v.4 n.7, ago. 2000

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Interface Comunicação, Saúde, Educação

APRESENTAÇÃO

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NOTA DOS EDITORES

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ENSAIOS sobre Redes de Poder

DEBATES 113

A natureza do poder: técnica e ação social Ana Clara Torres Ribeiro

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Contemporaneidade como idade mídia Antonio Albino Canelas Rubim

25

Redes sociais, poder e saúde à luz das classes populares numa conjuntura de crise Victor Vincent Valla

37

Políticas nacionais de comunicação em tempos de convergência tecnológica: uma aproximação ao caso da Saúde Áurea Maria da Rocha Pitta; Flávio Ricardo Liberali Magajewski

61

119 122 126

Uma proposta de abordagem transdisciplinar para avaliação em Saúde Oswaldo Yoshimi Tanaka; Cristina Melo debatedores Hugo Mercer Luiz Carlos de Oliveira Cecílio Marina Peduzzi

129

Universidade e formação docente entrevista com António Nóvoa

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LIVROS

143

TESES

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NOTAS BREVES ESPAÇO ABERTO

163

A educação superior no século XXI: comentários sobre o documento da Unesco Sérgio Castanho

167

A editora universitária, os livros do século XXI e seus leitores José Castilho Marques Neto

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CRIAÇÃO

ARTIGOS e RELATOS A comunicação midiática e o Sistema Único de Saúde Valdir de Castro Oliveira

71

Leishmaniose visceral: história jornalística de uma epidemia em Belo Horizonte, Brasil

83

Paula Dias Bevilácqua et al. Bactrins e quebra-pedras 103 Melvina Afra Mendes de Araújo


Interface Comunnication, Health, Education PRESENTATION

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EDITORS NOTE

11

113

The nature of power: technique and social action Ana Clara Torres Ribeiro

13

119 122 126

Contemporaneity as the media age Antonio Albino Canelas Rubim

25

Social networks, power and health vs. common people in a crisis environment Victor Vincent Valla

37

National communication policies during times of technological convergence: examining the case of Healthcare Áurea Maria da Rocha Pitta; Flávio Ricardo Liberali Magajewski

61

DEBATES

ESSAYS on Power networks

debaters Hugo Mercer Luiz Carlos de Oliveira Cecílio Marina Peduzzi

129

The University and the training of professors interview with António Nóvoa

139

BOOKS

143

TESES

149

BRIEF NOTES OPEN SPACE

163

Higher education in the 21st century: comments on the Unesco document Sérgio Castanho

167

University publishing companies, 21st century books

ARTICLES and REPORTS Media communication and the Single Healthcare System Valdir de Castro Oliveira

71

Visceral leishmaniasis: the journalistic history an epidemic

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and their readers José Castilho Marques Neto

in the city of Belo Horizonte, Brazil

Paula Dias Bevilácqua et al. Antibiotics and healing plants 103

Melvina Afra Mendes de Araújo

A proposal for a transdisciplinary approach to evaluation in the healthcare field Oswaldo Yoshimi Tanaka; Cristina Melo

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CREATION


APRESENTAÇÃO

INTERFACE realiza, com a publicação deste número, um desafio: trazer um material que reflete – tanto no sentido de espelhar, como de examinar o próprio conteúdo – o objeto da existência desta Revista. Estabelece um grande arco para o entendimento das possibilidades dessa enorme quantidade de configurações que se elaboram e se reelaboram neste final de século e milênio no campo da informação. A inteligente seqüência dada ao material oferece ao leitor um momento privilegiado de acercamento com um tema que se abre com uma abalizada discussão sobre a comunicação na atualidade e se fecha com a instigante discussão sobre os livros no século XXI e seus leitores. Preenchendo o espaço polarizado por essa discussão de textos, o que se comunica aos leitores é uma extensa, rica e fundamentada proposta de abordar temas cujos núcleos se centralizam em torno dos novos significados da noção de rede; das relações redes sociais/educação/ saúde pública/apoio social; dos condicionantes políticos na articulação comunicação/ educação/informação; do papel da imprensa jornalística na construção narrativa de um evento epidêmico; da rediscussão das relações entre a lógica biomédica, a fitoterapia e o saber popular no uso de ervas medicinais. Os debates sobre a transdisciplinaridade na avaliação de serviços, a entrevista tratando da formação docente, a resenha, os informes e a seção de criação condensam, neste número, o que tem sido, no meu entendimento, a proposta desta Revista: trabalhar a educação como projeto, vocação e possibilidade de construção de uma sociedade democrática e justa. Os conteúdos deste número têm uma identidade temática, que exige retomar essas questões centrais, motivadas pelos próprios trabalhos. Em primeiro lugar, a educação como projeto. Se tomarmos o projeto na vertente sartriana, (“A questão do método”), em que projeto e sujeito formam uma unidade dialética, pois “o homem define-se pelo seu projeto”, superando “perpetuamente a condição que lhe é dada”, revelando e determinando sua situação, “transcendendo-a para objetivar-se, pelo trabalho, pela ação, pelo gesto”, estaremos propondo a educação como processo que deita raízes no passado, fixa seu olhar sobre o presente, mas coloca o futuro como devir. Nesse sentido, não podemos marginalizar a compreensão da educação da dinâmica social e tecnológica que nos remete a formulações pedagógicas/educacionais impensáveis há algumas décadas. Praticamente, de um saber confinado – a era dos manuais passa-se para um saber que se distribui não somente pelos mais distintos veículos,

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mas se torna virtualizado e, como dizem os teóricos da área, a era informacional irá exigir-nos a saída do “estado presencial”. Esta visão, entretanto, não pode nos iludir. Recentemente, John Robert Schmitz (Folha, 18/7/00, A3) alertava sobre a época digital, lembrando que apenas três de cada cem brasileiros possuem um computador, o que exclui milhares de pessoas do contato com as modernas redes de comunicação. Refere-se, ainda, à utilização feita por usuários, jovens e adultos, de sites que “oferecem pouco ou nenhum valor informativo e instrutivo”. Portanto, o “estado presencial” é ainda a nossa realidade e, como destaca Marques Neto, neste número, devemos estar preparados para as mudanças que estão ocorrendo no mundo do livro – a “terceira revolução do livro”, a do livro eletrônico, depois da primeira revolução, inaugurada com a impressão, que conduziu a uma segunda, a da disseminação. Esta terceira revolução avançará para uma relação diferente do texto com o leitor – o hipertexto - de uma inevitável “civilização da tela do computador”. Mas, como já dissemos, esta probabilidade poderá demandar algum tempo e, como afirma Roger Chartier, citado por Marques Neto, o mais provável é a convivência, ainda durante algumas décadas, do manuscrito, da publicação impressa e da textualidade eletrônica. A segunda questão, de abordar a educação como vocação, remete-nos a considerá-la não somente como técnica, mas como locus para a formação social e política reflexiva. Neste sentido, os conceitos iniciais trabalhados por Ribeiro, para dimensionar a noção de rede, parecem-nos fortalecer a relação com os processos educacionais, os de “mediações entre materialidade e ação social”, sem esquecer os nexos a serem estabelecidos com as novas tecnologias. Sem dúvida, o texto de Valla é da maior importância, quando nos aponta como trabalhar com duas categorias fundamentais –a solidariedade e o apoio social, como orientadoras da vocação do construir pedagógico na saúde. Finalmente, considerar a educação como possibilidade é tentar uma leitura que a tome como instrumento para pensá-la tanto de forma autônoma – conjunto de normas, procedimentos e paradigmas, ou seja, um processo específico, como de considerá-la parte da dinâmica social global – como processo inclusivo. Situá-la como processo histórico-social, comprometida com os avanços tecnológicos, porém sem afastá-la de seus compromissos humanos, parece-nos garantir o seu papel frente às rápidas mudanças e políticas globalizadoras e desumanizantes. Amarrar em poucos parágrafos a complexidade dos processos educacionais em época de intensa transformação, como a atual, e apresentar a diversidade temática deste número da Revista não é tarefa fácil. Como os leitores poderão sentir, mais do que as palavras deste Editorial, o prazer maior estará em acompanhar o cuidadoso exercício daqueles que, além de exercerem o ofício de ensinar, pesquisam e narram sobre o conhecimento da educação e da saúde, fazendo-nos continuar acreditando que é possível aliar saber e ação na construção de um mundo melhor. Everardo Duarte Nunes Departamento de Medicina Preventiva e Social Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP Julho de 2000

