudes profissionais e comportamentos entre estudantes de medicina e residentes, constataram que as características de comportamento profissional (profissional modelo/ exemplo, com atitudes virtuosas) são um dos métodos mais eficazes para incutir desempenhos profissionais nos estudantes2. Depreende-se, a partir disso, que inserir os estudantes em cenários de prática que tenham profissionais-modelo é uma boa estratégia de facilitar o desenvolvimento do profissionalismo nos mesmos. Em relação aos cinco estudos classificados nos domínios “Show” e “Does”, da Pirâmide adaptada de Miller (Papageorgiou et al.16; Redwood e Townsend22; Huntoon et al.20; Brehm et al.12; Zink, Halaas e Brooks4), notou-se uma avaliação positiva do profissionalismo após as intervenções e/ou experiências de campo. Estas pesquisas demonstraram: melhoria das habilidades de comunicação com o paciente, educação em saúde, respeito à equipe de trabalho interdisciplinar, sigilo e atitudes como compaixão e respeito à diversidade. Além disso, os estudantes ressaltaram, em alguns estudos, a importância de se inserir o profissionalismo no ensino em saúde, e como sua discussão possibilitou uma maior conscientização sobre o assunto. A virtude, de acordo com Daaleman et al.23, é a base para a compreensão sobre o profissionalismo, sendo compreendida como os hábitos e atitudes promovidas em indivíduos por meio dos bons exemplos e dos valores intrínsecos, mas que são incorporados, também, em ambientes de aprendizagem. Recentemente, houve a classificação de cinco grandes temas na medição do profissionalismo, que pode ser resumida como: a adesão aos princípios éticos da prática; as interações efetivas com pacientes e seus familiares e com outros profissionais de saúde; confiabilidade e compromisso com a competência14. Neste estudo, ainda se destaca a falta de clareza sobre o fato de o profissionalismo ser uma construção adquirida ou aprendida, sendo um conceito ou uma competência ainda em desenvolvimento. A partir destes cinco temas apresentados, pode-se considerar que uma avaliação global do profissionalismo envolveria aspectos contidos nos quatro níveis da Pirâmide de Miller. Esta avaliação poderia ser realizada por meio de instrumentos e métodos que envolvessem a observação e mensuração da interação entre os sujeitos (estudante-docente-paciente-instituição), no âmbito comportamental, além dos aspectos cognitivos (dimensão dos conhecimentos), indispensáveis a uma prática médica pautada nos princípios éticos e em benefício dos pacientes.

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Considerações finais Os achados deste estudo apontam para evidências de que a avaliação do profissionalismo em estudantes de graduação dos cursos da área da saúde representa um grande desafio, tendo em vista que sua efetivação exige uma mensuração de aspectos mais globais, como as dimensões pessoal, interpessoal, institucional e social. Este processo, muitas vezes, é dificultado pelo desconhecimento dos sujeitos envolvidos sobre os instrumentos de avaliação confiáveis, do próprio conceito de profissionalismo e da importância de sua inserção no currículo formal (além do oculto). Ademais, o tempo demandado neste processo também deve ser considerado, uma vez que as avaliações requerem um espaço de tempo mais longo, por serem de natureza longitudinal. Destarte, salienta-se a importância de se aprofundar esta temática, visando sua inserção na formação profissional em saúde, de forma a minimizar os efeitos da crise que a prática em saúde tem vivenciado, relacionada a comportamentos pouco profissionais, comprometidos desde a perspectiva ética e moral. O estudo sobre o profissionalismo e a produção cientifica desta temática no mundo aponta para a necessidade de se reverem os paradigmas educacionais tradicionais focados em modelos rígidos, para um processo que prime pela renovação do pensamento e do comportamento, reconhecendo o profissionalismo como um desafio complexo que requer uma nova forma de ensinar a aprender. Cabe, assim, a ampliação de estratégias de ensino, aprendizagem e avaliação inovadoras pelos educadores, e que permitam aos estudantes o desenvolvimento do profissionalismo e o engajamento legítimo nas questões éticas, de cidadania e responsabilidade social.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Huddle TS. The limits of social justice as an aspect of medical professionalism. J Med Philos. 2013; 38(4):369-87. 2. Bernat JL. Restoring medical professionalism. Neurolology. 2012; 79(8): 820-7. 3. Glenn JE. The eroding principle of justice in teaching medical professionalism. HEC Forum. 2012; 24(4):293-305. 4. Zink T, Halaas GW, Brooks KD. Learning professionalism during the third year of medical school in a 9-month-clinical rotation in rural Minnesota. Med Teach. 2009; 31(11):1001-6. 5. Goldie G. Assessment of professionalism: a consolidation of current thinking. Med Teach. 2013; 35(2):952-6.

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artigos

6. Miles PV, Conway PH, Pawlson LG. Physician professionalism and accountability: the role of collaborative improvement networks. Pediatrics. 2013; 131(4):204-9. 7. Rego S. O profissionalismo e a formação médica. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2012 [acesso 2014 Set 10]; 36(4):445-6. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbem/ v36n4/01.pdf 8. Kaohsiung J. A framework for enhancing and assessing cultural competency training. J Med Sci. 2009; 25(9):486-92. 9. Mossop LH. Is a time to define veterinary professionalism? J Vet Med Educ. 2012; 39(1):93-100. 10. Gill D, Griffin A. Good medical practice: what are we trying trying to say? Textual analysis using tag clouds. Med Educ. 2010; 44(3):316-22. 11. Hultman CS, Halvorson EG, Kaye D, Helgans R, Meyers MO, Rowland PA, et al. Sometimes you can’t make it on your own: the impact of a professionalism curriculum on the attitudes, knowledge, and behaviors of an academic plastic surgery practice. Surg Res. 2013; 180(1):8-14. 12. Brehm B, Breen P, Brown B, Long L, Smith R, Wall A, et al. An interdisciplinary approach to introducing professionalism. Am J Pharm Educ. 2006; 70(4):1-5. 13. Pearson WG, Hoagland TM. Measuring change in professionalism attitudes during the gross anatomy course. Anat Sci Educ. 2010; 3(1):12-6. 14. Tiffin PA, Finn GM, McLachlan JC. Evaluating professionalism in medical undergraduates using selected response questions: findings from an item response modelling study. BMC Med Educ. 2011; 11(43):1-9. 15. Consorti F, Notarangelo M, Potasso L, Toscano E. Developing professionalism in Italian medical students: na educational framework. Adv Med Educ Pract. 2012; 2012(3):55-60. 16. Papageorgiou A, Miles S, Fromage M, Kemmy J, Leinster SJ. Cross-sectional evaluation of a longitudinal consultation skills course at a new UK medical school. BMC Med Educ. 2011; 11(55):1-8. 17. Silva LS, Cotta RMM, Rosa COB. Estratégias de promoção da saúde e prevenção primária para enfrentamento das doenças crônicas: revisão sistemática. Rev Panam Salud Publica. 2013; 34(5):343-50. 18. Moher D, Liberati A, Tetzlaff J, Altman DG. PRISMA Group. Preferred reporting items for systematic reviews and meta-analyses: the PRISMA statement. Ann Intern Med. 2009; 151(4):264-9. 19. Biagioli FE, Rdesinski RE, Elliot DL, Chappelle KG, Kwong KL, Toffler WL. Surgery clerkship evaluations drive improved professionalism. J Surg Educ. 2013; 70(1):149-55. 20. Huntoon KM, McCluney JC, Wiley EA, Scannell CA, Bruno R, Stull MJ. Self-reported evaluation of competencies and attitudes by physicians-in-trainning before and after a single day legislative advocacy experience. BMC Med Educ. 2012; 12(47): 1-8. 21. Chaytor AT, Spence J, Armstrong A, McLachlan JC. Do students learn to be more conscientious at medical school? BMC Med Educ. 2012; 12(54):1-7. 22. Redwood CJ, Townsend GC. The dead center of the dental curriculum: changing attitudes of dental students during dissection. J Dent Educ. 2011; 75(10):1333-44. 23. Daaleman TP, Kinghorn WA, Newton WP, Meador KG. Rethinking professionalism in medical education through formation. Fam Med. 2011; 43(5):325-9.

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Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM. Evaluación del profesionalismo en los estudiantes de la salud: una revisión sistemática. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):679-90. Las discusiones sobre el profesionalismo ganaron importancia en la década pasada en el escenario mundial, especialmente en los EE.UU., para ser reconocidas como una competencia a desarrollar por los profesionales. Objetivo: verificar las publicaciones acerca de el profesionalismo en la literatura, destacando cómo ha sido su evaluación de los estudiantes de las ciencias de la salud. Métodos: estudio de revisión sistemática, realizada a partir de las recomendaciones de la guía Preferred Reporting Intems for Systematic Reviews and Meta-Analyses, PRISMA, adaptada. Resultados: fueron encontrados siete estudios que abordaron la evaluación del profesionalismo. Entre ellos, dos artículos se acercaron a los niveles “Knows” e “Knows how” de la pirámide adaptada de Miller para la evaluación del profesionalismo, mientras que cinco de los estudios se localizan en el nivel de “Shows” e “Does”, que muestra una dimensión práctica de la evaluación. La evaluación del profesionalismo representa un reto importante, destacando la necesidad de estudios que lo puedan mensurar su perspectiva más global.

Palabras clave: Profesionalismo. Enseñanza y aprendizaje. Evaluación.

Recebido em 15/04/15. Aprovado em 15/12/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0020

artigos

Cursos de especialização em Saúde da Família: o que muda no trabalho com a formação?*

Magda Duarte dos Anjos Scherer(a) Camila Izabela de Oliveira(b) Wania Maria do Espírito Santo Carvalho(c) Marisa Pacini Costa(d)

Scherer MDA, Oliveira CI, Carvalho WMES, Costa MP. Specialization courses on Health Family: what can training change in the work? Interface (Botucatu). 2016; 20(58):691702.

The persistence of bio-medically oriented practices and the mismatch between training and work are identified as the challenges for the rolling out of Primary Health Care (PHC) in Brazil. This paper analyzes work changes in PHC after following specialization level training courses on community and family health, from the point of view of the trained professionals. It is a qualitative study carried on from 2011 to 2013 in the Federal District (DF) involving doctors, nurses and dentists. Data was collected with the use of digital questionnaires, semistructured interviews and focal groups. From the thematic content analysis, two categories emerged: “a universe of knowledge has opened up” and a “new way of doing things in an adverse working environment”. The context of the PHC in DF is a constraint but the training had the potential to generate professional competences.

A persistência de práticas orientadas pelo modelo biomédico e a desconexão entre trabalho e formação são apontadas como desafios para a Atenção Primária à Saúde no Brasil, que vêm sendo enfrentados com cursos de especialização. A partir da percepção de egressos, este artigo analisa as mudanças ocorridas no trabalho, decorrentes da formação em saúde da família e comunidade. Trata-se de um estudo qualitativo, realizado no Distrito Federal com médicos, enfermeiros e cirurgiões dentistas, por meio de: questionário eletrônico, entrevistas semiestruturadas e grupo focal. Da análise temática de conteúdo, surgiram duas categorias: “abriu-se um universo de conhecimentos” e “um novo modo de fazer em um contexto adverso”. O contexto é limitador, mas a formação teve potência para mobilizar um conjunto de ingredientes necessários para gerar a competência profissional.

Keywords: Work in health. Primary health care. Family health. Training. Ergology.

Palavras-chave: Trabalho em saúde. Atenção primária à saúde. Saúde da Família. Formação. Ergologia.

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Artigo resultado de pesquisa financiada pelo Programa Pesquisa para o SUS (PPSUS) da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) (Processo nº 193.000.347/2010). (a) Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília. Núcleo de Estudos em Saúde Pública, Universidade de Brasília. SCLN 406, bloco A, 2º andar, Asa Norte. Brasília, DF, Brasil. 70847-510. magdascherer@unb.br (b) Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Brasília, DF, Brasil. camila_iza@ hotmail.com (c) Escola de Aperfeiçoamento do SUS, Fundação de Ensino e Pesquisa do Distrito Federal. Brasília, DF, Brasil. waniaescarvalho@ gmail.com (d) Fundação de Ensino e Pesquisa do Distrito Federal. Brasília, DF, Brasil. marisa.pacini@ gmail.com *

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Introdução A implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF) no Brasil, iniciada em 1994, busca ampliar o acesso à saúde e consolidar um modelo de atenção pautado nos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Em novembro de 2014, a cobertura da ESF era de 61,95%1, evidenciando o avanço dessa política no país. A Atenção Primária à Saúde, chamada, no Brasil, de Atenção Básica (AB) à saúde, deve ser a porta de entrada preferencial do sistema de saúde, trabalhando com território adscrito e orientada para efetivar a integralidade em seus vários aspectos. Além disso, deve ser a coordenadora do cuidado, articulando as ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação de forma interdisciplinar e em equipe. A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) orienta a construção de relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a população, e o estímulo à participação popular e o controle social2. Entretanto, estudos sobre o processo de trabalho das equipes têm revelado dificuldades para que essa orientação se efetive: a persistência de práticas características do modelo biomédico, a existência de uma relação assimétrica entre profissionais e usuários, hierarquia e desigualdade entre as diversas profissões, e tensão entre a clínica e a saúde coletiva3,4. Para consolidação do modelo proposto, importantes desafios precisam ser enfrentados tanto no que se refere à infraestrutura e as condições de trabalho, como a falta de apoio institucional para implementar mudanças. A ênfase em protocolos e normas, com foco nas tarefas, e não nas potencialidades dos sujeitos, e a existência de planejamentos individualizados e, consequentemente, fragmentados, exigem um novo olhar para a formação profissional5-8. Apesar de a literatura relatar experiências exitosas na implantação da ESF9, com importantes impactos nos indicadores de saúde10, mantém-se, como questão central, a necessidade de avançar no processo de reorganização do trabalho e na formação profissional. A ausência de profissionais com perfil adequado para atuar neste contexto, sobretudo os médicos, é problema que persiste e pode ser atribuído às lacunas existentes na formação4,11,12. O trabalho em equipe, apesar de sobejamente reconhecido como essencial para efetivar a integralidade das ações, tem sido negligenciado na formação dos profissionais12-14. As contradições existentes entre a formação e prática profissional requerem a revisão das estratégias de educação15 no sentido de contemplar a relação dialética existente entre formação e trabalho. A complexidade dos problemas de saúde e das ações necessárias para o seu enfrentamento aponta para a urgência em desenvolver processos pedagógicos que trabalhem competências de ordem política, organizacional e operacional em todos os níveis do sistema de saúde, rompendo com a visão que desqualifica a APS e sobrevaloriza as práticas que exigem maior densidade tecnológica, exercitadas nos níveis secundário e terciário de atenção à saúde. É fundamental compor equipes com capacidade de articular as diferentes políticas sociais e os recursos existentes, considerando a multiplicidade de fatores que incidem na qualidade de vida da população, sem perder de vista: a universalização e a democratização do acesso, a relação com os demais níveis de atenção, as condições de trabalho e a diversidade de atores implicados para operacionalizar o SUS. Efetivar uma prática para além do modelo biomédico exige alterar o cotidiano do trabalho em saúde e as concepções de profissionais sobre os modos de produção da saúde. Neste cenário, as ofertas de cursos de pós-graduação vêm sendo subsidiadas pelos Ministérios da Saúde e da Educação, desde meados da década de 1990, como estratégia para formar profissionais com competência para atuar na ESF, segundo as diretrizes da PNAB. Para trabalhar na APS, em que diferentes saberes e práticas são exigidos para se enfrentar problemas nem sempre tipicamente de saúde, é preciso agir com competência. Agir com competência implica uma combinação dialética de diversos ingredientes integrando: o saber agir, “ter domínio das normas antecedentes”16; o querer agir, “estar motivado para aderir a um projeto coletivo”, e o poder agir, “ter capacidade de enfrentar os constrangimentos do meio”17. Considerando que não existe competência fora da situação de trabalho e que a formação só faz sentido quando se aproxima do mundo do trabalho18, o presente artigo analisa as mudanças ocorridas 692

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artigos

no trabalho na APS, a partir da percepção dos profissionais egressos de dois cursos de Especialização em Saúde da Família e de Comunidade realizados no Distrito Federal.

Percurso metodológico O estudo adotou como referência a abordagem ergológica de Schwartz sobre competências no trabalho16,19,20 e as prescrições contidas na PNAB. O referencial desenvolvido por Schwartz reúne pressupostos que ajudam a compreender as situações de trabalho e o processo de formação. Segundo o autor, na atividade de trabalho, a relação dialética entre o grau de apropriação dos saberes conceitualizáveis, o grau de apreensão das dimensões históricas da situação e o debate de valores, realizado pelo indivíduo para fazer escolhas num determinado contexto político, mobiliza ingredientes heterogêneos da competência, colocados “numa encruzilhada entre tecnicidade e escolhas sociais e econômicas”16 (p. 106). O domínio do conteúdo da PNAB, bem como o conjunto dos protocolos e diretrizes integram o primeiro ingrediente da competência, relacionado ao domínio conceitual do que antecipa o trabalho. O segundo ingrediente refere-se à experiência acumulada pelo indivíduo no enfrentamento do meio. O terceiro é o resultado da articulação entre o primeiro e o segundo, gerando a escolha de como e quando fazer para ser eficaz. O quarto ingrediente configura a reflexão sobre as maneiras de fazer e o que é prioritário, segundo normas e valores, e vai orientar a adesão ou não a um determinado projeto. O quinto está relacionado ao agir para melhor conhecer seu potencial e onde pode haver mobilização de si para um plus no trabalho. A sinergia caracteriza o sexto ingrediente, que é a busca pela complementaridade com o outro e pelo fortalecimento da coesão do coletivo no trabalho. Todos os ingredientes da competência estão relacionados e são interdependentes. Considerando que o meio tem uma variabilidade constitucional, os trabalhadores vão utilizar a originalidade de suas experiências para encontrar os recursos que permitirão enfrentar o que há de inédito em cada situação. A formação é fundamental para o desenvolvimento de competências profissionais, mas tem seus limites, porque se situa no campo das normas antecedentes, ou seja, daquilo que antecipa o trabalho. Ela trata da experiência a ser feita, transmite conhecimentos, prepara para o encontro das situações de trabalho que virão. O encontro do sujeito com o contexto virá depois, resultando num processo em que o profissional vai ser competente ou não a depender da síntese que ele fizer entre os conhecimentos adquiridos, a sua experiência prévia, os valores e as escolhas tomadas na relação com o meio sempre infiel20. Trata-se de um estudo de natureza qualitativa21, com caráter retrospectivo, realizado no Distrito Federal, de março de 2011 a julho de 2013, com egressos de dois cursos de especialização em Saúde da Família e Comunidade. Estes profissionais foram incluídos no estudo por terem vivenciado um processo de formação que orientou práticas de atenção primaria à saúde de acordo com os princípios do Sistema Único de Saúde. O primeiro curso iniciado em 2005 contemplou médicos e enfermeiros, contratados e estatutários, que atuavam na APS quando da implantação do Programa de Saúde da Família (PSF) e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). O segundo, iniciado em 2008, incluiu os cirurgiõesdentistas. Os cursos apresentaram como proposta pedagógica o uso de metodologias ativas, sendo que o segundo se diferencia pela inclusão de momentos de dispersão, com atividades práticas acompanhadas por instrutores. Ambos tiveram como recorte de conteúdo as diretrizes da PNAB e as atribuições das equipes da ESF. O universo da pesquisa foi composto por cento e trinta profissionais: enfermeiros, médicos e cirurgiões-dentistas dos dois cursos, concluídos em 2006 e 2010. Os participantes foram localizados por meio de levantamento junto à Secretaria de Saúde do Distrito Federal - SES/DF e por meio eletrônico e telefônico, sendo excluídos aqueles que não trabalhavam mais na SES e aqueles que não foram localizados depois de três tentativas. Foram incluídos 79 profissionais, aos quais foi endereçado um questionário eletrônico para a caracterização geral do grupo estudado e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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foram preenchidos por 45 sujeitos, sendo 29 enfermeiros, nove médicos e sete dentistas. A diferença entre as categorias profissionais se explica em função de mais de 50% dos egressos serem enfermeiros e de haver cirurgião-dentista somente no segundo curso. Os profissionais tinham dez anos ou mais de experiência na APS, diversas formações na área, e atuação em Unidades Básicas de Saúde tradicionais, sem ESF implantada. Após, foram realizadas 17 entrevistas semiestruturadas (seis médicos, três dentistas e nove enfermeiros), definidas, inicialmente, por sorteio, segundo critério de proporcionalidade por categoria profissional e região de saúde à qual os profissionais pertenciam, e encerradas pelo critério de saturação. Foi utilizado roteiro de entrevista que buscou identificar as mudanças ocorridas no processo de trabalho, a partir da realização dos cursos. Para a garantia do anonimato, foi atribuído um código para cada entrevistado: D para dentistas, E para enfermeiros, M para médicos, seguidos da numeração correspondente à ordem em que foram efetuadas as entrevistas. Os discursos produzidos foram submetidos à Análise de Conteúdo22, em que as Unidades de Análise se dividem em Unidades de Registro e Unidades de Contexto. Definiu-se, como Unidade de Registro, o tema, que pode ser: uma simples sentença (sujeito e predicado), um conjunto delas ou um parágrafo assunto, e cada tema configura uma unidade de significação. O tema é considerado como a mais útil unidade de registro na Análise de Conteúdo para acessar: opiniões, expectativas, valores, conceitos, atitudes e crenças, e, por essa razão, escolheu-se a análise temática. Utilizar o tema como unidade de registro para a interpretação das respostas de um determinado grupo de pessoas acarreta a obtenção de um grande número de respostas permeadas por diferentes significados. Assim, foi necessário analisar e interpretar o conteúdo de cada resposta em seu sentido individual e único, além das Unidades de Contexto, que se configuram como “pano de fundo” e imprimem significado às Unidades de Registro. A definição das categorias de análise é uma operação de classificação dos elementos constitutivos de um conjunto de textos seguida de um reagrupamento baseado em analogias a partir de critérios definidos. Utilizou-se o critério semântico para categorização. A opção por uma unidade temática é resultado da interdependência entre os objetivos do estudo e as teorias explicativas adotadas pelas pesquisadoras. As categorias não foram definidas a priori e emergiram do conteúdo dos discursos dos profissionais. Após a codificação de cada uma das entrevistas, o material foi reagrupado e analisado a partir da leitura horizontal, identificando-se semelhanças e diferenças entre os discursos. Podem-se caracterizar as categorias como grandes enunciados que abarcam um número variável de temas, agrupados segundo o grau de proximidade, que: exprimem significados e elaborações importantes, atendem aos objetivos do estudo e possibilitam a construção de novos conhecimentos, proporcionando uma visão diferenciada sobre o assunto. A análise apoiou-se no quadro conceitual da abordagem ergológica de Schwartz e da PNAB, e nos resultados optou-se por apresentar cada uma das duas categorias como grandes enunciados. Os dados obtidos foram discutidos e validados em um grupo focal, para o qual todos os entrevistados foram convidados, mas três médicos e três enfermeiros participaram. O conteúdo extraído do grupo, incorporado à análise de conteúdo, é identificado no texto como GF. Assim, as mudanças no trabalho, provocadas pelos cursos, foram agrupadas em duas grandes categorias temáticas, a saber: 1) abriu-se um universo de conhecimentos; 2) um novo modo de fazer em um contexto de trabalho adverso. Entende-se que as categorias estão inter-relacionadas, pois nelas circulam, de maneira variada e em diversos graus, os ingredientes da competência desencadeadores das mudanças nas práticas profissionais. A identificação de ingredientes num determinado tema não significa, necessariamente, a ausência dos demais. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da SES/DF e todos os cuidados éticos foram tomados.

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Resultados e discussão Abriu-se um universo de conhecimentos O conhecimento armazenado pelo indivíduo, adquirido na escola, na universidade ou por outros meios, constitui o primeiro ingrediente da competência16. Trata-se da dimensão conceitual, de tudo aquilo que contribui para que a situação se desenvolva de acordo com um protocolo experimental. No caso do trabalho na APS, ser competente estaria relacionado ao grau de apropriação do conjunto de conceitos, diretrizes e prescrições do campo e do núcleo de atuação profissional. De acordo com Schwartz20, esse ingrediente será sempre objeto de um aprendizado progressivo, e está em relação permanente e dialética com os demais. Os cursos contribuíram para sedimentar conceitos, “entender a importância” e “ampliar a visão”, relacionada, sobretudo, à concepção de saúde, de atenção básica e ao modelo de atenção correspondente. “A finalidade do curso foi exatamente fazer transformações nas formações e nos conceitos, em todos os níveis [entender o que é a saúde] envolve a família, o meio ambiente, a alimentação, a escola, o trabalho”. (M1) “Você trabalha muito com educação, prevenção, com intervenção precoce. É isso que eu entendo de APS. E o curso ajudou a sedimentar estes conceitos”. (E1)

Compreender o que é a APS e de que maneira ela se insere na organização do sistema de saúde é essencial para efetivação dos princípios e diretrizes do SUS. Ter domínio das normas antecedentes, ou seja, de tudo aquilo que antecipa o trabalho, é uma das condições para a qualificação do cuidado e a eficácia das ações: “Você começa a ver com olhos mais apurados a importância da APS e a focar cada vez mais nisso, não só a medicina hospitalocêntrica, e que a grande maioria dos problemas pode ser resolvido na APS”. (M2)

Entretanto, a apreensão de conceitos e as múltiplas possibilidades de aplicação no trabalho ocorrem na relação com o mundo real, no cotidiano das práticas, que nem sempre é facilmente compreensível: “A gente cansa de fazer atenção primária, não é fácil, dá vontade de desistir, mas aí você volta novamente com esses cursos para estabelecer e falar não, o certo é fazer aquilo ali” (M5). O curso proporcionou, aos profissionais, a oportunidade de estabelecer relações da teoria com a sua própria experiência no contexto de trabalho, antecipando, de algum modo, o que poderá se configurar como uma nova maneira de atuar: “Faltava para mim embasamento teórico [...], mas agora o mais importante é que agora eu sei como fazer, agora eu entendo melhor como funciona essa AB” (GF). A experiência vivida faz com que o profissional, numa determinada situação, mobilize saberes mais ou menos vastos, e cada nova situação vai aumentar a sua experiência. Segundo a estrutura de seus saberes, o profissional relaciona a situação atual com casos anteriores e, a partir daí, poderá emanar regras mais gerais, ou, ao contrário, elementos novos virão somente se justapor aos precedentes, sem que novas ligações sejam estabelecidas 23, configurando, para cada um, “uma forma singular de estar no mundo”24 (p. 87). O estudo permitiu visualizar o engajamento do profissional com seu trabalho, mesmo em situações adversas, e o processo de aprendizagem para enfrentamento de deficiências da gestão, destacando-se a mobilização dos ingredientes 4 e 5 da competência – reflexão e ação: “Eu não aprendi isso em nenhum lugar, eu vim de hospital, trabalhei 10 anos lá, caí na saúde pública com uma equipe para coordenar, sem saber nada, nem um preventivo eu sabia

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colher, eu aprendi lá dentro com a médica que entrou comigo. Então para mim foi tudo um aprendizado, aprendendo fazendo mesmo e o curso veio para fazer com que eu refletisse sobre isso”. (E1)

O quarto ingrediente “introduz uma espécie de ruptura no inventário”16, (p. 125) criando oportunidade de debate das dinâmicas e limitações próprias ao meio de trabalho, onde se desenvolve a vontade “políticogestionária”16 (p. 126) e a possibilidade de construção de “uma real pedagogia de redescobrimento de seus próprios recursos”16 (p. 126), que podem ser desenvolvidos ou bloqueados. Os participantes consideraram que o curso trouxe uma visão mais humanizada da assistência, de valorização da família e de construção de vínculo com os usuários, potencializando o uso das tecnologias de relações sociais que tem se constituído em ferramentas potentes de trabalho para a construção de relações acolhedoras e responsáveis com os usuários e famílias24. “[...] o curso contribuiu nessa visão de vínculo, de responsabilização de territórios [...] quem está chegando a gente tem que acolher, falar como é que trabalha, aceitar as ideias novas que ela está trazendo”. (M3) “Reconhecer no outro um cidadão, que ele é um sujeito integral, que precisa do meu trabalho e que a gente pode trabalhar juntos numa visão um pouco menos burocrática”. (E2)

O conhecimento e desenvolvimento de habilidades para ouvir a comunidade e oportunizar sua participação também foram mencionados como mudança provocada pela formação: “[...] ouvir a comunidade, a questão do planejamento participativo da comunidade ajudar a planejar” (E3). O curso proporcionou conhecimento técnico e científico e o desejo de incorporar inovações ao trabalho realizado: “A parte técnica mesmo de coleta de preventivo, [...] que eu não sabia fazer e aprendi lá”. (E6) “[...] procurar mais bibliografia, estudar mais, trouxe novidades, até uma metodologia diferente para ser aplicada no programa”. (D2)

Também proporcionou a clareza do trabalho em equipe para aumentar a resolubilidade da APS, bem como a troca de experiências com outros profissionais: “Entender a importância do trabalho em equipe, aprendizado em conjunto que a questão não é medicocêntrica, mas é uma discussão da equipe com o paciente e vice-versa” (M2). O poder falar de si e conhecer o que o outro faz, desenvolve a confiança e potencializa a cooperação, elementos fundamentais para que haja sinergia no trabalho coletivo. Cada profissional tem um patrimônio de experiências pertinentes a sua atividade de trabalho e a sua vida, o que caracteriza o ingrediente dois da competência. Mas experiência é formadora, desde que tenhamos condições de refletir sobre ela e sobre a sua contribuição à atuação profissional25. O processo de formação pode potencializar o desenvolvimento do terceiro ingrediente, que é a capacidade de articulação dos conhecimentos armazenados com a experiência prévia para enfrentar a singularidade de cada situação. Quando o profissional aprende a norma antecedente, a primeira antecipação, ele é enviado ao seu contexto de trabalho, ao debate de normas e de valores, e esse arcabouço vai guiá-lo na segunda antecipação, que ocorre no momento do agir, onde ele vai retrabalhar as normas, e que poderá configurar um novo modo de fazer20.

Um novo modo de fazer em um contexto adverso A mobilização de conhecimentos fornecidos pelo curso, somada aos conhecimentos prévios e em confronto com a experiência vivida, produziu mudanças no modo de fazer no cotidiano do trabalho, e evidencia a potência da formação para ativar o conjunto de ingredientes da competência. A 696

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aplicabilidade dos conhecimentos adquiridos em cursos latu sensu em saúde da família também foi relatada em estudo realizado por Maciel et al.26. As mudanças, evidenciadas nos depoimentos a seguir, estão associadas, sobretudo, a uma atitude que se concretiza em ações no âmbito da gestão, organização e adaptação do trabalho às necessidades da comunidade: no compartilhamento de problemas e soluções com a equipe e com os usuários, no modo de organizar e conduzir reuniões, na divisão de tarefas, na reorganização de fluxogramas da unidade, na maneira de organizar e conduzir grupos com usuários, e na relação com a comunidade. A atitude é um componente fundamental para o agir profissional e “implica não se deixar limitar pelas antecipações, se autorizar a recriar normas em nome daqueles que são sujeitos do cuidado e a interpretar e questionar as normas que são impostas”17 (p. 3209). O estudo evidenciou o protagonismo dos profissionais mesmo diante de um contexto de APS adverso. Foram mencionadas: dificuldades ligadas ao modelo de gestão verticalizado, as constantes mudanças nos cargos, a inexistência de uma rede de atenção organizada, somada ao despreparo dos profissionais para atuar na ESF, a estrutura inadequada das unidades, e equipes da ESF com responsabilidade acrescida, assumindo áreas descobertas. “Nós somos jogados na APS como se fosse uma coisa muito fácil”. (E5) “[...] muda a gestão, muda a equipe e é sempre um recomeço. Então a gente pensa que em algum momento a gente se perde, dá um passo atrás para se organizar de novo”. (M3)

Condições de trabalho inadequadas têm sido apontadas em diversos estudos como elemento que impede ou contraria o alcance das ações preconizadas7,8,27. Apesar dos esforços da SES/DF para adotar a ESF como modelo, não houve mudança nos demais níveis de atenção do sistema de saúde, de forma a garantir uma rede de serviços adequada à proposta de reorganização da APS28. Além disso, a ESF foi organizada de maneira pulverizada, dificultando a integralidade da atenção, e a estrutura insuficiente resultou em baixa cobertura29, que, em 2012, estava em torno de 15,33%1. Mudar o modo de fazer não é simples. Os profissionais se veem diante do conflito entre as normas emanadas pela PNAB e pela aprendizagem nos cursos em oposição às normas impostas pelos gerentes locais, cujas práticas estão distantes do que se entende por gestão comunicativa e cogestão30. “[...] se você for perguntar para a gestão o que é para fazer, eles vão falar para não fazer nada disso. Que é para encaminhar e pronto. Que é só para atender a quantidade”. (M5)

A lógica de produtividade imposta pelos gestores se opõe aos valores de integralidade e acesso com qualidade prescritos na PNAB, e os profissionais negociam e exercitam, de modo distinto, diferentes graus de autonomia: “Eu comecei a questionar isso junto a minha chefia, eu diminuí a minha produção de pré-natal [...] e como eu melhorei [...] indicadores, melhorei fazendo uma consulta mais sistematizada, num tempo maior. Acho que isso também foi um grande ganho para mim”. (GF) “Eu tentei fazer [...] várias mudanças e infelizmente a gente esbarra no modelo de APS em vigor, existe resistência dos próprios profissionais, do gerente de enfermagem, [...] vários colegas não conseguem colocar em prática, [...] eu tentei em vão [...]”. (E7)

Atuar segundo as necessidades de saúde da população está diretamente relacionado à possibilidade de o sujeito construir sua identidade no trabalho, que, por sua vez, depende do espaço deixado ao desenvolvimento da experiência, bem como da consideração pela hierarquia das formas de experiências desenvolvidas:

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“O que eu percebi foi com relação a fluxo de paciente que mudou, atendendo uma demanda mais espontânea, menos atendimentos agendados como a gente fazia antes, abrindo algumas exceções, coisa que a gente não fazia”. (GF) “Mudou muito a questão do grupo não ser só de palestras e sim uma roda de conversa, ouvir mais o paciente, se aproximar mais deles”. (E3)

Colocar em prática essas mudanças significa enfrentar, também, os constrangimentos do meio. “[...] a gente não faz tanto como deveria [grupos] porque não tem espaço físico, é uma unidade com duas equipes, então eu divido o consultório com a médica, quando eu to ela ta na rua, mas a gente dá um jeito, como em tudo dá”. (E1) “A gente tem conseguido trabalhar de forma independente, inclusive não sei se meu gerente ou meu diretor sabe de tudo que eu faço”. (M4)

A ausência de trabalho intersetorial tem sido apontada como uma das questões-chave a ser enfrentada pela gestão do trabalho na ESF4,14. Os profissionais sinalizam que novas formas de abordagem comunitária e intersetorial passaram a ser desenvolvidas após o curso, mas destacam os limites da cultura predominante, em que as pessoas valorizam, sobretudo, consultas em detrimento de ações preventivas e de promoção da saúde: “A gente passou a procurar mais o conselho tutelar, a administração regional, os comerciantes”. (D2) “Mobilizar a comunidade ainda é bastante difícil [...]. Então essa coisa de fazer o planejamento participativo é uma coisa que eu aprendi no curso, mas que até hoje a gente ta tentando aplicar na prática”. (E5)

A escuta e a inclusão dos usuários nas decisões do cuidado fazem com que o profissional descubra o outro e a si mesmo, e busque o reconhecimento do trabalho realizado: “Então eu achava que eu pegava uma paciente, fazia com a equipe, vamos pensar numa estratégia para esse paciente, mas eu me esquecia de questionar, de discutir essas ações com o próprio paciente em questão e isso mudou com o curso”. (GF) “Então no desenvolvimento de um trabalho [...] que eu achei muito bom [...] não só para a nossa realização como médico, a confraternização e os laços de amizade entre alunos da faculdade, entre a equipe e entre os pacientes. Você tinha que saber como abordar, como explicar para ele aceitar a sua intervenção. Fazer a modificação. E depois receber o abraço. Eu recebi muitos abraços. Da senhora que eu evitei a amputação da perna [...]”. (M6)

Para Dejours31, o reconhecimento do trabalho passa por dois tipos de julgamento: o julgamento de utilidade e o de beleza. O primeiro trata da utilidade social, econômica e técnica das contribuições individuais e coletivas, que faz com que as pessoas sintam-se pertencendo a um coletivo. O segundo corresponde à atribuição de qualidades dada ao sujeito pelos seus pares, que o distingue dos outros e lhe confere uma identidade singular – a execução de “belas obras”. O reconhecimento profissional vai ajudar a construir a imagem de si do profissional, a autoestima, e fortalece a cooperação. No elenco de mudanças desencadeadas pelos cursos, consta o trabalho em equipe e a integração dos serviços, como tentativa de atuar de maneira integral e qualificar a gestão do cuidado:

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“Ouvir mais, fazer uma escuta mais atenta, ou ver nas entrelinhas e tentar investigar mais. Isso melhorou bem no meu serviço, de chamar todo mundo, dividir o serviço”. (GF) “Mudança da prática da assistência ao climatério. Foram rotinas que nos permitiram estabelecer uma boa relação com a ginecologia na minha regional, discutir pessoalmente com ele, eu tinha liberdade de ligar, de buscar os pacientes que eu havia referenciado”. (M6)

O trabalho em equipe e o fortalecimento do protagonismo dos profissionais são elementos estratégicos na operacionalização da ESF13,30. Entretanto, trabalhar em equipe não é fácil: “[...] a gente tem que saber escutar, tem que saber respeitar os limites e quando a gente fica trabalhando ali 40 horas semanais com as mesmas pessoas é como se fosse a nossa família mesmo, então tem suas vantagens, seus problemas, cada um tem o dia que chega meio amargurado no serviço, cada um tem aquele dia que fica mais exaltado. Então no curso a gente trabalhou também essa questão de respeitar o outro da equipe e saber lidar com essas diferenças”. (E5)

E os profissionais relatam dificuldades para contar com a colaboração de colegas e o uso de estratégias para efetuar mudanças no trabalho: “Uma coisa que eu aprendi também, tanto trabalhando como no curso é que tudo que é novidade todo mundo rejeita, tem medo. Quer fazer uma mudança, ótimo! Mas eu não posso chegar ‘Vamos mudar!’, ninguém aceita. Aí a gente joga a ideia, aí depois que acostumou com a ideia ‘então vamos mudar’. Entendeu?”. (E4)

A “resistência à mudança” pelos profissionais de saúde pode ser atribuída, muitas vezes, à recusa a determinadas condições e modalidades de mudança. Estas devem ser apropriadas pelos trabalhadores a partir do patrimônio de conhecimentos, de saberes práticos e de valores que eles portam. Algumas mudanças podem aparentar resistências, mas serem um movimento de autocuidado do trabalhador para manter-se saudável no trabalho: “Eu identifico que eu passei a respeitar um pouco mais meu corpo. Eu vim de um processo de não parar atendimento e eu passei a prestar atenção também em mim como recurso humano” (D2). Trabalhar na ESF exige do trabalhador a capacidade: de diagnóstico e de solução de problemas, de tomar decisões e de intervir no processo de trabalho, de trabalhar em equipe e enfrentar situações em constantes mudanças, estar sempre pronto para atender as necessidades de saúde da população, ou seja, é preciso ser competente. A competência é sempre de alguém, é resultado de um conjunto de ingredientes que se articulam dialeticamente no confronto com o meio, que exige respostas no aqui e agora. Pressupõe identificar a necessidade de se reconfigurar uma situação numa determinada circunstância, e supõe a existência de criatividade para articular, nas escolhas, as características gerais e as locais16. A competência, como ação eficaz, não se transmite. Ela é produzida pelo indivíduo e pelo coletivo, a partir do momento em que são colocados em situação favorável. Nos casos em que as pessoas são qualificadas e diplomadas, mas a competência não se expressa, é importante olhar as condições de trabalho e agir não apenas sobre os indivíduos, mas criando condições favoráveis para possibilitar a expressão dessa competência. O processo de mudança na prática dos profissionais não depende apenas dos sujeitos em serviço e dos processos formativos. Além disto, o conhecimento não pode ser tratado como algo que se transfere, mas como fruto de reflexão sobre as práticas em um contexto de construção coletiva. A realização de um curso tem seus limites e pode não ser “a solução”, mas pode possibilitar a identificação de um caminho a percorrer para enfrentar as dificuldades de implementação de novas práticas segundo os princípios e diretrizes para a APS.

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“O curso realmente mostrou que de alguma forma eu posso ir buscar a solução, embora nem sempre eu ache”. (D2)

Considerações finais É possível concluir, a partir da percepção dos egressos, que os cursos contribuíram para aumentar a competência dos profissionais, na medida em que promoveram aquisição de conhecimentos e impulsionaram novos modos de agir, mesmo em contexto adverso. No plano conceitual, as mudanças se expressaram: 1) numa visão mais humanizada da assistência, com valorização da família e da necessidade de construção de vínculo com os usuários; 2) no conhecimento e desenvolvimento de habilidades para ouvir a comunidade e oportunizar sua participação; 3) no reconhecimento da importância do trabalho em equipe; 4) na busca por novas formas de abordagem comunitária e intersetorial. A formação, ao sedimentar e ampliar conhecimentos relativos ao campo de atuação, proporciona, ao profissional, maior domínio das normas antecedentes e a oportunidade de refletir sobre sua própria experiência no trabalho. No presente estudo, essa reflexividade ampliou a capacidade de agir, gerando novas formas de atuar. O novo modo de fazer está associado à busca de satisfação e reconhecimento do trabalho, e se expressa, sobretudo, numa mudança de atitude que se concretiza em ações no âmbito da gestão, organização e adaptação do trabalho às necessidades da comunidade. Destacam-se as mudanças nas relações dos profissionais consigo mesmo, entre si e com os usuários. O contexto da APS no DF é limitador, os profissionais têm diferentes graus de autonomia e maneiras de lidar com isto, mas a formação teve potência para mobilizar um conjunto de ingredientes necessários para gerar a competência, sugerindo que a implantação de uma política de Educação Permanente no contexto estudado pode favorecer a efetivação da ESF. Destaca-se que a dificuldade de inclusão dos profissionais na segunda etapa da pesquisa trouxe limites ao estudo: localização dos egressos, disponibilidade para responderem ao questionário, e tempo decorrido desde a realização dos primeiros cursos.

Colaboradores As autoras participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Agradecimentos Agradecemos a contribuição de Maria da Glória Lima e de Luana Chaves Barberato no processo de pesquisa. Referências 1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento da Atenção Básica. Histórico de cobertura da Saúde da Família: estimativa da população coberta por ACS [Internet]. Brasília (DF); 2014 [acesso 2014 Dez 22]. Disponível em: http://dab. saude.gov.br/dab/historico_cobertura_sf/historico_cobertura_sf_relatorio.php 700

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Palabras clave: Trabajo en salud. Atención primaria de la salud. Salud de la Familia. Formación. Ergología.

Recebido em 16/01/15. Aprovado em 18/12/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0575

artigos

O caso Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e a medicalização da educação: uma análise a partir do relato de pais e professores Murilo Galvão Amancio Cruz(a) Mary Yoko Okamoto(b) Daniele de Andrade Ferrazza(c)

Cruz MGA, Okamoto MY, Ferrazza DA. Attention Deficit/Hyperactivity Disorder case (ADHD) and the medicalization of education: an analysis from parents and teachers’ reports. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):703-14.

Difficult behaviors in childhood are the center of frequent discussions in the medical and educational areas in the last years. Two interrelated phenomena stand out in this debate: the medicalization and pathologization of childhood. Medicine and psychiatry are known as producers of these processes creating and recreating diagnostic categories to justify innumerable problems in the complex relationships in the school environment. From this perspective, we intend to bring the narratives of parents and teachers from a public school in the state of São Paulo about students, aged between seven and 11 years old, diagnosed with Attention Deficit/Hyperactivity Disorder (ADHD) that link with discussions about the medicalization process in the present society. It is considered that children who have shown difficulties in learning or behaving are categorized as biological ahistorical bodies lacking social and affective life.

Keywords: ADHD. Medicalization. Childhood. Parents. Teachers.

As dificuldades de comportamento na infância têm sido alvo de inúmeras discussões na área médica e educacional, sobretudo nos últimos anos. Com isto, dois fenômenos inter-relacionados se sobressaem: a medicalização e a patologização da infância. A medicina e a psiquiatria são saberes produtores destes processos ao criarem e recriarem categorias diagnósticas que justifiquem inúmeros problemas da rede de relações complexas que caracterizam o ambiente escolar. Nesta perspectiva, pretendemos trazer o relato de pais e professores de uma escola pública do interior de São Paulo sobre alunos, com idade entre sete e 11 anos, diagnosticados com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e relacioná-lo com as discussões acerca do processo de medicalização na atualidade. Considera-se que as crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem ou comportamento são categorizadas como um corpo biológico a-histórico desprovido de vida social e afetiva.

Palavras-chave: TDAH. Medicalização. Infância. Pais. Professores.

