Interface Comunicação, Saúde, Educação
APRESENTAÇÃO 7
DEBATES 121 sobre Educação Popular em Saúde Eymard Mourão Vasconcelos
ENSAIOS sobre Família Famílias e individualismo: tendências 11 contemporâneas no Brasil Lia Zanotta Machado Religiosidade, reprodução e Saúde em famílias de 27 pobres urbanos Márcia Teresa Couto Maternidade: transformações na família e nas 47 relações de gênero Lucila Scavone Quase adulta, quase velha: por que antecipar as 61 fases do ciclo vital? Russel Perry Scott
ARTIGOS e RELATOS
A visão de escolares sobre drogas no uso de um 75 jogo educativo Sandra Rebello et al. Saber, agir e educar: o ensino-aprendizagem em 89 serviços de Saúde Maria Alice Amorim Garcia O indivíduo e o coletivo: alguns desafios da 101 Epidemiologia e da Medicina Social Edson Perini et al.
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debatedores Carlos Rodrigues Brandão Eduardo Stotz Eliane Souza José Ivo dos Santos Pedrosa Mônica de Assis
141 entrevista sobre NEUROBIOLOGIA E COGNIÇÃO com Armando Freitas da Rocha 147 LIVROS 153 TESES 157 NOTAS BREVES ESPAÇO ABERTO 161 Implementando as novas diretrizes curriculares para a educação médica: o que nos ensina o caso de Harvard? Adriana Aguiar 167 Una experiencia de evaluación de desempeño en la Cátedra de Odontopediatria Claudia Finkelstein et al. 175 A avaliação de intervenções na interface Saúde/Educação como instrumento de construção do conhecimento Auristela Maciel Lins 181 Psiquiatria: de onde viemos, em que rumo caminhamos Rubens Romano Maciel 185 CRIAÇÃO Projeto Pegapacapá Otávio Valença
Interface Communication, Health, Education
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DEBATES 121 on People Education in the Health Eymard Mourão Vasconcelos
ESSAYS on Family Family and individualism: contemporary tendencies in 11 Brazil Lia Zanotta Machado Religiosity, reproduction and health among 27 underprivileged urban families Márcia Teresa Couto Motherhood: transformation in the family and in 47 gender relations Lucila Scavone Quasi adult, quasi old: why antecipate life cycle 61 phases? Russel Perry Scott
ARTICLES and REPORTS
Student views on drugs in the use of an 75 educational game Sandra Rebello et al. Knowledge, action and education: teaching and 89 learning at healthcare centers Maria Alice Amorim Garcia The individual and the collective: challenges in the 101 fields of Epidemiology and Social Medicine Edson Perini et al.
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debatedores Carlos Rodrigues Brandão Eduardo Navarro Stotz Eliane Souza José Ivo dos Santos Pedrosa Mônica de Assis
141 interview on NEUROBIOLOGY AND COGNITION with Armando Freitas da Rocha 147 BOOKS 153 THESES 157 BRIEF NOTES OPEN SPACE 161 Implementing the new curricular guidelines for medical education: what does the Harvard case teach us? Adriana Aguiar 167 A performance appraisal experience in the discipline of Pediatric Dentistry at the School of Dentistry Claudia Finkelstein et al. 175 The evaluation of social intervention as a potential knowledge building tool Auristela Maciel Lins 181 Psychiatry: where do we come from, and where are we heading? Rubens Romano Maciel 185 CREATION Pegapacapá Project Otávio Valença
APRESENTAÇÃO
Família, saúde, educação: articulações entre o público e o privado Neste número, Interface abriga na seção Ensaios estudos com enfoques teóricos distintos, provenientes de diferentes campos do saber centrados na instituição familiar, que enveredam pelas áreas da Saúde e da Educação, com elas estabelecendo um diálogo produtivo que redunda em reflexões instigantes acerca das relações entre essa instituição, de cunho privado, e a esfera pública. A especificidade deste número, no entanto, reside na unidade que perpassa os trabalhos, tanto aqueles dedicados à discussão de diferentes aspectos da vida doméstica, quanto os demais textos. Essa unidade advém do modo como os temas dos estudos são analisados, tendo como referência a desigualdade social e a diversidade cultural presentes na sociedade brasileira, que afetam as formas de organização familiar, as possibilidades de acesso à educação formal, as modalidades de cuidados com a saúde e de utilização dos serviços públicos de saúde. Os vários trabalhos procuram apreender a singularidade de situações vividas pela população pobre no âmbito da vida privada e na relação com o domínio público. Os textos sobre família, fruto de pesquisas e de reflexão teórica, suscitam indagações acerca de diferentes dimensões da vida doméstica, em especial da população pobre. As análises consideram a família como instituição privada responsável pela reprodução social, em sua dupla dimensão, de reprodução biológica e de socialização, como transmissora de padrões culturais para ordenar a vida social, o que inclui a educação informal. A família constitui-se também como grupo social em que a afetividade - tenha ela caráter positivo, ou negativo - e a sociabilidade podem ser expressas de modo mais livre do que no domínio público e como unidade que oferece amparo, proteção e cuidados à saúde de seus integrantes, sobretudo crianças e idosos. Paralelamente, a instituição familiar configura-se como local de tensão entre interesses e anseios individuais dos sujeitos que a compõem e do grupo como um todo, o que torna a vida doméstica, ao mesmo tempo, um núcleo protetor e incandescente. Todos os trabalhos reunidos na seção Ensaios documentam, ainda, mudanças diversas que vêm ocorrendo na organização da família e articulam a análise interna da unidade doméstica com processos macrossociais que ocorrem no plano econômico e na esfera do Estado. As modificações revelam a heterogeneidade das formas de arranjos domésticos,
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apreensíveis por indicadores demográficos, referidos ao tamanho da família, ao número de filhos e ao aumento de famílias monoparentais. A oposição, ou antes, a ambígua convivência entre familismo e individualismo, presente nos vários textos, constitui questão central para a reflexão sobre a instituição familiar, pois remete à possibilidade de escolhas individualizadas no interior da unidade doméstica, que podem se contrapor a aspirações de cunho grupal. Dentre várias situações em que esta alternativa pode surgir, encontra-se a decisão acerca da reprodução biológica que, em função da expansão de tecnologias reprodutivas - contraceptivas e conceptivas -, tende a deslocar para as mulheres a possibilidade de escolha da maternidade. Tal escolha, contudo, é pautada por desigualdades sociais e raciais e por diferenças culturais, inclusive religiosas, como é documentado no comportamento reprodutivo de católicos e pentecostais, e sofre ainda interferência do Estado, cuja política demográfica, em particular quando se refere à população pobre, é de controle da natalidade. Ademais, o exame de dados referentes à reprodução biológica de mulheres jovens mostra aumento do número de filhos, enquanto diminui, no plano geral, a taxa de fecundidade, indicando que mulheres jovens antecipam fases do ciclo vital, iniciando-se precocemente na fase reprodutiva. Já em outra fase do ciclo vital, mulheres “idosas jovens”, muitas delas abaixo de cincoenta anos, optam pela participação em grupos de idosos, antecipando a transição para outra fase do ciclo vital. Em ambos os casos, trata-se de escolha individual, essencialmente feminina, que tende a opor-se ao princípio do familismo e que, por isso mesmo, suscita indagações bastante interessantes acerca das relações entre gêneros. A problemática da educação em sua relação com a promoção da saúde e a prevenção da doença está presente em textos que apontam a necessidade de os profissionais da área da Saúde conhecerem o universo simbólico da população pobre que, ao apropriar-se de padrões culturais dominantes, não os reproduz integralmente, mas os reelabora em um permanente e criativo processo de renovação cultural. Nesse sentido, os textos que tratam da Educação Médica e da Educação Popular trazem material bastante sugestivo para a reflexão acerca da necessidade de as famílias das classes populares terem acesso à educação formal e informal relacionada a problemas de saúde, de consumo de drogas e, fundamentalmente, ao direito à saúde. Afora isso, informações sobre cuidados com a saúde podem ser difundidas, utilizando-se como instrumento pedagógico, recursos lúdicos, tais como o “Jogo da Onda”, por meio do qual é possível estimular a reflexão e o debate de jovens acerca do consumo de drogas. A apresentação do projeto Pegapacapá encerra este volume, retomando a dimensão lúdica da cultura, já assinalada no “Jogo da Onda”, presente na forma como o conhecimento médicocientífico é articulado à cultura popular do agreste pernambucano para informar, sobretudo homens, acerca das DST/AIDS e de questões referentes ao comportamento reprodutivo. As indagações colocadas por esse projeto permitem retomar a reflexão acerca do vínculo entre família, saúde e educação e, simultaneamente, pensar a relação entre a esfera privada e o domínio público. Para finalizar, deve-se considerar que um elemento comum, que tende a unificar as análises sobre a instituição doméstica e sobre outros temas, estabelecendo articulação entre a esfera privada e a pública, é o questionamento sobre as desigualdades presentes na família, que se reporta a outros tipos de desigualdade, gerados na esfera pública e relacionados à luta por direitos, em particular da população pobre, à educação e à saúde. Geraldo Romanelli Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo Janeiro de 2001
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PRESENTATION
Family, healthcare and education: articulations between the public and private spheres In the Essays section of this issue, Interface brings its readers studies based on different theoretical bases, coming from various fields of knowledge centered on the institution of the family. They penetrate the fields of healthcare and education, establishing a productive dialogue with them, and one that leads to instigating thinking as to the relations between this institution, of a private nature, and the public sphere. The specificity of this issue, however, lies in the theme that underlies all the work, both that which discusses several aspects of home life, and the others. This underlying unity results from the way in which the studied themes are analyzed, as the frame of reference for all of them is the social inequality and cultural diversity of Brazilian society, both of which affect family organization and the possibilities of gaining access to formal education, as well as types of healthcare and usage of public healthcare services. These many essays try to understand the singularity of the situations experienced by the underprivileged population within the scope of private life and in their relation with the public sphere. The texts on the family, which are the fruit of research and theoretical reflection, give rise to questions concerning the different dimensions of home life, particularly among the poor. The analyses look upon the family as a private institution responsible for social reproduction, in its dual dimension, i.e., biological reproduction and socialization, as well as a vehicle that conveys cultural standards that order social life, therein included informal education. The family is also a social group in which affectivity, whether positive or negative, and sociability may be expressed more freely than in the public sphere, and a unit that offers support, protection and healthcare to its members, especially children and the aged. In parallel, the institution of the family is configured as an arena of tension between the many interests and desires of the individual members that make up the group as a whole. Thus, domestic life takes place in a nucleus at once protective and fiery. All of the papers in the Essays section illustrate, furthermore, the many changes that have become manifest in the organization of the family, articulating an internal analysis of the domestic unit with macro social processes that take place in the economic plane and within the sphere of the State. The changes reveal the heterogeneity of domestic arrangements
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grasped through demographic indicators, concerning the size of families, the number of children and the growth of single parenthood. The opposition, or rather, the ambiguous coexistence of familism and individualism, which is present in many of the texts, is a central issue for reflection on the institution of the family, as it leads to the possibility of individual choices within domestic unity, in contrast to aspirations of a group nature. Within the several situations that may give rise to this alternative, there is the decision concerning biological reproduction that, because of the expansion of reproduction technologies (both contraceptive and conceptive) tends to shift toward women the possibility of choosing motherhood. This choice, however, is related to social and racial inequalities as well as to cultural differences, including religious ones, as illustrated by the reproductive behavior of Roman Catholics and Pentecostal or fundamentalist individuals. Moreover, this choice is also subject to State interference, as the government’s demographic policy, particularly as regards the underprivileged, focuses on birth control. Moreover, an examination of the data concerning the biological reproduction of young women shows a rising number of children, while, in overall terms, the rate of fertility is declining. This indicates that young women are anticipating stages of their life cycle, entering the reproductive phase precociously. In another stage of their life cycle, “young elderly” women, many under fifth, choose to take part in senior citizen groups, anticipating the transition to another stage of their life cycle. In both cases, the behavior reflects individual, essentially feminine choices, that tend to counter the principle of familism and that, for this very reason, raise rather interesting questions concerning gender relations. The problematics of education in its relation with the encouragement of healthcare and the avoidance of disease is present in texts indicating the need for healthcare professionals to become aware of the symbolic universe of the underprivileged population that, in embracing dominant cultural patterns, does not reproduce them faithfully, but rather reprocesses them in an ongoing and creative process of cultural renovation. To this end, the texts that deal with medical education and popular education raise suggestive ideas for reflection, concerning the need of lower class families to gain access to both formal and informal education related to healthcare problems, substance abuse and, essentially, to the right to healthcare. Besides this, information on healthcare can be publicized, using entertaining teaching methods such as the “Wave Game”, through which it is possible to encourage reflection and debate on the consumption of drugs. The presentation of the “Pegapacapá” project brings this volume to its end, resuming the playful dimension of culture (already highlighted in the “Wave Game”), which is presented in the form of medical and scientific knowledge associated with the popular culture of the hinterlands of the state of Pernambuco, in order to inform people, and women in particular, about sexually transmitted diseases, AIDS and issues related to reproductive behavior. The investigations of this project allow us to resume reflection on the link between the family, healthcare and education while, at the same time, thinking about the relation between the private and the public spheres of life. Finally, one should take into account a common element that tends to unify the analyses on the institution of the home and other themes, establishing an articulation between the private and public spheres. We are referring to questioning the family inequalities, which relate to other types of inequality, generated in the public sphere and connected to the struggle for the right to education and healthcare, in particular among the underprivileged. Geraldo Romanelli The Ribeirão Preto School of Philosophy, Sciences, Languages and Literature University of São Paulo January 2001
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Famílias e individualismo: tendências contemporâneas no Brasil
Lia Zanotta Machado1
MACHADO, L. Z. Family and individualism: contemporary tendencies in Brazil. Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.4 , n.8, p.11-26, 2001.
This paper presents issues pertaining to the current debate on the present and the future of the “institution of the family”, and of the “value” of the family vis à vis the generalization of individualism. In Brazilian society, the code of personal relations transforms relatives and the family into a value that permeates all of society, and that is articulated with the individualist code, leading to a variety of kinds of family organization that abide by the principles of reciprocity and hierarchy, according to class situations and positions. The frail generalization of the conditions of citizenship can transform the principle of individual equality of rights into the universalization of anonymity, of indifference and of desensitization. KEY WORDS: Family; individualism; reciprocity.
Este artigo apresenta pontos de reflexão sobre o debate atual em torno do presente e do futuro da “instituição família” e do “valor” da família diante da generalização do individualismo. Na sociedade brasileira, o código relacional faz da parentela e da família um valor que atravessa toda a sociedade, e se articula com o código individualista, constituindo variedades de formas de organização familiar que obedecem a princípios de reciprocidade e hierarquia, de acordo com as posições e situações de classe. A fraca generalização das condições cidadãs, pode transformar o princípio da igualdade individual de direitos na universalização do anonimato, da indiferença e da dessensibilização. PALAVRAS-CHAVE: Família; individualismo; reciprocidade.
1 Professora do Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília, UnB. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher/NEPeM/UnB. <liazan@uol.com.br>
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LIA ZANOTTA MACHADO
Este trabalho visa apresentar alguns pontos de reflexão e de discussão sobre o debate atual em torno do presente e do futuro da “instituição família” e do valor da família enquanto categoria classificatória. A cena de fundo do debate é a suposta oposição entre o valor do individualismo e o valor da família. De um lado da arena, estão postos os estudiosos que atribuem a diversidade de formas familiares, a retração ou expansão do valor e do lugar da família numa sociedade, a um paradigma cultural fundante e, do outro, os estudiosos que atribuem as diversidades das formas de família e dos valores atribuídos a uma multiplicidade de causas e de contextualizações, em que uma delas passa pelo modo pelos quais os Estados permitem substituir ou não as funções familiares. Busco aqui afirmar que o grande desafio é aprofundar o debate articulando os argumentos contidos numa e noutra posição. Não se deve deixar que a disposição da arena reifique e simplifique o debate e se parta para uma exaltação do “familismo” ou do “individualismo”. Nada há de seguro e inercial na longa duração do valor da família no Brasil, ou de garantia na pretendida crença de que o individualismo das sociedades desenvolvidas reforme em um só sentido linear o futuro das formas e dos valores da família. As interrogações atuais sobre as tendências contemporâneas das formas de famílias e de parentelas, e das modalidades de se conceber o valor da família na sociedade brasileira, estão inspiradas na grande indagação sobre o futuro da instituição e das parentelas no mundo ocidental diante da expansão do individualismo. O valor conferido ao individualismo no mundo ocidental parece estar pondo em cheque o valor atribuído à família como princípio social balizador. Uma solução lógica e cômoda é a de resolver o impasse, dizendo que se trata agora de aumentar o espaço da “individualização nas organizações familiares”. As tensões das formas familiares e suas transformações são muito mais profundas. Contudo, é certo que, mesmo sem minimizar a diversidade deste chamado mundo ocidental, o crescente processo de individualização consolidou as sociedades de direitos individuais e os “Estados de bemestar”. O individualismo, na sua versão da alta modernidade, produziu inequívocos efeitos nas formas familiares, nos seus princípios e nos valores conferidos à esfera familiar. A situação brasileira, tal como a de toda a América Latina, parece mostrar, em
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FAMÍLIAS E INDIVIDUALISMO: TENDÊNCIAS...
princípio, pelo menos dois pontos diferenciais em relação ao mundo europeu e norte-americano. De um lado, nem no Brasil, nem nas nações hispanoamericanas, se alcançou o Estado de bem-estar ou se generalizaram os direitos cidadãos, tal como, por diferentes percursos, o “mundo ocidental desenvolvido” alcançou. De outro, o paradigma cultural ibero-americano que informa a construção social das formas de família, da sociabilidade e da noção de indivíduo apresenta historicamente forte enraizamento católico, em certo grau arabizado. Muito se distancia também do paradigma cultural luterano-calvinista preeminente no mundo anglo-saxão, mas também presente, em diferentes graus, na Europa Continental, especialmente na não latina. Marca, ainda, sua distância com o paradigma laico, jacobino e iluminista do mundo francês, ainda que tenha sido fortemente permeado pelo romantismo e pela cultura sulina mediterrânea . François de Singly (2000), sociólogo francês, não duvida das mudanças que essa instituição (a família) conheceu e conhece ao longo da segunda metade do século XX - sobretudo nos países ocidentais: o decréscimo dos casamentos, das famílias numerosas, o crescimento das concubinagens, dos divórcios, das famílias pequenas, das famílias monoparentais, recompostas, do trabalho assalariado das mulheres. (p.13)
Com certeza, ao pensar o mundo ocidental, está pensando o mundo ocidental desenvolvido e não somente o francês, mas nada se pode inferir sobre se está ou não incluindo a América Latina. O autor encontra as orientações teóricas explicativas de tais mudanças no crescimento, desde o início do século XX, da centralidade da lógica do grupo familiar em torno do amor e da afeição, grupo estruturado na conjugalidade (com atribuições diferenciais por sexo) e na filiação. A partir dos anos sessenta, as vê, de um lado, no deslocamento da importância do grupo para a importância dos membros do grupo, da crescente idéia de que o amor passa a ser condição da permanência da conjugalidade, e da tendência a não diferenciação de funções por sexo nas relações amorosas e conjugais; de outro, na substituição de uma “educação retificadora” (corretora e moral) das crianças por uma “pedagogia da negociação”. Não estamos longe da interpretação do sociólogo britânico Giddens (1991 e 1992) da novidade do surgimento na “alta modernidade” do “amor confluente” e da “relação pura” em que as diferenças de gênero teriam cada vez menos lugar na conjugalidade, e onde o “amor” também passaria a ser condição para a permanência dos laços conjugais, dissolvendo-se as tradicionais obrigações e diferenciações de funções entre os parceiros amorosos. Estas duas formas de interpretação sobre os efeitos dos valores do individualismo nos arranjos amorosos e familiares assemelham-se notavelmente. Estão referidas, respectivamente, aos mundos francês e britânico. Subentendem o mesmo substrato de pertencerem ao “mundo ocidental desenvolvido”, e não indagam, nenhum, nem outro, sobre a importância metodológica de buscar as “diferenças” nacionais, regionais ou
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LIA ZANOTTA MACHADO
de classe. Não é prioritária a atenção sobre os possíveis processos diferenciais ou específicos de constituição de modalidades de famílias que estariam em marcha, subsumidos ou submergidos nas tendências estatísticas gerais aludidas por Singly. Estes resultados estatísticos podem estar respondendo à multiplicidade de paradigmas culturais de âmbitos mais específicos. Os intelectuais dos países centrais do mundo ocidental talvez se vejam, predominante e acriticamente, como um mundo homogêneo “no que importa”, relegando-se as diversidades a “preferências ou modalidades nacionais, locais ou de classe”, que não são suficientes para colocar em risco as tendências gerais modernas e homogeneizadoras do mundo ocidental. Quando encontram variedades que importam, e que constituem diferenças que se distanciam dos valores modernos dos modelos de família, amor, sociabilidade e indivíduo, relegam tais variedades aos mundos dos outros: “etnias” ou “imigrantes”. Quanto à diversidade de padrões familiares de acordo com a posição e situação de classe, parece que, se elas existem, “não estariam para ficar”, mas estariam apenas num momento que precede o passo adiante na direção da reafirmação de um mesmo padrão moderno. Contudo, muitas tensões e modos diversos de vivências e arranjos podem estar sendo encobertos. A título de curiosidade, muito me impressionou a discussão britânica e francesa em programas2 de televisão sobre os valores contrastivos da visão positiva da “pedagogia da palmada” (especialmente sustentada por pais e mães de extração social operária e popular) em confronto com a visão negativa (especialmente sustentada por pais e mães de setores médios) que, em nome da “pedagogia da negociação”, classifica na mesma categoria disciplinadora e arcaica, a palmada e o espancamento (diferença só de grau). Os estudos, não poucos, que se fizeram e se fazem nos países centrais europeus sobre as diferentes formas e modalidades locais ou de classe de arranjos familiares, parecem não mais ser capazes de confrontar a atual e reiterada primazia de um geral e moderno modelo familiar, quer francês ou britânico, quer europeu e norte-americano, que, é claro, admitiria variedade de versões, sem que elas se constituam um dilema para indagar sobre a modernidade. No meu entender, está longe o efeito e o lugar simbólico dos estudos históricos britânicos sobre a especificidade das classes operárias. Possivelmente, a expectativa é a de que as diferenças se minimizem ou se dissolvam no ar. E talvez o façam. No meio intelectual brasileiro, como já demonstraram vários estudiosos, as Ciências Sociais e a História sempre se perguntaram sobre as especificidades brasileiras, “o que faz do Brasil, Brasil”, e sobre as diferenças sociais e culturais no próprio âmbito da sociedade brasileira espelhando, dessa forma, um intento de construir a idéia de nação e uma maneira de construir a idéia de que a nação engloba diversidades. A construção da especificidade jamais se pensou como não se incluindo no “mundo ocidental”, entendimento que não é pacífico para intelectuais dos países ocidentais desenvolvidos, que nos vêem, muitas vezes, como exóticos, e certamente como “específicos”. Assim, enquanto alguns intelectuais buscavam o padrão ou modelo familiar brasileiro, outros buscavam a diversidade de modalidades e modelos de família no Brasil, por classes e por regiões.
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Programas de televisão (de auditório) vistos no decorrer do meu estágio pósdoutoral em Paris, com algumas idas a Londres, durante os anos de 1993 e 1994.
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Historiadores, sociólogos e antropólogos brasileiros já destacaram a importância da “família patriarcal” tal como caracterizada por Gilberto Freyre (1980) em “Casa-grande e Senzala” e em “Sobrados e Mocambos” (1951), para a construção social de um tipo de modelo familiar que fez efeito em toda a sociedade colonial, mas também no período da Independência, da República até a contemporaneidade, senão para impor uma mesma forma de família, mas para instaurá-la como modelo Frida Kahlo e família, 1926 referencial. Enquanto Eni de Mesquita Samara (1983 e 1987) e Mariza Correa (1982) enfatizam a diversidade de arranjos e modelos em toda a história colonial e moderna, enfraquecendo a idéia de uma família monolítica gilbertiana de Casa-Grande e Senzala ou de Sobrados e Mocambos, Ângela de Almeida (1987 e 1993) e Roberto da Matta (1985 e 1987) enfatizam a dominância do modelo patriarcal gilbertiano, não só na história colonial como na moderna e contemporânea. Correa e Samara ressaltam como a concubinagem e as famílias monoparentais são presença constante em toda a época colonial, perdurando como “costumes” nas classes populares nos séculos XIX e XX. Samara (1981) lembra-nos que o casamento em São Paulo do século XIX, “era uma opção para apenas uma parcela da população, apesar das argumentações da Igreja e ameaças de punição” (p.32). Trabalhos como o de Bilac (1978) confirmam a importância do tratamento focado na diversidade da situação de classe. Para Almeida (1987), o modelo patriarcal gilbertiano é referencial, faz parte da formação brasileira e é este modelo que se “casa” posteriormente com o modelo da família nuclear burguesa, “que será reapropriado e adaptado pela mentalidade da família patriarcal” (p.63) . Da Matta (1987) entende por modelo patriarcal brasileiro, a parentela de mais de duas gerações, com agregados, que age de modo corporado quando em crise e possui uma chefia indiscutível, bem como recursos de poder que o grupo cuida de manter e distribuir com cuidado e decisão, o que faz também com que esses grupos possam eventualmente chegar ao poder por meio do uso de relações pessoais. (p.119-20)
Para ele, este modelo é estruturador de toda uma concepção hierárquica de formas de famílias, completas umas e incompletas outras. A incompletude (famílias monoparentais, famílias sem agregados) das periféricas se deve a sua função de “sustentar” e “servir” às primeiras. Da Matta vai além. Entende que no Brasil o valor da família como prestígio se estende por toda a sociedade . “Quem não tem família já desperta pena antes de começar o entrecho dramático; e quem renega sua família tem, de saída, a nossa mais franca antipatia” (1987, p.125). O valor da família gira em torno do valor metafórico da “casa” e que chega a constituir um princípio ordenador quase cosmológico: o “mundo da casa” que é percebido como distinto,
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muitas vezes oposto ao “mundo da rua”, mundo da universalidade de direitos, mas também da impessoalidade (1985). A interpretação de que um modelo cultural relacional e hierárquico de sociabilidade se instituiu na sociedade brasileira colonial e permaneceu interrelacionado aos processos posteriores de instituição e construção de um modelo igualitário e individualista em suas diferentes fases está presente em vários autores brasileiros. Especialmente entre antropólogos que, de uma forma ou outra, retomam as indagações teóricas de Dumont (1966 e 1977) na esteira de Mauss (1974). Luiz Fernando Duarte (1986) enfatiza os aspectos “holistas” e “relacionais”, pouco ou nada “individualistas” das classes trabalhadoras. Cynthia Sarti (1996) enfatiza a especificidade do paradigma cultural da família como valor moral entre os “pobres e trabalhadores”, centrado no princípio da reciprocidade e das obrigações, com preeminência do todo da família e da parentela sobre os indivíduos. Gilberto Velho (1981, 1986 e 1987) enfatiza o valor do individualismo como específico das camadas médias. Se as relações familiares e de parentesco continuam a ser referenciais para as camadas médias, são muito mais dependentes de um fluxo e refluxo e de um acionar destas relações que se percebem como resultado da vontade ou interesse do indivíduo. Ouvidos o conjunto desses autores, tudo se passa como se a força e o valor dado à parentela estendida enquanto família, e o valor da família como princípio instituidor de uma moral, de prestígio e poder fossem tanto mais preeminentes quanto mais nos aproximamos dos segmentos das classes altas e elites políticas e quanto mais nos aproximamos das classes populares. Para as classes populares, ou “pobres e trabalhadoras”, o valor da família é fundamentalmente instituidor de uma moralidade estabelecida por um conjunto de regras de reciprocidade, obrigações e dádiva. Para as classes altas, o valor da família é instituidor de um comportamento “corporado” da parentela estendida em nome do qual se dá um exercício privilegiado de recursos políticos e da transformação de recursos de capital social em capital econômico e político e vice-versa. Caberia às camadas médias serem as depositárias dos valores mais individualistas e mais refratários ao valor da família como valor englobante. Para elas, o valor da família continua a instituir prestígio, relativizada pelo lugar do valor individualista como instituidor primordial de prestígio. Quanto a mim, tenho Picasso e a esposa Jacqueline, 1967 trabalhado com a co-existência de um código relacional ancorado nas noções de honra, reciprocidade e hierarquia, e de um código individualista. (Machado, 1985; 1997; 1999). O breve desenho desses modos diferenciados de a família se apresentar, como valor, para as classes altas, médias e populares, tal como absorvo da leitura do conjunto dos autores acima referidos e das pesquisas que venho empreendendo, pode ser um dos fios norteadores para analisar as transformações da contemporaneidade brasileira e mundial e de suas organizações familiares, contextualizando as diferenças de sentido que a expansão do individualismo como valor assume. A co-existência dos dois códigos, o relacional e o individualista, no meu entender, atravessa, assim, toda a sociedade, constituindo variedades de
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FAMÍLIAS E INDIVIDUALISMO: TENDÊNCIAS...
Picasso e os filhos Claude e Paloma
formas de articulação e de preeminência de um ou outro código de acordo com as posições e situações de classe. O desafio metodológico é pensá-las nos diferentes segmentos sociais e nas diferentes temporalidades. Outro é também o desafio de não tornar o sentido do individualismo monolítico, diferenciando-se, no mínimo, a presença de uma noção de indivíduo centrada nos direitos de cidadãos de outra centrada nos interesses auto-referidos e no valor da “escolha” e opção auto-direcionada. Se prezo profundamente o estudo das diferenças e da pluralidade de modalidades de arranjos familiares, estou, por outro lado, totalmente de acordo em afirmar a especificidade brasileira face ao “mundo ocidental central” da importância da presença intensa do “código relacional hierárquico”, como uma das matrizes da sociabilidade brasileira, que se condensa no imaginário do “familial” e do “mundo da casa”. É a tradução brasileira de sua formação a partir de um paradigma cultural ibérico, arabizado e mediterrâneo, construindo-se numa sociedade colonial e escravocrata, e depois, numa sociedade capitalista periférica que se conservou extremamente desigual e com pouca generalização dos direitos da cidadania igualitária e individual. No Brasil, tais análises antropológicas fazem eco a historiadores também brasileiros que caminham em torno da história das mentalidades, como Margareth Gonçalves (1987), e de sociólogos e psicanalistas, como Costa (1983) que, geralmente fundamentados em Foucault (1984 e 1985), buscam as distintas “formações discursivas”. Sem dúvida, são intelectuais franceses e anglo-saxões predominantes na construção metodológica das Ciências Sociais e da História no Brasil. A diferença que venho apontando aqui, entre as perspectivas dos intelectuais dessas correntes de pensamento, conforme se situem na ótica dos países centrais ou na ótica brasileira, é que no Brasil utilizam-se tais ferramentas para marcar não só as distinções temporais, mas também as espaciais, construindo-se, assim, uma pluralidade de modelos que operam num mesmo tempo histórico. A contemporaneidade brasileira dos arranjos familiares e do valor da família é, assim, também pensada e suposta como plural. Enquanto isso, prioritariamente, nos países centrais, os intelectuais dessas mesmas correntes, seus fundadores, enfatizam as marcas distintivas temporais. Referindo-se ao século XX na França, Singly (2000) nomeia duas modalidades de famílias modernas. A ‘família moderna 1’, do período que vai do início do século XX até os anos sessenta - caracterizou-se sobretudo pela construção de uma lógica de grupo, centrada no amor e na afeição.” (...) “A ‘família moderna 2’ se distingue da precedente pelo peso maior dado ao processo de individualização. A família se transforma em um espaço privado a serviço dos indivíduos. Isso é perceptível através de numerosos indicadores do nível da relação conjugal, com a maior independência das mulheres, a possibilidade do divórcio por consentimento mútuo (na França, em 1975), a lei de 1970 que dá fim à autoridade parental, e no nível da relação pedagógica, com o desenvolvimento da negociação das necessidades da criança, de
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novas formas de pedagogia pelas quais a natureza da criança deve ser respeitada mais do que modificada (no período precedente, a educação moral deveria retificar a natureza imperfeita da criança). (p.15)
Com certeza, Singly (2000) é devedor da clássica análise de Philipe Ariès (1981), que situa no século XIX a novidade da instauração de uma família que se quer nuclear e que institui os novos sentimentos da maternidade e da criança, rompendo simbolicamente com a idéia de senso comum da imemorialidade de uma permanente família patriarcal extensa, em que não só a autoridade masculina era imemorial, como o eram os sentimentos de maternidade e afeição em relação à criança. A “família moderna 1”, referida por Singly (2000) parece ser a continuidade da família do século XIX de Ariès (1981). Singly (2000) aponta que a “família moderna 2” guarda da precedente a mesma lógica do amor que agora se impõe com mais intensidade. Deixa de apontar, no entanto, a força das tensões entre as diferentes lógicas presentes na primeira e pensadas como excluídas da segunda: a tensão entre a lógica do grupo e a do indivíduo; a tensão entre a divisão hieráquica de gêneros e a divisão igualitária no âmbito da conjugalidade, e ainda a tensão entre a idéia de uma educação moral retificadora da criança e a da pedagogia da negociação. Tais tensões podem estar organizando distintas formas de arranjos. A idéia de tensões é substituída pela idéia da passagem de uma lógica a outra centrada na escolha e na conscientização de “Sophie”, personagem de romance que ilustra o nascimento do “eu individualizado”. O “eu antigo”, o “eu dócil” se transformam em um “eu só” e um “eu com”. Com certeza estas tensões estão presentes no mundo ocidental desenvolvido, constituindo possivelmente diferenças no interior das tendências de formas familiares e dos valores dados à família. No Brasil, as diferenças seriam a “nata” das análises. Na França, o forte da análise é marcar a distinção temporal da “última forma da modernidade da família”. Duas linhagens nos estudos de família são dominantes: uma enfatiza a estrutura e a organização das famílias e outra focaliza a família enquanto valor. Os estudos de família no Brasil também se organizam em torno dessas duas perspectivas. Na interface das mesmas emerge o grande desafio interpretativo das articulações entre elas. Acredito que este é, atualmente, um dos mais importantes objetivos dos estudos sobre família: a interlocução entre as análises que enfocam a diversidade e as mudanças da estrutura e da organização familiar e as análises que enfatizam o lugar de valor que “a família” e os modelos de família ocupam numa dada sociedade ou segmento social. Esta interlocução supõe e demanda uma maior proximidade e debate entre as análises de cunho mais quantitativo e as análises mais qualitativas. Esta tendência apresenta à primeira vista vários percalços. As questões suscitáveis pela análise parcial e preliminar de uma única tabela com dados nacionais sobre “família” de 1999, comparados aos de 1995, obtidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 1995; 1999), podem servir de estratégia para apontar a diversidade de formas possíveis de construir e configurar as tendências contemporâneas das famílias no Brasil.
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Uma primeira e ingênua leitura poderia facilmente entender os dados da tabela intitulada “Famílias e Pessoas Residentes em Domicílios Particulares, por Condição de Família, segundo algumas Características”, como a comprovação de que o Brasil caminha linearmente em direção ao padrão da “família moderna 1 ou moderna clássica”. E, talvez já adentrando na direção ao padrão da “família moderna 2 ou da alta modernidade”. Comparando-se 1995 e 1999, o número médio dos residentes em domicílios particulares decresce de 3,6 para 3,4. Este número é tomado como indicador do “tamanho médio da família”, já que a coabitação na unidade domiciliar se dá privilegiadamente em torno das relações conjugais, filiais e de parentes afins ou consangüíneos dos chefes: os residentes não parentes, nem filhos, nem cônjuges dos chefes, representam apenas 0,9% dos residentes em 1995 e 0,3% em 1999. As famílias com chefias monoparentais, isto é, sem cônjuge residente no domicílio, crescem de 29,33% para 31,43%. Tanto em 95 quanto em 99, a maioria das chefias monoparentais é de mulheres. Contudo, de forma contrastiva, aumenta proporcionalmente o número de mulheres chefes que passa a informar a presença de um cônjuge no domicílio. Se em 1995 para cada chefia masculina correspondia a taxa de coabitação conjugal de 0,91, e para cada chefia feminina a baixíssima taxa de coabitação conjugal de 0,03; em 1999, a taxa de coabitação conjugal em referência à chefia masculina apresenta um leve decréscimo para 0,90 e a taxa em referência à chefia feminina tem acréscimo ligeiramente mais significativo para 0,09. Apoiando-se na diminuição do número médio de filhos por chefe presente no domicílio e na relativa continuidade majoritária da coabitação de cônjuges no domicílio, pode-se chegar a afirmar a consolidação da “família moderna 1”. Com certeza, a centralidade do valor da divisão hierárquica de gênero no “contrato conjugal” tradicional demanda um provedor para cada novo casal que institui um novo domicílio e assim se dá uma retração da hierarquia intergeracional. Este contrato conjugal tradicional em diferentes vertentes é majoritário entre segmentos de classes populares e médios. Mas, há aqui sentidos distintivos. É pouco verossímel, dados os resultados de várias pesquisas qualitativas, supor nos estratos populares brasileiros a ocorrência da mesma ruptura, presente nos países centrais e nas camadas médias brasileiras, entre o espaço íntimo do domicílio e a rua , e supor ainda o simultâneo esmaecimento da idéia de parentela. O processo de transformar as relações de vizinhança em relações de parentesco e vice-versa (Machado, 1985b; Sarti, 1996) acaba por instituir a noção de “pedaço” (Magnani, 1984), território simbólico de parentes e conhecidos que faz avançar o mundo da família e dos princípios relacionais sobre o mundo da rua e dos princípios vivenciados pelas classes populares como o do anonimato, da indignidade e da indiferença . Apoiando-se no crescimento das famílias monoparentais, e em outros dados relativos ao grande Modigliani, 1902 fevereiro, 2001
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número de uniões consensuais no Brasil, poder-se-ia supor, talvez, a presença de características da “família moderna 2”, gestada pela idéia do “amor confluente” da alta modernidade. Contudo, este dado aparece logo como inverossímel, pois supõe a presença de uma intensificação e generalização da idéia da autonomia e de um espaço interior e íntimo da individualidade que não parece presente na maior parte das camadas populares que são a maioria da população. Tais valores correspondem mais ao individualismo tal como generalizado nos segmentos médios da sociedade, escolarizados e psicologizados. Contudo, não é possível descartar a presença, nesses grandes números, de uma parcela de famílias monoparentais, ou mesmo biparentais, que constróem seus arranjos amorosos, conjugais e parentais, sob a égide não só do ideal de igualitarismo nas relações de gênero como do ideal de um “amor confluente”. O impacto preliminar da leitura dos dados da leitura do PNAD nos leva, quase “naturalmente”, à idéia da família nuclear, ainda que acrescida de alguns parentes, e nos leva, também “naturalmente”, longe da idéia de família patriarcal estendida, contendo toda uma Mondrian e sua noiva, 1914 parentela extensa no espaço da casa. É claro, no entanto, que não se pode confinar a operacionalidade de uma família-parentela a qualquer espaço exclusivo de um domicílio particular. A idéia de família que é visibilizada pela tabela está restrita a este domicílio particular. Por isso, tem um efeito simbólico de, imperceptivelmente, identificar e traduzir a idéia de família como lugar de coabitação predominante de cônjuges e filhos, seguida de parentes e não parentes. De qualquer modo, estes dados permitem dizer que o tamanho médio dos arranjos familiares no Brasil afasta qualquer hipótese da predominância quantitativa de famílias e parentelas estendidas num mesmo espaço domiciliar. De outro lado, não permitem dizer que a parentela estendida deixou de ser uma forma de sociabilidade preeminente e importante em vários segmentos da sociedade brasileira e de que o valor da “família estendida” não seja o modelo familiar que esteja urdindo, ao mesmo tempo, a maior parte das famílias biparentais e monoparentais dos segmentos populares. Atrás da aparente nuclearização das famílias de classes populares estão tecidas redes de parentela extensa e circulação de crianças como tão bem nos mostram Sarti (1996) e Fonseca (1987 e 1995). Tanto mulheres que sustentam seus filhos, sozinhas, trazem parentes para sua casa, para ajudarem a cuidar dos filhos, quanto outras deixam seus filhos aos cuidados de parentes, especialmente suas mães. Sempre em nome das regras de reciprocidade: dar, receber e retribuir entre a parentela. A percepção de um todo relacional precede os movimentos individuais que nada mais fazem que atualizá-lo. Estes princípios de reciprocidade se fazem em torno de um território simbólico e constituem um valor moral, nos termos de Sarti. É a identificação do modelo de “família- parentela-estendida”, que comporta relações de obrigação e reciprocidade entre consangüíneos e afins, que permite conferir sentido a muitos dos arranjos monoparentais familiares, não se opondo logicamente um a outro. Contudo, nem todos os espaços onde se instauram as classes populares apresentam o mesmo grau
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Os dados das entrevistas que sustentam a forma de “relato livre” que farei a seguir, foram obtidos junto a sujeitos envolvidos em situação de violência, “clientes” da Delegacia Especializada da Mulher (DEAM/D.F.) a partir de 1995, diretamente nas comunidades periféricas e junto aos “clientes” de um hospital regional no D.F., a partir de 1998. A pesquisa é coordenada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher/NEPeM e conta com a participação de pesquisadores estudantes.
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A “honra” é um conceito relacional e coletivo, atribuído a uma totalidade que circunscreve “pessoas” frente a outras totalidades. A honra atribuída a uma pessoa está na estrita dependência da atuação desta pessoa no eixo de regras hierárquicas (de gênero e idade) de direitos e deveres e de obediência a moralidades. Quanto ao código individualista, está assentado nas idéias de igualdade, liberdade e cidadania, embora tenda a se desenvolver o individualismo das “singularidades”. Ver Machado (1985; 1997).
de organização e enraizamento da população. Assim, algumas famílias monoparentais e biparentais posicionam-se em espaços onde as parentelas mais amplas são ausentes e onde também é difícil instituir um “pedaço”. O modo como percebo as transformações da contemporaneidade no que tange às formas familiares e aos valores que envolvem e constituem a idéia de família e seus arranjos se entrelaçam com o modo de como indago sobre as transformações contemporâneas das relações de gênero, a partir do mais recente campo de observação privilegiado das minhas pesquisas: a conflitualidade e a violência nas relações amorosas e familiares3 que se acrescentaram a estudos anteriores em que a indagação incidia sobre as relações de gênero nos arranjos familiares de segmentos populares e sua inserção urbana (Machado, 1985a; 1985b). Tenho trabalhado com a simultaneidade da atualização do que venho denominando “códigos relacionais da honra” e “códigos baseados nos valores do individualismo de direitos”4 , tal como depreendo das narrativas dos entrevistados e entrevistadas. Esta indagação teórica que sempre imprimi às minhas pesquisas, quer se tratassem de segmentos médios ou populares, derivaram-se de um temor de reificar e enrijecer as distâncias na construção das subjetividades nas classes populares e médias. Ao ouvir as narrativas de segmentos populares, impressiona-me a simultaneidade da presença dos dois códigos nos sentidos dados tanto pelos sujeitos investigados envolvidos em situação de violência física, quanto pelos que não se referiram a elas. Ainda que as auto- referências se façam predominantes, como se tratasse de uma subjetividade imediatamente colada ao seu lugar estatutário como pessoa num mundo relacional em que o todo precede o indivíduo, a “naturalização da idéia de mulher ou de homem englobada pelo mundo relacional da parentela”, grande parte de seus lugares estatutários são postos em interrogação. Enredam-se homens e mulheres entre um código e outro porque os valores inscritos em cada código muitas vezes são referidos como contrários e contraditórios. Participam homens e mulheres de “relações conjugais” que supõem um “contrato conjugal”, muitas vezes tradicional, baseado na troca entre a “sexualidade virtuosa da mulher” e “seus afazeres domésticos” (cuidados com os filhos e a casa), de um lado, e a situação de “provedor” do companheiro. Mesmo, sendo cúmplices e pactuantes deste contrato conjugal tradicional, as representações de um e outro se diferenciam. Concentro-me nos casos de violência conjugal. Eles, em nome da honra, e da função de provedor, podem controlar, fiscalizar e punir suas companheiras. Permitem-se, porque homens provedores, cercear o direito de ir e vir, de impedir o acesso ao trabalho de suas companheiras, de inspecionar órgãos sexuais para garantir que não houve traição, e “bater” se sentem ciúmes ou se não recebem a atenção requerida. Contudo, ainda que saibam e se refiram à ilegitimidade da violência, em função dos direitos da companheira, prevalece a legitimidade do valor da “honra” e a legitimidade do poder derivado de sua função de provedor, em nome do qual consideram legítimo seu comportamento, minimizando e marginalizando o (re)conhecimento dos direitos individuais das companheiras. Para elas, o contrato conjugal tradicional, ainda que supondo deveres
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diferenciados, não implica poderes desiguais entre homens e mulheres. Suas narrativas contam as expectativas de um companheiro que, na esfera da sociabilidade entre eles e na divisão de poderes na sociedade conjugal, são referidos e pensados como iguais. O gesto violento, o controle do ir e do vir, o controle do acesso ao trabalho e ao estudo, de forma alguma, são legitimados como direitos naturais. Não cabem aos homens tais poderes, porque homens e mulheres são entendidos como iguais. Os homens violentos parecem estar ainda referidos à ordenação do Código Civil de 1916 em que a mulher dependia da autorização do marido para trabalhar. Há uma expectativa em intelectuais como Bourdieu (1998) e Giddens (1992) que a revolução simbólica das posições hierárquicas e de poder entre os gêneros se possa fazer pela reinvenção amorosa. Têm razão, se consideram que este âmbito, se mudado, poderia ser o lugar desta revolução simbólica final. Não têm, se imaginam que este seja o âmbito que possa se constituir em passagem facilitadora para tal revolução simbólica. Se me deixo escutar os dizeres das mulheres, conferindo todo o seu sentido sobre seus processos amorosos, é no “amor” que se esconde a mais difícil armadilha. Explicita-se a relação amorosa como relação entre iguais, mas aí mesmo se funda o mais impensado dos fulcros tradicionais das relações hierarquizadas de gênero. É na esfera das representações amorosas e afetivas que as mulheres entrevistadas parecem valorizar e buscar, sem reconhecer, um companheiro amante porque delas protetor e continente. Assim, sem saber, já colocam seus parceiros numa posição englobadora e hierarquicamente superior. Muitas vezes, buscando um amor marcado pela qualidade de um parceiro protetor, é que se encontra um companheiro possessivo, controlador e violento. É no contrato amoroso marcado pelas posições hierárquicas entre o masculino e o feminino, presente nas expectativas femininas, muitas vezes vividas na ordem do “impensado” que rege o sentimento do amor que se pode entender como se realizam “contratos conjugais” tão pouco negociados entre os parceiros. Muitas são as narrativas de mulheres que, depois de um “contrato conjugal” fracassado, se interditam de realizar uma nova relação amorosa que implique em coabitação. Acreditam menos na consensualidade das expectativas femininas e masculinas. Sabem (reconhecem) que os homens provedores tendem a chamar a si o direito do controle da mulher e dos filhos. A força dos valores tradicionais da família lhes aparece como inamovível. Obrigam-se a serem cúmplices da idéia de que a posição de provedor institui o direito ao poder sobre os filhos que residam no domicílio. Prevendo a conflitualidade entre os filhos e o companheiro, ou porque há filhos mais velhos que já ajudam na posição de provedor, e que podem deixar de fazê-lo em situação de conflito, ou porque têm filhos menores sobre os quais não querem perder a autoridade, não se permitem, nem permitem que o companheiro more com elas. Com isso, mantêm a autoridade sobre os filhos e sobre si mesmas. Os dados estatísticos do aumento notável na sociedade brasileira de domicílios mono-parentais, em que a chefia da família é feminina, podem ser também indicadores do aumento da circulação de homens e, talvez, de suas dificuldades de se
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posicionarem ou como provedores ou como controladores de suas companheiras. Esta auto-interdição da coabitação, tão freqüente nas camadas populares, foi omitida pela interpretação exclusiva da mulher sozinha como o lugar da falta, aquela que é rejeitada ou “não consegue companheiro”. Embora não acreditando no “amor confluente”, por outros caminhos busca relações sexuais e amorosas que não lhe retirem o poder parental ou o poder sobre si mesma. Contraditoriamente comparte a idéia intocável do todo hierarquizado da família, de outro, reinventa a auto-percepção como indivíduo de subjetividade submetida. A partir da reflexão sobre casos como estes, pode-se apontar como, dados os valores fortemente enraizados do modelo familiar da divisão de gênero no contexto do mundo dos “pobres e trabalhadores”, as famílias recompostas destes segmentos se diferenciam dos segmentos médios. Se há uma longa tradição de superposição de uma série de mães e de pais, e de mães-avós e pais-avôs quando resultado de uma “dádiva” da mãe ou do pai obedecendo, assim, ao código relacional familiar, há quase uma interdição para a superposição de pais ou mães nas famílias recompostas. O novo marido da mãe só poderá se constituir pai na ausência do pai biológico tanto como pai cuidador quanto como pai provedor. Em outro contexto, os segmentos sociais médios, homens e mulheres estão alcançando a reinvenção de novos arranjos familiares, com famílias recompostas orientadas por distintos valores. Dadas as expectativas de maior igualdade de direitos e funções entre mulheres e homens na sociedade conjugal e dado o valor atribuído ao espaço da individualização das ações na família, podem se sobrepor pais e padrastos, mães e madrastas. De outro lado, a “dádiva” de filhos está cada vez mais tendendo a ser interditada e a conseqüente idéia assemelhada de superposição de mães-avós e pais-avôs tende a ser vista como concorrencial e, portanto, cada vez mais interditada, nos casos de uma conjugalidade adulta, de tal modo que as relações avósnetos pode estar começando a diminuir sua importância.
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As tendências contemporâneas da família no Brasil, como, de resto, mundialmente, ou no mundo ocidental desenvolvido não podem ser reiteradamente analisadas como se obedecessem a um caminho linear único ou como se este caminho altamente moderno contivesse toda e todas as idéias do “bem”. Ao lado mesmo de uma certa tendência homogeneizadora no ocidente presente tanto nos valores individualistas quanto nos efeitos da redução da fertilidade e da natalidade, não se pode perder a riqueza das diferenças presentes e das reinvenções possíveis das diferenças, nem deixar de apostar na possível e revolucionária reinvenção das relações de gênero, no sentido da construção de relações igualitárias. Por último, uma breve alusão a um tema que merece todo um outro aprofundamento: a pergunta de como as famílias se instituem como “fábricas de construção de subjetividades”. Se o “código relacional da honra”, tão presente nos modelos tradicionais das famílias brasileiras, é em grande parte responsável pela legitimação de relações violentas no seu âmbito e pela legitimação das relações hierárquicas e de poder de gênero, este mesmo código é, em grande parte, responsável pela legitimação de relações baseadas na reciprocidade e na responsabilidade do pertencimento a uma comunidade social. De outro lado, o “código individualista”, cada vez mais presente nos modelos das famílias da modernidade clássica e da alta modernidade, é em grande parte responsável pela responsabilização e autonomização dos indivíduos, e pela dessensibilização do indivíduo em relação ao seu semelhante e em relação ao seu pertencimento social, diminuindo a apreensão dos seus limites e da sua situação de compartilhamento. Um e outro código, enquanto princípios estruturadores das sociedades, tal como pensado por Mauss (1974) e Dumont (1977), não se inscrevem apenas na instituição de modelos familiares. Um e outro estão presentes e informam também a mesma esfera pública e permeiam as diferentes configurações dos Estados nacionais. Retoma-se, assim, a questão das relações entre Estado e famílias, Estado e cidadãos, questão que merece todo um capítulo à parte, mas também imprescindível para estabelecer uma perspectiva das futuras tendências. Este não era o objetivo primordial deste texto, mas é fundamental deixá-la aqui registrada. A fraca generalização das condições cidadãs no Brasil, as situações econômicas desfavoráveis ou de crise podem fazer emergir o “pior dos dois mundos”: não o princípio da reciprocidade hierárquica, mas o da exclusiva hierarquia desigual; não o princípio da igualdade individual de direitos e deveres mas o da universalidade do anonimato, da indiferença e da dessensibilização. A utopia seria construir um mundo cultural que valorizasse o mundo das relações personalizadas e afetivas fortes com o mundo dos direitos iguais.
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Recebido para publicação em: 20/12/00. Aprovado para publicação em: 19/01/01.
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Religiosidade, reprodução e saúde em famílias urbanas pobres
Márcia Thereza Couto1
COUTO, M. T. Religiosity, reproduction and health among underprivileged urban families. Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.27-44, 2001.
This article analyzes personal religious conversion within the context of family relations in the downscale suburbs of Recife, the capital of the state of Pernambuco, Brazil. It presents the results of a qualitative research study on the meanings of conversion for the members of the family and the ensuing transformations in their reproductive behavior. Based on the empirical data above, the article ends with a discussion of issues related to healthcare services in that area, and how the local inhabitants use them. KEYWORDS: religion; urban population; family relations; reproduction; healthcare services. Este trabalho analisa a conversão religiosa pessoal no contexto das relações familiares em uma área da periferia da cidade de Recife, Pernambuco-Brasil. Apresenta resultados de uma pesquisa de caráter qualitativo sobre os significados da conversão para os integrantes da família e as decorrentes transformações no comportamento reprodutivo. Por fim, com base neste material empírico, levanta algumas questões sobre os serviços de saúde existentes no bairro e o uso que a população faz destes. PALAVRAS-CHAVE: religião; população urbana; relações familiares; reprodução; serviços de saúde.
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Doutoranda em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco. <marthe@cyberspace.com.br>
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O trabalho de pesquisa junto ao universo cotidiano de famílias urbanas pobres no Ibura, bairro da periferia de Recife-PE, e suas experiências de trânsito religioso entre inúmeras denominações pentecostais colocou-me por muitas vezes diante de “casos”, sejam estes relacionados com conversões, escolhas religiosas ou mudanças de religião. Tomo como “casos” narrativas orais cuja matéria-prima são as vicissitudes do viver. Alguns acontecimentos extraordinários são reconhecidos pelos que contam como dignos de serem retidos na memória e atualizados, ou seja, contados. Diferenciando-se de uma memória social no sentido estrito, “casos” são particulares à pessoa que conta ou a pessoas do círculo próximo; seus atores são, portanto, situados e nomeados. Para cientistas sociais “casos” como esses têm usualmente servido à reflexão sobre caminhos, buscas e encontros que, sendo particulares a cada indivíduo, dizem muito da serventia da religião nos dias de hoje numa sociedade cujo repertório do sagrado é quase inesgotável. Entretanto, neste artigo, quero explorar uma outra faceta deles, qual seja, a importância das adesões religiosas nas transformações instauradas na vida dos sujeitos e os significados que tais transformações trazem para as relações familiares. Com isto, pretendo trazer algumas contribuições para o diálogo estabelecido entre profissionais de saúde e usuários, na medida em que discuto alguns dos efeitos da adesão religiosa nas representações e práticas de comportamento reprodutivo entre casais evangélicos. Apresento um “caso”, relatado por Maria José, uma mulher de 33 anos, criada numa família católica, casada, mãe de um garoto de quatro anos e membro da Igreja Missão Evangélica Pentecostal há cinco anos. Maria José, ou Mazé como prefere ser chamada, acredita que aos 27 anos Deus mudou sua vida. Tendo conhecido seu atual marido cinco anos antes, lá mesmo no Ibura, Mazé se casa e logo pensa em ter um filho, seu grande sonho. Após um ano e meio engravida. Embora vivesse alguns conflitos com o marido por este ser “mulherengo”, Mazé conta que sua gravidez estava indo bem. Sempre cuidadosa, procurava não perder as consultas de pré-natal. Na consulta realizada aos seis meses, Mazé se desespera porque a médica diz
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não ter “escutado o coração do bebê”. Após fazer alguns exames, Mazé conta que o médico faz a curetagem, alegando que o feto estava morto. Mazé conta: “Com tudo isso minha vida era muito sofrida. Mas eu aceitar Jesus foi muito difícil, porque eu era muito dura, não sei...”. Continuando sua busca de concretizar o projeto de maternidade, ela faz de tudo para engravidar. Chega, então, o dia da “benção” recebida por Mazé. Neste dia eu estava muito aperreada com meu marido, porque tinha visto ele com outra mulher no ônibus. Atravessei a rua quase cega de chorar, ia para casa da minha mãe. No meio da praça ali em frente estava tendo um culto. Eu parei e fiquei chorando e olhando a pregação do irmão. Sentia que tudo que ele dizia era comigo. O sol na cabeça, eu não tinha comido nada. Fui sentindo uma ausência.... uma coisa estranha, até que eu cai ali mesmo e não lembrei de mais nada. Já acordei na Igreja do outro lado da praça, com muitos irmãos me acolhendo. Foi quando me levaram para o Posto (de Saúde) aqui. Então a médica lá me fez umas perguntas e falou “olha, eu tô achando que você está grávida, vamos fazer o exame para confirmar’. Naquele momento eu senti que fui tocada por Jesus, senti que tinha sido agraciada com um verdadeiro milagre em minha vida. Sabia que o exame ia ser positivo, porque aquilo tinha sido um sinal do céu. Então aceitei Jesus e entreguei meu coração em suas mãos.