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PRESENTATION

In this issue, INTERFACE faces a challenge: to bring material that reflects – both in the sense of mirroring as in that of examining its own content – the reason for it very existence. This issue establishes a significant arena for understanding the possibilities of the enormous amount of configurations that are being developed and redeveloped at the end of this century and millenium in the field of information. An intelligent sequencing of the material provides the reader with a unique opportunity for coming into contact with a theme that opens with a well-founded examination of current communication, and that closes with an exciting discussion on books and their readers in the twenty-first century. Occupying a space polarized by this debate on texts, what is communicated to the reader is an extensive, rich and well-founded proposal to approach themes whose core focuses on the new meanings of the network idea; on political conditions that apply to articulation, communication, education and information; on the role of the press in narrating an epidemic event; and on the renewed discussion of the relationship between biomedical logic, plant therapies and popular medical lore in the use of medicinal herbs. The debates on transdisciplinarity in evaluating services, the interview that deals with the training of professors and the other reports and summaries in this issue, to the best of my understanding, concisely convey the underlying intent of this publication: to deal with education as a project, a vocation, and the possibility of building a fair and democratic society. The contents of this issue have share a commonality of themes, forcing us to reexamine these central issues, spurred by the articles themselves. First, let us consider education as a project. If we look at the project from Sartre’s point of view (“The issue of method”), i.e., project and subject form a dialectic unit, because “man is defined by his project”, overcoming “eternally the condition that he is born into”, disclosing and determining his circumstances, “transcending them to become objective, by means of work, action, and gesture”, we will be proposing education as a process rooted in the past, regarding the present, but looking upon the future as the process of becoming. In this sense, we cannot divorce an understanding of education from social and technological dynamics, which leads us to pedagogical and educational possibilities unthinkable only a few decades ago. In practice, from confined knowledge – the era of manuals – one evolves toward knowledge not only distributed across the broadest range of vehicles, but knowledge that is also becoming virtual. As explained by the

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theoreticians of this field, the information era will force us to exit the “state of presentness”. This view, however, should not lead us to delude ourselves. Recently, John Robert Schmitz (Folha de São Paulo newspaper, July 18, 2000, A3) warned us about the dangers of the digital era, reminding us that only three out of every one hundred Brazilians own a computer. This excludes thousands of people from coming into contact with modern communication networks. He refers, furthermore, to the fact that both young and adult users spend time on sites with “little or no informative or instructive value”. Therefore, the “state of presentness” continues to be our reality and, as Marques Neto stressed, we must be prepared for the changes that are taking place in the world of books – the “third book revolution”, the revolution of the electronic book, which follows the first revolution, resulting from the invention of the press, which, in turn, led to the second one, the dissemination of reading matter. The third revolution will advance toward a different relationship between reader and text: hypertext and the inevitable “computer screen civilization”. However, as we have already mentioned, this possibility may still take some time and, as stated by Roger Chartier, according to Marques Neto, the most probable scenario is the coexistence, for some decades to come, of text in manuscript form, printed publications and electronic text. The second issue, which concerns approaching education as a vocation, leads us to look upon the latter not only as technique, but also as the locus for reflexive social and political training. In this sense, it appears to us that the initial concepts developed by Ribeiro to assess the dimensions of the network notion strengthen the connection with educational processes, those that refer to “the mediation between materiality and social action”, without forgetting the nexus that are to be established through new technologies. Valla’s text is undoubtedly of paramount importance, showing us how to work with fundamental categories, solidarity and welfare support, as guidelines for the vocation of developing teaching in the field of healthcare. Finally, education as a possibility refers to trying to understand education itself as an instrument, to regard it both as a free-standing element (a set of norms, procedures and paradigms, or, in other words, a specific process that is a part of global social dynamics) and as an inclusive process. To find out how education is situated in the historical and social process, and its commitment to technological progress, yet without abandoning its human obligations, seems to us to ensure its role vis à vis rapid change and dehumanizing, globalizing policies. It is no easy task to tie together, in a few paragraphs, the complexity of educational processes during times of deep transformation, such as the present. Nor is it easy to reveal the thematic diversity of this issue. As our readers may realize, their greater pleasure will not derive from the words of this Editorial, but from following the careful exercise of those who research and relay to us their knowledge of education and healthcare, in addition to exercising the art of teaching. They are able to make us continue believing in the possibility of combining knowledge and action to build a better world. Everardo Duarte Nunes Department of Preventive and Social Medicine The Medical School of the University of Campinas, UNICAMP July, 2000

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A natureza do poder: técnica e ação social* Ana Clara Torres Ribeiro1

RIBEIRO, A. C. T. The nature of power: technique and social action, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4, n.7, p.13-24, 2000.

This text questions the multiple-meaning character of the network notion, attempting to distinguish the current uses of this notion from those historically formulated by the Social Sciences. Based on this indication, it deals with the network notion by means of two analytical alternatives: the reflection of power and the nature of the social relations encouraged by technical networks. The analysis is carried out largely through a reflection on the sense of social action, with due note being taken of the predominance of instrumental action over radical modernity. KEY WORDS: Interpersonal relations; technological modernization; computer communication networks; power (Psychology); social change.

O texto interroga o caráter polissêmico da noção de rede, procurando distinguir os usos atuais desta noção dos classicamente formulados pelas Ciências Sociais. Com base nesta indicação, trata a noção de rede por meio de duas opções analíticas: a reflexão do poder e o teor das relações societárias estimuladas pelas redes técnicas. A análise acontece, sobretudo, pela reflexão do sentido da ação social, sendo registrado o predomínio da ação instrumental na modernidade radicalizada. PALAVRAS-CHAVES: Relações interpessoais; modernização tecnológica; redes de comunicação de computadores; poder (Psicologia); mudança social.