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Pós-graduando, Departamento de Políticas e Instituições de Saúde, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier, 524, Pavilhão João Lyra Filho, 7º andar, Maracanã. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20550-013. murilogac@gmail.com (b) Departamento de Psicologia Clínica, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Assis, SP, Brasil. mary.ok@assis.unesp.br (c) Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá. Maringá, PR, Brasil. daferrazza@uem.br (a)

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Introdução Queixas escolares e comportamentais têm aumentado significativamente o número de diagnósticos psiquiátricos na infância. Esse aumento está relacionado ao surgimento de inúmeras estratégias e discursos que sustentam práticas medicalizantes na educação e a consequente patologização da infância – processos caracterizados pelas veiculações midiáticas de discursos sobre as bases neurobiológicas de mal-estares psíquicos, cuja terapêutica proposta seria exclusivamente a prescrição de pílulas que prometem restabelecer desequilíbrios neuroquímicos. Tais discursos instalam-se no imaginário público e influenciam as concepções da população com intuito de incluir famílias e professores no dispositivo de medicalização1. A extensa informação propagada pelos meios de comunicação, que disponibilizam dados sobre as características dos diagnósticos psis, bem como testes para facilitar a identificação de supostos transtornos, têm promovido o uso comum de elementos dos discursos neurocientíficos e o estabelecimento de práticas de autocontrole e vigilância para que qualquer pessoa possa reconhecer os outros ou a si como portadores de uma doença mental2. Dessa forma, é comum na contemporaneidade o encaminhamento de crianças para clínicas médicas a fim de sanar os supostos problemas de comportamento e/ou aprendizagem. Na busca pelo filho e aluno ideais, pais e professores procuram, nos saberes médico-neuropsiquiátricos, a solução para suas dificuldades. A escola torna-se ambiente de propagação do processo de medicalização, interpenetrada pela instituição médica, e um lugar privilegiado de seleção das crianças passíveis de serem medicalizadas – mas será que caberia aos profissionais da saúde lidar com um campo tão profuso como o da educação? Segundo Vorcaro3, a desvalorização do conhecimento dos pais e o deslocamento de suas posições para o saber específico da medicina se intensificam a partir da ampliação dos quadros clínicos, gerada pelas edições do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) já que, supostamente, o saber parental não poderia cuidar das dificuldades e déficits do filho, o que os leva a buscar o saber científico com absoluta confiança. Com efeito, a medicina, a psiquiatria e a psicologia são saberes que estão intrinsecamente associados ao poder de medicalizar, psiquiatrizar e patologizar, uma vez que diagnosticam fenômenos humanos em busca de um tratamento que deve normalizar o sujeito desviante, ou seja, aquele que se afasta do denominado ponto médio padrão. O processo de medicalização pode ser compreendido como a apropriação pelo saber médico de questões políticas, econômicas, socioculturais, e existenciais que, portanto, não pertenciam ao pleno domínio da medicina. Foucault1,4,5 e Illich6 foram dois grandes intelectuais que iniciaram discussões contemporâneas acerca deste complexo fenômeno, imerso em uma rede múltipla de poderes. Sobretudo a partir da década de 1980, com a publicação da terceira edição do DSM, a psiquiatria biológica ganhou força e passou a interpretar os chamados transtornos mentais a partir de uma explicação causal entre a neuroquímica do cérebro e o comportamento apresentado. De fato, esta psiquiatria tenta se aproximar da medicina somática, e tem como principal característica estabelecer a etiologia, terapia e diagnóstico das doenças mentais, utilizando um correlato biológico que tem uma compreensão fisicalista do ser humano e une biologia, genética, neurociência e classificação psiquiátrica. Destarte, o sofrimento psíquico passa da ordem narrativa de uma história singular para a ordem cerebral, reduzindo-se, portanto, ao cérebro. Assim, a medicina cumpre seu papel higienista em um movimento que (1) parte da ciência médica para, (2) o desejo de gerir a população, (3) enquanto uma instância normativa, (4) que é componente do biopoder, e, finalmente, (5) produz uma multiplicação das doenças7. Os processos singulares são capturados pelo saber médico na medida em que o comportamento divergente é considerado exclusivamente disfunção orgânica do indivíduo, o que justificaria suas dificuldades sociais. Desta forma, os processos de medicalização da vida tendem a transformar dificuldades e divergências em problemas de origem e solução no campo médico8. Um diagnóstico exemplo destas problematizações que vem sendo bastante discutido é o TDAH – Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. Descrito pela grande maioria das pesquisas atuais como um dos transtornos neuropsiquiátricos mais comuns à infância, com hipóteses de que afetaria cerca de 7% da população mundial9, teria como tratamento, muitas vezes único e exclusivo, a prescrição de 704

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psicofármacos. Suas características, segundo o próprio DSM, seriam marcadas pela tríade desatenção, hiperatividade e/ou impulsividade, aspectos que supostamente assumiriam formas combinadas ou separadas. Todavia, a popularização do termo “criança hiperativa” passou a preocupar muitos estudiosos que questionam suas bases biológicas e seu tratamento medicamentoso e denunciam a banalização deste diagnóstico para a infância contemporânea. Atentas a esta crítica, Caliman e Domitrovik10 afirmam: O TDAH poderia ser analisado como uma desordem sem fronteiras [...] – um diagnóstico psiquiátrico que parece não possuir limites internos nem externos. Desde sua constituição, na década de 1970, presenciamos um processo crescente de expansão da categoria. Antes considerado uma desordem transitória e infantil, que raramente alcançava a adolescência, o TDAH é agora descrito como um transtorno psiquiátrico que pode perdurar por toda a vida do indivíduo – um quadro incurável. Uma vez visto como a causa para o baixo desempenho escolar, o transtorno passou a ser uma explicação biológica “plausível” para as dificuldades da vida, sejam elas acadêmicas, profissionais, emocionais, familiares e, mesmo, sexuais [...]. (p. 883-4)

Nessa perspectiva, o presente trabalho procura problematizar o fenômeno da psicopatologização da vida que perpassa a infância na atualidade e pretende relacionar o relato de pais e professores sobre crianças diagnosticadas com TDAH à discussão em torno do processo de medicalização da educação.

O processo de medicalização da educação e a patologização da infância Transportar a discussão sobre a medicalização para o campo da educação é caminhar por espaços sinuosos, nos quais habita uma rede de instituições que se interpenetram, da qual destacamos a educação, a família e a medicina. A maioria das crianças, sobretudo entre sete e 14 anos, passa a maior parte do tempo nas escolas, desta forma, é inevitável que professores presenciem comportamentos, gestos e atitudes consideradas inadequadas aos padrões, além das dificuldades de aprendizado difíceis de serem enfrentadas. É certo que a escola, instituição disciplinar do fim do século XVIII, já tinha como mecanismo o olhar vigilante do professor sobre os alunos hierarquizados pelo saber. Segundo Foucault11, a classe a partir do fim do século XVIII “se compõe por elementos individuais que vem se colocar uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre” (p. 125). Todavia, na contemporaneidade há um novo mecanismo que instiga a vigilância. É que ao se deparar com comportamentos indesejados e que fogem do esperado, os professores buscam respostas imediatas para solucionar problemas institucionais marcados pelas principais características das instituições disciplinares em crise12, que investem no processo de medicalização a fim de expandir e produzir saberes que pretendem contornar as situações consideradas problemáticas. Dessa forma, a medicina se apropria do espaço escolar e o professor passa a ter um olhar mais vigilante sobre as crianças buscando classificações para suas diferenças individuais. Para Machado13: “Nasce a crença de que as faltas são de ordem individual e que é possível preencher o que falta. Como se a falta de disciplina, atenção, esforço e concentração dos alunos e a falta de dedicação dos pais acontecessem por uma certa falta de vontade de mudar e lutar” (p. 120). Não só a medicina, mas a psiquiatria e a psicologia tiveram um papel crucial na história desta aproximação – um tanto perigosa – entre saúde e educação. Perigosa a partir do momento em que seu objetivo era simplesmente a profilaxia dos desviantes e a consequente cura do “mau comportamento”, que se expressava, sobretudo, em crianças pobres, negras e com uma estrutura familiar dissidente da norma, ou seja, crianças que refletiam aquilo que a psicologia e a psiquiatria foram chamadas a organizar: o caótico que é, em suma, herança do higienismo no Brasil. O movimento higienista tinha a tendência, no século XIX, a associar questões sociais aos discursos e práticas psicológicas e psiquiátricas, apoiando-se na hipótese da causalidade biológica que justificava a intervenção médica em toda sociedade14. Como aponta Patto15, desde o seu surgimento enquanto ciência na modernidade, a psicologia serviu para apontar, avaliar, separar e excluir a criança considerada idiota. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Já na segunda metade do século XVIII, a observação sistemática e o registro de condutas possibilitou a constituição de um saber sobre o homem que, conforme Foucault16, culminaria no nascimento da psicologia, da pedagogia, da psiquiatria que constituiriam discursos sobre uma verdade imutável, universal, neutra e a-histórica do ser humano. As ciências psis carregavam em suas concepções e práticas a herança das ciências de ajustar comportamentos e disciplinar os corpos, baseada em uma definição conservadora de normalidade que considerava normal o comportamento socialmente aceito e que valorizava a ordem quantitativa para classificação do normal e do patológico17. No contexto brasileiro de princípios do século XX, a medicina, influenciada pelas concepções higienistas, ao se inserir nos contextos educacionais, carregaria predominantemente concepções patologizantes que iriam mascarar os problemas relacionados ao fracasso escolar. Com a ênfase nas técnicas psicométricas em âmbitos escolares, tornou-se plausível encontrar respostas individuais para problemas sociais. Na atualidade, com a predominância do discurso biologicista, a medicina e a psiquiatria não dispensam o olhar individualizante e falam de transtornos que decorrem supostamente da neuroquímica cerebral. O TDAH, como conhecemos hoje, já foi a criança com suposto defeito no controle moral, passou pela criança portadora de uma deficiência mental leve que carregava sintomas de hiperatividade, e inclusive aquela que apresentava um cérebro moderadamente disfuncional, posteriormente chamada de criança com Déficit de Atenção18. Hoje, crianças e adolescentes têm sido rotulados com TDAH e medicados com psicofármacos, principal tratamento determinado para o fracasso escolar e dificuldade de aprendizagem.

Metodologia Os procedimentos da presente pesquisa foram aprovados pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências e Letras de Assis/Unesp. Os impactos do diagnóstico de TDAH e do tratamento determinado às crianças foram estudados por meio de entrevistas realizadas com pais e/ou responsáveis e professores de quatro alunos indicados pela coordenação de uma escola municipal do interior paulista que possuíam o diagnóstico de TDAH. Iniciamos a coleta de dados por meio da análise de relatórios disponibilizados pela escola sobre as crianças diagnosticadas. Posteriormente, foram realizadas entrevistas semidirigidas com questionamentos básicos a respeito do TDAH e a relação da determinação diagnóstica com a vida escolar e o impacto do diagnóstico e do tratamento na vida da criança. Foram entrevistados quatro professores, três mães e uma avó. Todos os entrevistados tinham vinculação com as crianças diagnosticadas. Para a análise das entrevistas, foram usados os discursos por meio da criação de oito categorias19: quatro abordando os principais aspectos sugeridos pelas mães e avó e quatro categorias relacionadas aos discursos dos professores. Em relação às mães e avó, podemos destacar quatro categorias de análise: a) diagnóstico; b) mudanças após o tratamento; c) causas relacionadas ao TDAH; d) preocupação com o futuro. Já na visão dos professores, destacamos: a) comportamento na escola antes e após o tratamento; b) causas relacionadas ao TDAH; c) critérios e ações; d) posição na sala de aula em relação ao aluno diagnosticado.

Resultados e discussões Antes de apresentarmos as análises das categorias, iremos descrever, de maneira geral, as principais características das quatro crianças. Todos os nomes são fictícios. Pedro tem sete anos de idade, está matriculado no 2º ano do Ensino Fundamental (E.F.) e mora com a avó. Segundo ela, um médico “achou” (sic) que ele tinha um “problema” (sic) de hiperatividade e receitou um remédio do qual não lembra o nome. Segundo informações de um dos primeiros relatórios da pré-escola, a criança era quieta e conversava pouco. Já no último relatório da pré-escola, escrito no 706

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ano anterior ao ingresso no EF, Pedro apresentava dificuldades em se concentrar e cooperar com os colegas. No 1º ano, segundo a coordenadora pedagógica, a criança era bastante inquieta e hiperativa. Segundo a sua atual professora, ele é um aluno muito inteligente, mas não permanece quieto em sala de aula. Para a avó, ele presta atenção por pouco tempo nas coisas e é muito agitado até para dormir. Por conta disto, foi receitado outro remédio para ele “se acalmar e dormir à noite” (sic), mas a avó não vê melhora. Carlos está no 3º ano do E.F. e tem oito anos. Mora com os pais e possui dois diagnósticos médicos em sua ficha escolar, com um mês de diferença entre eles. No primeiro, um neuropediatra determinou o diagnóstico de TDAH, da forma combinada: hiperatividade e desatenção com prescrição de Ritalin@ e ajuda pedagógica individual. No mês seguinte, o mesmo médico diagnosticou transtorno de aprendizagem por imaturidade cerebral, justificando que “essas crianças não respondem ao psicoestimulante e que há necessidade de ajuda pedagógica individual”. A professora relata que Carlos é uma criança agitada, movimenta-se o tempo todo e não presta atenção por muito tempo. Samuel está no 4º ano do E.F., tem 11 anos e mora com os pais. Já passou por vários especialistas, com os seguintes diagnósticos: transtorno de aprendizagem, dislexia e déficit de atenção. Segundo relato da professora, ele está em “outro mundo e basta passar um bichinho em sua frente para sua atenção voltar totalmente aquilo” (sic). A mãe procurou ajuda médica devido a duas convulsões que ele teve na escola e, a partir de então, começaram as buscas por um diagnóstico. De acordo com a mãe, que relata “já estar cansada de ir atrás disso tudo e nada resolver” (sic), a família procurou ajuda profissional após a solicitação da professora do 1º ano. Conforme relatado pela mãe e professora, a criança passou a tomar Ritalin@ para ir à escola e Amytril para se acalmar e dormir à noite. Segundo a mãe, ele usou a Ritalin@ por dois meses, mas como não houve efeito, ela voltou ao médico para retirar a medicação. Para ela, a criança apresenta maiores dificuldades na escola. Henrique mora com os pais e está no 5º ano do E.F., tem dez anos e diagnóstico de déficit de atenção. Segundo a atual professora, ele tem muita dificuldade de aprendizagem e é desorganizado, embora seja muito esforçado, fato atribuído à família que é, segundo a professora, bastante presente e apoia o filho. Foi medicado com Ritalin@, o que a professora avaliou como negativo. A mãe relata que na escola ele é de um jeito e em casa é totalmente diferente; os sintomas só apareceram a partir do 3º ano da escola. Segundo ela, Henrique é agressivo e lhe falta concentração, mas considera que ele está bastante melhor agora.

1) Mães e avó a) Diagnóstico: A avó de Pedro buscou ajuda médica assim que as queixas escolares se iniciaram. Foi prescrito um tratamento medicamentoso e indicado um psicólogo, no entanto a avó mostra-se confusa e não sabe afirmar ao certo qual é o diagnóstico e como ele se deu, embora a consideração médica tenha como consequência a utilização de dois medicamentos. A mãe de Carlos também procurou auxílio médico após um contato da professora que solicitou o encaminhamento da criança que “não parava quieta na carteira” (sic). Um neuropediatra diagnosticou imaturidade cerebral e, segundo ele, a falta de concentração seria consequência desta condição. O diagnóstico de Samuel adveio de duas convulsões na escola. De acordo com a mãe, ela o levou ao médico que iniciou uma pesquisa com a criança, diagnosticada em um primeiro momento com dislexia e, posteriormente, com TDAH. Este permanece entre a condição de dislexia e déficit de atenção, já “que é um TDAH com as características de um disléxico então ficou meio entre as duas coisas...” (sic). A mãe de Henrique procurou auxílio médico por ele ser considerado muito agitado na escola, o que levou à determinação do diagnóstico de déficit de atenção. Como vimos, os quatro casos analisados apresentam ao menos duas questões em comum. Primeiramente, todos os responsáveis procuraram o auxílio médico a partir de demandas escolares, não médicas, com exceção da mãe de Samuel, que procura atendimento após as convulsões vividas pelo filho na escola. No entanto, é interessante destacar que, naquele caso, apesar da condição específica, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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seu diagnóstico final não está relacionado à condição vivida, mas aos problemas relacionados às dificuldades de leitura e atenção na instituição de ensino. Em segundo lugar, destaca-se que todas as crianças saíram da consulta médica com um diagnóstico psiquiátrico, ainda que o responsável apresente dúvidas sobre a rotulação diagnóstica. Além disso, todas as crianças foram submetidas a um tratamento medicamentoso. Neste contexto, Moysés20 alerta para o fato de que, ao se desistir de um aluno, seja pelo motivo que for – social, econômico, médico, político – com afirmações de que o não aprendizado ocorre devido a uma incapacidade individual, já se cria um futuro estigmatizado para aquela criança. Quando o aluno deixa de resistir e de se rebelar e se submete aos discursos de normalização e disciplinamento, tão presentes nos espaços escolares, poderá ser refém de uma incapacidade que não tem, mas introjetou, “preso em uma doença que não existe. Está confinado em uma instituição invisível, sem paredes, virtual”20 (p. 21). Já que aquelas crianças foram expropriadas de sua normalidade por meio da determinação diagnóstica21, acabam por incorporar a incapacidade que insistem em lembrar que têm: “Não sabem ler!”, “Não param na carteira!”. b) Mudanças após o tratamento: O tratamento determinado nos casos foi exclusivamente medicamentoso, salvo em um dos casos em que houve a indicação simultânea de atendimento psicológico. Para Pedro, foram indicadas duas medicações: uma para sua concentração durante o dia e uma para “acalmar e descansar a mente durante a noite” (sic). Para a avó, no entanto, os medicamentos não surtiram efeito “porque eu dou tudo certinho, e ele continua assim” (sic). Já o tratamento psicológico, considera bastante positivo, uma vez que o auxiliou e ocasionou mudanças em seu comportamento. No caso de Carlos, também houve indicação de dois medicamentos com o mesmo propósito: estimular durante o dia e acalmar durante a noite. No entanto, a professora procurou por sua mãe e disse não ter visto nenhum efeito positivo com a medicação. Diante disso, a mãe optou por retirar a medicação e procurar novamente o profissional médico que afirmou que “só o tempo ia ajudar ele” (sic), já que o problema era devido à imaturidade cerebral. A mãe é enfática ao dizer: “não, não houve mudança alguma após o diagnóstico” (sic). Samuel saiu da consulta médica com uma receita de Ritalin@, entretanto, conforme relatos, a medicação não ocasionou mudança alguma, o que foi justificado da seguinte forma: “a médica falou que não resolveu pelo cérebro ser imaturo. E a Ritalin@ não resolve se o cérebro não estiver maduro” (sic). Já Henrique saiu com a determinação de um tratamento psicofarmacológico e, conforme a mãe, o uso da medicação trouxe inúmeros pontos positivos, embora com o tempo a medicação tenha sido retirada, com a justificativa de que a criança entraria na 5ª série e poderia ser liberada deste tratamento. Despreocupada com efeitos colaterais e com os riscos de dependência química e psicológica, a psiquiatria atual parece determinar o uso de psicofármacos para todas as crianças consideradas problema2,22. No entanto, com exceção da mãe de Henrique, os responsáveis não viram quaisquer mudanças positivas no comportamento da criança após o uso contínuo da medicação. Percebe-se que o consumo medicamentoso tornou-se uma espécie de válvula de escape diante das demandas escolares. Contudo, frente à ineficácia do tratamento psicofarmacológico, a maioria dos responsáveis retirou a medicação no período de dois a seis meses, após constatarem que não obtiveram o efeito esperado. Destaca-se que a argumentação para a retirada da medicação permeou o discurso de que o problema era de ordem individual e biológica: imaturidade cerebral. O tratamento psicológico foi considerado positivo no único caso em que foi indicado. c) Causas relacionadas ao TDAH: As causas atribuídas às dificuldades apresentadas pelas crianças são variadas e, de modo geral, os responsáveis se mostram confusos em relação à questão. A avó de Pedro pontua a rejeição dos pais como um fator emocional – psicológico – que culminaria no suposto problema da criança, como a 708

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causa de seu hipotético transtorno: “A rejeição eu acho que se torna algum problema pra criança” (sic). O lado genético também é destacado, sobretudo pela mãe de Carlos: “Será que não é genético? De alguém que ele... (sic). [...] Eu, por exemplo, eu não faço uma coisa só ao mesmo tempo”. (sic). Para a mãe de Samuel, o TDAH é um distúrbio da própria criança que se encontra no âmbito fisiológico: “Acho que é da própria criança, né? Não tem como a gente saber o que passa no cérebro, né?” (sic). Por fim, a mãe de Henrique não atribui causa alguma e, apesar de afirmar não saber, localiza no âmbito do comportamento adquirido. Embora todos ainda apresentem dúvidas e incertezas, é perceptível nas colocações das entrevistadas a ênfase pelas concepções causais do TDAH relacionadas aos problemas individuais, sejam de ordem psicológica, genética, cerebral e/ou comportamental. Conforme Patto15, no atual panorama psicologizante, se enfatizam processos de individualização, nos quais se desconsideram as problemáticas que envolvem as relações institucionais e o problema passa, então, a ser exclusivamente do aluno que não aprende e do filho que não se comporta adequadamente. d) Preocupação com o futuro: Uma questão patente nas entrevistas é a preocupação com o futuro das crianças. A avó de Pedro teme o que possa acontecer no futuro: “eu estou fazendo tudo, tudo que tiver no meu alcance pra ajudar ele, pois quero que ele seja uma criança, assim, normal, como as outras crianças que acompanham... Quero que amanhã ele tenha um futuro...” (sic). A mãe de Carlos também destaca sua preocupação com o futuro, “eu quero fazer hoje o melhor pra depois, né...” (sic). Salienta, ainda, o desejo de encontrar uma solução: “eu paguei uma consulta de R$ 400,00, comprei remédio, se fosse isso... se a médica falasse pra mim: ‘é isso que vai resolver o caso dele’, eu tinha continuado. Fazia de tudo” (sic). Para a mãe de Samuel, o futuro da criança é relativo: se a família der apoio e incentivo, pode ser melhor: “tem que ser positivo, né? Tem que ser sempre... Não pode ser negativo pra falar que ele não vai conseguir que senão não vai conseguir mesmo” (sic). Já a mãe de Henrique declara que não tomar providências hoje pode causar problemas futuros como, por exemplo, “andar com má companhia, essas coisas [...]” (sic). Fica evidente quanto o imaginário das mães/responsáveis é amplo no que diz respeito à forma como um diagnóstico psiquiátrico pode repercutir no futuro da criança, além de ser revelada a esperança de que o tratamento médico e medicamentoso possa transformar e proporcionar uma condição de vida melhor para a criança. Com efeito, no imaginário social, o diagnóstico e tratamento médico se misturam com questões que não são de ordem exclusivamente médica e se aproximam de aspectos do âmbito legal e criminal22.

Professores a) Comportamento: Para os professores, o comportamento da criança é fundamental para a determinação do diagnóstico e tratamento do TDAH. Pedro, segundo sua professora, é constantemente agitado. “É inteligente, porém, totalmente disperso” (sic). A professora de Carlos destaca a dificuldade do aluno em permanecer sentado: “Chega a doer nele, chega a doer, ser físico, causa angústia nele ficar sentado por mais de dois, três minutos. Ele precisa levantar. É uma necessidade dele. Do movimento constante...” (sic). Para a professora de Samuel, a criança “só está ali de corpo presente [...] ela fica alheia a tudo que está à sua volta” (sic). Já a de Henrique declara que a dificuldade de comportamento da criança é, sobretudo, de atenção, que acaba dificultando sua aprendizagem. Em relação às mudanças de comportamento percebidas após o diagnóstico, os resultados demonstram que todas as professoras veem a conscientização e a determinação do diagnóstico como positivas, pois se desejava uma explicação médica que só advinha, segundo elas, após o apoio da família. No que concerne ao tratamento, há diferentes opiniões. Em relação às mudanças propiciadas pelo uso de medicação, uma das professoras alegou não ter notado diferenças no comportamento do aluno, e duas consideraram seu uso negativo por acreditarem que o psicofármaco produzia efeitos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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inadequados e indesejáveis: “porque ter uma criança dopada também aos oito anos, nove anos de idade não resolve nenhum problema, né?” (sic). (Professora de Henrique). Chama a atenção o fato de que a melhora da condição da criança considerada problema em sala de aula está associada sobretudo à participação em atividades, tais como estímulo pedagógico e natação, esta vista como um exercício que “acalma” os alunos. Dessa forma, percebe-se que, apesar de as professoras julgarem positiva a determinação do diagnóstico TDAH, a solução tida como essencial pela medicina, sempre pautada na prescrição de psicofármacos2, não é considerada relevante pelo corpo docente para as mudanças comportamentais das crianças em sala de aula. b) Causas relacionadas ao TDAH: Todas as professoras apontam a questão familiar como causa da dificuldade apresentada pela criança. Para algumas, existem questões genéticas e psicológicas (como fatores relacionados à rejeição e ao trauma). Uma das professoras considera que a família é crucial e a genética influencia; para outra, a genética é a principal causa e a família exerce alguma influência. Este fato coloca em questão a importância dada ao biológico a fim de uma comprovação científica localizada no sujeito – uma doença genética. Apenas uma professora apontou a questão socioeconômica: “A gente não conhece as crianças fora daqui. Então, a maior parte tem problemas sérios familiares, como rejeição... A gente percebe muita pobreza” (sic). (Professora do Pedro). “Seria um transtorno genético ou é... como colocaria? Em algum momento da vida... passado por um trauma ou algum outro tipo de transtorno teria gerado esse problema a nível psicológico” (sic). (Professora do Carlos). “Então pode ser problema familiar e pode ser também alguma genética, algum problema de saúde mesmo, mental” (sic). (Professora do Samuel). “Eu acho que a causa é biológica, apesar de que eu penso que a família poderia não controlar, mas acho que a família é importante desde que saiba e aja a favor disso” (sic). (Professora do Henrique). c) Critérios e ações: Ao se depararem com comportamentos que chamam a atenção, as professoras, de modo geral, tomam algumas atitudes. A de Pedro elabora relatórios, indica os “alunos problemáticos” à coordenação e tenta recomendar alguma atividade, como equoterapia, natação ou estímulo pedagógico, mas ressalta que não encaminha a criança por estar atrapalhando, pura e simplesmente: “Se ela atrapalha, mas faz, então não tem motivo pra mandar...” (sic). A professora de Carlos também dirige os casos à coordenação com o objetivo de fazer com que a criança obtenha um laudo, “porque assim de repente essa criança tem algum outro tipo de transtorno” (sic). Seu critério é a observação em sala de aula. A professora de Samuel também faz o encaminhamento e a elaboração de relatórios, mas seu método é a sondagem. Ela afirma: “eu vou ditando, a criança vai escrevendo, e você vai vendo o nível que a criança está, se ela está em um nível pela idade dela, dependendo do nível que ela está, alguma coisa está errada” (sic). Então perguntamos a ela: “e pela sondagem você observa também a dificuldade de comportamento, por exemplo, a hiperatividade e desatenção?” (sic). Ao que ela responde: “sim, por ali eu observo tudo” (sic). A professora de Henrique, quando desconfia de alguma coisa, a partir de agitações fora do comum, falta de atenção ou dificuldade de aprendizagem, envia “para uma pessoa responsável, conversa com a família e indica tratamento psicológico, um atendimento avaliativo mesmo, pra que sejam tomadas as medidas necessárias” (sic). Percebe-se que, como as professoras relacionam a causa do problema a questões de ordem individual, familiar, biológica, orgânica ou cerebral, a forma como determinam os critérios para identificar o aluno que apresenta dificuldades ou problemas de comportamento sempre está direcionada aos gestos, atitudes, modos de ser, falar e se comportar da criança, e nada tem a ver com as relações institucionais ou com o sistema educacional22. d) Posição na sala de aula em relação ao aluno diagnosticado: Apesar do discurso preponderante de que os alunos não se sentem diferentes em relação aos outros, quando indagados a respeito do modo como lidam com essas crianças em sala de aula, todos 710

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afirmam ter posições diferenciadas: colocar a carteira próxima ao professor, chamar atenção, passar atividades mais lúdicas, entre outras. “A minha posição é igual com todas as crianças. Eu não faço distinção nenhuma... A única coisa é que ele se sobressai, então, você tem que chamar mais atenção... E normalmente, ele senta na frente” (sic) (Professora de Pedro). “Ah, ele senta na frente, próximo a mim. Eu procuro tratá-lo como os outros, sem distinção nenhuma, não tenho essa questão de ‘ele é laudado, vou tratar diferente’ não” (sic) (Professora de Carlos). Para a professora de Samuel, a questão é mais complexa. Ela afirma: “Eu até inclusive separei um pouquinho a sala. Eu tento não deixar muito na cara que eles estão assim divididos. Porque os que eu sinto que necessitam de uma atenção especial na verdade são quatro alunos da minha sala. Então, o que eu fiz: os coloquei bem pertinho um do outro e aí os outros que achamos ter uma facilidade maior deixamos um pouco mais livres. Assim, não há uma separação nenhuma entre eles. Só a carteira deles que fica mais perto, né? Trago atividades diferenciadas pra eles... dentro do que estudamos em sala, eles aprendem de uma maneira mais lúdica. De vez em quando ainda dá pra encaixar eles em alguma atividade que eu faço com os demais alunos” (sic) (Professora do Samuel). Neste caso, fica clara a repercussão e o efeito que um diagnóstico pode produzir em sala de aula. A professora nega a diferença, mas age de maneira absolutamente diferente. Para a de Henrique, a localização em sala de aula também é destaque: “ele senta sempre em frente à minha mesa” (sic). Em todas as situações relatadas, pode-se perceber como as docentes apresentam comportamentos que, ainda que acusem o contrário e tentem mostrar comprometimento com os alunos diagnosticados, perpassam pela diferenciação e classificação binária entre grupos de alunos considerados adequados e bons e, do outro lado, inadequados e ruins – fato evidenciado pela forma de colocar o aluno com dificuldades próximo à mesa do professor ou separar na sala de aula os que não apresentam grandes dificuldades de aprendizagem.

Considerações finais O saber médico-psiquiátrico da atualidade parece não se atentar à criança enquanto ser em processo de subjetivação que vive, deseja e expressa seus conflitos existenciais de maneira singular, conforme as especificidades sociais, culturais, políticas que também influenciarão na constituição da história de vida de cada indivíduo22. Destarte, a tarefa da medicina se reduz a categorizar comportamentos, gestos e atitudes consideradas inadequadas e determinar diagnósticos e tratamentos, em sua maioria, medicamentosos, sem restrições. Transformam-se, então, comportamentos infantis que divergem do esperado em doenças, sustentando um processo de patologização que possui um aval científico e médico supostamente inquestionável. Nota-se que, apesar de os relatos de pais e professoras a respeito da ineficácia da medicação, a busca por uma solução terapêutica rápida é preponderante diante das dificuldades apresentadas ou notadas nas crianças. No âmbito escolar, o uso da medicação é um processo cada vez mais presente, independente do fato apontado nesta pesquisa a respeito de os professores não notarem melhoras no comportamento da criança medicada. Tal posicionamento corrobora a literatura sobre o tema, a qual aponta uma popularização do saber psiquiátrico, que exclui o saber parental constitutivo do laço social e afetivo, para reduzi-lo apenas ao saber médico. De fato, o saber parental e até mesmo popular se enfraquece diante de uma afirmação médica a respeito do comportamento infantil, já que ao longo do tempo a ciência médica se caracterizou como a ciência que ditaria o modo e a maneira correta e saudável de se colocar no mundo4. Isto leva pais e professores a buscarem fora de seus domínios a resolução para seus problemas, apoiando-se na palavra final do especialista. Com efeito, é bastante presente no discurso dos pais e responsáveis o fato de que as dificuldades surgiram na escola e, de certa forma, após o apontamento do problema, todos buscaram ajuda e seguiram as recomendações oferecidas pelos especialistas consultados. Tal fato parece estar relacionado ao processo de desresponsabilização dos pais e responsáveis diante dos sofrimentos e problemas enfrentados pelos filhos, o que acarreta a busca pelo saber do especialista por considerarem que o problema apresentado extrapolou a capacidade delegada à sua função parental3. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Graças à busca por soluções milagrosas que possam sanar as dificuldades da vida é que inúmeras crianças são medicalizadas nas instituições de educação e, posteriormente, medicadas. Professores depositam essa incumbência na ciência médica, mas o problema, na maioria das vezes, tem outro caráter. A educação sofre influência de déficits não orgânicos, mas políticos, econômicos e sociais, como o baixo incentivo, salas lotadas, desvalorização da atuação profissional, além de cursos despreparados para formação de profissionais qualificados, entre inúmeros outros. Percebe-se que as dificuldades apresentadas são compreendidas e localizadas unicamente no indivíduo, ou seja, na criança. Com efeito, considera-se que a forma de se compreenderem as pretensas dificuldades dos alunos está imersa na lógica medicalizante que tem como ferramenta a utilização de tecnologias e saberes para o controle do comportamento das crianças, o que reduz toda a constituição subjetiva, composta pelas relações familiares, escolares e sociais a apenas um diagnóstico e, portanto, a uma doença que justificaria falhas, dificuldades e sofrimentos.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Foucault M. Crise da medicina ou crise da antimedicina. Rev Verve. 2010; 1(18):167-194. 2. Iriart C, Rios LI. Biomedicalización e infancia: trastorno de déficit de atención e hiperactividad. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1011-23. 3. Vorcaro A. O efeito bumerangue da classificação psicopatológica da infância. In: Jerusalinsky A, Fendrik S, organizadores. O livro negro da psicopatologia contemporânea. 2a ed. São Paulo: Via Lettera; 2011. p. 219-29. 4. Foucault M. O nascimento da Medicina Social. In: Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1979. p. 79-98. 5. Foucault M. O poder psiquiátrico: curso no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes; 2006. 6. Illich I. A expropriação da saúde. Nêmesis da medicina. 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1975. 7. Martins AL. A psiquiatrização da vida na sociedade de controle. In: Carvalho SR, Barros ME, Ferigato S, organizadores. Conexões: saúde coletiva e políticas da subjetividade. São Paulo: Hucitec; 2009. p. 119-40. 8. Moysés MAA, Collares CAL. Dislexia e TDHA: uma análise a partir da ciência médica. In: Conselho Regional de Psicologia, Grupo Interinstitucional Queixa Escolar, organizadores. Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2010. p. 71-110.

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artigos

9. Caliman LV. O TDAH: entre as funções, disfunções e otimização da atenção. Psicol Estud. 2008; 13(3):559-66. 10. Caliman LV, Domitrovic N. Uma análise da dispensa pública do metilfenidato no Brasil: o caso do Espírito Santo. Physis. 2013; 23(3):879-902. 11. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 35a ed. Petrópolis: Vozes; 2008. 12. Deleuze G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Deleuze G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34; 1992. p. 219-26. 13. Machado AM. Plantão institucional: um dispositivo criador. In: Machado AA, Fernandes AMD, Rocha ML, organizadores. Novos possíveis no encontro da psicologia com a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p. 117-45. 14. Costa JSF. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. 5a ed. Rio de Janeiro: Garamond; 2007. 15. Patto MHS. A produção do fracasso escolar: história de submissão e rebeldia. 2a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2000. 16. Foucault M. A verdade e as formas jurídicas. 2a ed. Rio de Janeiro: Nau; 1999. 17. Prado Filho K, Trisotto S. A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault. Rev Aulas Dossiê Foucault. 2007; 1(3):1-14. 18. Caliman LV. A biologia moral da atenção: a constituição do sujeito desatento [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2006. 19. Turato ER. Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa. 2a ed. Rio de Janeiro: Vozes; 2003. 20. Moysés MAA. A institucionalização invisível: crianças que não aprendem na escola. São Paulo: Fapesp; 2001. 21. Mantilla MJ, Alonso JP. Transmisión del diagnóstico en psiquiatría y adscripción de identidades: perspectivas de los profesionales. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):21-32. 22. Collares CL, Moysés MA, Ribeiro MF, organizadores. Novas capturas, antigos diagnósticos na era dos transtornos. Campinas: Mercado de Letras; 2013.

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Cruz MGA, Okamoto MY, Ferrazza DA. El caso del Transtorno do Déficit de Atención e Hiperactividad (TDAH) y la medicalización de la educación: un análisis a partir de la narración de padres y profesores. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):703-14. Las dificultades de comportamiento en la infancia han sido blanco de inúmeras discusiones en el área médica y educacional, sobre todo en los últimos años. Con esto, dos fenómenos interrelacionados sobresalen: la medicalización y la patologización de la infancia. La medicina y la psiquiatría son saberes productores de estos procesos al crear y recrear categorías diagnósticas que justifiquen inúmeros problemas de la red de relaciones complejas que caracterizan el ambiente escolar. Desde esta perspectiva, pretendemos traer el relato de padres y profesores de una escuela pública del interior de São Paulo sobre alumnos, con edad entre siete y 11 años, diagnosticados con Transtorno do Déficit de Atención e Hiperactividad (TDAH) y relacionarlo con las discusiones acerca del proceso de medicalización en la actualidad. Se considera que los niños que presentan dificultades de aprendizaje o comportamiento son categorizados como un cuerpo biológico a-histórico desprovisto de vida social y afectiva.

Palabras clave: TDAH. Medicalización. Infancia. Padres. Profesores.

Recebido em 09/10/15. Aprovado em 22/01/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0432

artigos

Mentoring: uma vivência de humanização e desenvolvimento no curso médico

Ana da Fonseca Martins(a) Patrícia Lacerda Bellodi(b)

Martins AF, Bellodi PL. Mentoring in medical students: a humane and developmental experience. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):715-26.

Through a close relationship with the students, mentoring programs offer personal support and an environment for professional development. The objective was to understand the lived experience of medical students of Federal University of Minas Gerais (UFMG), Brazil, in the Mentoring Program. A documentary research was performed with phenomenological analysis of the students’ reports at the end of the Mentoring Program. The elements of the experience in the reports present three thematic groups: 1 The context of Mentoring, 2 The experience of Mentoring, 3 The experience’s evaluation. The Mentoring relationship contributed both in facing the vicissitudes of training and in the exercise of skills such as listening, acceptance and communication, fundamental skills contributing to the good performance of the medical professionals in their daily life. The experience of mentoring students showed intersections between the support for students and the demands of training in humanistic areas in medical education.

Keywords: Mentoring. Tutoria. Medical education. Documentary research. Phenomenology.

Programas de Tutoria, por meio de uma relação próxima junto aos alunos, oferecem suporte e, também, um ambiente de reflexão para uma formação profissional segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Medicina. O objetivo foi compreender a experiência vivida por alunos de Medicina na atividade de Tutoria da da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Pesquisa documental com análise fenomenológica dos relatórios produzidos pelos alunos. Os elementos experienciais revelaram três conjuntos temáticos: 1 O contexto da tutoria; 2 O vivido na tutoria; 3 A avaliação da experiência. A relação de tutoria mostrou contribuir tanto no enfrentamento das vicissitudes da formação quanto no exercício de habilidades como: a escuta, a aceitação e a comunicação, fundamentais para a boa atuação do médico. Revelando interseções entre as ações de suporte ao estudante e as demandas de formação em áreas humanísticas no currículo médico.

Palavras-chave: Mentoring. Tutoria. Educação médica. Pesquisa documental. Fenomenologia.

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(a) Núcleo de Apoio Psicopedagógico ao estudante de medicina, Universidade Federal de Minas Gerais. Rua Alfredo Balena, 190, 1° andar, sala 30. Belo Horizonte, MG, Brasil. anamartinspsicologa@ gmail.com (b) Centro de Desenvolvimento de Educação Médica, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. ptbellodi@ uol.com.br

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Introdução Em sua jornada acadêmica, o aluno de medicina terá a desafiante tarefa de transformar as motivações iniciais em uma prática profissional competente do ponto de vista técnico, ético e humano. Neste processo de desenvolvimento longo e exigente¹, programas de mentoring oferecem suporte acadêmico e pessoal aos estudantes, por meio da interação com uma pessoa experiente e empática, o mentor². Desenvolvido durante os anos 1970, nos Estados Unidos, os programas de mentoring começaram a ser inseridos na área de saúde nos anos 1990, sobretudo nas escolas de enfermagem. No contexto da formação médica, Bellodi3 define mentoring como: “uma modalidade especial de relação de ajuda em que, essencialmente, uma pessoa mais experiente acompanha de perto, orienta e estimula – a partir de sua experiência, conhecimento e comportamento – um jovem iniciante em sua jornada no caminho do desenvolvimento pessoal e profissional” (p. 53). Escolas médicas desenvolvem programas de mentoring com diferentes objetivos, como: a adaptação ao ambiente acadêmico, o estímulo a áreas de atuação específica, o acolhimento a demandas específicas de grupos minoritários, além da ampliação da rede de relações acadêmicas e profissionais3-10. Podendo adotar diferentes formatos, é fundamental que a atividade respeite as necessidades e os objetivos do corpo discente e docente e busque a participação ativa dos envolvidos6,11. Para entender quais fatores contribuem para a qualidade de um programa de mentoring, é preciso investigar as características próprias dessa relação, a configuração do programa e, especialmente, a visão de seus integrantes sobre ele12. Entretanto, são poucos os estudos que examinam as experiências de alunos, tal como eles as vivenciam e representam. Em geral, os estudos realizam avaliações de satisfação, numa abordagem quantitativa e pouco compreensiva da experiência como um todo13-15. Numa perspectiva fenomenológica, a partir de depoimentos dos próprios alunos, este estudo buscou preencher essa lacuna, buscando responder: qual a relevância do mentoring para os alunos? Como esta atividade influencia sua formação e sua vida na faculdade? E, sobretudo, qual o significado da experiência de mentoring para eles?

Metodologia Pesquisas qualitativas buscam apreender as relações, representações, percepções e opiniões que os seres humanos fazem a respeito de como vivem16. Sendo a vivência dos alunos de medicina no mentoring parte deste universo das percepções humanas, adotou-se, neste estudo, uma abordagem qualitativa de pesquisa com a análise fenomenológica de depoimentos produzidos pelos participantes ao final da experiência.

Contexto Tal como em outros países, o interesse pelo mentoring na formação médica vem crescendo no Brasil. Na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (FM UFMG), a atividade de mentoring teve início em 2001, a partir da demanda detectada de alunos com problemas afetivos e sociais que interferiam em seu desenvolvimento acadêmico e pessoal. Por motivos curriculares, o mentoring efetivou-se como uma atividade obrigatória no início do 3º ano do curso, momento tradicionalmente marcado por aumento no nível de estresse acadêmico em razão da transição do Ciclo Básico para o Ciclo Clínico, quando acontecem os primeiros atendimentos. A carga horária da atividade é de 45 horas semestrais, dividida em encontros semanais de duas horas. Os cento e sessenta alunos do 3º ano acadêmico são distribuídos em grupos com dez a 15 alunos, onde, acompanhados por um mentor, são estimulados a refletir sobre as experiências da formação acadêmica e suas repercussões17.

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Pesquisa documental A base documental desta pesquisa consistiu nos relatórios dos alunos que participaram do mentoring entre os anos de 2001 e 2010. Esses relatórios são uma produção livre e pessoal, contendo percepções, avaliações e descrições sobre a experiência. O relatório é identificado, entregue ao mentor e, apesar de não ser avaliado por conceito ou nota, sua produção, juntamente com 75% de presença nos encontros, é obrigatória. O arquivamento dos relatórios é feito pela faculdade. A coleta dos dados partiu dos relatórios arquivados, seguida de busca ativa junto a tutores passados e atuais. Os 539 relatórios obtidos foram organizados segundo o ano em que foram produzidos. Foram retirados aqueles considerados de difícil leitura. Depois, foram selecionados aqueles com maior descrição dos encontros de mentoring, ficando a amostra reduzida a duzentos relatórios. A leitura dos duzentos relatórios foi orientada pelo objetivo da pesquisa – compreender a experiência vivida pelos alunos no mentoring. O procedimento de saturação foi aplicado considerando os dez anos da amostra, iniciando-se a leitura dos relatórios de 2001 até o momento de redundância das informações desse ano. Em seguida, passou-se para a leitura dos anos seguintes em busca de novos temas, além da confirmação dos temas encontrados anteriormente. Houve a inclusão de, no mínimo, um relatório por ano. Ao final, 25 relatórios compuseram o grupo final de depoimentos utilizados no estudo.

Análise fenomenológica Para a análise fenomenológica dos relatórios, foram adotados os seguintes passos18. 1. Sintonização com o todo da experiência – leitura sistemática dos relatórios buscando compreender o sentido global da experiência dos alunos no mentoring; 2. Encontro dos elementos experienciais – agrupamento em unidades temáticas dos conteúdos expressos; 3. Síntese ou articulação final – elaboração de síntese e posterior diálogo com outros autores.

Resultados Os elementos experienciais presentes nos relatórios deram origem a três conjuntos temáticos: o contexto do mentoring, mentoring vivido e a avaliação da experiência. Em cada um desses conjuntos, identificaram-se as principais vivências dos alunos, ilustradas com trechos de seus depoimentos.