O que este “caso” nos diz a respeito da relação entre religiosidade, família e saúde? O que nos conta acerca da visão de mundo dos urbanos pobres? E sobre o uso que esta população faz dos serviços de saúde em atenção básica nos bairros de periferia? Como um profissional de saúde que atende cotidianamente mulheres, muitas das quais evangélicas, se posicionaria diante do “caso”? Antes de prosseguir a leitura, proponho ao leitor(a) que reflita sobre estas questões. Pois, em parte, é com base nelas que este artigo é construído.
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A complexa, mas já reconhecida dinâmica estabelecida entre as instituições família e religião no contexto da sociedade brasileira vem sendo traduzida por gerações de cientistas sociais (Freyre, 1997; Aubrée, 1985; Machado, 1996). Todas as transformações pelas quais atravessa a religião em nossa sociedade projetam reflexos sobre a família, ao mesmo tempo em que as mudanças que percorrem o universo familiar brasileiro incidem em vários campos do social e, entre eles, a religião. Assim, se, enquanto locus fundante da socialização, a família é uma das grandes responsáveis pela manutenção e reprodução da religião, esta, por outro lado, enquanto agente regulador e normatizador da sexualidade e reprodução, é um dos principais sustentáculos da família. Isto sem falar, é claro, no aspecto regulador moral do comportamento individual e coletivo que a religião proporciona. Além da imbricada relação institucional, um outro e tão importante aspecto atualiza a relação entre estas esferas. Trata-se, como no “caso” relatado por Mazé, da adesão voluntária dos indivíduos a um sistema de crença e prática religiosa com a conseqüente ruptura com a própria biografia e a adesão a novos valores, modelos comportamentais e visão de mundo, em dissonância com a religião professada pela família. É sobre esta estreita relação estabelecida entre religiosidade individual professada e relações familiares no contexto da sociedade brasileira e, especificamente entre os urbanos pobres, que trata este trabalho. Num primeiro momento, e com base na produção sócio-antropológica dos campos da família urbana pobre e da religiosidade popular, procuro construir marcos que auxiliam na reflexão da interface entre família e religião na atualidade. Em seguida, apresento resultados de uma pesquisa de caráter qualitativo com 15 famílias do bairro, abordando especificamente o tema planejamento familiar. Trata-se de um aspecto de uma pesquisa mais ampla que pretendeu apreender os motivos da conversão religiosa, as tensões produzidas na dinâmica familiar e as estratégias de superação tomando como base o comportamento reprodutivo2 . Por fim, e a partir deste material empírico, volto-me para o diálogo com a Saúde, tratando dos serviços oferecidos e da relação estabelecida entre os profissionais de Saúde e os usuários.
A pesquisa sobre comportamento reprodutivo apresenta também dados sobre virgindade, escolha de parceiros, aborto e criação de filhos (ver Couto, 2000).
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Tomamos a expressão como sinônimo de outra: urbanos pobres. Ambas designam o universo de categorias sociais que se encontram numa posição subordinada ou inferior na sociedade de classes, moderna e urbana.
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Problematizando a conversão e o trânsito religioso em famílias pobres A literatura antropológica que trata das relações cotidianas e familiares entre as camadas populares reconhece a cultura das classes trabalhadoras urbanas3 como portadora de uma racionalidade própria. Inúmeros estudos têm procurado discernir seus traços mais pertinentes e sua lógica mais profunda (Duarte, 1986; Sarti, 1996). O recorte deste trabalho sobre a especificidade cultural das populações urbanas pobres4 assenta-se sobretudo nos trabalhos de Duarte (1986). Apoiado em Dumont (1993), Duarte acolhe a idéia de que existem duas grandes matrizes culturais presentes nas sociedades contemporâneas. De um lado, a matriz dominante que teria como referente o individualismo; e a(s) outra(s), dominada(s), que possui(em) uma lógica mais holista. À maneira do autor, não reforço uma possível argumentação que sugere que
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4 Mesmo recorrendo à categoria “urbanos pobres”, chamamos atenção para a necessidade de evitar considerar estes como uma categoria homogênea. Entendemos que um dos grandes desafios das Ciências Sociais foi o de quebrar ou desconstruir a noção “monolítica” de pobre e pensar a pluralidade e diversidade interna à categoria, em termos de gênero, classe, raça, etnia, idade, religião etc.
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Esta problemática foi extensamente trabalhada por Bourdieu (1982) e sua perspectiva também informa o recorte deste trabalho.
O modelo sincrético no Brasil persistiu até o início dos anos 70, sobretudo pelo forte peso institucional do catolicismo. Os protestantes históricos, dado o reduzido número, não impunham significativas ameaças ao catolicismo, enquanto os simpatizantes das religiões afrobrasileiras não se desvencilhavam de sua identidade católica, preferindo justapor os dois sistemas religiosos.
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os urbanos pobres possuem uma cultura específica e de todo separada do modelo dominante. Ao contrário, trabalho com a noção de que ela mantém uma relação bastante peculiar de leitura de mundo em que há uma interface direta e constante com os pressupostos centrais da modernidade. Assim, afirmar a positividade dos urbanos pobres significa não submetê-los ao olhar da falta, mas tomá-los como portadores de um sentido que, dado seu traço próprio, destoa das marcas do universo da modernidade, aqui especialmente pensada como aquela que dá suporte aos referentes da classe média. Em outras palavras, ao reconhecer o potencial desigual que as classes têm para difundir e legitimar sua visão de mundo, compreendo que a relação entre elas se dá num intricado jogo de forças em que mesmo os mais despossuídos operam na afirmação e recriação de suas diferenças5 . O quadro resultante que se apresenta para o analista é, senão desalentador, bastante complexo. Isto porque exige uma abordagem que permita, ao mesmo tempo, compreender as múltiplas interseções entre os esquemas culturais na forma como eles são atualizados pelas pessoas em seus modos de vida cotidianos e, também, o reposicionamento das fronteiras sociais característico do processo de mudança cultural em andamento. Com respeito ao universo das práticas religiosas em nossa sociedade, a idéia de sincretismo e mistura religiosa liga-se à análise da própria noção de identidade nacional, que foi construída em termos de um sincretismo étnicoracial-religioso. Assim, não é de estranhar que diferentes e mesmo temporalmente distantes interpretações da identidade nacional brasileira, tal como a de Gilberto Freyre (1997) e a de Roberto Da Matta (1989), tenham ressaltado essa base tríplice e de caráter conciliatório. Mas as transformações que vêm sendo operadas a partir da década de setenta impõem a necessidade de rever a já arraigada noção de sincretismo em nossa sociedade. A entrada do fenômeno pentecostal em cena vem transformar o panorama religioso nacional. Caracterizando-se por um tipo de religiosidade que requer comprometimento forte com o grupo de referência e, portanto, uma identidade exclusiva, as igrejas pentecostais multiplicam-se aos milhares, sobretudo entre as camadas populares, durante as quatro últimas décadas, promovendo a transformação de um modelo sincrético para um modelo plural do tipo “mercado religioso” (Mariz e Machado, 1998)6 . Cada vez mais a opinião pública e mesmo reconhecidos estudiosos da religião defendem a tese de que a religião que se professa hoje não é mais aquela na qual se nasce. A compreensão é a de que as mudanças operadas no campo religioso nas últimas décadas e a conseqüente entrada e estabelecimento em nossa sociedade do “mercado religioso” promove um fenômeno de trânsito individual, livre e quase ininterrupto. Mais de um quarto da população adulta da região metropolitana de São Paulo professa hoje religião diferente daquela em que nasceu, são convertidos, muitos tendo experimentado sucessivas opções. Para alguns, a mudança de religião não é vista mais como um drama pessoal e tampouco familiar. Não discordo da percepção deste fenômeno de trânsito religioso intenso, mas questiono as variações e os significados específicos para homens, mulheres, jovens, adultos, solteiros, casados, viúvos, do meio rural e
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urbano... em suas famílias. Assim, opto por focalizar a análise numa outra, e também importante, referência: o reconhecimento da conexão entre a experiência religiosa vivenciada, o estilo de vida particular de quem a adota e as intercorrências na vida familiar. Esta percepção liga-se à compreensão da afiliação religiosa como um processo que implica não apenas a aderência a um sistema de crenças, mas também um comprometimento com o grupo que sustenta estas crenças. Ainda que a conversão possa ser entendida e publicamente expressa em termos do relacionamento homem/divindade, também envolve modificações no intercâmbio social e, portanto, nas relações familiares. E é sobre isto que tratarei a seguir, especialmente quanto ao comportamento reprodutivo das famílias com pluralismo religioso. Sexo e reprodução: novos valores religiosos nas famílias pobres? Existe um consenso entre os historiadores de que a tradição sexual cristã foi marcada até meados do presente século por uma percepção fortemente negativa da sexualidade. Associada a uma percepção restritiva desta, observa-se o tratamento desigual aos parceiros sexuais, cabendo à mulher subordinar-se ao homem, cabeça do lar e da família. A doutrina católica elabora – sobretudo a partir do século V e por obra de Santo Agostinho – um discurso bastante nítido quanto às práticas sexuais e aos métodos contraceptivos: a legitimidade destes faz-se mediante o vínculo entre vida sexual e reprodução. Os primeiros reformadores - tanto Lutero como Calvino -, absorveram tais normas e códigos e, ao seguir as concepções éticas católicas, aceitaram as limitações impostas ao uso dos meios contraceptivos. Mas esta orientação original protestante vem sofrer modificações, sobretudo durante o século XIX, e culmina com a liberalização dos meios contraceptivos nos anos trinta pela maioria dos teólogos e pastores evangélicos. Com isso, os meios artificiais de contracepção deixaram finalmente de estar vinculados ao sexo “ilícito” e “pecaminoso”; sendo a decisão do seu uso transferida à esfera médica e ao casal (Machado, 1996). Originalmente dissidentes das igrejas históricas, os primeiros grupos pentecostais em nossa sociedade7 caracterizavam-se pela rejeição de traços significativos da cultura brasileira: o futebol, a cerveja, o carnaval e os cultos afro-brasileiros freqüentados por católicos pouco praticantes (Machado, 1996). O forte vínculo com evangélicos fundamentalistas norte-americanos que reforçavam a repressão ao corpo e à sexualidade, fizeram alguns estudiosos caracterizá-los como fundamentalistas, opositores da separação entre sexo e reprodução e, conseqüentemente, contrários às práticas contraceptivas e às formas de planejamento familiar. Assim, para o público em geral e segundo os primeiros estudiosos do tema, um dos principais traços constitutivos da Portinari e seus colegas do curso Primário, 1912 32
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Segundo Freston (1994), o pentecostalismo no país pode ser visualizado em três grandes ondas. A primeira, na década de 10, com a chegada da Congregação Cristã e da Assembléia de Deus; a segunda, nos anos 50 e 60, com a Igreja Quadrangular, Brasil para Cristo e Deus é Amor, e a terceira, ao final dos anos 70, com a Igreja Universal do Reino de Deus.
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Foram realizadas entrevistas individuais com os membros do casal em dez famílias com pluralismo religioso (católicos e pentecostais), representativas do arranjo de família plural mais freqüente no bairro; e em cinco famílias de pentecostais, como grupo controle.
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identidade do “crente” seria a defesa da castidade para solteiros e não casados, a fidelidade conjugal, a sobriedade nos trajes, a oposição à vaidade (feminina e masculina) e a não separação entre sexo e reprodução. Mas o universo evangélico não é homogêneo. Ao contrário, caracteriza-se por uma dispersão de posições ideológicas com múltiplas orientações – muitas vezes antagônicas – no que diz respeito a sexualidade e reprodução. Se as denominações possuem o traço comum do apelo à emoção e à valorização das interações corporais, distinguem-se em função da rigidez moral no campo da sexualidade e da reprodução. Assim, a Assembléia de Deus pode ser considerada como a mais tradicional no continuum do tradicionalismo para o liberalismo, estando a Igreja Universal do Reino de Deus no último pólo deste continuum (Machado, 1997). Portanto, é necessário reconhecer a pluralidade de orientações dirigidas por estas igrejas, assim como as variações quanto à adequação do estilo de vida pessoal ao discurso religioso em torno da sexualidade e reprodução por homens e mulheres em suas diferentes etapas do ciclo de vida pessoal e familiar. Partindo desta perspectiva, ao tratar dos aspectos relativos à reprodução considero as reformulações na identidade dos sujeitos e, por isto, o “tempo de conversão” como fator de grande importância. O exame do comportamento reprodutivo com base nas entrevistas em profundidade realizadas com os homens e as mulheres no bairro do Ibura 8 pôde ajudar a desvendar a diversidade de valores e comportamentos dos pentecostais quanto ao planejamento familiar, ao mesmo tempo traz à tona algumas particularidades do universo simbólico dessas famílias pobres. Um dado que chama bastante atenção é a preeminência do núcleo familiar. O todo relacional representado na família exprime-se por meio de uma divisão de trabalho entre os gêneros que é, ao mesmo tempo, moral e familiar. Neste contexto, os atributos de gênero são tomados a partir de uma complementaridade hierárquica. Ao masculino está destinado uma maior exterioridade e a associação com o que é de domínio público, dimensão consolidada na esfera do trabalho. De forma complementar a este, emerge o privado, espaço associado à interioridade e ao domínio do natural, portanto, espaço feminino. Ser homem significa, em termos ideais, exercer com firmeza o papel de provedor material e moral, o que garante o respeito por parte do grupo e perante o universo social que o rodeia. À mulher, em contrapartida, está associado o desempenho de tarefas como cuidar da casa, do marido e dos filhos. O estudo de Paim (1998) mostra que os cuidados com a contracepção, gravidez e manutenção da prole são desempenhados pelas mulheres e considerados não como fruto de um processo de socialização, mas como aptidões próprias à natureza feminina. Nas entrevistas com homens e mulheres pentecostais também chama atenção o fato de que a tradicional vinculação do sexo com a reprodução não é primordial. Como já assinalou Machado (1996) e Fernandes (1998) em outras pesquisas, as mulheres preferem identificar sexo com amor e prazer. Se é possível perceber aí um deslocamento no sentido de uma visão menos tradicional para uma outra voltada aos valores correntes na sociedade como um todo, reconhecer-se que para essas mulheres a dimensão da satisfação sexual ainda está atrelada a uma ordem moral cristã que
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canaliza a sexualidade para o casamento. Quanto ao relato de suas vivências no campo da sexualidade e reprodução, a maioria das mulheres mostraram-se dispostas a falar, com fluência e tranquilidade, sobre sexo e intimidade. Tinham muito a contar sobre as histórias afetivas/sexuais de suas vidas, que sempre incluíam temas como namoro, casamento, gravidez e nascimento de filhos. Entretanto, as descrições destas situações conectadas à participação masculina foi bem mais reduzida, descritas sem minúcias. Ainda no campo da sexualidade e reprodução foi recorrente a preocupação com a satisfação sexual do homem/companheiro. Ao considerar o homem como um ser diferente e regulado por instintos estranhos à natureza feminina, as mulheres redirecionam a preocupação com sua própria sexualidade para a sexualidade do companheiro, o que denota o cuidado em corresponder às expectativas, no sentido do cumprimento de suas obrigações maritais. O sexo e a vida afetiva do casal foi compartilhado pelos homens com uma absoluta parcimônia. Numa certa medida, para os homens, pentecostais ou não, sexo não se discute, não é algo de que se fale no intuito de conferir significação própria, pois seu significado está preso a uma lógica naturalista que o coloca no lugar daquilo que se faz e não se cogita. Tratando do tema planejamento familiar propriamente dito, tomo como ponto de partida o uso de métodos contraceptivos e apresento um dado revelador: a grande maioria dos casais relataram fazer ou ter feito uso de métodos artificiais durante a vida, especialmente, a pílula. Mas aqui cabe identificar algumas variáveis de cunho religioso e familiar que possibilita uma compreensão da disseminação do uso de métodos artificiais de forma mais detalhada. O fator “tempo de conversão” é fundamental para perceber a influência da ideologia secular nos indivíduos. A grande maioria das mulheres atualmente evangélicas promoveram dissidência religiosa tornando-se pentecostais após o casamento, assim, não é de estranhar que tenham feito uso de métodos artificiais. Mas o que é interessante perceber é que, mesmo após a conversão, e sobretudo por parte daquelas que não conseguiram trazer para sua igreja/religião seus maridos, o uso de métodos artificiais permanece. Apenas uma mulher pentecostal casada com homem não evangélico apontou sua opção de não fazer uso de métodos contraceptivos artificiais, referindo tal atitude a sua opção religiosa: Olhe, no tempo que eu casei, logo depois eu me converti. Tinha um ano de casada. Por ele (marido) a gente só tinha um casal de filhos. E eu disse que não ia tomar remédio não. Também porque eu já era evangélica, né? Aí terminei tendo cinco filhos, para mim foi uma benção. Mas ele arengava muito, dizia que não queria mais ver menino em casa.... Quando ele menos esperava eu engravidava, né? Foi muito conflito... (Dona Diva, 50 anos, casada, Assembléia de Deus).
No grupo de mulheres cuja faixa etária é dos trinta aos 59 anos, e que durante algum tempo fizeram uso de métodos artificiais (11 mulheres ao todo), a maioria (sete) declarou ter recorrido à laqueadura. Embora tal
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opção não seja a preferencial por parte das igrejas evangélicas no discurso dos seus oficiantes, todas as que recorreram a este método disseram que se sentiam “confortáveis” com a decisão. O tempo de participação na igreja, neste sentido, parece não ter uma influência importante na tomada de atitude das mulheres, já que quatro das sete optaram por este procedimento após a conversão. Isto coloca sob suspeita a relação, muitas vezes considerada causal, entre pertencer a um grupo religioso que busca a “santificação” – daí a necessidade de observância às Pais de Frida Kahlo, 1898 regras estabelecidas pelas autoridades religiosas – e a opção por esta forma “definitiva” de planejamento familiar. Também a “trajetória de vida” tem um peso importante na conformação deste quadro. A opção pela esterilização foi relatada após uma longa caminhada e tentativa de adequação com o método que todas referem ter feito uso em algum momento de sua vida reprodutiva: a pílula. Eu tomei anticoncepcional por dois meses. Apesar do primeiro mês eu não me dei com o anticoncepcional. Eu não me dei aí o médico passou outro. Mas não me dei. Aí eu fiz tabela e nela a menina veio. Eu não posso tomar anticoncepcional. O nervo atacava demais e saia manchas roxas no corpo; e podia me matar atingindo o coração. O médico ficou com medo e suspendeu no ato. (Telma, 38 anos, Casada, Igreja Congregacional) Quando eu tive Juli eu usava pomada. Não me dei com comprimidos, ficava nervosa, com enjôo e muita dor na cabeça. Aí passei para pomada. Era uma pomada tão chata, que você tinha que colocar antes do sexo; aí se esquecesse era fatal. Aí ele disse: “bota logo essa pomada para quando eu chegar...”, Mas só podia botar três minutos antes; não podia botar muito tempo, porque senão ela escorria. Aí a gente não agüentou sete meses. (Ione, 39 anos, casada, Igreja Congregacional)
O conjunto dos entrevistados (homens e mulheres) reconhecem os preceitos morais e éticos evangélicos quanto ao tema em questão. Dizem que o uso dos métodos naturais é preferível ao uso de métodos artificiais. Contudo, muitos se apóiam no próprio discurso orientador dos pastores de suas igrejas para minimizar uma possível “culpa” ou sensação de “transgressão das orientações evangélicas”. Vale ressaltar que os discursos dos pastores estão sobretudo atrelados a uma orientação para os casais que estão começando a vida. Os noivos que pretendem casar nas igrejas evangélicas passam por período de conversas e palestras, acompanhados de perto pelo pastor, o qual faz preleções sobre a constituição das famílias cristãs, a sexualidade vivida entre o casal cristão e os deveres/obrigações dos cônjuges no sentido de viver o amor e constituir a família “em Cristo”.
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Os dados sobre o uso de métodos contraceptivos nos remete às diferenciações de gênero em nossa sociedade. Alguns estudos mostram o quanto é importante incorporar os homens nas pesquisas sobre Saúde Reprodutiva, isto porque é inegável a influência masculina na determinação das formas como as mulheres conduzem sua vida e saúde reprodutiva, destarte os homens colocarem-se à margem das discussões sobre o tema, seja no âmbito privado ou público (Villa, 1997). Neste sentido, e tomando gênero como categoria de análise, busquei compreender as representações e atitudes dos homens entrevistados acerca desta temática. Em primeiro lugar, ficou claro que a participação dos homens é ainda bastante tímida no que se refere ao uso de métodos contraceptivos, cabendo às mulheres arcar com tal responsabilidade. Assim, apenas um entrevistado fez referência a sua participação no planejamento familiar como algo do qual se orgulhava. Entretanto, questões práticas fortemente relacionadas estiveram associadas com a decisão: o acesso ao procedimento - pois ele trabalha no hospital da marinha e, conhecendo a equipe médica, não esteve sujeito a qualquer ônus e, segundo, pela não adaptação à pílula por sua mulher que foi aconselhada pelo médico a parar o uso. O método masculino mais generalizado e difundido, a camisinha, não tem uma aceitação boa entre os nossos informantes, fato reconhecido pelos próprios homens e sobretudo pelas mulheres. Tal recurso não é o primeiro e tampouco visto como satisfatório para os homens, que dizem não se sentir à vontade com o uso. E mais, o uso se dá apenas nos casos em que a mulher se vê impossibilitada de tomar contraceptivos hormonais ou ainda não conseguiu o acesso a laqueadura. Assim, de uso excepcional e temporário, a camisinha é descartada enquanto contraceptivo no surgimento de qualquer outro meio de contracepção a ser utilizado pelas esposas. De forma resumida, e como os estudos no campo da Saúde Reprodutiva em geral mostram, a baixa participação masculina não implica num posicionamento autônomo e independente das mulheres. Ao contrário, reforça a lógica da “responsabilidade solitária” da mulher, mesmo que com forte pressão masculina no controle de sua vida reprodutiva. Com isto, temse o reforço de uma das bases da desigualdade de gênero: a regulação e a baixa autonomia da vida reprodutiva das mulheres. As questões acerca do número ideal de filhos, idade ideal para ter o primeiro filho e espaçamento entre as gestações contribuíram para o melhor entendimento sobre a dinâmica familiar entre os gêneros perpassada pela afiliação religiosa. Um dado interessante que sobressaiu de todas as entrevistas realizadas foi o desejo do homem em, logo após a união, ter o primeiro filho; e, claro, que a escolha é por um filho varão. Assim, mesmo entre os poucos homens pentecostais que entrevistamos (três) e que na época do casamento receberam orientações pastorais para que aguardassem pela melhor estabilidade financeira e emocional do casal, dois falaram sobre o desejo de ter o primeiro filho o quanto antes, chegando a cobrar das esposas “uma parada” nos anticoncepcionais. Para Edvaldo, quarenta anos, da Assembléia de Deus: “quando um homem casa, ele logo quer constituir uma família. E você sabe, a família só está constituída quando aparece o primeiro filho. Sempre pedi a Deus que o primeiro fosse um varão, e foi”.
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Todavia, a maioria dos homens após ter o primeiro filho passa a questionar a necessidade de o casal ter outros. Enquanto o número ideal de filhos para os homens foi dois, o número ideal para grande parte das mulheres foi quatro (geralmente dois casais), o que aponta para uma grande disparidade. Causou-me surpresa alguns relatos femininos que giraram em torno dos conflitos entre o casal devido à discordância sobre o número de filhos. Para Sílvia, 52 anos, da Assembléia de Deus, chegar a um acordo quanto ao número ideal com o marido, também da Assembléia de Deus, não foi fácil. Bom, quando eu me casei logo, em 68, eu passei dois anos evitando. Que a gente não queria filho logo porque a gente não tinha uma casa. Foi tempo que eu fiquei grávida de André..., aí de André para Aninha tivemos cautela. Quando foi... dos outros três já desembestou, desencarrilhou (risos). Mas é que eu... meu marido só queria um casal. ‘Um casal só!’, ele vivia falando. E eu dizia: ‘não, filho, mas um casal é tão pouco, eu quero mais, pelo menos uns quatro’. Eu fiquei tentando sem ele saber, ai nasceu mais um, outro, e outro. E ele sempre se pegava em briguinha comigo por isso.
O mesmo acontece com Dona Diva, cincoenta anos, casada, Assembléia de Deus: Tive o primeiro aí o marido falou: ‘tá bom, né, só mais um’. Aí pronto, era ele quem evitava. Na hora H... fora. Só que eu queria mais filhos. Até a segunda não, mas na terceira, foi luta. Que ele não queria aceitar, não queria aceitar. E eu não tomei remédio, não queria tomar remédio... aí hoje a menina ela é muito assim... ela nunca soube, mas ela foi rejeitada. No começo logo que nasceu a bichinha... Depois ainda tive mais dois meninos nessa luta danada.
Se não há acordo quanto ao número ideal de filhos entre os casais, o fator da afiliação religiosa evangélica parece não ter comprometido este aspecto da dinâmica familiar. Ao contrário do que o senso comum postula, o vínculo religioso evangélico não teve influência na
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configuração de um número ideal de filhos, isto sobretudo para os homens. A grande maioria dos entrevistadas reconsiderou, frente à instabilidade financeira que vive, algumas passagens bíblicas, evidenciando que a leitura literal da Bíblia não deve ser tomada como regra. A interpretação deste livro sagrado, portanto, tende a ser mais histórica que fundamentalista, quando a questão é o planejamento familiar. Segundo Sr. José, casado, 35 anos, da Igreja Missão Evangélica Pentecostal, Quando o Senhor disse ‘crescei, multiplicai e enchei a terra’, faz alguns milhares de anos... E qualquer mente, por mais desprovida de bom senso que possa ser, há de perceber que, realmente, foi uma escritura de um tempo já distante. Mesmo sabendo que a palavra de Deus permanece para sempre, muitas coisas foram ditas, faladas para uma outra ocasião.... Você tem que ver isso. Hoje temos na muita, muita gente. Quer dizer... a situação não é fácil. Agora a igreja, nós o povo de Deus, eu diria que é um consenso. Todo método é válido, tá certo? Contanto que... logicamente esses métodos anticoncepcionais não venham trazer dano para a saúde das mulheres, o que danifica sua saúde é burrice, né? Então quem vai usar a coisa deve ter o máximo de cuidado possível.
Diversidade e diálogo com a Saúde A interface entre Saúde e religiosidade nos grupos populares vem há muito constituindo um campo que hoje já é referência para as Ciências Sociais, sobretudo no domínio da Antropologia no que se denomina Antropologia da saúde-doença ou Antropologia Médica. O grande foco de análise neste campo tem se formado em torno dos aspectos rituais dos sistemas de cura das religiões populares, especialmente o catolicismo popular, as religiões afrobrasileiras e, mais recentemente, o pentecostalismo. Ambos, cientistas sociais e profissionais da Saúde, reconhecem que a cultura religiosa brasileira dispõe de uma pluralidade de cultos que oferecem serviços de cura, cada um deles contando com ricos repertórios de símbolos e imagens que exprimem diferenciadas visões de mundo. O reconhecimento desta pluralidade reinante, como se sabe, tem freqüentemente motivado muito mais antropólogos, que concebem a doença como parte de um contexto sócio-cultural ampliado, e menos o saber médico, cujas explicações vinculamse a um caráter mais reducionista, em que o doente é despersonalizado (Rabelo, 1998). Mesmo na vertente antropológica que trata das religiosidades populares como sistemas de cura (Minayo, 1998; Rabelo, 1998) pouca atenção tem sido dirigida à expressão cotidiana que a nova visão de mundo imprime aos indivíduos, sendo a religiosidade tomada pela resposta que oferece às aflições no campo da Saúde, muitas vezes em seu caráter pontual. Assim, privilegia-se o aspecto sincrônico da experiência de cura em seus efeitos momentâneos em detrimento de uma abordagem com foco na diacronia. A indicação, neste trabalho, da possibilidade de diálogo entre a
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Uma avaliação dos serviços de saúde do bairro foi realizada por uma equipe multidisciplinar com a qual mantive estreito contato na ocasião, no âmbito do projeto de avaliação sócio-cultural de saúde no Ibura (Scott, 1996).
10 Sobre esta caracterização ver Couto (1996) e Scott (1996).
11 Além da pesquisa anteriormente citada (Scott, 1996), foram realizadas recentemente dez entrevistas com profissionais de saúde (seis gerentes e quatro médicos) sobre ações de saúde reprodutiva existentes e sobre o uso que a população faz dos serviços (ver Couto, 2000).
religiosidade e a Saúde, se dá sob um outro enfoque: o de perceber até que ponto a multiplicidade de sistemas religiosos que permeia o universo cultural dos urbanos pobres, oferecendo distintas visões de mundo, oferecem possibilidade não apenas circunscritas ao encontro momentâneo de cura das aflições no campo da Saúde, mas conformam novos valores e padrões comportamentais que, de forma duradoura, são incorporados pelos indivíduos, implicando numa “domesticação” do corpo com conseqüências para a saúde. Sob este enfoque, que tem como ponto central o crescimento do Pentecostalismo em áreas de pobreza, é possível levantar questões que ajudam a pensar a relação instituída entre população e serviços de saúde, assim como para refletir como os serviços de saúde planejam e orientam ações voltadas para suas clientelas. O acesso que os moradores do Ibura têm aos serviços de saúde do bairro pode ser descrito de forma similar para inúmeras outras áreas de periferia de grandes cidades. Todos os serviços de saúde existentes no bairro9 constituem-se em centros de atenção primária à população, com exceção de uma policlínica que apresenta um perfil diferenciado com serviço de pronto atendimento e atendimento ambulatorial. O acesso aos Postos de Saúde é relativamente facilitado devido à distribuição espacial das seis unidades básicas existentes, o que gera um certo “trânsito” ou “flutuação” da população na busca das ações de saúde oferecidas nestes serviços. Nos Postos de Saúde, o quadro funcional é bastante homogêneo, variando apenas em termos de número de profissionais e tempo que destinam ao atendimento. A equipe multiprofissional é formada por ginecologista, clínico, pediatra, enfermeira, auxiliar de enfermagem, odontólogo e agentes comunitários de saúde, que variam de quatro a seis em número. Não cabe aqui descrever o conjunto das ações de saúde oferecido à população local10 , mas, dadas as considerações anteriores sobre o tema planejamento familiar, torna-se interessante apontar as configurações gerais dos programas e ações desta área existentes na localidade. As ações de planejamento familiar são, no geral, conduzidas por enfermeiras que fazem palestras para grupos diferenciados de mulheres. Algumas são mães de filhos pequenos que fizeram o acompanhamento pré-natal na unidade de saúde e, no momento, buscam auxílio para evitar nova gravidez. Outras, mais jovens, ainda não tiveram filhos, embora tenham parceiros fixos ou estejam casadas. Estas, em reduzido número, são apontadas pelos profissionais dos serviços como desinteressadas e pouco assíduas nas reuniões de grupo e palestras. O relativo interesse deste público mais jovem, argumentam os profissionais, advém do cadastramento no programa para ter acesso aos métodos contraceptivos (camisinha e pílula) que, quando disponíveis, são repassados para as usuárias já cadastradas. Em caso de abastecimento normal, o que nem sempre é comum, estes são disponibilizados a cada 15 dias, momento que geralmente tende a coincidir com as atividades ordinárias de planejamento familiar. Nas entrevistas e conversas informais11 com os profissionais de saúde do bairro (gerentes e médicos) sobressaiu uma preocupação geral que foi colocada em termos de uma pergunta: “como vive essa gente?” Tal questão não traz consigo uma resposta pronta ou racional. Para estes profissionais,
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as duras condições que a vida imprime aos moradores do Ibura é, ao mesmo tempo, sub-humana, dada a carência de recursos que para eles são mínimos, e sobre-humana, em termos de um poder de resistência à adversidade a que estão submetidos. No tocante ao planejamento familiar, uma visão antiga – para não falar ultrapassada - e quase unívoca emergiu dos relatos: a de que os pobres se reproduzem sem pensar no amanhã, sem uma preocupação racional com o contexto de carência em que vivem. Este argumento é tributado a todos, sem exceção; mas para os evangélicos soma-se uma faceta que os deixa ainda mais perplexos: “a vontade de Deus”. Mas será que os “crentes”- categoria utilizada pelos profissionais de saúde, de forma ampla, para denominar as pessoas Modigliani com a ama, 1885 evangélicas – são todos iguais?; e mais, obedecem a uma leitura literal ou fundamentalista dos preceitos bíblicos, como acreditam estes profissionais? A pesquisa sobre planejamento familiar realizada com as 15 famílias apontou que o universo pentecostal, a despeito de suas variações internas, tem uma atitude que pode ser considerada como liberalizante ou secular. Os dados qualitativos são referendados por estudos quantitativos e, de forma resumida, pode-se entender que para os evangélicos “Deus deu à humanidade o conhecimento científico e, por conseqüência, a capacidade de produzir métodos anticoncepcionais que devem ser usufruídos por homens e mulheres” (Fernandes, 1998, p.108). Portanto, ao acionarem o adjetivo “tradicional” de forma universal para todo o grupo pentecostal, os profissionais dos serviços constróem uma imagem “homogênea” de um dado que se espelha na realidade de forma plural. Em outras palavras, o não entendimento por parte dos profissionais de saúde, antenados numa cultura racionalista e de valores modernos/individualistas (aqui penso de forma específica nos médicos, enfermeiros e gerentes), da experiência da religiosidade pentecostal como plural e não apartada dos mesmos valores seculares e modernos, os faz reproduzir uma idéia de “cultura da pobreza” que se auto-replica a despeito da vontade das pessoas. Neste tipo de argumentação fica de fora um aspecto - que tem sido apontado para o grupo dos evangélicos em geral - que diz respeito ao cuidado com o corpo e com a saúde. Segundo Mariz (1994b), a idéia de “libertação” é peça fundamental no discurso pentecostal. Muitos processos de adoecimentos são considerados pelos pentecostais como resultantes de uma investida externa (do diabo) e, portanto, estão associados a uma sensação de fraqueza e escravidão. A luta contra esta “força demoníaca” só tem sentido na medida em que o indivíduo se entrega a Deus. A libertação ou cura, portanto, se dá às custas de uma submissão a novas regras e preceitos comportamentais, em que as “fraquezas” e os “vícios” do corpo (bebida, cigarro, comportamentos abusivos em geral) são abolidos ou reprimidos. Nesta lógica, a noção de autonomia e racionalidade convive de forma harmônica com a idéia de um mundo mágico e sobrenatural. Assim,
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ao mesmo tempo em que se tem mais uma vez referendado o propósito aqui trabalhado de que a cultura dos urbanos pobres não se constrói como um universo em total dissonância com a lógica moderna da sociedade, vê-se que traços “modernizantes” de parte destes segmentos são desconsiderados pelos profissionais de saúde em detrimento do caráter “mágico” que essa religião imporia aos seus adeptos. Cabe discutir a “origem” da dificuldade sentida por esses profissionais em reconhecer o caráter multifacetário da realidade local e trazê-lo à prática cotidiana do trabalho. Tomo aqui dois exemplos. O primeiro diz respeito à temática da religiosidade como recurso das camadas populares para a solução de suas aflições, associadas a processos de morbidade. Para a maioria dos profissionais de saúde, a dimensão da religiosidade ou do transcendente é quase sempre escamoteada. Justificativas como “subjetividade exacerbada”, “ordem do desconhecido”, apenas vêm reforçar a idéia de que a diversidade presente no universo simbólico dos grupos populares sobre o processo saúde-doença não se ajusta aos cânones de cientificidade da prática médica, ou mesmo dentro da pesquisa acadêmica em Saúde Pública. Por certo que a visibilidade do fenômeno pentecostal veio impor novas questões sobre pertencimento religioso para profissionais de saúde em face da nova configuração de uma clientela em expansão (os “crentes” ou pentecostais). Até pouco tempo, a religiosidade popular de maior visibilidade para os profissionais de saúde era a afro-brasileira, sendo o catolicismo popular considerado apenas como uma forma excêntrica e, de resistência no meio urbano, de uma cultura religiosa mais arcaica. Se compararmos a noção de pertencimento religioso para pentecostais e adeptos de cultos afro-brasileiros, veremos uma significativa diferença. Como aponta Fernandes (1998), marcados por um estigma impresso pelo mundo da religião “oficial”, muitos dos adeptos dos cultos afro-brasileiros não chegavam a romper com a identidade católica, preferindo lidar com o duplo pertencimento; já os pentecostais caracterizam-se por construírem uma identidade religiosa exclusiva. A visibilidade de opção religiosa é expressa de forma reiterada por um proselitismo, por vezes exacerbado; uma nova e rígida forma de regulação do corpo, da sexualidade e da saúde é acionada na demonstração clara do rompimento com “o mundo” (bebida, cigarro, prazeres sexuais considerados ilícitos etc.) (Mariz, 1994b; Machado, 1996). Talvez essas características, ao invés de sugerir novas aproximações dos profissionais de saúde com os sujeitos, o que poderia implicar na otimização de suas ações de cuidado, tenha resultado num afastamento maior desse “outro” (distante culturalmente) tão “próximo” (localmente). Tem-se instaurada uma visão do “outro” como “diferente”, mas, ao mesmo tempo, homogêneo (“crente”). Implicações desta lógica podem ser observadas não apenas no trabalho cotidiano na atenção primária em saúde, mas também nos planejamentos de programas para populações carentes do meio urbano. Scott (1999) apontou com propriedade para a mudança ocorrida em termos de formulações de políticas de saúde destinadas à população carente nos últimos anos. Segundo ele, a transição política no direcionamento de programas voltados para as populações pobres pode ser sentida pelo
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enfoque diferenciado para “segmentos sociais” ou “grupos sociais”. Esta distinção sutil na forma de nomear tende a passar desapercebida, inclusive para os formuladores de políticas, mas auxilia o entendimento da mudança ocorrida12 e a pensar como o reconhecimento da diversidade pelos profissionais de saúde impõe novas possibilidades de diálogo com a população. As políticas de saúde com enfoque nos segmentos sociais (mulheres e adolescentes são prioritários) resultam em ações de saúde cujo alvo é o indivíduo que tende a ser considerado independente do seu contexto social. Já as políticas voltadas aos grupos sociais exigem estratégias que associem as demandas dos segmentos com a identidade da comunidade. O surgimento do Programa de Agentes Comunitários de Saúde/PACS e do Programa de Saúde na Família/PSF são exemplos significativos da mudança de direcionamento das políticas e ações já que, como aponta Scott (1999, p. 13), “introduz uma concepção de diversidade que se afirma na realidade contextualizada de comunidades e na necessidade de compreender a especificidade de suas demandas” . Nesta nova configuração das ações em saúde, a referência à diversidade em termos de opção religiosa se faz premente, isto porque, no caso do pentecostalismo, ela traz profundas implicações não apenas em termos de valores e atitudes de regulação do corpo, da sexualidade e saúde do sujeito que se converte, mas também, para a dinâmica familiar em que este se insere. Considerando a aposta de Duarte (2000) sobre a imbricação do saber e da prática médica com a lógica “selvagem” e “concreta” do povo, reconheço nesta nova direção que os programas assumem a possibilidade de uma mediação mais profunda entre esses dois mundos simbólicos. Tomando esta possibilidade de diálogo, constato a importância dos Agentes de Saúde inscritos nesses programas. Tendo suas identidades construídas e referendadas neste universo da pobreza, podem, com sua participação nos programas de saúde, atuar, senão enquanto mediadores, como interlocutores desse diálogo. Scott (1996) já apontou para a dificuldade que enfrenta o cientista social quando colocado na posição de mediador do diálogo entre os profissionais de saúde e a população. Não pretendo tratar aqui da polêmica acerca desse papel do cientista social. Neste trabalho, ao tratar da religiosidade e dos padrões de comportamento reprodutivo nas famílias de um grupo popular, busquei revelar a especificidade da cultura dos urbanos pobres do Ibura sem reproduzir a noção, ainda hoje arraigada no senso comum, de uma “cultura da pobreza” (Lewis, 1961). Ao utilizar um arsenal metodológico que auxiliou pensar a lógica da população como permeada de valores modernos e tradicionais a um só tempo, procurei desnaturalizar o dado social. Em outras palavras, discutir a forma como os padrões de sociabilidade e reprodução social dos indivíduos em suas famílias são construídos. Isto sim, acredito, pode trazer elementos para os profissionais de saúde em
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12 Scott (1999) toma segmento social como uma categoria mais abstrata, onde algumas características são utilizadas para extrair as pessoas do contexto em que vivem; a identificação se dá por sexo, idade, renda, cor, etc. Já os grupos sociais reúnem referências mais concretas e complexas. Os grupos sociais congregam pessoas com características diversas que interagem com regularidade na vida cotidiana, por exemplo, grupos familiares, de parentesco, de vizinhança.
Chaplin com sua família
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termos do reconhecimento da diversidade que permeia o universo das famílias pobres e, com isso, contribuir para o trabalho desses profissionais em formular e implementar ações mais sensíveis à diversidade destes grupos sociais; o que poderá levar, enfim, ao diálogo entre estes e as populações. Referências bibliográficas AUBRÉE, M. Voyages entre corps et esprits: étude comparative entre deux courants religieuses dans le Nordest brésilien. Paris, 1985. Tese (Doutorado) 3 éme Cicle, Universidade de Paris VII Jussieu. BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982. COUTO, M. Gestão comunitária e saúde em quatro comunidades do Ibura. In: SCOTT, R. Saúde e pobreza no Recife. Recife: Editora da UFPE, 1996. p.77-89. COUTO, M. Comportamento reprodutivo, gênero, família e afiliação religiosa entre classes populares no Ibura. Relatório Final de Pesquisa CNPq/FACEPE. São Paulo, 2000. (mimeogr) DA MATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1989. DUARTE, L. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. DUARTE, L. A medicina e o médico na boca do povo. Rev. Anthropol. v.9, p.7-14, 2000. DUMONT, L. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de janeiro: Rocco, 1993. FERNANDES, R. et al. Novo nascimento: os evangélicos em casa, na igreja e na política. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. FRESTON, P. Breve história do pentecostalismo brasileiro. In: ANTONIAZZI, A. et al. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994. p.67-162. FREYRE, G. Casa grande e senzala. 32 ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. LEWIS, O. Antropología de la pobreza. México: Fondo de Cultura Económica, 1961. MACHADO, M. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. São Paulo: Autores Associados/ANPOCS, 1996. MACHADO, M. Sexualidade e contracepção em grupos religiosos brasileiros. In: SILVA, D. (Org.) Saúde, sexualidade e reprodução: compartilhando responsabilidades. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1997. p.67-82. MARIZ, C. Libertação e ética: análise do discurso de pentecostais que se recuperaram do alcoolismo. In: ANTONIAZZI, A. et al. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994. p.204-224. MARIZ, C., MACHADO, M. Changements récents dans le champ religieux bresilien. Soc. Compass. v.45, n.3, p.359-78, 1998. MINAYO, M. Representação da cura no catolicismo popular. In: ALVES, P. C., MINAYO, M.C.S. (Orgs.) Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998. p.57-72. PAIM, H. Marcas no corpo: gravidez e maternidade em grupos populares. In: DUARTE, L., LEAL, O. (Orgs) Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Antropologia e Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p.98-115. RABELLO, M. Religião, ritual e cura. In: ALVES, P. C., MINAYO, M. C. S. (Orgs.) Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998. p.47-56. SARTI, C. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas: Autores Associados, 1996. SCOTT, R. Saúde e pobreza no Recife. Recife: Editora da UFPE, 1996. SCOTT, R. Transição política e a agenda de programas de saúde reprodutiva em regiões de periferias nacionais: o caso do NE brasileiro. Recife, 1999. (mimeogr.)
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MÁRCIA COUTO
VILLA, A. O significado da reprodução na construção da identidade masculina em setores populares urbanos. In: COSTA, A. (Org.) Direitos tardios: saúde, sexualidade e reprodução na América
LUIZ ANTONIO, O Cinegrafista, Caruaru, PE
Latina. São Paulo: FCC/Ed. 34, 1997. p.59-72.
COUTO, M. T.
Religiosidad, Reproducción y Salud en familias urbanas pobres. Interface _
Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.27-44, 2001. En este trabajo se analiza la conversión religiosa personal en el contexto de las relaciones familiares en un área de la periferia de la ciudad de Recife, Pernambuco – Brasil. Presenta resultados de una investigación de carácter cualitativo sobre los significados de la conversión para los integrantes de la familia y las resultantes transformaciones en el comportamiento reproductivo. Por fin, con base en el material empírico, se apuntan ciertas cuestiones sobre los servicios de salud existentes en el barrio y el uso que hace de ellos la población. PALABRAS-CLAVE: religión; poblacion urbana; relaciones familiares; reproduccion; servicios de salud. Recebido para publicação em: 15/08/00. Aprovado para publicação em: 19/09/00.
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MANUEL EUDÓCIO, Casamento na roça, Caruaru, PE
Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero*
Lucila Scavone 1
SCAVONE, L. Motherhood: transformation in the family and in gender relations. Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.47-60, 2001. This article makes a sociological reflection on the most striking changes in the patterns and experiences of contemporary motherhood, based on existing studies and research, trying to place the debate surrounding this process. It assumes that choosing motherhood is a modern phenomenon consolidated in the course of the twentieth century as a result of the progress of industrialization and urbanization. With increased access to formal education and professional training, women will tend to take up positions in public space, while remaining responsible for raising their children, which turns motherhood into a reflexive choice, enabled by modern contraception (and conception). This choice, however, is marked by the relations of class, race and ethnic background, and gender. The article concludes that we are currently experiencing a transition period toward a new model of family and motherhood, whose basis it the ideal of equally balanced parental responsibility that, despite some progress, is still far from having been attained. KEY WORDS: motherhood, gender, family. Este artigo faz uma reflexão sociológica das mudanças mais marcantes nos padrões e experiências da maternidade contemporânea, com base em estudos e pesquisas existentes, buscando situar o debate que tem sido construído em torno desse processo. Pressupõe que a escolha da maternidade é um fenômeno moderno consolidado no decorrer do séc. XX com o avanço da industrialização e da urbanização. Com mais acesso à educação formal e à formação profissional, as mulheres vão ocupar o espaço público, mantendo a responsabilidade da criação do(a)s filho(a)s, o que fez a maternidade se tornar uma escolha reflexiva, possibilitada pela contracepção (e concepção) moderna. Entretanto, essa escolha é marcada pelas relações de classe, de raça/etnia e de gênero. Conclui que estamos vivendo um período de transição para um novo modelo de família e maternidade, cujo substrato é o ideal de eqüidade na responsabilidade parental que, apesar dos avanços, ainda está longe de ser alcançado. PALAVRAS-CHAVE: maternidade, gênero, família.
*
A primeira versão deste texto foi apresentada no GT Família e Sociedade na XIX Reunião Anual da ANPOCS, Caxambu, MG, 1995.
1
Departamento de Sociologia, Universidade Estadual Paulista/UNESP, Campus de Araraquara. <lucsca@uol.com.br>
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CARLOS REIS, O batizado, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de janeirio
Introdução O objetivo deste artigo é fazer uma reflexão sociológica das mudanças mais marcantes nos padrões e experiências contemporâneas da maternidade, com base em estudos e pesquisas existentes, situando o debate teórico em torno desse processo (Badinter,1980; Chodorrow, 1980; Deutsch,1987; Ferrand, 1982; Knibielher, 1977; Kitzinger, 1978; Vilaine et al., 1986). Pressupomos que a escolha da maternidade é um fenômeno moderno consolidado no decorrer do séc. XX com o avanço da industrialização e da urbanização. As transformações pelas quais os padrões de maternidade vêm passando, nos últimos trinta anos, devem ser pensadas em conexão com esses processos sociais e com a globalização econômica, a qual contribuiu para acelerar a difusão de novos padrões de comportamento e consumo. Entre estes, podemos citar como exemplo, o consumo crescente das novas tecnologias reprodutivas (contraceptivas e conceptivas) que ofereceram às mulheres, da década de sessenta em diante, a possibilidade de escolher com maior segurança a realização da maternidade. Cabe lembrar, neste decurso, as mudanças que vêm ocorrendo na vida privada, especialmente na família e nas relações de gênero, com a emergência de novos modelos de sexualidade, parentalidade e amor, tais quais os apontados por Giddens (1993, p.73) como o “amor confluente” que “presume igualdade na doação e no recebimento emocionais”, fruto das relações de gênero observadas, em pesquisas analisadas por este autor, nas sociedades inglesa e americana, nas décadas de setenta e oitenta. Neste artigo abordamos a maternidade como um fenômeno social marcado pelas desigualdades sociais, raciais/étnicas, e pela questão de gênero que lhe é subjacente. Decorre disto que as mudanças e implicações sociais da realização dessa experiência não atingem da mesma forma todas as mulheres, países e culturas, apesar de existir um modelo de maternidade preponderante nas sociedades ocidentais contemporâneas, que tem como características gerais proles reduzidas e mães que trabalham fora2 . Portanto, é necessário considerar neste debate a inserção das mulheres no mercado de trabalho, sua presença no mundo público e os impactos que estes fatos trouxeram à instituição familiar e, em conseqüência, à experiência da maternidade. O pano de fundo desta discussão ressalta que a questão da maternidade em todos seus aspectos sempre esteve presente na luta libertária das mulheres e, portanto, foi objeto constante da reflexão teórica feminista. É com base nestes elementos que construímos nossa reflexão sobre a maternidade.
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2 As diferenças do modelo dominante de maternidade são observáveis nas variações das taxas de fecundidade em diferentes países. Ela costuma ser mais alta nos países menos desenvolvidos, onde as políticas de controle da natalidade ainda estão em curso ou naqueles países que, por motivos culturais, sociais e econômicos estas políticas não vingaram, como na maioria dos países africanos (George, 1990). Entretanto, segundo Leridon e Toulemon (1996), a taxa mundial de fecundidade em 1991 era de um pouco mais de três filho/as por mulher, indicandonos que a tendência da maternidade futura será de proles reduzidas.
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Ser ou não ser mãe: dilema moderno?
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A realização da maternidade não era especialmente aconselhada às mulheres trabalhadoras: as vendedoras nas lojas de departamentos em Paris, na segunda metade do séc. XIX, temerosas de perder o emprego, costumavam amarrar a barriga para esconder a gravidez, o que resultava, seguidamente, em perda da criança (Zola, 1998).
Veja-se entre as análises brasileiras sobre mulheres e trabalho Bruschini (1994), Abramo e Paiva Abreu (1998). Sobre emprego e estratégias familiares na França e Brasil ver Cahiers du GEDISST (1992). O feminismo de inspiração marxista utilizou muito o conceito de “dupla jornada” para designar o trabalho da mulher operária na fábrica e em casa. Este último também foi chamado de “trabalho invisível”. Ver Larguia (1970). 4
Nas sociedades rurais, a maternidade sempre foi assimilada à fecundidade da terra. As crianças apareciam como necessárias para o trabalho e como segurança para o futuro dos pais, na velhice e na doença, embora, muitas vezes, representassem um encargo no presente (Knibielher, 1977). O “infanticídio tolerado” a que se refere Ariès (1981), no final da Idade Média, retrata uma época na qual a vida da criança e a própria experiência da maternidade tinham outro valor. Segundo Giddens (1993) a “invenção da maternidade” faz parte de um conjunto de influências que afetaram as mulheres a partir do final do séc. XVIII: o surgimento da idéia de amor romântico; a criação do lar, a modificação das relações entre pais e filhos. O autor assinala que no final do séc. XIX houve um “declínio do poder patriarcal” com o “maior controle das mulheres sobre a criação dos filhos” referindo-se a um deslocamento da “autoridade patriarcal para a afeição maternal” (Ryan 1981, apud. Giddens, 1993, p.53). Ele destaca como novo, neste período, a forte associação da maternidade com a feminilidade. Este modelo se consolidou-se em uma ideologia que passou a exaltar o papel natural da mulher como mãe, atribuindo-lhe todos os deveres e obrigações na criação do(a)s filho(a)s e limitando a função social feminina à realização da maternidade. Entretanto, como nos alerta Knibielher e Fouquet (1977), a realização desse ideal de maternidade era impossível para as mulheres pobres: As classes dominantes que reinventam a maternidade como vocação feminina exclusiva estão em contradição absoluta com a realidade concreta: muitas mulheres trabalham no séc.XIX e devem assumir sua maternidade nas condições mais difíceis. A distância é imensa entre o ideal descrito e sonhado da mãe educadora, consagrada em tempo integral a suas crianças, e a vida cotidiana das mães de origem modesta.3 (p.210)
A transição de um modelo tradicional de maternidade (a mulher definida essencial e exclusivamente como mãe: proles numerosas) para um modelo moderno de maternidade (a mulher definida também como mãe, entre outras possibilidades: proles reduzidas e planejadas) deu-se com a consolidação da sociedade industrial. As contradições inerentes ao processo de industrialização e a forma como as mulheres ingressaram no mercado de trabalho, marcadas por profundas desigualdades sociais e sexuais, revelam os impactos desse processo na mudança dos padrões da maternidade. No momento em que as mulheres das famílias operárias, no séc. XIX, começaram a associar, de forma crescente, trabalho fora do lar e maternidade (leia-se, também, como trabalho no lar), instaurou-se a lógica da dupla responsabilidade, que se consolidou no séc. XX, com o avanço da industrialização e da urbanização, recebendo por parte das análises feministas contemporâneas a designação de “dupla jornada de trabalho” 4 .
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Com mais acesso à educação formal e à formação profissional, as mulheres vão, no decorrer do século XX, ocupar gradativamente o espaço público, ao mesmo tempo em que mantêm a responsabilidade na criação do(a)s filho(a)s. Neste contexto, ser ou não ser mãe passou a ter uma dimensão reflexiva5 , a ser uma decisão racional, influenciada por fatores relacionados às condições subjetivas, econômicas e sociais das mulheres e, também, do casal. O advento da modernidade e de suas conquistas tecnológicas, sobretudo no campo da contracepção, e mais recentemente da concepção, trouxe às mulheres uma maior possibilidade na escolha da maternidade e abriu espaço para criação do dilema de ser ou não ser mãe. Um dos elementos que viabilizou a escolha da maternidade foi, sem dúvida, a contracepção moderna. Entretanto, o controle da fecundidade (com o uso de contraceptivos e/ou abortivos) não é novo na História. Diferentes sociedades utilizaram diversas formas de evitar os nascimentos. Para Shorter (1992, p.168) as mulheres sempre tiveram a possibilidade de acabar com uma gravidez indesejada, principalmente pelo meio de drogas abortivas. Algumas dessas drogas eram muito perigosas e precisava uma vontade firme para usá-las. Assim, o aborto foi quase sempre um ato desesperado.