* Apresentado na mesa-redonda “Comunicação e Redes de Poder em Saúde”, 2º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais em Saúde, São Paulo, dezembro de 1999. Professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ); bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). <ana_ribeiro@uol.com.br>

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ANA CLARA TORRES RIBEIRO

Redes: conexões práticas e analíticas 2

“Essa transformação de uma fluidez potencial numa fluidez efetiva, por meio da velocidade exarcebada, todavia não tem e nem busca um sentido. Sem dúvida, ela serve ao exercício de uma competitividade desabrida, mas esta é uma coisa que ninguém sabe para o que realmente serve” (Milton Santos – Por uma outra globalização)

A noção de rede adquire novos conteúdos no mundo contemporâneo, em decorrência, como esclarece Milton Santos (1996), da natureza do novo sistema técnico e do novo sistema de ação. Na verdade, esta noção, conforme hoje utilizada, pressiona anteriores conceitos, expressivos da configuração dos grupos, das interações sociais e do tecido social2. Hoje, a noção de rede tende a ser deslocada da referência às relações sociais profundas em direção às mediações entre materialidade e ação social3 ou em direção aos elos, permitidos pelas novas tecnologias de informação e comunicação, entre esferas, níveis, instâncias e âmbitos da vida social. Existe ainda a tendência ao acionamento da noção de rede para indicar uma espécie de supra-sistema de ação, isto é, os vínculos, mais ou menos circunstanciais, que unem formas mais estáveis de organização social, como exemplificariam as redes de movimentos sociais (Scherer-Warren, 1999) ou formatos assumidos pela ação empresarial (Dreifuss, 1996). De fato, a mundialização da economia e as formas supra-nacionais de organização social e política estimulam e apoiam este uso da noção de rede, além dos conteúdos de projetos de modernização que envolvem tanto atores sociais quanto empresas. Entretanto, raramente se reflete a diferença, de fato existente, entre o uso atualmente predominante da noção de rede, indicativo de formas atualizadas de organização da ação, e aquele que, classicamente, indica a configuração do tecido social, isto é, relações sociais profundas, apenas compreensíveis pela análise do poder. A reflexão articulada destas duas noções de rede estimula, entretanto, a compreensão de que a problemática do poder e da ação social encontram-se presentes em qualquer escala da vida social e em contextos com desiguais níveis de incorporação técnica, em seus vínculos com a cultura e com o território (Randolph, 1998). Por outro lado, a falta de discernimento entre os dois usos da noção de rede faz com que não ocorra distinção analítica entre formas de agir relacionadas à organização tradicional e cotidiana da vida social, indicadas classicamente por teorias da Antropologia e da Sociologia, e formas de agir expressivas da nova eficácia, da orientação pragmática da ação, atualmente expressa na fugacidade das relações sociais. Nesta última face da noção de rede, surgem questões, nem sempre claras, decorrentes de aproximações analíticas e práticas entre agir econômico e ação social, entre agentes econômicos e sujeitos sociais, fazendo com que a análise das instituições se confunda com características da organização empresarial, como exemplificam as atuais referências ao pósfordismo, no intuito de descrever a totalidade da realidade social. Aceita-se assim, com facilidade, que análises competentes das novas relações técnicas e sociais de produção sejam transpostas para a reflexão das relações societárias, perdendo-se de vista o estudo dos valores que conduzem à ação social e, ainda, à configuração cultural das relações de poder. O envolvimento

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No Concise Oxford Dictionary of Sociology, lemos que “O termo rede referese a indivíduos (e mais raramente coletividades e papéis) que estão ligados por uma ou mais relações sociais, formando uma rede social. Exemplos de relações incluem criação de filhos, comunicação, amizade, autoridade e contato sexual”.

3 Weber (1997, p.18) propõe o seguinte conceito de ação social como base para a formulação de tipos ideais articuladores de sua teoria da ação: “A ação social (incluindo tolerância e omissão) se orienta pelas ações de outros, que podem ser passadas, presentes ou esperadas como futuras (vingança por prévios ataques, réplica a ataques presentes, medidas de defesa frente a ataques futuros). Os ‘outros’ podem ser individualizados e conhecidos ou uma pluralidade de indivíduos indeterminados e completamente desconhecidos (o ‘dinheiro’, por exemplo, significa um bem – de troca – que o agente admite no intercâmbio porque sua ação está orientada pela expectativa de que muitos outros, agora indeterminados e desconhecidos, estão dispostos a aceitá-lo também, por sua parte, numa troca futura)”.


A NATUREZA DO PODER

4 Morin (1999, p.32) recorda-nos o sentido de paradigma: “A palavra em grego queria dizer ‘exemplo’, exemplificação – quer dizer, um modelo, a estrutura de pensamento que controla todos os pensamentos que daí se originam. Dito de outro modo, o nível paradigmático é o núcleo forte que comanda todos os pensamentos, todas as idéias, todos os conhecimentos que se produzem sob o seu império”.

dos espaços da reprodução pelas novas tecnologias – o domicílio e o consumo – tem permitido que a generalização de tendências sócio-culturais, emanadas da esfera da produção, oriente agilmente a ação social e o estudo da sociedade, fazendo com que se aceite a idéia de que existe um novo paradigma (pósfordista ou pós-moderno) efetivamente catalizador da vida social, inclusive no que concerne às relações sociedade-Estado4. Estranhamente, o denominado pós-fordismo parece oferecer numerosas certezas analíticas ao mesmo tempo que, contraditoriamente, estimula o reconhecimento da indeterminação, da incerteza e do acaso. Neste sentido, poderia ser dito que uma descrição dos processos contemporâneos, construída a partir da ruptura com o passado (o fordismo), adquire a fisionomia de um paradigma que retém a emergência de um nível paradigmático, a ser assumido pelo pensamento social, realmente transformador das formas contemporâneas de compreender a vida coletiva. Nas palavras de Morin (1996, p.33): O conhecimento, sob o controle do cérebro, separa e reduz. Reduziremos o homem ao animal, o vivo físico-químico. Ora, o problema não é reduzir nem separar, mas diferenciar e juntar. O problema-chave é o de um pensamento que una, por isso a palavra complexidade, a meu ver, é tão importante, já que complexus significa ‘o que é tecido junto’, o que dá uma feição à tapeçaria. O pensamento complexo é o pensamento que se esforça para unir, não na confusão, mas operando diferenciações.