O contexto do mentoring Vivência de necessidade O estudante de medicina vive situações estressantes durante todo o curso, e os alunos, sem exceção, reconheceram a necessidade do mentoring neste ambiente exigente e competitivo: “Acho que todo estudante de medicina passa por etapas difíceis desde o vestibular até o final do curso, a residência. Ele se encontra diante de uma vida estressante, sem tempo para cuidar de si próprio. Por isso a tutoria é tão importante”. (Depoimento 06, 2001) “A vida de um estudante de medicina é bastante complicada. Se não bastasse a quantidade de matéria que deve ser estudada, há ainda as constantes mudanças, que sempre acarretam traumas. Devido a isso, o aluno de medicina precisa da tutoria”. (Depoimento 14, 2004)

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Vivência de pertinência A inserção do mentoring no início do 3º ano do curso, momento de transição para o ciclo profissional, foi validada como um momento oportuno para a atividade: “Partindo de uma etapa com temas básicos, aterrissamos na realidade médico-paciente. Começamos a sentir na pele nossas limitações e isso me angustiou um pouco”. (Depoimento 09, 2002) “Acho que a tutoria vem na hora certa, no começo do ciclo profissional, quando estamos cheios de dúvidas e inseguranças”. (Depoimento 25, 2010)

O mentoring vivido Vivências iniciais negativas As expectativas iniciais dos alunos sobre o mentoring oscilaram entre a desinformação, o desinteresse e as impressões negativas. “No início do semestre, eu não sabia o que esperar dessa atividade, meu pensamento era - pelo menos essa não tem prova”. (Depoimento 20, 2008) “Os comentários não eram dos melhores: ‘Não serve pra nada’ “2 horas perdidas jogadas fora’, ‘Até hoje não sei para que serve aquilo’, ‘você senta e bate-papo’”. (Depoimento 15, 2005)

Vivência de abertura e liberdade Após as dúvidas e resistências iniciais, o mentoring foi descrito, em muitos depoimentos, como um espaço aberto e seguro para a exposição das necessidades dos alunos: “O trabalho da tutoria representou um porto seguro, um lugar para externar os receios, os medos, as angústias do curso e da vida como um todo”. (Depoimento 17, 2006) “Interagimos mais uns com os outros e não deixamos de ter momentos de reflexão”. (Depoimento 19, 2007)

Ter liberdade na escolha dos temas e na expressão das opiniões foi de grande importância na experiência: “O fato de o tema dos encontros ser livre foi fundamental. Nos deu liberdade para expressar nossas opiniões e também para escutar as mais diferentes opiniões dos colegas”. (Depoimento 11, 2003) “Os temas propostos para a atividade são de escolha dos alunos que falam livremente, se expõem e conhecem a si e aos outros”. (Depoimento 14, 2004)

Nesse espaço aberto, diferentes temas surgiram, promovendo intensa troca de informações sobre o presente e o futuro profissional:

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“Dúvidas sobre o modo de estudar, o que estudar e outras instruções foram de imensa relevância. Problemas com professores de determinadas disciplinas foram também abordados. Fomos orientados sobre o que poderíamos fazer para nos organizar e encarar as dificuldades surgidas”. (Depoimento 05, 2001)

Discussões sobre a relação médico-paciente foram incentivadas e colaboraram para diminuir dúvidas e antecipar situações de difícil manejo: “A relação médico-paciente foi um tema central nos encontros do grupo. Dúvidas sobre como proceder em determinadas situações foram esclarecidas com a ajuda dos colegas e da tutora”. (Depoimento 11, 2003) “A discussão sobre como abordar o paciente e sua família em situações graves foi fundamental pra mim, pois não passei por tais situações...” (Depoimento 20, 2008)

Vivência de uma relação diferente Nos encontros de mentoring, os alunos puderam estabelecer uma nova qualidade de relação. O tutor foi reconhecido como um professor sensível ao aluno e suas habilidades interpessoais foram destacadas no manejo do grupo: “A tutora, com sua delicadeza e compreensão, foi de fundamental importância para que os encontros fossem produtivos. Ela nos mostrou que é possível conciliar diferenças e nos mostrou vários caminhos para resolver nossos problemas”. (Depoimento 11, 2003) “Os conflitos, embora ainda existam, perderam um pouco de importância nas discussões. Nesse momento, a função de mediadora da professora foi crucial”. (Depoimento 25, 2010)

Os alunos conheceram mais e melhor os colegas. Desafios e sentimentos análogos eram reconhecidos e os recursos de enfrentamento às dificuldades comuns eram ampliados: “[...] parte do grupo nunca tinha convivido. Nossos encontros permitiram conhecer mais a fundo essas pessoas, saber de seus medos, das dificuldades que cada um passou”. (Depoimento 20, 2008) “Confesso que quando percebi nos encontros de tutoria que outras pessoas viviam problemas semelhantes ao meu, como a angústia de estudar e não aprender, fiquei mais conformada e me sentindo menos só”. (Depoimento 12, 2003)

Diferenças de opinião também surgiram no grupo, gerando conflitos, mas também crescimento: “[...] nosso grupo é bastante heterogêneo. Apesar disso e talvez até por isso, crescemos bastante em termos de convivência e tolerância”. (Depoimento 10, 2003)

Alguns alunos ressaltaram maior consciência de si mesmos como um efeito da atividade: “Falei de problemas de minha personalidade. Normamente eu sou muito fechada e realmente não sei por que falei com facilidade”. (Depoimento 12, 2003) “[...] o que mais foi útil foi que me conheci um pouco mais. Agora sei que nem sempre as minhas opiniões são certas, que devo respeitar as ideias contrárias. Essa arrogância que tanto critico nos outros, descobri fazer parte também de mim”. (Depoimento 14, 2004)

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A avaliação da experiência Vivência de desenvolvimento Os alunos reconheceram, no mentoring, uma experiência de desenvolvimento integral: “O mentoring é imprescindível para o curso médico por torná-lo menos árduo e descomplicado e mais pleno tanto no aspecto pessoal como profissional”. (Depoimento 03, 2001) “[...] acho que a tutoria foi de grande valia para mim... ou seja, foi um período de crescimento pessoal e acadêmico”. (Depoimento 18, 2007)

O desenvolvimento de habilidades relacionais, por meio do exercício do diálogo nos encontros, foi especialmente valorizado pelos alunos: “se há mais diálogo, o aluno fala e ouve mais e, portanto, reflete mais sobre a questão. Como é algo da vivência, é mais provável que ele aplique o que aprendeu”. (Depoimento 22, 2009) “... aprendemos a ouvir nossos colegas, às vezes concordamos com eles, às vezes discordamos, mas sempre respeitando. Treinar este hábito é fundamental”. (Depoimento 01, 2001)

Vivência de bem-estar Os alunos também reconheceram que o mentoring contribuiu para o seu bem- estar pessoal e para o convívio saudável em grupo: “[...] mesmo que o mentoring não tenha pretensões de ser uma terapia de grupo, ela acaba servindo para aliviar a tensão e o medo de tantas coisas desconhecidas”. (Depoimento 10, 2003) “Eu sempre saía da tutoria mais tranquilo e pronto para encarar a pressão do cotidiano”. (Depoimento 25, 2010) “Aprendi também a me relacionar em grupo e acho que o grupo todo se conheceu melhor”. (Depoimento 14, 2004)

Vivência de humanização Os alunos identificaram o mentoring como um necessário movimento de humanização do curso de medicina: “A faculdade não serve pra nada se não reconhecer que seus alunos e funcionários são, antes de tudo, seres humanos”. (Depoimento 10, 2003) “A tutoria é um espaço que ajuda na humanização do curso e da prática médica”. (Depoimento 11, 2003)

Vários alunos, ao valorizarem a experiência, sugeriram sua continuidade e expansão para outros momentos do curso: “A tutoria foi uma atividade muito importante para o grupo e deveria ser estendida a outros períodos”. (Depoimento 02, 2001)

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“Se houvesse opção de fazer tutoria novamente eu faria”. (Depoimento 12, 2003) “Gostaria de ter mais espaços como esse ao longo do curso”. (Depoimento 25, 2010)

Vivência de confusão e desconforto Alguns alunos criticaram a atividade, especialmente em relação à clareza dos objetivos e às diferenças de condução dos grupos pelos diferentes mentores: “Posso não ter compreendido o propósito da disciplina, mas acho que isso não ficou claro para ninguém... Basta olharmos os grupos, cada tutor tem uma proposta e um conteúdo diferentes”. (Depoimento 13, 2004) “[...] foi possível perceber uma grande diferença entre os grupos e diversas vezes ouvimos colegas dizendo que não gostavam da tutoria”. (Depoimento 20, 2008)

Ser um espaço aberto despertou também receios diante da exposição: “Como fazer tudo que a tutoria se propõe sem invadir a privacidade de aluno? Como quebrar a inibição do aluno de falar?” (Depoimento 02, 2001) “muitas coisas que acontecem não são mencionadas por o aluno ter receio e até mesmo vergonha de expor o problema” (Depoimento 07, 2001)

Vivência de falta de tempo O grande volume de atividades no curso dificultou a participação na atividade. Nesse contexto, os alunos reconheceram que, sem a obrigatoriedade, o mentoring não ocorreria: “Estávamos tão presos num modelo de estudo integral, aula de manhã e à tarde, estudar o tempo todo, que nem tínhamos tempo sequer para trocar experiências, relaxar e tentar ver as coisas de outro ângulo”. (Depoimento 25, 2010) “O motivo para a ausência no mentoring se devia ao escasso tempo que acabava nos restando para o estudo das outras disciplinas”. (Depoimento 08, 2002)

Vivência de tempo perdido Por fim, alguns alunos consideraram a participação no mentoring como irrelevante para o seu desenvolvimento acadêmico: “Foi bom conversar, discutir e ouvir, mas acho que meu tempo foi desperdiçado”. (Depoimento 13, 2003) “Estávamos ali reunidos para conversar temas que considero de pouca importância, enquanto poderia aproveitar melhor estudando”. (Depoimento 16, 2005)

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Discussão Este estudo buscou compreender a experiência de alunos de Medicina ao participarem de uma atividade de mentoring no início do 3º ano do curso de graduação. Em seus depoimentos, os alunos vivenciaram a necessidade de suporte para as dúvidas e angústias geradas durante o curso de Medicina, reforçando estudos que apontam a influência negativa do curso médico na qualidade de vida do estudante19-24. Confirmando a vocação do mentoring como estratégia de suporte importante para os momentos de transição25-27, a inserção da atividade no início do 3º ano do curso, marcado pelos primeiros contatos com os pacientes, foi considerada pertinente pelos alunos. Recebido, no início, com dúvidas e alguma negatividade por parte dos veteranos, o mentoring foi vivenciado, ao longo do tempo, como espaço de liberdade e abertura. Em clima descontraído, propício a interações espontâneas, vários e diferentes assuntos puderam ser discutidos em sintonia com o objetivo do mentoring de considerar o aluno como um todo28-31. Embora o mentoring tenha sido planejado para auxiliar na transição dos alunos em direção ao maior contato com a prática médica, os depoimentos revelaram, como um forte elemento da experiência, e seu maior efeito, uma qualidade diferenciada de relação entre os alunos e destes com seu mentor. O mentor constituiu um companheiro mais experiente de jornada, que auxiliou o aluno na construção de novas formas de interação, oferecendo-se como modelo para o exercício da escuta, da tolerância e do convívio em grupo. Poucas críticas foram encontradas nos relatos dos alunos em relação aos mentores. É preciso destacar, entretanto, o fato de os relatórios serem identificados, o que pode ter influenciado e até inibido a expressão de opiniões negativas. Sabe-se que alunos, mesmo numa relação de mentoring ruim, têm receio de romper com o mentor e ser alvo de retaliação institucional29. Os alunos, ao longo dos encontros, puderam desenvolver sua forma de interação com os colegas. Dúvidas e sentimentos semelhantes contribuíram para a diminuição do clima de competitividade. Vividas como desafios de convivência, as diferenças entre eles enriqueceram as discussões e proporcionaram novas perspectivas sobre temas discutidos. Alguns alunos, entretanto, se sentiram “perdendo tempo” frente ao não definido e ao não estruturado. Sabe-se que atividades reflexivas encontram resistência entre estudantes de Medicina, que não percebem o valor deste tipo de atividade para o aprendizado dos conteúdos curriculares e auxílio nas avaliações. A falta de tempo e o excesso de trabalho, bem como o desconforto em discutir em grupo30, também justificam esse tipo de avaliação, tal como encontrado em nossos achados. Os depoimentos revelaram, também, críticas em relação ao propósito da atividade, o que não parece exclusividade deste programa em especial. A literatura da área mostra que a diversidade de ideias associadas ao conceito de mentoring tem gerado dificuldades na definição de seus objetivos e práticas31. O tempo investido nos encontros de mentoring foi considerado positivamente por alguns alunos, sensíveis a atividades de cunho relacional. Outros sugeriram a diminuição da carga horária da atividade e vivenciaram a obrigatoriedade como negativa. Vale dizer que não há um consenso sobre a melhor forma de participação dos alunos em programas de mentoring, existindo aqueles formatados para a obrigatoriedade17,32,33, aqueles que trabalham com incentivos34, e outros totalmente voluntários4,6,9. A maioria dos alunos, no encerramento de seus depoimentos, reconheceu o potencial positivo do mentoring para a humanização do ambiente acadêmico. A sugestão de continuidade e ampliação da atividade para outros períodos do curso aponta para o reconhecimento de que o vínculo estabelecido com o mentor e com os colegas foi importante no enfrentamento das situações estressoras e no desenvolvimento pessoal e profissional dos alunos.

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artigos

Conclusão Os depoimentos dos alunos revelaram um mosaico de diferentes vivências - muitas de satisfação, outras indicando dúvidas e, algumas, de críticas à atividade de mentoring. Eles não deixaram dúvidas de quanto o contexto árduo e exigente da formação em Medicina parece oferecer poucos espaços e relações onde o aluno pode compartilhar suas dúvidas e angústias e desenvolver-se como um todo. A escolha do mentoring como referencial teórico e prático de atenção ao estudante revelou-se válida, nesse contexto, tanto para a promoção de bem-estar do aluno durante o curso, como para o desenvolvimento de importantes habilidades. Espera-se que o futuro médico realize seu trabalho com compromisso, responsabilidade, empatia, habilidade para tomada de decisões e comunicação. Entretanto, escolas médicas, muitas vezes, incentivam avanços científicos e tecnológicos em detrimento do desenvolvimento das habilidades relacionais e comunicacionais. Nossos achados mostram que, nessa nova qualidade de relação promovida pelo mentoring, e construída por meio do compartilhar dos desafios e fragilidades vivenciadas ao longo do curso, habilidades interpessoais, como a escuta, a aceitação e a comunicação, podem ser exercitadas e desenvolvidas de maneira espontânea e, ao mesmo tempo, cuidadosa – já que mediadas por alguém experiente, o tutor. Ao estimular a escuta do diferente no grupo, o mentoring mostra colaborar para o importante desenvolvimento da empatia, levando o aluno a usar seus recursos cognitivos e emocionais para compreender e respeitar as perspectivas e emoções dos colegas. Nesse sentido, o mentoring mostra ser, além de um espaço de suporte, também um espaço de aprendizagem, onde há lições importantes para uma boa e humanizada relação futura com o paciente e com a equipe de trabalho. Por outro lado, se o potencial da atividade é enorme, as vivências discordantes expressas por alguns alunos revelam o aspecto desafiador em desenvolver uma atividade de caráter relacional e reflexivo, dimensão pouco contemplada no currículo médico. Além da sensibilização dos próprios alunos, aparece a necessidade do estabelecimento de um claro propósito para a atividade e do desenvolvimento dos tutores para uma boa prática na área, sobretudo, na difícil arte de condução de grupos. Mesmo com essas dificuldades, e considerando-se as limitações deste estudo, a vivência dos alunos mostrou que o mentoring estabelece, em sua prática, interseções importantes entre as ações de suporte ao bem-estar do estudante e as demandas de formação do futuro médico em áreas humanísticas. Ao mesmo tempo em que cuida dos alunos, desenvolve suas habilidades relacionais, contribuindo para, mais do que ampliar os espaços didáticos humanísticos nos currículos, deixá-los mais vivos e próximos dos alunos.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Marks MB, Goldstein R. The mentoring triad: mentee, mentor, and environment. J Rheumatol. 2005; 32(2):216-8. 2. Taherian K, Shekarchian M. Mentoring for doctors: do its benefits outweigh its disadvantages? Med Teach. 2008; 30(4):95-9.

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Martins AF, Bellodi PL. Tutoría/mentoring: una vivencia de humanización y desarrollo en el curso de medicina. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):715-26. Los programas de tutoría, por medio de una relación cercana con los alumnos, ofrecen soporte y también un ambiente de reflexión para la formación profesional. El objetivo de este estúdio fue el de comprender la experiencia vivida por los alumnos de Medicina en la actividad de Tutoría de la Universidad de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Se trató de una investigación documental con análisis fenomenológico de los relatos producidos por los alumnos. Las experiencias revelaron tres conjuntos temáticos: 1) El contexto de la tutoría; 2) Lo vivido en la tutoría; y 3) La evaluación de la experiencia. La relación de tutoría mostró contribuir tanto para el enfrentamiento de las vicisitudes de la formación, como en el ejercicio de habilidades para la escucha, la aceptación y la comunicación. Reveló, además, intersecciones entre las acciones de soporte al estudiante y las demandas de la formación en áreas humanísticas en el currículo médico.

Palabras clave: Mentoring. Tutoría. Educación médica. Investigación documental. Fenomenología.

Recebido em 26/09/15. Aprovado em 21/12/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0699

artigos

Ensino da segurança do paciente na graduação em saúde: reflexões sobre saberes e fazeres Elena Bohomol(a) Maria Aparecida de Oliveira Freitas(b) Isabel Cristina Kowal Olm Cunha(c)

Bohomol E, Freitas MAO, Cunha ICKO. Patient safety teaching in undergraduate health programs: reflections on knowledge and practice. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):727-41.

This study was intended to analyze pedagogic projects of undergraduate courses in Nursing, Pharmacy, Physiotherapy, and Medicine in the Federal University of Sao Paulo, in order to appraise the contents of patient safety teaching in those courses. The study is of descriptive and exploratory nature using as strategy a documental review. The documents analyzed were the Pedagogic Projects of the courses. The teaching contents on patient safety were found to be fragmented, without the depth and conceptual scope recommended by the World Health Organization (WHO) guidelines. Each course highlights the specific topics related to the pretended formative process. Inserting and trying to unify the contents on patient safety is still in its beginning in Brazilian schools and it is not present in the educational objectives. There is a need of reviewing the curricula using an interdisciplinary and trans disciplinary approach to develop this topic.

O estudo objetivou analisar Projetos Pedagógicos de cursos de graduação em Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia e Medicina da Universidade Federal de São Paulo, para verificar o que se ensina sobre segurança do paciente. Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, que utilizou como estratégia a pesquisa documental. Os documentos foram os Projetos Pedagógicos dos cursos. O ensino sobre segurança do paciente mostrou-se fragmentado, carecendo de aprofundamento e amplitude conceitual, conforme recomenda o guia da Organização Mundial da Saúde. Cada curso valoriza os aspectos específicos para a formação que quer dar. A inserção e a tentativa de unificação dos conteúdos sobre segurança do paciente ainda são uma proposição recente nas escolas do Brasil, e não faz parte dos objetivos escolares. Há necessidade de uma revisão dos currículos, para se contemplar uma abordagem interdisciplinar e transdisciplinar para o desenvolvimento deste tema.

Keywords: Curriculum. Higher education. Health Sciences. Patient safety.

Palavras-chave: Currículo. Educação Superior. Ciências da Saúde. Segurança do paciente.

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Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo. Rua Napoleão de Barros, 754, Vila Clementino. São Paulo, SP, Brasil. ebohomol@unifesp.br; maofreitas@unifesp.br; isabelcunha@unifesp.br (a,b,c,)

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Introdução Os desafios que têm sido colocados aos futuros profissionais, em todas as áreas de formação, crescem a cada dia, revestindo-se de grande complexidade e importância, não só pelo que se ensina na universidade, mas pelo que se quer alcançar: a formação adequada do estudante. Porém, a estrutura das universidades ainda sustenta uma prática educacional baseada em princípios tradicionais, provocando um descompasso entre o discurso, o que se faz, e as demandas no âmbito da formação humana e profissional1. Comunicar, aos estudantes, conhecimentos complexos, mas que são importantes no e para o exercício profissional, tem promovido a discussão sobre quais saberes são necessários e fundamentais para o exercício de uma profissão em diversas áreas do conhecimento, mais especificamente na área da Saúde. Tal fato implica desenvolver um currículo cuja perspectiva deve ser levar os sujeitos a construírem conhecimentos de forma significativa, desenvolvendo competências e habilidades diversas, contribuindo para a construção de profissionais críticos e reflexivos, aptos a assumirem posições de liderança, e tendo em vista o bem-estar da comunidade2. Historicamente, o currículo é poder, lugar, espaço e território de sujeitos e conteúdos programáticos, cujas definições perpassam, dentre outros aspectos, pelas questões ideológicas dos docentes responsáveis por disciplinas1,3. No entanto, devem ser consideradas as transformações da educação na contemporaneidade, na qual lidar com os avanços tecnológicos, farmacológicos, assistenciais, políticos e sociais demanda repensar conteúdos para estruturar um currículo que contemple a necessidade do que o estudante deve saber. Os currículos devem ser elaborados para proporcionarem o cultivo do pensamento crítico, reflexivo e da prática profissional transformadora4. Nesse bojo, professores e profissionais de saúde, cuja prática está diretamente relacionada ao trato com pacientes, têm debatido, tanto no Brasil como no contexto internacional, sobre a formação desses futuros profissionais e seu preparo para atuação segura no cotidiano da assistência ao paciente5. Tal discussão é instigada pela preocupação constante com os erros que têm sido cometidos em todos os cenários da assistência. Estima-se que um em cada dez pacientes no mundo é vítima de erros e eventos adversos evitáveis durante o período que necessita receber cuidados e tratamentos à sua saúde6. Estudo brasileiro em hospitais de ensino apresenta a incidência de pacientes com eventos adversos na ordem de 7,6%, sendo que 66,7% são considerados evitáveis7. Estes problemas são fontes de preocupação em todo o mundo e inúmeras iniciativas têm sido desencadeadas para minimizar os riscos inerentes à assistência. Relacionam-se à melhoria da estrutura e ao processo de trabalho o uso e desenvolvimento de tecnologia para: o apoio à assistência, a capacitação dos profissionais e, mais recentemente, a educação dos estudantes dos cursos de graduação da área da Saúde nesta temática5,6. Diante dessa realidade, o Ministério da Saúde, por meio da portaria 529, lançou o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP), e um de seus objetivos específicos é “fomentar a inclusão do tema Segurança do Paciente no ensino técnico e de graduação e pós-graduação na área da Saúde”8. Embora o PNSP instigue a inclusão desse tema nos cursos, não está explicitada qualquer orientação e nem mesmo como dar encaminhamento a essa discussão. Todavia, o documento de referência para o PNSP, publicado em 2014, reforça a importância da inclusão do tema de segurança do paciente no ensino, e destaca a necessidade da criação de um catálogo atualizado com diversos programas para auxiliar os gestores, profissionais e pacientes, além de recomendar que os estabelecimentos de saúde desenvolvam capacitações, atualizações e especiailzações, sejam elas presenciais, semipresenciais e a distância9. O documento traz, ainda, luz sobre diversas possibilidades de ensino que podem ser desenvolvidas em conjunto com o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (PRÓSaúde) e o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), além do trabalho das associações brasileiras de educação das diversas profissões da saúde9. Por sua vez, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda uma abordagem contundente sobre o assunto e disponibiliza o Patient safety curriculum guide: multi-professional edition, publicado 728

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em 2011, que traz uma atualização sobre segurança do paciente, além de exemplos de instituições formadoras que incluíram o ensino em seus Projetos Pedagógicos (PP), apresentando sua estrutura e interfaces entre diferentes disciplinas e áreas de conhecimento6. Desta forma, lança-se o desafio de educar os discentes para os aspectos que envolvem a segurança dos pacientes, desenvolvendo saberes e fazeres específicos no seio das escolas, independentemente da formação técnica que se queira dar. Esse processo educativo precisa estar presente em suas abordagens clínicas e de demonstração de melhores práticas, devendo ser permanente durante o desenvolvimento dos estudantes nos diferentes cenários de práticas que contribuem com sua formação6,9,10. É justamente a complexidade dessa problemática o foco de discussão neste artigo, pois, considerando a urgência do momento, a missão das universidades e o papel transformador do professor, pergunta-se: Como é a formação do discente quanto ao tema segurança do paciente? Ele é preparado para reconhecer e prevenir erros e eventos adversos? Ele age como defensor do paciente e reconhece os riscos assistenciais inerentes ao processo assistencial? Ele é formado para alertar os demais profissionais para eventuais problemas que possam ocorrer durante a assistência? Para aprofundar essa reflexão, objetivou-se estudar os currículos de quatro cursos da área da Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), analisando o PP dos cursos de Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia e Medicina, para identificar convergências e divergências referentes ao conteúdo sobre segurança do paciente nesses cursos.

Metodologia Locus e cursos A escolha da instituição se deveu ao fato de ter relevância na formação de profissionais nos cursos da área da Saúde, além de ser um pilar de qualidade nas pesquisas, reconhecida nacional e internacionalmente. A Unifesp foi oficialmente constituída em 1994, originada da Escola Paulista de Medicina (EPM), escola privada fundada na cidade de São Paulo (SP) em 1933 e federalizada em janeiro de 195611. Em 1939, iniciava-se um segundo curso universitário e tratava-se da criação da Escola de Enfermagem, que teve sua iniciativa a partir da um grupo de enfermeiras religiosas procedentes da França. Em 1977, esse curso incorporou-se à EPM, mas, em 1994, constituiu-se o Departamento de Enfermagem da Unifesp, ainda vinculado à EPM11,12. A década de 1990 foi particularmente profícua para a universidade, como resultado da excelência dos cursos de graduação, pós-graduação, residência médica e extensão, sendo reconhecida como universidade especializada em Ciências da Saúde no ano 1994. Em 2003, a Unifesp iniciou sua expansão, procurando consolidar-se como universidade plena, abraçando o Programa de Expansão das Universidades Públicas Federais do Governo Federal. Porém, essa expansão não foi somente no aspecto acadêmico, com novos cursos em diversas áreas do conhecimento, mas, também, em seu aspecto geográfico, pois, em 2006, foi criado o campus da Baixada Santista, para oferecer os cursos de Nutrição, Fisioterapia, Psicologia, Educação Física e Terapia Ocupacional11. A partir de 2007, a universidade expandiu-se mais, e foram criados os campi de Guarulhos (que concentra as áreas de Humanas), Diadema (área de Biológicas e Exatas) e São José dos Campos (Ciências e Tecnologia). Mais recentemente, em 2011, iniciaram-se as atividades no campus de Osasco (com os cursos de Administração, Ciências Contábeis, Ciências Econômicas e Relações Internacionais)11. Embora a universidade tenha diversos cursos na área da Saúde, os pesquisadores escolheram os cursos mencionados por entenderem que há, entre eles, uma aproximação com o cuidado ao paciente em todos os ciclos de vida, além de se trabalhar na promoção da saúde, prevenção de doenças, tratamento e reabilitação das pessoas. Procurou-se, também, mesclar a tradição dos cursos de Enfermagem e Medicina com os recentemente criados, como o de Farmácia e Fisioterapia, além de olhar as diferentes perspectivas da universidade com cursos estruturados em diferentes campi. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A partir do ano de 2001, quando houve a edição das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos da área da saúde, o curso de graduação em Medicina da Unifesp empreendeu movimentos de avaliação de seu currículo, considerando, inclusive, a trajetória de mudanças no país nos diferentes contextos: político, histórico, cultural, de organização da sociedade, de estruturação dos serviços de saúde, como, por exemplo, a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS)13. O currículo do curso médico tem duração de seis anos em período integral, com carga horária de 9.951 horas. Utiliza, como principal campo de prática, o Hospital São Paulo, que hoje é o hospital universitário da Unifesp, localizado no campus São Paulo, no bairro Vila Clementino13. O Curso de Graduação em Enfermagem, também considerando a edição das DCN, promoveu a mudança de currículo no ano de 2010, tendo implantado o novo currículo em 2012. O curso tem duração de quatro anos, com carga horária de 4.652 horas em regime integral. Suas instalações ficam no campus São Paulo, na Vila Clementino, e também utiliza o Hospital São Paulo como principal campo de prática12. O PP do curso de Fisioterapia, também considerando as DCN, foi construído para o desenvolvimento da competência para o trabalho em equipe na perspectiva da integralidade do cuidado em saúde. Tem como eixo direcionador os princípios da educação interprofissional. A carga horária é de cinco mil, duzentos e quarenta horas, em período integral. O curso é oferecido no campus Baixada Santista, locus do desenvolvimento teórico e prático dos estudantes14. O curso de Farmácia e Bioquímica, modalidade bacharelado, surgiu em 2007, quando do processo de expansão das universidades federais, e está localizado no campus da Unifesp, no município de Diadema (SP). O PP foi elaborado sendo observadas as DCN. É um curso oferecido em turno integral e noturno, para a formação em cinco e seis anos respectivamente, com carga horária de cinco mil, seiscentas e trinta horas15. Os PP desses cursos têm uniformidade na apresentação e trazem, na parte inicial, a concepção do curso, princípios e eixos norteadores, além de disponibilizarem o plano de ensino das unidades curriculares (UC) para a formação dos profissionais. As UC contemplam: ementa, objetivo, conteúdo programático, metodologia de ensino e avaliação, recursos necessários, bibliografia, docentes participantes, além de apresentarem a disposição da carga horária total, com indicação do quantitativo para a teoria e prática.

Estudo Para o delineamento do estudo descritivo e exploratório, adotou-se, para a investigação dos PP, a estratégia da pesquisa documental. Ela tem como foco e objeto de investigação documentos que não receberam nenhum tratamento científico, representados por: relatórios, reportagens, revistas, cartas, filmes, gravações, fotografias, dentre outros16. Os PP são entendidos como documentos que apresentam a proposta pedagógica dos cursos resultante da reflexão sobre sua intencionalidade educativa. São instrumentos de trabalho e de conhecimento da comunidade envolvida. Todavia, para que houvesse uniformidade na condução da investigação, primeiramente, fez-se a leitura do guia da OMS6, com o intuito de preparar uma lista de termos rastreadores que identificassem os conteúdos relacionados ao ensino sobre segurança do paciente. Foram identificados 153 termos (Quadro 1). O estudo foi conduzido durante o primeiro semestre de 2013, ocasião em que se realizou a leitura de todos os PP e se procedeu à pesquisa dos termos rastreadores, por meio de ferramentas eletrônicas de busca, nos documentos cedidos em formato Word e PDF. Os termos identificados nas UC foram relacionados a cada tópico do guia da OMS. Utilizaram-se como categorias de análise os mesmos tópicos para se averiguarem as convergências e divergências com os termos encontrados. É importante declarar que, mesmo sendo uma pesquisa documental, esta foi aprovada e protocolada no CAAE.

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Bohomol E, Freitas MAO, Cunha ICKO

Tópico

artigos

Quadro 1. Termos rastreadores baseados nos tópicos do guia da Organização Mundial da Saúde (OMS). São Paulo, 2013 Termos

O que é a segurança do paciente

Visão geral do que é segurança – conceitos e definições Teoria de sistemas História da segurança do paciente Evento adverso Erros de saúde Falhas nos sistemas Diferença entre falhas, violação e erro Custos humanos e econômicos associados a eventos adversos Causas dos erros Modelo do queijo suíço Cultura de culpa Cultura de segurança Modelos de segurança Cuidado centrado no paciente

Razões pelas quais a aplicação dos fatores humanos é importante para a segurança do paciente

Conceitos de falibilidade humana e perfeição Sistemas Ergonomia Fatores humanos Ambiente de trabalho e seus “ruídos” Fadiga e estresse no desempenho profissional Relação homem-máquina e a segurança no uso dos equipamentos Estratégias de comunicação no ambiente de trabalho Redesenho de processos

Entendimento dos sistemas e do efeito de complexidade no cuidado ao paciente

Conceitos e definição de sistemas e sistemas complexos Sistema de saúde Estrutura organizacional Processos de trabalho Falhas no sistema e mecanismos para investigação dos fatores Defesas e barreiras nos sistemas Compreensão e gestão do risco clínico Autoridade com responsabilidade Interdisciplinaridade Organizações de alta confiabilidade

Ser um participante de uma equipe eficaz

O que é equipe Os diferentes tipos de equipes encontrados na atenção à saúde Valores, papéis e responsabilidades Estilos de aprendizagem Habilidades auditivas Coordenação de equipes Liderança eficaz Características de equipes de sucesso Comunicação eficaz e ferramentas de comunicação Resolução de conflitos Avaliação do desempenho do trabalho em equipe continua

Resultados Os resultados desta investigação permitiram identificar que, nos quatro PP, existiam conteúdos descritos que estavam relacionados ao ensino sobre segurança do paciente. Observou-se que alguns tópicos foram encontrados em mais de uma UC nos diferentes cursos.

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Quadro 1. continuação Tópico

Termos

Aprendendo com os erros para evitar danos

Erros Principais tipos de erros Violação, erro e quase erro Situações que aumentam os riscos de erros Fatores individuais que predispõe ao erro Como aprender com os erros Relatório de incidentes Análise de evento adverso Estratégias para redução de erros

Compreensão e gestão de riscos clínicos

Gestão de risco – definições Como entender e gerenciar riscos clínicos Notificação de quase-erros Relatório de erros Monitoramento clinico Programas de treinamento para avaliar riscos clínicos Notificação e monitoramento de incidentes Tipos de incidentes Eventos sentinela Comunicação de riscos e perigos no local de trabalho Organização e ambiente de trabalho Credenciamento, licenciamento e acreditação Responsabilidades profissional e individual na gestão de riscos Fadiga e estresse Comunicação e má comunicação

Utilização de métodos de melhoria da qualidade para a melhoria da assistência

Teoria do conhecimento Conceitos básicos de mudança Conceitos de Deming Sistema de gestão com foco na melhoria dos processos Melhoria continua Ciclo PDSA/PDCA Ferramentas de qualidade: fluxograma, diagrama de Ishikawa, gráfico de Pareto, histograma Indicadores Variação, métodos para a melhoria da qualidade Medidas de resultado Medidas de processo Medidas de compensação Melhoria de prática clinica Análise causa-raiz Análise dos modos e efeitos de falha continua

Na Tabela 1, são apresentadas as frequências de UC encontradas nos cursos, tendo como denominador o número total de UC que lecionavam algum conteúdo sobre segurança do paciente. O PP do curso de Enfermagem totalizou 46 UC e 25 (54,3%) delas foram identificadas como unidades que lecionavam algum conteúdo sobre segurança do paciente. No entanto, verifica-se que três tópicos não foram contemplados: “O que é a segurança do paciente”, “Razões pelas quais a aplicação dos fatores humanos é importante para a segurança do paciente” e “Aprendendo com os erros para evitar danos”. Por outro lado, o conteúdo que tratava sobre “Ser um participante de uma equipe eficaz” foi abordado por 11 (44%) UC, seguido do tópico “Prevenção e controle da infecção”, ministrado por oito (32%) UC, e “Entendimento dos sistemas e do efeito de complexidade no cuidado ao paciente”, por seis (24%). 732

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Tópico

artigos

Quadro 1. continuação Termos

Interação com pacientes e cuidadores

A voz do consumidor Direitos do paciente Legislações de proteção do consumidor e direitos dos usuários do sistema de saúde Reclamações Medo Educação Princípios da boa comunicação Ferramenta de comunicação: SPIKE, SEGUE, SPEAK UP Consentimento informado Respeito às diferenças de cada paciente, crenças religiosas, culturais e pessoais e necessidades individuais Privacidade e autonomia do paciente Responsabilidade e família Formas de envolver os pacientes e profissionais nas decisões de saúde Pedido de desculpas Processo de revelação aberta Implicações legais do erro

Prevenção e controle de infecções

Infecção associada a cuidados de saúde Precauções para prevenir e controlar as infecções Infecções na comunidade Transmissão, transmissão cruzada Alertas de epidemias e pandemias Tipos de transmissão Riscos de infecção Técnicas de assepsia Asséptica Precauções-padrão Custo econômico associado à infecção Equipamentos de proteção individual Métodos de esterilização e desinfecção de instrumentos e equipamentos Organismos multirresistentes Resistência antimicrobiana Recomendações sobre uso único de dispositivos; Lavagem de mãos Guidelines: para uso de luvas, isolamentos, CDC Imunizações, vacinas Programa OMS: Clean Care is Safe Care Campanhas para higienização de mãos Controle do uso de antimicrobianos continua

Das 79 UC do curso de Farmácia, 23 (29,1%) foram identificadas no PP como as que tratavam de temas relacionados ao ensino em questão. Como no PP do curso de Enfermagem, este também tinha três tópicos que não envolveram nenhuma UC: “O que é a segurança do paciente”, “Aprendendo com os erros para evitar danos” e “Segurança do paciente e procedimentos invasivos”. Por outro lado, nove (39,1%) UC ministravam conteúdos relacionados ao tópico “Melhora na segurança da medicação”, oito (34,8%) UC ministravam o tópico “Prevenção e controle da infecção”, e sete (30,4%) UC sobre “Razões pelas quais a aplicação dos fatores humanos é importante para a segurança do paciente”. O PP do curso de Fisioterapia totalizou cinquenta UC e 24 (48%) foram identificadas como unidades que abordavam temas sobre segurança do paciente. Todavia, dois tópicos, “Aprendendo com COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Quadro 1. continuação Tópico

Termos

Segurança do paciente e procedimentos invasivos

Eventos adversos associados aos procedimentos cirúrgicos e outros procedimentos invasivos Complicações no sítio cirúrgico Infecção em sítio cirúrgico Controle de infecção no cuidado cirúrgico Fatores preexistentes para a ocorrência de erros Falhas de comunicação entre equipes Processos de verificação Trabalho em equipe Agravos cirúrgicos Paramentação cirúrgica Lateralidade Práticas que reduzem riscos, como: time-out, briefing, debriefings, assertividade, sistemas de transmissão de informação Gerenciamento do paciente em sala operatória

Melhora na segurança da medicação

Sistema de medicação e processo de prescrição, distribuição e administração Fármacos Controle de uso de antimicrobianos Regulamentação dos medicamentos Acesso do usuário aos medicamentos Sistema de notificação de eventos adversos Efeito colateral Reação adversa ao medicamento Potencial e real interação droga-droga, droga-alimento Erros de medicação e seus tipos Consequências ao paciente Fontes de erros e prevenção Monitoramento do paciente e avaliação de parâmetros clínicos Prescrição Administração Os cinco certos no sistema de medicação Processo de comunicação seguro entre as equipes para minimizar os erros Uso de tecnologia para minimizar os erros Fatores físicos, cognitivos, emocionais e sociais que predispõem à vulnerabilidade do paciente em uso de medicamentos Conciliação medicamentosa Medicamentos de alta-vigilância (potencialmente perigosos ou de altorisco)

PDSA/PDCA: Plan-Do-Study-Act/Plan-Do-Check-Act; SPIKE: Setting, Perception, Information, Knowledge, Empathy, Strategy and Summary; SEGUE: Set the stage, Elicit information, Give information, Understand the patient’s perspective, End the encounter; SPEAK UP: Speak up if you have questions or concerns, Pay attention to the care you get, Educate yourself about your illness, Ask a trusted family member or friend to be your advocate (advisor or supporter), Know what medicines you take and why you take them, Use a hospital, clinic, surgery center, or other type of health care organization that has been carefully checked out, Participate in all decisions about your treatment. CDC: Centers for Disease Control and Prevention.

os erros para evitar danos” e “Utilização de métodos de melhoria da qualidade para a melhoria da assistência”, não foram identificados em nenhuma UC. Por outro lado, nove (37,5%) UC ministravam conteúdos relacionados à “Interação com pacientes e cuidadores”, seis (25%) UC apontaram conteúdos para o tópico “Ser um participante de uma equipe eficaz”, e cinco (20,8%) para “Razões pelas quais a aplicação dos fatores humanos é importante para a segurança do paciente”. 734

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Tópico do guia

Enfermagem (n=25) n

O que é a segurança do paciente Razões pelas quais a aplicação dos fatores humanos é importante para a segurança do paciente Entendimento dos sistemas e do efeito de complexidade no cuidado ao paciente Ser um participante de uma equipe eficaz Aprendendo com os erros para evitar danos Compreensão e gestão de riscos clínicos Utilização de métodos de melhoria da qualidade para a melhoria da assistência Interação com pacientes e cuidadores Prevenção e controle da infecção Segurança do paciente e procedimentos invasivos Melhora na segurança da medicação

%

Farmácia (n=23) n

%

-

-

7

30,4

6

24

3

11 2 5

44 8 20

3 8 3 5

12 32 12 20

Fisioterapia (n=25) n

%

artigos

Tabela 1. Distribuição do número de unidades curriculares envolvidas no ensino sobre segurança do paciente dos cursos de graduação da Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, 2013 Medicina (n=40) n

%

1 4,2 5 20,8

1 1

2,5 2,5

13

1

4,2

2

5

3 4 5

13 17,4 21,7

6 2 -

25 8,3 -

7 5 1

17,5 12,5 2,5

4 8 9

17,4 34,8 39,1

9 37,5 2 8,3 4 16,6 1 4,2

13 19 6 9

32,5 47,5 15 22,5

Na proposta curricular do curso de Medicina, foram identificadas 65 UC, das quais quarenta (61,5%) lidavam com temas sobre segurança do paciente. No entanto, o tópico “Aprendendo com os erros para evitar danos” não foi verificado em nenhuma delas. Por outro lado, 19 (47,5%) UC abordavam temas relacionados ao tópico “Prevenção e controle da infecção”, 13 (32,5%) ao tópico “Interação com pacientes e cuidadores”, e nove (22,5%) ao tópico “Melhora na segurança da medicação”. Verificou-se uma coincidência, em todos os cursos, de que os termos rastreadores relacionados ao quinto tópico “Aprendendo com os erros para evitar danos” não foram encontrados em nenhum dos PP analisados. O Quadro 2 apresenta a especificidade do tópico “Ser um participante de uma equipe eficaz”, com a totalidade dos termos que o compunha, em sua coluna à esquerda. Por ser um dos tópicos bastante contemplados dentro da UC dos PP, procurou-se comparar se todos os cursos tinham enfoques equivalentes e na mesma proporcionalidade. No entanto, os conteúdos deste tópico não foram abordados em sua totalidade em nenhum dos cursos, inclusive, com variações entre eles. Os conteúdos encontrados em todos eles relacionam-se ao “O que é equipe”, “Os diferentes tipos de equipes encontrados na atenção à saúde” e “Valores, papéis e responsabilidades”, demonstrando lacunas no ensino do que, de fato, é uma equipe eficaz. Este aspecto dificulta o desenvolvimento da atuação dos futuros profissionais para o trabalho multidisciplinar. O mesmo trabalho foi feito nos demais tópicos, com resultados semelhantes, isto é, não foi encontrada uniformidade na condução dos conteúdos referentes ao ensino sobre segurança do paciente na universidade.

Discussão Por meio da análise documental dos PP dos cursos escolhidos, é possível verificar o currículo formal, o que, por sua vez, exclui o currículo real e o oculto, que também são utilizados pelos professores na construção do conhecimento. Esta pode ser uma das limitações do estudo. Outra limitação está relacionada à utilização dos termos rastreadores selecionados. Por isso, é possível que algumas UC não tenham sido incluídas por falta de sinônimos, que não foram contemplados na lista de termos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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ENSINO DA SEGURANÇA DO PACIENTE NA GRADUAÇÃO EM SAÚDE: ...

Quadro 2. Panorama dos termos rastreados a respeito do ensino sobre segurança do paciente abordado nos cursos de Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia e Medicina, de acordo com o tópico “Ser um participante de uma equipe eficaz”, do guia da Organização Mundial da Saúde. São Paulo, 2013 Itens encontrados

Termos rastreadores

Enfermagem

Farmácia

Fisioterapia

Medicina

O que é equipe

O que é equipe

O que é equipe

O que é equipe

O que é equipe

Os diferentes tipos de equipes encontrados na atenção à saúde

Os diferentes tipos de equipes encontrados na atenção à saúde

Os diferentes tipos de equipes encontrados na atenção à saúde

Os diferentes tipos de equipes encontrados na atenção à saúde

Os diferentes tipos de equipes encontrados na atenção à saúde

Valores, papéis e responsabilidades

Valores, papéis e responsabilidades

Valores, papéis e responsabilidades

Valores, papéis e responsabilidades

Valores, papéis e responsabilidades

Estilos de aprendizagem

Estilos de aprendizagem

-

-

-

Habilidades auditivas

Habilidades auditivas

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

Coordenação de equipes Liderança eficaz

Liderança eficaz

Características de equipes de sucesso (CRM)

-

Liderança eficaz -

Comunicação eficaz e ferramentas de comunicação

Comunicação eficaz e ferramentas de comunicação

-

Comunicação eficaz e ferramentas de comunicação

Resolução de conflitos

Resolução de conflitos

-

Resolução de conflitos

-

-

-

-

Avaliação do desempenho do trabalho em equipe

-

Comunicação eficaz e ferramentas de comunicação

CRM: Crew Resource Management.

No entanto, ao se propor a análise dos PP, para identificar convergências e divergências entre eles, constatou-se, em todos eles, que alguns temas são ensinados de modo fragmentado ao longo de cada curso, valorizando-se os aspectos específicos para a formação pretendida3. Por serem cursos da área da Saúde, alguns assuntos perpassam entre todos, como: participar da equipe, prevenir e tratar infecções, integrar-se com o paciente e família, conhecer os efeitos dos medicamentos, não havendo uma atenção específica para os aspectos de segurança, com discussão de seu impacto na prevenção e minimização de erros e eventos adversos durante a prestação do cuidado17,18. O ensino sobre segurança é uma proposição relativamente recente e não fez parte, per si, dos programas ou objetivos escolares até então5,6. Contudo, já existem iniciativas brasileiras de programas de educação sobre segurança do paciente em cursos de Medicina, nas quais se abordam o evento adverso, seu reconhecimento e a divulgação ao paciente, utilizando metodologias participativas; todavia, elas ainda estão vinculadas a um curso específico10. Urge, portanto, que as instituições de ensino voltem sua atenção para atingir grande número de alunos, além de contribuir com programas de formação de equipe de profissionais nas instituições de saúde9.

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artigos

Nos PP estudados, não existe uma UC intitulada “segurança do paciente”. Inclusive, a OMS recomenda um extenso leque de conteúdos, com diversas estratégias de ensino e diferentes metodologias de avaliação, ao longo de todo o processo formativo6. Daí a importância de se analisarem os PP com periodicidade, tratando-os como um instrumento de trabalho que indique rumo e direção da escola, além de ser construído com a participação de todos. Pressupõe-se que este é um momento da universidade fazê-lo, não somente pelas orientações mundiais6, mas, também, por determinações legais8,9; e, por conta disso, começar a formar um corpo de conhecimento, e fomentar o desenvolvimento de competências e habilidades diversas nos estudantes e professores. Lança-se, assim, o desafio, de se discutir o ensino da segurança do paciente de maneira mais ampla dentro da universidade, onde trabalhar de forma interdisciplinar e, por que não dizer, transdisciplinar, é uma possibilidade reveladora de novos fazeres3. Como prática interdisciplinar, entende-se a interdependência, a interação e a comunicação entre campos do saber, ou disciplinas, possibilitando a integração do conhecimento em áreas significativas, que visam à unidade do conhecimento. A transdisciplinaridade procura estimular uma nova compreensão da realidade, articulando elementos que passam entre, além e através das disciplinas, numa busca de compreensão da complexidade. Trata-se de adotar uma atitude empática de abertura ao outro e seu conhecimento, permitindo a soma dos diferentes saberes para a divulgação do conhecimento e desenvolvimento de competências nos graduandos19. Ao se estudarem os PP, constatou-se que os conteúdos encontrados não configuram o ensino sobre segurança do paciente como uma “nova ciência” para a Unifesp, independentemente do tempo de criação dos cursos, ou aspectos geográficos que os distanciam ou aproximam. Os cursos em questão não dialogam entre si nesta demanda específica. Esta seria uma oportunidade de fazê-lo, em virtude dos tempos em que se vive, que se categorizam pela multiplicidade, celeridade e imprevisibilidade dos eventos3. A Unifesp já tem uma experiência de educação interprofissional no campus Baixada Santista, onde os cursos de graduação em Educação Física, Fisioterapia, Nutrição, Psicologia, Terapia Ocupacional e Serviço Social são desenvolvidos, tendo como princípios norteadores a indissociabilidade entre ensino, pesquisa, extensão e prática profissional14. Porém, ao articular essa integração nos aspectos concernentes à segurança do paciente, deve-se pensar e discutir incluindo outros saberes, como os da Engenharia, Psicologia e Administração, que, na Unifesp, estão cada qual em uma célula em diferentes campi20. Considerando as fortes demandas que a sociedade contemporânea tem com relação aos profissionais, em especial os da saúde, a Unifesp, como formadora de recursos humanos de alto nível, ousou, no campus Baixada Santista – a partir do momento em que implantou seus cursos de graduação –, oferecer uma proposta pedagógica que tem como intuito estimular o cuidado em saúde por meio do trabalho interprofissional14. Essa proposta de interprofissionalidade, que tem sido discutida nos últimos trinta anos especialmente na Europa e Estados Unidos, tem como intuito estimular o aprimoramento do cuidado em saúde a partir do trabalho multiprofissional20. Trabalhar em equipe, para discutir o papel profissional de cada um, é um compromisso que deve ser assumido para a solução de problemas, negociação, tomada de decisão, as quais são algumas das características do trabalho interprofissional20. Dentro dessa perspectiva, algumas experiências exitosas têm sido realizadas. A Universidade de Saskatchewan, no Canadá, capacitou os estudantes dos cursos de Enfermagem, Nutrição, Farmácia e Fisioterapia no Ciclo PDSA (Plan-Do-Study-Act), para que pudessem desenvolver as melhorias para o cuidado centrado no paciente, trabalhando na perspectiva interprofissional e relatando os resultados positivos desta experiência21. Em Victória, na Austrália, a importância de ensinar, de maneira uniforme, sobre prevenção de quedas de pacientes a graduandos dos cursos de Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Enfermagem e “fisiologistas de exercício” foi a forma encontrada para prevenir eventos adversos ao paciente, pois, como esses profissionais têm um foco comum, era necessário envolvê-los nos aspectos sobre segurança, respeitando e compreendendo as ações de outros profissionais22.

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Apesar de, no Brasil, serem poucas as experiências de educação interprofissional20, acredita-se ser este um caminho que deva ser percorrido para responder de modo positivo algumas perguntas realizadas pelos autores na introdução. Outro aspecto que se traz à tona é a formação do professor. Entende-se que ser professor é o resultado de uma construção ininterrupta, que perpassa não somente pelo domínio do conteúdo a ser ensinado, como, também, pela demonstração de atitudes e postura perante a vida. Muitos profissionais que passaram a exercer a função docente nos cursos da área da Saúde trazem consigo uma rica experiência prática, advinda do universo de trabalho, com grande conhecimento técnico, oriundo das especializações, mestrados, doutorados e participações em congressos e eventos científicos. Eles são exemplos de bons médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, farmacêuticos, nutricionistas e psicólogos, desenvolvendo competências voltadas à especificidade das suas UC3. Porém nem sempre estão preparados para uma abordagem sistêmica das causas dos erros e eventos que acontecem em um sistema de saúde, ou preocupados em realizar a notificação desses eventos para promover processos de melhoria de qualidade no universo em que atuam23. Desta forma, lança-se o desafio, ao corpo docente das universidades, de ensinar os procedimentos assistenciais relacionados à segurança do paciente, como, por exemplo, a higienização de mãos, e de supervisionar a adesão a esse procedimento, não apenas com relação aos estudantes, mas a todos os sujeitos envolvidos no cuidado, inclusive estudantes de outros cursos. Esta é uma forma de atuar promovendo a interação de diferentes áreas, além de dedicar mais atenção aos fatores coletivos objetivando ultrapassar o modelo disciplinar em prol de um ensino-aprendizagem mais produtivo e global3.