Foi no final do séc. XIX que essa situação começou a mudar e segundo Shorter, acontece a “primeira grande explosão do aborto”, como meio de limitar os nascimentos. Esses fatos sugerem que a realização da maternidade não foi sempre aceita como irreversível, ocorrendo na História, em épocas distintas e por motivos diversos, uma recusa circunstancial da maternidade frente aos padrões de natalidade dominantes, sobretudo entre as mulheres solteiras e/ ou entre aquelas que já tinham tido muito(a)s filho(a)s. Vale dizer, a condenação social desta recusa sempre foi muito forte, ainda persistindo em sociedades nas quais o aborto é proibido. Nas sociedades industrializadas modernas, com o advento do planejamento seguro dos nascimentos e a possibilidade de escolher o momento, retardando a idade de as mulheres terem o primeiro filho/a (Langevin, 1984), a recusa circunstancial da maternidade deu lugar à escolha da maternidade. Os motivos da escolha da maternidade podem estar ligados a inúmeras causas que, isoladas ou conjuntas, se explicariam no ponto de interseção do biológico, do subjetivo e do social: o desejo atávico pela reprodução da espécie, ou pela continuidade da própria existência; a busca de um sentido para a vida; a necessidade de uma valorização e de um reconhecimento social (como no caso de algumas mães adolescentes, ansiosas por ocupar um espaço de maior respeitabilidade na sociedade); o amor pelas crianças; a reprodução tradicional do modelo da família de origem, entre outros. Em relação aos fatores especificamente sociais estão as condições econômicas e culturais das famílias; os projetos e possibilidades profissionais
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No sentido utilizado por Giddens (1991, p.45): “A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e revisadas à luz de novas informações sobre estas próprias práticas, alterando constitutivamente seu caráter” .
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O declínio progressivo da fecundidade, mediante utilização de métodos contraceptivos modernos, alterando o perfil demográfico da população brasileira, coincide com as transformações que resultaram dos processos de industrialização e urbanização no país, os quais possibilitaram a introdução e aceitação de novos padrões de reprodução e consumo próprios dos países do norte. Este fato está igualmente associado aos objetivos dos países credores em reduzir o crescimento demográfico dos países devedores, no quadro dos planos de ajuste estrutural definidos pelo Fundo Monetário Internacional, quando da concessão de empréstimos ao Brasil. (Scavone, Brétin, Thébaud-Mony, 1994). A BEMFAM, Sociedade do Bem-Estar Familiar, entidade sem fins lucrativos financiada pela IPPF (Federação de Planejamento Familiar Internacional) que subvenciona programas de planejamento familiar nos países do sul, é um bom exemplo desta política. Ela foi uma das entidades que mais contribuiu para a divulgação e distribuição dos contraceptivos orais no Brasil, atuando inicialmente no Nordeste e, posteriormente, no Sudeste. Desde sua instalação no Brasil, em 1965, a BEMFAM realizou convênios com prefeituras, empresas, órgãos estaduais e federais, evidenciando a política de “laissez faire” que o governo brasileiro adotou em relação ao controle da natalidade no país. (World Bank, 1990). Nos anos mais recentes a BEMFAM vem realizando surveys nacionais sobre a situação da Saúde Reprodutiva das mulheres brasileiras (BEMFAM/ IRD, 1987 e 1997).
das mulheres. As facilidades ou as dificuldades variam de uma classe para outra e de país para país: a situação e a qualidade dos serviços públicos e/ ou particulares disponíveis; o apoio ou proximidade da família extensiva; as redes de solidariedade femininas. Entretanto, as condições materiais de existência não determinam, via de regra, a escolha da maternidade, embora elas definam as características e as possibilidades desta escolha. Foi com o advento da contracepção medicalizada moderna, especialmente da pílula contraceptiva, que as mulheres tiveram acesso a uma das principais chaves para a livre escolha da maternidade, com a possibilidade de um controle eficaz e socialmente aceito da fecundidade. Embora o direito à contracepção livre e gratuita tenha sido uma das reivindicações mais importantes do movimento feminista contemporâneo, sobretudo o europeu, ele nem sempre foi produto de uma conquista das mulheres, especialmente nos países do sul. As formas diferenciadas da difusão dos métodos contraceptivos em diferentes países - seja como conquista de uma luta feminista (o caso da França), seja como objetivo das políticas demográficas (o caso do Brasil) indicam a existência de inúmeras contradições nesse processo6 . Destaca-se entre estas, os limites da livre escolha marcados: pelas contradições de classe, raça/etnia; pelos impactos da utilização de métodos contraceptivos pesados como a esterilização feminina no Brasil; pelos danos que os métodos contraceptivos, sem acompanhamento médico, podem causar à saúde das mulheres; pelas desigualdades sociais relacionadas com o uso HENRIQUE BERNARDELLI, Maternidade, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro
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dos métodos contraceptivos (Scavone; Brétin; Thébaud-Mony, 1994). Cabe ressaltar que a esterilização se tornou a solução das mulheres brasileiras (e latino-americanas) para optarem pela não-maternidade7 . A legalização do aborto, em diversos países do hemisfério norte, também foi um elemento a mais neste processo, oferecendo condições seguras e menos culpabilizantes às mulheres para interrupção da gravidez indesejada. Em países como o Brasil, onde o aborto não é legalizado, o acesso ao mesmo é mais complexo, o que não impede que ele venha sendo amplamente utilizado8 . A prática do aborto é uma outra possibilidade de escolha para a não realização da maternidade, reforçando o caráter social da maternidade e sua não determinação biológica. Os aspectos ambíguos da escolha da maternidade, relacionados com as condições sócio-econômicas e subjetivas de quem escolhe - portanto, nem sempre fácil, possível ou reflexiva - são visíveis na análise das diferentes experiências contemporâneas da maternidade que discutiremos mais adiante neste texto. A maternidade como escolha é um fenômeno moderno e contemporâneo que foi se consolidando no decorrer do século XX e a crítica feminista tem um lugar importante nesta reflexão, pois nos fornece os principais elementos para a compreensão do processo. Maternidade, Feminismo e Gênero A teoria feminista contribuiu para verbalizar a tomada de consciência das mulheres a respeito das implicações sociais e políticas da maternidade. O feminismo libertário, que politizou as relações da vida privada, valendo-se da reflexão sobre questões ligadas à esfera da vida íntima, colocou em destaque, nos anos setenta (continuando pelos anos oitenta) a discussão do significado da maternidade9 . Os estudos feministas de então privilegiaram a maternidade para explicar a situação de desigualdade das mulheres em relação aos homens. Por parte das correntes teóricas radicais, considerava-se a maternidade como o eixo central da “opressão das mulheres”, já que sua realização determinava o lugar das mulheres na família e sociedade. Portanto, a recusa consciente da maternidade foi o caminho proposto por esse feminismo para alcançar a liberdade. Esta recusa consistia em uma tentativa de negar o fatalismo biológico feminino da maternidade, romper com o determinismo dado pela natureza, já que ele era um argumento forte para justificar as desigualdades entre os sexos. Na França, destaca-se Beauvoir (1975, 1977), a mais expressiva expoente intelectual desta corrente. Nos EUA, uma outra corrente mais radical condicionava a libertação da mulher à chegada da reprodução artificial, supondo que, então, a maternidade não se passaria mais no corpo das mulheres (Firestone, 1976). Já num segundo momento, uma outra corrente, inspirada na Psicanálise, recupera a maternidade como um poder insubstituível que só as mulheres possuíam - fazendo parte da história e identidade femininas - e os homens invejavam (Irigaray, 1981). O problema não era mais a negação da
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De fato, a esterilização feminina é um dos ‘métodos contraceptivos’ mais utilizados nos países da América Latina (Molina, 1999) confirmando a constatação de estudos que apontam para o fato desta técnica ser menos utilizada no “mundo desenvolvido” do que no “mundo menos desenvolvido” (Berquó, 1999) onde a queda da fecundidade é considerada, pelos organismos internacionais, como uma meta importante visando ao desenvolvimento (Mauldin e Ross, 1991) .
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Estima-se que um milhão e quatrocentos mil abortos são realizados clandestinamente por ano no Brasil. Isto significa que 6% das mulheres em idade reprodutiva realizam um aborto (The Alan Guttmacher Institute, 1994).
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O slogan feminista “o privado também é político” sintetiza esta politização das questões privadas, as quais foram objeto de estudo nos grupos de reflexão dos anos setenta e oitenta (Revue Partisans, 1970). A maternidade foi um dos temas favoritos dessas discussões, conforme mostram inúmeras publicações específicas da época (Vilaine et al., 1986, entre outras).
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10 A corrente alemã desse feminismo sugere às mulheres uma melhor divisão das atividades profissionais e maternais, dando maior atenção aos filhos e consumindo menos. Ver os textos de Mies (1991). Esta proposta vem ao encontro da proposta de gestão e autonomia da vida privada discutida por Gorz (1991).
11 Kergoat (1996, p. 24) diz: “é impossível colocar em oposição gênero e relações sociais de sexo, os dois termos são altamente polissêmicos. Encontramos nos dois casos, o mesmo leque de acepções que vão da simples variável mulher, até uma análise em termos de relações sociais antagônicas”. O conceito de relações sociais de sexo é utilizado pela Sociologia francesa e responde pela construção social das diferenças entre os sexos, pressupondo uma hierarquia social e uma relação de dominação e poder entre os sexos. O conceito de gênero, mais utilizado nos estudos de língua inglesa, também vai nessa direção, busca ultrapassar as definições da “categoria homem/ mulher como uma oposição binária que se auto-reproduz (...) sempre da mesma maneira”, o que implica refutar sua construção hierárquica como natural. Além disso, a utilização deste conceito mostra que a análise deve estar voltada para: as representações simbólicas; o sentido dos símbolos e da experiência; a política institucional e organizacional; a identidade subjetiva (Scoot, 1990, p.10).
maternidade, mas, a divisão eqüitativa das responsabilidades entre mães e pais. Segundo análise de Dandurand (1994, p.9): As posições das mulheres sobre a maternidade se situam num contínuo entre dois pólos: um, no qual, a condição materna é vista como exasperante, exigente ou mesmo destruidora; o outro, na qual ela é apresentada como única, rica e insubstituível.
De fato, passou-se das posições que ressaltavam as implicações sociais negativas da maternidade para as que valorizavam seus aspectos psicoafetivos; de uma forte negação para uma vibrante afirmação, espelhando provavelmente as ambigüidades concretas dessa experiência. No seu conjunto, essas reflexões constituem uma crítica feminista ao discurso dominante da “invenção da maternidade”. Os elementos deste contradiscurso contribuíram para maior tomada de consciência das mulheres na construção de uma escolha reflexiva da maternidade. Por outro lado, contribuíram para o questionamento mais profundo das relações de gênero na família, (re)discutindo o lugar do pai. Esta crítica foi se renovando, acompanhando as mudanças sociais e, nos anos noventa, os estudos feministas sobre a maternidade tomam uma nova direção. Primeiramente, tornaram-se mais escassos, principalmente enquanto reflexão mais abrangente do significado da maternidade. As pesquisas do período centraram-se nas questões mais específicas dos direitos e usos das tecnologias reprodutivas, bem como de suas conseqüências à saúde das mulheres: contracepção, esterilização, aborto, cesariana, nos países do sul, e novas tecnologias de concepção, nos países do norte (Dossiê Mulher e direitos reprodutivos, 1993; Akrich e Laborie, 1999). Uma das questões que surgiu dessas reflexões tem a ver atualmente com a ingerência crescente da Medicina na procriação: “a reprodução não estaria escapando progressivamente das mulheres?” (Dandurand, 1994, p.9). Esta inquietação remeteu, implicitamente, a uma postura positiva diante da maternidade: uma experiência feminina importante, cujo controle não deveria escapar às mulheres. E, por outro lado, colocou o problema da maternidade no âmbito de uma discussão mais ampla sobre os impactos das novas tecnologias nas sociedades modernas, reavivando o debate sobre a relação natureza e cultura, com base no feminismo de inspiração ecológica 10 . Em segundo lugar, outro grupo de estudos analisou a questão da maternidade sob o ponto de vista das relações sociais de sexo, ou de gênero11 , construindo o conceito de “parentalidade”: “trata-se de estudar o posicionamento dos atores sociais dos dois sexos no processo de constituição do laço parental e não mais de partir de uma especificação a priori deste laço segundo o sexo” (Combes e Devreux,1991, p.5). Este tipo de análise tem como ponto de partida a relação dos indivíduos adultos (homens e mulheres) com suas crianças, não considerando a priori as noções de maternidade e paternidade. Esses estudos constataram ocorrências de um tipo de parentalidade em que as mulheres continuam tendo uma relação mais comprometida com os filho(a)s do que os homens (Combes e Devreux,1991; Cournoyer, 1994), sendo ainda elas que assumem a maioria
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das responsabilidades parentais. Por outro lado, na pesquisa de Combes e Devreux (1991) também foi observado que alguns homens também assumiam estas responsabilidades, indicando tendências de transformações nas relações parentais e nas relações de gênero. O estado atual dessas pesquisas reflete tanto as mudanças que estão ocorrendo no interior da família e sociedade, como também as ambigüidades de fundo que caracterizam a experiência da maternidade. Mudanças nos padrões da maternidade Analisando a experiência da maternidade entre as mulheres francesas, Ferrand (1994) assinala uma relação entre a idade de as mulheres terem o primeiro filho e o meio social das mesmas, constatando que as francesas têm seus filhos majoritariamente na faixa dos 25-35 anos: o primeiro nascimento é mais adiado quanto mais elevado é o nível de formação da mãe” (..) A decisão de ter um primeiro filho às vezes é um problema de calendário; a de ter um segundo depende de outro registro. Cerca de uma mãe em seis não deseja o segundo filho, entretanto, ter dois filhos parece ser um ideal para a grande maioria dos casais. (p.83)
Por outro lado, o terceiro filho, incentivado pelo Estado francês visando ao aumento da natalidade, provoca geralmente “a interrupção da atividade profissional da mãe e remete a uma imagem de conotação negativa nas representações dominantes atuais: a da mulher que não trabalha fora”. Mas, a autora explica que a queda de fecundidade na França nos últimos trinta anos “não deve ser interpretada como uma recusa de filho/as (...) a proporção de casais sem filhos nunca foi tão fraca” (Ferrand, 1994, p.83). Esta situação, num país altamente industrializado e com uma política de incentivo à natalidade explícita nos dá elementos para afirmar que o padrão de maternidade reduzida na sociedade francesa traduz a escolha reflexiva das mulheres, exercendo indiretamente seus efeitos no modelo tradicional de paternidade (pai ausente) que vai sendo substituído por um modelo contemporâneo com maior participação do pai (pai presente). Destaca-se também, naquele país, o fato de que a escolha reflexiva do primeiro filho(a) apareceu influenciada pelo grau de formação da mãe e pelo seu envolvimento na carreira profissional. Estudos demográficos já demonstraram que a tendência, em outros países da Europa Ocidental, é cada vez mais a expansão do padrão reduzido de maternidade, abaixo de dois filho(a)s por mulher (Berquó, 1999, Leridon e Toulemon, 1996). Além disso, os próprios efeitos do processo de globalização, a busca do equilíbrio político-demográfico mundial e a rapidez com que as informações circulam, tendem a erradicar esse modelo para os países do sul, ao mesmo tempo em que as políticas natalistas tentam revertê-lo nos países do norte12 . No caso do Brasil, um dos grandes impactos dos últimos anos na família e no padrão vigente de maternidade foi a queda abrupta da natalidade – o
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12 “A globalização não deve ser vista simplesmente como um fenômeno que “está alí” , mas também como o que está aqui; ela afeta não somente espaços locais, mas afeta até as intimidades da existência pessoal, já que atua de modo a transformar a vida cotidiana” Giddens (1994, p. 11).
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13 Artigo publicado na Folha de São Paulo (14/05/95), no dia das mães, com base em dados da Fundação SEADE/1993, com o título ambígüo de “virus da maternidade”, relata os depoimentos de mulheres que fizeram a opção pela maternidade depois de terem conseguido uma maior estabilidade profissional e financeira.
número de filho/as por mulher passou de 4,5 em 1980 para 2,5 em 1996 – por meio de uma intensa política de controle demográfico, com a generalização abusiva da esterilização feminina (Nações Unidas, 1994 apud. Leridon et Toulemon, 1996; PNDS/BEMFAM, 1997) . De fato, as análises das transformações da família brasileira nos últimos anos apontam para novos arranjos familiares, tais como famílias menores e aumento significativo de mulheres chefes de família (Oliveira, 1996; Goldani, 1994). Por outro lado, as mulheres brasileiras participam cada vez mais do mercado de trabalho (Bruschini,1994), confrontando e/ou conciliando a vida profissional com a vida familiar. Se a maioria das mulheres brasileiras ainda tem seus filho(a)s na faixa etária jovem, elas também interrompem definitivamente a opção da maternidade jovens e até com poucos filho(a)s. A esterilização feminina aumenta com a idade, as mulheres jovens também usam este recurso: na Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde (PNDS/BEMFAM, 1997), 11% das mulheres, em união, até os 25 anos, são esterilizadas; dos 25 aos 29 anos, a taxa aumenta para 27%, chegando a mais de 50% dos 35 aos 49 anos. Nesta mesma pesquisa, das mulheres unidas com um filho/a, 6% são esterilizadas e para as mulheres unidas com dois filho(a)s esta taxa aumenta para 42% (PNDS, 1997). No Estado de São Paulo, 58,4% das mulheres têm filho(a)s entre 20-29 anos; 6,5% têm filho(a)s entre 35-39 anos. Embora pouco representativo, o percentual dessa última faixa já demonstra um avanço na idade da realização da maternidade; em geral são mulheres profissionais que esperam primeiro alcançar uma estabilidade e independência financeira, para depois realizar a maternidade13 . Esta é uma mudança que atinge menos as mulheres das camadas populares: em pesquisa que realizamos entre essas mulheres, no interior de São Paulo, aquelas que já tinham tido filho(as) e não pretendiam mais tê-lo(as), 22% justificavam a não pretensão por considerarem que já tinham passado da idade, isto é, estavam na faixa etária entre 36-45 anos. Foi verificada, nessa pesquisa, uma relação positiva entre as mulheres que já tinham filho(a)s com a pretensão de não mais tê-lo(a)s e as mulheres que não tinham filho(a)s com a pretensão de tê-lo(a)s. Destas últimas, 80% pretendiam ainda ter filho(a)s e as 20% restantes expressaram um talvez, denotando que a realização futura da maternidade estava presente nesse universo (Scavone, 1991). Todos os indicativos acima apontados sugerem que a experiência da maternidade na sociedade brasileira está em processo de mudança, seguindo o padrão do tamanho de família vigente nas sociedades industriais avançadas (proles reduzidas e maior reflexividade na escolha) ressalvandose, porém, sua peculiaridade diante das profundas desigualdades sociais que vigoram no país. Neste contexto, tanto a possibilidade de realizar uma escolha mais reflexiva da maternidade, como a valorização da criança, varia em intensidade, de acordo com as condições sócio-econômicas-culturais de cada mulher, sugerindo as múltiplas influências nesse processo de mudança.
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Impasses e
Perspectivas
Entre o modelo reduzido de maternidade com uma variedade crescente de tipos de mães (mães donas de casa, mães chefes-de-família, mães “produção independente”, “casais igualitários”) e as diversas soluções encontradas para os cuidados das crianças (escolas com tempo integral, creches públicas, babás, escolinhas especializadas, vizinhas que dão uma olhadinha, crianças entregues a seus próprios cuidados, avós solícitos), a maternidade vai se transformando, seguindo tanto as pressões demográficas - natalistas ou controlistas - como as diferentes pressões feministas e os desejos de cada mulher. Se o modelo da maternidade reduzida pôde diminuir a ambigüidade entre vida profissional e vida familiar, para as mulheres ele não a esgotou. A realização da maternidade ainda é um dilema para as mulheres que querem seguir uma carreira profissional, já que são elas que assumem a maioria das responsabilidades parentais. Não seria este um dos fatores relevantes para as mulheres brasileiras recorrerem a recursos radicais como a esterilização e o aborto, decidindo pela não-maternidade? Ressalta-se, porém, que um dos aspectos mais evidentes na transformação da maternidade foi o rompimento com seu determinismo biológico. Este rompimento levou à separação definitiva da sexualidade com a reprodução, primeiro pela contracepção medicalizada, em seguida pelas tecnologias conceptivas, desconstruindo a equação mulher=mãe, e construindo uma outra equação mais complexa, na qual entram em cena com maior vigor a classe médica e as tecnologias. A “maternidade artificial”, ou a “parentalidade artificial” já são as fórmulas do presente (que se ampliarão no futuro) para os indivíduos estéreis que buscam a reprodução in vitro, com suas imbricadas implicações éticas, médicas, políticas, além de suas controvertidas conseqüências à saúde das mulheres (Laborie,1996). A busca pelas tecnologias conceptivas já evidencia a nova conotação da escolha da maternidade, da paternidade, ou da parentalidade: a esterilidade (por vezes causada pela esterilização precoce) pode ser resolvida pela Medicina e isto requer um longo processo, implicando uma escolha reflexiva. Entretanto, a maternidade continua sendo afirmada como um elemento muito forte da cultura e identidade feminina pela sua ligação com o corpo e com a natureza. Essa afirmação nos países do norte constitui o que já foi conceituado como “nova maternidade”, ou seja, a realização da eqüidade na responsabilidade parental (Süssmutch, 1988). Por outro lado, nesses países a maternidade tomou uma “dimensão coletiva” inegável, escapando ao individualismo familiar, a que se refere Knibielher (1977), passando a ser mais que um vínculo biológico exclusivo, com o incremento de instituições especializadas; apesar de muitas de suas implicações sociais e afetivas continuarem a constituir um conflito de gênero e entre os gêneros no interior da família. Nos países do sul, essas mudanças afetam, sobretudo, as mulheres das classes mais privilegiadas. Em síntese, é possível observar, em relação à família e à experiência da maternidade, que estamos vivendo um período de transição para a
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consolidação de um novo modelo de maternidade, o qual tem como ideal a busca pela eqüidade na responsabilidade parental e cuja efetivação ainda está longe de ser alcançada em todos seus aspectos, já que ela pressupõe uma relação igualitária entre os sexos. Para alcançar esta eqüidade muitos elementos estão em jogo e, entre eles, a emergência de uma nova sensibilidade social que derrube o ideário do determinismo biológico. A escolha reflexiva para aceitação ou não da maternidade (da paternidade, ou da parentalidade) constitui um elemento deste período de transição, possibilitando às mulheres e aos homens que a decisão pela reprodução seja feita com base na experiência adquirida, sem medo, culpa, ou qualquer sentimento de não a realização individual e/ou social. Evidentemente, esta escolha será tanto mais reflexiva quanto maior a possibilidade de acesso à informação, à cultura e ao conhecimento especializado. Este novo modelo, que ora já se esboça, tem diversas nuanças e se define com mais ou menos força de acordo com a classe social e o país a que está referido. É o modelo: de proles reduzidas; de mulheres com carreiras profissionais; de mães e pais, juntos e/ou separados, produzindo e reproduzindo; de casais hetero e homossexuais; de mães ou pais criando seus filhos sozinhos; da institucionalização dos cuidados maternos por profissionais especializados; enfim, é o modelo que busca se adequar às mudanças da vida contemporânea, ao mesmo tempo em que é forjado por estas mudanças, redesenhando o funcionamento e a estrutura da família contemporânea. Finalmente, cabe lembrar que alguns avanços nessa transição trazem consigo novos problemas; se a possibilidade de acesso às novas tecnologias conceptivas é um recurso tecnológico que reforça a possibilidade de escolha (como costuma ser apregoado pelos seus defensores) ele cria novos impasses na realização da maternidade e nas relações familiares, cujas conseqüências sociais ainda são pouco debatidas, mas provavelmente estarão no foco das atenções dos estudos sobre família em futuro bem próximo.
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Apresentado para publicação em: 17/08/00. Aprovado para publicação em: 24/01/01.
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SCOTT, P. R. Quasi adult, quasi old: why anticipate life cycle phases? Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.61-72, 2001.
By observing two different generations of women, one discovers that there is a phenomenon whereby the passage from one phase of the lifecycle to the following one may be anticipated. This phenomenon calls for interpretation. Many girls, for instance, get pregnant and, whether or not they get married, become mothers. Many women aged forty-five to fifty, on the other hand, join “senior citizen” groups. The interpretation that this essay proposes examines the consequences of: 1) demographic transition (and the resulting aging of the population), which lends particular visibility to these two generations; 2) exclusion from the job market; 3) government actions; 4) rising individualism; and 5) the logic of gender and generation relations in households. In order to explain the behavior of very nearly adult women and of women who are almost old, two groups that anticipate life cycle phases, one resorts to a combination of the above factors culminating in the establishment of a condition of generational borderlines, typical of rites of passage, and the construction of processes of de-ritualization and re-ritualization within current society. KEYWORDS: life-cycle phases; generation relations; societies.
A partir de duas observações em gerações diferentes, identifica-se um fenômeno de antecipação da passagem pelas fases do ciclo vital que merece uma interpretação. Muitas jovens engravidam, casando ou não, e se tornam mães. Muitas mulheres na faixa de quarenta e cinco a cinqüenta anos ingressam em “grupos de idosos”. A interpretação oferecida examina as conseqüências 1) da transição demográfica (e decorrente envelhecimento populacional) em dar visibilidade especial a estas gerações examinadas, 2) do mercado de trabalho que é excludente, 3) da atuação do Estado, 4) do individualismo crescente e 5) da lógica das relações de geração e gênero em grupos domésticos. Para explicar as ações das quase adultas e das quase velhas que antecipam as fases do ciclo vital, recorre-se à conjunção destes fatores que culmina numa criação de uma condição de liminaridade geracional, própria dos ritos de passagem, e na construção de processos de desritualização e re-ritualização da sociedade contemporânea. PALAVRAS-CHAVE: fases do ciclo vital; relação entre gerações; sociedades.
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trabalho apresentado na reunião do REDOR em Teresina, 4 a 7 de julho de 2000
Professor do Departamento de Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Coordenador do Fages, Núcleo de Família, Gênero e Sexualidade. <scott@hotlink.com.br>
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Ultimamente, o número de jovens grávidas tem chamado a atenção da sociedade. Cresce o número de programas de orientação para que as(os) jovens possam passar por esta experiência da melhor forma possível. No entanto, estes programas ainda atingem poucos na população jovem. Quando as jovens engravidam, aprontam-se para ouvir uma litania de acusações sobre irresponsabilidade, descuido, desleixo, falta de visão do futuro, desorganização etc. Parecem ter ofendido uma ordem ideal estabelecida de “aguardar o tempo certo” para ter um filho e para casar, seja qual for a ordem em que estes dois acontecimentos ocorrem. A convivência, observação e conversas mais prolongadas com estas mães muito jovens costumam revelar que ter este filho não foi nem tão impensado, nem tão fora dos padrões, quanto todas as acusações sugerem. O valor simbólico do filho é enorme, e a idéia de tê-lo muitas vezes foi “um acidente planejado”. O ‘ser irresponsável’ foi justamente para ganhar responsabilidade. O filho é um futuro alcançável. É uma hora de testar a firmeza da organização da sua própria família. Parece que pode até valer a pena “antecipar” a passagem por este rito que marca a saída da infância e juventude vigiadas e a entrada numa vida plena de adulta. Na outra ponta da passagem pelas fases da vida, cresce o número de idosos que encontram amizade, solidariedade e direção na sua vida associando-se a “grupos de idosos”, que, de fato, são predominantemente femininos. Esses grupos espantam muitos observadores quando verificam que um bom número das idosas “não são tão velhas assim”. Essas “idosas jovens” são mães, são tias, são avós, mas muitas nem chegaram a cinqüenta anos. Estas idosas se alegram com a idéia de serem “crianças de novo”, de brincar, de dançar, de passear, de estar aproveitando cada dia, de namorar. Enfim, tal procedimento fica muito distante daquela visão de idosas doentes internadas em asilos, eternamente engajadas em conversas sobre as dores que sentem e os remédios que precisam. Passar para um grupo de idosos pode ser uma forma de recriar laços de solidariedade, sem que isso implique na negação total dos laços familiares e de parentesco, no qual a participação não é um “fardo de responsabilidade”. Com toda a significação pessimista que acompanha o avanço na idade, admitir que já se é idosa pode também trazer muitos benefícios. Novamente, parece valer a pena antecipar a passagem pelas fases do ciclo vital. É sobre estas observações de antecipação da passagem pelas fases do ciclo vital em duas gerações distintas que gostaria de comentar, na esperança de que as idéias contribuam para uma melhor compreensão do fenômeno. A apresentação das idéias será bastante compartimentalizada, justamente para poder isolar elementos diferentes que confluem para a criação deste cenário. Para dar corpo e contextualização às idéias, recorre-se a exemplos extraídos de experiências de pesquisa de campo entre grupos populares pernambucanos realizada por uma equipe do Núcleo de Família, Gênero e Sexualidade (FAGES) da Universidade Federal de Pernambuco, bem como do material publicado sobre idosos de Debert (1999) e Britto da Motta (1999). Finalmente, estas questões são associadas à literatura clássica antropológica sobre ritos de passagem e relações entre gerações.
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Uma base etnográfica sobre jovens e idosos Uma ampla revisão da literatura sobre jovens e idosos para sustentar os comentários nos primeiros dois parágrafos seria muito valiosa e permitiria uma boa matização e contextualização que mostraria a enorme pluralidade e complexidade nas quais ocorrem estes fenômenos (e outros que aparentam contradizê-los). Mas tal revisão foge do alcance deste artigo. A opção é de calcar as idéias em torno de observações de campo realizados durante a pesquisa “Saúde e Pobreza no Recife”(Scott 1996) e “Reprodução, Sexualidade e Programas de Saúde em Grupos Sociais Distintos em Pernambuco”. Scott (2000), Butto e Silva (1999) e estudos recentes de Britto da Motta (1999) e Debert (1999), todos privilegiam grupos populares, embora Debert e Britto da Motta também discutam grupos em melhores condições econômicas. No bairro do Ibura mães adolescentes são uma ocorrência freqüente, e observamos várias famílias se reorganizando de acordo com esta condição das suas filhas. Além da cobrança de maior responsabilidade, houve vezes em que a própria gravidez instalava discussões sobre afiliação religiosa e sobre os papéis maduros exigidos pela maternidade e pela paternidade. As conversas familiares sobre “moral”, ou ainda melhor, as ações que encenavam o código moral familiar, foram postas a vista para a família, e o resultado era o estabelecimento das relações familiares num novo patamar com uma aceitação diferente, mais plena, da filha, como adulta com responsabilidade própria. Não foi diferente em São Domingos, no interior, onde Butto e Silva ouviram uma adolescente dizer: Mãe? Quando eu perdi a virgindade eu não tava aqui, aí eu acho que ela queria que fosse assim, depois que eu arrumasse um 2
Dados levantados na pesquisa Gravidez e Juventude em São Domingos, Brejo da Madre de Deus, Pernambuco, Universidade Federal de Pernambuco/UFPE, 2000.
marido, sabe? Ela dizia até assim: - Ó meu Deus, quando é que essa menina vai arranjar um marido para deixar de ser tão criança? Aí quando perdi eu não tava aqui não. Ai depois voltei, acho que já tava grávida. Tava com um mês. Ai eu fiquei aqui mais ela, ai ela me ensinou como era as coisas, ela me ensinava assim 2.
A maturidade exige que “deixe de ser criança”, mas o casar é mais ambíguo, pois ele pode também restringir uma liberdade que as filhas conseguem ganhar ficando na casa dos pais: Primeiramente eu comecei a ter mais um pouco de liberdade. ... Não assim, porque antes para mim ir pra uma festa, sair, a minha mãe, meus pais eles só deixavam se eu fosse com alguém da família ou 3
Dados levantados na pesquisa Gravidez e Juventude em São Domingos, Brejo da Madre de Deus, Pernambuco, UFPE, 2000.
alguém maior, alguém de responsabilidade. Hoje algumas festas eu vou, sabe, tenho um pouco mais de liberdade, antes eles impediam um pouco, sabe?
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Os adolescentes enfrentam um sistema de atendimento à saúde no qual primeiro são acusados de irresponsáveis para depois serem alertados sobre os perigos e a causalidade econômica da gravidez precoce. Mas para eles, a situação é percebida mais como a busca de liberdade e autonomia dentro de tradições familiares, mesmo que seja (ou talvez em alguns casos, preferencialmente) sem casar e sem tolher a nova liberdade com responsabilidade (Butto e Silva 1999). É curioso quanto o discurso dos idosos repete parte do dos adolescentes, ressaltando, novamente, a liberdade e a autonomia4. Liberdade que implica uma ressignificação do processo de envelhecer, muito bem descrita no livro de Debert (1999). Britto da Motta (1999) e Debert mostram que a procura pelas universidades da terceira idade (pequena pelos grupos populares que tiveram pouco acesso à educação formal) é majoritariamente por pessoas de faixas etárias abaixo de sessenta anos (até 80% num dos exemplos citados). É nos grupos de convivência que os idosos de camadas populares demonstram jovialidade, ou faceirice. Debert inicia um capítulo descritivo sobre esses grupos, centrado no SESC, na LBA e nas universidades da terceira idade, com a fala de um idoso: Eu acho a terceira idade uma inovação, a melhor possível sobre o idoso. Foi a melhor possível porque deixa a gente assim, numa liberdade total, sabe? É uma gostosura. (Debert, 1999, p.144)
Britto da Motta (1999) centra seu trabalho no mesmo tipo de associações, dando maior ênfase aos grupos populares que à “faculdade da terceira idade”. Assim diz uma senhora que percebe modificações em sua relação conjugal e em sua participação no grupo: O tempo melhor é agora. No momento, porque quando eu trabalhava, não tinha liberdade. Agora eu saio com quem eu quero e volto a hora que eu quero. No início do casamento ele não gostava quando eu saía, hoje ele vê que preciso sair para me distrair, porque ele passa o dia trabalhando e eu fico sozinha em casa. (Britto da Motta 1999, p.83)
As conclusões de Britto da Motta, após uma extensa discussão de quatro grupos de convivência em contextos diferentes, são que esses grupos reforçam “a ampliação da sociabilidade, do lazer, da informação e do próprio prazer de viver” (1999, p.263), com uma repercussão mais forte nas mulheres que nos homens, que participam menos. A reinvenção da velhice está associada a fatores muito complexos, bem analisados em Debert (1999), mas o que precisa ser enfatizado aqui é que essa reinvenção, na sua grande diversidade, deixa uma evidente valorização da “juventude” dos idosos, da sua ampliada sociabilidade e capacidade de consumo. Faz esta fase de vida se definir como “desejável” e não como “decadente” e isso é fundamental para “jovens idosos” aspirarem a entrar numa categoria na qual podem negar uma identificação social negativa clássica que rapidamente se transforma.
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Conforme pesquisa de Scott, 1996.
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A transição demográfica e a visibilidade das gerações nas pontas A queda de fecundidade que marcou a década de oitenta no Brasil trouxe consigo uma discussão sobre o envelhecimento populacional, uma decorrência óbvia do processo. Menos filhos por mulher tem implicações sérias sobre a vivência do ciclo vital, pois o período efetivo envolvido no processo de gravidez e criação de prole fica bem mais reduzido. Já foi muito evidenciado que a laqueadura de trompas, uma esterilização definitiva, é o procedimento mais usado por mulheres que já alcançaram o número de filhos desejados, com destaque notável para o Nordeste. A transição demográfica resultou numa mudança na distribuição da idade de parturientes. As mulheres mais novas são as mães de prole cada vez menos numerosa. Sem dúvida, este é um fenômeno mais importante no Brasil do que a internacionalmente badalada extensão da idade em que mulheres podem parir, que depende de intervenções médicas sofisticadas e caras. Se antes era bastante freqüente uma filha começar a parir antes que sua mãe tivesse encerrado sua carreira reprodutiva, hoje é bem menos. Mães que encerraram as suas carreiras reprodutivas vão olhar mais para as carreiras das suas filhas. Pesquisas recentes insistem que “adolescente engravidar” não é mais de que uma continuidade de um processo histórico bastante bem estabelecido. O fato de que as suas mães não estão engravidando mais que é o fenômeno novo. Assim, cria uma visibilidade “falsa” das jovens grávidas. Jovens, de fato, estão compondo proporções decrescentes da população total nas pirâmides etárias pós transição demográfica. Aliás, cada vez menos se pensa em “pirâmides” por causa do encolhimento da base. De repente, o que era costumeiro se torna um problema que precisa ser tratado por figuras responsabilizadas por apontar e administrar os rumos mais amplos da sociedade. Mas não são somente as jovens parideiras que estão se tornando mais visíveis. Com menores taxas de fecundidade e uma melhora nas condições sanitárias do país, os idosos são aquela proporção pequena de população que está crescendo proporcionalmente mais rápido. É a condição inversa da população de jovens. Os idosos estão requerendo mais atenção para si mesmos, e a condição especial vivida por eles está merecendo destaque em todas as esferas – família, educação, trabalho, previdência, lazer. É uma faixa de população que cresce e que apresenta novas demandas como foram demonstradas na discussão dos grupos de idosos acima. São duas gerações que sofrem pressões demográficas diferentes, mas que estão se tornando mais visíveis devido à transição demográfica. O estreitamento do mercado de trabalho Seja jovem ou seja idoso, o mercado de trabalho não está favorável ao trabalhador. Índices de desemprego que já eram altos alcançam níveis inusitados. Se “o trabalho dignifica o homem”, não há boa perspectiva para a população encontrar formas seguras de adquirir sua dignidade. Há sempre denúncias contra o trabalho infantil, especialmente porque isto ocorre de forma mascarada na produtividade e remuneração de adultos. O próprio
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encontrar trabalho quando muito jovem é outra forma de “antecipar a passagem pelas fases do ciclo vital”, e é comum ouvir trabalhadores comentarem que “não tiveram infância”. Quando o caminho da identidade adulta pelo trabalho for dificultado, há outras formas de mostrar que se está alcançando a “respeitabilidade” do adulto – e formar família para homens, e, sobretudo, para mulheres, é uma delas. Nesta hora “família” se define mais como “ter um filho” de que “casar” ou “morar junto.” Os que de fato estão trabalhando carregam os seus dependentes, jovens e idosos. Mas há pelo menos uma diferença séria nesta confrontação de gerações pela distribuição dos resultados do trabalho. É o que Meillasoux (1979) descreveu como as estruturas “alimentares” do parentesco, onde os pré-produtivos são potencializados como trabalhadores capazes de sustentar os seus pais no futuro, e os pós-produtivos são os que têm, por merecimento de trabalho já feito, direito a serem sustentados pelos que estão trabalhando. Mas quando a saída do mercado de trabalho é precoce e a esperança de vida está aumentando, o período pós-produtivo se amplia. Isso cria uma necessidade de re-identificação deste período através da descoberta de uma série de atividades que valorizam o idoso. Embora isto seja mais marcante para os homens, por eles construírem as suas identidades sobre a capacidade de serem “provedores”, a ampliação da participação das mulheres no mercado de trabalho na segunda metade do século vinte contribuiu muito para que elas, também, vivessem situações semelhantes. E, evidentemente, a própria questão da longevidade maior das mulheres faz com que a fase dos idosos seja cada vez mais feminilizada. Em reconhecimento à complementariedade englobada pela divisão de trabalho na família, a legislação favorece que muitas viúvas mantenham o direito a pensões e rendas que representam o reconhecimento da manutenção do seu direito como pós-produtivo. Recebendo pensões, não há porque não complementar com outros ganhos, mas estes nem sempre são fáceis de encontrar. Os grupos de idosos são, primeiramente, redes de ampliação de sociabilidade como foi discutido acima, e não são, fundamentalmente, redes de alcançar rendas adicionais, mas há envolvimento em artesanato, cozinha e outras atividades que possam chegar a complementar renda. De qualquer jeito, um mercado de trabalho mais estreito cria exigências especiais tanto sobre os jovens quanto sobre os idosos, no sentido de favorecer a procura de formas adicionais, que não o trabalho, pelas quais podem se identificar como pertencentes a um segmento geracional específico da sociedade mais ampla. O Estado e a identidade da população A ambigüidade do papel do Estado está, sobremaneira, conhecida. Ele legitima as ações dos atores da sociedade, legislando e fiscalizando de um modo que possa reforçar as estruturas de poder vigentes, ao mesmo tempo em que ele assume o papel de redistribuidor de riqueza, vigilante às necessidades daqueles cidadãos que, sem a intervenção do Estado, seriam ainda mais “excluídos”. Assim, os aparelhos institucionais do Estado necessariamente se revestem, parcialmente, de uma roupagem de
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redistribuidores e de feitores de justiça. A identificação de populações específicas como “alvos” da atuação é parte do planejamento para o fortalecimento da sociedade vigente, ao mesmo tempo em que é um ato que facilita o aporte de recursos e de serviços para lidar com os problemas daquela população específica. Na busca de parceiros para elaborar estratégias de ação nestes setores, o Estado promove a junção de esforços entre organizações não-governamentais, associações de moradores e alas de serviços sociais do próprio governo. Tanto para os jovens, quanto para os idosos, isto cria uma multiplicidade e complexidade de instituições e ações que podem ser acionadas para dar apoio ao Estado (Programas de Saúde, SESC, LBA etc.). Simultaneamente, a regra é que, para a maioria de jovens e de idosos, há, de fato, poucas oportunidades reais de se engajar em atividades promovidas, direta ou indiretamente, pelo Estado, que sejam especialmente dirigidas a eles. Pelos meios de comunicação há possibilidade de ver muitas destas ações, às vezes criando uma aparência de maior cobertura do que o Estado, de fato, está conseguindo realizar. Os próprios parceiros do governo nestas atividades às vezes são os mais assíduos nos esforços de divulgação das atividades, pois isto é necessário para a sobrevivência destas instituições, e, torna-se um veículo para aparentar um maior número de ações em andamento. Assim, os jovens contam com programas governamentais como a PROSAD, programa de saúde do adolescente, programas de capacitação para o trabalho, de educação, de bolsas escolares, de erradicação de trabalho infantil, de tirar meninos e meninas da rua, de evitar a prostituição juvenil, de proteção contra o uso de drogas etc. Para falar novamente em “visibilidade”, cria um espaço cuja importância é constantemente reforçada, em que se evidencia a juventude como um setor que “preocupa o país,” pois enfrenta dificuldades grandes e merece ações especiais se estes jovens vão se tornar os adultos de amanhã se desfrutando de um futuro melhor. É a criação da imagem e a realização de um número suficiente de ações concretas para que um Estado omisso se pareça atuante, que faz com que, cada vez mais, evidenciem-se os jovens na sociedade. Os idosos suscitam outro tipo de preocupação para o Estado. Maior longevidade é uma indicação de saúde, e o país sempre batalha para ser incluído entre os países cujos índices estão melhorando. Para o Brasil, mesmo que não tenha alcançado os níveis almejados, tem havido um incremento regular na longevidade. Mas como a recente modificação do critério de ranking da Organização Mundial de Saúde, tomando em conta a variável “qualidade de vida” e não apenas o número de anos, o Brasil se descobre em plena queda neste ranking (125º lugar). O importante é insistir que o Estado está atento a este problema e está promovendo uma melhora na vida dos idosos. Quem participa de pesquisas sobre idosos nota que, nas associações e grupos, uma enorme ênfase é dada ao lado lúdico. Estas associações, às vezes, estão também estreitamente relacionadas à resolução de problemas com a documentação necessária para garantir os direitos de aposentadorias, benefícios e tratamento de saúde, mas na insistência em ressignificar a fase da “velhice” para que ela tenha um aspecto mais positivo – a boa idade, a terceira idade, os anos de ouro etc., como mostram de
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maneira clara Debert (1999) e Britto da Motta (1999). Se é caro manter os idosos da forma que os cofres do Estado se organizam, e assim, eles dificultam a consecução das metas do Estado, também é importante demonstrar o quanto se está fazendo para tornar esta fase de vida melhor. Debert ainda ressalta que há um mercado consumidor a ser ganho neste tipo de ressignificação. Podemos insistir que, com esta faceta adicional, a ambigüidade da ação do Estado fica ainda mais evidente. O crescente individualismo e autoridade, afeto e autonomia: vínculos entre gerações e gênero A fragmentação de redes de parentesco e de vizinhança anteriormente mais solidárias vem sendo progressivamente mais evidenciada em face do crescente individualismo na sociedade moderna. O individualismo favorece o desenvolvimento de valores que demonstra o que as pessoas conseguem através do seus próprios esforços, e não tanto por ser parte de algum grupo mais amplo que possa conferir a eles algum status especial. Segundo alguns autores, quando muito, este esforço é compartilhado por uma tribo – um grupo que se forma e mantém contatos de apoio mútuo, sem que sejam principalmente de parentesco ou vizinhança. Fatalmente, isto tem implicações extraordinariamente importantes tanto para os jovens, quanto para os idosos. Para os jovens, que vêm experimentando dependência doméstica desde a sua nascença, sair do jugo da autoridade parental é uma declaração de autonomia e individualidade. É a negação da inclusão no domínio parental que constitui uma das esferas mais importantes para o reforço do “individualismo”. Ou seja, para as jovens, fica assim: “eu posso porque a decisão é minha, o corpo é meu e o filho será meu”. Os pais não recomendam que as filhas engravidem cedo – assim, o ato de engravidar raramente tem qualquer carimbo de “encomenda paterna” (em contraste, este carimbo é um dos aspectos evidentes no casamento formal, levando à pergunta imediata – quando pretende ter o filho?), mas também há amplas evidências de que é mais freqüente reabsorver positivamente a jovem, ou o jovem casal, no grupo familiar que inclui os pais, novos avôs” Assim, as filhas, e os filhos, têm uma boa possibilidade de reconquistar uma posição de respeito e autoridade dentro do grupo familiar mais amplo (sendo coresidente ou não). O afeto e a responsabilidade, internos ao grupo de parentesco, sobrepõem-se à declaração da individualidade dos jovens, englobando-a aos atos esperados. O individualismo também se manifesta entre os idosos. Os padrões residenciais de países centrais incluem muitos idosos que residem sozinhos, e no Brasil, apesar da tradição de absorção e inclusão em famílias extensas co-residenciais, está aumentando o número de idosos que moram sozinhos. Como Goldani (1993) mostrou, quando pais relativamente novos, com as suas carreiras reprodutivas encerradas, alcançam a fase no seu ciclo doméstico de ver os filhos saírem para residir sós ou casar, iniciam um período muito mais longo que antigamente, de estarem morando como um casal independente. Mesmo que tenham a opção de incorporar netos ao seu
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convívio, é cada vez mais freqüente isto ser feito como um apoio temporário e prazeroso – é aquilo que é sempre ouvido: “Adoro os meus netos, porque quando canso deles voltam para a casa dos seus pais”, ou “Eu tenho a minha vida, e quando quero, vejo os netos”. Quer dizer, continua-se o afeto, continua-se a autoridade, mas diminui-se a responsabilidade cotidiana, e amplia-se a cobrança que os próprios idosos fazem sobre sua capacidade de ter prazer na vida cotidiana. É nesta hora que os grupos de idosos servem muito bem, pois criam uma solidariedade de interesses comuns de pessoas que podem valorizar a importância das suas relações familiares, sempre integrando-as nas conversas, mas que não sofram as cobranças das obrigações familiares durante o convívio do grupo. Britto da Motta conclui que o “morar só” é percebido como uma fonte de prazer e não de solidão pela maioria dos idosos entrevistados por ela (1999). Não é raro que os pesquisadores comentem a livre referência a assuntos como sexualidade (muito reprimido no contexto familiar), quando reinicia-se o processo de namoros, enfim, um ambiente no qual os idosos “se soltam” mais, conseguindo se identificar como indivíduos que têm suas próprias vidas a viver e que já pagaram suas “dívidas” à sociedade.
Liminaridade e a desritualização/re-ritualização da sociedade Afinal, o que está unificando as duas experiências descritas no início do trabalho: a adolescente grávida, e a participante jovem de um grupo de idosos? Recuperando e conjugando os elementos discutidos até agora, é interessante unificá-los com referência à literatura antropológica clássica sobre ritos de passagem. Ao discutir o processo de demarcação social dos ciclos vitais individuais, Van Gennep (1972) frisou que há certos momentos em que se ritualiza uma transformação na identidade social da pessoa como fazendo parte de modificações que ocorrem na inserção destas pessoas em novas categorias comuns na sociedade. Os momentos críticos que ele realça, e denomina de ritos de passagem, são o nascimento, a puberdade, o casamento e a morte. Cada um destes ritos é composto, sucessivamente, por um período de separação da identidade social anterior; um período de transição entre identidade sociais, e, finalmente, um período de integração na nova identidade social. Por exemplo, os ritos de puberdade teriam elementos que marcam a saída da infância, outros que marcam a ambigüidade do novo papel de não mais criança, mas ainda não adulto, e finalmente, outros de plena integração na vida adulta. De forma semelhante, o casamento envolve ritos que simbolizam a saída do estado de ‘solteirice’, outros, cerimonializados, que simbolizam a transição; e ainda outros que mostram a chegada ao estado de casado com todas as responsabilidades de pertencimento ao grupo que a plenitude da passagem implica. Para o nosso argumento aqui, é importante frisar bem o significado do estado de liminaridade, que foi muito estudado por Victor Turner (1967) e constrói-se sobre as idéias da fase de transição, da fase “liminar” de Van Gennep. A liminaridade descreve uma condição social na qual a identidade passa mais
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pela questão de negação que de afirmação. Ou seja, é a condição de “não ser” alguma coisa, de estar suspenso entre identidades sociais de que um pertencer está no passado, e outro pertencer ainda está no porvir. É importante ressaltar que as advertências de Debert (2000, parte I), que realiza uma importante revisão da literatura sobre a pluralidade da vivência do curso da vida, envolvendo questões que vão além da idade, incluindo maturidade, gerações e ordem de nascimento, de que podemos confundir questões de idade com todas estas outras esferas. Nem sempre a idade cronológica é a chave para a compreensão do fenômeno sob investigação. Assim, os conteúdos do pertencimento a fases distintas precisa ser entendida como algo extraordinariamente variável de acordo com classes e questionamentos diferentes. Jovem e idoso, assim, são categorias que recebem qualificações que precisam ser bem entendidas de acordo com todas estas questões nos contextos concretos de investigação em que são observadas e interpretadas. A combinação dos fatores descritos neste trabalho demonstra que, socialmente, as jovens que engravidam e as participantes “jovens” de grupos de idosos, sobretudo nos grupos populares enfatizadas, estão em fases do ciclo vital marcadas pela liminaridade, particularmente exacerbadas pelas condições na sociedade contemporânea. Pode-se assim resumir como é criada a liminaridade de cada fase, e ver como a ação focalizada promove a saída da liminaridade e a integração a uma nova identidade social. A jovem que engravida está deixando uma fase de dependência acentuada dos pais. Tendo um filho, ela ganha mais visibilidade, o que em gerações anteriores, por causa da transição demográfica, torna a atividade reprodutiva da geração mais jovem ainda mais visível. Ela ocupa uma fase de “reprodutora” que a sua mãe, geralmente, já abandonara por esterilização. O estado liminar, no qual ela não se sente mais pertencente à categoria de “criança”, é reconhecível no início jovem da vida sexual e no mercado de trabalho que a explora, mas apresenta pouca oportunidade para sua afirmação de autonomia. Uma vez grávida e mãe, o Estado problematiza, mesmo fracamente, a sua situação com uma diversidade de programas, e a afirmação da sua individualidade e da força potencial da sua integração no grupo familiar está posta a teste com a reação dos pais à sua autonomia, à gravidez e ao nascimento do filho. A ambigüidade de ser jovem, mas com poucas oportunidades de estudo e com cobrança sobre a participação no orçamento familiar e vigilância sobre a sua atividade sexual, faz com que a passagem para ser mãe possa denotar, para ela, uma saída desta liminaridade (não mais criança, ainda não adulta) e um ingresso numa fase de jovem adulta. Inclusive a sua participação no rito do “nascimento” como responsável pelo filho, reforça ainda mais este ingresso numa nova “identidade social”. Numa vida marcada por poucos “ritos” formais de passagem, o ‘ser mãe’ fornece uma re-ritualização da passagem para o status de adulta. A passagem para um grupo de idosos é um processo menos ritualizado. As pessoas costumam pensar que os outros vão reivindicar serem tratados como “ainda jovens” mais de que como “já idosos” pelo menos quando a idade não confere regularmente status. O que é que faz com que as pessoas
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ingressem cedo nos grupos de idosos, então? Importantíssimo é o fato que o processo de ressignificação da velhice a joga (não sem ambigüidades) exatamente na categoria de “juventude reforçada” (novamente relembro os argumentos de Debert, 1999). Especialmente no caso de grupos populares, os mesmos processos que influenciam as jovens trabalharem para fazer com que as adultas se sintam numa certa ambigüidade em relação aos seus papéis de provedoras e reprodutoras. Para as mulheres, com poucas oportunidades de ganhar dinheiro, muitas já esterilizadas, e com os filhos crescidos, já avós, sem maridos, algumas com benefícios e pensões vitalícias, não é nem a identidade de mãe, nem de trabalhadora, nem de dona de casa que a localiza com maior adequação na nova fase do ciclo vital no qual se está encontrando. Nas sociedades com longevidade aumentada e com reprodução encurtada (isto mais para as mulheres que para os homens), tem havido a criação de uma fase de liminaridade que exige a identificação mais clara desta nova fase importante no ciclo vital. Então, identificando-se quanto antes com o grupo de idosos, a adulta, mesmo ainda “jovem”, mas já tendo experimentado todas aquelas experiências que constituem o cotidiano da vida como adulta, amplia oportunidades para solidariedade, para a redefinição de papéis, para o ingresso numa fase, com reforço de alguns programas estimulados pelo Estado e por outras entidades, que se caracteriza pelo “lúdico merecido”, pelo “respeito”, e pela “desobrigação”, e ainda abre novos mercados para a sociedade de consumo. Está-se definindo um novo espaço no ciclo vital, tateando na descoberta de nomes adequados, mas desesperadamente procurando “ritualizá-lo” o suficiente para que se diferencie da “mesmice” da vida adulta atribulada e cheia de responsabilidades que todos conhecem. Se isto é um jogo de geração, de maturidade ou de idade certamente só pode ser respondida com a declaração de ser “uma combinação”. Lembramos que, apesar das aparências, fases não são necessariamente seqüênciais, pois em cada fase e com cada assunto enfatizado, há a possibilidade dos atores ressaltarem marcas identificadoras distintas. Antecipar a passagem pelas fases do ciclo vital, engravidando jovem ou ingressando jovem em grupos de idosos, não é um fenômeno casual ou excepcional, e sim, um fenômeno que as condições da sociedade contemporânea brasileira tem favorecido e, tudo indica, vai continuar favorecendo e procurando ressignificar e embaralhar de novo no curso da vida. Referências bibliográficas BRITTO DA MOTTA, A. Não está morto quem peleia: a pedagogia onesperada nos grupos de idosos. Salvador, 1999. Tese (PhD) Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Bahia. BUTTO, A., SILVA, J. M. Representações sociais da sexualidade e da reprodução na adolescência e os serviços de saúde em São Domingos, Brejo da Madre de Deus, Pernambuco. Rev. Anthropol., v.9 (Série Família e Gênero), p.86-97, 1999. DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: EDUSP-FAPESP, 1999. GOLDANI, A. M. As famílias no Brasil contemporâneo e o mito da desestruturação. Cad. PAGU, v.1,
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p.68-110, 1993. MEILLASOUX, C. Mujeres, graneros y capitales: economía doméstica y capitalismo. México: Siglo XXI, 1977. SCOTT, R. P. Saúde e pobreza no Recife: poder, gênero e representação de doenças no bairro do Ibura. Recife: Editora Universitária-UFPE-JICA, 1996. SCOTT, R. P. Reprodução, sexualidade e programas de Saúde em grupos sociais distintos. Relatório Final UFPE-CNPQ. Recife, 2000. TURNER, V. The forest of symbols. Ithaca: Cornell University Press, 1967. VAN GENNEP, A. Rites of passage. Chicago: University of Chicago, 1972.