Unir diferenciando e distinguindo, resistir às classificações arbitrárias e às divisões disciplinares arcaicas seriam alguns dos caminhos, propostos por este autor, para o desvendamento de uma nova maneira de conhecer (e de viver). Tendo em vista esta orientação reflexiva, poderia ser dito que as associações imediatas entre rede técnica e rede social, alimentadas pela indiferenciação entre relações técnicas e sociais de produção e relações societárias ou, ainda, entre rede social primária e rede supra-grupos sociais – cujo conceito ainda precisa ser desenvolvido – reduz a percepção da complexidade do mundo contemporâneo. Entretanto, a complexidade (Morin, 1996) transparece no atual convívio entre fortalecimento de valores tradicionais e formas novíssimas de organização social (Maffesoli, 1997) ou entre a preservação de práticas tradicionais de exercício do poder e acionamento de recursos técnicos atualizados na busca de convencimento ou da legitimidade política. Como afirmam Pena-Veiga e Pinheiro do Nascimento (1999, p.10) em introdução a livro dedicado à obra de Morin: Sabemos (...) que nos encontramos atualmente em uma encruzilhada epistemológica e, por isso, as ciências humanas não podem continuar consagrando tanta energia e/ou conhecimento na esperança de reduzir a complexidade do mundo, mesmo que seja pesada e oprimente para nós todos. É impossível, para a ciência, eliminar ou mesmo reduzir a complexidade. Não é possível escondê-la, pois é inerente aos fenômenos.

A redução da complexidade dificulta a análise crítica de alguns fatos de grande relevância cultural e política. Entre estes fatos podem ser citados: (1) – a

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transposição de modelos da gestão privada para a gestão pública, realizada em nome da eficácia e da transparência no uso dos recursos públicos; (2) – a absorção a-crítica, por organizações sociais e pelo Estado, de projetos de modernização que desconhecem a constituição do tecido social (as redes primárias, historicamente constituídas, responsáveis pela consolidação de valores); (3) - o deslocamento radical, como permite reconhecer a obra de Weber (1997), da ação dirigida a valores em direção à ação dirigida a fins. Redes e ação instrumental Este deslocamento da ação dirigida a valores para a ação dirigida a fins5 – que se encontra articulado à crise ética contemporânea por expressar a transformação de valores em meios para o alcance de objetivos – tem sido responsável por perdas em sentidos da ação e, desta forma, pelo ativismo como norte da conduta positivamente valorizada. A extensão alcançada por esta orientação é reconhecível em procedimentos institucionais, na difusão de códigos comportamentais no mercado de trabalho, em avaliações de desempenho em práticas profissionais, na programação do lazer e em formas monitoradas de uso dos espaços públicos. O ativismo, ao significar a absorção da velocidade na ação social, traz, como contrapartida, o aumento do formalismo nas relações societárias. Assim, o ativismo, descolado de transformações sociais amplas, constitui um dos ângulos da crise institucional contemporânea, demonstrando a desconexão entre agir institucional, calcado no formalismo, e comportamentos sociais espontâneos. Como indica Argüello (1999, p.142), ao relembrar a contribuição weberiana à reflexão da modernidade: “Em sua diagnose da modernidade, Weber afirma a inelutabilidade de uma racionalidade estritamente formal peculiar à ordem social moderna (...), racionalidade esta que provoca uma fragmentação entre razão e consciência, e por conseguinte, o domínio de uma razão ‘cínica’”. Por outro lado, estas perdas, observadas em sentidos da ação, correspondem tanto a crises identitárias, inclusive nas profissões, quanto à hegemonia da administração (e da gestão) em instituições públicas e privadas; o que traz, como conseqüência, tendências à burocratização de numerosas práticas sociais. Trata-se, neste momento, da radicalização do denominado racionalismo ocidental, analisado por Weber (Souza, 1999), e, portanto, de processos de ocidentalização do mundo que atingem, com especial força, as sociedades periféricas (Latouche, 1994). Afinal, os formatos assumidos pela ação social correspondem à atualização e/ou ruptura de formas herdadas de organização social. Assim, a face polissêmica da noção de rede precisa ser efetivamente reconhecida e analiticamente enfrentada. Trata-se de uma noção que, sem dúvida, indica a mudança; podendo ser incorporada, de forma proveitosa, no estudo da desinstitucionalização de relações sociais e de novas formas de organização social. Neste sentido, a rede é, simultaneamente, um instrumento analítico, que necessita ser afinado para o trato de objetos específicos, e uma forma social, articulada a processos concretos de mudança técnica e cultural, de amplas conseqüências sociais. No entanto, a falta de discernimento entre conceito e fato – permitindo o uso genérico e aparentemente confortável, já que consensual, da noção de rede – tem sido responsável pela incorporação, na produção em Ciências Sociais, de

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5 Na construção dos tipos de ação, Weber (1997, p.21) propõe que: “Atua racionalmente com relação a fins quem orienta sua ação pelo fim, meios e consequências nela implicadas e para o que avalia racionalmente os meios com os fins, os fins com as conseqüências implicadas e os diferentes fins entre si; em todo caso, pois, quem não atue nem afetivamente (emotivamente, em particular) nem orientado pela tradição”.


A NATUREZA DO PODER

elementos do pragmatismo e do ativismo decorrentes do pensamento único; sendo assim estimuladas transposições a-críticas entre mudança técnica, economia e sociedade. De fato, acontecem, nestas transposições, embricamentos entre projetos de modernização, cujas origens tantas vezes permanecem desconhecidas, e conceito, cujo aprimoramento é contido pela polissemia, possibilitando que a sedução da técnica contemporânea seja transferida à análise da ação social. Para este texto, optamos por pressionar a noção de rede por meio de dois movimentos analíticos complementares: o primeiro, refere-se à dimensão societária dos projetos contemporâneos de modernização e, o segundo, diz respeito à reflexão do poder, às formas de comando. Procuramos, por esta opção analítica, reduzir o acionamento da noção de rede como metáfora, ou seja, como uma nomeação dos fenômenos sociais que impede a indicação precisa de atividades sociais e econômicas ou que pemite desconhecer a natureza mercantil da técnica e os interesses envolvidos em sua difusão, sempre social e territorialmente seletiva. Redes: socialidade e poder A valorização analítica das relações societárias corresponde à existência, acima referida, de movimentos estruturantes da vida social, configurados por mediações entre escalas, tempos e contextos sociais. Estes movimentos, controlados pelos detentores da técnica, são permitidos e apoiados pela agilização e pela extensão contemporâneas da comunicação e da informação; o que não implica, é claro, a completa desestruturação das esferas vitais articuladas, conectadas, pelas novas tecnologias. Entretanto, estes movimentos, ao fazerem aflorar um novo tecido social virtual e lacunar, indicam a possível constituição de uma existência social suprainstitucional, correspondendo à necessidade de análise de relações propriamente societárias; análise que subordine, reflexivamente, relações técnicas ao estudo de âmbitos historicamente delimitados das relações sociais. Acredita-se que a noção de rede, deste viés analítico, nomearia, ocultando, uma amplíssima mudança, em curso, na própria configuração do que é sociedade. A natureza do novo Ser social, difusor permanente de inovações tecnológicas e de formas renovadas de ação, incorpora, transformando, contextos anteriores de organização das relações sociais, merecendo assim, a nosso ver, uma reflexão ética aprofundada, já que sua constituição tem absorvido parcelas crescentes de recursos públicos, inclusive na periferia do capitalismo, de esforços de atualização do tecido social, do trabalho de muitos e de investimentos sociais espontâneos. Talvez possa ser dito, também, que a ênfase analítica na globalização da economia, isto é, na nova mundialização do capitalismo, ao privilegiar o nível econômico da vida coletiva, dificulta a plena apreensão da natureza do sistema social atualmente em gestação que tem sido indicado, de forma precária, pela idéia de sociedade global. Esta idéia surge do imbricamento entre escala do mercado e escala alcançada por práticas sociais, sendo salientadas e analiticamente valorizadas tendências à padronização cultural e à homogeneização dos costumes. Entretanto, a emergência de um novo e mais abrangente sistema social implica não apenas na difusão de práticas renovadas de trabalho e consumo;