Considerações finais O ensino sobre segurança do paciente mostrou-se fragmentado, carecendo de aprofundamento e amplitude conceitual. Cada curso valoriza os aspectos específicos para a formação que quer dar. Por isso, alguns conteúdos fazem parte da formação básica dos profissionais de saúde. A inserção e a tentativa de unificação dos conteúdos sobre segurança do paciente ainda é uma proposição recente nas escolas do Brasil e não faz parte dos objetivos escolares. Demonstra a necessidade de uma revisão dos Projetos Pedagógicos, em que se contemple uma abordagem interdisciplinar, bem como transdisciplinar, uma vez que há mudanças contínuas na sociedade contemporânea, e a universidade deve estar à frente dessas discussões. O preparo dos professores deve ser contemplado, pois, embora seja um profissional com grande experiência em sua especialidade e atuação, tem um papel como agente deflagrador de processos de melhoria no sistema de saúde. As perguntas apresentadas no início deste trabalho a respeito de: como é a formação do estudante quanto ao tema; se ele está preparado para reconhecer e prevenir erros e eventos; se ele age como defensor do paciente ou se alerta os demais profissionais – teme-se respondê-las negativamente. Isso porque, ao se darem elementos de como são as boas práticas, desenvolvendo as habilidades nos campos da prática, orientados por professores com grande expertise, tais fatos se constituem bases sólidas para a formação dos estudantes. No entanto, não se pode respondê-las positivamente também, pois, ao se trabalhar de forma tradicional, dentro de um paradigma positivista, disciplinarmente organizado, dentro de cada curso, faltam elementos para afirmar se, de fato, os estudantes têm habilidade de comunicação, trabalho em equipe, e colaboração e conhecimentos de melhoria da qualidade e segurança, além de poderem gerir soluções para as organizações de alta complexidade, como é o sistema de saúde. Reforça-se, com isso, que o ensino em segurança do paciente é uma nova ciência, e as escolas devem ser céleres nas modificações de seus Projetos Pedagógicos, de maneira que, ao unificarem ou, pelo menos, procurarem adequar os conteúdos entre os cursos ministrados, estarão contribuindo para uma formação mais sólida do estudante no que diz respeito ao tema segurança do paciente.

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artigos

Colaboradores Elena Bohomol foi responsável pela elaboração do projeto, coleta de dados, redação da tese e redação do manuscrito; Maria Aparecida de O. Freitas estruturou e redigiu o manuscrito; Isabel Cristina K. O. Cunha responsabilizou-se pela supervisão da tese e correção do manuscrito. Referências 1. Gesser V, Ranghetti DS. O currículo no ensino superior: princípios epistemológicos para um design contemporâneo. Rev e-curriculum [Internet]. 2011 [acesso 2015 Dez 8]; 7(2):1-23. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/ view/6775/4902 2. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em enfermagem [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2013 [acesso 2015 Dez 8]. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/ arquivos/pdf/Enf.pdf 3. Albuquerque VS, Batista RS, Tanji S, Moço ET. Discipline curricula in the health area: an essay on knowledge and power. Interface (Botucatu) [Internet]. 2009 [acesso 2015 Dez 8]; 13(31):261-72. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1414-32832009000400003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt 4. Garcia J. Avaliação da aprendizagem na educação superior. Estud Avaliaçao Educ. [Internet]. 2009 [acesso 2015 Dez 8]; 20(43):201-13 [acesso 2015 Dez 8]. Disponível em: http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/eae/arquivos/1489/1489.pdf 5. Kohn LT, Corrigan JM, Donaldson MS, editors. To err is human: building a safer health system. Washington (DC): National Academy Press; 2000. 6. World Health Organization. World Alliance for Patient Safety. WHO patient safety curriculum guide: multi-professional edition [Internet]. Geneva: WHO; 2011 [acesso 2015 Dez 8]. Disponível em: http://whqlibdoc.who.int/publications/2011/9789241501958_ eng.pdf 7. Mendes W, Martins M, Rozenfeld S, Travassos C. The assessment of adverse events in hospitals in Brazil. Int J Qual Health Care. 2009; 21(4):279-84. 8. Portaria n. 529, de 1 de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) [Internet]. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. 2 Abr 2013 [acesso 2015 Dez 8]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/ gm/2013/prt0529_01_04_2013.html 9. Ministério da Saúde (BR). Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Documento de referência para o Programa Nacional de Segurança do Paciente [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2014 [acesso 2015 Dez 8]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/documento_ referencia_programa_nacional_seguranca.pdf 10. Daud-Gallotti RM, Morinaga CV, Arlindo-Rodrigues M, Velasco IT, Martins MA, Tiberio IC. A new method for the assessment of patient safety competencies during a medical school clerkship using an objective structured clinical examination. Clinics (São Paulo). 2011; 66(7):1209-15. 11. História da Universidade Federal de São Paulo [Internet]. 2014 [acesso 2015 Dez 10]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_da_Universidade_Federal_ de_S%C3%A3o_Paulo

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12. Universidade Federal de São Paulo. Projeto pedagógico do curso de graduação em enfermagem: atualização do projeto pedagógico 2012 [Internet]. São Paulo: Unifesp; 2012 [acesso 2015 Dez 8]. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/ search?q=cache:nTyXsoLd9VEJ:www2.unifesp.br/prograd/app/cursos/index.php/ prograd/arq_projeto/5+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=safari 13. Universidade Federal de São Paulo. Pró-Reitoria de Graduação. Projeto pedagógico do curso de graduação em Medicina. São Paulo: Unifesp; 2006. 14. Universidade Federal de São Paulo. Atualização do projeto pedagógico do curso de Fisioterapia. Santos: Unifesp; 2012. 15. Universidade Federal de São Paulo. Pró-Reitoria de Graduação. Comissão do Curso de Farmácia e Bioquímica, Núcleo Docente Estruturante. Projeto pedagógico: curso de graduação em Farmácia e Bioquímica. Diadema: Unifesp; 2011. v. 3. 16. Sá-Silva JR, Almeida CD, Guindani JF. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Rev Bras Hist Cien Soc. 2009; 1(1):1-14. 17. Kiersma ME, Plake KS, Darbishire PL. Patient safety instruction in US health professions education. Am J Pharm Educ. 2011; 75 (6):162. 18. Madigosky WS, Headrick LA, Nelson K, Cox KR, Anderson T. Changing and sustaining medical students’ knowledge, skills, and attitudes about patient safety and medical fallibility. Acad Med. 2006; 81(1):94-101. 19. Rocha Filho JB, Basso NR, Borges RM. Transdisciplinaridade: a natureza íntima da educação científica. 2a ed. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2009. 20. Batista NA. Educação interprofissional em Saúde: concepções e práticas. Cad FNEPAS. 2012; 2:25-8. 21. Dobson RT, Stevenson K, Busch A, Scott DJ, Henry C, Wall PA. A quality improvement activity to promote interprofessional collaboration among health professions students. Am J Pharm Educ. 2009; 73(4):64. 22. Maloney S, Haas R, Keating JL, Molloy E, Jolly B, Sims J, et al. Effectiveness of Webbased versus face-to-face delivery of education in prescription of falls-prevention exercise to health professionals: randomized trial. J Med Internet Res. 2011; 13(4):e116. 23. Koohestan HR, Baghcheghi N. Barriers to the reporting of medication administration errors among nursing students. Aust J Adv Nurs [Internet]. 2009 [acesso 2015 Dez 8]; 27(1):66-74. Disponível em: http://www.ajan.com.au/Vol27/Koohestani.pdf

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artigos

Bohomol E, Freitas MAO, Cunha ICKO

Bohomol E, Freitas MAO, Cunha ICKO. Enseñanza sobre seguridad del paciente en el pregrado en salud: reflexiones sobre saberes y prácticas. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):727-41. El estudio analizó los proyectos pedagógicos de los cursos de pregrado en Enfermería, Farmacia, Fisioterapia y Medicina de la Universidade Federal de São Paulo, Brasil, con el fin de verificar lo que allí se enseña sobre seguridad del paciente. Se trató de un estudio descriptivo y exploratorio, que utilizó como estrategia la investigación documental. Como resultado, la enseñanza sobre seguridad del paciente se mostró fragmentada, careciendo de profundidad y amplitud conceptual según recomienda la guía de la Organización Mundial de la Salud. Fue posible observar que cada curso valoriza los aspectos específicos para la formación que pretende dar. La inserción y el intento de unificación de los contenidos sobre seguridad del paciente todavía es una propuesta reciente en las escuelas de Brasil y no es parte de los objetivos escolares. Se concluye que es necesaria una revisión de los currículos en que se considere una aproximación inter y transdisciplinaria al desarrollo de este tema.

Palabras clave: Currículo. Educación superior. Ciencias de la Salud. Seguridad del paciente.

Recebido em 08/09/15. Aprovado em 29/10/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0775

debates

A justa dose da medida: o tratamento compulsório da tuberculose em questão

Pablo Dias Fortes(a)

Fortes PD. The fair measure of treatment: compulsory treatment of tuberculosis in debate. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):743-51.

This paper seeks to contribute to the discussion about the compulsory treatment of tuberculosis through the questioning of some of its ethical implications. To do so, it intends to discuss antinomies found in the medical and legal defense of the practice, analyzing it at the end, from the perspective of four meanings of the concept of justice.

Keywords: Compulsory treatment of tuberculosis. Ethics. Morality. Justice.

O presente artigo busca contribuir com a discussão sobre o tratamento compulsório da tuberculose a partir da problematização de algumas de suas implicações éticas. Para tanto, procura pôr em questão antinomias encontradas na defesa sanitária e jurídica da medida, analisando-a, ao final, sob o prisma de quatro sentidos do conceito de justiça.

Palavras-chave: Tratamento compulsório da tuberculose. Ética. Moral. Justiça.

Centro de Referência Professor Hélio Fraga, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Estrada de Curicica, nº 2000, Jacarepaguá. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22780-194. pdiasfortes@gmail.com (a)

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A justa dose da medida: o tratamento compulsório da tuberculose em questão

Um panorama Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), uma em cada três pessoas no planeta é portadora do bacilo de Koch, bactéria causadora da tuberculose (TB). Só em 2013, além de nove milhões de indivíduos terem desenvolvido a doença, 1,5 milhão veio a óbito, fazendo dela, assim, a mais letal entre as doenças infectocontagiosas no mundo1. Concentrando, em média, 73 mil novos casos por ano, o Brasil acumulou, sozinho, 4.577 mortes no ano de 2013, afetando, sobretudo, a população mais pobre e vulnerável dos grandes centros urbanos. Embora tecnicamente evitáveis por meio de tratamento gratuito pelo SUS, mais de 10% das mortes registradas em 2012 já foram associadas a casos de drogarresistência2, fato que tem tornado o controle da doença no país um desafio ainda mais grave e preocupante. Especialistas apontam que o surgimento desse novo quadro epidemiológico está, em parte, relacionado com a recusa do tratamento pelos próprios pacientes, o que contribui para o desenvolvimento de bactérias resistentes transmitidas sob o mesmo padrão de contaminação via área. Com efeito, o tratamento da TB envolve um significativo esforço tanto do paciente quanto dos profissionais de saúde. De caráter ambulatorial e com duração mínima de seis meses, o tratamento consiste, basicamente, na administração diária de medicamentos e no acompanhamento clínico do doente. Segundo a OMS, a forma mais adequada para o êxito terapêutico é a utilização da estratégia DOTS (Directly Observed Treatment, Short-Course), a qual, dentre outras práticas, inclui a recomendação de observação direta do paciente durante a ingestão dos medicamentos. Após 15 dias de tratamento ininterrupto, o paciente, na maioria dos casos, não oferece mais risco de contaminação. Atualmente, no Brasil, a taxa de abandono do tratamento da TB tem sido estimada acima dos 10% dos casos notificados, mais que o dobro dos 5% preconizados pela OMS3. Isso significa que, dos 73 mil indivíduos diagnosticados por ano, ao menos sete mil deles – em sua maioria homens adultos, pobres, de baixa escolaridade e usuário de álcool e/ou outras drogas – continuam a circular, sem acompanhamento médico, sobretudo, pelos grandes centros urbanos. Não obstante, estudos qualitativos têm mostrado que o abandono do tratamento da TB envolve, igualmente, fatores de outra natureza, tais como: a baixa autoestima, o sentimento de solidão, o estigma, a ausência de redes de apoio familiar e comunitário etc4-7. A situação também se torna mais dramática com a preocupação crescente da associação TB-HIV. Segundo informe da Secretaria de Vigilância em Saúde2, os resultados da testagem para HIV entre os casos novos de tuberculose, em 2014, apontaram para a existência de 10,4% de pessoas com a coinfecção TB-HIV. Os dados são preocupantes, uma vez que, além de retratarem apenas 62,7% desses casos, começam a descrever realidades cujo manejo clínico é ainda mais delicado. É no âmbito, portanto, desse complexo e difícil cenário, no qual se intercruzam diferentes questões, desafios e problemas, que se registra, entre nós, o tema do tratamento compulsório da tuberculose. O assunto, a propósito, não é objeto de consenso. No dia 4 de setembro de 2014, o Observatório Tuberculose Brasil, entidade representativa da sociedade civil, divulgou uma nota com o seguinte teor de alerta: Sem que se ofereça um serviço de saúde adequado, com um acolhimento humanizado e medidas de apoio para a adesão ao tratamento, cresce a utilização arbitrária da internação compulsória como medida sanitária de contenção da doença, uma dupla penalização, estigmatização e a vitimização dos pacientes de tuberculose. Uma questão ética: estamos voltando às práticas do isolamento e internação compulsória do século passado?8

A nota se referia, então, à notícia veiculada, um dia antes, pelo jornal “Correio do Estado”, a respeito de uma ação movida pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul, com o objetivo de determinar o tratamento de um homem de 34 anos. De acordo, ainda, com a notícia, além de acolhida judicialmente, consta da ação o argumento, com base em precedentes já ocorridos em outros estados, de que a medida foi necessária “não só para proteger a vida do paciente, mas, também, de outras pessoas que poderão ser contaminadas”9. 744

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Dentro desse contexto, o presente artigo busca contribuir com a discussão sobre o tratamento compulsório da tuberculose a partir da problematização de algumas de suas implicações éticas. Para tanto, procura pôr em questão antinomias encontradas na defesa sanitária e jurídica da medida, analisando-a, ao final, sob o prisma de quatro sentidos do conceito de justiça.

Direitos difusos, paradoxos, reconhecimento e acusação moral Ao que tudo indica, é precisamente o argumento apresentado acima, pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul, que se encontra, hoje, no centro da reflexão ética do problema. No jargão técnico do direito, trata-se da chamada defesa dos “direitos difusos”, os quais se referem juridicamente à classe dos interesses “[...] compartilhados por pessoas indetermináveis, que se encontram unidas por circunstâncias de fato conexas”10 (p. 53). No caso do abandono do tratamento da TB, tais circunstâncias se caracterizam pelo claro risco do contágio, levando representantes do discurso sanitário a se posicionarem francamente a favor da medida. Contudo, mesmo sob o eventual amparo da Justiça, esse posicionamento não está imune a certas contradições. Em carta publicada, ainda em 2003, pelo Jornal Brasileiro de Pneumologia, e com o sugestivo título de Tratamento compulsório da tuberculose: avanço ou retrocesso?, a tese da internação involuntária é justificada, por exemplo, “após esgotadas todas as medidas anteriormente discutidas”11(p. 51). Embora a autora não enumere tais medidas, infere-se, pelo texto, que estas últimas se referem, sem exceção, à própria estrutura dos serviços de saúde, o que acaba por revelar, portanto, um sintomático paradoxo da questão: se as medidas de prevenção do tratamento compulsório dependem da eficiência dos serviços de saúde, qual o sentido em se propor, como “última saída”, o retorno obrigatório a esses mesmos serviços? As curiosidades do texto, entretanto, não param por aí. A terminologia usada pela autora sobre os pacientes “recalcitrantes” oferece outra oportuna ocasião para reflexão. Segundo o dicionário, a palavra se aplica àquele(a) que “desobedece insistentemente”12 (p.634). Sob esse aspecto, caberia, então, a pergunta: há, por acaso, um critério eticamente objetivo (protocolo, recomendação etc.) para aferir, em relação ao tratamento da TB, o limite de uma “desobediência insistente”? O texto, publicado em uma das mais importantes revistas da área, não deixa pistas. O termo, aliás, está presente, também, em outros documentos. Em parecer emitido pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará, é dito textualmente o seguinte: “Outro aspecto a ser considerado é que indivíduos recalcitrantes não precisam apenas de internação compulsória, mas também de equipe multidisciplinar que possa ajudá-los a entender a importância da adesão ao tratamento adequado” [...].13 Nesse caso ainda, além do emprego explícito do termo, outro paradoxo parece ganhar evidência: afinal, por que razão os pacientes internados compulsoriamente precisariam entender, ao mesmo tempo, a importância da adesão ao tratamento? Não se supõe aí a premissa de que ele não mais recalcitre? Nesse sentido, convém lembrar que o modelo de atenção preconizado pelo SUS compreende a criação e manutenção do vínculo como um dos elementos-chave da prática de saúde. Dessa forma, cabe aos profissionais de saúde, particularmente aqueles que atuam na Atenção Básica, adotarem estratégias e métodos com base nas relações de confiança e no princípio da corresponsabilidade, favorecendo, assim, a adesão ao tratamento. Evidentemente, não se ignoram os enormes desafios estruturais intrínsecos a esse modelo. Por outro lado, restaria saber, também, se ele pode vingar, de fato, sem antes mirar nos aspectos moralmente constitutivos das relações humanas. Aqui é possível pensar, por exemplo, nas instigantes reflexões de Axel Honneth sobre a ideia de “reconhecimento”. Com base na filosofia dialética de Hegel e na psicologia social de George Mead, Honneth busca reestabelecer, com essa ideia, o nexo essencialmente pragmático (e não menos agonístico) entre ética e comunicação – reflexo da estrutura intersubjetiva que marca a dinâmica simbólica da vida social. Nesse sentido, mais do que agentes condenados à mútua coordenação COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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linguística de nossas ações, como enfatiza a teoria habermasiana do agir comunicativo, estaríamos também envolvidos numa “gramática” ainda mais elementar, isto é, numa luta moralmente motivada em nome da própria realização interpessoal de nossa identidade. É essa luta, em particular, fundada na condição reciprocamente determinada dessa mesma experiência, que Honneth chama de luta por reconhecimento14. Como se pode notar, a compreensão de que estamos todos submersos num drama psicossocial em torno das propriedades individuais que estimamos ou não uns nos outros revela, de forma inequívoca, o que está verdadeiramente em jogo no conceito de “vínculo”: sem ações concretas voltadas, no âmbito dos serviços, para a construção de autênticos ambientes de troca (o que talvez exija a invenção de objetivos comuns não terapêuticos), e não, apenas, de “oferta”, portanto, de informação e tecnologia, dificilmente será possível estabelecer uma conexão com as expectativas “demasiadamente humanas” dos pacientes. Voltando às questões terminológicas, estudos no campo da sociologia e antropologia da moral têm chamado atenção ainda para como determinados dispositivos linguísticos podem funcionar sempre que se sujeita uma ação a uma indagação valorativa. Entendidos também como accounts (“prestação de contas”), tais dispositivos acabam por acionar cognitivamente mecanismos sutis de culpabilização, a partir dos quais se atribui, como resposta a um julgamento (real ou suposto), uma marca negativa a alguém. Em outras palavras, trata-se de uma dimensão igualmente pragmática da comunicação humana, revertendo-se, por assim dizer, sempre em nova acusação moral. Como explica Werneck: Uma acusação opera um movimento moral de estabelecimento de papéis: de um lado, alguém que se investe do direito (e do dever, por que não?) de apontar o outro como a “causa” de uma negatividade. A etimologia ajuda a ter uma imagem clara de suas capacidades: vem do latim accusare, formado por ad, contra, e causari, apontar como causa. Mas, para além da origem da palavra, o sentido de acusar é perceptível: ela, para funcionar, depende de um dispositivo cognitivo específico, a culpa.15 (p. 35)

“A sociedade e a medicina”, escreve Claudio Bertolli Filho, “não extinguiram os processos imputadores de marcas morais aos enfermos”16 (p. 230). E isso pode se tornar tanto mais tentador quando, para o profissional de saúde, restar apenas o sentimento de frustração (em si legítimo) a respeito do “fracasso” deste ou daquele caso. Sendo assim, o cuidado na utilização de certos termos, especialmente no campo das ações de controle da TB, deve ser redobrado. Mesmo a palavra “abandono”, que serve para classificar, oficialmente, um dos desfechos do tratamento no Brasil, merece ponderação. Seu emprego sugere uma ação basicamente unilateral, simplificando, assim, o que, do ponto de vista do modelo de atenção à saúde, requer, em termos sociológicos, um olhar mais cuidadoso. Seja como for, seria injusto negligenciar, também, a importância de iniciativas já realizadas em busca da construção coletiva desse olhar. Nesse sentido, cabe destacar o exemplo do 1º Seminário “Tuberculose, cidadania e Direitos Humanos: refletindo sobre deveres para afirmação dos direitos das pessoas com Tuberculose”. Realizado pelo Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT/ MS), com apoio e participação da OPAS/OMS, o evento reuniu, em agosto de 2010, em Brasília: diversos gestores, promotores de justiça, procuradores, profissionais de saúde, ativistas e especialistas em bioética. É fruto desse mesmo encontro a elaboração do livro Direitos humanos, cidadania e tuberculose na perspectiva da legislação brasileira, no qual se pode ler, em passagem correspondente ao tratamento compulsório, o seguinte: Como recurso extremo, após esgotadas todas as possibilidades de mediação sem que o paciente consiga e/ou decida pela adesão ao tratamento, há possibilidade de intervenção judicial para internação compulsória. Esta medida deve ser avaliada criteriosamente, caso a caso, por um juiz competente (orientado por profissionais de saúde e assistentes sociais), através do devido processo legal, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa.17(p. 62)

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Os múltiplos sentidos da justiça Não resta dúvida de que o tratamento compulsório da TB, seja ambulatorial ou via internação hospitalar, suscita, enquanto objeto de promoção da justiça, uma série de indagações concernentes às suas implicações éticas. Isso porque, no cerne da questão, dois princípios de nossa imaginação moral parecem claramente se chocar: de um lado, o princípio da “autonomia”, do outro, a defesa do “interesse público”. Esse choque é particularmente mais visível nas sociedades que, tal como a brasileira, recebeu, sem prejuízo de outras contribuições culturais, uma forte influência de tradições políticas calcadas, a exemplo da própria democracia, na valorização da liberdade individual. Ocorre que, como bem já lembrou Derrida, a justiça é, por definição, “aquilo que não deve esperar”18 (p. 51). E é precisamente o caráter dessa exigência, fundada no apelo a uma ordem inadiável, que parece tornar o problema um dilema ético: afinal, têm ou não os pacientes com TB o direito de recusar o tratamento? A julgar pelo que tem sido, conforme já indicamos, o entendimento de alguns promotores de justiça, não. Em uma ação civil pública proposta em 2009 no estado de São Paulo, pode-se ler a seguinte afirmação de um deles: “É inquestionável que a saúde pública é direito difuso do cidadão a ser protegido quando e onde estiver sendo violado, como no caso vertente, que demanda pronta intervenção judicial já que, na esfera administrativa, não se obteve êxito para que tal violação fosse solucionada”.19 A ação, ocorrida numa cidade do interior paulista, propunha o tratamento compulsório de um homem adulto diagnosticado com TB multirresistente e que, segundo o serviço de saúde local, manifestou seu interesse em não continuar o tratamento, “apesar das várias tentativas de dissuadi‑lo do contrário por parte da equipe do Ambulatório de Especialidades”19. Ora, sabe-se que, cumprindo o rito ordinário em torno da veracidade dos fatos e da instrução legal do processo, é comum a qualquer ação civil pública articular princípios, eventos e razões para o seu respectivo ajuizamento. Em tais circunstâncias, dois elementos chamam atenção no caso aqui em tela. O primeiro deles diz respeito à afirmação do promotor sobre as motivações religiosas do paciente, as quais, segundo ele, teriam contribuído decisivamente para o abandono do tratamento. O mais notável aí, contudo, é a declaração de que a decisão contou com o incentivo dos próprios líderes da comunidade religiosa do paciente, sem abarcar, porém, nenhuma indicação ao que caberia judicialmente a eles. Já o segundo elemento, e não menos intrigante, consiste, como um dos fundamentos da medida, em uma analogia feita com o Decreto nº 24.559/34, o qual dispõe, em seu artigo 11, o seguinte trecho destacado na ação: “A internação de psicopatas toxicômanos e intoxicados habituais em estabelecimentos psiquiátricos, públicos ou particulares será feita por ordem judicial ou a requisição de autoridade policial”.19 Por sinal, essa curiosa referência “histórica” às ações de saúde mental no Brasil não se encontra isolada. Em uma ação movida, em 2007, em outra cidade do mesmo estado, o promotor chega a ressaltar que “As normas pátrias, no que tange aos direitos previdenciários, conferem identidade de tratamento aos portadores de tuberculose e de transtornos mentais violentos”. Para logo a seguir concluir: Tal identidade de abordagem deve ser preservada relativamente ao que se refere à forma de tratamento desses casos, posto que, em ambos, o traço característico é a impossibilidade do enfermo se opor ao tratamento, devido à certeza de sua periculosidade para a sociedade, pois, neste caso, o interesse público é colocado antes do seu interesse pessoal.20

Parece evidente por que, em face desses poucos exemplos, o tratamento compulsório da TB pode (e deve) ser colocado em questão. Pois, além de expressarem uma perspectiva nitidamente judicializante do assunto, eles nos convocam a pensar, também, em que medida essa mesma perspectiva representa a última palavra em matéria de justiça. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Como se poderá observar adiante, não se trata de pôr em julgamento a atuação individual de promotores, mas de salientar, num outro plano de análise, o que nem sempre é captado pela ótica da operação formal do direito. Dentro desse contexto, não deixa de ser espantoso verificar, ainda a respeito das duas ações descritas acima, a sutil aproximação da TB a fenômenos típicos da saúde mental. Convém não esquecer, no entanto, que a tuberculose é uma doença transmissível, afetando, sobretudo, as pessoas mais pobres e que vivem sob más condições de moradia. Nesse sentido, não teriam aqueles mesmos cidadãos o direito, também, de protestar, perguntando, então, onde estava o senso de justiça e proteção do Estado antes que, qualquer que seja a hipótese, pudessem ter sido contaminados? É precisamente esse tipo de questão que nos leva a pensar em reflexões que, sem negar a importância de sua dimensão jurídica, têm buscado, todavia, explorar outras dimensões do conceito de justiça. Assim, poderíamos destacar, por exemplo, a perspectiva teórica de Amartya Sen, na qual, em franco diálogo com a obra de John Rawls, aponta, em especial em A Ideia de Justiça, para o papel central da desigualdade das capacidades – entendidas filosoficamente como potenciais de realização humana –, na avaliação e correção das disparidades sociais21. Num paralelo próximo, Martha Nussbaum, sobretudo em Fronteiras da Justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie, convida-nos a refletir, em revista de fôlego das teorias do contrato social, mas, também, da própria abordagem das capacidades de Sen, sobre como o problema dos sentimentos morais goza de irrefutável relevância filosófica para o debate ético/político contemporâneo22. Por último, as ideias de Michael Sandel – notavelmente desenvolvidas em seu livro Justiça, o que é fazer a coisa certa –, analisando criticamente os limites do utilitarismo e do liberalismo econômico na defesa implacável de uma verdadeira política do bem comum23. Todos esses autores, em que pese a substantiva diferença de abordagens entre eles, ajudam-nos a perceber que, em se tratando de justiça, são múltiplos os seus sentidos possíveis. Sem nos estender muito aqui, mas dentro do que nos propomos desde o início, gostaríamos de apresentar, agora, uma interpretação própria sobre esses múltiplos sentidos. Ela não faz alusão direta aos autores apontados acima, mas reflete o entendimento, a partir de suas contribuições, de, pelo menos, quatro sentidos discerníveis que podemos empregar para melhor examinar em qual deles se encontra a defesa do tratamento compulsório da TB. O primeiro desses sentidos é o que, numa aposta inicial, compreendemos sob o signo da “recompensa”. Em termos morais, trata-se do que, comumente, aplicamos a situações onde o mérito individual é reivindicado como o principal valor a ser considerado. A prova de um concurso público, na qual candidatos concorrem entre si para o preenchimento de uma vaga, costuma ser o exemplo mais emblemático desse sentido de justiça. O segundo sentido guarda uma íntima relação com o primeiro. É o que podemos chamar de justiça como “oportunidade”. Nesse caso, trata-se de garantir, nas situações de inevitável concorrência que marcam a vida social, não somente as mesmas condições de disputa, mas, também, a inclusão daqueles que, por alguma razão, encontram-se em nítida desvantagem ou plenamente excluídos da opção de se beneficiarem dos resultados trazidos por tais situações. De certa forma, esse é o sentido que mais se aproxima do conceito de equidade, amplamente empregado na formulação e implementação de políticas públicas em favor da democratização da sociedade. O terceiro sentido consiste, na verdade, em uma espécie de pré-requisito do segundo. Pois, para uma sociedade produzir igualdade de oportunidade a todos, bem como promover a inclusão social, é necessário que ela apresente, em si mesma, um alto grau de coesão entre seus membros. Assim, tanto mais justa ela será quanto mais intensa for a força de sua “coesão social”. O interessante aqui é podermos correlacionar diretamente esse sentido de justiça a uma das camadas intermediárias do famoso modelo de determinação social de saúde proposto por Dahlgren e Whitehead (por eles definida como “redes sociais e comunitárias”), então utilizado pela própria Comissão Nacional de Determinantes Sociais de Saúde.

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Por fim, o quarto e último sentido encerra a ideia propriamente dita de justiça como “reparação”. Nesse caso, trata-se do legítimo movimento pelo qual, no âmbito do estado de direito, procura-se contrapesar um dano cometido por um ator social (individual ou coletivo) a outro ator social, ou, simplesmente, contra a lei. Com base nesse breve – e, certamente, incompleto – quadro interpretativo, não é difícil supor que é desse último sentido de justiça que se trata a defesa do tratamento compulsório da TB. Sua singularidade filosófica consiste na tradução ética do argumento da prevalência do interesse público, fundado no risco de disseminação da doença, em uma espécie de “reparação preventiva”. Todavia, permanece a questão sobre se o mesmo raciocínio não pode ser utilizado em defesa das pessoas que são alvo da medida, exigindo, assim, uma reparação do próprio Estado ao dano que, por negligência, este lhes causou.Mas qual seria aí o fiel da balança? Como pensar essa reparação de modo que o contrapeso não signifique, redundantemente, o que já era dever do Estado? É possível falar plenamente em “justiça” nesse contexto? Com efeito, seria inevitável alcançarmos uma real problematização do tema sem que chegássemos a essas perguntas. Além de manter a tensão moral do dilema, elas parecem mostrar, também, as dificuldades que decorrem de uma visão puramente formal da justiça. Com isso, não se está afirmando a sua impossibilidade concreta, mas que sua solidez depende igualmente de outras valorações éticas. Talvez só uma análise comparativa do conjunto mais recente das ações civis públicas em defesa do tratamento compulsório da TB pudesse revelar melhor quais têm sido, no Brasil, essas valorações éticas. Como observa, afinal, Michel Foucault: As práticas judiciárias – a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história – me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas.24 (p. 11)

Diante do escasso acúmulo acadêmico com essa abordagem sobre o assunto, tal análise cumpriria, então, um relevante papel filosófico na reconstrução de sua própria dimensão pública.

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Fortes PD. La medida de un trato justo: el tratamiento obligatorio de la tuberculosis en cuestión. Interface (Botucatu). 2016; 20(58):743-51. Este artículo tiene como objetivo contribuir a la discusión sobre el tratamiento obligatorio de la tuberculosis desde el cuestionamiento de algunas de sus implicaciones éticas. Para ello, analiza ciertas contradicciones encontradas en la defensa médica y jurídica de la medida del tratamiento obligatorio de la tuberculosis. Finalmente, serán presentados cuatro significados del concepto de justicia relacionados con esta medida.

Palabras clave: Tratamiento obligatorio de la tuberculosis. Ética. Moral. Justicia.

Recebido em 19/10/15. Aprovado em 24/11/15.

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Limites para uma ‘justa’ dose da medida?

DOI: 10.1590/1807-57622016.0156

Limites para uma ‘justa’ dose da medida? Limits for a fair measure dose? Límites para una dosis ‘justa’ de la medida?

Jacqueline de Souza Gomes(a)

Agradeço a oportunidade de compor o debate a partir do consistente artigo ‘A justa dose da medida: o tratamento compulsório da tuberculose em questão’, de Pablo Dias Fortes. O autor traz-nos uma reflexão muito interessante sobre o tratamento compulsório da tuberculose a partir de uma análise sobre os sentidos da justiça, particularmente, à luz da relação do tema com uma concepção de ‘justiça reparadora’. O assunto é, ainda hoje, polêmico. Organizo meus comentários a partir de dois eixos de discussão. Primeiramente, coloco a questão dos fundamentos da medida. São fundamentos éticos necessariamente? Ou jurídicos? Ou ambos? Como fundamento disposto no inciso III do artigo 1º da Constituição da República Federativa Brasileira1, destaco a proteção da dignidade da pessoa humana. Muito se tem discutido, ao longo dos anos, sobre este dispositivo constitucional. Contudo, a sua aplicação à realidade material nos defronta com sua complexidade. No caso da tuberculose, dois problemas quanto à aplicação do dispositivo: a) tratar o paciente com dignidade é tratar com compulsoriedade? ; b) minimizar o risco de contágio a partir da internação compulsória de pacientes resistentes é tratar com dignidade as pessoas que não contraíram tuberculose? Como ponderamos, de maneira justa, entre o interesse particular do paciente, de um lado, e o interesse da sociedade, de outro? Problema central apontado pelo autor em relação ao tratamento compulsório da tuberculose reside exatamente neste fato de estarmos diante de uma doença que não é meramente individual, mas social. Seu contágio independe do consentimento e, até mesmo, do conhecimento das pessoas. Portanto, terá o Poder Público, a partir das instâncias competentes, dever de identificar e, rapidamente, controlar uma doença infecciosa transmissível por via aérea e capaz de matar mais de três milhões de pessoas no mundo a cada ano? Ou terá o Poder Público o dever de proteger o direito do paciente de agir autonomamente em relação ao seu próprio tratamento? Se, por um lado, é dever dos profissionais da saúde e autoridades competentes garantir a proteção da sociedade quanto aos riscos de doenças infectocontagiosas, é também conduta esperada, especialmente na relação médico-paciente, o respeito à autonomia do paciente. Outro fundamento, pois, 752

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Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos, Bioética e Educação, Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, Brasil. jsgomes@id.uff.br (a)


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se direciona para o salvaguardo da autonomia individual. Será o tratamento compulsório a medida mais apropriada para casos de pacientes resistentes ao tratamento? Ou será que a eficiência seria maior se o enfoque se direcionasse para medidas preventivas em relação ao tratamento compulsório? E, ainda, suficiente o Poder Judiciário para deliberar sobre a inafastabilidade da internação compulsória no caso concreto? Quem determinará a ‘justa dose da medida’, afinal? Em segundo lugar, trago à baila a questão da ‘justiça reparadora’2. A aplicação da justiça é central no desenvolvimento da vida em sociedade. Há multiplicidade de orientações à construção de nossos valores e cultura. Distinções por critérios sexuais, cor de pele, idade ou outros são frequentemente indicados como os mais adequados aos nossos parâmetros de agir. Pautamos nossas ações não pelo que, de fato, possa ser ‘perfeitamente justo’, mas pelo que, subjetivamente, cremos ser mais justo. Mas esta não parece ser a conduta adequada a quem representa a coletividade. E, se não estamos buscando um ideal de ‘justiça perfeita’, como construímos um referencial de justiça que se aplique ao agir do Poder Público e de seus agentes? Como diz-nos Amartya Sen3, considerações sobre a justiça podem até divergir internamente acerca da variável focal utilizada, mas isto não inviabiliza a defesa de um parâmetro de igualdade (ou desigualdade). Relevante é, de plano, destacar a igualdade como característica essencial da justiça. Isto para defender que responder à questão ‘Igualdade de quê?’ passa a ser elementar a qualquer gestor público que pretenda, responsavelmente, formular e avaliar políticas voltadas à reparação de desigualdades que acarretam injustiças entre indivíduos ou grupos. Desta relação justiça-igualdade, segue-se a problematização inicial sobre a existência de um conceito formal de justiça, o que é discutido por Perelman4 e Heller5. Baseando-se na jurisprudência indiana, Amartya Sen6 faz uma distinção entre niti e nyaya para definir os usos que a expressão justiça deve englobar. Niti, termo mais restrito, significa idoneidade das instituições e correção do comportamento. Nyaya, termo mais abrangente, caracteriza-se pela dinâmica social, pela justiça efetivamente realizada a partir dos arranjos sociais. Sen conclui que a realização da justiça, no segundo sentido, não se esgota com a manifestação de instituições e regras, mas remonta aos juízos sobre como as sociedades são em si mesmas. Sen exemplifica com a famosa máxima atribuída ao imperador Ferdinando I, segundo a qual Fiat justitia, et pereat mundus (‘Que se faça justiça, ainda que pereça o mundo’). Tal afirmação relaciona-se com o conceito de niti, mas fica vazia se a analisamos com a perspectiva de nyaya. Não poderíamos supor como justa uma catástrofe do mundo nos termos da máxima se nos apoiássemos na concepção de nyaya. O mundo torna-se mais justo se comprometido com a reparação em alguma ‘dose’. Remontando-nos ao exemplo da abolição da escravidão, Sen6 nos diz que não foi por concordarem todos acerca do que seria uma sociedade perfeitamente justa que a escravidão foi abolida, mas por ter havido um consenso ético no sentido de ser a escravidão uma desigualdade não mais tolerável. Todas as teorias de justiça citadas pelo autor comprometem-se, em maior ou menor proporção, com a reparação de alguma ordem e, de tal maneira, podem ser utilizadas para defender ou rejeitar a internação compulsória. Poderá uma delas, de fato, preponderar sobre as demais e respaldar normativamente as sentenças judiciais? O autor deixa-nos sem respostas.

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Limites para uma ‘justa’ dose da medida?

Referências 1. Brasil. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado; 1988. 2. Kolm S. Teorias modernas da justiça. Camargo JL, Borges LC, tradutores. São Paulo: Martins Fontes; 2000. 3. Sen AK. Desigualdade reexaminada. Mendes RD, tradutor. Rio de Janeiro: Record; 2001. 4. Heller A. Além da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1998. 5. Perelman C. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes; 1996. 6. Sen AK. The idea of justice. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press; 2009.

Recebido em 14/03/16. Aprovado em 14/03/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0170

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Ne quid nimis Nothing in excess Nada em demasia

Diego Gracia(a)

“Nada en demasía”. Esa fue la consigna que propugnaron los filósofos romanos. Así nos lo han transmitido Horacio en sus Odas y Terencio en la comedia Andria. Es una llamada a la moderación en los juicios y las decisiones, algo que los romanos aprendieron de los filósofos griegos, y más en concreto del μηδὲν ἄγαν (medèn ágan) que se hallaba inscrito en el frontispicio del santuario de Apolo en Delfos. Esta consiga es tanto más necesaria, cuanto que la mente humana tiende siempre a irse a los extremos. Ve con gran facilidad el blanco y el negro, pero suele ignorar la gama intermedia de grises. Nuestra mente funciona de modo muy similar a las computadoras, cuyo lenguaje es dicotómico, se compone de 0 y 1. Esto permite entender algo sorprendente, y es que ante un problema tendamos a reducir todos los posibles cursos de acción a dos, que además tienen la característica de ser opuestos y por tanto excluyentes. Esto es lo que constituye un “dilema”, un conflicto con no más de dos posibles soluciones, a la vez contrarias y disyuntivas, de modo que la negación de la una supone la afirmación de su contraria, y viceversa. La mente humana tiende de modo natural a convertir los “problemas” en “dilemas”, anulando todas las posibles soluciones intermedias. Este sesgo, que siempre es grave, resulta particularmente pernicioso en ética. Un problema moral es siempre un conflicto entre dos o más valores. En el caso del tratamiento involuntario de la TB multirresistente, los valores en conflicto son, de una parte, la autonomía de la persona enferma, que se niega al tratamiento, y de otra la protección de otras personas, habida cuenta de que se trata de una enfermedad infectocontagiosa y que los bacilos multirresistentes ponen en peligro la vida de aquellos que resulten infectados. Si esos son los valores en juego, es obvio que los “cursos extremos” consistirán en optar por uno de ellos con lesión completa del otro, y viceversa. Un curso consiste en respetar la voluntad del enfermo y dejarle sin tratamiento, o no comprobar si lo toma según las pautas establecidas. El otro curso extremo consiste en utilizar la coacción en cualquiera de sus formas, incluida la fuerza física, para aislarlo, a fin de que no contagie y obligarle al tratamiento durante todo el tiempo prescrito por la OMS. Basta plantear así el problema para darse cuenta de que los cursos extremos son muy agresivos y éticamente poco recomendables. La razón está en que en cada uno de ellos se pierde completamente un valor, y nuestra primera COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) School of Medicine, Complutense University of Madrid. Madrid, España. dgracia@fcs.es

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NE quid nimis

obligación moral es no lesionar ninguno de los valores en juego. Hemos de hacer lo posible por respetar la autonomía del paciente y a la vez evitar el contagio. Esto sólo puede conseguirse poniendo en práctica los que se denominan “cursos intermedios”. Estos buscarán solucionar los motivos por los que la persona se niega al tratamiento (en el artículo se citan la baja autoestima, la soledad, el estigma, la ausencia de redes de apoyo familiar y comunitario, etc.; pero cabe añadir más, la enfermedad física o mental, la drogodependencia, etc.), a través de una información adecuada, el apoyo emocional, la persuasión, la mejora de su autoestima, etc. Todos estos cursos intermedios son moralmente preferibles a la coacción física, por una parte, y el simple respeto de la libertad del paciente, por la otra. Nuestra primera obligación moral no es salvar el valor que consideramos más importante, sino ver si resulta posible salvar todos los valores en juego. Y esto sólo puede conseguirse con los cursos intermedios. Esto es lo que llevó a Aristóteles a propugnar como método para la solución de los problemas morales el criterio del mesótes o término medio. De ahí que escriba: “Todo conocedor rehúye el exceso y el defecto, y busca el término medio y lo prefiere” (Et Nic II 6: 1106 b 5-6)(b). Hay situaciones concretas en las que no será posible poner en práctica los cursos intermedios, y otras en las que tales cursos fracasarán en su intento de resolver el problema. Cuando esto sucede, cuando fracasan los cursos intermedios, no queda otra opción que elegir uno de los cursos extremos. Ello puede suceder, y sucede de hecho, pero es preciso tener siempre en cuenta que a un curso extremo no debemos ir nunca directamente, sino sólo por el fracaso de los cursos intermedios. A los cursos extremos debe hacerse todo lo posible para no llegar nunca. Optar por uno de ellos será siempre una mala solución, por más que en ciertas situaciones resulte necesario. La opción por un curso extremo debe verse siempre como algo “extraordinario”, es decir, como una “excepción” a la norma, que ha de ser siempre la puesta en práctica de los cursos intermedios. Cuando no hay otra posibilidad que la de optar por un curso extremo, la cuestión está en saber por cuál de los dos debe decidirse uno, es decir, cuál debe elegir. Aquí es importante tener en cuenta que no todos los valores son igualmente valiosos, razón por la cual cabe establecer una jerarquía entre ellos. En el caso de la negativa al aislamiento y al tratamiento pautado de una tuberculosis multirresistente, es fácil convenir en que el valor prioritario es la salud y la vida de las otras personas que pueden resultar infectadas. Para proteger ese valor, será preciso contar con una ley (en España se trata de la Ley Orgánica 3/1986 de medidas especiales en materia de salud pública) o una orden judicial, ya que se está vulnerando un valor y un derecho humano, como es el respeto de la autonomía de una persona. Esta lesión es buena prueba de que este curso de acción sólo puede aplicarse en situaciones “extraordinarias”, en las que no es posible poner en práctica o ha fallado la aplicación de los cursos que hemos denominado intermedios. El trabajo de don Pablo Dias Fortes llama la atención sobre una práctica incorrecta, abusiva y muy frecuente en nuestros medios. Se trata de que al existir un apoyo legal para el tratamiento forzoso de estos pacientes, se acude a él en vez de buscar la resolución por la vía, sin duda más compleja y que exige un mayor esfuerzo, de los cursos intermedios. Esto, que caso de que lo acepte el juez hay que considerar legal y legítimo, es claramente inadecuado desde el punto de vista de la ética. No todo lo legalmente permisible es éticamente correcto.

(b) Ética a Nicómaco, Libro II, capítulo 6, columna 1106 b, líneas 5 y 6.