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SCOTT, P. R. Casi adulta, casi vieja:
por qué anticipar las fases del ciclo vital? Interface _
Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.61-72, 2001.
Com base en dos observaciones en genaraciones diferentes, se identifica la anticipación del pasaje entre fases del ciclo vital que merecen interpretación. Muchas jóvenes se quedan embarazadas, y casando o no, se vuelven madres. Muchas mujeres entre cuarenta y cinco y cincuenta años ingresan en “grupos de ancianos”. La interpretación ofrecida examina las consecuencias 1) de la transición demográfica (y el resultante envejecimiento populacional), en dar visibilidad especial a estas geraciones examinadas, 2) del mercado de trabajo excluyente, 3) de la acción del Estado, 4) del individualismo creciente y 5) de la lógica de las relaciones entre generación y género en grupos domésticos. Para explicar las acciones de las casi adultas y de las casi viejas que anticipan las fases del ciclo vital, se usa el conjunto de estos factores que culmina en la creación de una condición de liminaridad generacional, propia de los ritos de pasaje, y en la construcción de procesos de desritualización y reritualización de la sociedad contemporánea. PALABRAS CLAVE: etapas del ciclo de vida; relación entre generaciones; sociedades
Recebido para publicação em: 21/08/00. Aprovado para publicação em: 20/12/00.
VITALINO, Casamento matuto, O noivo e a noiva, Festa de casamento, Batizado. Museu do Homem do Nordeste, Recife, PE, e Museus Raymundo Ottoni de Castro Maya, Rio de Janeiro, RJ
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Interface - Comunic, Saúde, Educ
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A visão de escolares sobre drogas no uso de um jogo educativo Sandra Rebello1 Simone Monteiro2 Eliane P. Vargas3
REBELLO, S.; MONTEIRO, S.; VARGAS, E. Student views on drugs in the use of an educational game. Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.75-88, 2001.
This essay emphasizes the relevance of cultural intervention in the use of educational technologies. To this end, it describes the perception of 62 students from government schools in Rio de Janeiro, concerning topics broached in the “Jogo da Onda” - a game on drug use - as well as the group’s interest in the material. On the basis of focus groups, observation of games being played, and questionnaires, drug use has been shown to be related to peer pressure, easy access to drugs and the fact that individual or merely occasional consumption are not seen as behaviors capable of leading to chemical dependence. The dissonance between the students’ view and the repressivepreventive and/or informational-technical discourse suggests that educational actions should focus on how the information transmitted is understood, with a view to developing interaction, dialogue, information and reflection. KEYWORDS: Healthcare education; educational material; social representation; educational game.
Este estudo enfatiza a relevância da mediação cultural no uso de tecnologias educacionais. Para tal, descreve a percepção de 62 escolares da rede pública do Rio de Janeiro sobre temas abordados no Jogo da Onda, um jogo sobre o uso de drogas, e o interesse do grupo pelo material. A partir de grupos focais, observação das partidas e questionários, foi observado que a iniciação ao uso de drogas está relacionada à: pressão social de grupo, fácil acesso às drogas e ao não reconhecimento de que o consumo pessoal, mesmo descontínuo, pode levar à dependência química. Dissonâncias entre a visão dos escolares e o discurso preventivo repressivo e/ou técnico informativo sugere que as ações educativas devem privilegiar formas de apreensão das informações transmitidas, focando a interatividade, a interlocução, a informação e a reflexão. PALAVRAS-CHAVE: Educação em saúde; material pedagógico; representação social; jogo educativo.
1, 2 Pesquisadoras do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde, Depto de Biologia, Instituto Oswaldo Cruz / Fundação Oswaldo Cruz. 3 Pesquisadora do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde, Departamento de Biologia, Instituto Oswaldo Cruz / Fundação Oswaldo Cruz e Centro de Saúde Escola GSE, Escola Nacional de Saúde Pública / Fundação Oswaldo Cruz. <piafi@fiocruz.br> <smonteiro@ax.apc.org>
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Este artigo focaliza a importância de se conhecer a percepção do usuário sobre as mensagens veiculadas em recursos de educação em saúde, face ao reconhecimento das diferenças sócio-econômicas e culturais entre os grupos populacionais que integram as sociedades modernas. Para tanto, apresenta a visão de jovens escolares da rede pública do Rio de Janeiro sobre temas relacionados ao consumo indevido de drogas4 , abordados no Jogo da Onda (Edições Consultor, 1998)5 . Afim de apontar indicadores da aceitação e motivação do uso deste recurso em contexto educativo também será mencionada, de forma breve, a opinião dos/as escolares e de um grupo de educadoras sobre o Jogo da Onda. Cabe informar que os elementos que compõem o processo de interação desse jogo não foram aprofundados no presente texto, mas encontram-se contemplados no trabalho de Cortes (1999). O referido jogo foi produzido pelo Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde (LEAS) da Fundação Oswaldo Cruz. O LEAS desenvolve pesquisas voltadas para a produção, avaliação6 e divulgação de tecnologias educacionais em saúde, informadas por uma perspectiva pedagógica construtiva e participativa (Monteiro et al., 1994; Schall et al., 1999). Identificada com a relativização do enfoque epidemiológico de risco (Castiel, 1994), esta linha de investigação visa propor alternativas ao modelo biomédico hegemônico, centrado na transmissão de informações, ressaltando as singularidades materiais e simbólicas dos variados segmentos sociais. Fundamentos Para fundamentar a análise da percepção dos jovens acerca dos temas abordados no Jogo da Onda, optou-se por tecer considerações sobre: (1) a importância da mediação cultural e da subjetividade como elementos modeladores da visão dos usuários na utilização de tecnologias educacionais; (2) os limites e alcances dos programas de prevenção ao abuso de drogas. O primeiro ponto apoia-se numa opção teórico-metodológica na qual o usuário é concebido como sujeito ativo no processo educativo/comunicativo (Vargas & Siqueira, 1999). Nesta perspectiva, as investigações — a exemplo das atuais tendências da pesquisa em comunicação social, em particular a produção latino-americana 7 — relativizam a subordinação do usuário ao texto a partir de duas variáveis: o entendimento da recepção como processo mediado e o receptor concebido como sujeito da engrenagem no processo comunicativo. Isto significa dizer que nos estudos de recepção de mensagens o receptor é um leitor com capacidade interpretativa sobre as mensagens que lhe são ofertadas. Esta relação, de natureza simbólica, encontra-se delimitada pelo estoque cultural e pela posição que cada usuário ocupa no cenário social, conformadora, em parte, de sua subjetividade. Quanto ao segundo ponto assinalado, análises sobre programas preventivos ao uso indevido de drogas, apoiadas na contextualização histórica do fenômeno, apontam para o fracasso das políticas de prevenção
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Para a Organização Mundial da Saúde “droga é qualquer substância, administrada por qualquer via, que provoca alterações no comportamento ou na percepção da realidade”. Tendo em vista as diversas atribuições, efeitos e classificações em torno do conceito de droga (Cf. Escohotado, 1997), cabe destacar que neste trabalho tal termo está referido a qualquer substância psicoativa, lícita ou ilícita.
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Introdução
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Desenvolvido por Sandra Rebello e Simone Monteiro (pesquisadoras do LEAS, Biologia/IOC, FIOCRUZ), este jogo contém 1 tabuleiro; 1 dado; 4 pinos, 1 encarte com dicas de atividades e sugestões bibliográficas e quatro baralhos: o baralho laranja descreve o conceito e efeitos de drogas lícitas e ilícitas; o baralho vermelho contém perguntas e respostas sobre aspectos jurídicos, conceito e classificação das drogas e as conseqüências do uso abusivo; nos baralhos verde e o azul são apresentadas situações do cotidiano associadas ao consumo de drogas, como relacionamento familiar, políticas educativas, conflitos pessoais; pressão social do grupo, dentre outros; o baralho verde difere do baralho azul por conter mensagens das autoras sobre o tema abordado na carta. O jogo foi projetado para ser jogado em dupla. Recomendado para maiores de 12 anos, é adequado para contextos do ensino formal e informal, podendo ser adaptado para diferentes realidades, inclusive programas dirigidos para dependentes químicos, conforme indica o encarte que acompanha o material.
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Destaca-se a reduzida problematização dos usos e efeitos dos materiais educativos, no âmbito nacional, ainda que se possa reconhecer algumas iniciativas que contribuem para a acumulação de conhecimento nesse campo. Além das iniciativas dos LEAS, cabe mencionar outros esforços como o projeto PRISMA (Barros et al, 1999) e as produções do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde/UFRJ (Sá et al 1999).
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Sobre a trajetória latino-americana da pesquisa em comunicação ver Melo (1985) e Neto (1995) sobre pesquisas de recepção.
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centradas apenas na repressão (Bucher, 1992; Inem & Acselrad, 1993; Bastos, 1995). Segundo Vargas (1998), pode-se encontrar no cenário social a sobreposição de uma racionalidade dominante técnico-científica, presente nos modelos de atenção à saúde, a outras racionalidades onde a droga é vista como um mal em si. Tal fato contribui para a descontextualização das diferentes modalidades de usos e de usuários. Parece prevalecer a condenação moral sobre o consumo de determinadas substâncias. Assim, cabe reconhecer a necessidade de se avançar na construção de modelos alternativos de intervenção relacionados ao uso de drogas, cujas concepções se contraponham à visão preconceituosa, alarmista e repressora do fenômeno, centrada no discurso anti-droga. De acordo com esse referencial, os programas voltados para a prevenção ao uso abusivo de drogas devem abordar a dimensão sócio-econômica e política deste fenômeno, assim como as representações e práticas da população relativas aos diversos aspectos do tema. Dentro deste ponto de vista ganha destaque a abordagem da “redução de danos”. Contraposta à política repressiva de “guerra as drogas”, tal perspectiva tem por base dois pressupostos: o precedente histórico da inexistência de sociedades que tenham prescindido do uso de psicoativos; e que tais usos determinem o mínimo de danos e o máximo de alívio e bem-estar a indivíduos e comunidades. Salienta-se assim, a importância de se avaliar os danos que se quer evitar, procedendo a uma classificação e hierarquização exaustiva dos mesmos. Para tal considera-se ser prioritária a ação educativa preventiva, com especial ênfase no importante papel dos sistemas públicos de educação e de saúde nessas ações (Ministério de Saúde, 1999). Priorizar a ação educativa não significa operar com a dicotomia preventivo versus curativo (Camargo Jr., 1999). Este pressuposto serve de apoio à análise dos benefícios e alcances da abordagem de “redução de danos”, tanto nas ações preventivas quanto terapêuticas, que incluem não apenas os usuários em potencial, os experimentadores e os usuários ocasionais, mas também os dependentes químicos. Tais benefícios podem ser ilustrados por avaliações de programas de prevenção no contexto escolar (Soares, 1997) e por análises das políticas de distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis (Mesquita & Bastos, 1994). Convém informar que o desenvolvimento do Jogo da Onda foi norteado pelas considerações expostas acima. Tal abordagem encontra ressonância em uma determinada visão crítica da educação (Borges, 1996; Melo, 1993; L’Abbate, 1994; Oshiro, 1988), que repercute nas discussões sobre a natureza educativa do trabalho de prevenção no campo da saúde e, conseqüentemente, na análise das repercussões de tecnologias educacionais.
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Metodologia Caracterização da amostra Fizeram parte da investigação 62 estudantes, 54,8% do sexo feminino e 45,2% do sexo masculino, matriculados na 8a série e no 1º ano do curso médio, sendo 90% da faixa etária entre 12 e 18 anos. Na seleção da amostra levou-se em conta o interesse dos/as alunos/as em participarem do trabalho. Integraram também o estudo 17 profissionais inseridos em programas de prevenção, 15 dos quais da rede pública de ensino. O critério de seleção desse educadores não privilegiou a formação acadêmica ou a disciplina lecionada e sim a sua disponibilidade8 . Para a composição da amostra foram selecionados quatro estabelecimentos de ensino. Tendo em vista a influência do contexto sóciocultural na produção das práticas dos sujeitos, procurou-se contemplar unidades localizadas em regiões metropolitanas do Rio de Janeiro com perfil social econômico diversificado. Para tal foram escolhidos estabelecimentos nas seguintes localidades: Caxias e Xerém (municípios contíguos ao município do Rio de Janeiro); Gávea e Copacabana (zona sul do município/ RJ). Na zona sul do município do Rio de Janeiro há uma concentração da população de maior poder aquisitivo, embora existam favelas em alguns morros desta área. No município de Caxias e em Xerém prevalece o segmento populacional de baixa renda. Em ambas localizações existem áreas de tráfico de drogas. Estratégias metodológicas No presente estudo adotou-se como estratégias: a realização de grupos focais com alunos/as; a observação direta das partidas com alunos/as e a aplicação de questionários com estudantes e professores após as partidas. Em cada unidade de ensino foram realizadas as seguintes etapas: a) um grupo focal com oito alunos/as que não haviam jogado; b) uma partida com oito alunos/as com a presença de um professor; seguida da aplicação de questionários; c) uma partida com oito alunos/as sem professor, seguida da aplicação de questionário; d) um grupo focal com oito alunos/as que haviam participado de uma dessas partidas; e) aplicação de questionários em professores. A adoção de procedimentos variados e complementares, como grupo focal, observação direta das partidas do jogo e questionário, se fez necessária à articulação entre a problemática proposta e o quadro teórico de referência da pesquisa, indicado anteriormente. Face à diversidade das técnicas utilizadas e o caráter complementar de seu uso, convém tecer algumas considerações sobre as mesmas. A utilização de grupos focais representou uma fonte de informação privilegiada acerca dos significados atribuídos pelos/as jovens aos temas relativos ao consumo de drogas abordados no Jogo da Onda, tais como: conceitos e efeitos das drogas; motivações
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Este projeto contou com a colaboração de participantes do “Projeto de Prevenção às DST/AIDS e ao abuso de drogas nas escolas públicas estaduais e municipais do Rio de Janeiro”denominado de “Ser Vivo”, coordenado pelas Secretarias Estaduais de Saúde e Educação/RJ e Municipal de Educação/ RJ e apoiado pela Coordenação Nacional de DST/AIDS Ministério da Saúde. A coordenação do Projeto pretende distribuir 9.000 unidades do Jogo da Onda para os alunos/as (monitores) que serão treinados pelos professores capacitados.
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As sessões foram coordenadas por uma pesquisadora (com formação em psicoterapia) e observadas por uma segunda pesquisadora (com formação em educação em saúde) e tiveram duração média de uma hora e quinze minutos; os encontros foram gravados com o consentimento dos escolares.
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para o consumo; visão acerca do usuário de drogas; uso de drogas e relações familiares/afetivas; drogas e AIDS; pressão social/dificuldades na vida cotidiana; drogas e legislação9 . Ademais, permitiu a identificação da visão dos/as alunos/as sobre o jogo, bem como de demais trabalhos no campo da prevenção do HIV/AIDS e do abuso de drogas. O uso desta técnica nas pesquisas científicas permite lançar luzes sobre as opiniões, crenças e práticas de um grupo social (Dawson et al., 1992, p.3-4), bem como orientar a formulação das hipóteses e do desenho de um projeto. Soares (1997) destaca a utilização de grupos focais na abordagem qualitativa de pesquisa em Educação em Saúde, planejamento de programas, avaliação processual e de resultados. Segundo a autora, sua importância reside em seu potencial de “gerar hipóteses, descobrir percepções e atitudes de pequenos grupos, obter informações e estimular novas idéias” (1997, p.117). Pode-se observar que os grupos focais, além de cumprirem a finalidade de instrumento de pesquisa, constituem um meio de reflexão para os participantes. Os/as escolares, em geral, manifestaram interesse e disponibilidade para relatar suas experiências, agradeceram a oportunidade oferecida e reiteraram o desejo de participar de situações semelhantes. Quanto à observação das partidas, optou-se pela observação direta do uso do Jogo da Onda em grupos de alunos/as, orientada por um roteiro, com e sem a presença de um profissional de ensino. Tal opção favorece a identificação de diversos aspectos referentes ao contexto de aplicação do jogo, quais sejam: 1) influência da presença de um educador ou liderança juvenil na partida; 2) compreensão, respeito e adaptações às regras; 3) interesse pela dinâmica de abordagem dos temas e entendimento do conteúdo do jogo; 4) entrosamento e participação dos estudantes e demais fatores relativos à motivação pelo jogo. Para Lopes (1994), a observação direta dos fatos no processo de pesquisa em Comunicação Social, a partir de situações interativas, permite o registro dos diversos fatores, esperados ou não, que surgem no decorrer da investigação. A aplicação dos questionários aos alunos/as proporcionou informações complementares sobre o recurso educativo quanto à capacidade do jogo de gerar interação e debate, fornecer informação, fomentar a expressão das opiniões dos participantes e esclarecer dúvidas. Foram ainda registradas as opiniões sobre outros recursos envolvendo o tema da prevenção do uso de drogas, bem como críticas e sugestões em relação ao jogo. O questionário dirigido para os educadores, além desses temas, continha informações sobre o número de vezes que o jogo foi utilizado, o contexto de aplicação, a faixa etária e o nível de escolaridade do grupo. Destaca-se que os questionários foram preenchidos pelos próprios informantes. Cabe ainda informar alguns procedimentos adotados na análise dos dados. No que se refere às informações provenientes dos grupos focais e dos registros das observações das partidas, estas foram organizadas, num primeiro momento, em torno dos temas estruturantes dos respectivos roteiros. Em seguida, identificarram-se as recorrências e singularidades dos assuntos. Quanto às informações oriundas dos questionários aplicados em alunos e educadores, as respostas computadas foram distribuídas em
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percentuais. Ressalta-se, no tratamento dos dados, que as diferenças de gênero e idade não foram destacadas e sim a origem escolar, cuja variável encontra-se relacionada à variação do perfil socioeconômico das unidades de ensino do estudo. Considera-se que o processo de análise é resultante da articulação dos dados categorizados com a produção acadêmica do campo, conforme indicam os resultados apresentados a seguir. Análise dos resultados Concepção das drogas Na perspectiva dos estudantes droga é tudo aquilo que vicia, algo “ilusório”, uma coisa “ruim”. A ênfase na dimensão negativa, presente no imaginário social, não contempla o debate sobre as implicações do consumo devido e indevido das substâncias psicoativas, a diferenciação de drogas lícitas e ilícitas, bem como a dimensão histórica, econômica, política e sócio-cultural do uso das mesmas. Quer dizer, não leva em conta a contextualização da utilização e a diversidade das substâncias psicoativas na sociedade moderna. Vale destacar que esta concepção generalizante ganha contornos mais específicos a partir de algumas distinções sobre os malefícios de cada substância. Por exemplo, para muitos o cigarro é uma droga apenas porque vicia. Quanto ao álcool, prevalece a idéia de que este só se torna uma droga quando consumido de forma descontrolada. Parte dos/as alunos/as não considera o álcool uma droga. Convém informar que um terço dos 914 jovens participantes do estudo de Minayo et al. (1999) compartilham este ponto de vista. Diante da pergunta: “Quais as drogas que vocês conhecem?”, os/as escolares citaram um amplo leque: LSD, haxixe, heroína, chá de cogumelo, crack, ecstase, calmante, esmalte, acetona, drogas injetáveis, cola e benzina. Todavia, pouco se falou sobre a experimentação, os efeitos e implicações do uso das mesmas. O grupo, em geral, demonstra conhecer apenas os efeitos do álcool, da maconha e da cocaína, consideradas por eles como “drogas básicas”. Embora predomine a noção de que a maconha não causa grandes males, as drogas ilegais são consideradas mais prejudiciais porque “matam mais rápido”. Tal fato indica que os/as jovens atribuem um estatuto diferenciado às drogas ilegais, procedendo a uma classificação hierárquica10 entre as drogas lícitas e ilícitas. A noção de hierarquia também está presente em outras situações associadas a risco. No campo das práticas sexuais, Monteiro (1999) identificou entre jovens de uma favela carioca que a percepção do preservativo como algo desconfortável, somada à resistência ao uso por parte da/o parceira/o, levam a avaliações sobre uma hierarquia de risco conforme o contexto. De acordo com os meninos, diante de algumas situações (falta da camisinha, problema na negociação) eles cedem e não utilizam (“tento convencer, se eu não conseguir vai sem” — Vitor, 16 anos); mas, em certos casos, eles não abrem mão do uso. João, de 19 anos, diz que
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10 O estudo de Connors (1992) revela que a percepção de uma hierarquia de risco associado ao consumo de drogas também está presente entre os usuários de drogas injetáveis.
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no baile funk “a gente não sabe como é as coisas, aí usa (...) se [a menina] não quiser não faz, ela pode estar contaminada”. Acesso e iniciação Na ótica dos/as estudantes o acesso às drogas é facilitado pelo contexto social e a ‘pressão de grupo’ é uma realidade. Constata-se que o grupo entra em contato direto com as drogas na rua, no shopping, clubes e bailes. Esses fatores, no entanto, não são considerados os únicos determinantes para a iniciação ao consumo das drogas. A visão dos/as jovens sobre as motivações para o uso revelam uma maior ênfase na responsabilidade individual — “usa quem quer” — ou nas dificuldades pessoais. A percepção sobre a iniciação ao uso das drogas associada ao cigarro, foi aventada: “é sempre assim, todo mundo começa usando o cigarro depois vai passando para uma mais forte” e “dependendo da pessoa não consegue mais parar”. Mais uma vez, nota-se a presença de uma noção de hierarquia relacionada aos riscos decorrentes do consumo de drogas. Além da “curiosidade”, os/as jovens alegam que outros fatores contribuem para a iniciação ao uso, tais como: “imitação dos colegas e adultos”, a “quebra de tensão”, o fato de “sentirem-se como adultos” e o “prazer de fumar”. Stewien (1977) já havia identificado a influência de tais fatores. Segundo Goldfard (1999), metade dos jovens que experimentam o cigarro se tornam fumantes quando adultos. Nas discussões sobre as experiências de consumo de álcool, parte do grupo afirmou que faz um uso controlado. Segundo os/as estudantes, ficar de porre ou usar qualquer droga de maneira abusiva é muito ruim, mas “beber socialmente” é prazeroso. Nota-se assim que os/as jovens entrevistados/as se identificam como usuários “sociais”, que consomem principalmente cigarro, álcool e maconha de forma moderada e não correm o risco de fazer uso abusivo. Neste sentido, eles/as se diferenciam do usuário dependente, considerado uma ‘pessoa fraca’ e ‘sem auto-estima’. Em resumo, por não reconhecerem os potenciais malefícios do consumo, mesmo descontínuo, essa população não percebe os riscos a que poderia estar exposta. Soma-se a este fator a curiosidade de experimentar principalmente drogas lícitas como o álcool e o cigarro, a pressão social e o desconhecimento dos efeitos comportamentais e as conseqüências orgânicas do uso de substâncias psicoativas. Desse modo, pondera-se que a não percepção do risco, combinada à curiosidade, à desinformação e ao acesso contribuem para a iniciação do jovem no consumo de substâncias psicoativas. 11 O papel crucial da família na construção da identidade social e na elaboração do projeto de vida das pessoas, de diferentes segmentos sociais tem sido apontado na literatura sociológica (Durham, 1983; Velho, 1987; Sarti, 1996)
Os jovens e as relações com a família Procurou-se identificar em que medida os/as jovens compartilham com os pais as experiências, dúvidas e questões relacionadas ao consumo de drogas, tendo em vista que a construção da identidade do sujeito efetiva-se nas relações com os outros e que a família constitui o primeiro núcleo socializador da criança11 . Durante as observações das partidas, pode-se
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constatar que as cartas do jogo referentes ao assunto família geraram grandes discussões sobre o valor, as dificuldades e os problemas das relações familiares, sugerindo uma mobilização do grupo em torno desta temática. No entanto, a maioria dos/as entrevistados/as relata ter dificuldade de dialogar de forma “aberta” com os pais sobre sexo e drogas. Para alguns jogar o Jogo da Onda com a família seria uma oportunidade de conversar acerca do tema; outros, contudo, afirmaram que não se sentiriam à vontade para falar a “verdade”, com medo de serem repreendidos. É importante assinalar que do ponto de vista do/a jovem abordado pelo presente estudo a atitude de controle dos pais ocasiona o afastamento entre pais e filhos. Tal percepção indica a relativa eficácia da postura repressiva da família na prevenção do uso indevido drogas, principalmente o álcool. No que diz respeito ao uso de drogas e às relações familiares, alguns estudos, como o de Abramovay et al. (1999) e Minayo et al. (1999), indicam que apesar dos problemas e conflitos existentes, a família continua sendo uma das principais referências para os jovens, representando um locus de apoio e confiança. A escola foi considerada “o lugar ideal” para se abordar assuntos relacionados à prevenção ao HIV e ao uso abusivo de drogas. Todavia, a experiência dos jovens revela a escassa disponibilidade dos professores em tratar tal tema. Segundo os/as alunos/as, na maioria das vezes, os educadores falam pouco sobre essas questões: “eles têm um bloqueio”. Assim, em detrimento da importância atribuída à instituição familiar e escolar, no que tange à vivência do jovem, não existe nesses espaços de sociabilidade um diálogo franco acerca do assunto drogas, conforme demandam os/as escolares. Legislação e relações dos jovens com o poder público Observa-se que a maioria dos/as jovens sabe distinguir drogas lícitas e ilícitas. Predomina a idéia de que algumas substâncias não são legalizadas porque existe interesse político e comercial: “nosso país é governado por pessoas governadas por indústrias”. Alguns acreditam que se as drogas ilícitas fossem comercializadas haveria um aumento do uso, para outros tal ação não interferiria no consumo. Há ainda os que acreditam que a proibição “não leva a nada” podendo, inclusive, estimular o consumo. Algumas das sugestões do grupo sobre alternativas de reformulação da legislação vigente aproximam-se da atual proposta de discriminação, na qual se retira o ato de consumir drogas da esfera penal, mantendo nesta esfera as atividades de tráfico. Suas falas são ilustrativas: “para usuários, clínica de recuperação”; “caçaria os traficantes e faria trabalhos de prevenção em escolas e hospitais”; “se eu tivesse autoridade eu colocava todos os viciados para tratamento”; “cobraria impostos altos e reverteria para o tratamento das pessoas”. Há ainda posições a favor da proibição de algumas drogas lícitas, ilustradas pelas
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seguintes falas: “álcool e cigarro também têm que entrar no mesmo rigor da lei”, “ia botar fogo geral, contra a comercialização de qualquer droga” . Nos debates relativos aos procedimentos legais diante de um flagrante relacionado ao uso de drogas ilícitas, a falta de confiança na polícia foi tema recorrente. Há uma descrença nas instâncias governamentais responsáveis pela segurança da população, bem como no cumprimento das leis pelo povo: “ninguém segue a lei no Brasil”. Alguns jovens criticaram a ausência do poder público na promoção da segurança da população. Nota-se assim, uma demanda dos jovens por ações de controle das drogas no âmbito público, particularmente em determinados contextos, conforme revela um escolar: “as pessoas deveriam ser revistadas [nos bailes]”. A discussão das relações dos jovens com o poder legal e o poder ilegal perpassou todos os grupos de discussão. Na visão dos/as estudantes a polícia tem atitudes agressivas e desrespeitosas. Os depoimentos são ilustrativos: “tenho mais medo deles do que dos traficantes, não respeitam ninguém”, “além de traficar, usam e vendem a droga apreendida”. Alguns procuram justificar tais atitudes, alegando que os policiais ganham pouco e por isso são corruptos. Por outro lado, o traficante é visto como um “comerciante” que ganha dinheiro com as drogas, mas não faz uso das mesmas. Há um reconhecimento de que o bandido faz mal, contudo “dá presente” e parece ser mais confiável do que o policial. Portanto, as representações em torno da figura do bandido pendem para uma visão mais positiva quando comparada à polícia e assemelham-se às encontradas na literatura (Zaluar, 1985, 1994; Fonseca, 1993; Monteiro, 1999; Assis, 1999). No contexto do estudo de Zaluar (1994), ressalta-se que as representações do bandido, comumente contrapostas à figura do policial, apresentam-se como resultante de um mecanismo de exclusão social que afeta a juventude e encontra-se intimamente relacionado, dentre outros fatores, a uma crise de ética do trabalho na nossa sociedade. Em que pese uma percepção mais ou menos homogênea, pode-se observar algumas diferenças de visão entre os estudantes associadas às particularidades econômicas e sociais das localidades do estudo. Algumas observações endossam este ponto de vista. Em uma escola do subúrbio notou-se uma disposição para ações preventivas nesse campo, com predomínio de atitudes de solidariedade e de valores apoiados em relações de reciprocidade no âmbito familiar e local. Esta escola caracteriza-se por estar situada em uma área mais distanciada do centro urbano, embora pertença à região metropolitana do Rio. Já em uma das escolas da Zona Sul, próxima à área de tráfico, prevaleceu um descrédito por parte do jovem em relação às perspectivas de mudança. Na visão deste grupo não é possível reverter esta situação, ela se encontra em toda parte; tal cenário reflete a ausência de alternativas para se lidar com questões relacionados ao uso e ao tráfico de drogas. Semelhante a esta postura foi a percepção dos jovens de outra escola situada na zona norte próxima ao comércio ilegal de drogas. Observa-se que os jovens pertencentes às regiões mais próximas do tráfico e de intervenções policiais repressivas têm maior receio em abordar as experiências de violência; em contraste com o relato mais espontâneo daqueles que se apresentam, aparentemente, mais distanciados do comércio
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ilegal de drogas. Aparentemente porque o uso de drogas lícitas e ilícitas é realidade em todas as localidades que compõem a amostra e grande parte dos/as alunos/as convive com familiares que fazem uso abusivo de álcool. Opiniões sobre o Jogo Os dados sobre a opinião dos jovens e das educadoras acerca da aceitação e motivação do uso do Jogo da Onda indicam que este é um recurso capaz de informar, promover a reflexão e estimular o debate acerca de várias situações cotidianas relacionadas ao uso de drogas. Grande parte (79,0%) dos/as alunos/as atribuiu ao jogo o conceito “muito bom”, considerando-o informativo e interativo; 80,0% afirmaram que por meio desse material é possível conhecer melhor a opinião dos colegas; cerca de 70% responderam que podem expressar plenamente suas opiniões; 98,4% concordam que o jogo ajuda a compreender temas referentes ao uso de drogas, particularmente os conceitos e efeitos das drogas e sua relação com o contexto familiar; 98,4% afirmaram que gostariam de jogar novamente. Na opinião das educadoras o jogo atinge seus objetivos quanto a gerar debates, fornecer informação e esclarecer dúvidas de forma satisfatória. Para 64,7% o Jogo da Onda é um instrumento pelo qual os/as alunos/as conseguem expressar suas opiniões; 82,3% consideram que este material estimula a interação e comunicação dos participantes. Para as profissionais de ensino o caráter dinâmico dos jogos marca a diferença entre estes e os demais materiais educativos, além de motivar as diversas faixas etárias. Embora 70,6% tenham revelado não ter dificuldade na aplicação do material, alguns problemas foram apontados, como leitura e compreensão do conteúdo das cartas e das regras. Todavia, essas dificuldades foram superadas com a ajuda de um facilitador (educador) ou de um dos jogadores. Considerações finais A proposta de investigar o conhecimento da visão de estudantes sobre os temas abordados no Jogo da Onda apóia-se na idéia da relevância da percepção do usuário na avaliação do alcance das mensagens veiculadas em recursos de Educação em Saúde. Tal perspectiva busca trazer para o contexto educacional as experiências e representações do educando acerca da temática em foco, tendo em vista as diferenças socioeconômicas e culturais entre os segmentos populacionais que integram as sociedades modernas. Desta forma, procura-se diferenciar das proposições educativas que enfatizam a transmissão de informações, definidas a priori e distanciadas da realidade dos sujeitos aos quais as mensagens são dirigidas. Ao privilegiar a visão dos/as estudantes foi possível identificar os contrastes entre o discurso preventivo repressivo e as motivações para a experimentação de drogas (lícitas e ilícitas). Observa-se que a iniciação ao uso está relacionada a um conjunto
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de fatores, como pressão social de grupo, fácil acesso às drogas e ao não reconhecimento de que o consumo pessoal, mesmo descontínuo, pode levar à dependência química. Notou-se, ainda, uma ausência de confiança da maioria dos jovens na polícia, identificada como a instituição do aparato do Estado responsável pela segurança da população. Foi observado que as visões dos/as escolares encontram pontos de convergência com a produção acadêmica neste campo. No entanto, observa-se que tais concepções, em geral, não são consideradas nas campanhas sobre o abuso de drogas, centradas numa abordagem alarmista e preconceituosa do fenômeno. Dito de outro modo, determinadas dissonâncias entre visão do grupo pesquisado e discurso preventivo repressivo e/ou técnico informativo sugere a necessidade de os programas educativos valorizarem as formas de apreensão e as repercussões das informações transmitidas. Compreende-se que este enfoque pode revelar o alcance das metas esperadas e sugerir reformulações nas ações e investigações no campo da Educação em Saúde. Além da caracterização da visão dos usuários sobre as referidas temáticas, buscou-se verificar o estímulo e aceitação dos escolares e de alguns educadores sobre o uso do Jogo da Onda em contexto educacional. Este ponto de vista refere-se à valorização da motivação e da interatividade no processo de ensino e aprendizagem. O grupo pesquisado afirmou ser o jogo um recurso motivante, capaz de gerar aprendizagem, promover o diálogo e o debate sobre situações relacionadas ao uso de drogas. Com base nas observações colhidas assinala-se que este jogo pode facilitar a abordagem do tema drogas na escola e na família, consideradas instituições sociais importantes para a formação dos indivíduos, que em muitos casos têm dificuldade de tratar tal assunto. Convém acrescentar que os/as escolares demonstram interesse em participar de programas de prevenção. A maioria já teve acesso a informações sobre drogas por meio de materiais pedagógicos diferenciados (folhetos, vídeos) e atividades diversas (palestras, teatro, feira de ciências), sendo as propostas interativas que favorecem o diálogo — como os jogos — as mais valorizadas. Por outro lado, as ações predominantemente informativas foram criticadas. É importante citar que um dos desdobramentos do presente estudo foi a ampliação do Jogo da Onda por meio da introdução de novas cartas, já em andamento, sobre os conteúdos abordados e demais temas da adolescência, principalmente saúde sexual e reprodutiva e relações de gênero. Tal proposta visa incorporar as sugestões dos jovens participantes da investigação. Pretende-se ainda acrescentar novas sugestões ao encarte que acompanha o jogo (composto de bibliografia e dicas das implicações dos contextos de uso do material). Outro desdobramento da investigação referese à divulgação de seus resultados para os profissionais de ensino da rede pública, em seminários. As discussões revelaram a importância da devolução dos dados da pesquisa no incremento da prática pedagógica em saúde. Em suma, por meio desta investigação, buscou-se demonstrar em que medida a análise do ponto de vista dos usuários possibilita a avaliação da
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adequação e aperfeiçoamento de um material educativo sobre o uso indevido de drogas e, conseqüentemente, colabora para a formulação de propostas de Educação em Saúde mais efetivas e estimulantes. Referências bibliográficas ABRAMOVAY, M., WAISELFISZ, J., ANDRADE, C., RUA, M. G. Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. ASSIS, S. G. Traçando caminhos em uma sociedade violenta: a vida de jovens infratores e de seus irmãos não infratores. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. BARROS, C. R., MATHIAS, C. R., CASTRO, D. M. et al. Catálogo Projeto Prisma - região Sudeste. Rio de Janeiro: UERJ, 1999. BASTOS, I. F. Ruína & reconstrução: AIDS e drogas injetáveis na cena contemporânea. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ABIA/IMS/UERJ, 1995. BORGES, S. N. Metamorfoses do corpo: uma pedagogia Freudiana. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996. BUCHER, R. Drogas e drogadição no Brasil. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1992. CAMARGO JR., K. R. Políticas públicas e prevenção em HIV/AIDS. In: PARKER, R., GALVÃO, J., BRESSON, M. (Orgs.) Saúde, desenvolvimento e política: respostas frente à AIDS no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 1999. p.227-62. CASTIEL, L. D. O buraco e o avestruz: a singularidade do adoecer humano. São Paulo: Papirus, 1994. CONNORS, M. Risk perception, risk taking and risk management among intravenous drug users: Implications for AIDS prevention. Soc. Sci. Med., v.34, p.591-601, 1992. CORTES, B. A. O jogo da onda: um convite ao diálogo. Hist. Ciênc. Saúde, v.5, n.3, p.762-5, 1999. DAWSON, S., MANDERSON & TALLO, V. The focus group manual: methods for social research in tropical diaseases. sl: UNDCP/World Bank/WHO - Special Programme for Research and Training in Tropical Diseases (TDR). 1992. (mimeogr.) DURHAM, E. Família e reprodução humana. In: FRANCHETTO et al. (Orgs.) Perspectivas antroloplógicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p.13-44. ESCOHOTADO, A. O livro das drogas: usos e abusos, preconceitos e desafios. São Paulo: Dynamis Editorial, 1997. FONSECA, C. Bandidos e mocinhos: antropologia da violência no cotidiano. Humanas: revista da IFCH – UFRGS, v.1, n.2, p.67-89, 1993. GOLDFARB, L. Tabagismo: estudos em adolescentes e jovens. In: SCHOR, N., MOTA, M.S., CASTELO BRANCO, V. (Orgs) Cadernos juventude, saúde e desenvolvimento. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, 1999. p.162-72. INEM, C., ACSELRAD, G. (Orgs) Drogas: uma visão contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 1993. L’ABBATE, S. Educação em Saúde: uma nova abordagem. Cad. Saúde Pública, v.20, n.4, p.481-90, 1994. LOPES, M. I. V. Pesquisa em Comunicação: formulação de um modelo metodológico. São Paulo: Loyola, 1994. MELO, J. A. C. (Org.) Educação: razão e paixão. Rio de Janeiro: Panorama, ENSP, 1993. MELO, J. M. Comunicação: teoria e política. São Paulo: Summus, 1995. MESQUITA, F., BASTOS, F. (Orgs.) Drogas e AIDS: estratégias de redução de danos. São Paulo: Hucitec, 1994. MINAYO, M. C. S., ASSIS, S. G., SOUZA, E. R. et al. Fala galera: juventude, violência e cidadania. Rio
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Jogo da Onda De forma divertida e educativa, o Jogo da Onda incentiva e incrementa o diálogo entre jovens, educadores, pais, filhos, amigos e profissionais sobre o uso indevido de drogas. Para 4 a 8 participantes (organizados em duplas). Recomendado para maiores de 12 anos, é adequado para contextos do ensino formal e informal, podendo ser adaptado para diferentes realidades, inclusive programas dirigidos para dependentes químicos, conforme indica o encarte que acompanha o material. Contém: um tabuleiro; quatro baralhos coloridos que abordam temas relativos à: família, relacionamento, sexualidade, dependência, drogas e seus efeitos, tratamento, legislação, AIDS, entre outros; um dado simples; quatro pinos e um encarte com dicas de atividades e sugestões bibliográficas.
ONDA? r o JOGO da Como adquiri ultor Edições Cons urjão, 479 G al er en G Rua : 20931- 041 neiro/RJ CEP Ja de Caju, Rio 3030 Tel: ( 21) 589 2163 0 58 ) Fax: ( 21 emplar para de doar um ex A FIOCRUZ po dade civil. cie so da blicas e instituições pú : ra a solicitação pa Encaminhe su ia/IOC LEAS - Biolog aldo Cruz Fundação Osw teiro on M e on m Si A/C 65 43 il, Av. Bras / RJ. Rio de Janeiro Manguinhos, 0 CEP: 21045 90 560 6474 Telefax: ( 21)
REBELLO, S.; MONTEIRO, S.; VARGAS, E. Visión de los escolares sobre drogas mediante el uso de um juego educativo. Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.75-88, 2001. Este estudio enfatiza la relevancia de la mediación cultural en el uso de tecnologías educacionales. Para eso, se describe la percepción de 62 escolares de la red pública de Rio de Janeiro sobre temas abordados en el Jogo da Onda, un juego sobre el uso de drogas, y el interés del grupo por el material. A partir de grupos focales, observación de las partidas y cuestionarios, se observó que la iniciación al uso de drogas está relacionada a: presión social de grupo, fácil acceso a las drogas y al no reconocimiento de que el consumo personal, aún cuando sea discontinuo, puede llevar a la dependencia química. Disonancias entre la visión de los escolares y el discurso preventivo represivo y/o técnico informativo sugieren que las acciones educativas deben privilegiar formas de aprensión de las informaciones transmitidas, enfocando la interactividad, la interlocución, la información y la reflexión. PALABRAS CLAVE: transtornos relacionados con substancias; tecnología educacional; percepción social. servicios de la salud preventiva; estudiantes Recebido para publicação em: 20/09/99. Aprovado para publicação em: 27/06/00.
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Saber, agir e educar: o ensinoaprendizagem em serviços de Saúde
Maria Alice Amorim Garcia1
GARCIA, M. A. A. Knowledge, action and education: teaching and learning at healthcare centers. Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.89-100, 2001.
This article approaches the teaching-learning process in healthcare services, especially in those that are integrated with the Public Health Care System. Based on rethinking certain pedagogical theories, the author attempts to build a frame of reference that would allow rethinking about certain aspects of teaching experienced in day-to-day work. It is the kind of work carried out at healthcare services that enables the articulation of education and of its social, technical and ideological dimensions while, on the other hand, defining it not only through the needs of its professionals but mainly as a response to the reality and purposes that guide the institutionalization of the Brazilian healthcare system. The dialectics of educational practice and healthcare have given rise to innovative chains of thought and action. In general terms, it can be said that education in services brings out the educational potential of day-to-day work and guides learning as an ongoing process of a participative nature. It also allows the articulation of doing, educating, and knowing, and the reasons behind not doing, not educating and/or not knowing. As a pedagogical process that integrates the individual and the group, the institutional and the social, as well as the cognitive and the affective, it can be led by the commitment to transform practices, which is indispensable in order to render effective everything that is intended as part of a Healthcare Reform designed to defend life. KEYWORDS: learning; teaching; professional practice; healthcare education; healthcare services. Este artigo aborda a questão do processo ensino-aprendizagem em serviços de saúde, em especial os integrados à rede pública. Repensando algumas teorias pedagógicas, discute aspectos do ensino experimentado no trabalho cotidiano. O trabalho realizado nestes serviços possibilita articular a educação a suas dimensões sociais, ideológicas e técnicas e definir não somente pelas necessidades dos profissionais, mas como resposta à realidade e às finalidades que orientam a institucionalização do sistema de saúde brasileiro. A dialética entre a prática educacional e o cuidado em saúde tem gerado correntes de pensamento e de ação inovadoras, podendo-se dizer que a educação em serviços ressalta o potencial pedagógico do trabalho cotidiano, orienta a aprendizagem enquanto um processo contínuo e de natureza participativa e possibilita a articulação entre o fazer, o educar, o saber. Por integrar o individual, o grupal, o institucional e o social, o cognitivo e o afetivo, esse processo pedagógico pode representar um espaço comprometido com a transformação das práticas, necessária à efetivação de uma Reforma Sanitária em defesa da vida. PALAVRAS-CHAVE: aprendizagem; ensino; prática profissional. educação em saúde; serviços de saúde.
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Professora do Departamento de Medicina Social e Preventiva, Faculdade de Ciências Médicas, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. <millas@lexxa.com.br>
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Introdução Os estágios existentes nos cursos da área da saúde (Enfermagem, Medicina, Fisioterapia, Nutrição, Farmácia, Terapia Ocupacional, entre outros), geralmente concentrados no momento profissionalizante destes cursos, objetivam, por meio de atividades eminentemente práticas, a aplicação de conhecimentos adquiridos e a habilitação para o exercício profissional. Realizam-se, em sua maior parte, em serviços integrados ou pertencentes à rede pública, o que visa minimizar o distanciamento entre o ensino e a realidade social. Com esta integração busca-se formar profissionais com uma visão mais realística do mercado de trabalho e das necessidades sociais, o que nem sempre acontece, por motivos diversos e complexos. Entre estes, destaca-se a inadequação dos serviços à docência e, muitas vezes, sua ineficiência em responder às diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Impõe-se também a não habilitação dos docentes para o fazer pedagógico em serviço. Reproduzem-se na escola os fazeres do mercado: estratificado, hierarquizado, fragmentado, e que não responde às necessidades de saúde da população, de uma atenção integral e resolutiva, como intenciona a Reforma Sanitária brasileira e sua regulamentação pelo SUS. Assim, projetos pedagógicos que visem responder às diretrizes e princípios do sistema e transformar este modelo de ensino, devem levar em consideração as questões que envolvem o processo ensino-aprendizagem, como os conteúdos e as estratégias didáticas, e aquelas relacionadas ao modelo tecnoassistencial, como conhecimentos, práticas e relações, que implicam num modo de intervir em saúde (um modo de trabalhar específico). Neste estudo discuto alguns destes aspectos: do processo ensinoaprendizagem, pela experimentação cotidiana do trabalho; dos modelos tecnoassistenciais em saúde; e, finalmente, do fazer pedagógico relacionado ao trabalho em saúde. O processo ensino-aprendizagem com base na problematização do cotidiano O processo ensino-aprendizagem em serviços apresenta aspectos muito diferenciados daquele efetuado em salas de aula. Quanto às relações, inscrevem-se, além da docente-discente, as com os usuários e a equipe de trabalho. Quanto aos conteúdos, integram-se os de caráter técnicoinformativos às questões formativas éticas, morais, psicológicas, ligadas às relações sociais aí estabelecidas. A aproximação ao cotidiano pode permitir tornar a educação significativa. Pela vivência de situações, objetiva-se conjugar o processo indutivo de conhecimento, parco em generalizações, ao processo dedutivo, mediado por conceitos sistematizados em sistemas explicativos globais, organizados numa lógica socialmente construída e reconhecida como legítima. Procura-se também, pelo cotidiano, possibilitar o questionamento das práticas sociais e a instrumentalização para o conhecer e o agir. Utilizando a expressão de Saviani (1984) é a ‘catarse’ entre o conhecer e o agir que
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SABER, AGIR, EDUCAR: O ENSINO-APRENDIZAGEM
permite a efetiva incorporação dos instrumentos técnicos, culturais e éticos necessários para a intervenção competente. Pretende-se que a educação, como mediação na prática social, sirva de ponto de partida e de chegada do processo didático-pedagógico. As noções básicas relativas à interação (ou à inter-subjetividade), à internalização e à mediação, advindas de estudos que se baseiam nas obras de Vygotsky (1984), contribuem para a compreensão das peculiaridades da aprendizagem a partir do cotidiano. Como analisa Góes (1991), o educar, enquanto processo sociocultural, alicerça-se no plano das interações, sendo o resultado da apropriação (internalização) de formas de ação que dependem “tanto de estratégias e conhecimentos dominados pelo sujeito quanto de ocorrências no contexto interativo” (p.18). Na ação, que se apresenta inicialmente como externa ao sujeito, o homem transforma-se, podendo rever seu próprio agir. as funções psicológicas, que emergem e se consolidam no plano da ação entre sujeitos (na interação), tornam-se internalizadas, isto é, transformam-se para constituir o funcionamento interno. (...) esse plano interno, intra-subjetivo, não é um plano de consciência preexistente (...) mas um modo de funcionamento que se cria com a internalização. Dessa maneira, longe de ser cópia do plano externo, resulta da apropriação dos planos de ação. (Góes, 1992, p.18)
2 Como será visto adiante educare do latim tinha originariamente o sentido de criar, nutrir, amamentar, cuidar.
Vygotsky (1984) explica este processo por meio da noção de “zona de desenvolvimento proximal”, referindo-se às funções emergentes no sujeito que crescem de modo partilhado, transformando-se em desenvolvimento consolidado, abrindo novas possibilidades de funções emergentes, potenciais. As experiências tornam-se significativas quanto maior o grau de generalidade, com base em duas dimensões: o espaço de abrangência de aplicação do conhecimento ao real (internalização) e o nível de sua independência em relação ao imediato-concreto e ao sensível, os quais permitem criar zonas de desenvolvimento proximal sucessivas (Góes, 1991). Assim, o educar, pelo cotidiano, não se limita à absorção passiva de conhecimentos, mas à possibilidade de o sujeito “libertar-se do espaço e do tempo presentes, fazer relações mentais na ausência das próprias coisas, imaginar, fazer planos e ter intenções”, transformar, realizar sínteses, tomar posse do fazer/conhecer (Oliveira, 1995, p.35). Conseqüentemente, o conhecimento não é a reprodução de ações externas, ou a cópia de objetos, não se dá de fora para dentro, mas na interdependência dos planos inter e intra-psíquicos (Góes, 1991). Em relação à importância da intersubjetividade no processo ensinoaprendizagem, Valente (1993) aponta que o conhecer exige inicialmente um conhecimento interior, próprio. É necessário conhecer-se, para reconhecer, perceber o outro e então, nutrir-se2 . Para que esta vivência seja significativa, fazem-se necessárias algumas mediações, sendo essencial o papel do docente. Cabe a este a problematização do cotidiano (sua desconstrução e reconstrução) pelo diálogo com o saber científico. Pelo “princípio dialógico”3 configura-se um processo de articulação que coloca em confronto múltiplas vozes
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historicamente definidas, produtoras daquele conhecimento (Fontana, 1995). Assim, exige-se do educador uma mudança do papel de informante, que mantém relações estritamente cognitivas com os conteúdos das disciplinas, para o de construtor de conhecimentos e estimulador da produção dos próprios alunos. Esse professor necessita realizar opções sucessivas, posicionamentos perante a vida e o mundo que se refletem nos conceitos de conhecimento, ciência, ensino e fazer profissional. Sua trajetória é de um constante avaliar e reformular, de inferência intencional nas circunstâncias socioculturais e condições pessoais. Não basta o domínio do conhecimento amplo e atualizado, mas faz-se necessário o conhecimento da produção do conhecimento e o conhecimento do que é ensinar (Pimentel, 1993). Como habilidades, esse docente deve aprender a correr riscos, ter tolerância para com a ambigüidade, estabelecer relações amplas em sínteses provisórias, que reúnam um número muito grande de fatos da realidade, conceitos, aspectos objetivos e subjetivos, informações reais e imagens (representações simbólicas que também na saúde são essenciais). Deve ser capaz de inovar e criar e de romper com os limites estabelecidos (Pimentel, 1993). Necessita rever sua prática no dia-a-dia, a partir de seus conhecimentos, de sua capacitação didática, da experiência com o trabalho, com o aluno, com a equipe, com os usuários. Trata-se, segundo Pimentel (1993), de um professor em construção, que busca constantemente o significado do seu ser e do seu fazer. Como refere Gómez (1992), partir do cotidiano requer do professor o desenvolvimento de uma racionalidade prática, enquanto reflexão na ação e não uma racionalidade estritamente técnica. Poder-se-ia distinguir duas concepções da atividade de ensino: “o professor como técnico-especialista que aplica com rigor as regras que derivam do conhecimento científico e o professor como prático autônomo, como artista que reflete, que toma decisões e que cria durante sua própria ação” (p.96). Nesta direção, Geraldi (1993) refere-se à metodologia de ensino “como a produção criativa e idiossincrática que o professor produz ao articular suas visões de mundo, suas opções de vida, da história e do cotidiano (...) ao processo desencadeado nas aulas” (p.10). Pela ação dialógica, caberia ao docente a problematização do cotidiano, buscando seu sentido ético-social. a educação problematizadora, respondendo à essência do ser da consciência, que é sua intencionalidade (...) identifica-se com o próprio da consciência que é sempre ser consciência de, não apenas quando se intenciona a objetos, mas também quando se volta sobre si mesma (...) a consciência é consciência de consciência. (Paulo Freire, 1983, p.77)
Assim, a Educação não pode ser um ato de transmitir, de depositar, mas um “ato cognoscente” entre sujeitos (educador e educando), numa relação dialógica, ou seja mediada pela palavra, pelas relações e pelos objetos cognoscíveis.
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3 Fontana (1995) refere-se ao “princípio dialógico” de Bakhtin, M. (Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec,1986) que focaliza a palavra como múltipla e interindividual, ela refere-se sempre a pelo menos dois sujeitos. Os sentidos (os significados) elaborados são em parte ‘nossos’, e em parte, do ‘outro’.