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mas, sobretudo, no lastreamento de uma forma de agir facilitadora da racionalização das relações sociais e da instauração de um complexo de relações societárias orientado para a eficácia sistêmica. Afinal, o novo sistema é expressivo da modernidade radicalizada (Giddens, 1990) e, como tal, portador de doses acrescidas de racionalidade, inclusive daquele agir racional que encontra-se inscrito e favorecido nas técnicas. É neste sentido que uma nova e específica noção de rede precisa ser desenvolvida, sendo o próprio nome rede preservado ou não na indicação dos fenômenos expressivos da sistematicidade que hoje transformam instituições e relações sociais em direção ao predomínio da ação instrumental. Nas contundentes palavras de Santos (2000, p.60): Na verdade, a perversidade deixa de se manifestar por fatos isolados, atribuídos a distorções da personalidade, para se estabelecer como um sistema. Ao nosso ver, a causa essencial da perversidade sistêmica é a instituição, por lei geral da vida social, da competitividade como regra absoluta, uma competitividade que ocorre sobre todo o edifício social.

Neste sentido, acrescentamos que o privilégio, pela análise, da esfera da produção (conforme o paradigma pós-fordista) ou das redes (numa mescla, ainda pouco clara, com práticas e vivências anteriores ou com a técnica) tem retido a percepção da nova sistematicidade que orienta a ação social, correspondente ao predomínio do pragmatismo nas relações societárias e à instauração de uma velocidade que escapa aos limites humanos e às culturas tradicionais e, ainda, ao ritmo necessário à manifestação dos sentimentos e à escolha de valores orientadores da conduta. Ainda nas palavras de Santos (2000, p.46): Neste mundo globalizado, a competitividade, o consumo, a confusão dos espíritos constituem baluartes do presente estado de coisas. A competitividade comanda nossas formas de ação. O consumo comanda nossas formas de inação. E a confusão dos espíritos impede o nosso entendimento do mundo, do país, do lugar, da sociedade e de cada um de nós mesmos.

De fato, as mudanças em curso atingem, inclusive, instituições emanadoras de valores como o Estado e a Igreja (Ribeiro e Ribeiro, 1994), exigindo a reflexão daquelas relações que correspondem à sociedade como um todo, às formações sociais. Não se trata, apenas, da ruptura em fronteiras físicas possibilitada pelas inovações tecnológicas mas, também, de rupturas em instituições historicamente vinculadas à orquestração das relações sociais, seja no sentido da conservação de valores seja no da mudança. Esta observação também pode ser dirigida à política, quando constata-se o predomínio da burocratização e da competividade nesta esfera da vida social e, ainda, o desencantamento, tão bem trabalhado por Weber na reflexão da modernidade. A aproximação do tema da rede da problemática das relações societárias e do desencantamento possibilita a reflexão dos efeitos sociais da técnica a partir de uma orientação analítica preocupada com o sentido (ou a perda de sentido) da ação. Nesta direção, é importante registrar que Weber (1997) retira do

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âmbito da ação propriamente social seja a ação exterior, que somente se orienta por determinadas expectativas de reações de objetos materiais, seja a conduta íntima, que não se orienta por reações de terceiros. Entretanto, ambas ações emergem, com intensidade, no mundo contemporâneo, em associação com a difusão das novas tecnologias que tanto artificializam quanto intimizam a ação social. As redes técnicas implicam em ilusões de extra-corporalidade, envolvendo promessas de acesso ao saber, à competência e à ubiqüidade. Constituem, assim, caminhos para a reificação das relações sociais, dada sua natureza aparentemente leve e plástica. Como um molde, aparecem, primeiramente, como um tecido técnico incrustrado no tecido social historicamente constituído. Neste sentido, as redes enredam, no mesmo momento em que surgem como potencialidades, modificando a ação social, em articulação com expectativas sociais e valores, e a substância do poder. Trata-se do poder da técnica e da nova técnica do poder, ou seja, da natureza do sistema de ação que valoriza a ação sistêmica, associada ao teor competitivo das relações societárias. Afinal, como dito antes, é impossível pensar a ação social sem simultaneamente refletir o poder, como elemento indissociável da vida social. As redes técnicas têm afinal sua origem nas necessidades dos Estados centrais e das grandes corporações, guardando as marcas de sua origem, como antes os desenhos das estradas de ferro e as rotas das navegações (Dias, 1995). A multiplicidade de usos, permitida pelas tecnologias contemporâneas, não altera o tipo de ação favorecido nas (e pelas) redes técnicas. Submeter a técnica a ações não instrumentais demanda da sociedade esforços acrescidos que, em geral, não são lidos e nem reconhecidos. As facilidades prometidas pelas novas tecnologias escondem as dificuldades, justificando a adesão a-crítica à ação gestora que encontra, nessas tecnologias, o suporte adequado a sua difusão e legitimação. Existem obstáculos para a ação alternativa que se tornam nítidos quando é observada a acessibilidade aos novos recursos técnicos. Os obstáculos transparecem na compra obrigatória de elementos irrelevantes para a prática, em incompletudes técnicas continuamente recriadas e na subordinação do usuário à inovação permanente. As redes técnicas possibilitam, ainda, a transformação da comunicação em informação mercantil e a intensificação do ritmo da vida social, o que impede a reflexão, a meditação e a análise. Assim, as redes técnicas, estimuladas pela mídia (onde os apresentadores surgem, agora, acompanhados de laptops), permitem o fechamento de todos os espaços e de todos os tempos, a substituição de redes sociais por redes técnicas, da sociabilidade e da interatividade pela conectividade e, como nos diz Milton Santos, pela competitividade. Estes elementos materiais e imateriais sustentam a nova natureza do poder, constituindo, simultaneamente, sua forma-aparência. Dominar a técnica (o que, aliás, é quase impossível) surge hoje como promessa de modernização e de modernidade e, ainda, como promessa de acesso ao poder, desejado eterno em sua real substância, já que aparentemente “aberto a todos”. Essência e aparência, transformando a questão do poder, surgem imbricadas nas redes técnicas, envolvendo tanto redes sociais historicamente configuradas quanto o sentido hegemônico da ação social. De fato, a inovação adquire conotações associadas às linguagens e ao

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(b) - no item “Poder, técnica e resistências sociais”, observo um pequeno problema no (c), isto é, nos diferentes caminhos para o tratamento da questão do sujeito da resistência. A redação deveria ser: “(c) estabelecendo-se formas de resistência social à sistematicidade perversa através de usos transformadores das novas tecnologias”.