Recebido em 14/03/16. Aprovado em 20/03/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0303

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Do tratamento compulsório à ética do vínculo From compulsory treatment toward the ethics of the bond Del tratamiento obligatorio a la ética del vínculo

Ricardo Rodrigues Teixeira(a)

O artigo em debate traz uma instigante reflexão a respeito do tratamento compulsório, tema tanto mais relevante quanto não se aplica apenas ao caso específico da tuberculose, mas a algumas outras condições médico-sanitárias. Segundo o autor, a jurisprudência estabelecida entende que o traço comum a todas elas, conforme consta nesta ação do Ministério Público, “é a impossibilidade de o enfermo se opor ao tratamento, devido à certeza de sua periculosidade para a sociedade, pois, neste caso, o interesse público é colocado antes do seu interesse pessoal”. Partindo dessa constatação, o autor oferece uma valiosa reflexão sobre diferentes sentidos de justiça, com a qual procurarei estabelecer um breve diálogo. Preliminarmente, penso ser vantajoso distinguir entre diferentes modalidades de tratamento compulsório. Não fica inteiramente claro, no artigo, se ele está se referindo sempre à “internação involuntária”, nem se poderíamos considerar o DOTS (“tratamento diretamente observado”) como uma modalidade de tratamento compulsório. Isso é importante, pois existem diferenças significativas entre as duas modalidades, tanto no caso da TB, quanto nas outras condições (como os mencionados transtornos mentais e uso abusivo de álcool e outras drogas) em que pacientes têm sido sentenciados ao tratamento forçado. No caso destas últimas, ocorrem os dois tipos de decisões judiciais: tanto o tratamento obrigatório em regime de internação, quanto em regime ambulatorial. Por outro lado, entendo que o fato de o DOTS ser uma recomendação técnica de especialistas não o faria menos “compulsório” do que o tratamento imposto por uma decisão judicial. Contudo, mesmo tendo em comum o caráter forçado do tratamento, há uma diferença não desprezível entre ele se dar em situação de confinamento ou não. Diferenças não apenas éticas e jurídicas, mas, também, na consideração de certos “paradoxos” identificados na posição de alguns especialistas, quando defendem a “tese da internação involuntária” após esgotadas todas as medidas de tratamento em liberdade. O autor questiona: que sentido faria tornar compulsória a “adesão” do paciente a serviços que já se provaram inefetivos em conseguir tratá-los? Bem, não há paradoxo se o que estão defendendo é a “tese da internação involuntária”, isto é, o tratamento forçado em “regime fechado” (neste caso, o que caberia discutir é quanto essa medida pode COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º andar. São Paulo, SP, Brasil. 01246-903. ricarte@usp.br

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Do tratamento compulsório à ética do vínculo

aprofundar a inefetividade dos serviços, uma vez que promove a “estigmatização e a vitimização dos pacientes de tuberculose”, minando a confiança e afastando ainda mais estes pacientes dos serviços. E sendo um efeito dessa medida que se produz em escala social, o verdadeiro paradoxo seria o de uma decisão judicial que, pretendendo se assentar na primazia do interesse coletivo, produz efeitos nefastos exatamente neste nível). Por outro lado, certamente é um paradoxo se o tratamento forçado for ambulatorial, uma vez que, neste caso, o serviço já teria, de fato, falhado em conseguir o tratamento em “regime aberto” (neste caso, o importante seria examinar em maior detalhe o significado do dispositivo DOTS enquanto uma modalidade de tratamento compulsório, garantido pela observação diária e direta da tomada do medicamento pelos pacientes. Fundamentalmente, interessanos examinar os efeitos deste dispositivo sobre os possíveis sucessos ou insucessos dos serviços em conseguir tratar pacientes de tuberculose em liberdade). Aprofundando um pouco mais o exame dessa diferença, valho-me de uma inspiração deleuziana a partir da obra de Foucault1: a diferença entre um dispositivo “disciplinar” (internação) e um dispositivo de “controle” (observação direta). Enquanto o primeiro opera segundo a lógica das “instituições totais”2 e, evidentemente, oferece menos possibilidades de se produzirem linhas de fuga (quase que a única linha de fuga seria, literalmente, a fuga do espaço de confinamento), o segundo possui a ambivalência da maior parte dos dispositivos de “controle a céu aberto”, oferecendo maiores chances de se fazer outra coisa na/da situação por ele imposta, com todas as possibilidades de reinvenção das relações que se dão numa longa e continuada sucessão de encontros diários, ainda que motivados pela finalidade precípua de apenas observar e garantir (modo brando de obrigar) a tomada dos medicamentos pelo paciente. É a partir dessa possibilidade de “reinvenção das relações” que passo ao ponto que me parece mais fundamental a ser enfatizado neste debate: numa palavra, o tema do vínculo. Como a não-adesão ao tratamento é a justificativa de base para o tratamento compulsório, o autor não deixa de abordar o problema, fazendo importantes observações. Aponta uma constelação de expressões cercando o tema da adesão – “fracasso”, “abandono”, “recalcitrância”, “desobediência insistente” dos pacientes – que não apenas revelam concepções subjacentes, mas que produzem efeitos cognitivos e morais. São “dispositivos linguísticos” que acionam, pragmaticamente, mecanismos de culpabilização. Outra poderia ser a abordagem desse problema se nos deslocássemos de uma perspectiva na qual os serviços são vistos como locais de “ofertas tecnológicas” às quais os pacientes adeririam ou não, segundo os ditames da sua vontade individual, para uma perspectiva na qual o que está em questão é a capacidade de esses serviços se constituírem como “autênticos ambientes de troca”, produzindo vínculos efetivos com seus usuários. Outra seria a abordagem do problema da “adesão” (que sequer mereceria ser tratado por este termo), se o foco se deslocasse da culpabilização dos pacientes para o desafio de estruturar serviços que invistam na construção de vínculo, confiança e corresponsabilidade. Simetricamente, esse deslocamento de perspectiva se faz acompanhar de um deslocamento nos sentidos de justiça, segundo a tipologia apresentada pelo autor. Desloca-se do sentido de justiça como “reparação” (“contrapesar um dano cometido por um ator social a outro ator social”), no qual estaria baseada a defesa do tratamento compulsório, ao sentido relacionado ao fato de que uma sociedade é “tanto mais justa quanto mais intensa for a força de sua ‘coesão social’.” A relação deste sentido de justiça com o desafio da construção do vínculo nos serviços de saúde é bastante evidente. Pode-se imaginar sua propensão a produzir uma outra jurisprudência, que, ao invés de culpabilizar os pacientes, sentenciando-os ao tratamento compulsório, imputaria a responsabilidade primordial aos próprios serviços, afirmando seu compromisso ineludível com a produção de graus maiores de “coesão social”. Uma espécie de sentido spinozano de justiça, já que este filósofo identifica a criação e ampliação de direitos à produção coletiva de potência, por meio de bons encontros e de arranjos sociais propiciadores de bons encontros3. Essa possibilidade de se repensar o cuidado dos pacientes com tuberculose que, por múltiplos motivos, resistem ao tratamento, considerando diferentes sentidos de justiça – sentidos que não sendo captados pela “operação formal do direito”, dependem, igualmente, de “outras valorações éticas” – é, sem dúvida, uma virtuosa contribuição do autor para o debate. 758

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Teixeira RR

Referências 1. Deleuze G. Foucault. São Paulo: Brasiliense; 2005. 2. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva; 2008. 3. Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2007.

Recebido em 13/04/16. Aprovado em 15/04/16.

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Autonomia e coerção na justa medida ...

DOI: 10.1590/1807-57622016.0224

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Autonomia e coerção na justa medida do tratamento da tuberculose Autonomy and coercion in the fair measure for tuberculosis treatment Autonomía y coacción en la justa medida para el tratamiento de la tuberculosis

Elma Zoboli(a)

Relevante e atual, o artigo de Fortes1 aborda implicações éticas do tratamento compulsório da tuberculose, baseando-se em quatro sentidos de justiça, na determinação social e transmissibilidade da doença. A tuberculose afeta, sobretudo, os mais pobres1, pois a saúde-doença é processo histórico-social e não só expressão de características individuais e biológicas2. Assim, é preciso ultrapassar os limites dos comportamentos e atitudes individuais na discussão da adesão ao tratamento da tuberculose, pois esta se relaciona com a realidade da pessoa doente, organização do trabalho em saúde, acesso, condições para uma vida digna3. Viver compativelmente com a dignidade humana é a primeira exigência ética da sociedade que se pretende justa. Justiça e felicidade são horizontes da ética a serem conjugados, pois projetos de felicidade excludentes dos mais vulneráveis são desumanos, e exigências de justiça que desconsideram vida em plenitude são pouco vigorosas4. Num dos sentidos de justiça, Fortes1 referencia o alto grau de coesão dos membros da sociedade para se produzir igualdade de oportunidades para todos. A felicidade implica o florescimento das melhores potencialidades e capacidades individuais; a justiça significa igual oportunidade para todos terem tal florescer4. Oportunidade, provavelmente, negada às pessoas com tuberculose, que acabam culpabilizadas por adoecer, enquanto a sociedade, que não garantiu uns mínimos de justiça para assegurar vida digna a todos, segue impune. Fortes1 questiona se o doente poderia exigir reparação pela negligência do Estado que não assegurou igual distribuição de bens básicos e oportunidades, gerando iniquidades que vulneram alguns grupos sociais. A ética aponta para a vida feliz desenvolvida no bojo das exigências da justiça, abrindo caminho à esperança. Quem completou com sucesso o tratamento para tuberculose multirresistente indicou o desejo de viver como decisivo na adesão5. O que é isso senão esperança? E como tê-la sem justiça social? É preciso o mútuo reconhecimento da dignidade para ponderar o suficiente, o necessário e a vida de qualidade no âmago do justo4. O mútuo reconhecimento gera vínculo, fundamento da prática de saúde no SUS1. Entretanto, se compreender a adesão ao tratamento como decisão autônoma da pessoa com tuberculose pode levar à culpabilização desta, deslocar o fiel da balança para o vínculo, desconsiderando as condições de trabalho e 760

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(a)

Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil.elma@usp.br


Zoboli E

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organização dos serviços de saúde pode transferir a culpa para os profissionais. Isso remete à justiça como mérito e recompensa1, provocando a reflexão: estaria esta ideia de justiça ancorando as premiações às equipes de atenção primária com bons resultados no controle da TB? Não seria culpabilizar os profissionais: se aquela equipe trabalha na mesma rede e consegue bons resultados, por que não conseguimos? É preciso ampliar a compreensão da adesão ao tratamento da tuberculose para discutir, de forma mais justa, menos culpabilizadora, a questão da internação compulsória. Para Fortes1, sem ações concretas nos serviços de saúde para criar verdadeiros ambientes de troca, dificulta-se criar, manter, fortalecer vínculos. A boa intenção da equipe para bem cuidar se tornará razão, ganhará peso de argumentação somente ao encontrar eco na estrutura das organizações. Os projetos de felicidade das equipes precisam ser desenvolvidos no bojo de projetos de justiça para a organização do trabalho em saúde. O “êthos burocrático”, da justiça, precisa compaginar-se com o “êthos profissional”, da excelência4 (p. 139). O linguajar pode expressar juízos valorativos, com culpabilização e acusação moral. Fortes1 exemplifica que “abandono”, um dos desfechos do Programa de TB, traz a ideia de que o doente não foi capaz de motivar-se para o tratamento e a equipe incapaz de esclarecê-lo. Isso gera questões éticas na Atenção Básica: como informar os usuários para conseguir a adesão ao tratamento?6. O profissional, sentindo-se incapaz de cumprir seus deveres, sofre moralmente. Mantém-se o usuário como alguém incapaz, necessitado da condução dos profissionais por ações paternalistas, autoritárias, que acabam justificando o tratamento compulsório. A abordagem ética continua restrita às responsabilidades individuais, e a da tuberculose segue, predominantemente, restrita a tratamentos medicamentosos, intervenções na cadeia de transmissão, diagnóstico precoce. Fortes1 destaca “pacientes recalcitrantes”, que se soma a: faltante, suspeito, combate, controle. Todos implicitamente coercitivos e mantenedores da submissão dos usuários7, com abordagem paternalista, autoritária, utilitarista da saúde pública, em nome do benefício coletivo. Suspeito é pessoa presumivelmente culpada de crime ou ofensa, que, certamente, não é a condição de quem apresenta sintomas e sinais de tuberculose7. Mas, suspeitos e comunicantes são ‘investigados’. Estes termos reiteram o estigma relativo à tuberculose; implicam a criminalização dos mais vulneráveis7, passível de punição com tratamento compulsório, pena de segunda instância para quem descumpre a emanada na primeira. Controle designa poder para dominar, regular, restringir uma atividade ou processo; poder de influência e autoridade sobre um comportamento7. Seu uso tem implicações éticas, pois coloca os profissionais na condição de comando, de sabedores do necessário para o paciente resolver seus problemas de saúde7, definidos, também, pela equipe. Comunidade e pacientes não são considerados interlocutores válidos, distanciando-se o reconhecimento mútuo de dignidade. Os profissionais, assim, acreditam ter poder sobre o paciente e sua vida, infringindo direitos, desrespeitando a autonomia, justificando ações coercitivas para regular o comportamento 7. A questão da tuberculose ultrapassa a competência técnica dos serviços e equipes; é fundamental a ética, como dignidade, justiça social e acolhimento7. Concordando com Fortes1, urge trabalhar na reconstrução da dimensão pública, coletiva da questão da tuberculose, com vistas à justa medida no acompanhamento das pessoas que sofrem com a doença e para debelar as condições sociais injustas que a determinam, ceifando sonhos e possibilidades de muitos brasileiros.

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Autonomia e coerção na justa medida ...

Referências 1. Fortes PD. A justa dose da medida: o tratamento compulsório da tuberculose em questão. Interface. 2016; 20(58):773-81. 2. Buss PM, Pellegrini-Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis. 2007; 17(1):77-93. 3. Bertolozzi MR. Adesão ao tratamento da tuberculose na perspectiva da estratégia do tratamento diretamente observado (“DOTS”) no município de São Paulo (tese). São Paulo (SP): Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2005. 4. Cortina A. ¿Para qué sirve realmente la ética? Madrid: Paidós; 2013. 5. Ferreira KR. A adesão ao tratamento no caso da tuberculose multirresistente (tese). São Paulo (SP): Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2014. 6. Zoboli ELCP. Bioética e atenção básica: um estudo de ética descritiva com enfermeiros e médicos do Programa Saúde da Família, São Paulo (tese). São Paulo (SP): Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2003. 7. Zachariah R, Harries AD, Srinath S, Ram S, Viney K, Singogo E, et al. Language in tuberculosis services: can we change to patient-centred terminology and stop the paradigm of blaming the patients? Int J Tuberc Lung Dis. 2012; 16(6):714-7.

Recebido em 28/03/16. Aprovado em 06/04/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0428

debates

Réplica Reply Respuesta

Pablo Dias Fortes(a)

A irremediável busca por justiça Gostaria de iniciar esta réplica dirigindo um especial agradecimento à equipe de editores da Interface pela sugestão de indicar meu artigo para a seção de debates deste número. Tal agradecimento é também extensivo a cada um dos quatro comentadores que, de modo igualmente acolhedor, enriqueceram a textura do debate, pondo, sob escrutínio crítico, aspectos que complementam – sem nunca esgotar – um olhar coletivo sobre o tema. A seguir, passo, então, em brevíssima revista esses comentários que são seguidos dos meus. Intitulado de Ne quid nimis (“Nada em demasia”), o texto de Diego Gracia indica, de saída, a cuidadosa observação da tradição filosófica sobre o risco de leituras dicotômicas em matéria de reflexão ética. Parece partir, assim, de uma necessária propedêutica ao tipo de raciocínio que deve prevalecer quando se trata do exame e de decisões envolvendo problemas morais. Estes, segundo o autor, são sempre conflitos entre dois ou mais valores, para os quais sugere a advertência de que “Nuestra primera obligación moral no es salvar el valor que consideramos más importante, sino ver si resulta posible salvar todos los valores en juego”. Em tais circunstancias, propõe o autor, à luz do pensamento de Aristóteles, a opção de pensarmos sempre em medidas intermediárias (cursos intermedios). No entanto, se essa mesma opção fracassa, isto é, não sendo capaz de oferecer uma solução concreta para o equilíbrio de dois valores em jogo, tornar-se-ia moralmente justificável a adoção de medidas extremas, desde que, é claro, seja possível identificarmos, também, qual o “valor prioritário”, como sugere a seguinte passagem do autor sobre o tema específico: “En el caso de la negativa al aislamiento y al tratamiento pautado de una tuberculosis multirresistente, es fácil convenir en que el valor prioritario es la salud y la vida de las otras personas que pueden resultar infectadas”. Para interagir com o texto de Gracia, trago aqui uma breve menção à filosofia política de John Rawls. Para esse filósofo americano, a estrutura de uma teoria ética é, em grande parte, determinada pelo modo como ela define e interliga as noções de “justo” e de “bem”. Rawls quer chamar atenção, com isso, para uma característica das teorias teleológicas, as quais, diferentemente de uma análise deontológica, como a que ele mesmo faz, assumem a primazia do bem COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Centro de Referência Professor Hélio Fraga, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Estrada de Curicica, nº 2000, Jacarepaguá. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22780-194. pdiasfortes@gmail.com (a)

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A justa dose da medida: ...

em relação ao justo. Justiça, portanto, seria a ação – individual ou coletiva – que visa à realização de determinado bem. Ocorre que tal perspectiva dependerá sempre de um acordo intuitivo sobre, precisamente, o “bem” em questão. E isso nos leva de novo à precedência do que é ou não justo, em especial, quando temos em mente o problema de definirmos, então, o que é preciso para um legítimo acordo (quais, enfim, os termos justos!). Ainda que Rawls não tenha se detido na análise dos problemas morais em saúde, tal perspectiva é interessante por valorizar, na esteira da tradição contratualista, o princípio da reciprocidade para um julgamento mais equitativo sobre as decisões e os valores em jogo. Ou seja: ainda que se trate de uma ação “extraordinária”, fundada no risco que uma pessoa pode oferecer à vida de outras, permanece o desafio de sabermos em que medida obrigá-la a se tratar não deveria considerar também outro fundamento capaz de determinar melhor em que circunstâncias a recusa do tratamento já representaria a violação de um acordo. A aclamação de um “bem maior” jamais suprime o mal de uma injustiça. O texto de Jacqueline Souza Gomes é uma inteligente provocação acerca das dificuldades que envolvem os fundamentos e a aplicabilidade da justiça. Após uma série de indagações concernentes à relação desse valor com o problema em questão, assinala a importância de um referencial de justiça para o poder público e seus agentes. Aqui, ganha destaque, então, a obra de Amartya Sen, a qual, inspirada em parte no pensamento indiano, propõe, como uma estratégia de reflexão, o contraste entre os termos Niti e Nyaya, ambos oriundos da literatura sânscrita sobre ética e direito. O primeiro se refere a um sentido de justiça mais austero e severo, exemplificado pelo autor na famosa máxima de Ferdinando I: Fiat justitia, et pereat mundus (“Que se faça justiça, ainda que pereça o mundo”). Como lembra Jacqueline, porém, um mundo condenado ao perecimento não parece compatível com a imagem de algo justo. Nyaya apontaria, assim, para um sentido mais amplo do conceito de justiça, sem o qual não seria possível um julgamento mais apropriado das coisas, inclusive, no que tange ao compromisso com “a reparação em alguma ‘dose’”. Ao final, interpela-me a autora: “Todas as teorias de justiça citadas pelo autor comprometem-se, em maior ou menor proporção, com a reparação de alguma ordem e, de tal maneira, podem ser utilizadas para defender ou rejeitar a internação compulsória. Poderá uma delas, de fato, preponderar sobre as demais e respaldar, normativamente, as sentenças judiciais? O autor deixa-nos sem respostas.” Começando por essa última interpelação, convém ressaltar que não tive a pretensão, com meu artigo, de oferecer um respaldo normativo para as sentenças judiciais. Pelo contrário: ao me aproximar das teorias da justiça, meu objetivo foi unicamente elaborar uma primeira abordagem problematizadora do tema. Minha hipótese é de que, sem uma análise comparativa sobre a verdadeira magnitude do problema e dos argumentos empregados em defesa do tratamento compulsório, dificilmente poderemos chegar a um quadro de referência normativo com base em uma (justa?) ponderação teórica. Daí também por que não acredito que se trata de avaliar, a priori, qual perspectiva deve preponderar. Por mais atraente que nos pareça a reflexão de Sen sobre o conceito de Nyaya, por exemplo, não estou totalmente convencido de que essa ideia, aplicada ao problema ora aqui em exame, possa dirimir o tipo de questionamento que fiz a partir da filosofia política de Rawls. Ademais, entre o perigo de um mundo em ruína e o imperativo da preservação da vida, restaria pensar, ainda, no significado igualmente catastrófico de uma doença que insiste em penalizar, justamente, os mais pobres. Qual o exato sentido de Nyaya nesse contexto? O que haveria aí, afinal, a merecer maior ou menor reparação? Seguindo o mesmo padrão de qualidade dos textos anteriores, o comentário de Ricardo Rodrigues Teixeira formula, logo de início, uma instigante hipótese sobre o alcance biopolítico da estratégia DOTS. Diz ele: “o fato do DOTS ser uma recomendação técnica de especialistas não o faria menos ‘compulsório’ do que o tratamento imposto por uma decisão judicial.” Na sequência, após efetuar uma necessária correção a respeito de um dos paradoxos por mim identificados (a tese da internação involuntária), propõe aprofundar o exame do tema valendo-se “de uma inspiração deleuziana a partir da obra de Foucault.” Assim, constata a ambivalência do tratamento diretamente observado (DOTS) como parte de um dispositivo de “controle a céu aberto”, isto é, permeável à possibilidade de “reinvenção das relações” na direção de uma autêntica “ética do vínculo”. Finalmente, destaca o caráter da justiça como força de integração da sociedade, aproximando-se, então, de um “sentido 764

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Fortes PD

debates

spinozano” para uma jurisprudência mais atenta à responsabilidade primordial dos serviços frente ao problema em questão. Em que pese o meu esforço de apenas colocar em questão o tratamento compulsório da tuberculose, e sem maiores reticências à correção proposta por Teixeira, penso que o seu comentário acertou em cheio em sintetizar aquilo que creio ser mais substantivo para o debate. O núcleo axial do argumento consiste em conceber o tratamento como relação social que é, ou seja, realçando um enfoque na qualidade mesma dos encontros (numa palavra: o “vínculo”) implícita na ideia de “cuidado”. Sem dúvida, uma ética profissional inspirada na filosofia de Spinoza talvez redimensionasse significativamente quanto de “justeza” (palavra com indubitáveis ecos spinozanos!) estaríamos dispostos a enxergar em uma medida marcada por profunda heteronomia. Num paralelo próximo ao comentário de Teixeira, o texto de Elma Zoboli discorre sobre uma série de questões entrelaçadas ao ideal de uma vida feliz como princípio ético por excelência. Lembra, por exemplo, que “Quem completou com sucesso o tratamento para tuberculose multirresistente indicou o desejo de viver como decisivo na adesão”. Não obstante, alerta também que “deslocar o fiel da balança para o vínculo, desconsiderando as condições de trabalho e organização dos serviços de saúde pode transferir a culpa para os profissionais”. Por fim, reconhece a importância de um olhar crítico para determinados dispositivos linguísticos empregados pelo serviço, sobretudo, por reiterarem o estigma relativo à tuberculose. De fato, o alerta da autora sobre o risco de culpabilização dos profissionais de saúde é uma observação central para o debate. Ignorar as condições concretas de trabalho seria incorrer, igualmente, numa grave injustiça. Sob esse aspecto, e como a própria autora reconhece, não deixa de ser curioso notar a presença de termos estigmatizantes conferindo exatamente uma “organização” para o serviço, dificultando, assim, “o reconhecimento mútuo de dignidade”. Usando as palavras mesmas da autora: “Os profissionais, assim, acreditam ter poder sobre o paciente e sua vida, infringindo direitos, desrespeitando a autonomia, justificando ações coercitivas para regular o comportamento”. Bem, é contra essa crença, em particular, que me parece urgente destacar a “dimensão pública” do problema.

Recebido em 10/05/16. Aprovado em 10/05/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.1118

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Medida educativa estabelecida em razão do porte ilegal de drogas: relato de experiência André Bomfim Dias(a) Eliseu de Oliveira Cunha(b) Vania Nora Bustamante Dejo(c)

O presente trabalho relata um projeto de intervenção no âmbito das políticas públicas sobre drogas, sendo necessária uma breve descrição do panorama histórico do qual este campo é tributário. É oportuno frisar que o uso de substâncias psicoativas (SPAs) é uma marca emblemática da jornada humana em toda a sua existência, mitigando dores e angústias de sujeitos que a elas recorrem na medida de suas necessidades subjetivas e sociais1. A percepção dos riscos e prejuízos potenciais ao usuário e à comunidade também é longínqua, assim como as regulações e interdições sociais elaboradas para refreá-los2. Na contemporaneidade, verifica-se a ruptura com os controles culturais, o crescimento do individualismo e a inserção de diversas SPAs na ordem econômica – especialmente as ilícitas – e entre seus reflexos destacam-se o grande aumento da oferta desses produtos e das consequências indesejáveis do seu consumo3. No início do século XX foram realizadas conferências entre representantes de diferentes nações para discutir formas de enfrentamento do fenômeno, optando-se pela formação de um sistema robusto de controle e punição. Nesses eventos concluiu-se que ao Estado caberia definir os usos legítimos e ilegítimos das drogas, bem como prescrever modalidades de tratamento dos usos ilegais4. Desse modo, irrompeu e ganhou força o paradigma proibicionista. O proibicionismo se caracteriza pela repressão e criminalização da produção, do comércio, porte e uso de algumas drogas, sob a justificativa de seu alto potencial lesivo. Alinhado com os interesses de alguns segmentos sociais, sobretudo as elites – assustadas com as desordens urbanas – e a indústria farmacêutica – que cobiçava o monopólio da produção de drogas – e com o apoio da Organização das Nações Unidas, segue vigorante em grande parte do mundo, delineando-se como o entendimento predominante sobre o consumo de SPAs5. Suas consequências, no entanto, têm sido desastrosas. Nos países a ele signatários, a exemplo do Brasil, verifica-se o aumento do uso de drogas ilícitas e a correlata consolidação do narcotráfico como campo clandestino de trabalho, lucro e força militar. Trata-se de uma verdadeira indústria paralela, com muitos funcionários e um robusto instrumental bélico6. Para combater a produção e o tráfico de drogas são feitos investimentos maciços em militarização e repressão policial, signos de uma política fracassada que acaba retroalimentando os já elevados índices de violência e criminalidade atrelados ao tráfico. ObservaCOMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD), Universidade Federal da Bahia. Avenida Pedro Lessa, 123, Canela. Salvador, BA, Brasil. 40110-050. andrebomfimdias@ hotmail.com (b) Mestrando, Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, Brasil. eliseuocunha@ gmail.com (c) Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia.Salvador, Bahia, Brasil. vdejo@ufba.br (a)

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se, ainda, um sistema de justiça sobrecarregado de questões relacionadas às substâncias psicoativas ilícitas, bem como unidades prisionais cada vez mais superlotadas de traficantes, usuários e até meros suspeitos4. Na contracorrente do ideário proibicionista, a perspectiva de redução de danos tem ganhado força, entendendo o uso de drogas como um traço do humano, e não como desvio moral ou patologia. Além disso, desloca a abordagem do fenômeno de uma perspectiva militar para uma de atenção à saúde, vez que o consumo de substâncias psicoativas é também uma questão de saúde pública e não apenas ou essencialmente de segurança pública5. Aposta-se na construção de uma relação menos lesiva com a substância, mediante estratégias de redução de riscos e danos associados ao seu consumo. A abstinência também é uma das possibilidades. Geralmente estabelece-se um continuum de metas intermediárias no qual o fim do uso corresponde a um ponto final, porém facultativo, visto que o usuário tem respeitadas sua liberdade e autonomia7. Esses dois modelos cindem nosso país, coexistindo como um jogo de forças antagônicas que se vê refletido nas políticas públicas sobre drogas. Por um lado, protela-se a legalização, conquista ainda não alcançada pela lei atual, 11.343/20068. Por outro, a atitude em relação aos usuários tornou-se moderada, sendo este um significativo avanço histórico. Verifica-se também na legislação atual o incentivo a práticas assistenciais interdisciplinares, lastreadas pelos princípios da redução de danos, com vistas à atenção integral e à inclusão social4. No concernente ao porte de drogas ilícitas para consumo pessoal, operou-se um abrandamento punitivo: extinção da pena de privação de liberdade e introdução da alternativa de participação em atividades educativas. Isto é, no seio da tradição punitiva e autoritária no tratamento da questão das drogas, emergem estratégias de natureza educativa. De acordo com a lei atual8, Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

A nova lei de drogas inclui as instituições educacionais no rol dos espaços voltados ao enfrentamento do problema. Na literatura observam-se diversos estudos sobre intervenções de cunho educativo nesse campo. Grande parte das publicações descreve experiências voltadas à prevenção do uso de SPAs entre jovens em escolas e organizações sociais, à instrumentalização e capacitação de profissionais para o trabalho preventivo nesse âmbito e ao tratamento de usuários9-17. São escassas, todavia, descrições de estratégias de acolhimento ao sujeito com questões judiciais decorrentes do consumo. A carência desses relatos e o reconhecimento da importância estratégica da redução de danos no desenvolvimento de ações educativas sobre drogas justificam o presente trabalho. Este descreve a experiência de um Grupo de Atenção a Pessoas em Cumprimento de Transação Penal na Modalidade Programa ou Curso Educativo, em razão de conduta enquadrada no Art. 28 da Lei 11.343/20068 – porte de drogas ilícitas para uso próprio. Também apresenta uma reflexão sobre as repercussões sobre os participantes.

Sobre a instituição e a construção da intervenção O projeto de intervenção aqui relatado foi desenvolvido no Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD), que consiste em um serviço de extensão permanente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, referência na atenção a usuários de substâncias psicoativas e seus familiares, em redução de riscos e danos, estudo, ensino e pesquisa, desde 1985. O projeto surgiu como resposta a demandas apresentadas por Juizados Especiais Criminais. Foi estabelecido como

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seu objetivo promover educação em saúde no domínio do consumo de SPAs, bem como avaliar necessidades, identificar demandas, acolher queixas e angústias das pessoas encaminhadas e fomentar a construção de estratégias de redução de riscos e danos. Também se almejou proporcionar a cada usuário uma ampliação do entendimento de sua relação com as SPAs e uma maior percepção e crítica sobre seu posicionamento político pessoal no tocante à nova Lei de Drogas, propiciando reflexões sobre seus avanços e limites18. O projeto foi coordenado por um psicólogo da instituição e realizado no curso de seis encontros. O primeiro – acolhimento – e o último – entrevista de devolução – foram individuais; os outros quatro, grupais. No primeiro encontro foi apresentada a proposta de intervenção, deixando claro o caráter confidencial dos conteúdos abordados, assim como a proposta de oferecer um espaço de escuta e diálogo, onde não seriam feitos julgamentos, não seriam dadas prescrições por parte da equipe profissional e não caberia questionar a veracidade dos fatos relatados. Nesses encontros grupais, além dos usuários e do coordenador, participaram uma psicóloga e dois estagiários – um de psicologia e uma de medicina. Configurados como rodas de conversa, com a eventual utilização de recursos audiovisuais, os encontros suscitaram a construção coletiva de saberes mediante a socialização de ideias e experiências, pontuadas e problematizadas pelos mediadores. Nesta proposta, recusou-se adoção de uma postura vertical e de sujeição, optando-se por acompanhar Freire19 em sua ousadia emancipatória preconizada na educação popular, na qual os sujeitos ocupam um lugar de protagonistas no processo educativo, sendo seus discursos a matériaprima de uma práxis pedagógica horizontal, crítica e subversiva. O presente trabalho se dedica à análise de dados obtidos durante as reuniões grupais.

A intervenção A seguir serão relatados e analisados o processo de composição do grupo e os episódios e temas evocados e debatidos pelos usuários, mas sem identificá-los, preservando suas identidades. O CETAD recebeu, via correios, 37 ofícios encaminhados por Juizados Especiais Criminais, direcionando 31 pessoas para cumprimento de transação penal do tipo medida de comparecimento a programa ou curso educativo. Deste total, apenas dez compareceram ao referido Centro e deixaram número para contato telefônico e futuro agendamento de entrevista de acolhimento. O elevado número daqueles que não chegaram até a instituição, 21, sinaliza a necessidade de elaboração de estratégias para encaminhamento mais efetivo. Das dez pessoas, seis retornaram ao CETAD para acolhimento, todos adultos jovens do sexo masculino, desempregados ou subempregados. Durante a entrevista, os sujeitos puderam relatar seu percurso até a instituição e falar sobre sua relação com substâncias psicoativas, bem como receber informações sobre o Centro de Referência e sobre o programa educativo proposto. Deu-se início, também, a uma avaliação dos riscos e danos produzidos pelo consumo. Na ocasião em que foram feitos contatos telefônicos para agendamento do primeiro encontro grupal, fomos informados pela genitora de um dos entrevistados que este havia sido assassinado. O grupo, então, foi composto por cinco pessoas. Os encontros grupais, orientados pela perspectiva da educação problematizadora proposta por Paulo Freire, tiveram como objetivos: possibilitar o desvelamento da realidade, bem como sua percepção enquanto problema, desafio, opondo-se a uma percepção fatalista da mesma; favorecer o diálogo entre os diferentes componentes e saberes; garantir a produção de reflexão crítica que se traduz em ação no mundo. Por conseguinte, o coordenador da atividade descrita neste trabalho tinha “por função dar as informações solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica do grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta no curso do diálogo”19 (p. 6). A guisa de organização, as vivências e os questionamentos registrados em diário de campo após cada encontro foram agrupados em cinco categorias, resultantes da reunião das falas dos usuários em razão da similitude temática.

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As drogas e seus efeitos: estimulação, prazer e lesividade De modo geral, os participantes do grupo atribuíram às drogas, especialmente à maconha, sensações de tranquilidade, bem-estar, aumento de apetite, estimulação sexual e um êxtase talvez análogo ao que Nery Filho1 se refere como um fugaz reencontro do “paraíso perdido”. Quanto às formas de satisfação no mundo, o uso da substância ocupa, para boa parte dos usuários, uma posição de destaque, superando todas as demais, salvo a proporcionada pela relação sexual. Por outro lado, as drogas não geram apenas júbilo, mas também danos e infortúnios a quem a elas recorre, ambivalência amiúde equalizada com a condição humana e seus inúmeros impasses e embaraços. Além dos prejuízos à saúde, os participantes relataram suas percepções acerca do preconceito e da estigmatização, bem como dos riscos à integridade física que correm quando se dirigem a um ponto de venda (uma “boca”), ou quando são abordados por policiais, portando drogas. O uso de SPAs também atrapalha planos de vida, como ocorreu com um usuário que precisou postergar a sua disputa a uma vaga de emprego em uma empresa que exigia a realização de exames toxicológicos. No que tange às representações das substâncias ilícitas, a cocaína foi significada pelos participantes que dela já fizeram uso – mas que o interromperam devido a seus efeitos altamente danosos – de forma negativa. Um dos usuários relatou que a cocaína chegou a “escravizá-lo”, exigindo dele uma repetição frequente do uso – com intervalos de tempo cada vez menores –, comprometendo sua saúde e várias dimensões de sua vida, chegando até a inibir seu apetite. Outro afirmou que também ficou sem fome, perdeu bastante peso e chegou a passar mal, a ponto de ser internado em unidade hospitalar. Quanto ao crack, os usuários enfatizaram o seu elevado potencial de causar dependência e, consequentemente, incitar à execução de atos movidos pelo desespero quando estão em abstinência. Um participante declarou que um conhecido seu chegou a vender toda a mobília de sua casa para financiar o uso da droga. Muito embora seja compreensível o terror dos participantes quanto aos efeitos prejudiciais do uso de cocaína e crack, assombro que se estende a uma significativa parte da população no cenário atual, convém não adotar uma atitude personificada à substância. Não raramente se tem atribuído a esse objeto, a droga, a responsabilidade por uma série de mazelas, como se verifica em enunciados do tipo “as drogas têm matado muita gente”, “o crack está destruindo muitas famílias”, “quero parar de usar crack, mas ele não deixa, ele me chama e me seduz, é mais forte do que eu”, etc, tão largamente difundidas pelo senso comum. Esta representação social do crack como ser, como algo que tem vida própria, algo capaz de invadir lares, destruir famílias, roubar e matar encontra-se amplamente veiculada pela mídia nacional e tem sido objeto de análise de diferentes estudos20-22. Martins e MacRae4 convidam-nos a alguns questionamentos: “pode um objeto inanimado ser o autor destas ações? Pode-se atribuir ao crack o ato de apertar o gatilho de uma arma e cometer homicídio? Pode um ‘baseado’ acender-se sozinho e pular na boca de uma pessoa?” (p. 17). A provocação dos pesquisadores suscita uma reflexão mais ampla, uma vez que pôr a culpa na droga, como se ela por si só fosse capaz de desorganizar a sociedade e produzir o “mal”, é se desresponsabilizar e fazer perpetuar um pensamento animista. Melo21 aponta que, ao responsabilizar o crack por problemas sociais, ocultamos a existência de problemas estruturais associados à ineficiência do Estado na garantia dos direitos básicos aos cidadãos. Pode-se, pois perceber que a demonização da droga e a sua personificação produzem uma inversão onde o efeito é tomado como causa. Espinheira22 é categórico ao afirmar que as drogas não podem ser tomadas como um mal em si mesmas, como causa, senão de modo enviesado, ou como o avesso da causa. Em suma, a droga deve ser vista como objeto, não como sujeito, e seu consumo compreendido como efeito, não causa.

Consumo de drogas: interrupção, moderação e proteção Os participantes relataram terem vivenciado momentos de reflexão que envolveram indagações do tipo “o que estou fazendo com minha vida?”. A abstinência se impõe como um propósito de vida para 770

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a maioria deles, interesse correlato a uma não menos expressiva dificuldade em consegui-la. Os que alegaram consumir maconha e cigarro relataram ter importante dificuldade em superar a dependência lícita, mas que as tentativas de abandonar as duas substâncias resultaram em um fracasso associado a fissura e sensações de mal-estar. Um usuário relatou que, nas últimas tentativas de abandono do uso, a reincidência foi precedida por um evento estressor, no qual a droga foi vislumbrada como uma possibilidade de alívio: permitiria fugir do problema ou ficar mais relaxado para resolvê-lo. Nesse ponto, cabe sublinhar que a lógica da redução de danos parte de duas observações: primeiro, de que o uso de drogas faz parte da história da humanidade, tratando-se de uma prática massivamente realizada pelos humanos; segundo, de que a depender da droga e do tipo de uso que se faz dela é possível ter uma vida tranquila e produtiva, sem prejuízos significativos à saúde e à organização social5. Durante os encontros, os participantes chegam a citar alguns artistas, como compositores do reggae, do hip-hop e da Música Popular Brasileira, que incorporaram o uso de maconha ao processo de produção artística. O arsenal de técnicas de redução de danos não se restringe ao domínio do consumo da droga, mas se amplia à compra da substância. Algumas estratégias foram citadas pelos participantes, como ir à “boca” apenas durante o dia evitando, assim, expor-se aos perigos de fazê-lo à noite. Comprar em menor quantidade, para diminuir as chances de ser enquadrado como traficante pela polícia, também foi uma técnica sugerida, conquanto tenha uma eficácia limitada. Comprar maior quantidade implica voltar menos vezes à “boca”. Não são poucos os desafios enfrentados pelos usuários de drogas ilícitas com dificuldades de atingir a abstinência. Certamente, o proibicionismo produz uma multiplicação dos riscos e danos associados ao consumo.

Policiais versus usuários: autoritarismo, hipocrisia e injustiça Os abusos e absurdos engendrados por policiais na “guerra às drogas” também foram bastante relatados. Alguns participantes disseram terem sido abordados de forma violenta pela polícia. Um deles relatou ter sido coagido por policiais a declarar para um delegado ser traficante. Houve relatos de agressões físicas (socos, pontapés), extorsão e violência psicológica – alguns foram conduzidos até matagais e ameaçados de morte. Pode-se notar, em suas falas, referências a policiais que faziam uso de SPAs ilícitas, não apenas maconha, mas também cocaína e crack, inclusive em serviço. A população está desacreditada na corporação policial, pontuou um usuário. Para ele, a polícia é uma instituição falida, haja vista sua inabilidade com o ser no trato humano, que precisaria ser extinta e substituída por uma instância mais humanizada e inteligente. A atual legislação de drogas8 não estipula quantidades precisas para definir se o produto é destinado à venda ou ao consumo, decisão que oscilará em relação “à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Cabe à autoridade policial fazer essa interpretação e instaurar o inquérito. Observa-se uma dinâmica seletiva: a mesma lei que “encarcera jovens, normalmente pobres, primários e que portam pouca quantidade de drogas”2 (p. 17), libera jovens de classe média. Há uma desigualdade de tratamento por critério de classe social que há muito perdura inequacionada23. Este fato foi salientado pelos participantes. Durante a intervenção os participantes puderam falar do sofrimento subjetivo decorrente desses episódios de violência e injustiça engendrados pelos operadores da lei. Cabe interrogar os efeitos do acolhimento dessas falas com vista a novos posicionamentos políticos.

Legislação e políticas de drogas: falência, legalização e politização Os participantes discutiram aspectos referentes à legalização do uso de drogas e às possibilidades de mudança da legislação vigente. Alguns ponderaram que o cigarro e o álcool são produtos bem mais prejudiciais que a maconha, e são liberados. Com a legalização, segundo eles, haveria uma maior segurança tanto para a compra – que poderia ser feita em farmácias, utilizando até mesmo cartão de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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crédito, não precisando correr os riscos de ir à “boca”, ser ameaçado de morte devido a dívidas, ser agredido por policiais quando flagrados portando substâncias ilícitas, etc. – quanto para o uso – pois a substância comercializada seria menos impura, isenta de substâncias nocivas à saúde, comumente acrescidas na fabricação clandestina, porquanto haveria um controle de qualidade. O enfraquecimento do narcotráfico e a redução do número de crimes a ele relacionados também foram apontados como prováveis repercussões da legalização. A militância e o engajamento político junto a organizações e movimentos sociais que discutem e lutam em favor da legalização das drogas, mediante iniciativas como a Marcha da Maconha, foram entendidos pelos participantes como os principais meios para sua conquista. No entanto, os usuários também salientaram a ampla oposição e resistência à legalização, seja das pessoas que se beneficiam do tráfico de drogas como campo clandestino de lucro, seja por parte de setores conservadores da sociedade. Não obstante, o exemplo do Uruguai, o primeiro país da América Latina a legalizar o uso da maconha, consistiu, segundo os usuários, em um alento de esperança de que o mesmo possa ocorrer no Brasil. O caso uruguaio é emblemático por desfazer a confusão entre a legalização e a defesa por um “cenário libertário radical, potencialmente inconsequente, em que ao indivíduo é dada uma autossuficiência abstrata”2 (p. 13). Embora a ingestão de substâncias psicoativas deva ser um marco de autonomia cidadã, medidas de controle são cruciais – elevação de preços, restrição de locais de venda, limitação de volume oferecido, controle de dosagem etc. Percebe-se, portanto, que o debate sobre a legalização de substâncias psicoativas não se reduz ao binômio libera/proíbe, mas deve contemplar toda uma gama de reflexões acerca das condições de comercialização, compra, uso e publicidade. Além disso, um dos participantes ressaltou a importância da conscientização da população sobre os benefícios da mudança da lei, tanto por meio de ações midiáticas quanto no um-a-um dos diálogos cotidianos. Outro constatou que, desse modo, torna-se relevante a busca por informações sobre a temática, a fim de que se consiga responder aos críticos com argumentos sólidos, bem como para saber, de fato, pelo que se está lutando. Outro participante ainda acrescentou como vetor de conscientização o próprio exemplo de vida, isto é, procurar ser um cidadão íntegro, respeitador da lei e cumpridor dos seus deveres civis e mostrar à sociedade que o uso de SPAs não o desqualifica. Foi possível começar a dimensionar a complexidade da ação política no campo do uso de substâncias ilícitas.

O grupo: avaliação, desafios e perspectivas A estratégia possibilitou a criação de um espaço no qual as pessoas encaminhadas tiveram a oportunidade de pensar em possíveis rumos a trilhar diante do contexto que circunscreve o consumo de drogas. Como lidar com essa realidade na qual SPAs ilícitas exercem uma função em suas vidas, proporcionando-lhes prazer, estimulação e relaxamento? Que fazer ante a lei que as proíbe, que dificilmente seria modificada em curto prazo, que incide quase exclusivamente sobre as classes populares e que, em vez de garantir direitos do cidadão, espanca, age violentamente? Estas questões destacaram-se durante o processo. Foi bastante referido o interesse em abandonar ou reduzir o consumo de SPAs, sendo importante para isso a redução ou a ruptura das relações de amizade com outros usuários – os “amigos das drogas”. Houve momentos de reflexão da relevância de se construir e preservar novos laços sociais, mediante os quais se possam ampliar as fontes de satisfação no mundo – no esporte, no lazer, nas relações afetivas, na família, no trabalho, etc. A presença do discurso da abstinência e a reprodução de preconceitos já foram constatadas por profissionais de saúde entre adolescentes pobres em conflito com a lei, aponta Malaguti Batista24. De igual modo, o relato dos integrantes do grupo esteve atravessado por tal discurso. Para melhor compreensão do fenômeno, há que se considerar a especificidade do contexto: cumprimento de transação penal. Todos ali estavam por determinação de Justiça, submetidos a uma pena.

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Além disso, pode-se observar que as propostas de abstinência ou redução do uso se contradiziam ante a defesa da legalização do uso de drogas, da modificação do olhar social endereçado ao usuário e as descrições de prazer e bem-estar associados ao consumo. Tal impasse encontrava alguma mediação pela perspectiva da redução de riscos e danos. Em um dos encontros os participantes puderam traçar projetos de vida e vislumbrar horizontes vindouros. O ingresso e a conclusão de um curso de ensino superior seguido da entrada no mercado de trabalho, assim como a constituição de uma família – cônjuge e filhos – também foram referidos pelos participantes como ideais. Nesse quadro, caberia à droga outro lugar, um lugar pensado, refletido, calculado e ao sujeito, a posição ativa de gerir o uso e seus impactos. Durante a avaliação do processo e o compartilhamento de impressões, no último encontro grupal, os participantes foram unânimes em demonstrar sua satisfação em participar da estratégia. Um usuário relatou ter ficado surpreso com a configuração e dinâmica das intervenções, pois esperava assistir a um ciclo de palestras sobre os efeitos danosos das drogas. Outro destacou o fato de o espaço possibilitar a fala sobre o tema sem preocupação com julgamentos morais, o que não se dá em outros lugares. A atividade foi coletivamente significada como possibilitadora de aprendizados recíprocos, pois a vivência e o conhecimento de cada um tiveram valor para que pudessem repensar suas escolhas. O encontro foi encerrado com a produção de um cartaz reunindo ideias e propostas que sintetizaram os saberes produzidos durante os encontros, dando-lhes materialidade e conferindo voz aos atores, que deixaram uma mensagem endereçada àqueles que circulariam pela instituição. Entre formas de superar os obstáculos atuais e de atingir o sonho de um futuro melhor, os participantes tentaram refletir sobre possibilidades de reinvenção de si e do mundo. Durante a entrevista individual de devolução, cada um pode refletir acerca do percurso desenvolvido na instituição e sobre os efeitos produzidos em si, em seu modo de pensar e em sua vida. Alguns se defrontaram com uma percepção mais ampla de suas dificuldades em reduzir o consumo de maconha e dois solicitaram encaminhamento para uma unidade que, naquele momento, desenvolvia ações do Programa de Controle do Tabagismo. Todos foram esclarecidos quanto à possibilidade de retornar, a qualquer momento, caso desejassem, para receber orientação ou dar início a um processo terapêutico na instituição.

Considerações finais Em linhas gerais, pode-se dizer que a experiência relatada aponta a relevância da criação de espaços de fala e fomento a reflexões críticas e emancipatórias acerca do uso de drogas no cenário contemporâneo, bem como de problematização dos riscos e danos associados ao consumo. A intervenção demarca a posição institucional de não recuar ante o sofrimento humano, especialmente quando este é amplificado por leis comprometidas com interesses socioeconômicos, não com o bemestar social. Em tempos em que se verifica uma ditadura econômica internacional, onde as estruturas de opressão manipulam estigmas associados ao uso de droga, expandindo suas estratégias de dominação e controle social, os agentes e instituições de saúde são provocados a ir além da preocupação com a assistência. Tempo de extrapolar o campo da técnica, de desvelar o cerne de ação clínica: a política. Nesta interface entre saúde e educação, diferentes autores9-17 apontam que intervenções educativas, que visam à reflexão coletiva acerca do uso de drogas e das múltiplas questões que o atravessam, constituem importantes dispositivos de atenção à saúde. Partindo da advertência de Ribeiro25 sobre o risco de a educação estar a serviço de uma lógica de adaptação e sujeição, a intervenção aqui descrita sugere o criterioso exame dos pressupostos e objetivos que têm orientado programas ou cursos educativos nesta área. A proposta pedagógica de Paulo Freire parece apontar uma alternativa para a construção de relações políticas libertadoras, capaz de subverter o cenário punitivo de cumprimento de pena. O relato de novas intervenções e a realização de novos estudos sobre o tema mostra-se relevante.