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Tratando-se do conhecer pelo cotidiano do trabalho em saúde, esses objetos cognoscíveis implicam mediações ainda mais complexas, pois incluem usuários, equipes e o próprio serviço. Propondo-se à análise do processo de ensino-aprendizagem em serviços de saúde, a inferência aos objetos cognoscíveis traz outros referencias explicativos como os relativos aos modelos tecnoassistenciais, ou seja, os modos específicos de agir/conhecer por meio do trabalho em saúde. A constituição dos modelos tecnoassistenciais em saúde Respondendo às necessidades sociais, os serviços de saúde articulam-se ao conjunto da divisão do trabalho podendo, assim, ser analisados por meio de seus elementos básicos: os objetos, os instrumentos e as atividades (o trabalho propriamente dito); e os elementos de caráter específico, tais como: o conteúdo ético, as relações sociais e sua forma de organização (Paim, 1993; Donnangelo, 1979). De acordo com a especificidade destes elementos, conformam-se modelos tecnoassistenciais que correspondem às transformações historicamente verificadas nas ciências de base e em suas formas de aplicação às práticas de saúde, como também, às especificidades destas relações em situações particulares (Gonçalves, 1994). Distinguem-se, genericamente, dois grandes modelos tecnoassistenciais: o da medicina individual e o da saúde coletiva. O primeiro, baseado fundamentalmente na clínica, volta-se ao indivíduo no sentido da cura. O outro, relacionado à saúde pública, tem o caráter dominantemente preventivo e volta-se à população ou a determinados grupos e baseia-se nos conhecimentos epidemiológicos, da higiene e das ciências sociais. É o objeto, seja ele o corpo doente ou os condicionantes de situações individuais e coletivos, que define os instrumentos e as atividades apropriadas à resolução dos problemas apresentados. Quanto ao conteúdo ético, o trabalho em saúde ultrapassa as dimensões econômica e política pois, ao lidar com as necessidades sociais de saúde, este trabalho é integralmente ‘amalgamado’ com valores e com representações, que demandam uma abordagem educativa amplamente compreensiva que não dissocie os componentes técnico-instrumentais dos elementos éticomorais, políticos, comportamentais etc. (Paim, 1993, p.9)
Neste sentido, segundo Paim (1993), no trabalho em saúde, as relações sociais encerram e reproduzem as contradições e possibilidades da totalidade social de que são parte. As práticas de saúde, como as práticas educativas, não são mero reflexo das práticas sociais, mas a constituem, reproduzem e transformam a totalidade social, participando da produção social. Incorpora-se, assim, um outro elemento deste trabalho, qual seja, sua organização, pois as práticas em saúde exigem organizações complexas, instituições com uma certa lógica, com sujeitos em papéis mais ou menos
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definidos, com uma cultura e um universo simbólico específico (Paim, 1993). Na constituição deste universo simbólico e nas relações entre os sujeitos, perpassa uma educação informal que institui modos de ser sujeito (profissional) e objeto (usuário). Qualquer intervenção em saúde implica uma ação pedagógica. Nos modelos referidos anteriormente, seja nas ações coletivas, como nas individuais, esta intervenção pedagógica é inerente, mas seu caráter pode se diferenciar. Historicamente, esta intervenção, respondendo ao papel social das ações de saúde, tem sido de caráter dominantemente subordinador. Baseada nas teorias que tomam a educação como instrumento de adaptação social, visa mudar comportamentos, crenças e atitudes, mantendo as pessoas no interior das normas estabelecidas - pela sociedade e pela ordem biomédica (Melo, 1989). Trata-se de um saber-fazer pedagógico que funciona também para a reprodução das hierarquias. Pelo discurso técnico, há a dominância do discurso médico entre os profissionais e a dominância dos profissionais sobre a população. Tem-se por projeto a “inculcação”, a formação de “boas consciências” em uma classe dita ignorante, passiva e deseducada (Melo, 1989). Nessas relações, médicos e pacientes cumprem seus papéis: uns aprendem a cumprir o “papel daqueles que (supostamente) tudo sabem, ensinando aos que (supostamente) nada sabem” (Mello, 1989, p.160). No contraponto da submissão está a dominação e vice-versa (Melo, 1989). As possibilidades de mudanças dos modelos tecnoassistenciais Na revisão dos modelos tecnoassistenciais que vem se processando nas duas últimas décadas também se questiona o caráter subordinador das práticas de saúde. Entre os princípios do Sistema Único de Saúde colocam-se o da integralidade, que busca articular os dois modelos, as ações coletivas e individuais, curativas e preventivas, respondendo universalmente e resolutivamente às necessidades sociais em saúde. Campos (1991; 1992a; 1992b) fala da constituição de um “modo mutante” de fazer saúde baseado num agir-pensar coletivo voltado à defesa da vida. Gallo e Nascimento (1989) discutem a construção da consciência sanitária, também por meio de um agir-pensar coletivo, possível devido ao Movimento Sanitário enquanto espaço político e organizacional potencialmente moderno e democrático de luta pela cidadania. Como analisado por Luz (1988), para a constituição deste modelo far-seia necessária a revisão da racionalidade científica moderna e a construção de um novo paradigma. Dever-se-ia reconstruir uma racionalidade que permitisse recompor as dualidades entre homem/natureza, social/individual, matéria/espírito, corpo/alma, organismo/mente, qualidade/quantidade, sujeito/objeto, reincorporando-se o conceito de saúde e o objetivo da cura. Para Nájera (1991) seria um modelo que levasse em conta o direito do cidadão de curar, de não sofrer dor, com qualidade e eqüidade, tendo acesso aos avanços tecnológicos, ao desenvolvimento de técnicas de intervenção e cura, devendo-se superar os limites positivistas da produção de saberes: a
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parcialização, a especialização e a biologização. Ainda em relação à superação dos limites do paradigma biomédico, Chaves (1996) propõe um novo paradigma que possibilite “pensar holisticamente valorizando a liberdade individual e a visão abrangente da relação ser humano-natureza”, “um modelo bio-psico-sócio-cósmico” construído transdisciplinarmente que “nos leve ao homo humanus” (p.26). Nos serviços de saúde, enquanto instituições hipercomplexas, segundo Testa (1997), o trabalho vivo sobrepuja o trabalho morto, ou seja, é o trabalho em si, concreto, contido nas pessoas (e não nas máquinas ou equipamentos) que define as finalidades (ou a motivação por quê e para quê) da ação em saúde. Na discussão do que seria este trabalho vivo e como se processaria, Merhy (1997) aponta, como desafio central para a mudança do modelo, a “publicização” da direção deste sistema e a “coletivização” da gestão dos processos de trabalho. Esta publicização e coletivização implicam os modos como no dia-a-dia os trabalhadores de saúde e os usuários produzem-se mutuamente como uma “máquina” permanente de produção de “subjetividades”, de modos de sentir, de representar e vivenciar necessidades. As relações entre profissionais e usuários, ou como denomina Merhy (1997), o espaço interseçor, permite e exige a captura de tecnologias leves (das relações) e não só aquelas estruturadas (as duras, que são as instrumentais, e as leveduras, que são os saberes estruturados). As necessidades de saúde são instituídas neste espaço de produção/consumo como um “bem”, cujo valor é inestimável, pois busca restabelecer ou manter a vida. Respondendo a distintas intencionalidades e desejos, estas necessidades apresentam formatos distintos, tanto como carência quanto como potência, e com distintas formas de resolvê-las. A captura destas tecnologias leves seria pautada pela ética do compromisso com a vida e expressa em atos como: a relação de acolhimento, a criação do vínculo, a produção de resolutividade, a criação de maior grau de autonomia no modo de as pessoas encaminharem a vida. Assim, é o espaço da intersubjetividade, o possível de um modo mutante de fazer saúde, como também um modo mutante de educar, ambos intrinsecamente relacionados. A educação no trabalho em saúde Pode-se traçar várias relações entre o educar e o cuidar, entre os modelos educacionais e modelos tecnoassistenciais dos serviços de saúde. Os termos terapia e educar aproximam-se em sua origem etimológica. Segundo Rubem Alves (1993), em grego, therapeutés é um “serviçal” e o verbo therapeuein quer dizer “cuidar, tomar conta, como se cuida de um jardim, como se cuida de uma criança”. Quanto ao educar, há o educare do latim, que originariamente tinha o sentido de criar, nutrir, amamentar, cuidar, passando depois a significar educar, instruir, ensinar. Anote-se também o sentido apontado por Valente (1993) de ex-ductere (educere), que significa conduzir para fora, lançar, “tirar de dentro”, mas também parir, produzir, criar. Tais significados fevereiro, 2001
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parecem completar-se demonstrando, por um lado, que para educar seria necessário alimentar, nutrir, indicando que aquele que está sendo educado nutre-se de conhecimentos. Por outro lado, demonstra-se que este processo deve partir de dentro, sendo necessário ter fome e demonstrá-la. Assim, cabe ao terapeuta e ao educador cuidar procurando compartilhar, produzir, gerir. Educar é cuidar e para cuidar se educa. Tanto o ato de educar como o de curar representam um encontro, uma negociação, um ato interseçor, intersubjetivo, que visa à internalização de um pensar e agir por parte dos sujeitos implicados nesta relação, que implica na captura de tecnologias leves, num trabalho vivo em ato. O ato visado por cuidar/educar é o ponto de partida e de chegada desta ação. Dele se parte; e nele se constitui o produto, o cuidado e o aprendizado. No cuidar também há uma interação (uma relação inter-subjetiva) que busca uma internalização de conhecimentos e intervenções mediadas pela palavra e por atitudes. Como na criação de zonas de desenvolvimento proximais (Vygotsky, 1984), o ato interseçor entre profissionais e usuários e entre discente/ usuário/docente, visa a assimilar o que se passa no interior e a sua volta e elaborar soluções adequadas para cada problema novo que aparece. A gestão deste ato cognoscente, feita pelo docente (equipe), objetiva capturar as tecnologias leves, o trabalho vivo em ato, em sua produção, o que implica um auto-governo, a autonomia de cada um desses sujeitos (Merhy, 1997). Assim, o processo ensino-aprendizagem em estágios que busque rever estes modelos, diferencia-se fundamentalmente da educação formal, dita escolarizada, pois a integração ensino/trabalho não se limita ao processo dado institucionalmente, mas se impõe no cotidiano, nas relações entre sujeitos e na comunicação/interação de seus projetos. Como referido por Melo (1989), a educação enquanto processo “se realiza no interior das relações sociais, independentemente da consciência que dele se possa ter” (p.150); não se restringe à transmissão de saberes, mas coloca-se como mediação de projetos contraditórios em construção. Há no mínimo o projeto institucional (do serviço), o projeto educativo (da escola), o do professor e o do próprio aluno, o que traz como questionamento qual seria o projeto a ser compartilhado; sob que prismas ele seria construído. Como analisado por L´Abbate (1997), é o próprio agir que configura a possibilidade desta construção. O agir competente implica ter profissionais e docentes que acreditem e apostem num determinado ideário, ou seja, capacitem-se a saber fazer bem técnica e politicamente e sob a mediação da ética. Um fazer bem que não se confunde com o fazer o bem ou ser bonzinho, mas um fazer responsável, livre e compromissado, que caracteriza o fazer ético4. Neste processo, ao educador, ou ao profissional de saúde não basta saber; é preciso também querer; e não adianta saber e querer, se não se tem a percepção do dever e não se tem poder para acionar os mecanismos de transformação nos rumos da instituição.
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4 L´Abbate, para esta análise, recorre ao trabalho de Terezinha Azeredo Rios, Ética e competência, São Paulo: Cortez, 1993.
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(...) Só posso falar de compromisso, se menciono a adesão, a partir de uma escolha do sujeito, a uma certa maneira de agir, a um certo caminho para a ação. É para que esta adesão seja significativa que devem se conjugar a consciência, o saber, a vontade, que de nada valem sem a explicitação do dever e a presença do poder. (L´Abbate, 1997, p.275)
Tais questões reportam-se à problemática da dominação/submissão nas relações entre profissionais, docentes e alunos (ou entre sujeitos, de forma genérica), em que se incluem fatores psicológicos, culturais, sociais e político-ideológicos. Referindo-se ao fazer pedagógico, Geraldi (1993) coloca a necessidade de se quebrar a linearidade do esquema “quem - ensina - o quê - para quem onde”, que possibilitaria a produção de relações de múltiplas direções e sentidos. Aplicando este esquema ao aprendizado em serviços, no ‘quem’ e no ‘para quem’ se ensina entrariam não só os docentes, como também os funcionários, os demais profissionais, os alunos e as pessoas em cuidado. No ‘o que’ se ensina se incluiriam os conhecimentos técnicos informativos, mas também e, principalmente, as habilidades técnicas, a interdisciplinaridade, o participar, o ser cidadão, o ser sujeito, ou seja, conteúdos técnicos, políticos e éticos. E no ‘onde’, entraria o cotidiano organizado como trabalho, respondendo às necessidades sociais de atendimento a problemas de saúde. Como discutido por Melo (1989), neste agir-pensar coletivo se aplica a questão: ‘Quem educa quem?’ Professores educam alunos, profissionais e usuários; alunos educam usuários; usuários educam alunos; profissionais e equipes educam alunos e as situações educam a todos. Conclui-se que a aproximação do mundo do estudo ao mundo do trabalho pode tornar o ensino problematizador e significativo (Macedo, 1994; Góes, 1991). É significativo aquilo que marca, que se torna internalizado, que permite aproximar o que já se conhecia ao novo, permitindo a mudança. Num serviço de saúde, o tarefismo, o tocar serviço, quando não internalizados, pode não mudar, pois faz-se necessária a visualização de um devir ser de médico, de uma equipe, do ser multiprofissional. A significação tem um caráter individual e coletivo e depende de interesses, experiências anteriores e da própria consciência (Freire,1983). Assim, as mediações são essenciais: a estrutura dos serviços, a equipe, o docente, o grupo de alunos, as situações criadas. Só as vivências não são suficientes, mas também: os momentos de síntese; a correlação de conhecimentos práticos e teóricos; a problematização das situações; o habilitar o aluno para o problematizar (Pino,1991). Um sustentáculo fundamental deste modelo de ensino é o trabalho em equipe. Uma equipe interessada em ‘fazer bem’, com ‘vontade e poder’ realiza uma mediação fundamental no processo ensino-aprendizagem (L´Abbate, 1995; 1997). Outro sustentáculo é o educador, do qual se exige conhecer em profundidade e extensão, ter experiência, vontade e gosto por aquilo que faz, como também saber educar: aproximar-se, ouvir, respeitar, interagir e, principalmente, dialogar (Pimentel, 1993; Gómez, 1992).
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O tornar-se educador é uma construção, um conhecer, conhecer-se, conhecer o outro, rever, realizar, mudar. Para isto não basta o conhecimento livresco, técnico, mas a experiência, a vivência, a interação. Importa a postura do educador como profissional, como membro de uma equipe, como pessoa e como docente. Como os pacientes, que precisam de um therapeutés, os alunos querem uma pessoa que realize o educare, no sentido do cuidar, nutrir. Ao docente cabe atualizar-se, apropriar-se dos conteúdos e práticas que permitam ampliar a resolutividade dos problemas de saúde. Ao aluno cabe, por sua vez, a responsabilização por sua formação, sua capacitação para a busca autônoma de conhecimentos, para o reconhecimento dos limites e possibilidades pessoais. Quanto a situações de aprendizagem, é o serviço em sua realização concreta que pode permitir a demonstração de que o contexto sócioeconômico não é externo ou alheio à Saúde ou à Medicina (um envoltório como aparece nos esquemas), mas é intrínseco, mediador, inferente em todas as práticas (Paim, 1993; Oliveira, 1995). Nesses serviços de saúde apresentam-se as contradições entre as necessidades em saúde (o sofrimento individual, as situações e os condicionantes coletivos) e os limites e possibilidades tecnológicos de resposta e resolução dessas problemáticas. O trabalho aí realizado tem um profundo compromisso no sentido ético com seus objetos (Paim, 1993). É este compromisso que nos remete à lembrança dos limites presentes nas estruturas de ensino e de assistência, a situações e contextos que determinam condições nem sempre favoráveis ao cumprimento das finalidades dos projetos das instituições, mas que, por sua vez, trazem novos desafios a ambos e a necessidade da construção de projetos compartilhados. Lidar e problematizar o cotidiano do trabalho é um ato complexo e exige a revisão constante e interdisciplinar. É um tornar-se, um vir a ser constante, para os serviços, os profissionais, os docentes e os alunos. É a interação no trabalho que possibilita este vir a ser, esta constituição de sujeitos autônomos, sujeitos de seus projetos, de suas ações e de seu pensar, conhecer e fazer. O diálogo é este encontro dos homens mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo (...) o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significado enquanto homens.(...) ele é o encontro onde se solidariza o refletir e o agir (...). Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda. (Paulo Freire, 1983, p. 93) Referências bibliográficas ALVES, R. Sobre o tempo e a eternidade. 3 ed. Campinas: Papirus, 993. BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. CAMPOS, G. W. S. A saúde pública e a defesa da vida. São Paulo: Hucitec, 1991. CAMPOS, G. W. S. Reforma da reforma. São Paulo: Hucitec, 1992a. CAMPOS, G. W. S. Modelos de atenção em saúde pública: um modo mutante de fazer saúde. Saúde em Debate, v.37, p.16-9, 1992b.
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GARCIA, M. A. A. Saber, actuar y educar: la enseñanza-aprendizaje en servicios de salud. Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.89-100, 2001. Este artículo aborda las estrategias de enseñanza-aprendizaje en servicios de salud, especialmente los integrados al sistema de asistencia pública. A partir de una revisión de algunas teorías pedagógicas, se intentó construir un referencial que permita reconsiderar aspectos de la enseñanza puestos en práctica en el trabajo cotidiano. El trabajo realizado en tales servicios es lo que posibilita articular la educación a sus dimensiones sociales, ideológicas y técnicas y, por otro lado, definirlo no sólo por las necesidades de los profesionales sino principalmente como respuesta a la realidad y a las finalidades que orientan la institucionalización del sistema de salud brasileño. La dialéctica entre la práctica educacional y el cuidado en salud ha producido corrientes de pensamiento y de acción innovadoras. De una manera general se puede decir que la educación en servicios resalta el potencial pedagógico del trabajo cotidiano y orienta el aprendizaje como un proceso contínuo y de naturaleza participativa, posibilitando la articulación entre el hacer, el educar, el saber y el porque de no hacer, de no educar y o de no saber. Mientras un proceso pedagógico que integra lo individual, lo grupal, loinstitucional y lo social, como también lo cognitivo y lo afectivo puede orientarse por el compromiso con la transformación de las prácticas, esencial para la efectivación de lo que se intenta como una Reforma Sanitaria en defensa de la vida. PALABRAS CLAVE: aprendizaje; enseñanza; práctica profesional; educacion en salud; servicios de salud. Recebido para publicação em: 17/05/00. Aprovado para publicação em: 12/09/00.
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O indivíduo e o coletivo: alguns desafios da Epidemiologia e da Medicina Social (*)
Edson Perini1 Helena Heloísa Paixão2 Celina Maria Módena3 Roberto do Nascimento Rodrigues4
PERINI, E. et al. , The individual and the collective - challenges in the fields of Epidemiology and Social Medicine. Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.101-18, 2001.
This article reviews certain fundamental Epidemiology concepts, exploring the counterpoints of their main philosophical contradictions. Thus, the conceptual interdependence between the individual and the collective is discussed, as well as the complementary nature of quantitative and qualitative approaches, the natural and social character of human existence and, finally, the collective and individual expressions of risk. Based on this analysis, the author concludes that the concept of risk harbors the potential for a revision of epidemiological practice. Without overstepping the limits that science imposes upon the production of knowledge, this revision is suggested based on the practice of the confluence of quantitative and qualitative research methods, closer to the immediate needs of individuals. As the knowledge of collective reality becomes significant to them, the likelihood of their contributing to the efficiency of Social Medical Care increases. KEY WORDS: Epidemiology; Social Medicine; risk.
Alguns conceitos fundamentais da Epidemiologia são revisados, explorando contrapontos de suas principais contradições filosóficas. Nesse sentido, discute-se a interdependência conceitual entre o indivíduo e o coletivo, a complementaridade das abordagens quantitativas e qualitativas, o caráter natural e social da existência humana e, finalmente, as expressões coletiva e individual do risco. Da análise conclui-se que o conceito de risco traz em si potencial para uma revisão da prática epidemiológica. Sem fugir aos limites que a ciência coloca à produção do conhecimento, essa revisão é proposta a partir da prática da confluência dos métodos quantitativo e qualitativo de investigação, mais próxima das necessidades imediatas dos indivíduos. Suas chances de contribuir para tornar mais eficientes as ações da Medicina Social crescem à medida que o conhecimento da realidade coletiva ganha sentido para eles. PALAVRAS–CHAVE: Epidemiologia; Medicina Social; risco.
* Retirado de: Perini, E.. O abandono do tratamento da tuberculose: transgredindo regras, banalizando conceitos. Belo Horizonte, 1998. Tese (Doutorado). Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais.. 1
Professor do Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. <edson@farmacia.ufmg.br> 2 Professora do Departamento de Odontologia Preventiva e Social, Faculdade de Odontologia, UFMG. 3 Professora do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Social, Escola de Veterinária, UFMG. 4 Professor do Departamento de Demografia, Faculdade de Ciências Econômicas, UFMG. <beto@cedeplar.ufmg.br>
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Introdução O artigo concentra-se no debate entre as contradições fundamentais que vivem a Medicina Social e a Epidemiologia modernas, bem como entre as opções metodológicas para a (sempre provisória) superação das mesmas. A primeira consideração introdutória diz respeito à própria distinção entre Medicina Social, um corpo de conhecimentos e ações, e métodos para adquirir conhecimentos e realizar ações referentes à atenção médica na sociedade, e Epidemiologia, uma ciência aplicada que se desenvolveu como suporte científico desse corpo de conhecimentos, buscando compreender a distribuição e os processos de determinação da saúde e da doença nas coletividades humanas (McKeown & Lowe, 1986). A segunda nos leva ao ‘não-acaso’ histórico do surgimento e desenvolvimento dessas duas ciências em uma mesma época, bem como de suas ligações. Ambas nasceram da necessidade de superar pensamentos e ações individualizadas que marcaram a medicina até o século XVIII. Pensar e agir sobre a doença no âmbito coletivo surgia como necessidade para superar os impasses de uma medicina que não respondia aos desafios impostos às sociedades pelas doenças infecciosas (Silva, 1985; Rosen, 1994). Embora a Medicina Social e a Epidemiologia tenham surgido em uma época de predomínio da teoria dos miasmas, a primeira teve berço revolucionário e uma rica história de contribuições com as Ciências Sociais no século passado, enquanto a segunda, como ciência, se consolidou na passagem do século sob a égide da teoria dos germes, que revolucionou a ciência, mas talvez seja a maior responsável pelo solapamento teórico da primeira. A terceira consideração refere-se ao desenvolvimento, ao escopo e ao objeto da Epidemiologia. Para se firmar (e se afirmar) como ciência da manifestação coletiva das doenças, deixou-se dominar pela “restrição filosófica” positivista, adotando uma visão (mono)causal e naturalista dos processos mórbidos, ainda que travestida em modelos multideterminísticos a alimentar o “sonho do efeito-específico à espera de ser descoberto pelo avanço científico” (Almeida Filho, 1992, p.97), e pela estatística como instrumento de construção empírica. Restringiu nossa capacidade de compreensão às manifestações do objeto, relegando os determinantes da ocorrência e distribuição das doenças a um plano talvez inacessível por essa restrição metodológica (Silva, 1985). Desenvolveu-se uma ciência filosoficamente pobre (Silva, 1985), baseada na separação sujeito x objeto, expressando-se na “objetividade” da observação fragmentada da realidade, e estruturada com base em dados quantitativos, uma das característica fundamentais da racionalidade científica moderna (Figueiredo, 1994). Os valores ‘humanos’, culturais e sensitivos, “subjetivos” para ela, tornaram-se objetos impróprios ao conhecimento científico, ou não afeitos ao seu âmbito. Formou-se como ciência da distribuição e dos determinantes dos processos ligados à saúde no plano coletivo, mas, na busca de objetividade, afastou aspectos fundamentais da existência social e cultural humana e, por conseguinte, da saúde do homem. Construiu uma noção estatística do coletivo (Breilh, 1994), mera agregação de indivíduos, “...uma realidade em si” na qual “a interação e a associação de indivíduos dão lugar
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“Multidisciplinar Pesquisadores trabalham em paralelo ou seqüencialmente a partir de bases disciplinares específicas para tratar problema comum. Interdisciplinar Pesquisadores trabalham juntos mas mantém suas bases disciplinares específicas para tratar problema comum. Transdisciplinar Pesquisadores trabalham juntos compartilhando estruturas conceituais e construindo juntos teorias, conceitos e abordagens para tratar problema comum” (Rosenfield, 1992).
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a fenômenos emergentes análogos aos fatos naturais” (Barreto & Alves, 1994). Desenvolveu seu arsenal metodológico dominada por essa noção de coletivo, fundamentada também em abordagens positivas do tempo e do espaço, e na construção probabilística do risco (Almeida Filho, 1989; 1990; 1992; Minayo, 1993). A quarta e última consideração é o reconhecimento de que a investigação quantitativa, no processo de hegemonia da “produção de dados de inteligência para subsidiar políticas públicas em todo o Ocidente, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial” (Minayo, 1994), alicerçou esse desenvolvimento de forma sólida e competente. Impulsionou-a como suporte nas áreas dos planejamentos e das avaliações das ações sanitárias, da detecção de necessidades e utilização dos serviços e tecnologias e, obviamente, nas investigações sobre os processos de determinação causal da saúde e da doença, sua obra por excelência. Transformou-a, enfim, em uma ciência com um vasto campo de investigação, porém de uma pobreza teórica quase franciscana na abordagem de seu objeto, diminuindo sua contribuição para a Medicina Social (Almeida Filho, 1992). Isso tem levado a um empobrecimento da Medicina Social, muitas vezes confundida com a própria Epidemiologia. O suporte que oferece à Medicina Social consolidou-se nos limites do conhecimento sobre a natureza biológica da saúde/doença e nos aspectos “estruturais” da realidade social em que ocorrem, entendidos estes como aspectos mensuráveis da existência coletiva do homem (estruturas de classe, educação formal etc.). Ainda que ao longo de sua história os epidemiólogos reconheçam a dimensão simbólica da existência humana, a Epidemiologia foise tornando metodologicamente incapaz de expor tal realidade enquanto objeto de conhecimento. Hoje esta situação tem limitado a possibilidade da atuação multi, inter ou transdisciplinar5 , ampliando sua abordagem no campo da pesquisa e sua colaboração na formulação de políticas e modelos teóricos mais próximos da realidade sócio-cultural das populações e, portanto, com maiores chances de provocarem mudanças reais na condição humana (Rosenfield, 1992; Nichter & Vuckovic, 1994; Davis & HowdenChapman, 1996). Essas primeiras considerações têm em vista: explicitar a pretensão deste trabalho como nosso esforço para entender um pouco o que une o indivíduo e o coletivo, talvez o maior de todos os desafios da Epidemiologia; e deixar estabelecida nossa premissa de que a dimensão cultural/simbólica, característica singular do homem, permanece inacessível ao conhecimento epidemiológico em seus ‘procedimentos tradicionais’ de investigação. A argumentação que se segue é a vontade de contribuir para que, cada vez mais, o reconhecimento dessa inacessibilidade se transmute na admissão de que sua apreensão é fundamental para a produção de conhecimentos que servem aos mesmos propósitos, seja da Epidemiologia ou da Medicina Social. E que, por ser parte da realidade que a Epidemiologia busca como objeto, pode e deve fazer parte do conhecimento por ela produzido.
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O coletivo e o individual O coletivo é uma das construções fundamentais da Epidemiologia; perpassa todos os seus conceitos elementares. Para Barreto & Alves (1994) “parece não haver dúvida da existência de uma dimensão coletiva nos seus conceitos básicos, tais como: risco, ambiente e, principalmente, população” (p.129). Porém, ao buscar nas ciências sociais o embasamento teórico e metodológico, a Epidemiologia tem-se restringido às explicações ‘morfológicas’ do social”, mantendo-se incapaz de perceber “a existência de indivíduos concretos que vivenciam, de forma um tanto quanto particular, situações sociais que lhes são dadas e que interpretam e fornecem significados, tanto aos seus próprios comportamentos, quanto aos dos outros. (p.131)
É compreensível que na busca de “verdades universais” e dominada pelo “princípio escolástico Scientia non est individuorum”, a “carência de uniformidade e ordem” no plano individual colocasse em xeque sua necessidade de legitimação. A Epidemiologia é produto da Modernidade, uma herança da ciência que se desenvolveu no Século XVII visando conquistar e controlar a natureza, desenvolvendo-se segundo um modelo mecanicista cujo objetivo de controle racional do Universo (Stambolovic, 1996). Na busca do coletivo, o indivíduo parece um herege. Assim permanecendo, não conseguirá abordar a dimensão humana que ilustramos com as palavras (autênticas, ainda que jocosas) de um marinheiro bretão: “Desde que eu aprendi pelos jornais que o tabaco matava, eu tomei uma decisão: não leio mais os jornais” (Bensaïd, 1981, p.194). É preciso assumir que em toda ordem estabelecida existem “elementos de subversão”, e que a heresia pode oferecer esperança (Stambolovic, 1996). Este autor nos leva a pensar que, talvez, o caminho para superar nossos impasses filosóficos e metodológicos nos esteja sendo mostrado pela chamada medicina alternativa e a busca de um entendimento holístico do homem, indivíduo e coletividade na conformação de [um] novo modelo psico-social. A “carência de uniformidade e ordem” não pode ser obstáculo ao conhecimento científico, afinal, não condena os indivíduos à inexistência. Se essa é uma característica própria das unidades, e se estas são as bases formadoras do todo, assim devem ser observadas e analisadas. Essa é a característica que as une em semelhanças e organizações, esse é o seu padrão. O grande desafio parece ser este. Encontrar caminhos para a produção de conhecimentos que nos permitam compreender de forma menos ‘reduzida’ a realidade coletiva dos processos da saúde e da doença. Esta busca não pode se restringir aos limites tradicionais dos estudos: procedimentos metodológicos não são mais que posturas historicamente construídas para se atingir objetivos (leia-se, respostas a problemas científicos) que agora se quer ampliados (ou modificados, apenas?). Porém, ampliados ou modificados, ainda se colocam dentro dos limites dessa ciência, dados pela
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expressão coletiva dos processos. Em outras palavras, tendo o cuidado de não banalizar seus conceitos, não há razões para que a busca de novos patamares (ou novas formas, apenas?) do conhecimento epidemiológico não se faça pela transgressão de seus padrões metodológicos. Nunca é demais lembrar que “a Epidemiologia tem limites muito específicos e, além deles, será difícil reconhecê-la como tal” (Almeida Filho, 1992, p.60), definidos pela expressão coletiva dos processos da saúde/ doença dos homens. Esse autor admite que a Epidemiologia pode “dar conta da lacuna que existe entre o individual e o coletivo”. Entretanto, para ele, isso deve acontecer sem se referir “ao coletivo simbolizado com que tipicamente estamos acostumados nas abordagens sociais da saúde, nem ... com a mera expressão individual, característica da clínica vulgar” (p.60). Esta segunda ‘linha limítrofe’ é de fácil compreensão. A expressão individual, de interesse da ‘clínica vulgar’, é característica e distinta do interesse da Epidemiologia. Porém, não é simples visualizar caminhos para uma abordagem mais ‘dinâmica e globalizante’ da expressão coletiva desvinculada de sua existência simbólica. Confunde ainda a expressão do autor de que é necessário abrir a ciência epidemiológica para uma consideração dos aspectos simbólicos (tais como valor, relevância e significados) dos determinantes de risco tanto quanto a sua significância estatística e sua significância epidemiológica. (Almeida Filho, 1992, p.110)
Não se referir a esse ‘coletivo simbolizado’ é, para nós, condenar-se à naturalização e à falta de unidade na apreensão do indivíduo e do coletivo. É permanecer na orientação reducionista que, ao longo dos anos, vem enfatizando a coleta de informações quantitativas em termos do indivíduo e organizadas dentro de parâmetros científicos hermeticamente definidos, com implicações negativas na transposição dos conhecimentos produzidos pelas pesquisas em políticas de saúde. Essa postura tem limitado as aplicações a problemas de pequena escala e que evitam as principais questões das transformações estrutural e do sistema (Davis & HowdenChapman, 1996). É preciso beber em outras fontes para verificar que as relações sociais de produção da saúde integralizam as relações sociais mais gerais de produção e construção do self (Nichter & Vuckovic, 1994). Nessas relações encontraremos material para uma transgressão não banalizadora dos padrões de construção do conhecimento epidemiológico, que se traduz por fugir aos processos metodológicos e às estruturas tradicionais desse conhecimento, mas mantendo-se no interior do compromisso laboriosamente desenvolvido de desvendar a existência de padrões coletivos no processo da saúde e da doença. A Epidemiologia tradicional, como toda a medicina científica moderna, desenvolveu-se nos limites do modelo biologicista da prática clínica e, em função dele, grande parte de sua produção tem desempenhado seu papel de ciência voltada para a ação. Uma das razões pelas quais não tem
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ultrapassado esses limites é sua dificuldade de apreender o indivíduo, para o qual refluirá o conhecimento por ela produzido. Em outras palavras, ainda que seu conhecimento seja referente à dimensão coletiva da saúde e da doença, os conceitos produzidos não podem perder o referencial do nível no qual se concretizarão as ações, o indivíduo. Toda a base filosófica e, conseqüentemente, metodológica da Epidemiologia não tem considerado que, ao deixar de considerar o indivíduo, deixa de existir o coletivo simbolizado, única fonte de identidade entre ambos. Isso não tem sido suficientemente questionado como um caminho para apreender a dinâmica do complexo processo de interações macro e micro-ambientais que caracterizam a vida dos indivíduos e grupos (Lilja & Larsson, 1994). Em última instância, esse complexo processo é a própria realidade de seu objeto, é o ambiente onde existe o indivíduo e onde se concretizarão os processos mórbidos e as ações promovidas pelos conhecimentos produzidos por ela (e por todas as outras atividades humanas). É, portanto, o local privilegiado para exercer seu potencial transformador. Segundo Almeida Filho (1992, p.75), “a Epidemiologia trabalha com populações ou amostras, condenada à ambição da ‘lei dos grandes números’”. Resta-nos compreender o coletivo enquanto unidade/diversidade cultural e o indivíduo como unidade/diversidade cultural e biológica. Uma percepção que traz perspectiva de intervenções específicas, mas que guarda dimensões não alcançadas pelos grandes números (ainda que estes nos levem a parcelas importantes de seu conhecimento). Posturas semelhantes não significam, necessariamente, fugir do campo da Epidemiologia, embora o grande desafio seja mantê-lo teoricamente e não fugir dele na prática da pesquisa. Superar esse desafio parece ser o papel dos trabalhos trans- ou interdisciplinares. Barreto & Alves (1994) trazem duas contradições da Epidemiologia importantes para nossas reflexões. A primeira, explícita no texto enquanto tal, nos diz que, embora se trate de uma ciência do coletivo, suas práticas médicosanitárias estão direcionadas a indivíduos, contudo tal direcionamento em nenhum momento pode ser interpretado como a síntese entre indivíduo e coletividade. Esta história vem revelando “limitações e incongruências, tanto nos modelos de intervenção, quanto no próprio fundamento teórico da ciência” (p.130). A segunda, não explícita enquanto contradição no texto, nos diz que “a tentativa de dar conta do coletivo ... tem sido ... problemática. Na literatura epidemiológica, o coletivo é sempre referido, mas usualmente esvaziado de qualquer força explicativa” (p.134). Esta última reflexão não pode deixar de ser pensada como a mais fundamental de todas as suas contradições. O conceito primitivo da ciência perde seu poder explicativo diante de suas posturas filosóficas e metodológicas. As razões de tais paradoxos podem ser muitas, mas certamente incluem a incapacidade de apreender o coletivo e o indivíduo como uma construção mútua. A produção de conhecimentos no plano coletivo que não inclui sua dimensão individual gera problemas na transposição e na orientação de políticas e atitudes. Não faz parte das pretensões deste trabalho assumir uma posição de intermediação conceitual entre os processos naturais e sociais, uma armadilha
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difícil de se evitar, e que adiante discutiremos. Algo que Almeida Filho (1992, p.54) classifica como “uma expressão pedante, de sentido obscuro, que entretanto tornou-se moda no discurso sanitarista das últimas duas décadas”. Segundo ele A Epidemiologia suporta o desafio de integrar o individual e o coletivo, mas isso não inclui a pretensão de dar conta da ‘interface entre o biológico e social’. Isto porque na verdade não se pode recortar os objetos. Um fato biológico em seres humanos é em si social e historicamente determinado. Um projeto científico mais conseqüente não deverá buscar o isolamento e sim a totalização. Isso pode se dar com o recurso à Epidemiologia mas não obrigatoriamente com o método epidemiológico. (p.54)
Como essa totalização necessária para um projeto “mais conseqüente” está além de nossa ciência contemporânea, resta-nos buscar, nos indivíduos, expressões coletivas não mensuráveis de sua existência, acreditando, pura e simplesmente, ser possível, e necessário, uma Epidemiologia capaz de produzir um conhecimento coletivo que não ignore o indivíduo e possa para ele ser transportado. Quantitativo e qualitativo Se hoje falamos de um objeto próprio da Epidemiologia, a doença enquanto manifestação coletiva (Silva, 1985), observada em uma perspectiva “de natureza probabilística” (Almeida Filho, 1990, p.209), e aceitamos as considerações anteriores, reconheceremos sem dificuldade que modelos “menos fragmentados” de representação da realidade são necessários para uma aproximação maior com esse “objeto”. Isso porque é necessário tornar o imponderável objeto da Epidemiologia, escapando ao senso comum e embasando esse conhecimento em um sólido corpo teórico, utilizando-o não como uma alternativa ideológica às abordagens quantitativas, mas a aprofundar o caráter social e as dificuldades de construção do conhecimento que o apreende de forma parcial e inacabada. (Minayo, 1993, p12)
Cabe aqui um retorno a Almeida Filho (1992, p.100), partidário da idéia de que contrariamente ao que se encontra semi-explícito nos manuais da área ... não se trata de um objeto probabilístico porque a essência do objeto epidemiológico é na verdade o que sobra da probabilidade, aquilo que os modelos probabilísticos não são capazes de dar conta.
Uma reflexão interessante sobre a existência do epidemiólogo decorre disso: fosse a determinação epidemiológica confundida com a
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probabilística, a Epidemiologia perderia sua razão de existir e os estatísticos seriam os senhores absolutos das explicações. Nesse “resto” da probabilidade encontramos material para a Epidemiologia, quantificável em sua experiência concreta, mas imponderável em sua essência6 , e nem por isso arredio ao conhecimento científico. Um caminho para a construção desse conhecimento é a apreensão dos significados (Minayo, 1993), caminho para a interação entre a Epidemiologia “tradicional” e a pesquisa qualitativa, buscando perceber a saúde/doença por novos prismas, e melhor servindo aos interesses da Medicina Social. Significa, sem trocadilho, melhor servir a um projeto de maior qualidade de vida, facilitando e ampliando a compreensão da saúde/doença e as ações (e reações) dirigidas por esse conhecimento. Há uma bem discutida complementaridade (Minayo, 1994) entre as abordagens quantitativa e qualitativa do objeto da Epidemiologia, postura teórico-metodológica que pode trazer profundas implicações para a Medicina Social (Gonçalves, 1986). Assistimos à influência positivista nos levar a um conhecimento científico e a uma prática em que o processo saúde/doença é percebido enquanto fenômeno biológico, com profundidade e em uma perspectiva mecanicista (Silva, 1985; Queiróz, 1986; Figueiredo, 1994). Nessa história, a dimensão social se constitui como um conjunto de variáveis que qualificam e classificam esse fenômeno, participando da análise causal nunca além dos aspectos estruturais, “morfológicos” (Minayo, 1994, citando Gurvitch), da existência social do homem. Uma “região mais visível dos fenômenos” sociais que ...Gurvitch denomina ‘morfológica, ecológica, concreta’ e explica que tal dimensão admite adequada expressão através de equações, médias, gráficos e procedimentos estatísticos. A partir daí, adverte Gurvitch, torna-se difícil trabalhar com dados numéricos, uma vez que se encaminha para um universo de significados, motivos, aspirações, atitudes, crenças e valores. Esse conjunto de dados ‘qualitativos’ necessita de um referencial de coleta e de interpretação de outra natureza. Mas, chama atenção o autor, essas camadas são interdependentes, interagem e não podem ser pensadas de forma dicotômica. (Minayo, 1994, p.27)
A essa complementaridade se refere Almeida Filho (1992, p.58): ... acredito que há várias, e criativas, formas de integração das técnicas qualitativas na investigação epidemiológica, dentre as quais destaco: a) abordagens mais aprofundadas podem fornecer elementos para validação de instrumentos de pesquisa; b) técnicas qualitativas podem tornar-se fontes de hipóteses e modelos teóricos; c) abordagens qualitativas podem ajudar a compor desenhos mistos de investigação epidemiológica, tais que superem o distanciamento do real inerente aos desenhos mais estruturados; d) abordagens desse tipo podem finalmente auxiliar na interpretação de resultados epidemiológicos, como por exemplo ilustrando associações mais complexas através de histórias de caso.
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Assume-se aqui que o adoecer humano é, em sua essência, imponderável, porque simbólico, porém quantificável em sua existência concreta, em suas manifestações clínica e coletiva.
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O grifo que assumimos chama atenção para a existência sugerida de outras formas de integração metodológica. No entanto, esta não é a principal questão, mas a real potencialidade de a abordagem qualitativa produzir “conhecimento epidemiológico”, válido e reconhecido como tal, ainda que não validado por uma significação estatística dos resultados (Gonçalves, 1986). Reflexo da histórica “luta do homem contra a natureza”, a percepção dos indivíduos e grupos sociais, sobre sua saúde ou suas doenças tem sido alijada do saber médico como algo a ser vencido, num processo de afirmação etnocêntrica do sistema médico: fora do conhecimento oficial, o que existe é erro e ignorância (Minayo, 1994). A conseqüência foi a valorização excessiva da tecnologia médica como solução potencial para todos os males e do papel dos profissionais de saúde como agentes da ação (Minayo, 1993; Perini, 1997). Essa história do conhecimento médico foi construída no interior da dimensão cultural/simbólica do homem, o que inclui sua saúde e suas doenças, embora busque negá-la em um modelo idealizado de causa única necessária e suficiente. Construir um conhecimento englobando esta dimensão, baseado na busca dos significados pela pesquisa qualitativa, poderá ter para a Epidemiologia duas implicações fundamentais: maior e melhor compreensão de seu objeto - doentes em população - ao transcender sua dimensão probabilística e a separação objeto x observador como condições de objetividade, trazendo à tona a dimensão cultural como condição de existência de ambos, e relativização de seus conceitos fundamentais - o tempo, o espaço, o coletivo e o risco - a partir da percepção do indivíduo, locus único onde se realiza a “tríplice abordagem” do fato social, onde se faz “coincidir a dimensão propriamente sociológica com seus múltiplos aspectos sincrônicos; a dimensão histórica, ou diacrônica; e, finalmente, a dimensão fisio-patológica” (Lévi-Strauss, 1974, p.14, grifos nossos). Embora a estrada seja longa, “há flores no caminho”! Parece-nos apenas necessário uma ciência do homem que, sem medir o homem, entenda um homem consciente de sua própria existência e que nada precisa medir em si para saber que A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu... a saudade dói como um barco, que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais. (Holanda, 1978)
Natural e social Essa maior aproximação com o objeto e a relativização de conceitos poderão, por sua vez, ter conseqüências teóricas e práticas importantes. Podem nos ajudar a superar os limites impostos à Epidemiologia pela Tríade Ecológica e sua extensão, a História Natural das Doenças (Leavell & Clark, 1978). Embora inegáveis, os avanços na reformulação da noção de causalidade ou na própria formação dos conceitos de risco e fatores de risco que hoje fundamentam a Epidemiologia dificultam uma abordagem menos
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fragmentária e compartimentalizada do processo saúde-doença. São modelos reducionistas7 , desenvolvidos para a (e desenvolventes da) linguagem das variáveis e de suas articulações internas em processos quantificáveis. Neles, a sociedade existe como um somatório amorfo de indivíduos; estes são pensados fora do coletivo que constróem, representando apenas e sempre “o susceptível”, aquele que é exposto ou não, aquele que adoece ou não, e nunca aquele que pensa e tem seu próprio significado para sua situação de susceptível no lugar que constrói; o lugar (o espaço) permanece como um conjunto de limites ahistóricos, não assumindo seu real valor explicativo de ambiente onde ocorrem os processos naturais e sociais da relação homem x agente; o “agente” mantém-se como uma entidade cuja relação com o homem se limita aos seus aspectos naturais - físicos, químicos e biológicos; e o tempo se faz representar tão somente pela noção cronológica do observador8 . As conseqüências desses modelos na prática epidemiológica e na organização institucional do setor saúde, e suas aliadas indústrias, são bem conhecidas (Quadra, 1983; Lexchin, 1988). No entanto, interessa-nos, no momento, a prática da pesquisa epidemiológica, em relação à qual devemos considerar: Em princípio, o determinante epidemiológico por definição pode ser tomado como parte do objeto das ciências sociais, ao nível das relações sociais. Fatores de exposição ou determinantes de risco, por mais forte que seja sua vinculação biológica, são sempre
“Expor a ideologia reducionista tornou-se muito complicado, porque a maneira reducionista de pensar passou a ser tão dominante nos anos recentes, que se transformou no que se pode descrever como a ideologia da própria ciência... A oposição ao reducionismo provém, primariamente, do materialismo dialético, que argumenta que, embora os fatos de cada nível hierárquico representado pelas diferentes ciências devam corresponder a fatos em níveis inferiores ou superiores, eles não podem ser reduzidos, pela aplicação de leis ou relações causais, aos níveis inferiores: a Biologia não pode ser invocada para explicar a Sociologia, ao contrário, há uma interação dialética entre elas”(Rose & Rose, citados por Quadra, 1983).
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considerados tendo como referência a formação do delimitador do objeto epidemiológico, populações, coletivos humanos, grupos submetidos a relações interpessoais, exercendo ‘modos de vida’ (ou sofrendo ‘condições de vida’), determinados pelas relações sociais de produção. Na pesquisa epidemiológica, idade será sempre mais do que número de anos vividos, sexo mais que definição genital, dieta mais que ingesta alimentar, herança mais que genética, exposição mais que efeitos químicos, lugar mais que geografia e tempo sempre mais que história individual. Trata-se de uma outra forma de considerar o inescapável caráter social da ciência epidemiológica. (Almeida Filho, 1992, p.56-7)
Ainda que tais parâmetros sejam matematizados na pesquisa epidemiológica, e analisados em uma perspectiva reducionista, permanecem implícitas essas suas dimensões, dado que as relações de determinação epidemiológica expandem-se do nível das probabilidades para a determinação social dos processos. Neste nível, a Epidemiologia encontrará a “intenção” e os “sentidos”, os quais, mesmo quando quantificáveis em suas manifestações, permanecem imponderáveis em suas essências. Vimos que a Epidemiologia tem por objeto as manifestações coletivas dos processos da saúde e da doença nos homens, em uma perspectiva “de natureza probabilística” (Almeida Filho, 1990), ainda que, como admite esse autor, o nível das determinações que compõem o objeto da Epidemiologia possa “ser tomado como parte do objeto das Ciências Sociais”, referindo-se à
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Sugerimos a leitura de Quadra (1983), como uma análise mais profunda sobre o modelo da História Natural da Doença, de Silva (1985), como exemplo de abordagem de uma doença dentro de uma perspectiva de transcendência da naturalização dos processos e, de Almeida Filho (1992) e Barreto & Alves (1994), como abordagens críticas das limitações da Epidemiologia contemporânea para lidar com seu objeto de forma mais abrangente, leia-se, menos naturalizada ou, reduzida. Há também alguns trabalhos que procuram desenvolver o conceito de tempo além do usualmente utilizado na prática da pesquisa empírica (Pinto, 1973, Elias, 1994, Sevalho, 1996 e 1997)
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‘sobra da probabilidade’, aquela parcela das relações não passíveis de atribuição às regras do acaso. Vimos, também, que seu desenvolvimento se fez com a hegemonia de uma prática reducionista de investigação e de influências sobre as ações médicas e organizações institucionais, embora hoje a palavra positivismo tenha assumido uma conotação injuriosa para a maioria dos epidemiologistas (Almeida Filho, 1992). Mesmo permanecendo dúvidas a esclarecer, falamos da Epidemiologia como uma ciência que traz a perspectiva de abordagens que dêem conta da lacuna entre o individual e o coletivo (Almeida Filho, 1992), ainda que esse autor não “autorize” uma abordagem do “coletivo simbolizado”, restrição que classificamos como uma condenação à permanência do atrelamento da prática epidemiológica ao reducionismo naturalista que a tem caracterizado. Por fim, discutimos um pouco as potenciais formas de colaboração na busca do “qualitativo” para o conhecimento epidemiológico, ou mesmo de sua potencial capacidade de produção de conhecimento. Antes de passarmos para uma discussão do risco, paradigma central da Epidemiologia (Almeida Filho, 1992; Barreto & Alves, 1994), que implícita ou explicitamente governa todo o discurso, fecharemos as discussões que vêm se arrastando reafirmando convicções sobre os princípios fundamentais da explicação epidemiológica. Se dividirmos os processos de determinação da saúde/doença dos homens em dois níveis, natural e social, encontraremos respostas para nossas perguntas epidemiológicas na coexistência necessária de ambos, em um processo mútuo de determinações. No “mundo natural”, que precede na história o social e onde são concretizados os processos, encontraremos a determinação probabilística, aquela regida pelo acaso e que governa nossa atual percepção epidemiológica de risco (uma percepção, portanto, naturalizada do fenômeno, e que não deixa de ser real por isso, razão pela qual não vemos nisso uma conotação pejorativa para a prática científica positivista). No “mundo social” encontraremos, por sua vez, a “intencionalidade”, o que nos deixa dúvidas sobre o espaço para um raciocínio probabilístico neste nível de explicações. Isso significa outra dimensão dos processos, os quais necessitam de outras formas de investigação e expressão. Onde reina a intenção, o jogo de probabilidades é submetido e perde poder explicativo (razão pela qual entendemos o caráter pejorativo da prática científica positivista como suporte único de orientação para nossas ações). Assim colocado, cremos que o objeto da Epidemiologia não se refere apenas ao que sobra da probabilidade, mas, incluindo esse universo (probabilístico, natural ou mesmo naturalizado) de determinação, transcende-o na busca de compreensão das leis da ordem social dos processos, dado que não há como, no mundo real, imaginá-los separados. A questão não é pois, mediá-los, mas compreendê-los cada um em suas potencialidades, cada um como parte do outro. Em nossa prática científica, ao reduzirmos o social a variáveis isoladas, como partes componentes de um modelo fragmentado da realidade, retiramos a possibilidade de compreender o risco para além de sua dimensão natural ou naturalizada - modelos assim construídos dirigem nossa percepção para uma dimensão probabilística. Ora, se o homem contém em si essas duas dimensões,
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o risco probabilístico tende a ser interpretado por ele como uma realidade governada por sua existência natural, não simbólica, coletiva mas natural (ou naturalizada em sua interpretação). Nessa dimensão, talvez encontraremos nossas explicações para os comportamentos do homem nos “instintos”, dado que a percepção individual do risco é inerente a todo e qualquer ser vivo, ainda que, no caso dos homens, informada, e assim transformada em níveis bastante distintos. No nível social, não há como compreender uma dimensão não simbolizada do risco, carregado de interpretações, significados singulares (individuais) de sua existência e experiência probabilística. Essa existência simbólica singular expressa-se coletivamente na formação cultural do meio em que se insere, e que transforma os instintos, fornecendo material para compreender não o comportamento do homem, mas a atitude humana. Não apenas a doença do homem, mas a doença humana! O objeto da Epidemiologia inclui não só a doença do homem, mas também a doença humana, ambas em suas expressões coletivas, naturalizadas ou simbolizadas. Mas, nossa pretensão não se refere a uma intermediação entre o natural e o social. Busca um entendimento dos processos de saúde/doença que considere ambos os níveis de determinação, ou que admita a validade das regras advindas do conhecimento produzido pelas determinações do nível natural, ou mesmo do nível social, porém em uma perspectiva estrutural, e dê conta de explicar suas implicações/relações com a existência simbólica do homem. Em outras palavras, a questão não é a existência ou não de uma intermediação conceitual, mas a consciência de diferentes níveis de explicação dos fenômenos, porque simplesmente eles assim se compõem, e nem um, nem outro, domina a verdade maior ou absoluta. Apenas alcançam diferentes níveis por meio de estruturas conceituais e metodológicas diferentes e específicas. Enfim, trata-se de buscar, na ciência, reconhecer que: Belezas, dores e alegrias passam sem um som Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron E a seu olhar tudo o que é cor muda de tom. (Veloso, 1984)
Risco coletivo e risco individual A noção de risco, ao lado da (e conexa à) noção de coletivo é uma das grandes contribuições da Epidemiologia para as ciências da saúde (Almeida Filho, 1990; Barreto & Alves, 1994). Expressa-se como elemento fundamental da noção contemporânea de causa dos processos saúde/doença e do discernimento entre causas necessárias e suficientes, estas últimas entendidas como condições associadas à existência das primeiras, as quais se confundem com a própria noção de agentes específicos. Na noção de causas suficientes encontraremos os aspectos estruturais (“morfológicos”) da organização social. O conceito probabilístico de risco permitiu o progresso de investigações baseadas na exposição/não-exposição a fatores possivelmente associados a eventos ligados à saúde/doença. O
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estabelecimento da associação causal passa então a ser função de maior probabilidade de acontecimento desses “eventos” quando associados a “fatores”, considerados então como “fatores de risco”. Esta é, em suma, a idéia epidemiológica de risco, matematicamente expressa como o número de acontecimentos em relação ao total de acontecimentos possíveis (incidência, mortalidade). Permite medir a probabilidade de “doenças” ou “mortes” em uma coletividade, em função da experiência passada e guardadas as mesmas condições. Resume a perspectiva epidemiológica moderna da dinâmica do processo saúde/doença, permitindo acompanhar os fenômenos de forma representativa em termos estatísticos, e estabelecer parâmetros para as inferências e atividades racionalizadoras do diagnóstico de necessidades, de planejamentos e avaliações em Medicina Social (Waters, 1979). Almeida Filho (1992) questiona, responde, e adverte: E onde se situa o risco no discurso epidemiológico? Para além e para fora do sujeito, localizado numa origem ficcional, o risco está situado no âmbito da população, produzido nos (ou atribuídos aos) coletivos humanos. Risco é enfim uma propriedade das populações e a sua referência legítima será exclusivamente coletiva (...) risco em Epidemiologia equivale a efeito, probabilidade de ocorrência de patologia em uma dada população, expresso pelo indicador paradigmático de incidência. (p.133-35) Um parâmetro de risco pode ser legitimamente aplicado a um grupo populacional, num processo de generalização de amostra para população, com um grau mensurável de certeza. No campo clínico, a sua aplicação com uma função digamos preditiva, diagnóstica ou prognóstica, enfrenta problemas lógicos ... Será possível somente se tratarmos o paciente como um elemento de um dado conjunto e não como um indivíduo. Mas se assim procedermos, isso representará uma inevitável ruptura com o paradigma da Clínica. Trata-se em minha opinião de uma importante advertência, dirigida contra qualquer proposta de adoção de determinantes com efeitos individualizados, a qualquer nível de singularidade. (p.59)
Nessa mesma obra, o autor argumenta que “na medida em que o objeto da Epidemiologia [coletivo] não tem qualquer parentesco formal com o objeto da Clínica [individual]”, não é válido, e constitui-se uma “séria distorção” (p.139), referir-se a um risco individual cujo sentido é, claramente, uma redução da construção teórica (e mesmo empírica) do risco epidemiológico. Reflexões de Barreto & Alves (1994) nos dizem que o desenvolvimento da Epidemiologia por meio de métodos quantitativos teve como conseqüência a limitação da “condição de risco a uma ordem de natureza métrica”, reduzindo seu significado “aos fenômenos que podem ser mensurados”, tornando “difícil, nessa estratégia, trabalhar com o universo de significados, motivos, aspirações, atitudes, valores e crenças que
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constituem aspectos essenciais da coletividade humana” (p.133). Essa construção não nos permite alcançar uma (real?) dimensão individual do risco e podemos pensar nas dificuldades que nos traz para apreender os significados como “aspectos essenciais da coletividade humana”. Porém, como o próprio Almeida Filho (1992, p.125) admite, não podemos pensar em uma apropriação exclusiva do “sentido epidemiológico do termo”. A percepção cultural/simbólica do significado que assume para os indivíduos, o que, em última instância, governa as relações individuais para com os então definidos “fatores ou comportamentos de risco”, tem estado alijada do objeto da Epidemiologia. Sobre esta relativização dos conceitos fundamentais da Epidemiologia nos referimos anteriormente. Não há como retornar para o nível individual a construção teórica do risco. Sua utilidade coletiva é inquestionável, porém sua transposição para o universo individual tem gerado distorções e incompreensões no perceber/proceder das pessoas (Bensaïd, 1983), “doutas” ou “comuns”. No intrincado processo em que reside a saúde e a doença, o “social”, interpretado como um mero conjunto de variáveis independentes, constitutivas de um (parcial) processo unidirecional de determinação (i.e., o social “determina” a doença), tem se transformado em um conceito vazio de significado para o indivíduo, local concreto do processo. Ele, o social, não se apresenta como algo definidor das e definido pelas inter-relações nas condições de existência de cada um dos elementos do modelo - hospedeiro, agente e meio ambiente; é apenas mais um conjunto de variáveis, vazio de “qualquer força explicativa”, como nos foi dito por Barreto & Alves (1994, p.134). Parece resumir-se nisso o porquê de uma dimensão única (a probabilística) para o conceito de risco: o modelo se reduz a um conjunto de conceitos naturalizados, cujas determinações se apresentam probabilísticas e podem ser pensadas, e medidas, enquanto associações estatísticas. Verdadeiras, porém não únicas. Como procuramos esclarecer anteriormente, em parcial discordância com Almeida Filho (1992) e tendendo para as idéias de Breilh (1988), esst dimensão faz, também, parte do objeto da Epidemiologia. Porém, no universo de determinações não probabilísticas que constitui esse objeto, encontraremos a dimensão simbólica, essência da existência humana, na qual reside a intenção e a probabilidade perde seu poder de explicação; um material sobre o qual pode-se construir um conhecimento que suporta a transposição dos significados entre os níveis coletivo e individual. É preciso, pois, estabelecer e especificar a existência de duas coisas distintas e até então isoladas em dimensões diferentes do conhecimento. Risco “probabilidade” é produto histórico do conhecimento epidemiológico, fruto da dimensão natural, ou naturalizada, do processo saúde/doença, e a tradução desta probabilidade no plano individual é uma falácia, ainda que pensemos apenas num “ser” natural, e não num “ser” simbólico. No entanto, há outra dimensão do risco a ser buscada pela ciência: diz respeito a fenômenos não mensuráveis, que nos indivíduos se manifestam como opções diante das conjunções que a vida (natureza e sociedade) lhes coloca diante, e que trazem à tona um universo de significados, motivos, aspirações,
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atitudes, valores e crenças (Barreto & Alves, 1994), expressão maior dessa realidade que constitui a essência da existência coletiva humana. Em termos dos indivíduos, atores e autores da vida, correr o risco é a concretização de uma opção - risco é opção. Um ato de vontade (Gonçalves, 1986), característica de um ser “intencional” (Minayo, 1993), regido pelos diferentes “significados” que o tempo, o espaço e as relações intra e inter-pessoais adquirem para ele e para os grupos sociais aos quais pertence. Esse homemopção humaniza (altera) a natureza e altera-se a si mesmo (processo de mútua transformação permanente); desenvolve o raciocínio, tem ação intencional e planejada; produz artefatos, instrumentos, conhecimentos (senso comum, científico, filosófico, artístico, teológico). (Ruffino Netto, 1994, p.13)
Sua capacidade de opção reside no conhecimento que produz, na regra que estabelece a partir desse conhecimento, assim como na transgressão a essa regra. Uma opção significa, enfim, “liberdade”, indefinível, imponderável, mas real a cada indivíduo ou grupo: Liberdade - essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. (Meireles, 1994, p.108)
Eficiente refere-se a uma relação custobenefício favorável, eficaz refere-se a ser possuidora de capacidade resolutiva (Breilh, 1988:46).