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acoplamento de sistemas técnicos. Desta forma, a ação hegemônica, basicamente instrumental e apoiada numa crescente capacidade de inovar, no contínuo estímulo ao ativismo, condiciona outras ações orientadas por valores ou pelo agir tradicional. As redes são poder, uma forma-aparência do poder, concretizada por mudanças nos sistemas de objetos (Santos, 1996), na criação de produtos e serviços, no predomínio da gestão sobre a ação, na imposição da administração sobre a atividade. As redes são, assim, instrumentos de sistematização da vida coletiva pela ação hegemônica. Correspondem à manifestação radicalizada da razão, de um certo tipo de racionalidade que conduz a ação dirigida a fins, a ação instrumental, estimulando a burocratização da vida social. De forma contraditória, também correspondem, por tecerem novas relações societárias, a um campo de historicidade (Touraine, 1984) que não pode ser negado e que deve ser rigorosamente disputado. Esta disputa envolve conhecimento, estratégia e domínio de novas linguagens, obrigando a encadeamentos entre atores sociais e políticos, isto é, à construção de forças sociais conscientes dos atuais riscos de fechamento sistêmico – burocrático e banalizador da violência e da exclusão – das relações societárias. Na disputa do novo campo de historicidade, Touraine (1998) sugere, por exemplo, que os conteúdos da ação instrumental não devam ser desconsiderados, já que a ação estratégica “está no mundo”, incorporada em sujeitos sociais e na cultura. Por outro lado, a construção identitária propiciada, apenas, pelo lastreamento da ação instrumental não permite a atualização de valores positivos da modernidade, como a igualdade: Somos todos iguais na medida em que todos procuramos construir nossa individualidade. Em contrapartida, se nos definirmos por nossas ações instrumentais, somos desiguais, dado que um é forte, qualificado ou educado, e o outro é fraco, não qualificado ou analfabeto. (Touraine, 1998, p.70).

As dificuldades implicadas na disputa do novo campo de historicidade, constituído por técnica e relações societárias, incluem questões relativas à constituição dos atores desta disputa. E esta é uma grande interrogação. Afinal, o novo campo de historicidade encontra-se configurado por elementos materiais e imateriais que, ao mesmo tempo em que facilitam a ação, absorvem ação, dela alimentando-se. Assim, o sistema em gestação apresenta características entrópicas, já que tende a reduzir a totalidade da ação social à ação estratégica dirigida a fins e à atividade ininterrupta, condicionando à velocidade e à abrangência crescentes. Dar sentido à técnica, subordinando-a à ação conduzida por valores, tornouse atualmente um extraordinário desafio. As forças que conseguirem fazer este movimento, isto é, produzir a mutação do automatismo em sentido, disputarão o poder que emana (e sustenta) o novo sistema social, cujos contornos atualmente apenas se vislumbram. É nesta direção que também deveriam ser estudadas as redes de movimentos sociais, em sua capacidade de atribuir sentido à ação social (Scherer-Warren, 1999). A disputa do novo campo de historicidade pressupõe a subordinação do sistema técnico, e do tipo de ação destilado por este sistema, à complexidade do(s) sistema(s) de ação. Afinal, a disponibilização do dado, tornada indiferente pela extensão da rede técnica,

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oculta a natureza do poder, que pressupõe a subordinação do dado ao seu significado para a vida social. No novo campo de historicidade, a disputa de poder caracteriza-se pelo monopólio da informação excepcional, pela sistematização e monitoramento de relações sociais e, também, pelo controle do sentido da ação, o que implica em reconhecer sua articulação ao pensamento único (Santos, 1996; Sader e Gentili, 1995). É a atribuição de sentido que comanda a máquina do mundo, o que desaparece nos discursos da pós-modernidade. Instituições, famílias, grupos sociais e indivíduos têm sido subordinados à nova organização sistêmica da ação social. A questão central é, portanto, saber quem dá sentido à máquina em permanente crescimento, densificação e, portanto, corporificação em relações societárias. Além de um novo tecido comunicante que utiliza processos técnicos anteriores, como exemplificam os chats ou as homepages, existe a configuração sistêmica que, apoiada nas redes técnicas, atribui o sentido predominante à vida em sociedade. Este novo tecido, que é sobretudo meio, obriga ao debate de valores, à recuperação da questão da finalidade da ação social. Na ausência deste momento reflexivo, a administração e o controle tornam-se hegemônicos. É destruída, por este caminho, a racionalidade profunda do fazer, que envolve a reflexão de objetivos e anseios por mudanças substantivas nas relações sociais. As redes insuflam um novo ritmo à vida coletiva, implicando o monitoramento da experiência social. Criam simultaneamente racionalidade e irracionalidade, libertam e subordinam. Estimulam, também, a face ativa da sociedade, uma multiplicação interminável de atividades. O stress da vida moderna nunca foi mais verdadeiro, ao mesmo tempo em que são condenadas ao imobilismo enormes parcelas da humanidade. Nos núcleos expansivos do novo sistema, presentes em diferentes formações sociais, pode-se falar realmente em ativismo, em ativação de relações e relacionamentos, o que corresponde à implantação de verdadeiros atratores de energias sociais e expectativas coletivas. O predomínio da atividade sobre a ação, nestes núcleos, corresponde à redução de valores a instrumentos da ação social. Entretanto, a problemática plena da ação permanece viva, já que articulada à constituição dos sujeitos sociais e ao enfrentamento de dilemas que efetivamente dão sentido à existência humana. Poder, técnica e resistências sociais Não é possível acreditar no desaparecimento dos deuses e dos demônios que conduzem a experiência da vida, a não ser numa existência privada de sentido6 . É, aliás, a percepção dos conteúdos profundos da ação que pode orientar a resistência ao ativismo, à programação, à sistematicidade. Neste sentido, pelas redes também tem sido organizada a resistência às forças hegemônicas contemporâneas, àqueles que, ao dominarem a produção do novo sistema técnico, tentam subordinar o comunicar ao informar, a identidade à imagem, o produzir ao financiar, o espaço ao tempo, a sociedade à técnica. A resistência à forma atual de exercício do poder impõe o resgate do sujeito plenamente envolto na escolha consciente de valores na orientação de sua conduta. Porém, como reter a burocratização da vida? Como conter a face administrada da existência? Como reconstruir a problemática do homem e suas