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Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências 1. Nery Filho A. Por que os humanos usam drogas? In: Nery Filho A, Valério ALR, organizadores. Módulo para capacitação dos profissionais do projeto Consultório de Rua. Salvador: CETAD; 2010. p. 11-6. 2. Fiore M. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estud. 2012; (92):9-21. 3. Nery Filho A, Torres IMAP, organizadores. Drogas: isso lhe interessa? Confira aqui. Salvador: CETAD; 2002. 4. Martins JS, MacRae E. Por um olhar sociocultural sobre a questão das drogas. In: Nery Filho A, Valério ALR, organizadores. Módulo para capacitação dos profissionais do projeto Consultório de Rua. Salvador: CETAD; 2010. p. 17-24. 5. Alves VS. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cad Saude Publica. 2009; 25(11):2309-19. 6. Lund K, Salles JM, diretores. Notícias de uma guerra particular. [Documentário]. Rio de Janeiro: Videofilmes [Internet]. som. color. 57 min. 1999 [acesso 2014 Jan 24]. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=EAMIhC0klRo 7. Trad SNS. A trajetória da prevenção às drogas no Brasil: do proibicionismo à redução de danos e seus reflexos nas políticas sociais [tese]. Tarragona (Itália): Departament d‘Antropologia, Filosofia i Treball Social, Universitat Rovira I Virgili; 2010. 8. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências [Internet]. 2006 [acesso 2014 Jan 23]. Disponível em: http://www.amperj. org.br/store/legislacao/leis/l11343_antidrogas.pdf 9. Soares CB, Campos CMS, Leite AS, Souza CLL. Juventude e consumo de drogas: oficinas de instrumentalização de trabalhadores de instituições sociais, na perspectiva da saúde coletiva. Interface (Botucatu). 2009; 13(28):189-99. 10. Soares CB, Campos CMS, Berto JS, Pereira EC. Avaliação de ações educativas sobre consumo de drogas e juventude: a práxis no trabalho e na vida. Trab Educ Saude. 2011; 9(1):43-62. 11. Camarotti AC, Kornblit AL, Di Leo PF. Prevención del consumo problemático de drogas en la escuela: estrategia de formación docente en Argentina utilizando TIC. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):695-703. 12. Souza KM, Monteiro S. A abordagem de redução de danos em espaços educativos não formais: um estudo qualitativo no estado do Rio de Janeiro, Brasil. Interface (Botucatu). 2011; 15(38):833-44. 13. Cassol PB, Terra MG, Mostardeiro SCTS, Gonçalves MO, Pinheiro UMS. Tratamento em um grupo operativo em saúde: percepção dos usuários de álcool e outras drogas. Rev Gaucha Enferm. 2012; 33(1):132-8. 14. Adade M, Monteiro, S. Educação sobre drogas: uma proposta orientada pela redução de danos. Educ Pesqui. 2014; 40(1):215-30.

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15. Bertoni LM, Adorni DS. A prevenção às drogas como garantia do direito à vida e à saúde: uma interface com a educação. Cad Cedes. 2010; 30(81):209-17. 16. Acselrad G. Criminalização: efeitos jurídicos, penais e sociais. In: Conselho Federal de Psicologia. Drogas, Direitos Humanos e laço social. Brasília: CFP; 2013. p. 119-31. 17. Acselrad G. Drogas, a educação para a autonomia como garantia de direitos. Rev EMERJ. 2013; 16(63):96-104. 18. Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD). Grupo de Atenção a pessoas em cumprimento de transação penal na modalidade Programa ou Curso educativo. [Projeto]. Salvador; 2013. 19. Freire P. Pedagogia do oprimido. 17a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987. 20. MacRae E. Antropologia: aspectos sociais, culturais e ritualísticos. In: Seibel SD, Toscano Júnior A, organizadores. Dependência de drogas. São Paulo: Atheneu; 2001. p. 25-34. 21. Melo JRF. Representações sociais de dependentes químicos acerca do crack, do usuário de drogas e do tratamento [dissertação]. João Pessoa (PB): Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba; 2013. 22. Espinheira G. Os tempos e as substâncias psicoativas das drogas. In: Almeida ARB, Nery Filho A, MacRae E, Tavares LA, Ferreira OS, organizadores. Drogas: tempos, lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: EDUFBA; 2004. p. 11-26. 23. Foucault M. Vigiar e punir. 20a ed. Petrópolis: Vozes; 1987. 24. Malaguti Batista V. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan; 2003. 25. Máquina de educar, máquina de prevenir: o modelo escolar ocidental e a emergência da prevenção às drogas na educação. Educ Soc. 2013; 34(123):441-55.

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Este trabalho relata a experiência de um grupo de atenção a pessoas encaminhadas pela justiça para cumprimento de medida educativa, em razão de conduta enquadrada no artigo 28 da Lei 11.343/2006 – porte ilegal de drogas para consumo próprio. Em seis encontros semanais, cinco participantes falaram do prazer e sofrimento associado ao uso de drogas, das dificuldades em suportar a abstinência, das possibilidades de minimização de riscos e danos, de seus projetos de vida e da legalização como estratégia para promoção da saúde e enfraquecimento do narcotráfico e da criminalidade. A despeito do caráter compulsório da medida, a intervenção fomentou reflexões críticas e emancipatórias sobre o uso de drogas na contemporaneidade. Destaca-se, neste cenário, a relevância do relato de projetos educativos que se sustentam na contramão de discursos de sujeição e punitivos.

Palavras-chave: Transtornos relacionados ao uso de drogas. Política de drogas. Medida educativa. Educational intervention due to illegal possession of drugs: an experience report This paper reports the experience of a group that treats people sent by the justice to be subject to educational intervention, because of misconduct typified in the Article 28 of the Law 11.343/2006 – illegally carrying drugs for personal consumption. Along six weekly meetings, five participants talked about the pleasure and suffering associated with drug use, the difficulties to endure the abstinence, the possibilities for minimizing risks and damages, their life projects, and the legalization as a strategy for promoting health and weakening drug traffic and criminality. Despite the compulsory nature of the intervention, it fostered critical and emancipatory reflections about the use of drugs in contemporaneity. It is highlighted in this scenario, the relevance of reports of educational projects that march in the opposite direction of discourses proposing subjection and punishment.

Keywords: Substance related disorders. Drug policy. Educational intervention. Medida educativa establecida por razones de posesión ilegal de drogas: un relato de experiencia Este trabajo relata la experiencia de un grupo de atención a personas encaminadas por la justicia para cumplir medidas educativas, en razón de conducta prevista en el artículo 28 de la Ley 11.343/2006 respecto a latenencia ilegal de drogas para consumo personal. En seis encuentros semanales, cinco participantes hablaron del placer y del sufrimiento asociados con el uso de drogas, las dificultades en soportar la abstinencia, las posibilidades de minimizar riesgos y daños, así como de sus proyectos de vida y de la legalización como una estrategia para promoción de la salud y el debilitamiento del narcotráfico y la criminalidad. A pesar del carácter obligatorio de la medida, la intervención promovió reflexiones críticas y emancipadoras sobre el uso de drogas en la contemporaneidad. Se destaca, en este escenario, la relevancia del relato de proyectos educativos contrarios a los imperativos de sujeción y castigo.

Palabras clave: Transtornos relacionados con substancias. Políticas de drogas. Medida educativa.

Recebido em 07/10/14. Aprovado em 31/01/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0692

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Trabalho de Campo Supervisionado II: uma experiência curricular de inserção na Atenção Primária à Saúde

Patty Fidelis de Almeida(a) Matheus Oliveira Bastos(b) Michele Agostinho Condé(c) Natália Janoni Macedo(d) Julia de Mattos Feteira(e) Felipe Pacelli Botelho(f) Rodolpho Luiz da Silva(g)

Introdução A Constituição Federal de 1988 define que cabe ao Sistema Único de Saúde (SUS) ordenar a formação da força de trabalho para o setor, o que ainda representa um dos maiores desafios para a universalidade e sustentabilidade do sistema público de saúde no país1. Aprovadas entre 2001 e 2002, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos de graduação em saúde reforçam que a formação de seus trabalhadores deve contemplar as necessidades do SUS, atuação em equipe e atenção integral2. Contudo, conforme interroga Almeida Filho3, após mais de dez anos de existência da Lei das DCN, as universidades brasileiras ainda constroem a formação com base em currículos fechados e disciplinares, pouco comprometidos com as políticas públicas de saúde, que incentivam a especialização precoce e o trabalho individual. Neste contexto, o currículo do curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), implementado a partir de 1994, tem como imagem-objetivo [...] a interdisciplinaridade, repensar permanentemente os conhecimentos na área médica, em função do desenvolvimento da ciência e tecnologia, e formar um médico humanista, com compromisso social e comportamento ético, além de um técnico com habilidades psicomotoras.4 (p.19)

Em todos os ciclos, busca-se privilegiar a inserção dos alunos na rede de serviços de saúde do SUS, valorizando a Atenção Primária à Saúde (APS) como cenário privilegiado de aprendizagem, considerando aspectos de uma formação usuário-centrada e apresentando outras possibilidades frente à especialização precoce. Em outra perspectiva, Scheffer5 aponta que adaptar os conteúdos da graduação à prática em APS e modificar a formação inicial dos egressos é uma das estratégias que apresenta resultados mais favoráveis entre as iniciativas para futura fixação em locais remotos, outro desafio permanente para o SUS. O currículo do curso de Medicina na instituição está estruturado em três programas: Programa Teórico Demonstrativo (PTD), Programa Prático-Conceitual (PPC) e Programa de Internato — e suas respectivas fases, cada uma com COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Departamento de Planejamento em Saúde, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal Fluminense (UFF). Rua Marquês do Paraná, 303, 3º andar, prédio anexo ao HUAP, Centro. Niterói, RJ, Brasil. 24030-210. patty.fidelis@pq.cnpq.br (b,c,d,e,f,g) Acadêmicos, Faculdade de Medicina, UFF. Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. bastos.o.matheus@ gmail.com; micheleconde@hotmail. com; nati_janoni@ hotmail.com; julinha.nit@hotmail. com; felipebotelho@ id.uff.br; rodolpho_luiz_silva@ hotmail.com

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duração de um ano. Paralelamente, ocorre o Programa de Iniciação Científica, integrado ao PPC, complementado por atividades optativas. Durante os quatro primeiros anos de curso, o PTD e o PPC ocorrem simultaneamente6. Na primeira fase, com duração de dois semestres letivos, o PTD aborda o ser humano nas suas características biofisiomorfológicas e psíquicas, enquanto o PPC discute os determinantes históricos, sociais, ambientais e epidemiológicos do processo saúde/doença. Na segunda fase, com mesma duração, o PTD aborda mecanismos de agressão e defesa biológicos, físicos, químicos e psíquicos, ao passo que o PPC, no qual se localiza o componente Trabalho de Campo Supervisionado II (TCSII), baseia-se nos processos de agressão e defesa na perspectiva do coletivo. Na terceira fase, o PTD aborda: a interpretação de sinais e sintomas, semiótica, exames complementares e desenvolvimento emocional; e o PPC, a capacidade de agir, de forma integral, para promover, proteger e recuperar a saúde. Na fase quatro, trabalha-se com: diagnóstico e tratamento das patologias mais frequentes em Pediatria, Adolescência, Tocoginecologia, Medicina Clínica, Cirúrgica e Psiquiátrica no PTD, e o exercício do diagnóstico, tratamento e aplicação de medidas de intervenção de caráter coletivo, nos níveis secundário e terciário, no PPC. Os dois últimos anos do curso são destinados ao Programa de Internato6. O componente curricular Trabalho de Campo Supervisionado II é desenvolvido na segunda fase e faz parte do Programa Prático-Conceitual. Em geral, são formados grupos de até oito integrantes, acompanhados por um preceptor/docente da UFF. Ao longo de dois períodos, busca-se compreender: as necessidades de saúde da população na perspectiva dos determinantes sociais, a constituição das Redes de Atenção à Saúde (RAS), as redes de apoio social, o papel das ações intersetoriais, da vigilância à saúde, a dinâmica do serviço no atendimento às demandas da população, as relações de poder e cooperação na equipe, e o papel do profissional de saúde no desenvolvimento das ações de promoção, prevenção e reabilitação da saúde. As atividades desenvolvidas são acompanhadas e ressignificadas cotidianamente ao final de cada vivência no campo, por meio de diálogos e debates entre discentes e preceptor/docente, e, em alguns momentos, com os profissionais dos serviços de saúde. Também são registrados relatos mensais e resenhas de referências bibliográficas que apoiam a prática. A avaliação processual é realizada por meio da produção de um portfólio reflexivo. Metodologia e práticas de TCSII alinham-se aos princípios que regem as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina instituídas pela Resolução nº 3/20147, que estabelece os princípios, fundamentos e finalidades da formação. Preconiza que a inserção do aluno nas redes de serviços do SUS deve ocorrer desde os períodos iniciais e ao longo do curso, com base no conceito ampliado de saúde7. Considerando as reflexões acima, o presente relato tem como objetivo sistematizar, descrever e analisar as contribuições da inserção sistemática na APS como dispositivo de mudança na formação médica, no contexto de Trabalho de Campo Supervisionado II, na perspectiva de alunos e preceptor, de forma a debater e interrogar as potencialidades da APS como cenário de formação em saúde.

Descrição da experiência e do cenário de prática Este trabalho apresenta o relato de experiência de um grupo de discentes e preceptor do curso de Medicina da UFF, no contexto do componente curricular Trabalho de Campo Supervisionado II. Durante os 3º e 4º períodos, em 2014, as atividades de TCS II foram desenvolvidas em uma Unidade do Programa Médico de Família (PMF) de Niterói. Ao longo dos semestres, foram acompanhadas todas as ações desenvolvidas na unidade e o funcionamento da rede de referência e dos equipamentos sociais do território. A Unidade Básica de Saúde (UBS) comportava quatro equipes de PMF, que se distinguem das equipes de Saúde da Família, sobretudo, pela composição e pelo quantitativo de população adscrita. Cada equipe do PMF era composta por: dois Agentes Comunitários de Saúde (ACS), responsáveis por cerca de duas mil pessoas distribuídas em setores, uma técnica de enfermagem e um médico. Na unidade lócus da experiência, havia duas enfermeiras para as quatro equipes, sendo esta outra 778

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diferença em relação à Estratégia Saúde da Família (ESF). As condições de vida do território são bastante heterogêneas – da “Zona Sul” ao “Sertãozinho” – como nomeiam os profissionais da equipe, sendo parte considerável do bairro desprovida de serviços públicos essenciais como saneamento básico e coleta regular de lixo, além do enfrentamento de questões de violência urbana. Da experiência do campo, acompanhada por relatos mensais das vivências produzidos individualmente e reflexões cotidianas coletivas por meio de roda de conversa após cada encontro no campo, emergiram cinco categorias de análise, sistematizadas a partir de um processo de brainstorm, e, também, com base na análise de conteúdo dos portfólios e referências teóricas e empíricas sobre o tema. As categorias apresentadas a seguir foram utilizadas para descrever, refletir e analisar as contribuições da inserção na APS em períodos iniciais do curso de Medicina, como um possível dispositivo de mudanças na formação em saúde, particularmente, na formação médica.

Reconstrução do conceito de complexidade em saúde e de hierarquia da rede Faz parte do imaginário social e profissional que os serviços de APS constituem um nível de baixa complexidade no sistema de saúde, que se reproduz na prática e formação médica. Essa concepção é reafirmada pela noção de que, na APS, se encontram problemas de saúde “mais simples”, os quais requerem tecnologias menos sofisticadas. Estudos realizados com profissionais da ESF apontam que a grande maioria refere não desfrutar do mesmo reconhecimento profissional que os especialistas8, situação também observada no campo. Os dois semestres de atuação na UBS nos permitiram reconstruir o conceito de complexidade, levando-nos à reflexão sobre diversos determinantes da saúde, para além do parâmetro tecnológico utilizado para categorizar os níveis hierárquicos do sistema. Em muitos casos observados durante consultas, visitas e grupos, as tecnologias duras se mostraram insuficientes ou, às vezes, inadequadas para responder às necessidades de saúde dos usuários e comunidade, ao passo que as leves e leve-duras foram mais apropriadas e sensíveis. Tais conceitos, conhecidos por meio dos textos de referência9, puderam ser “experienciados” no cotidiano, tornando-se portadores de sentido, ponto de partida para a aprendizagem significativa. Assim, a primeira inversão construída a partir da prática na APS foi a do tradicional vértice da pirâmide, modelo que, correntemente, nos remete à concepção de hierarquia. Como em outras experiências de inserção no SUS, segundo Leal et al.10, na prática, os estudantes passam a compreender como os serviços estão estruturados, bem como as condições para responder ou não às necessidades dos indivíduos e coletividades, e como tais constrangimentos limitam os resultados esperados pelos profissionais de saúde. A despeito da proposta de construção das RAS, na prática, percebemos que o fluxo dos usuários em busca do cuidado segue percursos formais e informais, desobedecendo às tentativas de constituição das redes, com porta de entrada preferencial pela APS. Contudo, a experiência ratificou que o processo de regulação assistencial não pode ser reduzido à marcação de procedimentos, sem processos de microrregulação do acesso, com priorização de casos ou acompanhamento dos tempos de espera. O aspecto mais dramático do acesso à retaguarda terapêutica se desvelou nas falas dos usuários em situações mais vulneráveis, como nos casos de suspeita de câncer. Nestas situações, sobretudo os profissionais de enfermagem, buscavam, por intermédio da equipe de supervisão ou diretamente no nível central, viabilizar o atendimento, o que nem sempre era possível. Outra solução era a indicação da busca direta pelos serviços de urgência, como forma de entrada nos serviços de maior densidade tecnológica. Nestes casos, como também demonstraram outros estudos11, a desarticulação com a rede de urgência/emergência deixava o usuário “à deriva”, literalmente perdido entre uma ilha de serviços de saúde, que pouco nos remetia às teorias sobre a RAS. A ausência de coordenação do cuidado pela APS, sobretudo nos casos mais graves, trouxe à cena outro aspecto dramático do sistema de saúde – os fluxos informais. Os profissionais médicos buscavam outros colegas que pudessem viabilizar a entrada do usuário no serviço de referência, ou, o próprio usuário – especialmente aqueles com forte rede social e familiar –, dramaticamente “corriam atrás” de atendimento. Inúmeros foram os casos, com e sem sucesso, do ponto de vista individual. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Sobretudo no que se refere à atenção hospitalar, nos mobilizou a constatação de que o Hospital Universitário, referência para o município e para a região de saúde, lócus ainda privilegiado de formação acadêmica, atuasse tão pouco integrado à rede SUS, do qual faz parte. Conforme apontam Barata et al.12: “O desenvolvimento da assistência realizada pelos HEs (hospitais de ensino), bem como de suas atividades didáticas e de pesquisa, por vezes estruturou-se de forma isolada dos demais serviços assistenciais, razão pela qual é muito importante discutir e aperfeiçoar sua integração com a rede SUS” (p. 7). A quase ausência de contrarreferência minimizava a capacidade de o PMF atuar como coordenador do cuidado, com sérias implicações para a qualidade da atenção, com duplicação de exames e planos terapêuticos muitas vezes conflitantes. Tal situação era evidenciada nas consultas e visitas domiciliares, com o usuário como “porta-voz” de suas prescrições, vítima de um cuidado fragmentado. A experiência em TCSII pareceu nos indicar que o sistema local de saúde se estrutura como “ilhas” – “nem pirâmide, nem círculo”13. Como lição aprendida, que dificilmente se repetirá nos demais ciclos da formação, destacou-se a importância do papel ativo do profissional de saúde, que, mesmo diante da fragmentação sistêmica, pode estabelecer práticas, como o registro nos prontuários e guias de referência, com alguma capacidade de minimizar a falta de integração do cuidado. O contato interprofissional também poderia colaborar para uma atenção mais coordenada e a conformação de redes que, de acordo com Franco14, acontecem onde há desejo ou vontade de cuidar, no encontro entre trabalhadores e usuários.

Organização do processo de trabalho na APS e a longitudinalidade do cuidado Gomes et al.15, com base em estudo qualitativo realizado em Unidades de Saúde da Família, identificaram três perfis do encontro médico-paciente: o encontro centrado no paciente, aquele sem entendimento e o realizado a curto prazo, destacando que a interação clínica é afetada por características pessoais do médico, o agir profissional e, também, por problemas na organização dos serviços15. Destacou-se, na prática da equipe no PMF, que o conhecimento diferenciado sobre os usuários, incorporando elementos de seu histórico de saúde, condições de vida, rede social e personalidade, que compõe a “clínica ampliada”16, representam aspectos fundamentais para a realização de diagnóstico e tratamento mais assertivos, caracterizando encontros “centrados no paciente”. Nesse sentido, mesmo as consultas médicas “a curto prazo” mais direcionadas para uma resolução prescritiva, eram precedidas por um considerável conhecimento sobre o usuário, construído pelo longo tempo de atuação dos médicos em uma mesma equipe – o que caracteriza um dos atributos de uma APS abrangente e integral – a longitudinalidade17. Outra característica do PMF em questão foi a baixa rotatividade de profissionais, o que facilitava e fortalecia o acompanhamento longitudinal, gerando a possibilidade da construção de vínculos duradouros. Conforme destacado por Campos et al.18, a construção do caso clínico efetivada em vários encontros, ao longo do tempo, contribui para o aumento da confiança entre profissionais e usuários, o que pôde ser observado no campo. As vivências levaram o grupo a refletir sobre como este tipo de atendimento não é encontrado em serviços de urgência/emergência e nem em Unidades de Pronto Atendimento. Questionou-se o modelo de medicina liberal, pautado na assistência individual e dissociada dos determinantes mais amplos da saúde, sendo inevitáveis comparações com o padrão de consulta geralmente ofertada pelo sistema privado de saúde, baseada no modelo queixa-conduta, marcado, muitas vezes, por um encontro “a curto prazo” ou “sem entendimento”. Por outro lado, a territorialização, que caracteriza a organização da atenção básica no país, em geral, não tem sido problematizada pelas equipes de saúde no que se refere ao estabelecimento do vínculo18, realidade observada no cotidiano do serviço. Nos casos em que não foram estabelecidos vínculos ou em que houve falta de empatia entre médico e usuário, não foram negociadas ou discutidas estratégias para flexibilizar a organização do processo de trabalho a fim de manter a vinculação do usuário à unidade, e não necessariamente à equipe de adscrição territorial. 780

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Em conformidade com outros estudos, também se observou que elementos relacionados à organização do processo de trabalho nem sempre favoreciam o vínculo. Profissionais da equipe atribuíam a busca por meio de demanda espontânea como uma incompreensão da comunidade sobre a forma de funcionamento do PMF, que seria um serviço para “promoção e prevenção”, e que os casos de urgência deveriam buscar o pronto-atendimento. Não foram observadas discussões em equipe sobre as estratégias de acolhimento, no sentido de torná-lo um dispositivo para melhoria das relações do serviço com os usuários e para garantia do acesso. Por outro lado, conforme destacam Tesser et al.19, a proposta de acolhimento a ser implementada deveria apresentar um conjunto de serviços, não restritos somente à consulta médica. A própria configuração do PMF em Niterói, na qual ainda não há um enfermeiro para cada equipe, na maioria dos casos, faz com que todas as modalidades de consulta clínica, programadas e espontâneas, fiquem sob responsabilidade do médico. Ainda assim, observou-se que as profissionais técnicas de enfermagem, de fato, exerciam uma escuta diferenciada, distante de um primeiro contato “burocrático”, sempre buscando resolver os problemas dos usuários, mas com um leque restrito de ações a serem ofertadas.

Inserção no território e o papel do Agente Comunitário de Saúde Assim como disposto na Política Nacional de Atenção Básica20, a prática ratificou que o ACS representava o elo mais forte da equipe com o território. Dentre outras responsabilidades, também orientavam quanto à utilização dos serviços disponíveis na RAS e equipamentos sociais da área. Antes da inserção no PMF, o grupo praticamente desconhecia as atribuições ou, mesmo, a existência do ACS nas equipes de saúde, bem como sua importância no contexto da ESF, sendo TCSII, provavelmente, o único componente curricular que permitirá o trabalho conjunto com este profissional. As razões para o desconhecimento, com base nas reflexões do grupo, se deviam a diversos fatores. O primeiro deles é que, no município de Niterói, a implantação do PMF não incluía, em seus primórdios, o ACS. Além disso, o pertencimento da maioria dos alunos de medicina a classes econômicas A e B, como ratificam outros estudos21, são fatores condicionantes do pouco conhecimento e utilização dos serviços públicos de saúde, pelo menos em seu componente assistencial ambulatorial. Na experiência do grupo, a “parceria” com o ACS destacou-se como o principal diferencial de TCSII em relação aos demais componentes do currículo. Nesse sentido, a diversificação dos cenários de aprendizagem representou estratégia exitosa, sobretudo para a aproximação dos estudantes com a vida cotidiana da população e a consciência crítica sobre os problemas que afetam sua saúde. Conforme apontam Leal et al.10, em análise de experiências como o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde e o Projeto de Vivências e Estágios na Realidade do SUS, a inserção dos discentes em espaços de reorientação das práticas em saúde possibilita conhecer diferentes cenários de atuação profissional, bem como especificidades e complementariedades entre as profissões na busca pela integralidade. A despeito da reconhecida importância das informações e impressões do ACS oportunizadas pela profunda inserção territorial, as mesmas não eram registradas de forma sistemática nos prontuários – prática que, na opinião do grupo, agregaria qualidade e ampliaria as possibilidades de abordagem de determinados casos, especialmente os mais complexos. Também foi alvo de reflexão o fato de que a tarefa de “entregar as referências”, ou seja, a marcação dos procedimentos especializados, a cargo do ACS, ocupasse tempo expressivo deste profissional. Embora esta tenha se constituído na forma predominante de informar datas/horários de consultas especializadas22, parece ser premente a discussão do tema no contexto do processo de trabalho da ESF, para que o ACS não seja identificado como o “entregador de referências” e faça desta sua principal função. A inserção territorial demonstrou, na prática, a importância das ações intersetoriais e como a capacidade de intervenção nos determinantes sociais da saúde era enfraquecida pela ausência de articulação setorial, seja no nível local ou na formulação macropolítica, como demonstram estudos de avaliação da ESF23. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Quem é o médico da APS? Para atuação no PMF, assim como na maioria das equipes de Saúde da Família no país, não é obrigatória residência em Medicina de Família e Comunidade (MFC). Nas quatro equipes, nenhum dos médicos havia cursado residência na área. No país, à Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), vinculada ao Ministério da Educação, cabe a regulação, supervisão e avaliação da residência médica no país, cujo princípio deveria ser atender às necessidades do SUS. Contudo, conforme destacam Carvalho e Souza24, em relação à CNRM há certa submissão às regras do mercado, que acaba se tornando o principal indutor das escolhas deste profissional na escolha da residência. Embora a ausência de formação em MFC minimize o leque de possibilidade de atuação na APS, por outro lado, na experiência do campo, observou-se que os médicos traziam, em geral, importantes contribuições de suas especialidades para a equipe, o que possibilitava a realização de interconsultas na lógica do apoio matricial, diminuindo a necessidade de encaminhamento para unidades especializadas, em alguns casos. Em relação às visitas domiciliares e demais estratégias de inserção territorial, percebemos que o profissional médico foi aquele que menos se envolveu nestas ações, com prática restrita às consultas individuais. Embora o longo tempo de inserção na equipe permitisse certa “competência cultural”, atributo da APS17, a presença no território ampliaria o leque de ferramentas à disposição da clínica, bem como o acesso de importante contingente da população em total situação de vulnerabilidade, sobretudo, idosos, com limitações psicomotoras. A experiência vivenciada apontou que a formação em MFC poderia agregar à formação médica, além do conhecimento clínico ampliado em relação aos problemas de saúde mais recorrentes, o olhar para o usuário em suas diversas inserções – comunitária, no mundo do trabalho, cultural, entre outras. Conforme destaca Anderson et al.25, a especialidade de MFC apresenta potencial transformador para a prática médica, para a formação e, também, para o desenvolvimento de pesquisas em bases mais humanas e comunitárias.

Outros espaços de aprendizagem: atuação em ações de promoção da saúde No decorrer de TCSII, o grupo realizou inúmeras ações de promoção da saúde, como: grupo de gestantes, idosos, atividades na sala de espera e na escola. Tais ações nos permitiram compreender outra dimensão do cuidado, subestimada na formação médica – a produção de autonomia e “empoderamento” do usuário para fazer escolhas sobre sua própria saúde. Este espaço promovido por meio de TCSII com inserção na APS representou aprendizado único para o grupo, pela possibilidade de desenvolver competências de comunicação, de linguagem, e, especialmente pelo estabelecimento de relações mais horizontais, sem o peso e poder representados pelo “jaleco branco”. Também se evidenciou o espaço das práticas promocionais como dispositivo de transformação social e deslocamento de um olhar prescritivo e julgador para uma escuta empática, mobilizadora de afetos, dimensão relegada no processo de formação dos profissionais da saúde. A participação em grupo de gestantes, atividades de sala de espera, atuação na escola possibilitou ao grupo aproximar-se de um conjunto de ferramentas “lúdicas”, pouco fomentadas na formação em saúde, na qual ainda predomina a orientação biologicista, voltada para as especialidades e valorização de avaliações cognitivas com base em acúmulo de informações. Segundo Silva et al.26, a implementação das DNC pressupõe incorporação da prática criativa ao ambiente de ensino-aprendizagem, de forma a despertar o potencial criativo, de autonomia e autogestão. As atividades lúdicas mobilizaram a capacidade de agir cooperativamente, com troca de experiências, de informações, busca por solução coletiva dos problemas, contrapondo-se ao ambiente extremamente competitivo do curso de Medicina. Assim como em estudo realizado por Silva et al.26 para analisar experiências de aprendizado com metodologias lúdicas, percebeu-se que foram colocadas, em prática, competências como: trabalho em equipe, criatividade e alternativas frente à resolução de problemas não previstos. Além disso, as falas e sentimentos mobilizados durante as rodas de conversa nos grupos de educação em saúde trouxeram reflexões e experiências jamais vivenciadas em outros espaços 782

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acadêmicos e que, sem dúvida, provocaram mudanças permanentes na interpretação da realidade e de questionamento do agir médico. Mais uma vez, destacou-se o aprendizado junto aos ACS, principais responsáveis pelo planejamento e execução de ações promocionais. Aliás, a promoção da saúde foi um eixo transversal durante as vivências. A experiência do TCSII indicou que pode ser desenvolvida nos diferentes cenários de prática nos quais estávamos inseridos, como: as pré-consultas, as visitas domiciliares e o acompanhamento de consultas médicas. Assim, desenvolvemos uma compreensão do conceito que transcende ações com grupos específicos, o que contribuiu para a percepção de que promoção se faz a cada encontro com o usuário.

Considerações finais A experiência vivenciada e relatada neste trabalho sinaliza ser a Atenção Primária à Saúde um potente campo de formação e transformação da prática médica, e que o dispositivo de TCSII mostrase em acordo com as propostas de diversificação dos cenários de ensino-aprendizagem presentes nas diretrizes curriculares dos cursos da área da saúde. As categorias que sistematizaram as vivências na APS apontam inflexões de diversas ordens no tradicional Ensino Médico, ainda com forte dissociação entre teoria e prática. Desmontar a pirâmide de complexidade e hierarquização da rede, conhecer os fluxos informais que operam em sua ausência, ou, mesmo, os fluxos virtuosos que se constroem na relação profissionais-usuários, usuários-usuários e profissionais-profissionais, movidos pelo desejo de cuidar14, certamente ganham sentidos e cores. O atributo da longitudinalidade, presente na literatura17 e políticas20, ganha nomes, sobrenomes e apelidos, produzindo uma clínica resolutiva e humanizada, sendo um diferencial importante na prática médica. Mesmo os efeitos da reconhecida falta de formação em MFC pareciam ser, em parte, minimizados pela longa permanência da equipe na mesma unidade e pelo apoio matricial interno e ofertado pelo nível central. Ainda assim, reconhece-se a necessidade de políticas e criação de cultura de valorização da residência em MFC, sobretudo, para os novos egressos. Um aspecto a ser ressaltado diz respeito à incorporação, no cenário de formação médica, de atores como o ACS. Como um dos princípios de TCSII é o acompanhamento das ações de toda a equipe, sem hierarquias, a visita domiciliar, protagonizada pelo ACS, assumia o mesmo status da consulta médica no alcance dos eixos e competências previstos para o componente curricular. Por meio das ações de promoção da saúde, novas competências foram desenvolvidas, abrindo espaço para: criatividade, formas de comunicação e linguagem compreensíveis, e capacidade de ação diante de situações inesperadas. Por fim, algumas considerações que extrapolam o âmbito de TCSII, mas que indagam o alcance da reforma curricular. Observamos que, de certo modo, a implementação do currículo do curso de Medicina reafirma o ideário de desvalorização da APS, visto que a inserção sistemática na APS é garantida apenas nos 3º e 4º períodos. A partir da terceira fase – na qual se inicia a abordagem de sinais e sintomas, semiótica e medidas para proteção, recuperação da saúde –, o cenário de práticas dissipa-se pela rede, com concentração em unidades hospitalares, sobretudo, no Hospital Universitário, no qual os discentes tendem a permanecer até o fim do internato, com apenas algumas exceções. A ruptura nos períodos subsequentes reforça o imaginário social e presente nas instituições formadoras, de que a APS seria lugar apenas de atividades preventivas e promocionais, na qual não se pratica a “clínica”; enquanto a medicina “de verdade”, de alta complexidade, é realizada no hospital, alimentando o ciclo de desvalorização do trabalho e da importância da atenção básica. Finalizando este relato, compartilhamos, com Gomes et al.27, algumas reflexões. A principal resposta às necessidades de reforma curricular levadas a cabo pelas instituições superiores de ensino concentrou-se em mudanças metodológicas do processo de ensino-aprendizagem, o que se mostrou insuficiente. Por outro lado, destacam que não seria possível atribuir, ao cenário da APS isoladamente, a responsabilidade de formar novos médicos, tampouco seria o caso de cair na falácia de trocar o hospital pela APS, como forma de enfrentamento dos diversos problemas na formação médica. Os autores apontam que a adoção de um novo método de ensino pode, de alguma forma, constituir novo problema, na medida em que mascara uma questão de base, qual seja, a necessidade de formação de médicos capazes de operar em outra lógica social. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Colaboradores Todos os autores relacionados trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências 1.Oliveira FP, Vanni T, Pinto HA, Santos JTR, Figueiredo AM, Araújo SQ, et al. Mais Médicos: um programa brasileiro em uma perspectiva internacional. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):623-34. 2. Almeida M, organizador. Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos universitários da área da saúde. Londrina: Rede Unida; 2003. 3. Almeida Filho NM. Contextos, impasses e desafios na formação de trabalhadores em Saúde Coletiva no Brasil. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1677-82. 4. Koifman L, Saippa-Oliveira G, organizadores. A disciplina Trabalho de Campo Supervisionado 1: da trajetória histórica à atualidade. In: Koifman L, Saippa-Oliveira G, organizadores. Cadernos do preceptor: história e trajetórias. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS, UERJ/ISC-UFF/Abrasco; 2014. p. 13-30. 5. Scheffer M. Programa Mais Médicos: em busca de respostas satisfatórias. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):637-40. 6. Universidade Federal Fluminense. Currículo do Curso de Medicina. Niterói: UFF; 2010 [acesso 2015 Jul 3]. Disponível em: http://www.dabt.com.br/uploads/1/5/4/3/15430658/ currculo_do_curso_de_medicina_da_universidade_federal_fluminense.pdf 7. Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2014. 8. Almeida PF, Fausto MCR, Giovanella L. Fortalecimento da Atenção Primária à Saúde: estratégia para potencializar a coordenação dos cuidados. Rev Panam Salud Publica. 2011; 29(2):84-95. 9. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2005. 10. Leal JAL, Melo CMM, Veloso RBP, Pereira RB, Juliano IA. Novos espaços de reorientação para formação em saúde: vivências de estudantes. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):361-71. 11. Almeida PF, Giovanella L, Mendonça MHM, Escorel S. Desafios à coordenação dos cuidados em saúde: estratégias de integração entre níveis assistenciais em grandes centros urbanos. Cad Saude Publica. 2010; 26(2):286-98. 12. Barata LRB, Mendes JDV, Bittar OJNV. Hospitais de Ensino e o Sistema Único de Saúde. RAS. 2010; 12(46):7-14. 13. Cecílio LCO. Modelos tecno-assistenciais em saúde: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada. Cad Saude Publica. 1997; 13(3):469-78. 14. Franco TB. Redes de cuidado: conexão e fluxo para o bom encontro com a saúde. In: Almeida PF, Santos AM, Souza MKB, organizadores. Atenção Primária à Saúde na coordenação do cuidado em Regiões de Saúde. Salvador: EDUFBA; 2015. p. 89-113. 15. Gomes AMA, Caprara A, Landim LOP, Vasconcelos MGF. Relação médico-paciente: entre o desejável e o possível na Atenção Primária à Saúde. Physis. 2012; 22(3):1101-19. 16. Hafner MLMB, Moraes MAA, Marvulo MML, Braccialli LAD, Carvalho MHR, Gomes R. A formação médica e a clínica ampliada: resultados de uma experiência brasileira. Cienc Saude Colet. 2010; 15 Supl 1:1715-24.

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17. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília (DF): Unesco Brasil, Ministério da Saúde; 2002. 18. Campos GWS, Gutiérrez AC, Guerrero AVP, Cunha GT. Reflexões sobre a atenção básica e a estratégia de saúde da família. Manual de práticas de atenção básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Hucitec; 2008. 19. Tesser CD, Neto PP, Campos GWS. Acolhimento e (des)medicalização social: um desafio para as equipes de saúde da família. Cienc Saude Colet. 2010; 15(3):3615-24. 20. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2011. 21. Gurgel LGF, Guimarães RP, Beatrice LCS, Silva CHV. Perfil dos discentes ingressos do Centro de Ciências da Saúde UFPE. Rev Bras Educ Med. 2012; 36(2):180-7. 22. Fausto MCR, Giovanella L, Mendonça MHM, Seild H, Gagno J. A posição da Estratégia Saúde da Família na rede de atenção à saúde na perspectiva das equipes e usuários participantes do PMAQ-AB. Saude Debate. 2014; 38:13-33. 23. Giovanella L, Mendonça MHM, Almeida PF, Escorel S, Senna MCM, Fausto MCA, et al. Family Health: limits and possibilities for an integral primary health care in Brazil. Cienc Saude Colet. 2009; 14(3):783-94. 24. Carvalho MS, Souza MF. Como o Brasil tem enfrentado o tema provimento de médicos? Interface (Botucatu). 2013; 17(47):913-26. 25. Anderson MIP, Demarzo MMP, Rodrigues RD. A Medicina de Família e Comunidade, a Atenção Primária à Saúde e o ensino de graduação: recomendações e potencialidades. Rev Bras Med Fam Com. 2007; 3(11):157-72. 26. Silva LVS, Tanaka PSL, Pires MRGM. BANFISA e (IN)DICA-SUS na graduação em saúde: o lúdico e a construção de aprendizados. Rev Bras Enferm. 2015; 68(1):124-30. 27. Gomes AP, Costa JRB, Junqueira TS, Arcuri MB, Siqueria-Batista R. Atenção Primária à Saúde e formação médica: entre episteme e práxis. Rev Bras Educ Med. 2012; 36(4):541-9.

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O componente curricular Trabalho de Campo Supervisionado II (TCS II), a partir da diversificação de cenários de aprendizagem, propõe a inserção na Atenção Primária à Saúde (APS) desde os períodos iniciais do curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Este trabalho apresenta a experiência de discentes e preceptor de TCS II, em uma Unidade Básica de Saúde, nos 3º e 4º períodos. Da experiência do campo, acompanhada por meio de relatos escritos e reflexões, emergiram categorias utilizadas para descrever e analisar as contribuições da inserção sistemática na APS como dispositivo de mudança na formação médica. Conclui-se que a APS como cenário de aprendizagem é um espaço capaz de oferecer novas perspectivas de formação em saúde, com base nas necessidades de saúde da população, devendo permanecer como um espaço de prática nos períodos subsequentes do curso, o que, efetivamente, ainda não acontece.

Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde. Educação Médica. Currículo. Supervised Field Work II: a curricular experience of insertion in Primary Health Care Through the diversification of learning scenarios, the curriculum component Supervised Field Work II (SFW II) proposes to insert Primary Health Care from the early semesters of the Medical training in the Fluminense Federal University em Niterói, Rio de Janeiro, Brazil. This paper presents the experience of SFW II students and a preceptor in a Primary Care Unit (PHC) during the 3rd and 4th semesters of the medical degree. From the experience gained during the practice, and the follow-up done by written reports and reflections, several categories were used to describe and analyze the contributions of the systematic insertion in the PHC as a tool for change in medical education. It was concluded that the PHC as a learning scenario represents an environment that offers students a new perspective of health training, based on the population’s health needs, and that it must remain as a practice scenario in subsequent semesters of the training, which is not yet the case.

Keywords: Primary Health Care. Medical Education. Curriculum. Trabajo de Campo Supervisado II: una experiencia curricular de inserción en la Atención Primaria para la Salud El componente curricular Trabajo de Campo Supervisado II (TCS II), con base en la diversificación de escenarios de aprendizaje, propone la inserción en la Atención Primaria para la Salud (APS) desde el inicio del curso de Medicina de la Universidad Federal Fluminense, en Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Este trabajo presenta la experiencia de los estudiantes y el preceptor de TCS II, en una Unidad Básica de Salud, durante el segundo año del curso. A partir de la experiencia, acompañada por relatos escritos y reflexiones, emergieron categorías utilizadas para describir y analizar las contribuciones de la inclusión sistemática de la APS como dispositivo de cambio en la formación médica. La APS como escenario de aprendizaje es capaz de ofrecer nuevas perspectivas de formación en salud, con bases en las necesidades de salud de la población.Concluimos que la misma debería permanecer como un espacio de práctica a lo largo del curso, lo que, efectivamente, aún no ocurre.

Palabras clave: Atención Primaria para la Salud. Educación Médica. Currículo.

Recebido em 28/09/15. Aprovado em 30/11/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0720

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Educação interprofissional e o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde/Rede Cegonha: potencializando mudanças na formação acadêmica Franklin Delano Soares Forte(a) Hannah Gil de Farias Morais(b) Shirley Arruda Guimarães Rodrigues(c) Joyce da Silva Santos(d) Priscila Farias de Albuquerque Oliveira(e) Maria do Socorro Trindade Morais(f) Talitha Emanuelle Barbosa Galdino de Lira(g) Maria de Fátima Moraes Carvalho(h)

Introdução Nos últimos anos, observou-se que as práticas interprofissionais despertaram bastante interesse, tanto no governo como nas instituições de Ensino Superior formadoras dos profissionais de saúde. Algumas pesquisas sugerem que a colaboração interprofissional, tanto na estratégia usuário-centrada como no aprendizado baseado em equipe, favorece, sinergicamente, práticas mais significativas para a produção do cuidado em saúde¹,². Sabe-se da importância da colaboração de diversas áreas para o cuidado em saúde. A educação interprofissional mostrou-se uma estratégia importante para a promoção desse objetivo³. A perspectiva compreendida de educação interprofissional se dá “quando estudantes ou profissionais de dois ou mais cursos ou núcleos profissionais aprendem sobre os outros, com os outros e entre si”4 (p. 7). Esse movimento de aprendizado possibilita uma colaboração eficaz e melhora os resultados na saúde4. Assim, neste texto, a interprofissionalidade foi usada² com foco: nas relações interprofissionais, no Programa de Educação pelo Trabalho da Rede de Atenção à Saúde Materno-Infantil, a Rede Cegonha. As complexidades do mundo e da cultura exigem análises mais integradas. Qualquer acontecimento humano apresenta diversas dimensões, uma vez que a realidade é multifacetada. É neste contexto que se coloca a interprofissionalidade, que, ao invés de se apresentar como alternativa para a substituição de um jeito de produzir e transmitir conhecimento, se propõe a ampliar as visões de mundo, de nós mesmos e da realidade, com o propósito de superar a visão disciplinar5. Desta forma, é necessário compreender que a saúde e a doença formam um contínuo, em que se relacionam: aspectos econômicos e socioculturais, a experiência pessoal e estilos de vida do ser humano6. Portanto, uma vez que um profissional, isoladamente, não consegue dar conta de todas as dimensões do cuidado, são necessárias intervenções cada vez mais complexas no contexto do trabalho em saúde, fazendo-se necessário o reconhecimento da multidimensionalidade do ser humano. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Departamento de Clínica e Odontologia Social, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Campus Universitário I. João Pessoa, PB, Brasil. 58051-900. fdsforte@ terra.com.br (b) Discente, Graduação em Odontologia, UFPB. João Pessoa, PB, Brasil. hannah_gil@hotmail.com (c) Discente, Graduação em Enfermagem, UFPB. João Pessoa, PB, Brasil. shirleybelmonte@ hotmail.com (d) Discente, Graduação em Farmácia, UFPB. João Pessoa, PB, Brasil. joyce. santtos@hotmail.com (e) Hospital Universitário Lauro Wanderley. João Pessoa, PB, Brasil. priscilafarias_@ hotmail.com (f) Departamento de Promoção da Saúde, Centro de Ciências Médicas, UFPB. João Pessoa, PB, Brasil. socorrotmorais@ hotmail.com (g) Gerência Executiva de Vigilância em Saúde, Secretaria Estadual de Saúde da Paraíba. João Pessoa, PB, Brasil. talitha. lira@hotmail.com (h) Secretaria Estadual de Saúde da Paraíba. João Pessoa, PB, Brasil. mariadefatima.moraes@ gmail.com

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Em 2008, o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da Educação (MEC) lançaram edital convocando as instituições formadoras e as instituições prestadoras de serviços para construírem um projeto que envolvesse professores, preceptores/trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) e estudantes de cursos da área da saúde. Esse projeto denominou-se Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde). Nos anos seguintes, foram lançados outros editais com temáticas específicas, como o da Vigilância em Saúde e a Saúde Mental. Em 2011, novo edital foi lançado com a proposta de integração do Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (PRO-Saúde), o PET-Saúde e o PRO PET saúde. Já em 2013, foi lançado o edital para os projetos PETSaúde Redes de Atenção à Saúde, do qual este artigo se origina7,8. A articulação entre ensino-serviço-comunidade proposta pelo PET-Saúde Redes de Atenção à Saúde proporciona oportunidades à aprendizagem significativa por meio do sistema tutorial, e fomenta algumas características de natureza coletiva, norteadas pela educação interprofissional. Neste cenário, além dos estudantes da área da saúde, estão os trabalhadores do SUS como preceptores, e os professores como tutores. Os objetivos do grupo tutorial são: o estudo, a reflexão e a crítica sobre uma das redes de atenção à saúde prioritárias para o MS9-11. Dentro do programa inserido na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em 2013, está o PETRedes Saúde Rede Cegonha (PET-RC). A Rede Cegonha é uma estratégia do MS operacionalizada pelo SUS, fundamentada nos princípios da humanização e da assistência, que assegura, às mulheres, o direito ao planejamento reprodutivo, à atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério; e, às crianças, o direito ao nascimento seguro, ao crescimento e ao desenvolvimento saudável. Tem como objetivos: a implementação de um novo modelo de atenção ao parto, ao nascimento e à saúde da criança; uma rede de atenção que garanta acesso, acolhimento e resolutividade; e a redução das mortalidades materna e neonatal12-14. Este trabalho tem por objetivo relatar as vivências e experiências no PET-RC, ancoradas na formação interprofissional e na prática colaborativa entre estudantes, preceptores e tutores, na promoção do cuidado integral materno-infantil, bem como a contribuição dessas vivências no processo de formação em saúde.