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Essa dimensão não tem sido explorada pela Epidemiologia em todas as suas potencialidades. Talvez seja, realmente, universo exótico para ela. Voltando a Almeida Filho (1992, p.60), há coisas que “a ciência epidemiológica não pode dar conta”, e essa dúvida mostra-se um desafio fascinante e traz a complementaridade entre essas dimensões, que, se prescindível para uma Epidemiologia de orientação “clínica”, ou “tradicional”, ou quaisquer correntes que buscam uma preservação metodológica e uma orientação para a dimensão natural, ou naturalizada, do processo saúde/doença, é absolutamente imprescindível para uma Epidemiologia que procura a expansão e/ou revisão metodológica e de seu objeto. Porque não dizer, que procura transgredir limites historicamente construídos. Uma Epidemiologia que busca superar suas dificuldades de abordagem do social, que busca o movimento do objeto (Breilh, 1994). No entanto, qualquer corrente da Epidemiologia trabalha com conhecimentos muito próximos da ação, ou para ela dirigidos, caracterizandoa como uma ciência aplicada. Desta forma, a complementaridade entre diferentes dimensões da percepção do risco se torna imprescindível para as ações preconizadas pelo conhecimento produzido, pois estas ocorrem sempre num ambiente sócio-cultural dado, e se concretizam no locus onde é possível a “tríplice abordagem” de que nos fala Lévi-Strauss (1974). Aí, ação e saber serão sempre re-interpretados à luz dos significados que assumem para indivíduos e grupos, caminho para que os conhecimentos possam se traduzir em políticas de saúde eficientes9 , não necessariamente construídas sobre
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vitoriosos e vencidos, culpados ou inocentes, mas apenas com indivíduos copartícipes de um mesmo sonho, ou de sonhos diversos; com indivíduos que sonham. Vemos que o risco percebido é um conceito multidimensional ao qual podem ser dados diferentes significados. É necessário distinguir entre riscos necessários e desnecessários e definir a decision situation e a decision option em detalhes para se ter uma medida confiável dos riscos percebidos por uma pessoa. (Lilja & Larsson, 1994, p.1666)
Necessário pois, para a compreensão das análises epidemiológicas, distinguir diferentes dimensões de risco. Se quisermos compreender melhor, ou em outros patamares, a complexidade que envolve o processo saúde/doença nos homens, não podemos nos ater apenas à idéia de um risco epidemiológico, em sua acepção tradicional (traduzido como risco coletivo, probabilístico), mas também buscar compreender um risco que, para preservarmos os conceitos, seria conveniente nos referirmos a ele como um risco nãoepidemiológico (traduzido como risco individual, ou mesmo coletivo, porém simbólico), dimensões essas mutuamente dependentes, partícipes de um mesmo universo que a Epidemiologia procura traduzir como seu objeto. Conclusão O conceito de risco, hoje um dos problemas centrais da Epidemiologia, tem sua interpretação em termos probabilísticos, mas sua aplicação a situações individuais é falaciosa. Porém, sua concreção se dá no plano individual e neste plano tem sua própria interpretação, não necessariamente concordante com a epidemiológica. Os conceitos desenvolvidos pela Epidemiologia, e mesmo as representações sociais dos epidemiólogos (afinal, são também humanos) sobre o coletivo e sobre o risco, são interpretações sobre a realidade observada do ponto de vista coletivo e dirigem uma postura da ciência epidemiológica (e dos epidemiólogos) não necessariamente condizente com as representações sociais dos indivíduos e grupos populacionais não ligados às ciências. Tampouco são tais conceitos assumidos no plano desses indivíduos de forma não conflitiva, ainda que não os questionem enquanto verdades. Neste particular, a noção de risco pode ter um papel interessante no desafio de buscar novos caminhos para a revisão do conhecimento epidemiológico, pois envolve uma vivência íntima dos indivíduos e seus conflitos entre o perigo e o prazer, entre a aceitação e a transgressão das regras que o conhecimento científico nos permite elaborar. À medida que o conhecimento da realidade coletiva ganha sentido para eles, aumentam as chances de que venham a contribuir para tornar mais eficientes as ações da Medicina Social. Nesse sentido, a confluência das posturas adotadas nas investigações quantitativas e qualitativas apresentase como uma opção para que mudanças na prática epidemiológica se façam no interior dos limites que a ciência coloca à racionalidade humana, porém com a produção de conhecimentos capazes de adquirir sentido para as
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O INDIVÍDUO E O COLETIVO: ALGUNS DESAFIOS...
necessidades imediatas dos indivíduos. Na confluência dos métodos (Samaja, 1992) reside, assim, uma esperança de que a Epidemiologia assuma de forma mais eficiente sua história de contribuições para com as ações da Medicina Social. Referências bibliográficas ALMEIDA FILHO, N. Epidemiologia sem números: uma introdução à ciência epidemiológica. Rio de Janeiro: Campus, 1989. ALMEIDA FILHO, N. O problema do objeto de conhecimento na epidemiologia. In: COSTA, D.C. Epidemiologia: teoria e objeto. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 203-20. ALMEIDA FILHO, N. A clínica e a epidemiologia. Salvador: APCE, 1992. BARRETO, M. L.; ALVES, P. C. O Coletivo versus individual na epidemiologia: contradição ou síntese? In: COSTA, M. F. L; SOUZA, R. P. (Orgs.) Qualidade de vida: compromisso histórico da epidemiologia. Belo Horizonte: Coopmed, 1994. p.129-36. BENSAÏD, N. La Lumière médicale: les illusions de la prévention. Paris: Editions du Seuil, 1981. BREILH, J. Epidemiologia, economia, medicina y política. 2.ed. México: Fontamara, 1988. BREILH, J. Dialéctica de lo coletivo en epidemiologia. In: COSTA, M. F. L; SOUZA, R. P. (Orgs.) Qualidade de vida: compromisso histórico da epidemiologia. Belo Horizonte: Coopmed, 1994. p.13545. DAVIS, P., HOWDEN-CHAPMAN, P. Translating research findings into health policy. Soc. Science Med., v.43, n.5, p.865-872, 1996. ELIAS, N. Time: an essay. Oxford: Blackwell, 1994. ENGELS, F. Dialectica da natureza. Lisboa: Editorial Presença, 1974. Apud CINDRA, J.L. Friedrich Engels, a ciência, o homem e a natureza. Princípios, v.38, p.75-78, 1995. FIGUEIREDO, A. M. A Constituição profissional da medicina homeopática na interação com a medicina alopática. Belo Horizonte, 1994. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG. GONÇALVES, R. B. M. Tecnologia e organização social das práticas de saúde: características tecnológicas do processo de trabalho na rede estadual dos Centros de Saúde de São Paulo. São Paulo, 1986. Tese (Doutorado). Faculdade de Saúde Pública, USP. GONRING, J. I. A água dos dias e o curso do rio. São Paulo: Massao Ohno, 1991. HOLANDA, F. B. Pedaço de mim. In: _________ Chico Buarque: letra e música 2. 6.ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1989. p.100. LEAVELL, H., CLARK, E.G. Medicina preventiva. São Paulo: Mcgraw-Hill, 1978. LÉVI-STRAUSS, C. A obra de Marcel Mauss. In: ________ Marcel Mauss (Coleção Sociologia e Antropologia, v.2). São Paulo: EPU, 1974. p.1-48. LEXCHIN, J. The medical profession and the pharmaceutical industry: an unhealthy alliance. Intern. Journal Health Serv., v.18, n.4, p.603-616, 1988. LILJA, J.; LARSSON, S. Social pharmacology: unresolved critical issues. Intern. Journal Addictions, v.29, n.13, p.1647-1737, 1994. McKEOWN, T.; LOWE, C.R. Introducción a la Medicina Social. 3.ed. México: Siglo Veintiuno, 1986. MEIRELES, C. Romanceiro da inconfidência. 7.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. (Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência). MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1993. MINAYO, M.C.S. Quantitativo e qualitativo em indicadores de saúde: revendo conceitos. In: COSTA, M. F. L; SOUZA, R. P. (Orgs.) Qualidade de vida: compromisso histórico da epidemiologia. Belo
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PERINI, E. et al. , El individuo y lo colectivo - algunos desafíos de la Epidemiología y de la Medicina Social. Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.8, p.101-18, 2001. Algunos de los conceptos fundamentales de la Epidemiología son revisados, explorando contraposiciones de sus principales contradicciones filosóficas. En este sentido, se discute la interdependencia conceptual entre el individuo y lo colectivo, la complementariedad de los abordajes cuantitativas y cualitativas, el carácter natural y social de la existencia humana y, en fin, las expresiones colectiva y individual del riesgo. Del a análisis se ha concluido que el concepto de riesgo trae en sí potencial para una revisión de la práctica epidemiológica. Sin escapar de los límites que la ciencia establece a la produción del conocimiento, esta revisión se ha propuesto a partir de la práctica de la confluencia de los métodos cuantitativo y cualitativo de investigación, más cercana de las necesidades inmediatas de los indivíduos. Sus posibilidades de concurrir para tornar más eficientes las acciones de la Medicina Social se amplían conforme el conocimiento de la realidad colectiva gana sentido para ellos. PALABRAS-CLAVE: Epidemiología; Medicina Social; riesgo.
Recebido para publicação em: 10/04/99. Aprovado para publicação em: 22/10/00.
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Redefinindo as práticas de Saúde a partir de experiências de Educação Popular nos serviços de saúde Redefining healthcare practices based on the experiences of people education at healthcare services
Eymard Mourão Vasconcelos1
Desde a década de setenta, profissionais de saúde insatisfeitos com as práticas mercantilizadas e rotinizadas dos serviços oficiais e desejosos de uma atuação mais significativa para as classes populares vêm se dirigindo às periferias dos grandes centros urbanos e regiões rurais em busca de formas alternativas de atuação. Inicialmente ligaram-se às experiências informais de trabalho comunitário, principalmente junto à Igreja Católica. Posteriormente, a multiplicação de Serviços de Atenção Primária à Saúde ocorrida no Brasil, a partir do final dos anos setenta, colaborou na criação de condições institucionais para fixar esses profissionais nos locais de moradia das classes populares. É interessante como este movimento de profissionais de saúde vem se mantendo por tantos anos. Convivendo com a dinâmica do processo de adoecimento e de cura no meio popular, interagindo com os movimentos sociais locais e entrando em contato com a militância de outros grupos intelectuais, muitos passam a reorientar suas práticas buscando enfrentar de uma forma mais global os problemas de saúde encontrados. Em alguns desses serviços, em que a população organizada e os profissionais de saúde identificados com os seus interesses conseguem conquistar um maior controle do seu funcionamento, surgem algumas experiências pioneiras que avançam bastante na superação do caráter mercantil, biologicista e
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Professor do Departamento de Promoção da Saúde, Universidade Federal da Paraíba. <eymard@altavista.net>
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alienador da prática médica dominante. São experiências esparsas e pontuais, sempre ameaçadas de submersão diante das constantes oposições: a carência de recursos das políticas sociais, a repressão política e as exigências do produtivismo numérico do sistema de saúde. Em um número maior de serviços, profissionais comprometidos politicamente com a população não conseguem conquistar a hegemonia do seu funcionamento, mas resistem implementando pequenas práticas alternativas e marginais, nas quais a relação educativa com a população é priorizada. Nesses serviços, a participação e o controle dos grupos populares não são apenas esperados e franqueados, mas investe-se intensamente nos seus aprofundamentos. Busca-se constantemente a articulação com os sindicatos de trabalhadores, grupos pastorais, associações de moradores, grupos de jovens, conselhos paroquiais, grupos de mulheres etc. Quando estas entidades populares são pouco expressivas, estimula-se o seu fortalecimento ou a criação de novos grupos. Também investe-se na estruturação de comitês locais de saúde. A relação com a população, de forma alguma, se restringe aos grupos organizados. Há uma grande valorização das trocas interpessoais que acontecem tanto nos contatos formais (consultas individuais, reuniões educativas e visitas domiciliares) como também nos contatos informais e na participação em eventos sociais locais. Na dinâmica desses serviços de saúde, a palavra diálogo é um conceito fundamental. Um diálogo no qual esforça-se para compreender e explicitar o saber do interlocutor popular. Em várias experiências, os profissionais radicalizam esta busca de aproximação do meio popular indo, inclusive, morar próximo a esses grupos. Nesses serviços é nítida a quebra do poder centralizador dos médicos. Predomina um discurso igualitarista que coloca em pé de igualdade todos os profissionais, inclusive os agentes comunitários de saúde. Mesmo que o discurso não corresponda totalmente à prática diária, estrutura-se uma série de mecanismos (assembléia de funcionários, reuniões de equipe, encontros de avaliação) no qual cada profissional conta, pelo menos, com a possibilidade formal de participar na definição das prioridades e estratégias e no enfrentamento dos problemas detectados. Tudo é problema de todos! Ao mesmo tempo, a maior inserção desses Serviços de Atenção Primária à Saúde no meio popular, devido a sua localização e ligação com os movimentos sociais, cria condições para que a globalidade dos problemas de saúde se manifeste, desafiando as limitações e competências individuais dos vários profissionais e especialistas. Assim, a interdisciplinaridade passa a ser cobrada não só pela vontade de alguns deles, mas também a partir das demandas da população. O intercâmbio entre os vários profissionais passa a existir não apenas na definição de estratégias globais do serviço, mas também para enfrentar os pequenos problemas de saúde. A partir da articulação com diferentes formações, estrutura-se, aos poucos, uma prática de saúde alargada (não simplificada), em que as várias dimensões da doença passam a ser enfrentadas. Com a pressão dos grupos populares locais, as dimensões coletivas dos problemas de saúde incorporam-se ao cotidiano dos serviços.
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Nesse contexto, preocupa-se não apenas em multiplicar os atendimentos e expandir a população por eles coberta, mas em redefinir o próprio atendimento. É comum afirmar, com graus variáveis de clareza, que a atenção médica tradicional não é injusta apenas porque segrega os trabalhadores, mas também porque a sua racionalidade interna reforça e recria, no nível das suas microrelações, as estruturas de dominação da sociedade. O biologicismo, o autoritarismo do doutor, o desprezo ao saber e à iniciativa do doente e familiares, a imposição de soluções técnicas para problemas sociais globais e a propaganda embutida dos grupos políticos dominantes, são exemplos de alguns dos mecanismos entranhados na assistência à saúde oficial que se procura superar. Desta forma, os serviços inovam até mesmo em relação a amplos setores dos profissionais de saúde considerados progressistas (a chamada “esquerda médica” nucleada em torno do antigo Partido Comunista Brasileiro) que, preocupados com a expansão do direito a assistência à saúde junto a população, não questionam o tipo de assistência que está sendo expandida. Essas experiências alternativas estruturaram-se a partir da década de setenta em bairros periféricos, pequenas cidades do interior e povoados rurais, integrados a projetos mais amplos nos quais a metodologia da Educação Popular era hegemônica. Pelo contato com várias dessas experiências, com inúmeros profissionais nelas inseridos, percebo que o método da Educação Popular foi um elemento estruturante fundamental. As experiências se constituíram no mesmo ambiente sócio-econômico e cultural em que a Educação Popular terminava de se delinear como corpo teórico: as comunidades eclesiais de base, o ressurgimento dos movimentos sociais em luta contra a ditadura militar e suas políticas econômicas e sociais na década de setenta. Naquele contexto, a Educação Popular era a teoria hegemônica que orientava o modo de participação dos agentes eruditos (professores, padres, cientistas sociais, profissionais de saúde etc.) engajados no trabalho político e pedagógico. Assim, no setor Saúde, a Educação Popular passou a se constituir, em vários serviços, não como uma atividade a mais entre tantas outras, mas como um instrumento de reorientação da globalidade de suas práticas, na medida em que dinamiza, desobstrui e fortalece a relação com a população e seus movimentos organizados. A Educação em Saúde é o campo de prática e conhecimento do setor Saúde que tem se ocupado mais diretamente com a criação de vínculos entre a ação médica e o pensar e fazer cotidiano da população. Diferentes concepções e práticas têm marcado a história da Educação em Saúde no Brasil. Mas, até a década de setenta, foi basicamente uma iniciativa das elites políticas e econômicas e, portanto, subordinada aos seus interesses. Voltavase para a imposição de normas e comportamentos por elas considerados adequados, num tipo de educação que poderia ser chamada de “toca boiada”, em que os técnicos e a elite vão tentando conduzir a população para os caminhos que consideram corretos, usando, para isto, tanto o berrante (a palavra) como o ferrão (o medo e a ameaça).
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A participação de profissionais de saúde nas experiências de Educação Popular, a partir dos anos setenta, trouxe para o setor Saúde uma cultura de relação com as classes populares que representou uma ruptura com a tradição autoritária e normatizadora da Educação em Saúde. No âmbito internacional, o Brasil teve um papel pioneiro na constituição do método da Educação Popular, o que explica, em parte, a sua importância, aqui, na redefinição de práticas sociais dos mais variados campos do saber. Ela começa a se estruturar como corpo teórico e prática social no final da década de cincoenta, quando intelectuais e educadores ligados à Igreja Católica e influenciados pelo humanismo personalista que florescia na Europa no pós-guerra, voltam-se para as questões populares. Na verdade, o movimento operário brasileiro, desde o início do século, enfatizara muito a dimensão cultural e da consciência no processo de luta. Marcado pelas correntes anarquistas trazidas pelos imigrantes europeus, ele via a exploração do trabalhador também pela dimensão moral e cultural. Assim, os sindicatos e grupos operários, no início do século, preocupavam-se muito em promover discussões sobre questões culturais, organizar bibliotecas, organizar passeios nos fins de semana e criar escolas noturnas. Mas a partir do governo de Getúlio Vargas, o Estado passa a assumir a iniciativa da cobertura (simplificada) dos direitos sociais, esvaziando a iniciativa operária. Desta forma, o movimento da Educação Popular representa uma retomada e uma elaboração pelos intelectuais e agentes educativos de uma prática esparsa e não sistematizada do movimento operário do início do século. Educação Popular não é o mesmo que “educação informal”. Há muitas propostas educativas que se dão fora da escola, mas que utilizam métodos verticais de relação educador-educando. Segundo Brandão (1982), a Educação Popular não visa criar sujeitos subalternos educados: sujeitos limpos, polidos, alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja e cagando em fossas sépticas. Visa participar do esforço que já fazem hoje as categorias de sujeitos subalternos - do índio ao operário do ABC paulista - para a organização do trabalho político que, passo a passo, abra caminho para a conquista de sua liberdade e de seus direitos. A Educação Popular é um modo de participação de agentes eruditos (professores, padres, cientistas sociais, profissionais de saúde e outros) neste trabalho político. Ela busca trabalhar pedagogicamente o homem e os grupos envolvidos no processo de participação popular, fomentando formas coletivas de aprendizado e investigação de modo a promover o crescimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfrentamento. Um elemento fundamental do seu método é o fato de tomar como ponto de partida do processo pedagógico o saber anterior das classes populares. No trabalho, na vida social e na luta pela sobrevivência e pela transformação da realidade, as pessoas vão adquirindo um entendimento sobre a sua inserção na sociedade e na natureza. Este conhecimento fragmentado e pouco elaborado é a matéria prima da Educação Popular. A valorização do saber popular permite que o educando se sinta “em casa” e mantenha a sua iniciativa. Neste sentido, não se reproduz a passividade usual dos processos
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VITALINO FILHO, Retirantes, Caruaru, PE
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pedagógicos tradicionais. Na Educação Popular não basta que o conteúdo discutido seja revolucionário, se o processo de discussão se mantém vertical. Passados quarenta anos do início deste movimento no Brasil, muita coisa mudou. As práticas de Educação Popular em Saúde já não se restringem ao modelo dominante na década de setenta: um técnico inserido em uma pequena comunidade periférica, identificando lideranças e problemas mobilizadores, criando espaços de debate, apoiando as lutas emergentes e trazendo subsídios teóricos para alargar as discussões locais. Com o processo de democratização da sociedade brasileira, houve espaço para que a participação popular pudesse também ocorrer nas grandes instituições. Muitos técnicos formados nos espaços informais dos movimentos sociais passaram a ocupar cargos importantes nos órgãos implementadores das políticas de saúde procurando aplicar, neste novo espaço, a metodologia da Educação Popular. Apesar de uma certa crise inicial da pretensão de transposição direta e sem adaptações da metodologia de ação nos espaços informais para as instituições, novas experiências floresceram. A Rede de Educação Popular e Saúde que, desde 1991, articula profissionais de saúde e lideranças populares envolvidas nestas experiências, vem se expandindo e consolidando a trajetória de atuação nos novos serviços de saúde a partir do instrumental da Educação Popular. Pode-se afirmar que uma grande parte das experiências de Educação Popular em Saúde estão hoje voltadas para a superação do fosso cultural existente entre os serviços de saúde, as organizações não governamentais, o saber médico e mesmo as entidades representativas dos movimentos sociais de um lado e, de outro lado, a dinâmica de adoecimento e de cura do mundo popular. Isto é feito a partir de uma perspectiva de compromisso com os interesses políticos das classes populares, mas reconhecendo, cada vez mais, a sua diversidade e heterogeneidade. Priorizase a relação com os movimentos sociais por serem expressões mais elaboradas desses interesses. Atuando a partir de problemas de saúde específicos ou de questões ligadas ao funcionamento global dos serviços, busca-se entender, sistematizar e difundir a lógica, o conhecimento e os princípios que regem a subjetividade dos vários atores envolvidos, de forma a superar incompreensões e mal entendidos ou tornar conscientes e explícitos os conflitos de interesse. Dedica-se à ampliação dos canais de interação cultural e negociações (cartilhas, jornais, assembléias, reuniões, cursos, visitas etc.) entre os diversos grupos populares e os diversos tipos de profissionais e instituições. A Educação Popular não é o único projeto pedagógico a valorizar a diversidade e heterogeneidade dos grupos sociais, a intercomunicação entre diferentes atores, o compromisso com as classes subalternas, as iniciativas dos educandos e o diálogo entre o saber popular e o saber científico. Mas para o setor Saúde brasileiro, a participação histórica no movimento da Educação Popular foi marcante na criação de um movimento de profissionais que busca romper com a tradição autoritária e normatizadora da relação
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entre os serviços de saúde e a população. Apesar de uma certa crise do conceito da Educação Popular nos novos tempos, é ele que vem servindo para identificar e instrumentalizar a diversidade de práticas emergentes. Nessas experiências, os vários aspectos metodológicos valorizados articulam-se de um modo peculiar, diferenciando-se do que ocorre em outros continentes. Há um elemento inovador e pioneiro nas experiências brasileiras e latino-americanas de Educação em Saúde que vêm sendo reconhecido internacionalmente. Para muitos serviços de saúde, a Educação Popular tem significado um instrumento fundamental na construção histórica de uma medicina integral, na medida em que se dedica à ampliação da inter-relação entre as diversas profissões, especialidades, serviços, doentes, familiares, vizinhos e organizações sociais locais envolvidos num problema específico de saúde, fortalecendo e reorientando suas práticas, saberes e lutas. Esta redefinição da prática médica se dá, não a partir de uma nova tecnologia ou um novo sistema de conhecimento, como as chamadas medicinas alternativas pretendem ser, mas pela articulação de múltiplas, diferentes e até contraditórias iniciativas presentes em cada problema de saúde, em um processo que valoriza principalmente os saberes e práticas dos sujeitos usualmente desconsiderados devido a sua origem popular. No atual contexto de fragmentação da vida social, a recomposição de uma abordagem mais globalizante da saúde não pode caber apenas às iniciativas ampliadas das instituições médicas. Cabe principalmente ao crescimento da capacidade de doentes, famílias, movimentos sociais e outros setores da sociedade civil em articularem, usufruírem e reorientarem os diversos serviços e saberes disponíveis. Esta perspectiva se diferencia do imaginário de grande parte do movimento sanitário brasileiro, ainda acreditando e empenhando-se na possibilidade de construção de um sistema estatal único de saúde capaz de, planejadamente, penetrar e ordenar as diversas instâncias da vida social implicadas no processo de adoecimento e de cura. (Vasconcelos, 1997). Referências bibliográficas BRANDÃO, C. R. Lutar com a palavra: escritos sobre o trabalho do educador. Rio de Janeiro: Graal, 1982. VASCONCELOS, E. M. Educação Popular nos serviços de saúde. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Popular; práticas de Saúde; Educação em Saúde. KEY WORDS: People Education; Healthcare practice; Healthcare Education.
Recebido para publicação em: 20/10/00. Aprovado para publicação em: 05/11/00.
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Bando de Lampião
PALABRAS-CLAVE: Educación Popular; prácticas de la Salud; Educación en Salud.
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A educação popular na área da Saúde People education in the Health area
Carlos Rodrigues Brandão1
Desde algum momento entre os últimos anos da década de sessenta (“a década que não acabou”, segundo alguns) até os bem entrados anos setenta, a expressão: “estou realizando um trabalho de Educação Popular na área da Saúde” tornou-se corriqueira. E ela sugere um pensar a respeito de quando e como a associação entre uma coisa e a outra começou a ser realizada entre nós. Eymard Mourão Vasconcelos consegue fazer isto em pouca páginas. Alguns anos antes, na aurora dos anos sessenta, as experiências pioneiras em idéias e práticas que têm no nome do educador Paulo Freire uma espécie de eixo de referência, não eram identificadas pelo nome de Educação Popular. Paulo Freire mesmo usava nomes como educação liberadora, educação libertadora. Um amplo projeto polissêmico abarcava uma primeira frágil safra de experiências reunidas ao redor do nome cultura popular. As associações que então se reconheciam envolvidas com tal proposta constituíam centros ou movimentos de cultura popular. A cultura começava a ser, então, pensada como um momento do processo político, em sua dimensão subjetiva (no interior do imaginário da pessoa) e objetiva (em sua realidade social, ao longo da história humana e no interior da vida cotidiana de uma comunidade). Havia um fundamento partilhado com diferenças de ideologias entre as pessoas e os movimentos participantes “da cultura popular” dos anos sessenta: a cultura se constrói na história. Ela é uma obra humana e resulta de interações mediatizadas entre o trabalho e a comunicação das consciências. Um outro suposto o completava: em sociedades desiguais, regidas por interesse e conflitos de/entre classes sociais, culturas humanas são construções de práticas da vida, de regras e códigos de relações e de sistemas de sentidos que obedecem a tais interesses e procuram tornar ocultos ou desvelam as origens sociais das desigualdades e as razões ideológicas e políticas dos conflitos. Daí porque fazia sentido falar-se, então, em uma “cultura alienada”. Uma cultura que seria o espelho e a realização simbólica da condição social de toda uma sociedade desigual e, mais ainda, a de uma de suas classes, a dos “subalternos”, dos “oprimidos”, dos “trabalhadores”, do “povo”, da “massa
Professor do Departamento de Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas/ Unicamp.
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popular”, nos dizeres de então. O seu equivalente individualizado seria uma “consciência alienada”. Modos e processos de significação da realidade que não traduziam para seus sujeitos – individuais ou coletivos – a face politicamente verdadeira desse real pensado e vivido. Ora, se uma cultura pode ser psicológica e socialmente dada a conhecer por meio de sua face falsa, enganadora do real e, portanto, alienada, um trabalho cultural de teor político pode ser proposto à contra-corrente da ordem dos bens, dos interesses e dos serviços, dos poderes e dos símbolos dos “opressores” e de seus emissários. Por meio de processos intencionais e ordenados de uma educação liberadora (de pessoas e de culturas), de uma alfabetização concientizadora, de uma “arte popular” (não da do “próprio povo” mas uma arte crítica a ele dirigida) seria possível criar com o povo, por uma “pedagogia do oprimido”, uma nova cultura. Uma cultura enfim verdadeiramente popular, crítica, “desalienada” ... “revolucionária”. Tais os termos das propostas mais amplas dos tempos em que a Educação Popular ressurgia entre nós. Buscando então raízes culturais populares a serem de alguma maneira acrescentadas a trabalhos de arte-para-o-povo ou de alfabetização conscientizadora, volta e meia se chegava à “medicina popular”. Mas eram ainda inexistentes ou muito raras as atividades de “saúde popular”. De algo semelhante à educação, estendido a pessoas e a comunidades populares como um trabalho “da área da saúde”. O Movimento de Educação de Base, um dos movimentos de cultura popular com atuação em boa parte do território nacional, envolveu em seu programa de “educação de base”, noções de “saúde popular”. Por volta de 1964 uma pequena cartilha, “mutirão para a saúde”, com bonitos desenhos do Ziraldo e em forma de versos dos romanceiros nordestinos, foi distribuída em larga escala. Ora, o teor mais visivelmente político, a vocação entre transformadora e revolucionária dos programas de educação popular, ou daqueles aos quais uma experiência de educação popular aderia, são, razoavelmente bem conhecidos de todos nós. Eles podem ser encontrados, em seus rostos originais, na bela coletânea de documentos da época, coligidos por Osmar Fávero em Cultura Popular e Educação Popular – memória dos anos 60 (Graal, 1983, Rio de Janeiro). Eles foram bastante bem (e polemicamente) discutidos em livros como Educação Popular e Educação de Adultos, de Vanilda Paiva (Loyola, 1973, São Paulo). Mas existe um outro fator fecundante de tudo o que ocorreu no interior
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e à volta das experiências pioneiras e posteriores de Educação Popular. E como esta dimensão é menos conhecida, menos posta em diálogo e, não raro, considerada de menor importância, quero lembrá-la aqui. Seja ela o foco de minha contribuição a um debate tão coerentemente introduzido por Eymard Mourão Vaconcelos. Logo na primeira página de seu artigo, Eymard lembra que o desejo do conhecimento da vida e do reconhecimento da pessoa do Outro, de um “outro” popular, situado do lado de lá da cerca que separa classes e vidas no Brasil, é um fator essencial nas práticas de “Educação em Saúde”. Das primeiras experiências de uma atenção médica associada a uma vocação de troca. Associada a uma proposta de não apenas um atendimento profissional competente “aos menos favorecidos”, dentro da faixa da assistência pública à saúde de mulheres e homens do povo, mas de um intercâmbio de saberes, de valores, de projetos de vida, de alternativas socioculturais de superação de um modo de vida subalterno dentro de uma sociedade desigual. Ele sublinha, em um momento do texto: “a palavra diálogo é um conceito fundamental” (p.122). E, de fato, é. No campo das heranças das experiências dos anos sessenta, de onde vem esta prática profissional a que alude Eymard em seu artigo? Uma proposta nova que pretende substituir a “assistência” pela “presença”, a “saúde pública” por uma “medicina de compromisso popular” e a “atenção médica” ao cliente pela vocação pedagógica e crítica do trabalho do médico como um também educador junto a um cliente, pessoal ou coletivo, tomado como um agente social responsável por uma organização e uma mobilização popular em favor das transformações sociais indispensável à “cura política” do quadro que gera, também no “campo da saúde”, a seqüência de processos de reprodução da desigualdade e da injustiça. De onde ela provém? Vem, é claro, de um conjunto em parte uno, em parte bem diversificado, de idéias e de projetos claramente político-ideológicos e, no limite, francamente revolucionários. Paulo Freire mesmo é um leitor tanto de Karl Jaspers quanto de Marx, de Lenine ... e de Jesus Cristo. A presença de militantes socialistas, não-cristãos e cristãos é evidente. Mas vem também de uma menos visível presença importada de idéias, de metodologias de trabalhos e de posturas associadas ao diálogo e à troca de idéias e de projetos de vida. Com a risonha franqueza que sempre a caracterizou, em uma recente entrevista concedida a Aída Bezerra (outra notável educadora popular), Vera Jaccoud lembrava a experiência francesa
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de Peuple et Culture como uma das inspiradoras do Movimento de Educação de Base. Pois a face cotidiana e concretamente pedagógica da Educação Popular nasceu e se desenvolveu em diálogo com novas teorias e práticas de um “ouvir o outro” para educá-lo – e para educar-se com ele, lembraria Paulo Freire. E o próprio “círculo de cultura” do “método Paulo Freire” é bem um seu retrato fiel. Se a proposta básica dos movimentos de cultura popular é a realização de uma “educação conscientizadora” a ser obtida pelo crescimento interior do educando popular que por conta própria e auxiliado por um educadorfacilitador aprende, ao mesmo tempo, a ler palavras, a ler-se a si mesmo e a ler seu mundo, como torná-la efetiva? Como substituir a “educação bancária” de que falava Paulo Freire por uma educação igualitária e dialógica? É este o momento em que entram em cena idéias, propostas e métodos de trabalho com pessoas e com grupos, vindos da Europa e dos Estados Unidos. Seus círculos de origem são variados. Algo pode provir da terapia e do ensino centrado no cliente ou no aluno, que nos evoca Carl Rogers. Propostas chegadas à educação em que o que importa deixa de ser o saber acumulado no professor-que-ensina e que deve ser “passado” aos seus alunos de uma maneira verticalizada e pré-estruturada, para vir a ser um saber que se constrói a partir e pelo que todos e cada um dos participantes de uma comunidade aprendente podem trocar uns com os outros. Algo pode provir das experiências norte-americanas e européias de dinâmica de grupos, introduzidas no Brasil desde o final dos anos cincoenta. Volto ao exemplo do Movimento de Educação de Base (MEB), que é o de minha experiência pessoal. Ele se inicia com a presença de um recémespecialista em dinâmica de grupos. Teorias e práticas são aprendidas e são incorporadas. Das reuniões da “equipe nacional de coordenação” ao trabalho proposto nas “escolas radiofônicas” de Educação Popular, a reunião à volta da mesa, o círculo de pessoas e de pontos de vista, o respeito ao pensamento do outro, a busca de consensos, o “crescimento por meio da troca” tornamse a rotina de cada dia. Entre a experiência pioneira de Angicos conduzida por Paulo Freire e sua primeira equipe de educadores, e as do MEB, entre ele e outras tantas experiências de Educação Popular dos anos sessenta e das duas décadas posteriores, estas posturas figuradas no círculo e no debate, esta transformação da sala hierárquica no espaço das trocas, serão a matéria visível de propostas de uma “educação de compromisso popular”. Uma múltipla aventura da educação em que o diálogo – a sempre difícil e inalcançável busca do diálogo – deixa de ser uma simples metodologia de trabalho didático, para vir a se constituir como o fim e o sentido de uma educação conscientizadora. Uma das mais criativas contribuições de algumas dentre as polissêmicas experiências de Educação Popular dos anos sessenta em diante, e do Brasil até círculos mais amplos da América Latina e, depois, de outros continentes de Terceiro Mundo, foi justamente esta mudança ideológica e pedagógica das propostas originais de ensino-centrado-no-aluno e de dinâmica de grupo trazidas ao Brasil desde o Primeiro Mundo. Talvez por uma primeira vez
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algo tão relevante é criado entre nossos educadores e, depois, exportado a todo o Mundo. Atitudes metodológicas antes pensadas para o contexto terapêutico e pedagógico de ambientes tão distanciados de uma comunidade popular do Nordeste do Brasil, são revisitadas. São recriadas e transformadas em “armas pedagógicas” de franco valor de crescimento de posturas críticas e de motivações a uma participação popular. Não se tratava apenas de uma adaptação, pois algo bem mais do que isto foi na verdade realizado de uma maneira consistente e diversificada. Toda uma proposta de partilha por meio da educação foi então desenvolvida e posta em prática. Que fecundos e que difíceis caminhos ela, em seus múltiplos rostos, teria percorrido se o Golpe Militar de 1964 não os tivesse cortado de uma maneira tão radical e tão violenta? Anos mais tarde a pesquisa participante estenderia tais propostas a outros e aos mesmos campos. Uma outra “descoberta” posta em prática sobretudo na aurora dos anos setenta, foi a de uma dimensão propriamente dialógica e francamente educativa em qualquer campo ou dimensão de práticas sociais. E sobretudo naquelas realizadas pelo difícil e fértil encontro entre agentes culturais eruditos e profissionalizados e as pessoas e os grupos humanos populares. Este é o momento em que com propriedade Eymard Mourão Vasconcelos pode lembrar o seguinte: “a participação de profissionais de saúde nas experiências de Educação Popular, a partir dos anos setenta, trouxe para o setor Saúde uma cultura de relação com as classes populares que representou uma ruptura com a tradição autoritária e normatizadora da Educação em Saúde” (p.130, grifo meu). De fato, com o renascimento dos programas de Educação Popular nos anos setenta, há uma diferenciação notável de ideários e de procedimentos. Agora são os próprios movimentos sociais populares, no campo e na cidade, que convocam os educadores populares (médicos, enfermeiros, assistentes sociais, artistas, cientistas sociais e outros, entre eles) a um trabalho fundado ainda nos velhos princípios da Educação Popular, mas com rostos e roupagens novos. Este é o momento em que se pode, bem mais do que nos anos sessenta, falar de uma “experiência de Educação Popular na área da saúde”. E ela se realiza quando o trabalho profissional de Saúde Pública funde-se em um trabalho cultural de Educação Popular por meio da Saúde. Quando a ação médica e a de outros profissionais da “área da Saúde” não se limita a uma assistência a clientes do povo. Quando ela se estende a uma ação cultural ampliada de diálogo e de crescimento de parte a parte, em busca de saídas e de soluções sociais a partir do que se vive e do que se troca, do que se aprende e do que se motiva, quando se dialoga crítica e criativamente sobre a vida e o mundo por intermédio do corpo e da saúde.
Recebido para publicação em: 24/01/01. Aprovado para publicação em: 29/01/01.
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A cultura e o saber: linhas cruzadas, pontos de fuga Culture and knowledge: crossed lines, points of escape
Eduardo Navarro Stotz1
Pedro Orósio achava do mesmo modo lindeza comum nos seus campos-gerais, por saudade de lá, onde tinha nascido e sido criado. Mas, outras coisas, que seo Alquiste e o frade, e seo Jujuca do Açude referiam, isso ficava por ele desentendido, fechado sem explicação nenhuma; assim, que tudo ali era uma Lundiana ou Lundlândia, desses nomes. De certo, segredos ganhavam, as pessoas estudadas; não eram para o uso de um lavrador como ele, só com sua saúde para trabalhar e suar, e a proteção de Deus em tudo. Um enxadeiro, sol a sol debruçado para a terra do chão, de orvalho a sereno, e puxando toda a força de seu corpo, como é que há de saber pensar continuado? E, mesmo para entender ao vivo as coisas de perto, ele só tinha poder quando na mão da precisão, ou esquentado – por ódio ou por amor. Mais não conseguia. João Guimarães Rosa.
1 Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, ENSP/FIOCRUZ. <enstotz@unisys.com.br>
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Metáfora de uma problemática, o trecho usado em epígrafe fala de uma viagem na qual Pedro Orósio, também acudindo por Pedrão Chãbergo ou Pê-Boi, de alcunha, guia um cientista, um pároco e um fazendeiro pelo sertão das Geraes. Na beleza da paisagem que descortinam e na profecia que vem dos seus êrmos, desvela-se um caso. Mas de que problemática falamos? Da mesma forma que n’ O recado do Morro, no qual se conta a estória de um caso de vida e de morte de Pedro Orósio, encontramos admiravelmente formulada, nos mesmos termos de Eymard Vasconcelos em seu artigo, a diferença entre o saber erudito e o popular. Refiro-me em especial à passagem na qual esta diferença manifestase como um fosso cultural a separar serviços, organizações não governamentais, saber médico e entidades do movimento popular de um lado, e a dinâmica de adoecimento e cura do mundo popular. Qual personagens desse conto de Guimarães Rosa, observadores da paisagem deslumbrante do sertão, impressionamo-nos todos com a beleza do espetáculo da vida, em suas lutas, sofrimentos e alegrias, vitórias, derrotas e esperanças. Falamos dela, contudo, de modo bastante diverso uma vez que as nossas experiências de vida inserem-se em referências culturais diferentes. Aqui, neste brevíssimo intertexto em torno da cultura e do saber, desdobro o problema proposto por Eymard sob a forma de questões. Interrogar e depois inventar respostas – não é este o significado da nossa aventura, o sentido de nossa viagem? Os percursos da população em busca da cura e a relação entre os diversos saberes médicos, descobertos nestes percursos por essa mesma população, são mais significativos, sabemos, quando se trata de doença crônica. É certo que traduzir é conviver, como também escreveu Guimarães Rosa. Mas a experiência da doença é de difícil tradução. Por outro lado, estamos assistindo a uma mudança na concepção de saúde-doença, uma vez que hoje há níveis de adoecimento, incapacidade e incômodo aceitáveis e compatíveis, do ponto de vista social, com a busca de uma vida saudável. De que modo devemos encarar essas questões? Em certo sentido, não precisamos ser, face à complexidade dos processos sociais e biológicos que caracterizam a dinâmica do adoecimento e da cura, um pouco como seo Alquiste, o cientista que se maravilha e anota tudo o que vê e sente mas pensa continuado, em oposição ao modo fragmentado e espontâneo de Pedro Orósio? O modo de pensar, vinculado ou não imediatamente com a vida diária de cada um, não é o que distingue necessariamente um saber fragmentado e centrado na afetividade, de outro, sistemático e distanciado? Esse saber pensar continuado não diferencia também a doença, construída e objetivada mediante um saber médico, da experiência subjetiva da enfermidade? Na sociedade em que vivemos, os sistemas médicos guardam entre si uma semelhança: a atenção às necessidades de saúde dos indivíduos somente pode se dar do ponto de vista social, requerendo um certo nível de objetivação mediante um saber médico. Pode-se dizer que o fosso cultural assinalado reside no fato de que a doença precede o doente.
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A busca da superação desses limites, parece-me, é parte de um processo mais amplo que (deveria) envolver-nos como atores (autores) políticos na dinâmica histórica da sociedade. Quero dizer com isso que os sistemas médicos precisam aprender a pensar os indivíduos doentes em suas relações, contextos, representações e modo de andar a vida. Acredito que este novo saber ainda será um saber continuado, mas aberto às desorganizações da vida impostas pelas doenças. Com toda a certeza, trata-se de um modo radicalmente diverso de conceber a saúde e a doença, bem como de organizar os serviços de atenção à saúde. Mais ainda, implica envolver-se com a vida das pessoas e, neste sentido, com a mudança das condições propiciadoras da doença. Temos de empenhar-nos neste compromisso. Seu nome é utopia: o movimento real pelo qual enfrentamos e conseguimos (com maior ou menor sucesso), ou não, resolver determinados problemas sociais, ou aspectos destes, deslocando a fronteira entre realidade e possibilidade. Daí a questão final: não será a Educação em Saúde apenas um importante momento de uma prática sempre parcial e isolada, a requerer a luta política pela saúde?
Referências bibliográficas ROSA, J. G. O recado do Morro. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.
Recebido para publicação em: 29/11/00. Aprovado para publicação em: 22/12/00.
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Educação Popular e Saúde: cidadania compartilhada People education and healthcare: shared citizenship
Eliane S. Souza1
Cf. SOUZA, Eliane S. O trabalho educativo em saúde bucal coletiva: o espaço do conhecimento interessado. Campinas, Faculdade de Educação da UNICAMP, novembro de 2000. Projeto de pesquisa.
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Entro, com alegria, neste debate. O texto do Prof. Eymard Vasconcelos é desafiante. Deixei-me levar pelas suas reflexões, refleti com ele. Nesse fazer, encontrei vários atalhos possíveis de serem tomados. Optei pelo caminho de uma discussão que me parece promissora, ainda que apenas esboçada no seu texto. Refiro-me a sua afirmação de que a Educação Popular não é educação informal. Reflexões recentes sobre o ensino universitário das ações coletivoeducativas no campo da Saúde Bucal Coletiva2 permitem-me fazer, aqui, uma distinção rápida entre educação informal, formal e não-formal para, então, situar a apropriação do conhecimento que se dá neste movimento social que congrega, entre outros atores, profissionais de saúde e usuários dos serviços de saúde – a Educação Popular e Saúde – e, por fim, esboçar brevemente algumas implicações deste entendimento. A educação informal pode ser entendida como educação não intencional decorrente de processos espontâneos na trajetória dos indivíduos em interação com a família e nas demais experiências de vida. Por sua vez, a educação formal, isto é, a educação escolar, que não está necessariamente associada à educação domesticadora, se impôs na modernidade quando o conhecimento se tornou um meio de produção e um produto cada vez mais elaborado. Desde então, não podemos deixar de nos referir a ela como um direito que queremos ver universalizado, já que é aí que podemos nos apropriar das chaves da elaboração da produção historicamente sistematizada. Portanto, a educação escolar não deveria ser pensada como sinônimo de autoritarismo, pois a apropriação da nossa herança cultural, inclusive dos clássicos, não é incompatível com a autonomia e com a criatividade (Saviani, 1997). Sequer caberia pensá-la como educação para a subordinação, ainda que venha se apresentando como tal na escola pública brasileira, herdeira do tecnicismo instituído pelos governos militares pós 64. Já a educação não-formal é a educação pela prática social que se dá nas ações coletivas que caracterizam os movimentos sociais e que tem na
Professora da Faculdade de Odontologia, Universidade Federal da Bahia. Doutoranda em Educação na Unicamp. <ess@ufba.br>
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cidadania coletiva o seu primeiro objetivo, “a educação não-formal tem sempre um caráter coletivo, passa por um processo de ação grupal, é vivida como práxis concreta de um grupo, ainda que o resultado do que se aprende seja absorvido individualmente” (Gohn, 1999, p.104). Entendo, em sintonia com o texto do Professor Eymard, a Educação Popular e Saúde como um movimento social tributário do movimento da Educação Popular dos anos sessenta e dos movimentos sociais populares dos anos setenta/oitenta, os quais percebo, depois da leitura de Gohn (1994), como formas renovadas de Educação Popular. Estamos, então, no âmbito da educação não-formal, cujo propósito é a cidadania compartilhada que se constrói no processo de identidade político-cultural gerado nas lutas cotidianas. Se concordarmos que a cidadania coletiva é constituidora de novos sujeitos históricos: as massas urbanas espoliadas e as camadas médias expropriadas, como reflete Gohn (1994) a partir de contribuição de Paulo Freire, teremos, aí, um conceito com significativo potencial analítico no entendimento das práticas de Educação Popular e Saúde. Esse cidadão coletivo se refere a grupos que lutam por direitos sociais tais como os direitos humanos básicos – saúde, educação, moradia – mas se refere, ainda, a outros grupos que, em que pese ocuparem lugares diferenciados no processo de divisão do trabalho e de distribuição de bens de consumo, também lutam por direitos civis, pela paz, pela Ecologia (Gohn, 1994), enfim, por uma cidadania compartilhada. Não são esses grupos, com origens de classe distintas, que se confrontam e se articulam, em amplos pactos, no movimento social pela saúde que aqui abordamos? Sob esta perspectiva, a Educação Popular e Saúde é vista como um novo movimento social – o movimento social pela vida – portanto, uma ação de construção de hegemonia, por isso pedagógica na sua especificidade política, ainda que, como explicitado na sua denominação e exposto no texto do Prof. Eymard Vasconcelos, mantenha um vínculo afetivo, ético e metodológico com suas origens. Referências bibliográficas GOHN, M. G. Educação não-formal e cultura política. São Paulo: Cortez, 1999. GOHN, M. G. Movimentos sociais e educação. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1994. SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-crítica. Primeiras aproximações. 6.ed. Campinas: Autores associados, 1997.
Recebido para publicação em: 29/11/00. Aprovado para publicação em: 22/12/00.
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Educação Popular, Saúde, institucionalização: temas para debate People Education, healthcare, institutionalization: themes for debate
José Ivo dos Santos Pedrosa1
O texto resgata a historicidade da constituição da Educação Popular em Saúde na perspectiva de quem é protagonista dessa história. Isso toca profundamente aqueles que, por alguma razão (sensibilidade, paixão, ideologia, racionalidade, opção política) se aproximam das classes populares e com elas constróem vínculos afetivos e político-ideológicos. Vínculos que promovem a vivência coletiva em torno de movimentos que levam a projetos de emancipação, libertação, autonomia, solidariedade, justiça e eqüidade. Esse agir representa, ao mesmo tempo, estratégia, metodologia, jeito de ser, visão de mundo, expressando-se por meio de um conjunto de práticas técnicas, políticas, ideológicas, culturais e psicanalíticas. As ações de Educação Popular em Saúde podem ser definidas desta maneira. A amplitude do universo dessas práticas e a multirreferencialidade que permeia este emergente campo de conhecimento e intervenção suscitam várias questões. Reapreender o significado de popular ao adjetivar Educação em Saúde no contexto atual mostra-se tarefa instigante. O autor alimenta a discussão ao referir (p.125) que “com o processo de redemocratização da sociedade brasileira, houve espaço para que a participação popular pudesse ocorrer nas grandes instituições”. Ao atingir a dimensão institucional, a participação popular, enquanto resultado da ação educativa, suscita algumas indagações: ·Existiriam novos sujeitos envolvidos em práticas de Educação Popular em Saúde ao passarmos do “modelo dos anos setenta” - um técnico inserindo-se em uma pequena comunidade periférica, identificando lideranças e problemas mobilizadores, criando espaços de debates, apoiando as lutas emergentes e trazendo subsídios teóricos para alargar as discussões locais - para o modelo da participação institucional? ·Quais as características desses sujeitos e seus projetos de intervenção na realidade social? É o adjetivo “popular” que se apresenta como dispositivo para sensibilizar e produzir novas subjetividades nos saberes e práticas dos profissionais de saúde?
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Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Piauí. <jivo@ufpi.br>
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·Quais os espaços em que as práticas de Educação Popular em Saúde são desenvolvidas e se reproduzem? Nos indivíduos, grupos, organizações e instituições? Estas perguntas necessitam de maiores reflexões para tornarem-se problematizadoras. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que “o popular” da Educação em Saúde contém explícito ou implícito um projeto de libertação, de autonomia e de co-gestão, cujas ações voltam-se para a construção de sujeitos sociais – pessoa em busca de autonomia, disposta a correr riscos, a abrir-se ao novo, ao desconhecido, e na perspectiva de ser alguém que vive numa sociedade determinada, capaz de perceber seu papel pessoal/ profissional/social diante dos desafios colocados a cada momento (L’Abbate, 1994). Ao trabalhar com sujeitos sociais a Educação Popular em Saúde tem como missão contribuir para a construção de cenários nos quais esses sujeitos possam se movimentar em busca do futuro desejado. No Brasil, as mudanças estruturais não foram suficientes para transformações organizacionais mais profundas; entretanto, novos atores e novos elementos foram incorporados aos cenários, cada qual trazendo temáticas, apresentando experiências e desejos. Em segundo lugar, deve-se considerar que a participação popular no âmbito das instituições requer que o ator representante dos interesses das classes populares, além de sujeito social, apresente características necessárias para participar das arenas decisórias, manejando os recursos de poder que circulam no campo da Saúde, acumulando suficiente poder político para viabilizar o projeto de intervenção na Educação Popular, instrumentalizando profissionais de saúde, intelectuais e lideranças populares, para além da sensibilização. O habitus de profissionais de saúde engajados nos movimentos sociais e comprometidos com a comunidade, e valores éticos imanentes ao projeto político-pedagógico da educação popular em saúde revelam o compromisso não somente com a mudança de atitudes e comportamentos, mas com a construção do sujeito/cidadão. Finalmente, ao referir-se à população que utiliza os serviços do SUS, o “popular” evidencia o usuário participante da produção de ações de saúde em coletivos organizados (as unidades de produção) que significam espaços de um trabalho que considera tanto os interesses e desejos do agente produtor quanto necessidades sociais (Campos, 2000). Além disso, o reconhecimento do outro (usuários) possibilita a abertura das organizações prestadoras de serviços ao olhar e à participação desses usuários no processo de produção de ações de saúde, conformando momentos de excelência para a discussão e recomposição de novas práticas voltadas para promoção da saúde como resultado da ação educativa e para institucionalização de novas modalidades de gestão e gerenciamento participativos. Referências bibliográficas L´ABBATE, S. Educação em Saúde: uma nova abordagem. Cad. Saúde Pública, v.10, n.4, p.481-490, 1994. CAMPOS, G.W. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000.
Recebido para publicação em: 29/11/00. Aprovado para publicação em: 22/12/00.
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Uma nova sensibilidade nas práticas de saúde A new sensibility in healthcare practices
Monica de Assis1
Muitas mudanças têm marcado a política de saúde brasileira nos últimos vinte anos, porém a redefinição das práticas neste campo permanece sendo uma urgente necessidade. De modo sintético e ao mesmo tempo denso, Eymard ocupa-se desta questão vital no seu texto, explicitando o potencial da Educação Popular nessa construção. Enfocar este tema inclui pensar como as relações interpessoais nos serviços de saúde devem ser cuidadas para que não reproduzam dominação, mas germinem formas mais solidárias e democráticas de viver e lutar coletivamente por melhor saúde e qualidade de vida. Poucos olhares, de fato, voltam-se a esta dimensão interativa entre profissionais de saúde e população, apesar da centralidade de sua problematização para o projeto da Saúde Coletiva. Do ponto de vista da minha experiência com práticas educativas e interdisciplinares no nível assistencial, reforçaria a relevância do que Eymard denomina de prática de saúde alargada. A complexidade da saúde exige realmente inovações que superem a assepsia técnica e propiciem a interação com a dinâmica popular, visando à busca de alternativas e soluções, individuais e coletivas, para os problemas apresentados. Há inúmeras dificuldades para este tipo de investimento e que devem ser amplamente discutidas e enfrentadas. Entretanto, é este um norte valioso no sentido de inquietar e evitar acomodações aos agudos limites da prática institucional. Sobre o diálogo e seu papel na diminuição do fosso cultural entre técnicos e população, destacaria que, como via de mão dupla, além de compreender e explicitar o saber do interlocutor popular, implica facilitar a socialização e o debate do saber técnico que orienta as ações de saúde. O reforço da capacitação e autonomia das pessoas requer continuado empenho em tornar acessível a racionalidade técnica e organizativa dos serviços, para que possa ser, tanto quanto possível, entendida e abertamente questionada. Há um papel importante do profissional aí, melhor cumprido quanto mais permitir a livre expressão do outro e do “universo de resistência” (Ayres, 2000), e mais pautado for numa permanente autocrítica dos avanços e limites da ciência.