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circunstâncias no mundo contemporâneo? Acredita-se que a resposta a este tipo de pergunta dependa da preservação de condições de verdade nas relações societárias, isto é, do alcance de momentos de verdade, sempre transitórios, num contexto instável e, ainda mais, efetivamente planejado para ser instável. Estes momentos de verdade, permitindo a escolha de valores, correspondem à orientação ética da ação, revista pelo reconhecimento de características do novo sistema social em processo de consolidação. A questão do sujeito da resistência aos comandos do novo sistema técnico e do novo sistema de ação pode ser considerada por diferentes caminhos: (a) enfraquecendo-se o controle permitido pelas redes técnicas, ou mediadas pela técnica, sobre as redes sociais. Esta é uma resistência difícil que pressupõe a recusa à conectividade permanente e ao privilégio do investimento em técnica face ao investimento em gente. Trata-se do controle da mística da técnica pelo pensamento crítico por meio, por exemplo, da desconstrução de crenças que associam, automaticamente, técnica e eficácia, técnica e inteligência, técnica e garantia de futuro; (b) reconhecendo-se os coletivos criados pelas redes técnicas e aí examinando as novas condições de sujeito. Este seria o caso, por exemplo, dos coletivos ativos que emergem da mundialização dos fluxos financeiros e da extensão das redes de serviços. Podem ser citados, nesta direção, os coletivos ativos com origem nas novas formas de organização dos serviços de saúde (trabalhadores e usuários) e os protestos que têm ocorrido nas reuniões promovidas por agências multilaterais (Davos e Seattle); (c) estabelecendo-se formas de resistência social à sistematicidade perversa pelos usos transformadores das novas tecnologias. Esta alternativa pressupõe o ensino da técnica em âmbitos sociais inesperados e o desvendamento de usos, também inesperados (não programados), das novas tecnologias; (d) realizando-se o combate à difusão socialmente destrutiva da técnica. Por exemplo: denúncia do trabalho social não pago envolvido na renovação técnica dos serviços, das formas de segregação social alimentadas por inovações tecnológicas, dos usos hegemônicos de imagens e conhecimentos populares que, no entanto, são desvalorizados pelo pensamento único. Trata-se, aqui, de exigir o retorno social de investimentos feitos num aprendizado imposto; (e) desestruturando-se ambiências associadas, pelo marketing, à técnica. Esta forma de resistência depende da revalorização da face humana do trabalho e, assim, de rupturas em representações sociais correntes que associam, por exemplo, técnica, limpeza (darwinismo social) e status. Neste sentido, as novas tecnologias precisam ser reconduzidas a sua condição de simples instrumentos da ação social, sendo assim liberados os valores; (f) realizando-se a defesa do acesso socialmente livre às novas condições materiais da vida coletiva. As redes técnicas continuam presas às normas institucionais, aos protocolos de uso, à reprodução da segregação social, ao exercício do poder. Afinal, o acesso social à técnica tem ocorrido quando o poder assim o deseja (por ex: os celulares que esperaram a privatização das “teles” para se tornarem um bem de consumo popular); (g) exigindo-se o acesso popular à tecnologia de ponta. A segregação social só pode ser superada com o melhor, ou seja, com a tecnologia mais atualizada e que possibilite romper o círculo vicioso da técnica pior para o pior posicionado na estrutura social. Trata-se da garantia de acesso social amplo à nova materialidade, inclusive no nível dos direitos sociais;

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Nas palavras de Argüelo (1999, p.156) ao sintetizar uma das linhas fundamentais da problemática weberiana da modernidade, associada à emergência do indivíduo aprisionado em sua própria subjetividade e isolado de apoios institucionais amplos: “E, não sabemos a quem caberá, no futuro, viver nessa prisão onde não há mais necessidade de justificações éticas e religiosas. Se tudo se encaminhasse no sentido de uma ‘convulsiva espécie de autojustificação’, os ‘últimos homens’ de tal desenvolvimento cultural, ... poderiam ser designados como ‘especialistas sem espírito’, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado”.


Sem dúvida, as condições materiais e imateriais do novo sistema social infiltram-se na sociedade histórica. A difusão do tecido técnico novíssimo (Santos, 1996), articulado a transformações no sistema de ação, tende a cindir instituições, classes e grupos sociais. Indicações nesta direção podem ser reconhecidas na reierarquização de posições sociais, em que o conhecimento da técnica ganha relevância sobre outros saberes ou, ainda, por meio do deslocamento de segmentos sociais que passam a vivenciar uma nova velocidade e a usufruir de contatos que os distanciam das condições vivenciadas por seus grupos de origem. A cisão social faz-se acompanhar de outros movimentos expressivos da atualização seletiva do tecido da sociedade. O sistema social emergente possui formas específicas de apreender e de intervir na sociedade histórica, desenvolvendo suas próprias regras e códigos de comunicação e de avaliação dos recursos disponíveis. É assim que se torna plausível a coexistência de incertezas cada vez mais agudas e certezas permitidas pelo cálculo e pelo desdobramento controlado e monitorado de ações estratégicas. Propondo-se inicialmente como facilitador e agilizador da sociedade histórica, o novo sistema tende a impor-se, gradualmente, como único conteúdo valorizável do Ser social. Porém, da mesma forma que o tempo não destrói o espaço, já que a matéria resiste a sua transformação em fluxo, a nova instrumentalidade, posta a serviço da ação hegemônica, não destrói a sociedade histórica, que também resiste a sua transformação em fluxo. Esta é uma ilusão tecnicista que não se coaduna com qualquer obervação de senso comum. Afinal, os tempos e espaços do existir continuam envolvidos nas regras e nos limites do cotidiano. Da mesma maneira, a técnica ainda não alcançou oferecer, aos seres humanas, a superação de suas principais angústias: a perda, a dor e a morte. Além disto, a aceleração de alguns fluxos – associados à renovação exarcebada de determinadas ambiências – pode gerar o retardo de outros, como demonstra a vida urbana, em que a fluidez das novas redes é incompatível com limites também inscritos na materialidade e na sociabilidade, bastando recordar as malhas do trânsito, entre outros processos que, uma vez reunidos, criam irracionalidades no novo corpo social, desejado sistêmico e plenamente eficiente. Entretanto, as irracionalidades, que tanto irritam os usuários das novas tecnologias (como demonstra a frase: como está lento o sistema hoje!), podem ser a salvação do sujeito, já que interrompem fluxos que consomem continuamente a sociabilidade. Ainda seguindo Weber, é impossível rejeitar as características do mundo racionalizado contemporâneo, a menos que se deseje um retorno extemporâneo ao comunitarismo ou um revival forçado, e até mesmo perigoso, de práticas tradicionais superadas. Entretanto, é igualmente impossível aceitar, sem críticas e sem projetos alternativos, a nova sistematicidade que tenta se impor à experiência social, ignorando contextos sociais e aviltando ideários e memórias. Este dilema contemporâneo, aqui recuperado sob o estímulo da reflexão da noção de rede, impõe o tratamento do sentido da ação, em seus vínculos com a problemática do sujeito e com a preservação de valores como liberdade e igualdade.

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RIBEIRO, A. C. T. La naturaleza del poder: técnica y acción social, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.13-24, 2000. El texto interroga el carácter polisémico de la noción de red, procurando distinguir los usos actuales de esta noción de los clásicamente formulados por las ciencias sociales. Con base en tal indicación, trata la noción de red por medio de dos opciones analíticas: la reflexión del poder y el contenido de las relaciones societarias estimuladas por las redes técnicas. El análisis ocurre, sobre todo, por la reflexión del sentido de la acción social, registrándose el predominio de la acción instrumental en la modernidad radicalizada. KEY WORDS: Relaciones interpersonales; modernización tecnologica; redes de comunicación de computadores; poder (Psicología); cambio social.