Relato de experiência Organização das atividades As atividades efetuadas no PET-RC são desenvolvidas em vários cenários de aprendizagem, visando contemplar os diversos pontos da Rede Cegonha do Estado da Paraíba e dos dois municípios envolvidos na proposta. Assim, são cenários localizados na sede da Secretaria Estadual de Saúde da Paraíba (SES-PB); na Gerência-Executiva da Atenção Básica – Saúde da Mulher; na Maternidade Frei Damião; no Hospital Universitário Lauro Wanderley; no Hospital Edson Ramalho; e no Hospital Maternidade de Cabedelo (PB). A seleção desses cenários foi intencional e de comum acordo com a gestão da Rede Cegonha na Paraíba. A organização operacional do grupo tutorial se deu conforme o edital, por meio da formação de seis subgrupos, contendo, cada um, dois estudantes e um preceptor, sob a supervisão de um tutor. Os estudantes envolvidos fazem os seguintes cursos: Enfermagem, Farmácia, Fonoaudiologia, Medicina, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Terapia Ocupacional e Serviço Social. A seleção desses estudantes foi pública, com duas etapas consecutivas e complementares, ofertando-se vagas para todos os cursos da área da saúde do Campus I da UFPB. O grupo de preceptores abrange trabalhadores do SUS de Enfermagem e Serviço Social. O trabalho teve início em agosto de 2013 e, após seis meses, optou-se pelo rodízio semestral entre os estudantes, nos diversos cenários, para oportunizar: vivências diferenciadas, melhor compreensão dos diversos pontos da Rede pelos atores envolvidos nesse processo, e fortalecimento das ações e atividades do projeto. Para Colet15, todo projeto compreende uma dimensão cognitiva e uma dimensão pragmática. As discussões das reuniões foram no sentido de apropriação da Rede Cegonha no Estado da Paraíba; 788

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Forte FDS, Morais HGF, Rodrigues SAG, Santos JS, Oliveira PFA, Morais MST, et al.

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houve leituras de documentos oficiais da Rede Cegonha, de forma a aproximar os sujeitos envolvidos da rede de atenção à saúde, foco do grupo tutorial. As leituras de artigos e material teórico sobre a Rede Cegonha, sobre saúde da mulher e da criança e sobre as políticas de saúde vigentes dentro desse universo subsidiaram reflexões e discussões, auxiliando a leitura da Rede nos cenários de aprendizagem envolvidos. Ao mesmo tempo, estratégias foram desenvolvidas para que o grupo se fortalecesse, compreendendo seu objetivo, e para que os membros se conhecessem. O percurso dos estudantes no sistema de saúde da Rede Cegonha deu-se no sentido de oportunizar experiências interprofissionais, ajudando-os a desenvolverem competências e habilidades para a prática colaborativa e produção do cuidado em saúde mais efetivo4,16. Ao mesmo tempo, garantiu, ao trabalhador do SUS, o exercício de preceptoria. Dessa forma, privilegiou-se um movimento, que, conforme destacaram Soubhi et al.17, compreendeu a aprendizagem e a prática interprofissional como resultantes da capacidade dos profissionais de estabelecerem um equilibrio dinâmico entre a organização do que eles sabem e o que fazem. No caso do PET-RC, houve outros atores, além dos profissionais: os estudantes e o tutor. Assim, foi preciso compreender e construir pontes para: a colaboração, a identificação dos temas mobilizadores, uma reflexão crítica sobre como resolver os conflitos, planejar e executar coletivamente estratégias de cuidado em saúde. Esse movimento de aprender com as práticas colaborativas em uma perspectiva usuário-centrada envolve diversas oportunidades de aprendizado: trabalho em equipe, gerenciamento de conflitos, liderença, crítica sobre o processo de trabalho, corresponsabilização e autocrítica. Competências observadas nas diretrizes curriculares dos cursos da saúde. O objetivo não foi o desenvolvimento de competências específicas de um núcleo profissional, mas sim, a promoção da saúde na perspectiva das gestantes. Nessa perspectiva, o desafio posto não foi a reunião de estudantes e preceptores de núcleos profissionais diferentes da área da saúde. Foi, por meio de vários dispositivos cognitivos (interação de saberes, socialização), pragmáticos (organização do processo de trabalho) e afetivos (subjetividade)², construir práticas colaborativas em saúde, contribuindo, dessa forma, com a construção da Rede Cegonha nos cenários envolvidos, com base na integralidade e na humanização do cuidado. Assim, foi importante o respeito à autonomia dos sujeitos envolvidos nesse processo e na proposta de múltiplos olhares dialógicos de diferentes núcleos profissionais sobre os temas mobilizadores. Do ponto de vista da governança, o PET-RC é um projeto reconhecido pela Universidade Federal da Paraíba em suas instâncias legais, tais como: a Pró-Reitoria de Graduação, a Pró-Reitoria de Extensão, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação; e pelos diretores de centros de ensino da Saúde, da Medicina e das Ciências Humanas. Além disso, também foi aprovado pela Comissão Intergestora Bipartite e pelos Conselhos Municipais de Saúde de João Pessoa (PB) e Cabedelo (PB). Isso possibilitou dispositivos e arranjos institucionais para a execução de ações interprofissionais e práticas colaborativas nos cenários do PET-RC, bem como autonomia para o planejamento dessas ações e para o entendimento, por parte da gestão acadêmica e dos serviços de saúde, do envolvimento de diversos cenários na proposta do grupo tutorial. Colet15 destacou a necessidade de um enquadramento institucional dos projetos interprofissionais, o que ofereceria condições adequadas para sua execução, sendo este um dos indicadores de avaliação. Desde sua criação, a UFPB desenvolve projetos de extensão e pesquisa, sendo uma importante instituição de formação e pesquisa no Estado da Paraíba. Participou de todos os projetos de reorientação da formação e, ao longo dos anos, desde a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde, do MS, em 2003, vem construindo uma relação dialógica com os municipios onde está inserida e, também, com o governo do Estado da Paraíba. Os cursos da saúde passaram por reformas em suas propostas pedagógicas, aproximando-se, cada vez mais, dos serviços de saúde. Por outro lado, a rede de atenção à saúde vem se organizando para receber os estudantes, de modo a fortalecer a formação, com uma proposta de Rede Escola, fortalecendo, também, a integralidade do cuidado em saúde. Assim, foram selecionados pontos estratégicos da Rede Cegonha, tanto da atenção como da gestão, no Estado da Paraíba, para favorecer a governabilidade do projeto, no que diz respeito à educação interprofissional e à atenção à saúde das mulheres. 789


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Reconhece-se que a Rede Cegonha, no Estado da Paraíba, está em construção. A rede de cuidados da saúde da mulher e da criança estava com dificuldades de gerenciar os serviços. Assim, como o gestor e os trabalhadores do SUS envolvidos na Rede, o grupo PET-Rede Cegonha foi desafiado a refletir sobre a Rede em João Pessoa (PB) e Cabedelo (PB). O estímulo a práticas interprofissionais é uma proposta de aprendizado para o enfrentamento de um sistema de saúde fragmentado. Pois, estando coeso e em diálogo, em um movimento de construção coletiva, o grupo tutorial pode compreender sobre a potencialidade do trabalho em equipe para a construção do projeto terapêutico singular de cada sujeito (gestante, mãe e criança), ofertando serviço de melhor qualidade. O PET-RC nesse cenário é privilegiado, pois a própria formação do grupo favorece ao aprendizado colaborativo. Assim, o setor educação (aquele que oferta a formação) e o prestador de serviços de saúde, ao dialogarem, estão oportunizando, aos atores envolvidos, um espaço de troca, reflexão, crítica, construção e aprendizado. As discussões, planejamento, execução das atividades e a avaliação permitiram a educação interprofissional e a prática colaborativa dos sujeitos envolvidos.

A formação em saúde e a interprofissionalidade A abordagem pedagógica adotada no grupo tutorial foi a metodologia ativa, com ênfase na problematização do cotidiano dos serviços de saúde da Rede Cegonha. Batista16 destacou a importância da aprendizagem de jovens e adultos, a partir da: aprendizagem significativa, aprendizagem baseada nas interações e a aprendizagem baseada na prática como pressuposto da educação interprofissional. No caso do PET-RC, esse processo visa oportunizar, aos estudantes, preceptores e tutor, o estímulo ao desenvolvimento de novas práticas do trabalho em saúde e do aprender em saúde, com proposta pedagógica embasada nos princípios da educação interprofissional. Assim, para a formação dos subgrupos, privilegiaram-se estudantes de diferentes cursos. As ações em campo tinham o objetivo de contribuir para processos de ensino/aprendizagem alicerçados na observação, na reflexão e crítica na identificação de problemas do cotidiano e na perspectiva de construção coletiva para o enfrentamento das questões levantadas. O planejamento das atividades ocorreu de forma coletiva e articulada com todos os integrantes do grupo por meio de reuniões semanais, entendidas como espaço de partilha, troca e escuta. Para isso, no início das atividades, estabeleceram-se prioridades com base nas necessidades identificadas pelos estudantes e preceptores nos campos de atuação. O mecanismo utilizado nas reuniões foram o encontro e o diálogo. Valores permearam todo o trabalho, sejam nas reuniões ou no trabalho nos cenários: éticos, respeito mútuo, solidariedade, corresponsabilização, direito e equidade. No documento da OMS18 “Framework for action on interprofissional education e collaborative practice” é destacado que a educação e a prática da colaboração interprofissional são uma estratégia inovadora de formação em saúde, que, se usada, desempenha papel importante para melhorias na formação. Assim sendo, o conhecimento gerado foi numa perspectiva problematizadora, buscando inserir o estudante nessa realidade, bem como para a compreensão do processo de trabalho dos preceptores e demais trabalhadores do SUS, fazendo uma reflexão entre a teoria e a prática. Os atores envolvidos nesse processo estão inseridos como protagonistas do processo ensino/ aprendizagem, e as discussões geradoras de produtos contribuem para a construção da Rede Cegonha e fortalecimento do SUS, na perspectiva da integralidade do cuidado e da educação interprofissional. Assim, o formato do grupo tutorial é plural no sentido da origem de seus membros e singular no sentido da construção de sua identidade e processo de trabalho. O grupo tutorial do PET-RC permitiu que não só estudantes de diferentes cursos interagissem, mas, também, profissionais de diferentes núcleos profissionais e de pontos distintos da Rede Cegonha conversassem. Assim, vislumbraram-se caminhos não só para uma formação contextualizada, mas, também, para transformação e qualificação das práticas de saúde e para a organização das ações e dos serviços. 790

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A educação interprofissional e a prática colaborativa no grupo tutorial e nas ações no território proporcionaram aproximação com a realidade, e também fizeram com que muitos dispositivos usados estimulassem o trabalho em equipe de forma colaborativa, nos diversos cenários envolvidos. Pois, compreende-se que a atuação conjunta não significa a prática colaborativa.

PET-Rede Cegonha no território Nos cenários de aprendizagem, o grupo PET-RC fez um movimento de propor novas ações ou uma reorganização do processo de trabalho dos profissionais de saúde. O trabalho em equipe será bemsucedido se houver interação entre os sujeitos envolvidos no processo, de modo que competências, habilidades e conhecimentos diferentes atuem de forma dialogada e partilhada, na perspectiva de práticas colaborativas. A experiência demonstrou que a educação interprofissional proporcionou a promoção da saúde das gestantes nas maternidades envolvidas, no que diz respeito à discussão sobre direito, saúde e cidadania, segurança do paciente, e ao trabalho mais integrado nas equipes envolvidas, estendendo algumas ações para além do grupo PET-RC. Nesse sentido, os profissionais de saúde envolvidos sentiram necessidade de revisitar suas práticas e saberes, reconhecendo as ações a serem desenvolvidas e aproximando-se dos conceitos estudados. Essas ações ampliaram o trabalho das equipes no sentido de promover a educação em saúde com as mulheres e seus acompanhantes, bem como a organização do trabalho em equipe e as ações interprofissionais colaborativas, visando à integralidade e à resolutividade das ações, e à tomada das decisões. Embora se tenha avançado muito, ainda há muito a ser feito. Nas maternidades, foram desenvolvidas ações na recepção por meio: do acolhimento com classificação de risco, pré-parto, sala de parto e enfermarias. As ações permearam, sobretudo, a educação em saúde, com ênfase na prevenção e na promoção, por intermédio do contato direto com as gestantes, as puérperas e os recém-nascidos. Um fator facilitador no grupo PET-RC foi a partilha de objetivo comum aos atores envolvidos, e todos estavam cientes de seus papéis no grupo². Entre as estratégias utilizadas, podem-se destacar as rodas de conversa realizadas nas enfermarias e o grupo de gestantes, realizados mensalmente, nos quais foram abordados temas diferentes, sempre valorizando o saber da gestante, da puérpera e dos acompanhantes, trazendo reflexão e diálogo entre os atores envolvidos. Essas conversas permitiram, à equipe de trabalhadores do SUS, aos preceptores e aos estudantes do PET envolvidos, o conhecimento do cotidiano e dos hábitos das famílias, permitindo-lhes atuações diretas nos contextos familiares. O grupo de gestantes de uma das maternidades é pautado nas práticas educativas sob a perspectiva da educação popular e tem como público-alvo as gestantes que realizam pré-natal de alto risco. Os encontros ocorrem uma vez ao mês, e os assuntos da roda de conversa são oriundos da comunidade de gestantes e acompanhantes. Por ser uma roda de conversa, o assunto central é debatido, o que torna possível o diálogo sobre outros temas relevantes e de interesse do público-alvo. Isto ocorre em função da relação que vai se estabelecendo no grupo, priorizando a humanização, o acolhimento, a escuta, e oportunizando o diálogo entre a comunidade e a equipe de trabalho, com vistas à autonomia dos sujeitos envolvidos. Enfim, as rodas permitiram que dúvidas, mitos, impressões, percepções e conceitos fossem expostos e discutidos, de maneira simples, utilizando-se uma linguagem acessível. Outra questão muito importante nas rodas de conversa do grupo de gestantes foi a valorização da experiência própria em relação ao assunto tratado, o qual, geralmente, teria sido vivenciado em gestações anteriores e passava a ser compartilhado não só com as gestantes experientes, mas, também, com as que estavam na primeira gestação. Uma estratégia adotada nesta experiência foi o aprendizado por meio de ações educativas em saúde, entendendo-as não como meros repasses de informação, mas como práxis que buscam gerar vínculos, significados e aprendizados. Além disso, estar na posição de facilitar a aprendizagem já é, em si, uma aprendizagem, na qual o próprio indivíduo – que se coloca ou é colocado como educador – também vive e se transforma em educando19. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O uso de práticas educativas visa fortalecer o conhecimento do usuário, percebendo a saúde não só como resultado de práticas individuais, mas, também, como reflexo das condições de vida em geral20. Sendo assim, a educação em saúde pode ser uma ferramenta de atuação em saúde por possibilitar a troca entre o conhecimento técnico e o popular, permitindo o desenvolvimento de ações de prevenção e promoção de saúde. Nesse contexto de práticas educativas, temos a influência da Educação Popular. A realização de ações na perspectiva da Educação Popular possibilita a participação ativa dos envolvidos, valorizando o diálogo e o desenvolvimento da autonomia. A Educação Popular em Saúde realiza ações que envolvem as dimensões do diálogo, do respeito e da valorização do saber popular, sendo considerada como um instrumento de construção para uma saúde mais integral e adequada à vida da população21. Partindo da pedagogia dialógica de Paulo Freire22, o trabalho em grupo desperta, nas pessoas, a sua autonomia e favorece o reconhecimento de sujeitos portadores de saberes sobre o processo saúdedoença-cuidado, e de condições concretas de vida. A educação em saúde na perspectiva da Educação Popular se configura como uma importante ferramenta para a promoção da saúde, tanto no âmbito individual quanto no familiar e comunitário, na prevenção dos principais agravos à saúde. Ela proporciona a interação entre a teoria e a prática, assim como entre o saber científico e o popular, permitindo uma aprendizagem interativa e dinâmica. Além de maior interação entre os participantes e maior compreensão, bem como novos aprendizados e afetos, possibilitando mais engajamento, responsabilização e motivação23-26. O PET-RC proporcionou uma maior integração entre o serviço, o ensino e a comunidade, possibilitando, assim, a atuação com ênfase nas particularidades e necessidades do público-alvo. Na maternidade, observou-se a potencialidade do trabalho em equipe, desde a identificação das demandas ao planejamento compartilhado das atividades a serem desenvolvidas, de forma que houvesse a distribuição de responsabilidades entre os trabalhadores do SUS, aqueles trabalhadores preceptores do PET-RC e os estudantes bolsistas. Nesse movimento de pactuação coletiva, o diálogo foi sempre necessário para exposição de ideias, possibilidades, limites e dificuldades a serem enfrentadas. À medida que as ações eram executadas, foi necessária, muitas vezes, a ressignificação de estratégias, como ponto de partida para as ações seguintes. Observou-se, ao longo da realização dos grupos de gestantes, uma socialização de saberes e uma discussão da Rede Cegonha enquanto política do cuidado integral à saúde materno-infantil. O objetivo desse exercício de planejamento, execução e avaliação coletivo foi desenvolver a competência para o trabalho interprofissional. Outro cenário se deu na Divisão Saúde da Mulher, da Gerência Executiva da Atenção Básica, da Secretaria Estadual de Saúde do Estado da Paraíba. Os estudantes participaram das discussões do grupo condutor da Rede Cegonha do Estado da Paraíba, que foi instituído em 2012. Esse colegiado gestor é composto por representações: das secretarias municipais e estadual, das maternidades, dos conselhos municipais e estadual, além dos apoiadores do MS, e tem por objetivo a implementação da Rede Cegonha para o cuidado à gestante, à puérpera e às crianças. Nessas reuniões, os estudantes observaram a discussão das dificuldades e limitações, dos entraves burocráticos e financeiros, das fragilidades da rede e dos desafios a serem superados – como a falta de comunicação entre os serviços e a gestão –, em busca de soluções capazes de transformar as situações encontradas ou reveladas. Nesse ínterim, o grupo composto por estudantes, preceptor e profissionais era, constantemente, desafiado a desenvolver novas práticas e ações em saúde, pautadas por conceitos como: integralidade, interprofissionalidade e promoção da saúde. Foram propostas pesquisas voltadas para as necessidades dos serviços e da população, que funcionaram como eixos estruturadores de busca pelo conhecimento, tanto para os estudantes como para os profissionais de saúde envolvidos. A avaliação foi contínua e formativa, buscando compreender os avanços e os desafios de cada ator nesse processo. O diálogo como ponto de partida e a autoavaliação também foram privilegiados para que a subjetividade de cada ator viesse à tona. Utilizou-se o diário de campo para o registro das vivências significativas, para o levantamento de questões importantes e a definição de prioridades, além do registro de impressões e questionamentos. O diário teve, ainda, o objetivo de aprimorar as 792

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atividades e as estratégias adotadas. A dimensão subjetiva da interprofissionalidade foi explicada por Soubhi et al.17 como atitudes e crenças dominantes que podem favorecer as relações entre os profissionais, como, também, uma predisposição dos atores envolvidos a saírem de suas zonas de conforto, no que diz respeito às práticas e às fronteiras disciplinares. Espera-se que essas vivências sejam capazes de preparar melhor os futuros profissionais de saúde para atuarem dentro dos princípios estruturadores do SUS, e que a qualificação profissional implique, também, a elevação da qualidade da atenção oferecida à população, contribuindo para o desenvolvimento do senso de responsabilidade social nos estudantes da área da saúde.

Considerações finais A inserção dos acadêmicos no serviço tem demonstrado ser uma excelente oportunidade para conhecer o funcionamento e a realidade do SUS, viabilizando uma maior integração da teoria com a prática – inclusive, com as práticas colaborativas – e a interprofissionalidade. Entende-se que programas como o PET-Saúde vêm contribuir para o aprimoramento dos profissionais da saúde, pois a relação entre ensino e serviço tem proporcionado uma formação diferenciada aos acadêmicos, que passam a vivenciar os desafios da materialização do SUS e estimulam, assim, uma visão crítica para a rede de serviços no sistema. Nesse mesmo movimento, a vivência do grupo tutorial permite aos preceptores desenvolverem competências para o trabalho interprofissional e as práticas colaborativas, além do exercício de preceptoria. Percebemos, ainda, a necessidade de se reafirmar uma atuação interprofissional com foco na integralidade do cuidado, o que permitiria um trabalho com objetivos de prevenção e promoção da saúde materno-infantil, a partir da compreensão ampliada do processo saúde-doença. Cada vez mais, se coloca em pauta a necessidade da integração entre os diversos profissionais, para que estes possam inventar e reinventar formas de atuar interdisciplinarmente, proporcionando melhores resultados ao trabalho. Portanto, faz-se necessário que as oportunidades de formação nessa linha sejam multiplicadas, para atender às demandas sociais crescentes, contribuindo na construção de um modelo assistencial pautado nos princípios do SUS, que venham a fortalecer a promoção ao cuidado integral e possibilitar que os profissionais saibam atuar em equipe, ofertando serviços resolutos e de qualidade para a população. A partir das reuniões para discussão, planejamento, relato e avaliação, fortaleceu-se a integração de saberes e fazeres em saúde de profissionais de diversos pontos da Rede Cegonha no Estado da Paraíba. Ao mesmo tempo, no cotidiano dos serviços, os estudantes desenvolveram atividades com base na Educação Popular em Saúde, na perspectiva da integralidade do cuidado, como, também, puderam observar o processo de trabalho em saúde, no que se refere às dificuldades, às fragilidades, às potencialidades e à rotina dos serviços de saúde, sejam elas do campo da gestão e/ou da atenção. As vivências oportunizaram as práticas colaborativas em saúde e permitiram o diálogo entre os atores envolvidos.

Colaboradores Franklin Delano Soares Forte e Hannah Gil de Farias Morais trabalharam na concepção, escrita e revisão crítica do conteúdo do artigo. Shirley Arruda Guimarães Rodrigues, Joyce da Silva Santos e Priscila Farias de Albuquerque Oliveira responsabilizaram-se pela análise da discussão e escrita do artigo. Maria do Socorro Trindade Morais, Talitha Emanuelle Barbosa Galdino de Lira e Maria de Fátima Moraes Carvalho trabalharam na redação e revisão crítica.

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A educação interprofissional é uma possibilidade de capacitação de estudantes de diferentes cursos da área da saúde, na perspectiva do aprendizado colaborativo, bem como do trabalho em equipe e em rede, visando à integralidade do cuidado em saúde. Este trabalho tem por objetivo relatar as vivências e experiências no Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde/Rede Cegonha, com ênfase na educação interprofissional e nas práticas colaborativas em saúde para a promoção do cuidado integral materno-infantil, bem como na contribuição dessas vivências durante o processo de formação em saúde.

Palavras-chave: Trabalho em Saúde. Formação interprofissional. Rede Cegonha. Interprofessional education and the Education through Work for Health Program “Stork Network”: leveraging changes in education The interprofessional education is the opportunity to train students from different courses in the health area under the perspective of collaborative learning, as well as in teamwork and networking, aiming at the comprehensiveness of health care. This paper aims to report experiences in Education through Work for Health Program “Stork Network”, focusing on interprofessional education and collaborative practice in health to promote maternal and child comprehensive care, as well as the contribution of these experiences during the health education process.

Keywords: Work in Health. Interprofessional education. Stork network. Educación interprofesional y Programa de Educación para el trabajo en Salud/Red Cigüeña: potencializando cambios en la formación académica La educación interprofesional es una posibilidad para la formación de estudiantes de diferentes cursos en el área de la salud, a partir de la perspectiva del aprendizaje colaborativo, trabajo en equipo y en red, dirigidos a la integridad del cuidado en salud. Este trabajo tiene como objetivo informar sobre las experiencias y vivencias en el programa PET Salud/Red Cigüeña, centrándose en la educación interprofesional y la práctica de colaboración en materia de salud para promover la atención integral maternoinfantil, así como aportar material relativo a la contribución de estas experiencias durante el proceso de formación en salud.

Palabras clave: Trabajo en Salud. Formación interprofesional. Red Cigüeña.

Recebido em 10/01/15. Aprovado em 16/02/16.

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Poderes da liberdade, governamentalidade e saberes psi: diálogos com Nikolas Rose (Parte 2)* Powers of freedom, governamentality and the psy knowledges: dialogues with Nikolas Rose (Part 2)

entrevistas

DOI: 10.1590/1807-57622015.0888

Poderes de la libertad, gubernamentalidad y saberes psi: dialogos con Nikolas Rose (Parte 2)

acervo pessoal

Sergio Resende Carvalho(a) Elizabeth Maria Freire Araújo Lima(b)

*

Esta é a segunda, da série de três entrevistas realizadas com Nikolas Rose, na qual nós exploramos aspectos importantes de sua ampla produção acadêmica. A primeira parte teve como eixo central questões sobre o Estado, Políticas Públicas e Saúde e suas relações com o conceito de governamentalidade. Na presente edição nós discutimos o papel dos saberes e práticas psi no governo das condutas e a pesquisa genealógica. Na última entrevista teremos a oportunidade de refletir com Rose sobre suas investigações recentes em torno das Ciências da Vida, Biomedicina e Neurociências.

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Texto produzido durante pós-doutorado realizado pelo autor principal no King’s College of London (2013-2015), sob os auspícios da Capes/Ciências Sem Fronteira.

(a) Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitária Zeferino Vaz. Campinas, SP, Brasil. 13083-887. sresende@ fcm.unicamp.br (b) Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade Medicina, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. beth.lima@usp.br

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Pesquisa e metodologia Abrirei esta conversa com algumas questões amplas sobre pesquisa e metodologia. Na primeira parte de sua entrevista(c), tivemos a oportunidade de falar sobre seu diálogo com a produção de Foucault. Neste contexto, você poderia discutir a afirmação que fez no livro “Powers of Freedom”(d), de que deveríamos tomar as ideias de Foucault sobre governo como um ponto de partida para outras investigações e não como uma “teoria geral ou uma história do governo, da política e do poder que estaria latente nos escritos de Foucault, e que deveria ser extraída para ser aplicada a outros temas” (p. 4) Há, sem dúvida, um trabalho muito valioso a ser feito sobre os textos de Foucault. Um trabalho que compreende comentários e análises de livros, palestras e entrevistas do autor, exploração da arquitetura conceitual e filosófica, da infraestrutura epistemológica e das implicações teóricas de sua obra; e também, as relações entre seu trabalho e aquele de outros cientistas sociais, filósofos e estudiosos que trabalharam sobre a analítica do saber e poder. Esta é uma tarefa perfeitamente válida, e há alguns excelentes comentadores ou analistas da obra Foucault que trabalham nesta linha. Mas eu não penso que isto seja tudo que a produção de Foucault nos convida a fazer. Por toda uma série de razões – que envolvem gosto e competências pessoais – e por causa do que eu considero mais relevante socialmente e, se ouso dizer, politicamente, escolhi pegar uma rota diferente. É possível encontrar nos textos de Foucault uma justificativa para a rota que tomei. Em primeiro lugar, a ideia de trabalho de campo em filosofia. Ao invés de procurar justificativas filosóficas abstratas para sua abordagem, Foucault está mais interessado em investigar empiricamente as formas práticas e efetivas mediante as quais a filosofia produz o nosso mundo e a gama de práticas nas quais estamos engajados. Isto pode ser visto em seus trabalhos mais abstratos, como As palavras e as coisas ou A arqueologia do saber, e em análises específicas no Vigiar e punir. Esta pequena expressão trabalho de campo em filosofia é um incentivo para fazer o tipo de trabalho que eu tento fazer. Em segundo lugar, a questão de saber se suas ideias constituem uma teoria geral. Em muitos textos, Foucault é crítico em relação a tentativas de desenvolver uma teoria geral, que seria propriedade de alguns intelectuais que poderiam aplicá-la a qualquer situação. A esta ideia de teoria geral, do teórico geral, ele contrapõe a ideia do trabalho do intelectual específico trabalhando sobre práticas particulares e tentando compreender a configuração de saber, poder e subjetividade nessas práticas particulares. Mais uma vez, para mim isto é um convite para continuar o trabalho nessa linha. Isso não significa que não existam lições gerais a serem aprendidas a partir da análise de práticas específicas. Isto não significa que tudo esteja amarrado a seu tempo e lugar específicos. Mas isto significa que se deva ser muito cauteloso com as tentativas de se criar a partir daí algum tipo de teoria geral, como uma teoria da modernização ou destradicionalização ou individualização reflexiva ou da sociedade do risco, ou o que quer que seja. Seria contrário ao ethos do trabalho de Foucault transformá-lo em uma teoria geral, que poderia então ser comparada a outras. Eu não considero que esta seja uma abordagem particularmente frutífera. Talvez seja uma questão de gosto pessoal ou talvez uma questão do tipo de trabalho que se ajustará melhor aos problemas que me concernem.

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(c) Carvalho SR. Governamentalidade, ‘Sociedade Liberal Avançada’ e Saúde: diálogos com Nikolas Rose (Parte 1). Interface (Botucatu) [Internet]. 2015 [cited 2015 Nov 10]; 19(54):64758. Available from: http://www.scielo.br/ scielo.php? script=sci_ arttext&pid=S141432832015000300647& lng=en.http://dx.doi. org/10.1590/180757622015.0216.

Rose N. Powers of freedom: reframing political thought. Cambridge: Cambridge University Press; 1999.

(d)


Você se refere a sua metodologia de pesquisa como uma História do presente, História crítica, História centrada no presente e Genealogia da subjetivação. Existem diferenças conceituais entre esses termos? Eles pretendem responder a problemas diferentes? Qual é o solo comum e quais são as diferenças entre sua abordagem metodológica e a arqueologia e a genealogia foucaultiana?

entrevistas

Carvalho SR, Lima EMFA

Não sou um pensador muito sistemático ou, mais do que isto, não estou muito interessado em sistematizar o tipo de trabalho que venho realizando. Em diferentes estudos eu me direciono para distintos espaços problemáticos, distintas literaturas, diferentes agrupamentos de preocupações e tento articular as abordagens que venho desenvolvendo, tendo como referência estes problemas específicos. Assim, utilizo expressões diferentes em diferentes momentos para descrever isto, mas eu evitaria tentar encontrar grandes diferenças teóricas entre elas. Os primeiros três termos que você menciona História do presente, História crítica, História centrada no presente – todos qualificam o termo história de forma a indicar a diferença entre uma investigação genealógica e uma investigação histórica. Quando ensino isso a meus estudantes, começo por perguntar qual o significado mais óbvio de genealogia nos dias de hoje? É uma árvore genealógica da família. O que é uma árvore genealógica? Se estivermos tentando fazer sua árvore genealógica, você é o seu ápice e trabalhamos para trás, em direção a sua mãe, pai, irmãos, irmãs; em seguida, os pais deles, seus irmãos e irmãs – os ramos da árvore surgem dessa maneira. Se estivéssemos falando não sobre você, mas do seu primo ou de um amigo seu, a história familiar se ramificaria em uma direção completamente diferente. Então, uma genealogia começa a partir de um problema particular atual e tenta, à semelhança de uma árvore genealógica, traçar o conjunto disperso de relações que deram existência a este problema particular. Se estivéssemos pensando em um problema diferente, traçaríamos um conjunto diferente de condições de possibilidade, um conjunto distinto de interações e distintas dimensões. Produziríamos distintas genealogias e estas não se organizariam de modo semelhante entre si, não seriam organizadas na mesma sequência temporal, não teriam configurações do mesmo tipo, os mesmos ritmos; muito menos se relacionariam ao mesmo substrato ou a mesma origem. Isto é o que eu tomo de Foucault e de seu argumento de que não se deve ler a partir da origem: não há uma origem única a partir da qual você poderia traçar as características do presente. Deveríamos tomar o presente como um efeito, uma consequência de um conjunto de intercessões – frequentemente muito contingentes, ao acaso e não necessárias – entre coisas que aparentam ter pouco em comum umas com as outras. Se você partisse de outro problema, você o descreveria de outra maneira. Este é o tipo de abordagem que tento utilizar em meu trabalho e que tento sugerir a outros que estão fazendo um tipo de trabalho semelhante. Não há necessidade na história. Não há uma coerência necessária entre um problema e outro, mesmo que eles existam no mesmo momento cronológico.

Subjetividade, poder e gestão Um dos temas centrais de seu trabalho refere-se aos modos com que os mecanismos e dispositivos contemporâneos que constituem o ser humano têm sido agregados, definindo a “genealogia da subjetivação como uma genealogia da relação do ser com ele mesmo e das formas técnicas que essa relação assumiu”. A partir daí você propõe “uma investigação das técnicas intelectuais e práticas que compuseram os instrumentos através dos quais os seres historicamente constituíram a si mesmos”. Você poderia tecer alguns comentários sobre a importância, a definição e os modos com que utiliza os termos ‘tecnologia’ e ‘técnica’ e como os correlaciona com o processo de subjetivação? É difícil explicar as maneiras pelas quais as crenças sobre a natureza da subjetividade humana se transformam ao longo do tempo, mas elas certamente mudam. Eu tenho argumentado em meu

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trabalho que diferentes concepções de indivíduos emergem, ao menos em parte, no interior de sistemas de conhecimentos competentes sobre o indivíduo – a psicologia, psiquiatria, as disciplinas psi, etc. – e que esses conhecimentos cumprem sua parte na modelagem de novas formas de pensar sobre nós mesmos. É claro que as disciplinas psi não são as únicas disciplinas que estiveram envolvidas nessa questão. Seria simples demais dizer que as disciplinas psi inventaram o sujeito da liberdade – a ideia de que os seres humanos são, em sua essência, criaturas livres e amorosas, desejando agir com autonomia e maximizar seu potencial mediante atos de escolha no mundo – mas elas jogaram um papel importante nisso. Em meus livros eu tento dar uma resposta mais complexa a essa questão sobre como os seres humanos, em um determinado momento histórico, em determinadas áreas geográficas, vieram a pensar sobre si mesmos de determinada forma. Eu tenho sustentado que o desafio para aqueles que querem governar legitimamente em uma sociedade livre, liberal e democrática, é sempre o de alinhar suas estratégias e tecnologias de governo da conduta com as imagens predominantes de como os seres humanos são. É isto que eu quis dizer ao falar da necessidade de inventar tecnologias de produção de subjetividade que trabalhassem com, mais do que contra, a natureza pela qual os seres humanos são compreendidos em um momento particular. Isto soa um tanto abstrato. Mas, por exemplo, se você traçar a história da gestão de pessoas na indústria – digamos do Taylorismo à Escola de Relações Humanas e aos movimentos sobre o potencial humano que observamos nos anos 1960’s – você pode ver com bastante clareza como estas tentativas de governar a conduta individual no local de trabalho, na fábrica, estavam vinculadas a diferentes ideias sobre o que os seres humanos são, portanto, sobre como você poderia obter o melhor deles. No momento em que traçamos o desenvolvimento de modos de pensar sobre estas questões, podemos observar em cada caso que aqueles que afirmaram saber como gerir os seres humanos eram sempre críticos em relação a como as coisas haviam sido organizadas antes porque, era dito, eles não tinham um entendimento apropriado do que os seres humanos eram de fato. Então, cada versão da gestão dizia algo semelhante a ‘se você deseja obter o melhor das pessoas, para que tenham o máximo de produtividade e, ao mesmo tempo, o máximo de satisfação, você precisa alinhar suas práticas de gerenciamento com o que nós sabemos sobre o que os seres humanos são’. Cada um fazia menção a distintos modos de entendimento dos seres humanos, individualmente e coletivamente. E penso que se pode descrever empiricamente este processo, e isto foi o que eu tentei fazer. Na década de 1980, no Reino Unido e nos Estados Unidos, e em menor extensão na Europa, a concepção de ser humano como um sujeito da liberdade, da autonomia, da responsabilidade e da escolha sofreu uma nova inflexão. Tornou-se ligada à ideia de que os seres humanos sempre lutaram para melhorar sua situação, para ser mais bem-sucedidos; não necessariamente para conseguir mais dinheiro, mas para melhorar seu estilo de vida, o bem-estar de sua família, as perspectivas de seus filhos, para aprimorar a si mesmos e maximizarem-se por meio das escolhas que fazem sobre suas vidas. Esta ideia de um indivíduo que é inovador – criativo, engenhoso, imaginativo, capaz de pensar novos projetos e efetivá-los – e que leva sua vida como uma espécie de empresa – calculando e pensando sobre as escolhas e riscos que ele necessita levar em conta para maximizar o seu potencial –, tornou-se uma forma muito poderosa de pensar que atravessa várias práticas: do consumo ao trabalho ao seguro entre outras. Essas foram as características que eu tentei descrever em alguns trabalhos empíricos que fiz sobre o surgimento dessa cultura empresarial e sobre os modos de subjetividade e de subjetivação que pareciam tão centrais a ela.

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Você pode nos dar alguns exemplos do uso dessas ferramentas conceituais em suas investigações sobre saúde? Estratégias em torno da saúde que tomaram forma nesse período partilharam de uma ideia similar de indivíduo que está pessoalmente comprometido com a maximização de sua saúde mediante escolhas sobre seu estilo de vida, dieta e assim por diante. Mas, o interessante sobre essas formas de pensar é que elas pretendem ser descritivas, mas são na verdade normativas e intervencionistas. A ideia do indivíduo que procura maximizar a sua própria saúde e a de sua família se torna uma norma, e uma vez que ela se torna uma norma, ela se torna também uma inspiração para toda uma série de intervenções para gerenciar pessoas que não correspondem a essa norma: as pessoas que se tornam obesas, que bebem demais, que comem muita comida saturada, ou muito açúcar, ou muito sal, ou qualquer coisa que seja exagerada. Assim, a concepção de ser humano se desloca de uma descrição para uma norma, e a norma torna-se a base para uma intervenção. É possível ver isso nos movimentos “self-health” que emergem em torno da proposta de maximizar o estado de saúde e também na maneira como aqueles que não tentam maximizar e gerenciar sua saúde são transformados em problemáticos. Então, muito da Saúde Pública, certamente no Reino Unido, e sua maneira de abordar o problema da obesidade ou o problema do consumo excessivo de álcool ou o problema da doença cardiovascular, apoia-se nessa ideia. Ela trabalha com a premissa de que o que é preciso fazer é mudar as atitudes, mudar os comportamentos individuais e alterar o percurso no qual as pessoas fazem suas escolhas a fim de alinhar esses comportamentos, essas atitudes e escolhas, com as formas para as quais a saúde deve se dirigir. Tais intervenções na saúde, antes de tudo, pretendem fazer com que a pessoa seja alguém que quer ser saudável. Se ela pode ser ajudada a se tornar consciente de que realmente quer ser saudável, então lhe pode ser fornecido o conhecimento e as escolhas para ser saudável. Grande parte da Saúde Pública no Reino Unido – eu não posso realmente falar de outros lugares –, tenta transformar o estado de saúde da população por meio da modificação do comportamento de saúde do indivíduo, maximizando o desejo de ser saudável e treinando o indivíduo de maneira que ele possa perceber que deseja ser saudável. A linguagem empresarial durou pouco, mas esta ideia de que você governará melhor a conduta procurando liberar o desejo individual dos indivíduos para melhorarem a si mesmos, e em seguida treinando esse desejo em um caminho que levará aos resultados que se quer alcançar, é o que durou mais tempo. A melhor maneira de governar a saúde é fazer com que se coincida aquilo que o indivíduo quer e aquilo que você deseja enquanto um gestor de saúde.

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Poderes da liberdade Um dos aspectos centrais de seus estudos sobre a governamentalidade desenvolve-se em torno dos poderes da liberdade. Você poderia comentar a afirmação de que a racionalidade de governo no capitalismo hoje tem como objetivo central o governo das pessoas por meio de sua liberdade, e que sua autonomia é uma condição necessária e um aspecto vital do governo da conduta? Este foi sem dúvida o argumento central do livro “Powers of freedom”, no qual eu tentei desafiar a inquestionável virtude da linguagem da liberdade. Como a maioria dos meus livros, este foi escrito em um contexto social, político e histórico particular. O trabalho que realizei sobre a liberdade deve ser compreendido no contexto da emergência de uma poderosa retórica da liberdade nos 1980’s. Liberdade foi, certamente, um slogan da resistência, mas liberdade foi também um elemento das estratégias de governo. Um momento emblemático para nós na Europa foi o concerto em Berlim em

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1989, quando Leonard Bernstein regeu a Nona Sinfonia de Beethoven, a Ode à Alegria: naquele momento, logo após a queda do Muro de Berlim, a palavra “alegria” no quarto movimento, o movimento do coral, foi substituída pela palavra liberdade. Naquele momento, a obra torna-se uma Ode à Liberdade, à freiheit, liberdade sendo a forma constituída a partir da demanda daqueles do Leste que levou ao colapso do Muro. Era uma demanda poderosa, e qualquer um que tenha ouvido aquele concerto irá recordá-lo como um acontecimento intensamente comovente(e). Este foi também o momento em que a obra de Friedrich Hayek, com sua ênfase na liberdade, foi redescoberta, e quando os escritos de Milton Freedman, como “Free to choose” se tornaram popular: a liberdade estava na boca de todos. Eu argumentei que precisávamos fazer uma distinção entre a liberdade como um poderoso slogan de resistência e a liberdade como uma racionalidade de governo, isto é, práticas que procuram governar os indivíduos moldando, modulando e regulando o modo como eles entendem, representam e efetuam o que eles tomam por sua liberdade. Precisávamos analisar a maneira pela qual a liberdade foi associada à ideia de escolha, porque governar moldando, modulando e regulando atos de escolha, sob o slogan de liberdade, tornou-se um elemento crucial nas estratégias de governo. Eu argumentei que esse estilo de pensamento envolvia um entendimento particular do que os seres humanos são: que os seres humanos são livres, e que deveriam ser libertados: eles deveriam ser libertados da dependência e das expectativas de que outros cuidariam de suas vidas; neles deveria ser incutida a capacidade para escolher, com a crença de que suas vidas seriam, de uma forma ou de outra, o resultado destes atos de escolha. Eles foram, como afirmei, obrigados a ser livres. Atos de livre escolha tornaram-se cruciais em um mundo imaginado como um quase-mercado: em sua forma mais extrema, o ato individual de escolha iria substituir a vontade das autoridades governantes em quase todas as esferas da vida. Eu pensei que era importante analisar o desenvolvimento do que eu observava que estava acontecendo à minha volta nos anos 1980, não porque eu pensasse que esses sonhos de liberdade eram falsos ou porque eu queria diagnosticar uma pretensa liberdade e compará-la com uma liberdade real. Eu queria defender a ideia de que deveríamos dar um passo atrás desta demanda para ser livre, desta demanda para escolher, e lembrar que havia outras éticas que poderíamos querer considerar – a ética da obrigação, da dependência, da solidariedade, da lealdade; todos esses tipos de ética da anti-escolha, tipos de ética anti-liberdade – que não deveriam ser abandonadas tão facilmente. Você tem argumentado que uma das principais realizações das artes de governo liberais foi governar mediante a ‘produção de pessoas livres’ e que isto foi acompanhado pela invenção de um conjunto amplo de tentativas para moldar e gerenciar as condutas na e pela liberdade. Você pode comentar esta afirmação fazendo menção ao papel dos especialistas da saúde no governo das condutas nos dias de hoje? Penso que as principais estratégias para a gestão da saúde dos indivíduos no Reino Unido ainda operam, atualmente, em torno da remodelagem da conduta individual da maneira que acabo de descrever. Mas talvez também se possa ver o surgimento de duas outras versões que estão sendo experimentadas. Como já disse antes, o governo é uma operação congenitamente fadada ao fracasso, 802

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(e) Vide: https:// www.youtube.com/ watch?v=IInG5nY_wrU


(f) Vide: https:// en.wikipedia.org /wiki/ Nudge_%28book%29

mas a governamentalidade é eternamente otimista! Então, já que as tentativas de se fazer a gestão da obesidade, do alcoolismo, etc., mediante mudança de comportamento individual fracassaram em grande medida, esforços têm sido feitos para encontrar outras estratégias que logrem transformar o comportamento individual. Primeiro: se as próprias pessoas não querem ser saudáveis, porque não se consegue levá-las a dar valor à sua própria saúde e a de sua família, talvez se devesse dar-lhes outros incentivos para que sejam saudáveis. Então há certa exploração sobre os efeitos de oferecer às pessoas incentivos financeiros para serem saudáveis: pagando pessoas que são obesos para fazer exercícios ou dando-lhes incentivos financeiros para perder peso ou abandonar o hábito de fumar, este tipo de coisa. Segundo: Nudge – o termo inventado por Sunstein e Thaler(f) – funciona baseado na ideia de que, mesmo que as pessoas conscientemente queiram ser saudáveis, infelizmente eles são mobilizadas por paixões que estão fora do seu controle consciente. Conscientemente eles gostariam de ter uma visão de longo prazo, diminuir a bebida, não comer tanto, não comprar pizza e assim por diante. Mas, infelizmente, os seres humanos são mobilizados por paixões de curto prazo. Então quando eles veem a pizza ou veem o álcool, eles escolhem a opção mais fácil antes do que as opções de longo prazo. Há uma base pseudoneuropsicológica para estes argumentos! Desde que os objetivos e os desejos de curto prazo das pessoas sempre se sobrepõem às vontades de longo prazo para ser saudável, o que se deve fazer é transformar a escolha saudável na escolha mais fácil. É o que se tenta fazer nessa perspectiva chamada nudge. Coloque uma tigela de bananas perto do caixa do supermercado na altura dos olhos de uma criança e faça os doces e os chocolates mais difíceis de se ver e de alcançar; e haverá pelo menos uma chance de que seu filho faça a escolha certa e pegue a banana. Porque, em seus eus reflexivos, as pessoas realmente querem fazer a boa escolha a longo prazo, mas os seus eus desenvolvidos automaticamente são levados a procurar a recompensa de curto prazo. Eu necessito de açúcar e preciso disto agora. Nudge tem como pretensão tornar-se um antídoto ao governo, interpretado como uma questão de regulamentação e direção. É uma espécie de paternalismo liberal: as pessoas são deixadas livres para fazer o que elas gostam, mas “a arquitetura da escolha” faz com que a boa escolha - na acepção desses arquitetos – seja a escolha mais fácil. Mas o que raramente se vê, pelo menos em uma política de saúde pública coerente, é o reconhecimento de que a escolha individual não é suficiente; que as escolhas das pessoas são formatadas pelo meio no qual elas vivem; que se você é uma mãe solteira, pobre, do Sudeste de Londres, com três crianças esfomeadas e com pouco dinheiro, você pode fazer as crianças ficarem quietas indo a uma lanchonete comer hambúrguer ou peixe com batatas, oferecendo a elas uma refeição que é em grande parte gordurosa, com muito sal e muito açúcar e uma bebida muito calórica que você pode conseguir com menos de uma libra. Então se você tem três garotos, por três libras você pode dar a eles algo que os fará ficar calmos. Mesmo que exista um amplo reconhecimento de que essa lógica de atitudes, comportamentos e escolhas é insuficiente e que as escolhas das pessoas são moldadas por determinantes sociais, políticos e econômicos, há poucas tentativas na saúde pública para realmente transformar o meio em que as pessoas estão fazendo suas escolhas individuais, ou para reconhecer a necessidade de dar às pessoas o poder – em especial o dinheiro, o tempo e o incentivo – para fazer as melhores escolhas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Embora a ideia de que as relações de poder são produtivas pareça ser comum aos pesquisadores foucaultianos, a discussão sobre seus efeitos permanece controversa. Em sua opinião, as relações de poder têm sempre como resultado a disciplina, o controle e a regulação? Ou elas poderiam levar a práticas de liberdade e à experiência de vida como devir? Eu não tenho clareza sobre a melhor maneira de responder esta questão. Talvez eu possa começar voltando à questão que fundamenta o meu trabalho: que tipo de indivíduos nós pensamos que somos? Eu não acho que exista nenhuma maneira natural ou dada de ser um ser humano. Há um velho clichê: “conhece-te a ti mesmo”, mas não há nenhuma maneira de se conhecer sem uma linguagem para que você se conheça, sem uma grade de percepção para compreender a si mesmo, sem um sistema de julgamento para avaliar a si mesmo em relação a várias normas, sem um conjunto de ideais para medir a si mesmo e assim por diante. Sendo assim, eu reformularia a sua pergunta ‘relações de poder poderiam levar a práticas de liberdade’ na seguinte direção: se estamos em um regime que nos oferece um determinado conjunto de definições de quem somos, um sistema de conhecimento para compreender a nós mesmos, um regime de julgamento, um conjunto de ideais, é possível encontrar uma maneira de problematizar radicalmente este regime? Penso que sim, mas eu não acho que essa problematização radical surja de um conflito entre quem realmente somos e quem os ‘profissionais’ da disciplina e da subjetivação pensam que somos. Eu não acho que seja uma questão de opor nossa autenticidade contra aqueles que tentam suprimir ou moldá-la. Acredito que seja uma questão de definir uma forma de compreender a si mesmo, uma forma de agir sobre si mesmo, contra outras. Nós não vivemos em um universo totalitário, há muitas maneiras diferentes de pensar sobre nós mesmos - na verdade, até mesmo em sociedades totalitárias, que nunca são tão totalitárias na prática. Há uma gama de diferentes crenças religiosas e espirituais, há compreensões eróticas de nós mesmos. Na maioria das sociedades contemporâneas vivemos em um regime plural e heterogêneo. Claro que algumas formas de pensar sobre si mesmo são dominantes e se fazem presentes junto a diferentes práticas, mas há outras que oferecem a possibilidade de certo tipo de resistência. Uma resistência que não significa opor autonomia contra dominação, mas uma resistência que opõe uma maneira de pensar sobre si mesmo, contra outra maneira de se pensar sobre si mesmo. Uma forma de julgar a si mesmo contra outra forma de julgamento de si. Nesse sentido, é preciso ver que práticas libertárias incorporam uma doutrina particular sobre como os seres humanos são, ideais e aspirações particulares, e técnicas específicas que você usaria sobre si mesmo para tornar-se livre. Então, nessa medida, as relações de poder, se você quiser chamá-las assim, podem dar lugar a práticas de contestação e transformação; e se não o fizessem, então não veríamos nenhum tipo de mudança. Nossa história nos mostra que em tempos diferentes, em diferentes práticas, os seres humanos foram pensados como criaturas de instinto, moldados pelos hábitos, movidos por desejos inconscientes, como seres que aspiram à liberdade e à realização pessoal e assim por diante. Nós temos visto de que maneira esses múltiplos e diferentes modos de pensar e agir sobre o ser humano entraram em conflito e seguem em conflito uns com os outros. Esta seria, então, a maneira que eu responderia sua questão. Você levanta, também, a questão da vida como uma afirmação da diferença, e esse é claramente um tipo diferente de ética, talvez uma que seja anti-identitária, e que vê a liberdade não como uma afirmação da verdadeira identidade de alguém, mas como a capacidade de mudar, a capacidade de ser algo diferente do que você é. Eu pessoalmente não gostaria de julgar o quanto esta perspectiva constitui um modo profundamente libertário de pensar ou agir sobre si mesmo. Michel Foucault certamente falou de uma visão particular de liberdade como a capacidade de ser algo diferente do que você é, de transformar quem você é, de recriar a si de uma forma contínua. Essa valoração ética estabeleceu uma espécie de normatividade mínima que ele usou para julgar toda uma série de práticas que buscavam o inverso, que procuravam a fixidez, que buscavam a identidade. Esta ideia é responsável por uma parte poderosa do apelo de seu trabalho. Eu não compartilho esta ética, mas esta é uma outra questão. 804

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Os saberes psi e o governo das condutas Contra a ideia de um sujeito universal, unitário e coerente, e diferente daqueles que criticam esta formulação no interior de um determinado regime histórico (p.ex. psicanálise), você nos oferece uma perspectiva que preconiza que o sujeito é um produto derivado de múltiplas relações: um sujeito-efeito de forças, tecnologias, práticas e relações que têm a intenção de nos transformar e, também, como um sujeito que é resultado do trabalho sobre si mesmo. Por que você utiliza esta última perspectiva em seu trabalho? Quais são os limites e a potência, em sua opinião, deste modo de se definir o sujeito?