1 Núcleo de Atenção ao Idoso, Universidade Aberta da Terceira Idade, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. <monassis@terra.com.br>
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Algo mais fecunda o diálogo como possibilidade de encontro e afirmação de sujeitos. O conhecimento sozinho não opera desejos. Para transformar realidades, diz Rubem Alves (1996), é preciso amor, elemento que move o educador em seu ofício de criar mundos. Em sua visão: “Mundos a serem criados, antes de existirem como realidade, existem como fantasias de amor.” Esta é uma das sintonias que estabeleço com a idéia de que a Educação Popular em Saúde não é uma atividade a mais, mas uma nova postura que reordena a globalidade do serviço. Não é possível, de fato, apre(e)nder, ser parceiro, inventar mundos, lutar juntos, prescindindo da amorosidade. “Educar exige querer bem”, lembrava Paulo Freire (1998). Aí temos um diferencial, não suficiente mas necessário, em relação à desatenção para com o elemento humano, até hoje uma expressiva marca das práticas na área da saúde. Acrescentaria a importância de ampliação e legitimação de uma atividade a mais: os grupos educativos. Não por serem originais ou virtuosos em si mesmos. Mas pela oportunidade singular de recolocar a questão saúde no espaço coletivo, aprofundar aprendizados, fortalecer vínculos, propor abordagens lúdicas, dimensões ainda pouco valorizadas no contexto assistencial. A opção, no texto, da expressão construção histórica de uma medicina integral (p.126) leva-me a uma interrogação. Embora ela denote sentido amplo, não seria estratégico deslocar o foco do saber médico para realçar a dimensão interdisciplinar do objeto saúde? Esta idéia, aliás, é incorporada pelo autor ao propor nova harmonia na equipe de saúde, fundada no reconhecimento das limitações profissionais diante dos aspectos sociais e políticos do adoecimento humano. Tais limitações têm sido destacadas na discussão atual da Promoção da Saúde enquanto um novo paradigma das políticas de saúde em nível mundial. Embora este campo conceitual resulte da confluência de forças distintas e mobilize vigorosa polêmica filosófica e política, por exemplo, sobre o que vem a ser o bem estar humano, penso que a interface com o movimento de Educação Popular em Saúde é organicamente necessária. Até mesmo para que seu reconhecido elemento inovador e pioneiro seja preservado e fortalecido neste tempo de idéias globais. Referências bibliográficas ALVES, R. Concerto para corpo e alma. Campinas/SP: Papirus/Speculum, 1998. AYRES, J. R. C. M. Sujeito, intersubjetividade e prevenção: um ensaio filosófico.In:CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA, 6, 2000, Salvador. Anais... Salvador, 2000 (cd-rom). FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 7 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
Recebido para publicação em: 11/12/00. Aprovado para publicação em: 22/12/00.
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Neurobiologia e cognição* Neurobiology and cognition
Introdução O Prêmio Nobel de Medicina foi recentemente concedido a três cientistas que trabalham na área de Neurobiologia: Paul Greengard, Arvid Carlsson e Eric Kandel. Seus trabalhos mostram que a atividade bioquímica do cérebro tem estreitas ligações com os processos cognitivos. O Prof. Greengard estudou por quarenta anos a comunicação entre células nervosas por meio de sinais bioquímicos, mostrando que o transmissor chamado dopamina desempenha um papel central nos distúrbios cognitivos presentes na esquizofrenia e nas doenças de Parkinson e Alzheimer. O Prof. Carlsson desenvolveu estudos que conduziram ao tratamento da doença de Parkinson com levadopa, e também realizou os primeiros estudos para tratamento da depressão com inibidores da reabsorção da serotonina (dos quais uma das últimas versões é o famoso Prozac). O Prof. Kandel realizou trabalhos de grande importância teórica para o entendimento dos mecanismos moleculares subjacentes aos processos de aprendizagem e memória. Descobriu que a conversão da memória de curto prazo em memória de longo prazo requer a ativação de genes, conduzindo a uma linha de pesquisa na qual se observou que animais geneticamente modificados apresentam capacidades de aprendizagem diferenciadas.
Entrevista realizada por e-mail pelo professor Alfredo Pereira Jr., Departamento de Educação (Instituto de Biociências - Universidade Estadual Paulista, Unesp/Botucatu), entre novembro e dezembro de 2000, por ocasião da indicação do Prêmio Nobel de Medicina a cientistas da área de Neurociência.
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Para discutir o significado dos estudos em Neurobiologia para o entendimento dos processos cognitivos, inclusive a cognição humana, realizamos uma entrevista com o Prof. Dr. Armando Freitas da Rocha, um dos mais destacados pesquisadores brasileiros da área. O Prof. Armando é titular aposentado da UNICAMP, e continua em plena atividade de pesquisa, como visitante na Disciplina de Informática Médica da USP, coordenador do Núcleo de Estudos da Aprendizagem e Cognição da UNICID e em sua própria empresa, a EINA (Estudos em Inteligência Natural e Artificial); assessora diversas instituições, destacando-se o seu continuado trabalho de pesquisa sobre as bases neurobiológicas da deficiência mental, junto à APAE de Jundiaí/SP.
Interface: Para quem trabalha no âmbito das relações humanas, um dos problemas mais difíceis é a avaliação dos processos cognitivos. Noções como “inteligência” teriam um correlato na Neurociência?
Armando: Sim. A inteligência é uma propriedade de uma classe de sistemas, chamados Sistemas Inteligentes de Processamento Distribuído. É um sistema composto de agentes (por exemplo, neurônios) que se especializam na solução de uma tarefa específica (exemplo, neurônios visuais, auditivos, motores etc.) e que se associam para resolver problemas complexos. A solução de um problema complexo depende fundamentalmente de como os agentes se associam. No cérebro, a solução dos problemas complexos depende da conexão que se estabelece entre os neurônios especializados na solução de diferentes tarefas. A plasticidade dessas conexões permite que se aprenda a solucionar novos problemas. É como na vida em sociedade. Cada um de nós se especializa em uma área, e nos associamos de maneiras diferentes para resolver problemas complexos. Em um hospital, a atividade dos profissionais especializados nos vários tipos de tratamento é relativa às doenças das quais os pacientes são portadores.
Interface: Atualmente parece estar bem estabelecido entre os neurocientistas que a memória e a aprendizagem têm uma base molecular.
Armando: Os diversos neurônios, das diversas áreas cerebrais, se especializam em tarefas definidas. Assim, uns são especializados para o processamento de informação visual, outros para processamento de estímulos verbais, outros coordenam a motricidade, outros definem apetites etc. Os processamentos cerebrais dependem de como esses neurônios podem ser associados. Isto é, dependem da eficácia da transmissão sináptica entre eles.
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ENTREVISTA
O aprender, por exemplo, de uma resposta motora a uma informação verbal, depende de aumentar a eficácia da transmissão sináptica entre neurônios encarregados da análise do som verbal e aqueles encarregados de controlar a resposta motora. A memória e a aprendizagem dependem, portanto, do relacionamento entre neurônios, relacionamento este que é governado por moléculas.
Interface: E como seriam estes mecanismos?
Armando: Todo o processamento cerebral tem uma base bioquímica. A atividade elétrica da membrana depende do aporte metabólico para essa membrana, que por sua vez é controlado por vários sistemas enzimáticos, ativados pelos próprios íons envolvidos na gênese do potencial elétrico de membrana. A transmissão de informação entre os neurônios depende de uma troca molecular intensa entre esses neurônios. Assim, a chegada do pulso elétrico na terminação nervosa do neurônio pré-sináptico acarreta a entrada de cálcio, que controla a liberação de moléculas denominadas transmissores, estocadas em vesículas, nessa terminação. O transmissor é liberado pela célula pré-sináptica para agir na membrana da célula póssináptica. O acoplamento químico entre o transmissor e receptores específicos para esse transmissor, localizado na membrana da célula pós-sináptica exerce uma de duas funções: 1. Abrir um canal iônico permitindo que a atividade elétrica da célula présináptica influencie a atividade elétrica da célula pós-sináptica ou 2. Ativar uma cadeia de reações enzimáticas, chamada de via de transdução de sinal, ou simplesmente VTS.
Interface: Essa cadeia enzimática poderia interferir na expressão dos genes dos neurônios? E isso teria algum papel na cognição?
Armando: Muitas dessas VTSs podem influenciar a leitura dos genes, e dessa maneira controlar as proteínas que serão produzidas pela célula pós-sináptica. Isto é, muitas dessas VTSs determinam as proteínas a serem produzidas pela célula pós-sináptica. Muitas dessas proteínas são liberadas pela célula que as produzem, para controlar outras VTSs de células vizinhas, inclusive as células pré-sinápticas. Muitas das VTSs das células pré-sinápticas e pós-sinápticas controlam a produção do próprio transmissor e seu receptor. Dessa maneira, a atividade em uma sinápse pode definir a quantidade de mediadores e receptores utilizados na transmissão da informação nessa própria sinapse. Essa base molecular do controle da eficácia da transmissão da informação em termos das sinapses é o mecanismo básico para explicar o aprendizado e a memória.
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Interface: Essa teoria contribui para se entender o comportamento humano? Por exemplo, se ao olhar uma foto antiga me lembro de fatos da época, que não estão na foto e que não foram revividos durante muitos anos, como é possível que tal informação fosse “armazenada” nos neurônios durante este tempo?
Armando: Um episódio é uma relação entre informações sensoriais e respostas motoras e/ou emocionais, que são coerentes num tempo e num espaço. A memória deste episódio é a estabilização das sinapses entre os neurônios envolvidos nos processamentos dessas informações sensoriais e aqueles envolvidos na determinação das respostas motoras e emocionais associadas. A base molecular do aprendizado e da memória deve ser entendida dessa maneira. Isto é, a partir do controle de processos que estabilizam sinapses relevantes ao fato a ser aprendido ou memorizado. A memória biológica é uma memória endereçada por conteúdo. Em outras palavras, é definida a partir de relações entre eventos ou fatos. Dessa maneira, a evocação de um dado evento deve, em geral, facilitar a lembrança de outros fatos a ele relacionados.
Interface: E a deficiência mental pode ser detectada, diagnosticada e tratada por meios científicos, possibilitando um melhor desenvolvimento das potencialidades do deficiente?
Armando: A deficiência mental é normalmente caracterizada com o uso de testes psicométricos, ou os populares testes de QI (coeficiente de inteligência). Se o indivíduo obtém uma pontuação, em geral, menor que 70 pontos, é definido como deficiente mental. Quando se procura identificar as causas desse baixo rendimento nos testes, encontra-se uma quantidade muito grande de explicações. Nosso grupo terminou um estudo eletroencefalográfico e de ressonância magnética em um grupo de 150 crianças com QI menor que 70 pontos. Cerca de 50% dessas crianças apresentaram diversos tipos de lesões cerebrais na ressonância, mas os outros 50% tinham uma estrutura macroscópica cerebral preservada. O estudo eletroencefalográfico evidenciou, em muitas dessas crianças, uma disfunção funcional caracterizada, principalmente, pela pouca ativação de algumas áreas cerebrais ou por associações mal caracterizadas de neurônios. Entretanto, mostrou também que os erros cometidos, e o tempo utilizado na solução de um conjunto de tarefas definidas, diminuíram com o aumento da escolaridade dessas crianças. Esse aumento no desempenho foi acompanhado por uma mudança adequada da atividade cerebral. Tais resultados são muito semelhantes aos observados em crianças normais, por outros pesquisadores.
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Interface: Os conhecimentos fornecidos pela Neurociências poderiam servir para a formulação de processos de ensino mais eficientes?
Armando: Sim. Será fundamental respeitar a funcionalidade cerebral da criança quer normal, quer portadora de deficiências ou distúrbios de aprendizagem, para que ela possa desenvolver melhor toda sua capacidade cognitiva. Por exemplo, o melhor conhecimento dos circuitos neurais para a linguagem oral, visual e motora são usados, hoje, para modelar processos mais eficientes de alfabetização, que estão sendo utilizados no mundo inteiro. A aplicação dessas novas estratégias na APAE-Jundiaí tem gerado resultados muito bons, aumentando o número de crianças que estão aprendendo a ler e escrever, bem como estimulando esse aprendizado em idades mais precoces. O mais interessante é que o aprendizado nessas circunstâncias obedece regras muito semelhantes àquelas descritas para as crianças normais. Outra área que está mudando a partir do conhecimento fornecido pelas Neurociências é o ensino da matemática, que deixa de ser fundamentalmente baseado em memorização de fatos matemáticos (as famosas tabuadas), para ser centrado na compreensão das propriedades fundamentais de conjuntos e relações espaciais.
Vide Pereira Jr., Comentário a respeito das bases neurobiológicas da aprendizagem. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.2, n.2, p.233-6, 1998.
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Grande número de resultados empíricos obtidos na neurociência podem ser relevantes para a educação. Existem aplicações médicas, como a droga Ritalin, destinada a combater as desordens de atenção em crianças hiperativas, permitindo um melhor aproveitamento escolar (a qual tem sido também usada indevidamente em crianças que não apresentam este distúrbio, como meio de melhorar o rendimento, mas com possíveis danos à saúde). No estudo sobre os fundamentos da Educação, pode-se tomar como referência resultados sobre o funcionamento do cérebro para se repensar a prática educacional1 . As considerações feitas pelo Prof. Armando sugerem duas possíveis conclusões. Primeiro, uma vez que o cérebro trabalha com um processamento distribuído da informação, possuindo regiões especializadas para diferentes modalidades sensoriais, e dado que a aprendizagem e memória estão relacionadas com padrões de conexão neuronal, pode-se inferir que os processos de aprendizagem que mobilizem diferentes modalidades, induzindo atividade cerebral distribuída e coerente, tem maior possibilidade de consolidação, no sentido da formação de traços de memória robustos e suscetíveis de utilização na vida prática. Por exemplo, uma lição de biologia sobre animais, apresentada com recursos multimídia, em que as crianças
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possam ouvir os sons que esses animais produzem, ou mesmo acompanhada de uma visita de campo, teria, do ponto de vista neurobiológico, maior possibilidade de gerar aprendizagem que uma simples aula expositiva. A segunda conclusão, estreitamente vinculada à primeira, diz respeito à motivação que as crianças teriam para aprender um determinado conteúdo. Como o Prof. Armando apontou, o cérebro não está disponível para absorver qualquer informação que lhe seja apresentada; ao contrário, ele se estrutura em termos de padrões de atividade eletroquímica que definem núcleos de interesse, para os quais é dirigido o foco da atenção. Para se motivar alguém a aprender, é preciso atingir esses núcleos de interesse, ainda que de forma desestabilizadora (apresentando desafios às crenças previamente existentes no aluno). Caso a informação apresentada passe ao largo dos temas para os quais o cérebro foi previamente mobilizado, as chances de aprendizagem se tornam bastante reduzidas.
PALAVRAS-CHAVE: Neurociência; cognição; inteligência. KEYWORDS: Neuroscience; cognition; intelligence. PALABRAS-CLAVE: Neurociencia; cognición; inteligencia.
Recebido para publicação em: 01/12/00. Aprovado para publicação em: 20/12/00.
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Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos FREIRE, P. 1.ed. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
(...) quero que os leitores e leitoras de Paulo não considerem que esta é “uma obra póstuma” dele, como tanto se fazia e algumas vezes ainda se faz. Prefiro que esta seja considerada como a obra que celebra a sua VIDA. (Palavras finais da Apresentação de Ana Maria Araújo Freire, Pedagogia da indignação, p.13)
Na verdade, se a morte é inexorável, se este é o único destino certo que nos é dado, o qual não podemos mudar, portanto, nos é dado, por outro lado, o direito de celebrarmos a todos e a todas, que, na passagem pela vida humana a marcaram de alguma forma com sua presença benfazeja no mundo. Paulo foi um desses homens que venceu o ciclo de sua vida com o mundo e se pereniza com a sua presença de VIDA entre nós pelas suas qualidades de gente e de intelectual comprometido com a Verdade, não entendida esta simplesmente como atributo do ser, como coincidência com um objeto que deve ser visto como tal ou como reflexão do ser sobre si mesmo, como correspondência, enfim. Ou ainda como revelação, sensação, evidência das coisas; como conformidade do conhecimento com as suas regras; como coerência perfeita; como o que pode ser verificável empiricamente ou demonstrável ou baseada na sua efetiva utilidade; como ciência decorrente do que pode ser comprovadamente medido e proclamado como o certo e eterno, na visão cientificista. Falo no sentido mais rigoroso, mais autêntico e verdadeiro que podemos dar à
palavra Verdade. Palavra como práxis, que, mesmo incorporando algumas dessas compreensões citadas, as supera. Falo de Verdade como uma epistemologia ontológica que possibilita fazerem-se os homens e as mulheres seres autenticamente humanos. Como uma ciência político-antropológica que se preocupa fundamentalmente com o humanismo dignificador e libertador de todos os seres humanos. Como uma Filosofia Social que não se desgruda da ética humanista e abomina, portanto, todas as formas de discriminação que oprimem e excluem. Falo da Verdade como Paulo a entendia e praticava. No seu ato de pensar e escrever, Paulo teve, realmente, uma capacidade extraordinária, a de ter dado unidade ao conjunto de toda a sua obra. Coerência que fez com que nunca se afastasse de suas crenças político-ideológicas e éticopedagógicas, demonstradas em cada um dos seus escritos até a sua morte. Coerência necessária a sua autenticação como pensador das liberdades dentro dos limites da Verdade que criou. Coerência nascida da condição humana de incompletude que o fez entender a esperança como algo mais do que acreditar
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num futuro melhor, mas num futuro sonhado, projetado pelas possibilidades dos homens e mulheres poderem ser Seres Mais. Em outras palavras: na sua extensa obra Paulo teve claramente a preocupação de, ao escrever cada uma delas, partir da realidade que exigia um pensar crítico e imbricá-las nos momentos históricos nos quais ele ia refletindo para nos dar meios de reflexão e ação. Muitos dos temas-problema foram, entretanto, sendo re-trabalhados, atualizados com novas abordagens, aprofundados pelas suas novas leituras de mundo sempre que julgava necessário fazer isso. Teve esta prática durante todo o curso de sua vida, diante do crescimento da sua radicalidade de pensar e das mudanças conjunturais ou estruturais que foram ocorrendo na sociedade. Isso denota sua lúcida percepção de tempo e espaço. De como, sem perder a coerência de seu estar com mundo, ao contrário, foi elaborando o “novo” partindo da re-elaboração do “velho”, do dito e escrito por ele mesmo. Coerência que não é, pois, prender-se ao passado com medo de mudar, mas coerência que, partindo do passado, faz igualmente atualizadas as reflexões sobre os temas-problema genuinamente humanos que não devem ser esquecidos, ao contrário, devem permanecer nos fustigando crítica e esperançosamente para suas soluções. Enfim, Paulo mudou adjetivamente, mas substantivamente foi sempre o mesmo, o pedagogo dos oprimidos, o educador para a libertação. Daí a necessidade de relermos sempre seus escritos para, contraditoriamente, lendo-os, desde os mais “antigos”, os da década de cinqüenta, os do “passado”, porque infelizmente ainda presente entre nós, nos atualizarmos na leitura crítica deste presente e, assim, termos os elementos de esperança para sonharmos os inéditos viáveis de hoje, as
transformações sociais necessárias para concreta justiça, eqüidade e paz no amanhã. Entendendo que, para celebrarmos a sua VIDA, devemos perenizar intencionalmente a sua práxis político-pedagógica, entre outras possibilidades, divulgando o seu trabalho, agrupei uma coletânea de textos seus: Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Esta Pedagogia é composta de duas partes. Na primeira estão as Cartas Pedagógicas1, como Paulo mesmo as nomeou. Na segunda parte, os Outros Escritos, estão textos produzidos por Paulo no ano de 1996 e um de 1992, pela importância de seu tema “Descobrimento da América” no ano em que o Brasil comemorava oficialmente o seu “descobrimento”. Participam, também, deste livro, três intelectuais brasileiros, aos quais junto agora o filósofo argentino Cirigliano, todos amigos pessoais de Paulo e identificados sobretudo com o seu pensamento dialógico libertador. Destacarei, de cada um deles, o que disseram sobre a esperança e coerência em Paulo. Um deles, outro mestre nosso, o professor Antonio Candido, escreveu para a “orelha” do mesmo, com sua permanente e serena lucidez: De fato, é freqüente lermos e ouvirmos que o povo não deve ser tutelado pelas elites, devendo para isso tornar-se ele próprio agente de seu destino. Mas como? A pedagogia radical de Paulo Freire aponta o caminho com extraordinária lucidez e coragem, ao fazer do ato educacional um processo dialético no qual o educando constrói o conhecimento a partir do contexto, fundindo aprendizagem e experiência social numa aventura de aquisição da
Teriam sido de dez a 12 Cartas, como planejara Paulo, se a morte não o tivesse levado, em 02 de maio de 1997. Por isso a terceira delas ficou incompleta.
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liberdade. Por isso o seu famoso
freireana: não se educa sem a
método é o das conquistas mais
capacidade de se indignar diante das
positivas do pensamento humanizador
injustiças”. (grifos meus)
neste século.(...) homem que viveu intensamente as suas idéias, lutou por elas, pagou por elas um alto preço, sem temer, sem capitular,
Por fim as palavras de Gustavo F. J. Cirigliano, amigo trazido “de empréstimo” para esta resenha2 :
sem mudar suas convicções. (grifos meus)
O que caracteriza Paulo Freire é a sua fidelidade consigo mesmo, sua lealdade
De Balduíno Andreola, que fez muito freireanamente do Prefácio do livro uma carta-resposta a Paulo, ou uma Carta-Prefácio, como acertadamente o chamou, destaco passagem de seu texto carregada de agudeza de análise e sensibilidade humanista: Paulo, a leitura de tuas Cartas pedagógicas foi para mim como a imersão numa imensa onda cósmica de ânimo, de esperança e do sentimento de que vale a pena persistir na luta.
com o próprio caminho. Não perdeu a palavra, não debandou-se para os novos tempos da globalização, do neoliberalismo e do mercado (...).
A seguir, sintetizo alguns pontos fundamentais de cada um dos ensaios contidos nesta Pedagogia da indignação, nos quais os seus leitores e leitoras poderão encontrar a tenacidade e a coerência no refazer, a lucidez e a esperança na sabedoria, a coragem e criatividade na capacidade de ousar de Paulo.
Sinceramente há momentos em que a desesperança e a depressão parecem
DA PRIMEIRA CARTA: DO ESPÍRITO DESTE LIVRO.
prevalecer. Mas ao sentir-te e ao
Paulo, a tendo escrito especialmente para pais e mães, não esqueceu de contar-lhes e advertir-lhes sobre a questão da autoridade e dos limites inerentes a esta, do risco do ato de educar para a liberdade, relacionando-o com a inovação da história e da cultura e com a possibilidade de podermos dar nomes às coisas, de decidir, perceber, escolher, valorar e de eticizar o mundo. Fala-nos sobre a disciplina da vontade e da recusa à tentação da autocomplacência [que] nos forjam como sujeitos éticos. Sobre a necessidade do desenvolvimento da mentalidade democrática; da coerência; da pureza (não do puritanismo!); de negar o discurso ideológico da impossibilidade de mudar o mundo ou o discurso ideológico da inviabilização do possível; do ato de resistir e não fraquejar; da
ouvir-te inteiramente fiel até o fim na tua opção de lutar, denunciando e anunciando com a veemência de sempre, tais sentimentos se esvaem. (p. 18) (grifos meus)
Alípio Casali, restrito a uma pequena quarta capa, condensou impecavelmente suas idéias e nos disse com poucas palavras sobre essa unidade da obra de Paulo presente até a Pedagogia da indignação: Toda a sua obra aqui se encurva, e reencontra o essencial da educação o diálogo que compartilha e provoca (..) velhos e novos temas se entrelaçam e realçam a antiga verdade
2 Em resenha sobre a Pedagogia da indignação publicada na Argentina nos jornais El tiempo, em 2 de julho de 2000 e Gaceta de la UNICEN, no. 62, de setembro de 2000, e, nas revistas Situacion, no. 8, 2000 e Vivencia Educativa, no. 125, julho 2000. (tradução minha).
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metodização da curiosidade. Das artimanhas do “pragmatismo” neoliberal e do treinamento no lugar da formação. De “uma das primordiais tarefas da pedagogia crítica radical libertadora [que] é trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade injusta” (p.43). Declara querer transparecer com essas Cartas sua abertura ao diálogo e seu gosto de convivência com o diferente e, com sua humildade habitual, o seu gosto de ser gente!
DA SEGUNDA CARTA: DO DIREITO E DO DEVER DE MUDAR O MUNDO. Paulo escreveu logo no princípio desta Carta não ter medo dos sorrisos irônicos dos que não acreditam que mudar é difícil, mas é possível. Jamais vi, acompanhando-o nas suas “peregrinações pelo mundo” intimidar-se de dizer, pela sua coerência, cortesmente, mesmo diante de situações mais adversas, o que entendia ser a Verdade. Nesta Carta diz que “os sonhos são projetos pelos quais se luta”, na legitimidade do “ímpeto de rebeldia contra a agressiva injustiça” instaurada pelo secular sistema latifundiário brasileiro. Assim, fala da importância da militância do M.S.T.; da necessidade do testemunho dos educadores(as) progressistas de respeito à dignidade do outra e da outra; da diferença entre condicionamento e determinação; da ética universal do ser humano. Fala da necessidade das crianças crescerem exercitando-se no pensar, no indagar, no duvidar, no decidir, “na assunção ética de limites necessários”. Termina esta Carta conclamando “Marchas” — à exemplo da dos Sem Terra que entraram em Brasília em abril de 1997 — dos desempregados; dos injustiçados; dos que protestam contra a impunidade; dos que clamam contra a violência, contra a mentira e o desrespeito à coisa pública; dos sem-teto, sem-escola, semhospital, dos renegados. “A marcha esperançosa dos que sabem que mudar é possível” (p.61).
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DA TERCEIRA CARTA: DO ASSASSINATO DE GALDINO JESUS DOS SANTOS- ÍNDIO PATOXÓ. As últimas reflexões sistematizadas de Paulo nesta carta revelam toda a sua generosidade ontológica e compaixão ética pelos seres humanos que o fizeram o filósofo substantivamente humanista. Todo o seu amor pela VIDA que traduz todo o gosto que tinha de viver. Terminou-a, pois, como viveu, conclamando o amor, a justiça, a construção de uma sociedade fraterna e solidária, democrática. Expondo-se como gente, mostrando sua gentidade, como gostava de dizer: Desrespeitanto os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outro. (p.67)
Esta Carta nos oferece, de modo especial, subsídios para reflexões sobre a ética universal dos seres humanos e a valorização do diferente. Radicando-se no doloroso e abominável assassinato de Galdino, o objetivo de Paulo foi nos levar a pensarmos também na questão dos valores, no modelo políticoeconômico no qual os seus defensores, de modo geral, não se perturbam como são tratadas as pessoas desprivilegiadas, as gentes excluídas do mercado, consideradas apenas “Uma espécie de sombra inferior no mundo. Inferior e incômoda, incômoda e ofensiva”, como denunciou.
DO DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA. Paulo começa afirmando que “(...)o passado não se muda. Compreende-se, recusa-se, aceita-se, mas não se muda” (p.73). Analisa o fato apontando a “malvadeza intrínseca a qualquer forma de colonialismo, de invasão, de espoliação” (p.74). Assevera que, na verdade, sofremos uma conquista, uma invasão que não deve ser amaciada numa visão crítica e que dele, nós latino-americanos, deveríamos e podemos
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tirar os ensinamentos dos e das que tiveram e têm a ousadia, a coragem e a capacidade de lutar para nossa autonomia e dignidade enquanto povos e nação.
DA ALFABETIZAÇÃO E MISÉRIA. Paulo insiste em que a realidade não é inexorável, de que de um domínio humano da determinação dificilmente se poderia falar de opções, de decisão, de liberdade, de ética. Que a história é possibilidade e não determinação. Nos faz entender que a ordem estabelecida injusta é indecente, que a “miséria é uma imoralidade” não, obviamente sob o ponto de vista moral, mas ético, estético, ontológico, antropológico e político. Afirma não por teimosia mas diante da natureza ontológica dos humanos que “mudar é difícil mas possível” e que há “legitimidade da raiva contra a docilidade fatalista diante da negação das gentes”.
DOS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO DE ADULTOS ANTE A NOVA REESTRUTURAÇÃO TECNOLÓGICA. Jamais pude pensar a prática
formação genuinamente humana. Alerta para a compreensão crítica das tecnologias, que não devem ser repudiadas, mas que devem ser passadas pelo nosso crivo político e ético. Re-enfatiza as suas clássicas perguntas: o quê? O para quê? O em favor de quê e de quem? O contra quê e contra quem? No exercício de pensar o tempo, a técnica e o conhecimento.
DA ALFABETIZAÇÃO EM TELEVISÃO. Este tema, diz Paulo, nos remete à curiosidade humana e à leitura do mundo, anterior à leitura da palavra. Fala da curiosidade ingênua que leva ao “saber de pura experiência feito”, o senso comum e da curiosidade epistemológica que entende nascer da criticização da curiosidade ingênua pelo rigor metodológico do objeto em questão. Entre uma e outra há diferença de qualidade e não de essência, afirma. Conclui dizendo que os educadores progressistas não podem desconhecer a televisão. Que ela não é nem “um demônio que nos espreita para nos esmagar” nem “um instrumento que nos salva”. Devemos usá-la, sobretudo, discuti-la.
educativa, de que a educação de adultos e a alfabetização são
DA EDUCAÇÃO E ESPERANÇA.
capítulos, intocada pela questão dos
Paulo volta a afirmar que a vida se alonga na existência e que essa eticiza o mundo. Fala do papel da consciência humana no lugar do “ser aí” dos outros animais “aderidos ao mundo” nos dá a “responsabilidade no moverme no mundo”. Da diferença entre condicionamento e determinação. Da “natureza esperançada da educação”, (d)a “matriz da esperança é a mesma da educabilidade do ser humano: o inacabamento de seu ser de que se tornou consciente”. Critica as concepções fatalistas da História, o poder da ideologia liberal, cuja ética perversa se funda nas leis do mercado. Reafirma sua crença de que “mudar é difícil mas é possível” e que sua luta “pelo sonho, pela utopia, pela esperança de uma Pedagogia crítica. “Esta não é uma luta vã” (p.116).
valores, portanto da ética, pela questão dos sonhos e da utopia, quer dizer das opções políticas, pela questão do conhecimento e da boniteza, isto é da gnosiologia e da estética. (p.89)
Explicita mais cuidadosamente a sua compreensão da politicidade da educação, da impossibilidade de dicotomizar ler de escrever e da unidade entre arte e educação. Enfatiza a necessidade de apreensão do objeto para a experiência cognitiva verdadeira, entendendo que a memorização do conhecimento se constitui no ato mesmo de sua produção. Critica a negação das ideologias, o neoliberalismo como ‘uma fatalidade do fim do século”, os pragmatismos, o treinamento no lugar da
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DA DENÚNCIA, ANÚNCIO, PROFECIA, UTOPIA E SONHO. Paulo fala da profecia e do profeta que é o que, fundado no que vive, no que vê, no que escuta, no que percebe, no que intelige (...) atento aos sinais que procura compreender, apoiado na leitura do mundo e das palavras(...) tornando-se assim cada vez mais uma presença no
solidariedade e do desemprego; da violência e da necessidade da justiça para se criar a paz; das práticas negadoras da vida, entre outras, as que destroem o meio ambiente. Denuncia a transgressão da ética e a malvadez da ética do mercado. Termina o ensaio dizendo da necessidade da luta contra o desrespeito à coisa pública e contra a mentira e falta de escrúpulo, que estabelecem momentos “de desencanto, mas sem jamais perder a esperança” (p.134).
mundo à altura de seu tempo, fala, quase adivinhando, na verdade intuindo, do que pode ocorrer nesta ou naquela dimensão da experiência histórico-social. (p.118)
Falava de si próprio?!. Diz que o pensamento profético é também utópico, anuncia um novo ao denunciar o velho, porque na “real profecia, o futuro não é inexorável, é problemático” (p.119). Na responsabilidade como exigência fundamental da liberdade. Critica a “política de fazer coisas” sem as perguntas fundamentais: para que? em favor de quem?..; os partidos políticos interessados em ocultar as verdades atrelados ao “rouba, mas faz”. Fala do “núcleo fundamental da vida”, a liberdade e o medo de perdê-la, da
PALAVRAS-CHAVE: Educação; cidadania; teoria pedagógica. KEY WORDS: Education; citizenship; pedagogical theory. PALABRAS-CLAVE: Educación; ciudadanía; teoría pedagógica.
Recebido para publicação em: 18/01/01. Aprovado para publicação em: 24/01/01.
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Em síntese, todos os ensaios da Pedagogia da indignação, embora com diferentes temas, estão molhados, como ele mesmo gostava de dizer, de coerência e de esperança, como também da sua mais justa raiva ou indignação, que, dialeticamente relacionada com a sua amorosidade, levam, como ele mesmo entendia, às ações éticas capazes de denunciarem o feio, o injusto e o perverso e anunciarem os “inéditos-viáveis” embutidos nas utopias esperançosas, nos sonhos humanistas que deveremos tornar possíveis de democracia, de justiça e de tolerância. Ana Maria Araújo Freire Organizadora do livro Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos.
Construindo um novo curso em Saúde Pública para o ensino de graduação do terceiro ano médico da Faculdade de Medicina de Botucatu Building a new Public Health discipline to the medical undergraduation course of the College of Medicine, Botucatu/Unesp
Em 1997 um novo currículo foi implantado na Faculdade de Medicina de Botucatu. Os docentes do Departamento de Saíde Pública (DSP) envolveram-se neste projeto de reformulação curricular, propondo-se a integrar, rever e reestruturar disciplinas e contribuir para a formulação de um plano de integração Universidade, Serviço Local de Saúde e Comunidade (Projeto UNI-Botucatu), acreditando na possibilidade de mudança. Em 1998, um grupo de docentes do DSP iniciou a construção de um novo curso - Saúde Coletiva III - a ser ministrado ao terceiro ano da graduação médica com a participação de cinco disciplinas: Administração em Saúde Pública, Ciências Sociais, Epidemiologia, Ética e Nutrição em Saúde Pública. Este curso foi oferecido pela primeira vez em 1999, organizado sob três núcleos temáticos: Problemas em Saúde Pública; Nutrição em Saúde Pública; Planejamento em Saúde. Todo o processo de construção do curso foi realizado coletivamente, com a participação de nove professores envolvidos na formulação, desenvolvimento e execução inicial do mesmo, avaliando-se experiências anteriores como: ensino fragmentado, aulas essencialmente expositivas, desvalorização do conteúdo por estudantes. O modelo de ensino centrou-se na problematização de situações concretas vivenciadas na prática da Saúde Pública,
trabalhando em áreas de abrangência de Centros de Saúde do Município de Botucatu, Serviços e Organizações de Saúde da região e em sala de aula, estimulando a capacidade de argumentação dos estudantes. Privilegiou-se o trabalho em pequenos grupos, com orientação docente. O objetivo desta tese foi descrever e avaliar o primeiro ano de implantação do curso Saúde Coletiva III, propondo apresentar os ajustes necessários para sua continuidade. Na descrição do curso foram utilizados roteiros de aula, anotações, textos, relatórios, diários de classe e atas de reunião de professores. Para avaliação do curso trabalhou-se com: A) a avaliação do estudante utilizando-se dois instrumentos: 1) um questionário fechado sobre qualidade de ensino e do desempenho dos professores (modificado de SEEQ: Students’ Evaluation of Educational Quality) com escala de 5 pontos (de muito ruim a muito bom) contendo os seguintes itens: aprendizado e valores; entusiasmo dos professores; organização do curso; interação em grupo; conteúdo; e aspectos gerais. Ao término de cada núcleo temático o questionário foi entregue aos 81 alunos do curso; 2) ao final do curso todos os estudantes receberam um questionário com questões abertas sobre os maiores problemas, os aspectos mais relevantes e propostas/
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sugestões para continuidade do curso, além da solicitação de elaboração de uma carta de apresentação do curso aos alunos que o estariam cursando no ano seguinte; B) a autoavaliação dos professores com relação aos itens: capacitação docente, desempenho, facilidades e dificuldades para atuar neste curso e aproveitamento do mesmo no desempenho de outras atividades profissionais. Os três núcleos temáticos foram estruturados como módulos separados, havendo, no entanto, uma preocupação de se estabelecer pontes de relações entre os mesmos. A turma foi dividida em nove grupos, cada qual com nove alunos e um professor orientador. A avaliação foi uma constante preocupação no curso. Na avaliação dos estudantes dois terços consideraram bons o aprendizado e o processo de desenvolvimento do curso; dois terços deles consideraram muito bom ou bom o padrão de envolvimento dos professores; sobre a interação em grupo, três quartos dos alunos a avaliaram como boa ou muito boa, principalmente em relação à participação ativa nas discussões em grupo. De todos os aspectos estudados, o primeiro núcleo temático - Problemas em Saúde Pública - foi o mais bem avaliado, apresentando as maiores pontuações. Os professores e os estudantes valorizaram a metodologia do curso, a oportunidade de trabalharem em grupo na forma realizada e a importância de um contato tão próximo do professor orientador. O trabalho de conhecimento e
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vivência no Sistema Único de Saúde, SUS, também foi valorizado, ligando-o à possibilidade de, com o uso da metodologia do planejamento estratégico (bastante enfatizado no curso), procurar-se não só conhecer a realidade, como também buscar estratégias para enfrentá-la. Foi considerado um entrave, por alunos e professores, a excessiva substituição dos docentes, por reconhecerem que os substitutos não estavam adequadamente capacitados ou mesmo não conheciam profundamente a proposta do curso. Pode-se observar que, se por um lado, a formulação deste curso é resultado de uma proposta ampla de reformulação curricular ocorrida na Faculdade de Medicina de Botucatu nos anos que o antecederam, chegada a hora de executá-lo, a reformulação curricular já estava em curso, porém a mesma não se efetivou da maneira como havia sido proposta. Desta forma, esta primeira concepção de Curso de Saúde Coletiva, dado de forma única, integrando disciplinas ou ainda tornando-as um único curso ocorreu muito mais por um esforço interno do Departamento de Saúde Pública do que pela proposta geral de reformulação curricular da instituição. Disto decorre a percepção de um alto grau de autonomia e independência dos formuladores do curso no sentido de “abrirem asas a imaginação” e formularem um curso de acordo com seus princípios básicos de Saúde Coletiva, Ética e usos de metodologias educacionais, sem a necessidade de discussão
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de cada passo com a instituição. A formulação do curso num intenso processo de discussão, durante sua execução, permitiu uma revisão contínua das proposições previstas inicialmente. Foi possível ainda constatar que, dado todo o trabalho exigido do docente, na instituição, não seria possível manter o mesmo grupo de professores durante todo o curso e, neste sentido, trabalhou-se para encontrar novos professores e capacitá-los da melhor forma possível. Esta questão aparece como um problema tanto na fala dos alunos como na dos professores e para o futuro deve ser mais bem avaliada, pois, na condução do curso, isto gerou insegurança para todos. Todos os núcleos temáticos foram bem avaliados pelos alunos, notando-se que o aprendizado na percepção dos estudantes foi adequado. No entanto, há de se refletir sobre a percepção de que, no geral, o primeiro foi o mais bem avaliado e, se comparado aos demais, pode-se notar que foi havendo uma queda no sentido do muito bom e bom para bom e regular. Isto pode ser explicado pelo fato de o primeiro grupo de professores estar mais capacitado para ministrar o curso, já que se tratava de seus formuladores. A principal missão colocada aos formuladores deste curso voltou-
se à percepção de utilização de estratégias que pudessem proporcionar ao estudante de Medicina a valorização do campo da Saúde Coletiva, como um importante componente da educação médica. No entanto, o contexto geral vivenciado no Brasil dificulta esta aspiração, já que a todo momento só são apresentadas, principalmente na mídia, as falhas, o “caos”, em que se encontra o SUS, inclusive na Atenção Primária à Saúde. Como o curso valorizou o trabalho no SUS, e em especial na atenção primária, o que foi reconhecido e valorizado pelos estudantes, talvez este seja um dos pontos mais fortes enquanto resultados objetivados e alcançados pelo curso. Uma das questões mais gratificantes e entusiasmantes deste curso, para os alunos e professores, foi o trabalho com novas tecnologias. Com estas ponderações e com a necessidade de revisão e melhor organização futura é preciso salientar que participar do curso gerou a percepção da possibilidade de mudança de ensino e a expectativa de também poder contaminar a instituição com nossos êxitos. Eliana Goldfarb Cyrino Tese de Mestrado, 2000 Department of Medical Education University of Illinois at Chicago
PALAVRAS-CHAVE: ensino médico; currículo; inovação metodológica. KEYWORDS: medical education; curriculum; methodological innovation. PALABRAS-CLAVE: educación medica; curriculum; innovación metodologica.
Recebido para publicação em: 19/01/01. Aprovado para publicação em: 24/01/01.
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Comportamento comunicativo do docente de Enfermagem e sua influência na aprendizagem do educando The Nursing professor’s behavior in communication and its influence on student learning
Este estudo é uma reflexão sobre o ensino de Enfermagem e a motivação que o aluno de graduação tem para o processo de ensino-aprendizagem. Sabendo-se que a motivação é uma condição interna do indivíduo e que o aprendizado não ocorre de forma isolada dos sentimentos ou das relações interpessoais e, sim, por processos carregados de afetividade, diferenças culturais, crenças e valores, realizamos este estudo com o objetivo de apreender os significados atribuídos à comunicação docente-discente no ensino de Enfermagem em sala de aula. O referencial teórico e metodológico desta pesquisa incluiu: a teoria de Rogers (1973), para justificar a maneira de perceber o processo de ensinoaprendizagem quando este dá ênfase às relações interpessoais e ao crescimento que delas resulta, centrado no indivíduo e em seus processos de construção e organização pessoal da realidade; e a proposta de observação dos sinais não-verbais de Silva (1996), quando descreve signos possíveis de serem identificados em nossa cultura de sala de aula. A pesquisa foi desenvolvida como estudo transversal e de campo das interações entre docente e alunos em sala de aula. Podemos afirmar, a partir dos resultados obtidos, que existem comportamentos comunicativos verbais e não-verbais que podem motivar o aluno a aprender. Os sujeitos pesquisados manifestaram-se referindo como aspectos
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facilitadores para o aprendizado: a dinâmica realizada em aula, a boa comunicação professor-aluno e o conteúdo relevante; como aspectos dificultadores: o tempo reduzido para a matéria, a inibição de alguns alunos e a falta de interesse pelo tema. Quando se observaram e observaram o outro, os sujeitos demonstraram a existência de coerência entre o verbal e não-verbal com gestos, posturas, expressões faciais e relações de distância interpessoal mantidas, complementando e até substituindo o verbal, além de demonstrar sentimentos. Os resultados deste estudo fazem-nos acreditar que a sala de aula pode ser um lugar de demonstração de emoção, descontração, afetividade e respeito pelo outro, onde as diferenças individuais devem ser reconhecidas, respeitadas e valorizadas, pois estimulam a construção do conhecimento. Eliana Mara Rocha Dissertação de Mestrado, 1999 Programa de Pós-Graduação em Saúde do Adulto da Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Enfermagem; aprendizagem; comunicação não-verbal; comunicação em Enfermagem. KEYWORDS: Nursing teaching; learning; non-verbal communication; Nursing communication. PALABRAS-CLAVE:Enseñanza de Enfermería; aprendizaje; comunicación no verbal; comunicación en enfermería. Recebido para publicação em: 02/10/00. Aprovado para publicação em: 20/10/00.
Arte, muitos são os sentidos ...* Antonio Pithon Cyrino
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O que podemos contra todas as forças que ao nos atravessarem nos querem fracos, tristes, servos e tolos? Criar!: a resposta alegre! (Deleuze, 1992)
O Centro de Saúde Escola (CSE) da Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp abriu em novembro de 2.000 sua Mostra Permanente de Arte. Luz, cores, formas, poesia... agora ocupam o espaço institucional, enquanto fonte propulsora da ação criativa e do jogo lúdico daqueles que contemplam, admiram, pensam, experimentam. A Mostra, enquanto exposição pública dos trabalhos, é parte de um projeto que tem como preocupação central a comunicação que o serviço estabelece com seus usuários e a sociedade. Buscou ampliar esta comunicação estreitando as interfaces entre Arte e Saúde. O Projeto Mostra Permanente de Arte viabilizou-se com a contribuição e criatividade de quatro artistas plásticos de Botucatu2 que durante dois anos trabalharam em sua produção. Este projeto permitiu, ainda, que estes artistas realizassem oficinas de arte com dois grupos de usuários da Saúde Mental do CSE, o Ateliê Planeta Arte e o Grupo Reviver.
Esta vivência certamente permitiu a esses grupos a expressão de outros dizeres, bem como tecer muitos fios na rede social que os integra e os fortalece como cidadãos. Com a Mostra Permanente de Arte, o CSE reafirmou sua preocupação crescente em discutir e implementar novas práticas de comunicação, construindo novos espaços de cidadania e trazendo a Arte em seus múltiplos sentidos para mobilizar nos usuários a expressão e a alegria de ver e dizer. Pois, como observa Laymert Garcia dos Santos (1989, p.13): Dizer é momento de produção de afirmação. Momento de expulsão, de esconjuro, de exorcismo das forças da morte que se apropriam da energia vital. Dizer é momento de luta feroz e surda, de sopro de vida. Dizer já é um início de vitória - mas não se diz o começa da luta, este é indizível.
*
Coordenaram a Mostra Permanente de Arte: Antonio Pithon Cyrino, Elisete Alvarenga, Maria Eunice Carreiro Lima e Martha Helena Dias Araújo de Andrade.
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Professor do Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista/Unesp. Diretor do Centro de Saúde Escola. <acyrino@fmb.unesp.br>
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Elisete Alvarenga, Luciana Beth, Mônica Stein e Olavo Pupo.
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NOTAS BREVES
Referências bibliográficas DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. SANTOS, L.G. Tempo de ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
PALAVRAS-CHAVE: Arte; Comunicação; serviços de Saúde. KEY WORDS: Art; Communication; Healthcare services. PALABRAS-CLAVE: Arte; Comunicación; servicios de salud
Recebido para publicação em: 14/01/01. Aprovado para publicação em: 24/01/01.
Trabalhos dos grupos Planeta Arte e Reviver, 2000, CSE, Botucatu
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Implementando as novas diretrizes curriculares para a educação médica: o que nos ensina o caso de Harvard? Implementing the new curricular guidelines for medical education: what does the Harvard case teach us? Adriana Cavalcanti de Aguiar1
O atual momento da educação médica no Brasil Podemos situar o atual movimento de transformação da educação médica no contexto da redemocratização brasileira, por promover avanços na garantia do direito constitucional à saúde, por meio de mudanças nas relações sociais implicadas na educação e prática médicas. O próprio processo de definição de diretrizes curriculares foi um exercício de democracia. A insatisfação de usuários do sistema de saúde expressa pelos movimentos sociais encontrou eco nas lideranças acadêmicas, organizadas em torno da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), da Comissão Interistitucional Nacional de Avaliação da Educação Médica (CINAEM), e da Rede UNIIDA. Sucessivos fóruns de discussão congregaram alunos, docentes e gestores, acumulando credibilidade e adquirindo legitimidade perante a sociedade e o governo federal. Isto levou o Ministério da Educação a recentemente assumir o compromisso de encaminhar ao Conselho Nacional de Educação diretrizes curriculares para a educação médica consensuais na comunidade acadêmica da área, e que colocam em pauta o estabelecimento de um novo pacto entre escolas médicas e sociedade. As novas diretrizes avançam na superação do chamado modelo Flexneriano, em que a base científica foi descolada da prática médica, promovendo a fragmentação do conhecimento, com negligência de aspectos psicossociais e culturais que permeiam o exercício da Medicina. Além disso, a educação médica tradicional, centrada no professor, deixa a desejar na preparação de profissionais críticos e aptos a lidar com mudanças rápidas e constantes na base de conhecimento.
Coordenadora Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Estácio de Sá. Consultora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio do Rio de Janeiro. Membro do Grupo Coordenador da Rede de Apoio à Educação Médica (RAEM), da Associação Brasileira de Educação Médica. <adrianaaguiar@openlink.com.br>
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Na nova proposta, as competências a serem demonstradas pelos egressos incluem “dominar os conhecimentos científicos básicos de natureza biopsicossocioambiental subjacentes à prática médica”, necessários para um exercício profissional não-autoritário, capaz de negociar condutas e intervenções a partir da escuta atenta das perspectivas de pacientes, famílias e comunidades. Os profissionais que nossas escolas médicas estarão formando deverão estar aptos a “atuar na proteção e na promoção da saúde e na prevenção de doenças, bem como no tratamento e na reabilitação dos problemas de saúde”, adotando uma perspectiva integral. Para tal, os conteúdos propugnados incluem os “determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais, nos níveis individual e coletivo, do processo saúde-doença”, sendo o “eixo do desenvolvimento curricular ... baseado nas necessidades de saúde dos indivíduos e das populações, referidas pelo usuário e identificadas pelo setor saúde”. Quanto aos processos de ensino-aprendizagem, as novas diretrizes fomentam “a participação ativa do aluno na construção do conhecimento e a integração entre os conteúdos, além de estimular a interação entre o ensino, a pesquisa e a extensão”, contribuindo para reconstruir conexões entre conhecimentos provenientes das ciências básicas, clínicas e humanas, e fortalecendo uma postura ativa e crítica de nossos futuros médicos, a partir da ênfase no aprendizado baseado na prática, e em vários “cenários”, não apenas o hospital universitário, “permitindo ao aluno conhecer ativamente situações variadas de viver a vida, organizar cuidados à saúde e trabalhar em equipe multiprofissional” além de “buscar a educação permanente, especialmente a auto-aprendizagem”. Com a formulação dessas diretrizes e a partir do compromisso governamental de honrá-las, cabe-nos agora a tarefa da implementação, respeitando as singularidades de nossas escolas, e utilizando da melhor forma os recursos que já existem. Parte significativa deste desafio é a ampliação do apoio dos docentes e gestores nas academias médicas. Sabemos que as resistências são expressivas. Para muitos é difícil abrir-se para o novo. Outros estão contentes repetindo o que seus próprios mestres faziam. Há os que manifestam insatisfação, mas não confiam na possibilidade de mudar o contexto institucional em que trabalham. Para lidarmos com as dúvidas de nossos colegas docentes e com nossos próprios questionamentos, proponho que examinemos um caso de inovação curricular que completou quinze anos.
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Refletindo sobre o caso de Harvard Embora o movimento de transformação da educação médica no Brasil seja consonante com iniciativas análogas efetuadas em outros contextos nacionais, na maioria dos países ocidentais a excelência acadêmica se mede pela capacidade de pesquisar e, principalmente, de publicar artigos em boas revistas especializadas. É provável que nossas melhores instituições estejam certas da importância da pesquisa, e menos convencidas da necessidade de aprimorar o ensino. Um caso interessante é o da Universidade Harvard, instituição de excelência em pesquisa, que conseguiu avançar no aprimoramento do ensino médico. Ao longo de meu programa de doutorado, quando estudei as conseqüências das mudanças curriculares implementadas na Escola de Medicina de Harvard (HMS) para os docentes, uma pergunta se colocou desde o início: por que motivos a HMS, que já ofereceu ao mundo 15 agraciados com o Prêmio Nobel, que é disputada num processo de seleção rigorosíssimo, e onde os alunos admitidos pagam uma fortuna para se formarem, haveria de se preocupar em mudar? A mudança curricular da HMS ocorreu no contexto de ampliação dos questionamentos sobre os rumos da prática e da educação médica americanas, fomentados pelos movimentos sociais e sistematizados pela Association of American Medical Colleges (AAMC). No documento intitulado “Médicos para o Século XXI” (1984) a AAMC enfatizava pontos que também orientam nossas novas diretrizes: a aquisição de atitudes e habilidades adequadas à prática profissional é tão importante quanto a aquisição de conhecimento; os estudantes devem ser preparados para a promoção da saúde e prevenção da doença, junto a indivíduos e comunidades; a escola deve preparar seus alunos para a educação permanente, o que inclui a habilidade de identificar, formular e resolver problemas e avaliar informação nova de forma crítica; o processo ensino-aprendizagem deve centrar-se no estudante, com menos ênfase na memorização; o foco da aprendizagem deve ser as necessidades dos pacientes e suas famílias, com o docente exercendo papel de mentor. Um ponto importante do documento da AAMC ao qual voltarei posteriormente é a conclusão que “a motivação dos docentes de devotar significativo tempo e energia para um programa integrado de educação médica dependerá de um explícito reconhecimento institucional da importância desta missão institucional fundamental” (p. 24). Em outras palavras, o processo de transformação da educação médica, por demandar entusiasmo e tempo dos professores, demanda também mecanismos de incentivo à carreira docente que promovam a excelência no ensino a um patamar compatível com o alcançado pela excelência na pesquisa. Ainda no fim dos anos setenta, sob a coordenação do diretor Daniel Tosteson, o diagnóstico da situação elaborado
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pela comunidade acadêmica da HMS apontava para um quadro bastante semelhante ao que atualmente presenciamos em muitas escolas brasileiras: uma massa de estudantes “anônimos” sendo “assoberbada” por informações “fragmentadas” transmitidas em aulas expositivas e de qualidade “variável”, num processo que valorizava mais a memorização do que o raciocínio crítico (Aldestein & Ramos 1994). Com este diagnóstico, em 1985 a HMS implementou um currículo inovador, inicialmente como projeto-piloto, sendo estendido para toda a escola dois anos depois. Conhecido como “New Pathway to Medical Education”, o novo currículo tinha como estratégias a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), o processo ensino-aprendizagem centrado no estudante e o resgate da relação médico-paciente como elemento agregador de conteúdos biopsicossociais. Embora outras escolas americanas, canadenses e européias já houvessem adotado inovações até mais radicais, a adoção do novo modelo na HMS marcou a incorporação de um novo modelo no cerne das instituições de ensino e pesquisa de indiscutível prestígio, gerando uma significativa pressão para mudanças em outras instituições. Segundo Armstrong (1991), os “três objetivos pedagógicos” que nortearam a mudança foram: “conhecimento, habilidades e sensibilidade ..., [entendida como] uma consciência ética e abertura para o mundo do paciente” (p. 138). A criação de canais de comunicação e persuasão junto ao corpo docente foi enfatizada, mas mesmo assim “considerável resistência, ceticismo, e mesmo hostilidade explícita emergiram” (Moore 1991, p.81). Docentes manifestavam preocupação com o “caráter aparentemente assistemático das inovações” e com a “falta de reconhecimento acadêmico” por seus esforços (p.81). Durante a elaboração de minha tese de doutorado (Aguiar, 2000) pude interagir com docentes e gestores da HMS, discutindo a experiência dos tutores na seqüência de cursos sobre a relação médico-paciente, que alia o ensino das habilidades necessárias à prática, com a reflexão sobre as forças culturais, sociais, econômicas e psicológicas que afetam o cuidado aos pacientes (PD1 Course Guide). Pude apreender que, atualmente, a maioria dos tutores que entrevistei aprecia o trabalho, embora a função docente seja hoje mais complexa que no passado. Eles reportam gratificar-se com a interação mais próxima com os alunos, quando observam seu rápido desenvolvimento profissional e pessoal. O curso estabeleceu um expressivo grau de sofisticação quanto ao ensino das habilidades e atitudes, que são hoje objeto de avaliações rigorosas, devendo os alunos demonstrar maestria na relação com pacientes, colegas e situações-problema. Percebe-se hoje um equilíbrio dinâmico entre forças que enfatizam a base biomédica e os humanistas, possível em função da seriedade e consistência do trabalho destes últimos e ao seu investimento em capacitação docente. Um fator para a “diminuição das tensões junto aos docentes” foi a criação, em 1989, da “teacher-clinician track”, uma nova vertente da carreira acadêmica que gratifica liderança e excelência no ensino, consideradas como critério para o avanço na carreira e para a estabilidade docente (Lovejoy & Clark , 1995).
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Conclusão Com as novas diretrizes vigorando, em futuro próximo esperamos avançar num processo de redemocratização interno ao aparelho formador de médicos, com renegociação de autoridade entre professores e alunos, médicos e pacientes, mediando novas relações a serem estabelecidas entre serviços de saúde e usuários, e dentro das equipes de saúde. Neste novo contexto teremos profissionais preparados para lidar com diferenças culturais, sociais, de gênero, de etnia, de valores e representações sobre saúde e doença, favorecendo a criação de estratégias efetivas para alcançarmos a integralidade do cuidado e a eqüidade do direito à saúde. Poderemos, assim, caminhar na superação do modelo biomédico, com a incorporação de seus benefícios no âmago de um novo modelo que incorpore também os conhecimentos psicossociais, de forma a garantir legitimidade e qualidade para as escolas e para a profissão médica, de forma análoga ao que vem fazendo a HMS. A observação de instituições com mais acúmulo no sentido da mudança pode conferir maior segurança e inspirar persistência para os agentes de mudança no Brasil. Trata-se de trabalharmos no fortalecimento de nossa própria capacidade, como alunos, docentes e gestores, de auto-crítica e busca de aperfeiçoamento permanentes, de forma análoga ao que esperamos de nossos estudantes. Se aliarmos a isto mecanismos institucionais de promoção docente para os que se dedicarem ao estudo e pesquisa dos processos ensino-aprendizagem, será possível vislumbramos uma vida profissional mais criativa e gratificante para docentes, gestores e futuros profissionais. Referências bibliográficas AGUIAR. A. C. Consequences for Faculty of Changes in Medical Education: the experience of tutoring a course about the patient-doctor relationship. Cambridge (MA), 2000. Tese (Doutorado em Educação). Harvard Graduate School of Education. ALDESTEIN, J., RAMOS, M. Searching. In: TOSTESON, D., ALDESTEIN, J., CARVER, S. (Editors) New Pathways to Medical Education: learning to learn at Harvard Medical School. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1994. p.14-29. ARMSTRONG, E. A hybrid model of problem-based learning. In: BOUD, D, FELLETI, G. (Editors) The challenge of Problem-Based Learning. New York: St. Martin’s Press, 1991. p. 137-49. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA. Proposta de minuta do anteprojeto das
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diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em Medicina. Brasília, 2000. ASSOCIATION OF AMERICAN MEDICAL COLLEGES. Physicians for the twenty-first century: the GPEP Report. Washington (DC), 1984. HARVARD MEDICAL SCHOOL. Course Catalog. Boston (MA), 1998-9. HARVARD MEDICAL SCHOOL. Patient-doctor relationship year I. Course guide. Boston (MA), 1997-8. LOVEJOY, F., CLARK, M. A promotion ladder for teachers at Harvard Medical School: experience and challenges. Acad. Med., v.70, p.1079-86, 1995. MOORE, G. Initiating problem-based learning at Harvard Medical School. In: BOUD, D., FELLETI, G. (Editors) The challenge of Problem-Based Learning. New York: St. Martin’s Press, 1991. p.80-7.
PALAVRAS-CHAVE: Educação médica; currículo; diretrizes. KEY WORDS: medical education; curriculum; guidelines. PALABRAS CLAVE: educación medica; curriculum; pautas.
Recebido para publicação em:30/10/00. Aprovado para publicação em: 28/11/00.
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Una experiencia de evaluación de desempeño en la Cátedra de Odontopediatría de la Facultad de Odontología A performance appraisal experience in the discipline of Pediatric Dentistry at the School of Dentistry
Claudia Finkelstein 1 Mónica Gardey2 Virginia F. de Preliasco3
El presente trabajo tiene como objetivo realizar un relato de una experiencia de evaluación inédita en el contexto en que se desarrolló. Se trata de la implementación del ECEO (Examen Clínico Estructurado Objetivo) como estrategia de evaluación llevada a cabo en la cátedra de Odontología Integral Niños, para los alumnos de la carrera de Especialización en Odontopediatría de la Facultad de Odontología de la Universidad de Buenos Aires, Argentina. Se trata de una carrera para egresados de Odontología. Tiene una duración de tres años y durante el transcurso de la cursada los alumnos presentan casos clínicos que son evaluados. Al finalizar cada año se realiza una evaluación . Durante el tercer año se decidió la implementación de este examen y por primera vez no tuvo carácter eliminatorio ni se otorgó calificación numérica. Así mismo, esta experiencia forma parte de una serie de acciones que realiza el Área de Educación Odontológica y Asistencia Pedagógica en su vinculación con las cátedras de la Facultad y se presenta como un ejemplo posible de interrelación entre los saberes didácticos y el saber disciplinar. Consideramos esta experiencia como innovadora en la medida en que fue gestada e implementada en un marco institucional fuertemente instituido y que conlleva en sí misma el germen de ruptura (Braga et al., 1997) que permite un cambio, entre otros, de las relaciones vinculares en el aula. En este sentido, consideramos la innovación pedagógica como una ruptura del paradigma establecido, sin que, necesariamente, suponga un cambio lineal y abarcativo de la totalidad de aspectos que engloban el acto de enseñar. Es más, como lo señalan Braga et al. (1997, p.14) “... la innovación, como todo proceso de cambio, no es espontánea y surge en determinadas circunstancias....”.
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Assessoras Pedagógicas da Faculdade de Odontologia, Universidade de Buenos Aires, UBA. <cfinkel@mail.com>
Professora da Faculdade de Odontologia; Diretora do Programa de Especialização em Odontopediatria, Faculdade de Odontologia, UBA.
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Son propuestas alternativas de trabajo que vulneran la estructura tradicional y que pueden analizarse desde la capacidad que tienen para producir una mejora de la situación vigente hasta el momento (Huberman, 1973). Las innovaciones didácticas pueden entonces, ser encuadradas dentro de una configuración de variables que pueden incluir aspectos didácticos curriculares, organizativos y psicosociales abarcando tanto elementos de la programación del accionar educativo como la intervención didáctica en sus diferentes momentos. Por otro lado, si bien se centran en alguna de estas dimensiones, es evidente que inciden en el conjunto de la situación. La experiencia que aquí se relata ahonda en la problemática de la evaluación de los desempeños profesionales y, desde esta perspectiva puede ser analizada como una estrategia que contribuye al entrenamiento de la práctica profesional del futuro especialista en Odontopediatría. Consideramos este punto nuclear en el nivel universitario en la medida que una de las notas que lo distinguen es la formación para una determinada profesión. Esto supone la aprehensión de conocimientos de un alto grado de complejidad en términos de praxis inventiva y no meramente 4 reproductiva . Si bien la elección de las estrategias metodológicas obedece a cuestiones ideológicas (lugar del docente y del alumno frente al conocimiento, posibilidad de construcción conjunta del saber etc.) y a las características específicas del conocimiento de que se trate, creemos que estos mismos criterios priman a la hora de elegir las estrategias de evaluación, en una línea que marca una continuidad entre ambas. De esta manera, la elección del ECEO en este caso, puede ser vista como una oportunidad para que los estudiantes convaliden algunas prácticas desarrolladas a lo largo del curso vinculadas a su futuro ejercicio profesional y se constituye en un espacio que permite la reflexión de la articulación teoría - práctica. Esto permite, en primer término la reconsideración de las prácticas profesionales como prácticas sociales y en segundo lugar, articular la teoría y la práctica en una relación dialéctica que las compromete en un accionar interdependiente y las sitúa en dos momentos diferenciados en la construcción del conocimiento. A partir del acercamiento del Área de Educación Odontológica y
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Nos referimos a lo planteado por A. Heller (citado por Lucarelli, 1994) que señala que la praxis repetitiva implica la repetición de esquemas prácticos desarrollados con anterioridad, mientras que la praxis inventiva supone la producción de algo nuevo, por medio de la resolución de un problema que puede ser de tipo práctico o teórico.
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Al respecto consultar How to write an OSCE case. CESSUL Quebec Medical Faculties. Canadá.1994.
Asistencia Pedagógica a la cátedra de Odontopediatría surgió la necesidad de buscar algún instrumento de evaluación válido para considerar el desempeño profesional de los futuros especialistas, ya que hasta el momento se evaluaba a los alumnos a través de exámenes escritos no estructurados y la presentación de un caso clínico. Los docentes de la cátedra consideraban que los resultados de esas evaluaciones no eran exponentes del desempeño general de los alumnos. Se trabajó entonces la necesidad de evaluar la competencia y la performance de los alumnos a partir de un instrumento que puede integrar estos dos aspectos, además del conocimiento académico, como sustento teórico. Si bien son muy significativos los avances realizados en cuanto a los procedimientos de evaluación, resulta complejo pensar que los exámenes tradicionales puedan documentar cuál será el modo en que los alumnos se enfrentan a sus prácticas profesionales. No sólo deberán demostrar qué conocimientos poseen, deberán también saber cómo actuar y además demostrar cómo lo harían. La evaluación de performance se convierte entonces en un verdadero desafío. A partir de allí, surge en la cátedra la posibilidad de poner en práctica el instrumento de evaluación ECEO (Examen Clínico Estructurado Objetivo). Consiste en un modelo de examen multi – estación. En cada estación el alumno se enfrenta con una situación clínica simulada (a través de prácticas o documentos de laboratorio) con la finalidad de evaluar las habilidades del alumno para resolver los problemas planteados. Cada estación tiene una duración preestablecida y los alumnos van rotando por cada una de ellas. Hay estaciones que admiten respuestas escritas por parte de los alumnos que se depositan en una urna a la salida de la estación para su posterior corrección. En otros casos se requiere de la observación directa del accionar del alumno. Aquí se necesita de un observador calificado que completa una lista de cotejo previamente elaborada en donde se tilda el ítem que el 5 alumno cumple de manera correcta . ¿Cómo se construyó el examen? En el proceso de construcción del instrumento se fueron pensando y repensando cada uno de los pasos a seguir. En primer lugar, se acordó en construir siete estaciones, representativas de las diferentes competencias
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profesionales; definidas en términos de objetivos: · Resolver urgencias odontológicas en niños · Realizar diagnósticos en diferentes situaciones clínicas · Demostrar habilidades comunicacionales en el diagnóstico y tratamiento de los pacientes · Aplicar un enfoque terapéutico frente a las diversas patologías · Reconocer acciones de bioseguridad en la práctica profesional La siguiente etapa fue seleccionar y diseñar las situaciones clínicas que resultaran acordes con los objetivos establecidos. Primero se pensó en contar con la presencia de un niño, pero luego esta idea fue desestimada, reemplazándose por situaciones simuladas. Se seleccionaron las patologías que resultan más frecuentes en la consulta odontopediátrica (patologías de oclusión mixta) vinculadas con otras variables: edad del niño, educación de los padres y comunicación a los padres del diagnóstico y derivación para abordar el tratamiento multidisciplinario y que requieren del diagnóstico precoz (diagnóstico estomatológico, diagnóstico radiológico y diagnóstico de oclusión como puntos centrales). Finalmente se redactaron las situaciones clínicas, los guiones para los pacientes simulados y se seleccionaron los informes de laboratorio y radiográficos que requería cada estación. Se consideraron las claves de respuesta para una estación que requería el completamiento de una hoja de respuestas y se diagramaron las listas de cotejo para los observadores. Se asignaron los tiempos y los espacios para cada una de las estaciones y los materiales necesarios en cada una de ellas. El día previsto para el examen se procedió a explicar previamente a los alumnos el tipo de examen, sus características y dinámica de funcionamiento. Se aclararon las dudas y en el horario determinado se llevó a cabo la experiencia. Se evaluaron siete alumnos en 80 minutos. Un miembro del Area de Educación Odontológica funcionó como coordinador, liberado de una función fija, en alguno de los espacios para controlar los tiempos y las demandas de los alumnos y favorecer su circulación para no entorpecer la diagramación realizada. Las estaciones fueron organizadas en torno a las siguientes situaciones clínicas: Radiografía panorámica periapical: A partir de la placa radiográfica los alumnos debían determinar la edad del paciente. En general, la respuesta dada por las alumnas fue satisfactoria. Diagnóstico de enfermedad estomatológico: Los alumnos habían realizado un curso de estomatología de diez sesiones. Además de ser un contenido fundamental de la carrera, es una consulta sumamente recurrente en el servicio de odontopediatría. En general la respuesta de los alumnos en esta estación fue correcta. Redacción de una receta: Redactar una prescripción odontológica . Se observó que entre los alumnos, no todos utilizaron el recetario, algunos no firmaron la receta, otros no colocaron la indicación y otros olvidaron ponerle fecha.
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Bioseguridad: El mantenimiento de la bioseguridad en el consultorio es una condición indispensable que requiere rigurosidad. En el caso que se relata, todos los alumnos respondieron correctamente, probablemente porque es un hábito incorporado. Consulta telefónica: Se trataba de la resolución telefónica de una urgencia odontopediátrica. Las estudiantes manifestaron sentirse muy nerviosas en esta estación. Sin embargo, en general, se reprodujeron las sensaciones que siente un profesional frente a una urgencia odontopediátrica que pareciera provocar una especie de shock que paraliza y no permite, por un tiempo acotado, utilizar los conocimientos disponibles para resolver la situación. El profesional en esta situación, debe darse un tiempo, tranquilizarse y realizar las preguntas orientadoras para el correcto diagnóstico y tratamiento. Debe considerarse como dificultad agregada también el hecho de no contar con la presencia del paciente y de no hablar directamente con él. Estas consultas son muy frecuentes en el desempeño profesional y creemos que su reproducción brinda una oportunidad para ejercitar las destrezas que son necesarias en estos casos. Entrevista con una madre simulada que presenta una fotografía de un bebé que sufre de una patología específica: La indagación de las habilidades comunicacionales y el tipo de pregunta que orienta el diagnóstico y sobre todo la comunicación del tratamiento es de fundamental importancia en este caso. Se presentaron variadas dificultades en la resolución por parte de los estudiantes: dificultad para seguir un diálogo en términos comprensibles para la madre simulada, utilización de un vocabulario excesivamente técnico, diagnóstico erróneo, no ahondar en la búsqueda de la información realizando mayor cantidad de preguntas una vez realizado el diagnóstico. Una vez finalizada la experiencia de evaluación, se administró una encuesta de opinión a los alumnos. A partir de la observación realizada por el miembro del Área de Educación Odontológica, el análisis de los resultados obtenidos y de la encuesta de opinión se han identificado como dificultades vinculadas con aspectos tanto organizativos como instrumentales: · La necesidad de destinar tiempos diferenciados a las diferentes estaciones de acuerdo con la complejidad de la situación clínica a resolver y agregar alguna tarea a posteriori para completar los 10 minutos establecidos previamente de duración estimada por estación. · Revisar las consignas clínicas para evitar variedad de interpretaciones. · Realizar un simulacro de examen previo a la experiencia. A modo de cierre Creemos que esta primera experiencia ha cumplido con el objetivo propuesto ya que ha permitido a los estudiantes hacer frente a situaciones de su futura práctica profesional, que si bien son habituales en el transcurso de su formación, se presentan aquí de modo diferente. La evaluación de su desempeño es puesta a prueba en una variedad de
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situaciones en donde no sólo se debe contar con una sólida base teórica sino que se debe demostrar solvencia en los procedimientos a utilizar. Es un paso en el camino para “...superar el abismo existente entre formación y empleo, entre teoría y práctica, entre el saber sobre las cosas y el saber hacerlas, entre el saber recibido (de otro) y el saber apropiado, hecho propio por uno mismo...” (Hernández, 1997, p.163). Como se mencionó al inicio, la innovación implementada en algún área, trae, necesariamente, modificaciones en las demás. En este caso, los resultados obtenidos sirven de base para comenzar a pensar una serie de reformas curriculares que permitan superar las dificultades más sobresalientes que hemos encontrado. Es decir, sirve de insumo para el diagnóstico de aquellos aspectos que deben considerarse desde el punto de vista curricular y organizativo de la carrera. Nos referimos especialmente al trabajo con la urgencia odontopediátrica, la entrevista clínica orientadora del diagnóstico y la comunicación del diagnóstico y del tratamiento. Estos puntos parecieron ser claves para articular la teoría aprehendida hasta el momento y las situaciones clínicas derivadas de la práctica profesional. Así mismo, la implementación de esta experiencia en el contexto de la Universidad y en particular, de la Facultad de Odontología obliga a repensar a todos los involucrados, las relaciones vinculares en el aula, en particular el lugar del docente y del alumno y fundamentalmente, el lugar 6 del saber (cómo saber, cómo saber hacer, cómo saber ser ). Respecto a los alumnos, es necesario una revisión del lugar – asignado o elegido - en que se encuentran. En esta experiencia hemos encontrado como dificultades más sobresalientes: . Resistencia al cambio con respecto a la modalidad que supone este tipo de examen: los alumnos han opinado que este tipo de evaluación tiene mayor grado de dificultad ya que no se requiere de ellos que “reciten” información sino que enfrenten situaciones de su futura práctica profesional. Si bien, a través de su formación como alumnos, en su práctica cotidiana en el servicio de odontopediatría deben atender pacientes, y resolver situaciones clínicas, siempre cuentan con la supervisión del docente a cargo. En el ECEO deben enfrentarse a la realidad profesional y situarse en un lugar de protagonistas activos frente a su propio aprendizaje. Esto supone en sí mismo todo un aprendizaje. . Parálisis en la resolución y peores resultados en aquellas situaciones que no estaban mediadas por el papel (trabajo con pacientes simulados, consulta telefónica, prescripción de medicación). Suponemos que estas dificultades tienen que ver con algún déficit en las habilidades comunicacionales para transmitir la elaboración del diagnóstico de la situación y la terapéutica adecuada (como ejemplo se puede mencionar el caso en que los alumnos respondían a la madre simulada en términos de una clase teórica, y no en términos comprensibles para la madre para poder sostener el tratamiento indicado) Podríamos aventurar dos explicaciones posibles: por un lado, al ser una primera experiencia de evaluación en el ámbito de la práctica, es probable que opere en los alumnos el “shock de la práctica”7 , es decir la parálisis
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6 Al respecto puede consultarse Beillerot, J. La formación de formadores, 1996.
Nos referimos al concepto desarrollado por Widlak, que alude al síndrome reactivo de la socialización profesional al pasar de la Universidad a la práctica profesional. Desde lo emocional se vivencian sentimientos de desamparo y miedo al fracaso. Desde lo cognitivo se manifiesta una aversión hacia la teoría y lleva a la consideración de lo irrelevante de la formación adquirida para enfrentar la práctica.
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Saberes en uso (Maglive, 1991), teorías en uso (Schön, 1978)
derivada del primer enfrentamiento de la realidad profesional y su consecuente “olvido” de todos los conocimientos y competencias aprendidos hasta el momento. Por el otro, las habilidades comunicacionales no son abordadas como contenido específico de la carrera. Es esperable que a partir de esta experiencia sean objeto de trabajo más sistemático en la medida que se revelan como fundamentales para el buen desempeño profesional y para el éxito y sostenimiento de los tratamientos odontológicos sugeridos. Por otra parte debemos señalar el impacto que produjo en el equipo docente este tipo de evaluación, en la medida que los resultados obtenidos no fueron los esperados. Es decir, existía el supuesto de que, los conocimientos teóricos impartidos, especialmente en la institución del teórico, eran suficientes para enfrentar las situaciones clínicas. La aparición del error sistemático en su resolución ha puesto en jaque esta afirmación. También resulta interesante destacar que las alumnas con experiencias previas con niños (como madres, o con experiencia previa en consultorios privados, por ejemplo) pudieron resolver de modo más satisfactorio algunas situaciones. Esto puede tener relación con conocimientos pre – teóricos, afirmaciones teóricas que no se han consolidado y que aparecen en forma de recetas y esquemas teóricos de mayor grado de sistematización y que configuran un conjunto de saberes que inciden en la forma en que se manifiesta el pensamiento práctico. Diferentes autores hacen referencia a ellos designándolos de diferente modo8 . Tomar en cuenta estas diferencias al enfrentar la resolución de las situaciones clínicas podría suponer, de hecho, indagar estos presupuestos y experiencias previas en la entrevista de admisión de los alumnos para reajustar el diseño curricular de la carrera. Finalmente, creemos que para realizar esta experiencia, es necesario contar con ciertos recaudos – organizativos si se quiere - que funcionan como condicionantes en cierta medida del éxito de su implementación. Por un lado, se requieren espacios adecuados a las características de cada situación. Por el otro, los pacientes simulados deben estar muy consustanciados con el papel a desempeñar y resguardar especialmente la tendencia a brindar mayor información que la que el guión establece. Consideramos el saldo positivo que nos ha dejado llevar a cabo esta experiencia. No sólo en términos de logros obtenidos, sino fundamentalmente, como insumo que se traduce en un verdadero desafío para seguir mejorando la calidad de la enseñanza.
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Referências bibliográficas ANDREOZZI, M. El impacto formativo de la práctica. Avances de investigación sobre el papel de las prácticas de formación’ en el proceso de socialización profesional. Rev. Inst. Invest. Cienc. Educ. v.4, n.9, p.20-31,1996. BEILLEROT, J. La formación de formadores. Buenos Aires: Novedades educativas/U.B.A., 1996. BRAGA, A. M., GENRO, M. E., LEITE, D. Universidade futurante: inovação entre as certezas do passado e incertezas do futuro. In: LEITE, D., MOROSINI, M. (Orgs.) Universidade futurante: produção do ensino e inovação. Campinas: Papirus, 1997, p. 21-37. CUNHA, M. I. Aula universitária: inovação e investigação. In: LEITE, D., MOROSINI, M. (Orgs.) Universidade futurante: produção do ensino e inovação. Campinas: Papirus, 1997, p. 79-93. HERNÁNDEZ, A. J. La dualidad entre la acción y la estructura. La organización didáctica del prácticum. In: APODACA, P., LOBATO, C. Calidad en la Universidad: orientación y evaluación. Barcelona: Alertes, 1997, p.153-71. HUBERMAN, A. M. Cómo se realizan los cambios en educación. UNESCO - OIE 1973. In: LUCARELLI, E. Teoría y práctica como innovación en docencia, investigación y actualización pedagógica. Buenos Aires: IICE-FFyL/UBA, 1994, p.14. LUCARELLI, E. Teoría y práctica como innovación en docencia, investigación y actualización pedagógica. Buenos Aires: IICE-FFyL/UBA, 1994. ASOCIACIÓN AMIGOS DE LA FACULTAD DE MEDICINA. Programa de Formación de Formadores en Ciencias de la Salud. Buenos Aires, 1998. WIDLAK, H. El shock que produce la práctica: el fracaso de la aplicación del saber. s.n.t.
PALABRAS-CLAVE: odontología pediátrica; evaluación del rendimento de empleados; enseñanza; práctica profesional. KEYWORDS: pediatric dentistry; employee performance appraisal; teaching; professional practice. PALAVRAS-CHAVE: odontopediatria; avaliação de desempenho; ensino; prática profissional
Recebido para publicação em: 10/08/00. Aprovado para publicação em: 25/09/00.
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A avaliação de intervenções sociais como potencial instrumento de construção do conhecimento The evaluation of social intervention as a potential knowledge building tool
Auristela Maciel Lins 1
Introdução As avaliações de intervenções, sejam estas programas, projetos, atividades ou mesmo ações mais estruturadas, no campo da Saúde e da Educação se originaram do século passado e têm sido objeto da preocupação de pesquisadores dos diversos setores do conhecimento (estatísticos, economistas, educadores, epidemiólogos, cientistas sociais etc) de forma mais sistemática a partir da Segunda Grande Guerra, quando o Estado, obrigado a intervir mais eficientemente nas desigualdades sociais, passou a subvencionar uma série de projetos e programas de desenvolvimento das áreas sociais (Contandriopoulos et al., 1997; Lins, 1997). A avaliação se constituía, então, em parte do planejamento de programas e mantinha uma preocupação fundamentada na relação custo/benefício do mesmo. Os economistas foram por isso os grandes mestres na avaliação e trouxeram para o campo social as preocupações e a visão desenvolvidas junto ao setor produtivo industrial. Aos poucos, a incorporação de pesquisadores de outros setores e a insuficiência demonstrada pela abordagem economicista aplicada ao setor social, foram transformando a avaliação dessas intervenções em um objeto complexo e multidisciplinar. Hoje, a formulação de uma abordagem
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Doutoranda do Departamento de Medicina Preventiva e Social da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) e Consultora de Planejamento da Fundação Nacional de Saúde/MS. <auristela_lins@uol.com.br>
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de avaliação já se desprende do planejamento de programas e passa, em alguns casos, até a incorporá-lo, no sentido de que a avaliação de necessidades deve vir antes da decisão da formulação de um programa. Hoje, também, não mais se pensa na avaliação como uma atividade assistemática e amadora. Principalmente as associações profissionais, criadas na América do Norte, reivindicam a atividade de avaliação de intervenções como uma especialidade e de competência de profissionais treinados. Afora as disputas corporativas aí presentes, a complexidade dos objetos da avaliação de intervenções sociais tais como a Educação e a Saúde têm mesmo exigido uma ampliação das teorias e técnicas nas quais a avaliação tem se apoiado nessas últimas décadas. A importância e complexidade desses objetos têm promovido a necessidade da incorporação de diferentes técnicas, métodos e referenciais teóricos de inúmeras disciplinas vinculadas às ciências duras ou às Ciências Sociais, gerando diferentes abordagens metodológicas e diferentes disputas dentro da avaliação em geral, mas também promovendo a construção de novos conhecimentos para a melhoria das condições de vida dos indivíduos e da comunidade. Nesse sentido, este trabalho tenta discutir a conformação da avaliação de intervenções como campo de convergência de diferentes disciplinas e sua contribuição para a construção do conhecimento no campo social, principalmente seu papel de instrumento multi, pluri ou interdisciplinar quando utilizado em programas que se propõem a atuar na interface Saúde/ Educação, mais especificamente na formação e educação continuada de profissionais da saúde como estratégia para a transformação da assistência à Saúde e da qualidade de vida de uma comunidade.
A avaliação de intervenções sociais como campo de convergência de disciplinas A avaliação é um campo complexo. Esta afirmação possui diversos pressupostos, incorpora diversos momentos históricos e esconde inúmeros conflitos. Por isso também tem sido difícil encontrar definições e classificações mais consensuais. Uma das definições mais aceitas é a de Scriven, que diz que “avaliar é julgar o valor ou mérito de qualquer coisa” (Worthen et al., 1997; Lins, 1997; Stenzel, 1996), muito longe, porém, de ser consensual. Outra vertente da complexidade da avaliação vem de sua construção enquanto instrumento auxiliar de intervenção social. Direta ou indiretamente, a avaliação, de forma mais estruturada enquanto avaliação de projetos ou programas, sempre esteve ligada a propostas do Estado ou da Sociedade Civil de intervenções sociais, seja no sentido de produzir e acumular mais valia, seja do ponto de vista da intervenção sobre as injustiças sociais. A avaliação fazia parte do plano de ação e do planejamento mais amplo. Nesse sentido, seu grande crescimento no mundo ocidental após a Segunda Grande Guerra incorporou a imposição de mérito e valor impostos
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Anotações de aulas da disciplina de pósgraduação em Saúde Coletiva da UNICAMPSP: História e Paradigmas do conhecimento em Saúde, ministrada pelo prof. Everardo Duarte Nunes.
aos que se concentravam do lado ocidental, por meio da hegemonia capitalista, no desenvolvimento econômico, e do positivismo e neopositivismo, no desenvolvimento científico. No entanto, a dinâmica das sociedades para as quais essas intervenções foram planejadas impôs limites à tentativa de desenvolvimento da avaliação enquanto instrumento quantitativo e objetivo e incorporou outras visões de mundo. Concepções estas mais amplas, que não colocavam as sociedades enquanto simples sistemas gradualmente adaptáveis. A avaliação foi, portanto, se ampliando além da perspectiva econômica e incorporando cada vez mais as disciplinas das Ciências Sociais e Humanas e com isto teve também de incorporar a complexidade de seu “novo” objeto. A avaliação de intervenções ditas sociais, como Saúde, Educação, desenvolvimento de grupos específicos (adolescentes, diferentes grupos étnicos, religiosos, portadores de patologias específicas) e outros, no meu entender, passou a se caracterizar como um campo de convergência de disciplinas, individualizou-se e assumiu sua autonomia com relação ao planejamento e a outros tipos de avaliação ultrapassando, assim, segundo Foucault, seu limiar de positividade (Nunes, 19982 ). Essa convergência de disciplinas para o campo da avaliação de intervenções sociais levanta a discussão sobre o caráter multi, pluri ou interdisciplinar da avaliação. Na tentativa de analisar a construção do conhecimento e de propor intervenções no campo social que ultrapassem os limites impostos pelas disciplinas, vários autores têm discutido o caráter dessas construções e intervenções do ponto de vista das relações que se estabelecem entre as disciplinas dentro de um campo de conhecimento (Japiassu, 1976; Minayo, 1994; Almeida Filho, 1997) e, mais especificamente, na avaliação de intervenções (Yin, 1994; Hartz & Camacho, 1996; Contandriopoulos et al., 1997). Japiassu (1976) faz uma distinção entre multi, pluri, inter e transdisciplinaridade, classificando-as com relação à negação e superação ou não das fronteiras disciplinares e propõe o interdisciplinar como o remédio mais adequado à cancerização ou à patologia geral do saber, ressaltando porém não considerá-lo como a panacéia científica. Minayo (1994) ressalta alguns conceitos e fundamentos presentes na obra de Japiassu (1976), incorpora outros pensadores que trataram do tema e alerta para o risco de se estar tratando a interdisciplinaridade como funcionalidade da ciência. É por não concordar com a utilização indiscriminada do conceito e para precaver-me contra o uso funcional do mesmo, como pode-se depreender de modismos periódicos; por estar tentando compreender as relações entre as
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diversas disciplinas no campo da avaliação de intervenções sociais e por concordar com Castoriadis (apud Minayo, 1994) que lembra que os problemas do conhecimento estão profundamente vinculados à organização e orientação histórica da sociedade e não podem ser resolvidos sem uma profunda transformação das mesmas, que tenho aqui me utilizado da expressão “convergência de disciplinas” para caracterizá-la. As contribuições da avaliação de intervenções sociais na construção do conhecimento Entre os autores que defendem um tratamento à avaliação de intervenções com status de pesquisa científica, Contandriopoulos (1997) classifica a avaliação como “normativa”, quando ela resulta da aplicação de critérios e normas e como “pesquisa avaliativa” quando elaborada a partir de um procedimento científico. Considerar a avaliação de intervenções sociais como pesquisa científica é mais ou menos tranqüilo entre os autores, porém o dissenso se dá de maneira acentuada no trato de seu caráter. O leque vai desde considerá-la uma coletadora de dados para analisar o grau de eficácia de uma atividade, como definida por Suchman (Stenzel, 1996) a considerá-la um potencial instrumento de fortalecimento de grupos e indivíduos participantes de uma organização ou programa. Mesmo instalado, o dissenso não evita que a maioria dos autores e práticos da avaliação tratem-na como uma pesquisa que aplica conhecimentos já existentes e não com a possibilidade de que ela possa contribuir para a construção de novos conhecimentos. Aplicar conhecimentos de forma responsável e competente já é uma forma de contribuir com o avanço do setor social, porém defendo que, enquanto tratada como pesquisa de segunda mão, a avaliação de intervenções sociais não vai conseguir dar conta da complexidade de seu objeto. Discutindo a crise na Saúde Pública, seus sinais, explicações e propostas de abordagens para a mudança, Tarride (1998) defende a explicação da crise como uma questão epistemológica, no sentido que devemos buscar enfoques mais abrangentes para a compreensão da realidade, pois sua crítica à Saúde Pública, tanto sob a ótica dos referenciais teóricos, quanto sob a ótica da prática, não consegue se desvincular do Modelo Médico Hegemônico. Ele lança mão de Menéndez para definir o que entende por Modelo Médico Hegemônico: “o conjunto de práticas, saberes e teorias geradas pelo desenvolvimento do que se conhece como medicina científica”. Nessa tentativa de ampliar referenciais e métodos, o mesmo autor, citando Nájera, afirma que “a questão não é incorporar as ciências sociais ao pensamento sobre saúde, e sim tratar a saúde como questão social” (Tarride, 1998, p.32) e propõe incorporar o adjetivo “complexa” à Saúde Pública, como caminho de mudança dirigido a sua forma de “olhar” seu objeto e a seu “proceder”. São vários os autores, no campo da Saúde Coletiva e da Educação, que têm trazido a “Teoria do pensamento complexo”, formulada por Edgar Morin, para tentar compreender a crise e as saídas, principalmente
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discutindo a questão da inter e transdisciplinaridade para a compreensão teórica dos fatores intervenientes e para a formulação das abordagens de intervenção sobre a crise nesses campos (Almeida Filho, 1997; Tarride,1998). Fazendo uma crítica ao método científico que privilegia a análise das partes na compreensão do todo, mas não promove a síntese integradora e, conseqüentemente, criticando o pensamento simplificador, Morin (pud Tarride, 1998) desenvolveu seu pensamento complexificador ou complexo em que, partindo do paradigma sistêmico, defende o reconhecimento e o enfrentamento da complexidade presente tanto no objeto, quanto no observador e no modelo construído para observar o fenômeno. Morin afirma que no mundo da organização vivente estão inerentemente presentes equilíbrios, acordos, concorrências, antagonismos e conflitos e as contradições presentes não são problemas insolúveis, e sim progresso do conhecimento (Tarride, 1998). Por isso o desafio do pensamento complexo é o de tratar a unidade/falta de unidade da vida sem reduzir, capturar ou debilitar um dos termos. As idéias contrárias devem ser pensadas em conjunto e sem incoerências. Para isso ele propõe o encontro de um metaponto de vista que relativize a contradição e a inscrição em uma circularidade, que torne produtiva a associação das noções antagônicas complementares. O paradoxo, o círculo vicioso e a antinomia seriam, portanto, fontes geradoras de pensamento complexo (Tarride, 1998). Dessa forma, aos objetos de interesse das ciências, em especial das Ciências Humanas e Sociais, tem sido cada vez mais atribuído o adjetivo “complexo”. Almeida Filho (1997), definindo o objeto complexo como sintético, não linear, múltiplo, plural e emergente, defende que para uma abordagem do mesmo, a organização da ciência em disciplinas autônomas e estanques deve ser superada pelas formas de interação entre elas. Defendendo também que os espaços institucionais e as disciplinas são permanentemente ocupadas por sujeitos da ciência, agentes históricos da prática científica, formula a idéia de “operadores transdiciplinares da ciência”. Esses agentes históricos são caracterizados pelo autor como “mutantes metodológicos, capazes de trans-passar fronteiras, à vontade nos diferentes campos de transformação, agentes transformadores e transformantes” (Almeida Filho, 1997, p.18). Para objetos complexos, portanto, pensamento complexo. Sendo a Saúde e a Educação objetos complexos, avaliá-los passa a requerer referenciais, técnica e métodos que possam se aproximar dessa complexidade, das suas antinomias e paradoxos. Assim, a avaliação de intervenções sociais, para onde convergem disciplinas, deve se manter aberta às novas aquisições, mesmo correndo o risco de que o que se acredita novo seja apenas travestido. Deve, principalmente, atuar no binômio ação-reflexão com a perspectiva não apenas de pensar indicadores, instrumentos e criar técnicas, mas de construir métodos que possibilitem o desvendar de novos conhecimentos. Em pesquisa anterior (Lins, 1997) observei que a efetividade ou não de
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intervenções sociais está estreitamente vinculada a diversos fatores como a coerência de sua formulação; a potência do paradigma explicativo diante da complexidade do objeto; a construção dialética dos determinantes e condicionantes que se dá na relação sujeito-objeto e a utilização de instrumentos que possam captar e fazer aflorar a complexidade do objeto e da relação que se estabelece com o observador /sujeito. Observo, aqui, que a avaliação tem potencialidades para ser este instrumento e mais ainda, um instrumento de construção de conhecimentos, mas a tarefa não é simples. Acredito que ela deverá ser reconstruída e se autoreconstruir nesse processo, porém pensar a complexidade da tarefa, do objeto, da relação e pensá-la como campo aberto à convergência de disciplinas e como passagem dos que se propõem como “operadores transdicisplinares” pode ser o início da investigação para o como fazer. Referências bibliográficas ALMEIDA FILHO, N. Transdiciplinaridade e Saúde Coletiva. Ciênc. Saúde Col., v.2, p.5-19, 1997. CONTANDRIOPOULOS, A. P., CHAMPAGNE, F., DENIS, J. L., PINEAULT, R. A avaliação na área da saúde: conceitos e métodos. In: HARTZ, Z. M. A. (Org.) Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação de programas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. p.2947. HARTZ, Z. M. A., CAMACHO, L. A. B. Formação de recursos humanos em epidemiologia e avaliação dos programas de saúde. Cad. Saúde Pública, v.12 (supl.2), p.13-20, 1996. JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. LINS, A. M. O Programa UNI da Fundação Kellogg no Brasil: uma avaliação a partir do postulado de coerência de Mario Testa. Campinas, 1997. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. MINAYO, M. C. S. Interdisciplinaridade: funcionalidade ou utopia? Saúde e Sociedade, v.3, p.42-64, 1994. TARRIDE, M. I. Saúde Pública: uma complexidade anunciada. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. STENZEL, A. C. A temática da avaliação no campo da saúde coletiva: uma bibliografia comentada. Campinas, 1996. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. YIN, R K. Discovering the future of case study method in evaluation research. Eval. Pract., v.15, p.28390, 1994. WORTHEN, B., SANDERS, J., FITZPATRICH, J. Program evaluation, alternative approaches and pratical guidelines. California: Sage Publications, 1994.
PALAVRAS-CHAVE: Conhecimento; estudos de avaliação; Educação em Saúde. KEY WORDS: Knowledge; evaluation studies; healthcare education. PALABRAS-CLAVE: Conocimiento; estudios de evaluación; Education en Salud.
Recebido para publicação em 24/08/00. Aprovado para publicação em 28/11/00.
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Psiquiatria: de onde viemos, em que rumo caminhamos? Psychiatry: where do we come from, and where are we heading? Rubens Romano Maciel1
Quem não está habituado a olhar as estrelas pode vê-las com quase indiferença por infinitas vezes, mas se deslumbra ao perceber a ordem da aparente desordem de sua distribuição. Cada qual, com seu jeito específico, tem um lugar preciso. Obviamente que é uma ordem convencional, de identificá-las e de dar nomes a pequenos conjuntos delas arbitrariamente definidos, mas isto não diminui em nada o efeito. Há ainda outra particularidade, não de natureza emocional, neste efeito: o observador passa a notar detalhes que antes, mesmo diante dos olhos, por desatenção passariam ocultos. Apesar de as estrelas estarem lá há muito tempo, podem ser descobertas e redescobertas muitas vezes. As folhas vegetais, com suas minúcias, talvez produzam reação semelhante em quem se inicia no estudo de suas características e classificação; os insetos, para os que se iniciam na Entomologia; o corpo humano, para os estudantes de Anatomia. O mesmo padrão pode servir para inúmeros exemplos. São objetos desde sempre diante do olhar, mais bem vistos pelo conhecimento que pelos sentidos. A metáfora de luz para conhecimento não é casual de forma alguma. Outros objetos se comportam na nossa mente de modo diferente, entorpecendo-a tal a carga mística que carregam em si. A exemplo, são achados arqueológicos importantes, objetos de valor histórico, rochas extraordinárias. A lista neste caso também pode ser extensa. A Psiquiatria que está contida nas palavras impressas, a dos livros e artigos, com certeza não se coaduna em nenhum dos dois casos. Devido a sua insipidez, somente a muito custo nos impressiona. Fica enredada na superficialidade descritiva de epifenômenos e distante da visão penetrante de autores e movimentos que a nova onda objetiva, não conjectural, colocou no passado. Já a Psiquiatria que nos chega por ver e ouvir pacientes talvez caiba no segundo grupo, porém com resultados mais assustadores que deslumbrantes. Juntando as duas coisas, livros e pacientes ao vivo, os livros adquirem encanto quando, ainda que
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Doutorando em Saúde Mental do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp.
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precariamente, nos salvam das extensas águas da ignorância sobre o que pensar ou fazer. É quase uma gratidão de afogado. Há que se fazer jus a alguns raros colegas que aparentam entusiasmo diante de textos psiquiátricos, mas dada a variação que existe entre humanos, parece ser o caso somente de considerá-los como raros. Há trabalhos, no entanto, cujo enfoque não é exatamente psiquiátrico, mas sobre Psiquiatria, que descrevem fatos, organizam-nos e chegam a resultados muito impressionantes. Neles, a Psiquiatria é outra. O psiquiatra, imbuído de suas responsabilidades, arca, como os demais médicos, com o ônus da onipotência e da atemporalidade: deve possuir os melhores conhecimentos e habilidades, sem saber, porém, de onde veio ou em que rumo caminha. Decerto que, para não arcarmos sob excesso de peso, substituímos nossos deveres por intenções: nossas intenções são sempre as melhores, embora nossos recursos nem tanto. Quando nos aproximamos do conhecimento já sedimentado no espaço em que a Psiquiatria, a História e a Sociologia se superpõem, esta avaliação benevolente das nossas intenções fica em situação precária. Se não mantivermos a crença nas nossas boas intenções, o ganho que podemos alcançar no nosso senso de orientação implicará em perdas a nós mesmos, enquanto categoria profissional e eventualmente até para a maneira como garantimos nosso sustento. É uma hipótese que, mesmo discutível, serve para chamar atenção para algo instigante: por que fatos objetivos, importantes, obviamente enunciados na literatura especializada, que trazem luz sobre como temos nos constituído, repercutem tão pouco? Somos todos em parte devedores afogados e estamos, orquestradamente, nos comportando de modo a abafar alguns detalhes selecionados do que testemunhamos? Há dados e conjecturas acerca deles cuja influência está em franca desproporção com o peso que possuem. Por que tomamos a Psiquiatria por esta sua versão simplificada quando outra está facilmente disponível? Não é exagero pensar em risco para a sobrevivência da Psiquiatria se forem levadas em conta as duas ondas de transformação pelas quais ela passou nos últimos vinte a quarenta anos. Em ambas entendia-se como necessário, para que ela continuasse a existir, a total transformação na sua forma anterior de ser. E ambas teriam sido desdobramentos, em última instância, vinculados ao próprio nascimento da Psiquiatria. Ela resultou de processos diferentes dos que criaram todas as demais especialidades médicas. Enquanto todas surgiram da necessidade de divisão de áreas pelo acúmulo de conhecimento, a Psiquiatria passou a existir sem que possuísse um saber que fosse ele a razão de agregação de seus profissionais. Sua identidade vinha, no século XIX e em parte do século XX, de se incumbir do cuidado dos enfermos mentais, mesmo que não houvesse muita clareza sobre o significado desta expressão. Nascia com um objeto pouco delimitado, e já dividida: uma vertente biológica e outra moral, irreconciliáveis. Estes problemas quanto à delimitação e à definição da natureza de seu objeto persistiram na história a despeito de todos os avanços na literatura (Castel, 1975; Pam, 1990). Tanto que uma das ondas acima mencionadas, a de contestação à
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Psiquiatria (que a despeito de ser contestatória, foi levada a efeito quase exclusivamente por psiquiatras), suscitou, entre outros, o argumento de que os transtornos e as ações terapêuticas circunscritos sob sua égide deveriam ser divididos entre a Neurologia e as Ciências Humanas (Torrey, 1976). A essas agressões, ela respondia, nos Estados Unidos, com as concepções psicossociais e preventivistas, gestadas na esteira de transformações do pósguerra e tornadas hegemônicas nos anos sessenta e setenta (Wilson, 1993; Rochefort, 1984). Nesta mesma época, outra resposta nos Estados Unidos e também nos demais países desenvolvidos foi a desinstitucionalização, termo cujo significado variou conforme o país, mas que em comum possuía o sentido de contraposição ao asilamento de pacientes, objeto de execrável memória (Ramon, 1989; Grob, 1991). A perspectiva que nesta época era a mundialmente predominante pode ser depreendida das palavras de Menninger (apud Wilson, 1993, p.400): “Devemos tentar explicar como aconteceu o mau-ajustamento observado e qual é o significado desta súbita excentricidade ou desesperada ou agressiva explosão. O que está sob o sintoma”. O esgotamento das soluções possíveis à Fenomenologia, cujos sinais eram detectáveis já nos anos trinta (Bercherie, 1989), a influência de teorias psicodinâmicas e do Existencialismo (que diluíam as fronteiras entre o normal e o patológico) e de diferentes vertentes políticas, acabaram, no decorrer dos anos setenta, por descaracterizar a Psiquiatria enquanto especialidade médica (Rogler, 1997). O não conseguir diferenciar entre normal e patológico foi um fato gravíssimo, levando-se em conta os muitos interesses que cabiam a ela atender, em particular o de empresas seguradoras (Wilson, 1993; Kane, 1996). E havia ainda a baixa confiabilidade (isto é, baixo índice de concordância nos diagnósticos feitos por diferentes profissionais), o que criava barreiras ao aprimoramento tanto teórico, quanto de práticas. Em 1976, o presidente da Associação Psiquiátrica Norte-Americana (APA) disse que a Psiquiatria Social e o ativismo social “conduzindo os psiquiatras à missão de mudar o mundo, levaram a profissão à beira da extinção” (Wilson, 1993, p.402). Em 1974, a APA instituiu a “Força Tarefa para Nomenclatura e Estatística” no intuito de reformular o DSM-II (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), vigente desde 1968. O DSM-III, resultado do seu trabalho, foi apresentado em 1980 com um conteúdo tal que significou na prática a ruptura da APA com os parâmetros que até então ordenavam a nosografia. Causou enorme impacto e, de modo gradativo mas rápido, foi tendo sua influência ampliada a ponto de ser a origem da outra onda acima referida. Segundo Wilson (1993), são três as diferenças fundamentais introduzidas pelo DSM-III: a perda do conceito de profundidade da mente, perda do conceito de inconsciente; o tempo a ser considerado para o diagnóstico foi encurtado do tempo de vida da pessoa para os 45 minutos de observação da entrevista; e, por último, houve “uma constrição no espectro do que os clínicos passaram a tomar como clinicamente relevante (...) personalidade e desenvolvimento do caráter, conflitos inconscientes, transferência, dinâmica familiar e fatores sociais de um caso clínico cuja ênfase
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diminuiu” (p.408), enquanto tornou-se adequado descrever minuciosamente os sintomas. Rogler (1997) faz uma proposta que talvez sirva de pista para, em parte, se compreender como a perda de tanto conhecimento pode ter contribuído para o avanço. Diz ele: “A força central que levou à mudança de paradigma no DSMIII foi a ascensão ao poder de um ‘colegiado invisível’ de psiquiatras neoKraepelinianos cujo credo profissional coincidiu com a direção das mudanças culturais e institucionais na sociedade norte-americana” (p.16). Dentre os vários pontos tocados por esta afirmação está que a Psiquiatria mudou porque, instrumentalizada com o DSM-III e sucedâneos, encontra-se com mais recursos para atender ao que é dela exigido pelas forças exteriores ao seu próprio campo. É uma conjectura coerente, que também poderia ser utilizada na reflexão de outros períodos. Falta à Psiquiatria um esqueleto que lhe dê sustentação interna, e por isso ela depende, ou sempre dependeu, de acordos com o que se passa fora dela para sobreviver? Isto possui imensas implicações, mas surpreendentemente acarreta poucas conseqüências. Não são informações novas, não é preciso que sejam apresentadas com este arranjo ou interpretação, porém, como às estrelas, olhá-las coloca questões importantes sobre o nosso universo. Referências bibliográficas BERCHERIE, P. Os fundamentos da clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. CASTEL, R. El tratamiento moral. Terapéutica mental y control social en el siglo XIX. In: GRACÍA, R. (Org.) Psiquiatria, antipsiquiatria y orden manicomial. Barcelona: Barral Editores, 1975, p.71-96. GROB, G. N. Origins of DSM-I: a study in appearance and reality. Am. J. Psychiatry, v.148, p.4, 1991. KANE, J. M. Impact of recente economic changes in Psychiatry on academic Psychiatry programs. Am. J. Psychiatry, v.153, p.307-8, 1996. PAM, A. A critique of the scientific status of Biological Psychiatry. Acta Psychiatr. Scand., v.82 (suppl.362), p.1-35, 1990. RAMON, S. The impact of the Italian Psychiatry reforms on North American and British professionals. Int. J. Soc. Psychiatry, v. 35, p.120-7, 1989. ROCHEFORT, D. A. Origins of the Third Psychiatric Revolution: The Community Mental Health Centers Act of 1963. J. Health Polit. Policy Law, v.9, p.1-30, 1984. ROGLER, L. H. Making sense of historical changes in the diagnostic and statistical manual of mental disorders: five propositions. J. Health Soc. Behav., v. 38, p.9-20, 1997. TORREY, E. F. A morte da Psiquiatria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. WILSON D. DSM-III and the transformation of American Psychyatric: a history. Am. J. Psychiatry, v.150, p.399-410, 1993.
PALAVRAS-CHAVE: Psiquiatria; comportamento; fatores culturais. KEY WORDS: Psychiatry; behavior; cultural factors. PALABRAS CLAVE: Psiquiatrial conductal; factores culturales. Recebido para publicação em: 25/10/99. Aprovado para publicação em: 06/04/00.
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PROJETO PEGAPACAPÁ: saúde, cultura e reprodução no agreste pernambucano* PEGAPACAPÁ PROJECT: Healthcare, culture and reproduction in the hinterlands of the state of Pernambuco (Brazil)
Otávio Valença1
Em Pernambuco, assim como em vários lugares no Brasil, a cultura popular é parte intrínseca da vida da maioria dos cidadãos. Este fato é ainda mais evidente nas camadas pobres da população e entre os excluídos. Nada melhor, portanto, do que se utilizar da cultura popular para educar e informar essas populações, onde a cultura apresenta fortes diferenças em relação ao centro urbano. Este é justamente o objetivo do Projeto Pegapacapá: Saúde, Reprodução e Cultura no Agreste Pernambucano. Trata-se de democratizar o conhecimento sobre doenças sexualmente transmissíveis e AIDS na região do agreste pernambucano, que geralmente fica à margem desse tipo de informação, fazendo-se valer, para isso, de um instrumento eficaz: a própria cultura das pessoas as quais se visa atingir, tendo como base o universo no qual elas vivem. DE ONDE VEM O PEGAPACAPÁ? Ocorre anualmente o Festival de Inverno de Garanhuns, patrocinado pela Secretaria de Cultura do Estado, para o qual convergem operadores culturais, inclusive de outros Estados, e seu cancioneiro. No evento de 1995, foi breve e informalmente articulada uma visita do bumba-meu-boi ‘O Boi da Macuca’ - um grupo cultural típico da região - aos leitos e enfermarias de Clínica Médica e Pediatria do Hospital Geral da cidade. A presença do ‘Boi’, naquele espaço árido e restrito da prestação de serviços de saúde, desencadeou emoções nas pessoas internadas, expressas em gestos, choros, risadas e palavras de carinho e cumprimento ao ‘animal-homem-mito’.
* Projeto financiado entre 1998 e 2000 pelo Programa de Bolsas no Brasil da Fundação MacArthur, apoiado pela Coordenação de Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Pernambuco, FCM/UPE. 1
Pesquisador da CPEx, FCM/ UPE, coordenador geral do Projeto. <otaviovalenca@ig.com.br>
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Parecia trazer-lhes algo a mais do que a atenção médica estaria oferecendo. E foi assim que surgiu a idéia de trabalhar este encontro da saúde com a cultura. Através de práticas inovadoras, ao mesmo tempo em que a saúde ganha uma atmosfera mais lúdica, a cultura popular aceita ensaiar um maior pragmatismo e objetivação de seu devir. O nome “Pegapacapá” é uma articulação fonética utilizada no linguajar popular do Nordeste para expressar constrangimento ou conflito. Pode tanto caracterizar uma situação doméstica, como pública, envolvendo homens ou mulheres. Sua origem etimológica é a expressão “Pega para Capar”, ou “Pega pra Capar”, provavelmente relacionada ao cotidiano de trabalho na pecuária. POR QUÊ? A Coordenação do Programa DST/ AIDS do Ministério da Saúde, em recente Boletim Epidemiológico2 confirma um comportamento preocupante: a epidemia HIV/AIDS caminha em direção ao interior do país, atingindo principalmente donas-de-casa heterossexuais casadas, o que destaca o papel dos homens na circulação do vírus. Além de sugerir fortemente uma desigualdade na eficácia das estratégias de comunicação em prevenção ao HIV no Brasil, os dados revelam a necessidade de uma maior atenção ao interior do país, às comunidades rurais, para onde a interiorização e pauperização da epidemia deverão encontrar no seu trajeto, serviços e pessoas menos capacitadas a enfrentar o problema, além de uma cultura sexual ainda mais distinta das normas institucionais tradicionais de prevenção. A linguagem dos processos tecnológicos que acionam programas e práticas de saúde, constituídos à revelia do coletivo, expressam o caráter reprodutor de desigualdades no sistema de saúde, sua direção normatizadora e a distância que guarda de elementos fundamentais ao universo social simbólico. A cultura popular não encontra eco nas instituições e o hiato alcança a própria definição dos problemas de saúde passíveis de priorização, tanto pela população, quanto pelos serviços. Este é o problema fundamental que constrói o espaço de atuação do Pegapacapá, um misto de pesquisa e educação em saúde, que utiliza a cultura popular como instrumento e fim. Graças a esse trabalho de educação em saúde2, o Projeto recebeu da APTA - Associação para Prevenção e Tratamento da AIDS, em parceria com a UNESCO, UNICEF, Programa Estadual DST/ AIDS de São Paulo, Coordenação Nacional de DST/AIDS e Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, o Prêmio Sheila Cortopassi de Oliveira, como melhor projeto na Categoria ARTES CONTRA A AIDS.
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2 ANO XIII nº 01 Semana Epidemiológica 48/99 a 22/00 - Dezembro de 1999 a Junho de 2000
2 Membros da equipe, pesquisadores em Saúde Reprodutiva: Joseane Guedes Corrêa, psicóloga; Márcia Marcondes, psicóloga sanitarista e bióloga, (mcmarcondes@ig.com.br); Simone Brito da Silva, psicóloga sanitarista, (equiser@bol.com.br)
CRIAÇÃO
PARA QUE? O desenvolvimento de estratégias de prevenção em Saúde Sexual e Reprodutiva localmente adequadas, que privilegiasse os homens, e utilizasse a Cultura Popular como base instrumental, lançou vários desafios à equipe do Projeto, tais como construir instrumentos de investigação dos elementos simbólicos da sexualidade na cultura popular da região; captar os principais problemas ligados à saúde reprodutiva para a população; levantamento de soluções e enfrentamentos no cancioneiro, relativos aos problemas de saúde reprodutiva identificados e finalmente, “intervir” na proposição temática, por meio de grupos de discussão e da produção de trabalhos conjuntos (oficinas) de prevenção em parceria com os operadores da cultura popular. Em direção às práticas de saúde, o que se procura é constituir um diálogo mais fecundo entre os serviços públicos locais de saúde e a cultura popular, na esfera da Saúde Reprodutiva, pelo incremento à participação popular no processo de tomada de decisões dos serviços e programas locais. Ao mesmo tempo e não menos importante, abre-se um novo e importante mercado de trabalho para os artistas populares como operadores da saúde, formando-se “multiplicadores” , o que pode garantir maior auto-sustentabilidade ao Projeto.
PALAVRAS-CHAVE: Educação em Saúde; doenças sexualmente transmissíveis; promoção da saúde. KEY WORDS: Healthcare Education; sexually transmitted diseases; health promotion.
Recebido para publicação em: 05/10/00. Aprovado para publicação em: 07/11/00.
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