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Como discutimos anteriormente, eu tenho tentado escapar de ‘uma teoria do sujeito’. Eu tenho tentado evitar propor uma teoria alternativa do sujeito que se somasse a todos as outras que já estão por aí. Ao invés disso, tenho tentado abordar a questão de como os sujeitos, como os seres humanosvieram a pensar sobre si mesmos e a agir sobre si mesmos como determinados tipos de sujeitos, a julgar a si mesmos e buscar certos modos de viver adequados para si como determinados tipos de sujeitos. Isso é algo que, para mim, está aberto para outras análises empíricas e históricas: traçar os caminhos, as formas de linguagem, os modos de invenção, os tipos de julgamento, as tecnologias de reforma no interior das quais os seres humanos são capturados. Este é o sentido de dizer que o ser humano está envolvido, talvez até mesmo constituído, por uma rede de relações e intervenções no interior da qual ele é trazido à existência. Parafraseando Simone de Beauvoir: “Não se nasce um ser humano, torna-se um ser humano”. Essa é a primeira coisa. A segunda coisa é porque eu não acredito que aquilo que nos velhos tempos costumávamos chamar formações sociais seja algo coerente. Eu penso que há uma multiplicidade de formas diferentes de os seres humanos serem tratados como sujeitos. Sim, eles sustentam relações familiares em determinados períodos, mas não existe um único caminho pela qual os seres humanos são abordados enquanto sujeitos. O ser humano está envolvido em múltiplos e contraditórios modos de ser: ser um bom pai, ser um bom trabalhador, ser um bom amante, ser um bom membro de uma Igreja, etc. Isto cria diferentes modos de subjetivação, para usar uma expressão que eu realmente não gosto. Como eu disse antes, quando as pessoas falam em resistência, eu tendo a encontrar lugares onde uma maneira de pensar sobre si mesmo e de existir como um ser humano é colocada em conflito com outra maneira. Você quer que eu seja um sujeito disciplinado da força de trabalho, mas eu quero realizar o meu verdadeiro potencial humano. Estas são duas configurações diferentes; elas entram em conflito uma com a outra e este embate é onde você observa a resistência. Por que eu penso dessa forma? Existem duas razões. A primeira é que eu não vejo qualquer razão para acreditar que a minha teoria particular do sujeito seja melhor do que a de qualquer outra pessoa. Deveria eu ser um freudiano? Deveria eu ser um behaviorista? Deveria eu ser um lacaniano? Deveria eu adotar o tipo moda atual da Teoria dos Afetos e assim por diante? Há uma variedade de teorias e não estou em posição de julgá-las ou escolher entre elas. Se eu quisesse arbitrá-las, eu seria um psicólogo, o que eu não sou. E eu não quero ser um quase-psicólogo, da mesma maneira que em relação a Michel Foucault eu não quero ser um quase-filósofo. Deixemos os filósofos fazerem filosofia, deixemos os psicólogos fazerem psicologia e deixemos aqueles que são um pouco como eu fazer as coisas nas quais têm uma relativa competência. Esta é a primeira questão. Em segundo lugar, abordar a questão do sujeito-efeito, na forma em que eu acabei de descrever, abre a possibilidade de investigações históricas e empíricas. Isso leva a um alinhamento com a forma geral por meio da qual eu gostaria de abordar essas questões. Como eu disse antes, você pode traçar histórica e empiricamente a emergência dessas diferentes percepções de nós mesmos, das maneiras em que agimos sobre nós mesmos etc. etc. Esta é a potência desse trabalho. O aspecto adverso desta perspectiva, claro, é que ela torna um pouco mais difícil dizer: os sujeitos são realmente assim e o modo como são tratados em nosso mundo indica uma compreensão equivocada e devemos liberar a realidade do sujeito. Se você toma a perspectiva que eu proponho, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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você não tem um fundamento normativo para uma política libertária. Sua escolha entre diferentes formas-sujeitos é uma escolha ética. Uma escolha que você tem que fazer – porque considera uma forma de viver melhor do que outra – e então terá que defendê-la ética e politicamente. Se você toma esta perspectiva, não pode defender uma visão de sujeito naturalizando-a e dizendo: esta é a forma como os sujeitos deveriam viver porque eles são assim em sua natureza. Não, você não pode fazer desta maneira se você assume minha abordagem. Você tem que dizer: esta é a maneira que os sujeitos deveriam viver porque eu acho que esta maneira traz melhores consequências para os seres humanos; mas não porque isto é da natureza dos seres humanos e esta natureza está sendo oprimida ou restringida por forças político-sociais. Você argumenta em Governing the soul(g) que as disciplinas psi – enquanto um corpo de discursos e práticas profissionais, um conjunto de técnicas e sistemas de julgamento presentes em distintos campos sociais, e um componente da ética – têm um significado especial em relação aos agenciamentos de subjetivação contemporâneos e têm “um papel fundamental na construção de sujeitos governáveis, de maneira compatível com os princípios do liberalismo e da democracia”. Você poderia discorrer sobre estas ideias e sobre as formas como as técnicas psi têm sido utilizadas e incorporadas em técnicas de gestão e na prática médica? Eu realmente penso que na segunda metade do século XX, certamente nas regiões que eu tenho estudado – as sociedades democráticas liberais da Europa, América do Norte e, em certa medida, a Austrália – os saberes psy desempenharam um papel fundamental em quase todas as práticas que estavam relacionadas ao governo da conduta. O trabalho social, o trabalho nas prisões, a educação, a gestão de pessoas em fábricas ou em locais de trabalho e também a gestão da saúde tornaram-se inextricavelmente ligados aos saberes psicológicos e às concepções psicológicas de como os seres humanos são. Levaria muito tempo para explicar como as práticas médicas e as práticas de gestão de saúde a elas relacionadas assumiram essas concepções psicológicas, e seria necessário dar muitos exemplos. Mas, para dar apenas um exemplo, considere como os médicos generalistas foram levados a pensar sobre o paciente que os procura, a tentar entendê-lo em termos não apenas de paciente com queixas corporais, mas como uma pessoa que está passando, de alguma maneira, por dificuldades ou sofrimentos. Neste caso, era necessário para o médico tentar distinguir os sentimentos subjetivos de sofrimento de sua base orgânica; tentar resolver o que era ansiedade, o que era esperança, o que era um mal-entendido e o que eram sintomas reais de uma desordem real. Se você fosse um clínico geral, você teria que tratar de ambas as condições - você teria que tratar a doença, mas também teria que encontrar uma maneira de tratar a pessoa, o sujeito, o paciente que estava na sua frente, não descartar sua ansiedade, mas agir como uma espécie de terapeuta destas ansiedades. Claro que este era um ideal. Eu tenho explorado muitos outros exemplos, não apenas na prática clínica, mas também em questões de saúde pública.

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Rose N. Governing the soul: the shaping of the private self. London: Routledge; 1989.

(g)


Você pensa que as disciplinas psi seguem sendo importantes para o governo da conduta ou têm sido substituídas por outras racionalidades e técnicas como a biomedicina, neurociências e outras? Será que estamos vendo um deslocamento das maneiras que tradicionalmente nos relacionamos a nós mesmos em direção a novos modos de subjetivação que indicam uma mudança em nosso regime do eu (self)?

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Não me parece que possamos fazer qualquer julgamento definitivo no momento sobre se essas maneiras psi de pensar e agir estão se tornando menos importantes. Em primeiro lugar, é claro, nunca houve uma única perspectiva psi. Houve, e ainda há, uma multiplicidade de técnicas psi. Se você era um profissional médico, existia uma ampla gama de distintos modos de pensar sobre os seres humanos que você tinha na sua frente, diferentes teorias psicológicas, entendimentos, técnicas e assim por diante. Muitos destes distintos modos seguem presentes. Claro, isto depende de onde você olha, que país, que região, que especialidade, mas penso que muitas dessas perspectivas ainda estão presentes e estão operando como faziam antes. Em um dado momento, muitos acreditaram que a biomedicina e, em particular, a genética e o estudos genômicos viriam a transformar todas essas práticas nas quais os especialistas médicos se encontram com a pessoa em sofrimento. Eles pensavam – alguns tinham esperança, outros temiam – que o olhar médico biomedicamente educado poderia ver além da pessoa em sofrimento, para ver os sinais de uma condição genética e um genótipo que se expressava em um fenótipo. E eles esperavam, ou temiam, que o médico agora, com o auxílio de várias tecnologias biomédicas – testes genéticos, testes sanguíneos e outros tipos de testes laboratoriais – iria ler essa condição biomédica subjacente e não iria tratar a pessoa, mas a biologia. Existem áreas da medicina nas quais se viu essa transformação, como no tratamento do câncer ou das doenças cardíacas e, de alguma maneira, nas desordens como a Doença de Crohn. Mas o que se vê é que a tentativa de basear a prática da medicina em última instância no conhecimento da patologia biomédica que subjaz ao sofrimento vai contra o fato de que a experiência do adoecimento é inevitavelmente subjetiva; que não existe uma relação direta entre a patologia biomédica e os sintomas; que os sintomas existem sem uma patologia biomédica; que os sintomas têm múltiplas patologias biomédicas; e que a mesma sequência de genes ou mutações na sequência genética podem produzir conjuntos de sintomas radicalmente diferentes, dependendo de uma série ampla de outros fatores. Não tem sido fácil transformar a prática da medicina em uma aplicação de conhecimentos biomédicos. Muitos médicos têm resistido todo tempo a este projeto. Então aqui ocorre uma genuína tensão. Muitos pesquisadores ainda argumentam que a próxima geração de sequenciamento genético e outras tecnologias fará o conhecimento genético imediatamente disponível para o médico na prática clínica – bastará tirar uma amostra de sangue, colocá-la na máquina, identificar a patologia subjacente e, em seguida, fazer o diagnóstico e o tratamento com base neste processo. No entanto, a maioria dos clínicos é bastante cética quanto a isso, por uma série de razões que não temos tempo para desenvolver aqui. Quando eu comecei a fazer meu trabalho em neurociências, a hipótese mais simples que eu estava explorando poderia ser colocado assim: “onde psi estava, lá neuro deverá estar”. Eu pensei que eu encontraria indícios de que os conhecimentos psicológicos seriam deslocados pelos conhecimentos das neurociências; que o espaço da mente no qual os conhecimentos psi atuavam, o espaço que se abriu nos séculos XIX e XX entre os órgãos e o comportamento estava se fechando, estava se aplainando, que o comportamento passaria a ser mapeado diretamente do cérebro.

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É muito cedo para dizer se isso vai acontecer. Pode-se certamente encontrar explicações baseadas no funcionamento cerebral em uma gama de diferentes tipos de práticas, mas o que discutimos no livro Neuro foi que os conhecimentos psicológicos não estão sendo deslocados nem substituídos, pelo contrário, estão sendo sustentados e têm granjeado uma maior objetividade por meio de uma referência ao cérebro. Na verdade, em muitos aspectos, o acréscimo de objetividade que as neurociências fornecem está aumentando, em vez de diminuir, o status de algumas técnicas psi. Mas, como eu disse, é muito cedo para fazer uma afirmação final, estamos bem no meio dessas transformações e, talvez, se começarmos a analisá-las e observar os caminhos pelos quais as coisas estão se desenvolvendo, nossas intervenções, frágeis como elas são, podem ajudar a mover as coisas em uma direção ao invés de outra. Se há uma esperança prática em fazer este tipo de trabalho, é que não é apenas para saber sobre como as coisas estão se desenvolvendo e como elas se desenvolveram, mas também para gerar uma certa capacidade de moldar a forma como elas se desenvolverão no futuro.

Palavras-chave: Poder. Governamentalidade. Genealogia. Subjetividade. Psicologia. Keywords: Power. Governamentality. Genealogy. Subjectivity. Psychology. Palabras clave: Poderes. Gubernamentalidad. Genealogía. Subjetividad. Psicología. Recebido em 07/12/15. Aprovado em 01/02/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0098

livros

Koller SH, Couto MCPP, Hohendorff JV, organizadores. Métodos de pesquisa: manual de produção científica. Porto Alegre:Penso; 2014

Silvia Regina Viodres Inoue(a) Thais Laudares Soares Maia(b)

Organizado por Silvia Koller, Maria Clara Couto e Jean Hohendorff, com a colaboração de experientes pesquisadores, o livro Métodos de Pesquisa - Manual de Produção Científica é direcionado a estudantes de graduação, pós-graduação, docentes e pesquisadores que têm o objetivo de escrever e publicar resultados de pesquisas ou revisões de literatura, como, também, o manejo de tempo e gestão de equipes de pesquisa. A experiência profissional dos autores proporciona ao leitor, além dos aspectos técnicos da escrita científica, elementos do contexto atual acadêmico apresentados em doze capítulos, distribuídos em três partes: escrita científica, pôsteres e apresentações orais e administração da vida acadêmica. Os desafios da escrita científica e sua diferença de outros estilos textuais são explorados no primeiro capítulo. No decorrer do capítulo, os autores discutem e estruturam as etapas que antecedem a preparação do artigo científico e os elementos que o texto deve oferecer para que seja relevante à comunidade científica. Ainda na elucidação de como deve ser escrito o texto, são discutidos a validade científica das referências, o fator de impacto e a escolha da revista onde se pretende publicar. O autor expande as

contribuições do campo metodológico encontradas nos manuais de escrita ao incluir esses dois últimos aspectos que permitem ampliar ou limitar a disseminação do conhecimento, o diálogo entre os pares e conferir visibilidade aos pesquisadores e seus projetos. Nos capítulos dois e três, os autores desmistificam um equívoco comum entre acadêmicos iniciantes: a construção textual da revisão de literatura (como elemento de dissertações e teses), o artigo de revisão de literatura e a revisão sistemática. A revisão de literatura consistiria em avaliações críticas do material já publicado, com finalidade de organizar, integrar e avaliar estudos relevantes sobre o tema escolhido. Na revisão sistemática, os ‘participantes’, como colocado pelos autores, são os estudos, e sua finalidade é sumarizar pesquisas prévias para responder questões, testar hipóteses ou reunir evidências. O emprego de elementos gráficos, como quadros comparativos e trechos de artigos com apontamentos didáticos, são recursos que permitem ao leitor acesso rápido às etapas da revisão de literatura, bases especializadas em revisões sistemáticas e bases de dados. Ao longo do segundo capítulo, com otimismo e sem comprometer o interesse do leitor, o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva e Curso de Graduação em Psicologia, Universidade Católica de Santos. Avenida Conselheiros Nébias, 300, Boqueirão. Santos,SP, Brasil. 11015-002. silviaviodres@ yahoo.com.br (b) Mestranda, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Católica de Santos. Santos, SP, Brasil. thaislaudares@ hotmail.com

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autor aponta os desafios concretos que o leitor (futuro pesquisador) enfrentará na elaboração de um artigo de revisão de literatura, assim como as negativas das revistas para publicação. A elaboração de artigos empíricos e de resumos é detalhada nos capítulos quatro e cinco. A escolha minuciosa dos periódicos onde se pretende publicar o artigo, seguida da ordem e especificações de cada sessão do texto são acompanhadas de: exemplos das sessões que compõem o manuscrito, exemplos de dados e encadeamento de informações na introdução, e a revisão de literatura. Os exemplos são organizados em caixas de texto com comentários que propiciam, ao leitor, reflexões sobre como introduzir o tema de forma clara e objetiva. Os autores ampliam suas contribuições apresentando ferramentas e técnicas para planejar, escrever, revisar e tornar o artigo com ‘grandes chances de publicação’. A primeira parte do manual é finalizada com três capítulos: o primeiro dedicado à organização de livros e os demais ao plágio, e, por fim, erros comuns da escrita em língua portuguesa. No capítulo seis, é disponibilizado um guia de perguntas que auxiliam na definição dos capítulos e dos autores e da linguagem a ser utilizada. Para facilitar o contato inicial com potenciais ‘colaboradores’, o capítulo oferece diferentes modelos de carta convite para autores e um modelo de ficha de avaliação dos capítulos. Embora a leitura dos capítulos em ordem aleatória seja plenamente possível, para o leitor que opta pela leitura sequencial do manual, um melhor ordenamento lógico seria obtido com o encerramento da primeira parte do manual com o capítulo ‘Plágio acadêmico’. Transcendendo as discussões e técnicas da escrita e da publicação, os autores abordam, na segunda e terceira parte do manual, respectivamente: outras modalidades de comunicação acadêmica, a administração do tempo e das atividades acadêmicas e a formação e gestão de grupos de pesquisa. Na segunda parte do manual, o capítulo nove ‘Como preparar um pôster científico’ é um guia de organização do texto, das sessões e aspectos gráficos do

pôster científico. Na sequência, a preparação para a apresentação oral e a própria apresentação são conduzidas como habilidades essenciais e modalidade mais elementar de disseminação do conhecimento científico e comunicação entre os pares. Na seção, se encontram: a estrutura da apresentação, os tipos de apresentação e sua adequação a públicos específicos; o manejo das respostas emocionais, como a ansiedade frente à exposição, e a administração da resposta emocional do público para despertar e manter o interesse contínuo. Os dois capítulos oferecem elementos e discussões que permitem ao leitor instrumentalizar-se para apresentações de projetos, versões parciais ou finais de pesquisas, dentre outras modalidades de comunicação e outras modalidades de apresentações orais, como aulas e palestras. Na terceira parte do manual, os autores dedicam os dois capítulos à administração de atividades de rotina de estudantes e docentes da pós-graduação e gestores de grupos de pesquisa acadêmica, como: reuniões de departamento e de grupos de pesquisa, supervisão de alunos, atividades de ensino, escrita de propostas para editais de pesquisa, execução de pesquisas, escrever artigos e capítulos de livros, revisar artigos para periódicos, preparar palestras, e a formação e gestão de equipes de pesquisa. O tema do último capítulo parte da premissa de que o trabalho científico tem como condição o trabalho em equipe. No capítulo breve, os autores apontam estratégias para delinear o perfil desejável da equipe, captar o aluno e programar as atividades de médio e longo prazo do grupo. Clareza e objetividade, quadros e esquemas explicativos são adequadamente empregados em todo o manual. O conteúdo dos capítulos é detalhado, oferece um passo a passo para elaboração de diferentes tipos de textos cientificos, orientações essenciais para produção e manejo de apresentação oral e gestão de equipes. O Manual de Produção Científica cumpre o objetivo de fornecer subsídios metodológicos e críticos para pesquisadores iniciantes e mais experientes na produção de manuscritos e comunicações científicas.

Recebido em 09/03/16. Aprovado em 23/03/16.

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DOI: 10.1590/1807-57622016.0090

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Nenhuma ferida fala por si mesma. Sofrimento e estratégias de cura dos imigrantes por meio de práticas de ethnography-based art

Projeto Ghetto Six: Lorenzo Bordonaro; Fotografias: Vitor Barros, 2012

Chiara Pussetti(a)

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa. Av. Prof. Aníbal Bettencourt 9, 1600-189. Lisboa, Portugal. chiara.pussetti@ ics.ulisboa.pt

(a)

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As práticas de ethnography-based art apresentam-se hoje como metodologias alternativas de pesquisa de terreno capazes de envolver os diferentes sentidos por meio do emprego de múltiplas estratégias comunicativas, e de revelar a natureza processual, interativa e criativa da aquisição, da construção e da transmissão do conhecimento etnográfico. Estas experiências participativas e colaborativas que utilizam a arte tanto na aquisição como na transmissão do conhecimento etnográfico e na afirmação política de formas de resistência e de intervenção política pública, podem ser interpretadas como tentativas de desestabilizar categorias disciplinares rígidas, defendendo a criatividade como uma estratégia para transmitir, ao público, o que Paul Stoller definiu como ’a taste of ethnographic things’1. Neste ensaio fotográfico, decidi apresentar alguns momentos da exposição baseada em etnografia “Woundscapes. Sofrimento, criatividade e vida nua”, que reunia o trabalho artístico e de pesquisa de 11 antropólogos/imigrantes/artistas provenientes de diferentes países, cujo trabalho se dedicava a refletir criticamente sobre os olhares e os estereótipos pós-coloniais que marcavam o seu próprio quotidiano e sobre as memórias individuais e coletivas ligadas à diáspora2. Woundscapes constitui a primeira experiência de exposição artística baseada em etnografia e de pesquisa de campo efetuada por intermédio de metodologias artísticas do Coletivo EBANO, associação sem fim lucrativos que se propõe realizar intervenções públicas resultantes do diálogo entre prática artística e sensibilidade etnográfica, com o objectivo de incidir sobre problemáticas sociais e urbanas mais amplas (www.ebanocollective.org). Os curadores desta exposição partilham tanto a insatisfação com os limites da comunicação textual como a vontade de criar alternativas aos habituais circuitos legítimos de expressividade artística, e consideram que a arte pode ser catalisadora de mudança social e promotora de inclusão mesmo nos contextos mais vulneráveis. Por meio de imagens, objetos, instalações, desenhos, vídeos e sons, Woundscapes retratava os sintomas, os itinerários e as estratégias de cura dos seus protagonistas, identificando percursos inéditos no mercado terapêutico da Grande Lisboa. O objetivo era, em primeiro lugar, tornar públicos os resultados das nossas pesquisas etnográficas com o propósito de revelar, ao mais amplo público da cidade de Lisboa, novos mapas urbanos e geografias simbólicas ligadas aos percursos migratórios, do sofrimento e da cura. Ao nível curadorial, a exposição foi montada de forma a propor diferentes itinerários expositivos possíveis, convidando, assim, o público a percorrer caminhos alternativos, ligados a diferentes sistemas de interpretação e processos de ressignificação do sofrimento ligado à experiência migratória, assim como as práticas e modelos de cura subjacentes a estes sistemas. Esta reconstrução de percursos de oferta e procura de produtos e saberes médicos, permite ao público repercorrer as várias rotas terapêuticas que os imigrantes percorrem no espaço urbano, assim como de interagir com as suas vozes, os seus sintomas e com os problemas sociais que estas comunidades enfrentam diariamente, atravessando barreiras linguísticas, burocráticas e culturais.

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Com o conceito de sofrimento nestes projetos, indicamos não só a dimensão da doença, mas o mais amplo âmbito de mal-estar que junta os aspetos individuais com os processos históricos, económicos e políticos, com particular atenção à progressiva institucionalização das intervenções a seu favor. Os projetos tinham como objetivo comum examinar as causas sociais e as experiências individuais do sofrimento em diferentes contextos, focando, em particular, questões como: a natureza social e política da doença e do mal-estar; as interfaces entre os significados da pertença identitária e social dos sujeitos e os saberes e as práticas da agenda institucional dirigida às políticas da cura e do acolhimento; as narrativas subjetivas da dor e a linguagem metafórica do sintoma; as formas locais de agência, individual ou coletiva, para “lidar” com a experiência do sofrimento nos espaços da marginalidade social. Na passagem entre pesquisa e projeto expositivo, o emprego de métodos artísticos colaborativos simboliza a natureza social, processual e dialógica do conhecimento etnográfico, promovendo a criação de novas reflexões, e reforçou o entendimento mútuo e a empatia entre os participantes e o público por meio da partilha de memórias e emoções que criam processos de ressonância e identificação.

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A colaboração e o envolvimento dos protagonistas dos mercados da cura na criação artística – imigrantes, antropólogos, curandeiros e pacientes psiquiátricos, numa lógica participativa e de coautoria – inspiraram a criação de dinâmicas inesperadas e novas reflexões. A dimensão pública e itinerante da exposição entre a Europa e Brasil permitiu: 1) inspirar uma reflexão sobre o próprio processo curadorial na sua tentativa de iludir a distância entre objeto e representação, entre “dentro” e “fora”, entre “nós” e “os outros”, “centro” e “periferias”, norte-sul, criando dinâmicas de exclusão e integração, de distanciamento e participação; 2) abalar a distinção categórica convencional entre etnografia e arte, causando interferências e cruzamentos nos circuitos estabelecidos da academia e da arte contemporânea; 3) examinar, a partir de novos pontos de vista e perspectivas, as causas sociais e as experiências individuais de sofrimento; e, enfim, 4) intervir do ponto de vista político, sublinhando publicamente a responsabilidade coletiva na construção das prisões invisíveis da exclusão e da doença. Como imigrantes, os autores da exposição são quotidianamente imersos em fluxos contínuos de mensagens que sublinham – no positivo como no negativo – a sua alteridade; como artistas não se limitam a apropriar-se deste fluxo mas criam reflexões multissensoriais originais, tornando-se protagonistas; como antropólogos refletem sobre os processos de criação do sofrimento e sobre as dinâmicas sociais envolvidas nas histórias individuais e coletivas. Esta exposição nasce das histórias recolhidas por antropólogos do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) no âmbito de dois projetos financiados pela FCT e coordenados por Chiara Pussetti como Pesquisadora Principal: Políticas de Saúde e Práticas Terapêuticas: Sofrimento e Estratégias de Cura dos Migrantes na Área da Grande Lisboa e Imigrantes e serviços de apoio social: tecnologias de cidadania em Portugal.

Fotografias: Vitor Barros, 2012

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Bem sabemos que, depois da crise da representação nas ciências humanas e sociais das décadas de 1980 e 1990, os antropólogos começam a experimentar estratégias comunicativas alternativas capazes de evocar a complexidade experiencial do campo, se afastando, assim, definitivamente da órbita das ciências exatas e das leis universais, para se aproximarem da literatura, da semiótica e da arte. As distinções disciplinares convencionais entre antropologia e arte principiaram a ficar mais ténues, admitindo o recurso à arte como forma de pesquisa, e à etnografia como campo de produção e inspiração artística, e abrindo novos espaços de experimentação e de intervenção social, como bem evidencia o debate sobre o sensory turn na antropologia, que começa depois do texto de James Clifford e Jorge Marcus, Writing Culture, em 19863; e pelo ethnographic turn na arte contemporânea, inaugurado pelo texto ‘The artist as ethnographer?’ de Hal Foster, em 19954. Em outros trabalhos, referi-me a este encontro como confusão de gêneros, parafraseando uma expressão de Clifford Geertz5, para me referir a este espaço de interface ou, ainda melhor, de contato, como diria Mary Louise Pratt6, onde se torna possível problematizar e redefinir os confins, abrindo o debate sobre a autoridade etnográfica e estimulando práticas autorreflexivas. A própria produção artística em Woundscapes foi, de facto, não só uma metodologia privilegiada de pesquisa, mas, também, um veículo de reflexão e cura para os próprios artistas/antropólogos envolvidos. É o caso da artista e pesquisadora brasileira Letícia Barreto7 que, por meio de uma série de autorretratos, reflete sobre os obstáculos que ela própria teve de ultrapassar para se integrar num novo contexto, nem sempre acolhedor, e para desconstruir estereótipos e imaginários ligados à figura da mulher brasileira: um percurso artístico que ela mesma define como terapêutico, um processo de cura, fruto de uma “pura necessidade de sobrevivência emocional, uma necessidade física de criar, de transformar, de forma positiva, os desafios do dia a dia”7 (p. 25).

Projeto Estrangeiro em mim: Letícia Barreto; Fotografias: Vitor Barros, 2012

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Assim, durante a pesquisa de campo, tentamos definir as diferentes formas de entender, expressar e lidar com o sofrimento, examinando os processos individuais e coletivos de significação da dor, as estratégias de cura, e as diferentes formas de legitimação, resistência ou reconceituação da própria posição social. Na tradução destes resultados em obras de arte, procuramos, depois, identificar a dimensão física destes itinerários, que se tornam formas alternativas de viver a cidade: da apropriação criativa do espaço, à tensão com as novas geografias de cura e sofrimento, à inovação e recriação dos antigos mapas urbanos. A possibilidade de representar os diferentes percursos físicos e simbólico ligados à dor da imigração por meio de imagens, desenhos, mapas, vídeos, instalações plásticas, sons e fotografias permite, por um lado, uma divulgação mais ampla dos resultados da reflexão académica, e, pelo outro, possibilita a criação de impressões e reflexões inesperadas no encontro entre artistas e visitantes. Dentro de um território restrito e no tempo efémero de uma exposição, o público pode explorar caminhos de pesquisa, percursos de sofrimento e cura, itinerários de autorreflexão crítica e revindicação política, alcançando, assim, leituras múltiplas dos fenômenos sociais representados. Como cada ponto de observação é sempre particular e subjetivo, os observadores se podem deslocar no espaço expositivo de forma original, de sua própria vontade, sabendo que o mapa pode ser lido de diferentes direções e que o mesmo caminho pode ser percorrido (e interpretado) de forma diferente por cada observador. Os artistas/antropólogos/imigrantes põem em cena os seus próprios corpos como espelhos mágicos que, ao mesmo tempo, refletem os dramas e as transformações sociais que estão sujeitos a enfrentar e que, nas suas fragmentações, retratam os diferentes estereótipos e olhares que o público encarna. Como espelhos mágicos, não refletem as suas imagens de uma forma unidirecional e verídica, mas, em vez disso, operam uma hibridação criativa, deformando propositadamente as suas aparências. Carimbos e selos, símbolos da burocracia da Fortaleza Europa, reproduzem obsessivamente a foto do passaporte de uma artista, lembrando-a da sua posição irregular e clandestina. Datas, cidades, rupturas e reencontros inscrevem-se no corpo fragmentado de mulheres que não manifestam as suas identidades individuais mas que se apresentam como biocartografias ou diários de viagens. Como feridas, a pele apresenta as marcas de migração; como tatuagens, as memórias da diáspora e de suas lutas incidem a carne, realizando, na dor da incisão, as vivências dos seus protagonistas. Assim, os corpos já não são simplesmente objetos passivos de representação, mas sujeitos políticos que falam por meio da linguagem metafórica e criativa do sintoma e da doença, que manifestam aqui a incorporação da violência estrutural, social e simbólica.

Projeto Healing Market: Chiara Pussetti; Fotografias: Vitor Barros, 2012

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Entendemos aqui, com o conceito de incorporação, a interseção do biológico e do social no âmbito da experiência vivida, como, também, a inscrição e a codificação da memória em forma somática. A incorporação do sofrimento, da alteridade e da memória nos corpos individuais tem, pelo menos, dois aspetos que vale a pena aqui considerar. O primeiro aspeto é objetivo: a marca física deixada pela história em termos de fadiga, violência, deterioração, desgaste, privações. Os corpos despidos que se afirmam frente ao público com a força da biolegitimidade, e os sintomas múltiplos e polissêmicos dos sujeitos protagonistas desta exposição, não constituem somente uma consequência imediata da pobreza ou da exclusão social, mas, antes, refletem o efeito duradouro das opressões históricas, das culturas do terror e das violências do quotidiano. O segundo aspeto é subjetivo. É o rasto, no imaginário coletivo, deixado pela memória em termos de interpretação do mundo social e da construção criativa de metáforas e estratégias narrativas; é a marca da relação incómoda entre o sujeito e a ordem social8. O sofrimento do qual as imagens falam é, antes de tudo, social, isto é, resultado de uma violência cometida pela própria estrutura social: o corpo reflete os efeitos nocivos das relações desiguais de poder que caracterizam a organização social. As imagens aludem, ao mesmo tempo, a uma série de problemas individuais cuja origem e consequência têm as suas raízes nas fraturas devastantes que as forças sociais podem exercitar sobre a experiência humana. A marginalidade, a opressão institucional ou policial, a discriminação, as separações, as perdas e as despedidas estão aqui representadas não como conceitos a serem descritos e verbalizados, mas como vivências emocionais atuadas e sentidas (lembradas) ao nível carnal. Numa metáfora vivida, liga-se, literalmente, a anatomia individual ao corpo social: a rede de músculos, ossos, nervos e sangue reflete a rede das relações sociais. O rosto individual replica-se na repetição obsessiva da linguagem da burocracia e da instituição, nas palavras sempre idênticas do estereótipo e do preconceito. E a subjetividade perde-se na confirmação da comum invisibilidade dos marginais. Cada marca, cada mapa corpóreo, tatuagem ou desenho, elaborados no contexto de uma narrativa que integra sofrimento social e corporal, constitui um comentário moral, uma crítica social, uma reconstrução de histórias individuais e coletivas. A força expressiva do corpo exposto grita as palavras dos que não têm voz. Os trabalhos apresentados entendem, por meio de diferentes estratégias visuais, problematizar de forma crítica os diferentes fatores que contribuem para a definição e a vivência individual do mal-estar, para devolver dignidade a outros idiomas do sofrimento, outros vocabulários da crise, outros registos da subjetividade e do simbólico. A necessidade de repensar e reconstruir as geografias migratórias, os estereótipos e os imaginários que opacizam a singularidade dos sujeitos, os tempos da história, além das suas roturas, para descodificar o complexo enredo entre biografias individuais, memórias coletivas, heranças coloniais e violências económicas e sociais, representa, hoje, uma obrigação teórica, e, sobretudo, política e moral. Os projetos artísticos colaborativos baseados em pesquisas etnográficas têm potencialmente o poder de tornarem-se arenas de denúncia, revindicação e intervenção política9. A consciência de que o projeto será público, que irá receber visitantes de diferentes ambientes, classes, posições sociais, estimula os protagonistas a pensar em como e com que fins e objetivos se dirigir a estes diferentes públicos. Se, como informantes de projetos académicos clássicos, sabem que suas vozes serão ouvidas para um público circunscrito, enquanto autores de um projeto artístico público, aberto à mais ampla sociedade civil, sabem que podem encontrar, na exposição, uma ocasião de reivindicação de direitos. É o caso da instalação Ghetto Six, curada por Lorenzo Bordonaro em colaboração com a comunidade do bairro 6 de Maio, que é um bairro autoconstruído às portas de Lisboa, que abriga, desde o final da década de 1970, uma comunidade de origem maioritariamente Cabo-Verdiana em posição irregular. A instalação – baseada na etnografia efetuada em Cabo Verde e no próprio bairro - apresenta uma crítica tanto às políticas públicas de requalificação urbana que preveem a demolição do bairro e o realojamento da população não clandestina, segundo um esquema de saneamento urbano já aplicado a outras urbanizações espontâneas na área da grande Lisboa, como à precariedade das instalações construídas em amianto e às contradições e violências que caracterizam hoje o Portugal pós-colonial e a Europa de Schengen. Construído a partir de fragmentos das habitações clandestinas, o projeto Ghetto Six - depois da sua exposição no Museu da Cidade - foi reinstalado no seu lugar de 816

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Projeto My body is my history: Cristina Santinho. Desenhos de Sara Serrão, 2012

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origem, o próprio bairro 6 de Maio, até a sua destruição final, símbolo extremo da provisoriedade e da precariedade de espaços e vidas às margens do sistema. A utilização de métodos colaborativos e participativos e práticas artísticas na aquisição e difusão do conhecimento acadêmico reflete a natureza dialógica e processual de encontro etnográfico, e, ao mesmo tempo, cria um intercâmbio dinâmico entre memórias, sonhos, visões, emoções e ansiedades, revelando aspectos da realidade social que permaneceriam invisíveis – se observados apenas através das lentes das ciências sociais – e mudos – se contados apenas nas páginas de monografias acadêmicas. A produção artística baseada em etnografia permite alcançar conhecimento mútuo e reflexões profundas, assim como proporciona uma comunicação sensorial, experiencial e corporal mais ampla dos resultados da pesquisa, envolvendo o público de forma mais abrangente do que a leitura solitária de um texto; e abre a possibilidade de criar mudança social e reivindicação política, dando voz e alma a sujeitos geralmente passivos e silenciados, que não contam as suas próprias histórias e que vivem somente na reprodução que deles é feita.

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Projeto Umbanda and Candomblé: Clara Saraiva; Fotografias: Vitor Barros, 2012

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Projeto Embodied histories: Vitor Barros e Chiara Pussetti; Fotografias: Vitor Barros, 2012


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Projeto The stranger inside: Leticia Barreto; Fotografias: Leticia Barreto, 2012

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Projeto Biocartography. The body as a canvas: Angela Alegria; Fotografias: Angela Alegria, 2012

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Projeto Ghetto Six: Lorenzo Bordonaro; Fotografias: Vitor Barros, 2012

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Projeto My body is my history: Cristina Santinho. Desenhos de Sara Serrão, 2012

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criação Projeto My body is my history: Cristina Santinho. Desenhos de Sara Serrão, 2012

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Referências 1. Stoller P. The taste of ethnographic things: the senses in anthropology. Philadelphia: University of Pennsylvania Press; 1989. 2. Pussetti C. Woundscapes: suffering, creativity and bare life. Practices and processes of an ethnography-based art exhibition. Critical Arts. 2013; 27(5):599-617. 3. Cliffors J, Marcus G. Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: California UP; 1986. 4. Foster H. The artist as ethnographer? In: Marcus G, Myers F, editors. The traffic in culture: refiguring art and anthropology. Berkeley: University of California Press; 1995. p. 302-9. 5. Geertz C. Local knowledge. New York: Basic Books; 1983. 6. Pratt ML. Arts of the contact zone. Profession 91. 1991; 33-40. 7. Barreto L. The stranger inside. In: Pussetti C, Barros V, editors. Woundscapes: maps of suffering and healing. Exhibition catalogue Woundscapes. Lisbon: CRIA Editor; 2012. p. 24-31. 8. Pussetti C. Woundscapes: sofrimento e criatividade nas margens – diálogos entre antropologia e arte. Cad Arte Antropol. 2013; 2(1):9-23. 9. Pussetti C. Os frutos puros enlouquecem: percursos de arte e antropologia. Antropol Rev Cont Antropol. 2015; (38):221-243.

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criação Neste ensaio fotográfico, apresento “Woundscapes. Suffering, creativity and bare life”, uma exibição de arte baseada em etnografia, produzida de forma colaborativa por 11 antropólogos e artistas de diferentes países, cujo trabalho se concentra na reprodução de olhares e estereótipos pós-coloniais e de memórias individuais que são ligadas às respetivas dinâmicas diaspóricas e às estratégias de cura dos imigrantes no amplo Mercado terapêutico da Grande Lisboa.

Palavras-chave: Arte baseada em etnografia. Exposição. Imigração. Sofrimento. Cura. Wounds don’t speak for themselves. Suffering and migrants’ healing strategies through ethnography-based art practices In this photo essay I present “Woundscapes. Suffering, creativity and bare life”, an ethnography-based art exhibition collaboratively produced by 11 anthropologists and artists from different countries, whose work focuses on the reproduction of post-colonial gazes and stereotypes and individual memories that are all connected to their respective diasporic dynamics and to immigrants’ healing strategies in the wider therapeutic market of Greater Lisbon.

Keywords: Ethnography-based art. Public exhibition. Immigration. Suffering. Cure. Ninguna herida habla por sí misma. Sufrimiento y estrategias terapéuticas curativas de los inmigrantes a través de prácticas de arte basado en la etnografía En este ensayo fotográfico, presento “Woundscapes. Suffering, creativity and bare life”, una exposición de arte basada en la etnografía producida a partir de la colaboración de once antropólogos y artistas de diferentes países, cuyo trabajo se centra en la reproducción de las miradas y los estereotipos postcoloniales así como en las memorias individuales que están vinculadas a las respectivas dinámicas diaspóricas y a las estrategias curativas de los inmigrantes en el gran mercado terapéutico de Lisboa.

Palabras-clave: Arte basado en la etnografía. Exposición pública. Inmigración. Sufrimiento. Curación.

Recebido em 21/02/16. Aprovado em 18/04/16.

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DOI: 10.1590/1807-5762201.0353

Errata edição v.19, n.53 p. 387 Onde se lê: Angela Medieros Santi(c)

O correto é: Angela Medeiros Santi(c)


CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal Alcindo Ferla, UFRGS Alain Ehrenberg, Université Paris Descartes, France Alejandra López Gómez, Universitad de la Republica Uruguaia, Uruguai Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa Carolina Martinez-Salgado, Universidad Autónoma Metropolitana, México César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia, Colômbia Charles Briggs, UCSD, USA Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Eunice Nakamura, Unifesp Fernando Peñaranda Correa, UFPr Flavia Helena Miranda de Araújo Freire, UnP Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz George Dantas de Azevedo, UFRN Graça Carapinheiro, ISCTE, Portugal Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr Gustavo Nunes de Oliveira, UnB Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Isabel Fernandes, Universidade de Lisboa, Portugal Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto, UFCE Jairnilson da Silva Paim, UFBa Jesús Arroyave, Universidade del Norte, Colômbia John Le Carreño, Universidade Adventista, Chile José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI José Miguel Rasia, UFPr José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP José Roque Junges, Unisinos Karla Patrícia Cardoso Amorim, UFRN Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Unifesp Lydia Feito Grande, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Luciana Kind do Nascimento, PUCMG

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Luis Behares, Universidad de la Republica Uruguaia, Uruguai Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ Magda Dimenstein, UFRN Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBa Marcelo Viana da Costa, UERN Márcia Thereza Couto Falcão, USP Marcos Antonio Pellegrini, Universidade Federal de Roraima Marcus Vinicius Machado de Almeida, UFRJ Margareth Aparecida Santini de Almeida, Unesp Margarida Maria da Silva Vieira, Universidade Católica Portuguesa, Portugal Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Cristina Davini, OPAS, Argentina Maria del Consuelo Chapela Mendoza, Universidad Autónoma Metropolitana, México Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Inês Baptistella Nemes, USP Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Maricela Perera Pérez, Universidad de la Habana, Cuba Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz Maximiliano Loiola Ponte de Souza, Fiocruz Miguel Montagner, UnB Mónica Lourdes Franch Gutiérrez, UFPb Nildo Alves Batista, Unifesp Patricia Schwarz, Universidad de Buenos Aires, Argentina Paulo Henrique Martins, UFPE Paulo Roberto Gibaldi Vaz, UFRJ Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Raquel Rigoto, UFCE Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Ricardo Sparapan Pena, UFF Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Castro Pérez, Universidad Nacional Autónoma de México, México Roberto Passos Nogueira, IPEA Roger Ruiz-Moral, Universidad Francisco de Vitoria, Espanha Rosana Teresa Onocko Campos, Unicamp Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Stela Nazareth Meneghel, UFRGS Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Tiago Rocha Pinto, UFRN Túlio Batista Franco, UFF


APOIO/SPONSOR/APOYO Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar Famesp Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp

INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EN

. Bibliografia Brasileira de Educação

<http://www.inep.gov.br> . CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades <http://www.dgbiblio.unam.mx> . CCN - Catálogo Coletivo Nacional/IBICT <http://ccn.ibict.br> . DOAJ - Directory of Open Access Journal <http://www.doaj.org> . EBSCO Publishing’s Electronic Databases <http://www.ebscohost.com> . EMCare - <http://www.info.embase.com/emcare> . Google Academic - <http://scholar.google.com.br> . Indice de Revistas de Educación Superior e Investigación Educativa (Iresie) <http://www.iisue.unam.mx/iresie/revistas_analizadas.php> . LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - <http://www.latindex.unam.mx> . LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - <http://www.bireme.org> . Linguistics and Language Behavior Abstracts - LLBA <http://www.csa.com.br> . Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - <http://redalyc.uaemex.mx/> . SciELO Brasil/SciELO Social Sciences <http://www.scielo.br/icse> <http://socialsciences.scielo.org/icse> . SciELO Citation Index (Thomson Reuters) <http://thomsonreuters.com/scielo-citationindex/> . SciELO Saúde Pública <www.scielosp.org.br> . Social Planning/Policy & Development Abstracts <http://www.cabi.org> . Scopus - <http://info.scopus.com> . SocINDEX - <http://www.ebscohost.com/ biomedical-libraries/socindex> . CSA Sociological Abstracts - <http://www.csa.com> . CSA Social Services Abstracts - <http://www.csa.com>

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