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A contemporaneidade como idade mídia

Antonio Albino Canelas Rubim1

RUBIM, A. A. C. Contemporaneity as the media age, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.25-36, 2000.

This article is the partial result of the New Configurations of Politics in the Media Age research, which is currently being carried out with the support of the CNPq. The purpose of this text is to build a theoretical basis for thinking about the contemporary world as sociability structured and surrounded by the media, i.e., as the Media Age. KEY WORDS: Communication; mass media; socialization; information theory; cultural evolution. O presente artigo é um produto parcial da pesquisa Novas Configurações da Política na Idade Mídia, em andamento e apoiada pelo CNPq. O texto busca construir bases teóricas para pensar a contemporaneidade como sociabilidade estruturada e ambientada pelas mídias, isto é, como Idade Mídia. PALAVRAS-CHAVES: Comunicação; meios de comunicação de massa; socialização; teoria da informação; evolução cultural.

1 Professor do Departamento de Comunicação da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). <rubim@ufba.br>

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ANTONIO ALBINO CANELAS RUBIM

Um dos desafios para pensar a comunicação na atualidade diz respeito à rigorosa compreensão do lugar ocupado pela comunicação, especialmente em sua versão midiática, no mundo contemporâneo. O imprescindível tema da incidência da comunicação na sociabilidade e das modalidades de sua conexão com a contemporaneidade tem mobilizado um plural e dissonante núcleo de pensadores da atualidade, pertencentes ou não à área de estudos das teorias da comunicação. Não parece ser mera coincidência a recorrência a expressões como: “Aldeia Global” (McLuhan, 1974), “Era da Informação” ou “Sociedade Rede” (Castells, 1992), “Sociedade Informática” (Schaff, 1991), “Sociedade da Informação” (Lyon, 1988; Kumar, 1997, dentre outros), “Sociedade Conquistada pela Comunicação” (Miège, 1989), “Sociedade da Comunicação” ou “Sociedade dos Mass Media” (Vattimo, 1991), “Sociedade da Informação ou da Comunicação” (Soares, 1996), “Capitalismo de Informação” (Jameson, 1991) e “Planetas mídias” (Moraes, 1998). Todas estas denominações, entre muitas outras possíveis, têm sido insistentemente evocadas para dizer o contemporâneo. Para além das nomeações, o persistente trabalho de fazer e desfazer as articulações entre a atualidade, a situação presente do capitalismo, o mal-estar da modernidade e o ambiente comunicacional sistematicamente têm animado uma plêiade de autores, bastante díspares, sejam eles modernos, pós-modernos ou neomodernos; integrados ou críticos. Apesar desta diversidade de concepções teóricas e ideológicas, um dado comum aparece como fundamental para a investigação e para este novo enquadramento dos estudos: a compreensão da contemporaneidade como uma sociedade estruturada e ambientada pela comunicação, como uma verdadeira “Idade Mídia”, em suas profundas ressonâncias sobre a sociabilidade contemporânea em seus diversos campos. Uma sociabilidade estruturada e ambientada pelas mídias Uma primeira incursão acerca do caráter estruturante da comunicação pode ser tecida em uma interlocução crítica com o marxismo, pois este pensamento tem, em geral, insistido no lugar “supraestrutural” da comunicação, quase sempre assimilada nessa tradição de pensamento com noções como ideologia, aparelhos ideológicos, aparelhos ideológicos de Estado etc. Esta inscrição “superestrutural” ainda que condicione o social, supõe sempre uma determinação, “em última instância”, da infraestrutura, conformada pela conjunção entre forças produtivas e relações de produção, em termos marxistas. Cabe assinalar, sem pretensão de trilhar uma ordem lógica, algumas das interfaces que buscam articular na atualidade comunicação e infraestrutura econômica a partir de olhares teóricos diversificados, nem sempre compatíveis. Tais perspectivas, não necessariamente assumidas neste trabalho, demonstram em sua pluralidade um encaixe cada vez mais vigoroso entre mídias e economia. A convergência entre comunicação, telecomunicações e informática aparece entre os setores econômicos mais dinâmicos do capitalismo na atualidade. A comunicação midiática e sua correlata cultura midiatizada tem sido lembrada por muitos autores como uma das indústrias capitalistas mais significativas e

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em maior expansão no mundo contemporâneo (Featherstone, 1997, e Dizard Jr., 1998, por exemplo). Passando da produção ao consumo, inúmeros estudiosos têm destacado a associação essencial das mídias com o desenvolvimento capitalista e sua difusão, forjando uma sociedade de consumo. Jean Baudrillard (1991b), em seus primeiros e interessantes trabalhos, ao analisar a economia política do signo e a sociedade de consumo, desenvolve suas noções de valor signo e valor símbolo como novas figuras a serem incorporadas ao entendimento da reprodução do capitalismo avançado. A repercussão da comunicação e cultura midiatizadas pode ser apontada, em um sentido mais largo, como incidindo sobre o novo modo (capitalista) de vida ou ensejando os atualíssimos processos de globalização econômica, através de redes suportes dos fluxos das informações financeiras e dos capitais, fiadoras da velocidade e dos mercados planetarizados (Castells, 1992). Por fim, pode-se reter as mídias, pela publicidade, como viabilizadora da concorrência capitalista em sua modalidade atual. A lembrança desses momentos de interação entre capitalismo e comunicação, por óbvio, faz recordar apenas alguns tópicos possíveis, mas, sem dúvida, sugere a superação de uma concepção apenas “supraestrutural” da comunicação. Deter e aprofundar a reflexão no último dos aspectos elencados pode ser elucidativo da virada imprescindível a ser efetuada pelos estudos que visam compreender hoje as relações não só entre comunicação e economia, como também, por extensão, entre comunicação e sociedade. Indispensável considerar a passagem de uma concorrência capitalista baseada em preços, que realizava a transformação do produto em mercadoria pela via apenas do mercado, para um novo padrão de concorrência predominante na fase monopolista do capitalismo, detectada por Baran e Swezzy (1974), na qual as marcas governam a concorrência, subsumindo aquela baseada nos preços. Tal transmutação, fundamental para a configuração de uma “obsolescência planejada”, de uma “sociedade de consumo” e do capitalismo tardio, introduz a comunicação, especialmente em sua modalidade publicitária, no cerne da dinâmica de reprodução do próprio capitalismo. Agora, em tempos neo-liberais de endeusamento do mercado, paradoxalmente torna-se impossível a metamorfose do produto em mercadoria somente recorrendo ao mercado, em sua acepção clássica de um capitalismo concorrencial. A publicidade e a marca – com seu poder como assinala Pinho (1996) – adquirem o status essencial de viabilizadores desta metamorfose, componentes imanentes ao mercado no capitalismo tardio. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que sem publicidade e marca portanto, sem comunicação, em situações normais de vida capitalista, um produto não pode ser transformado em mercadoria. Por conseqüência, a realização do valor e a própria reprodução capitalista encontram-se comprometidas em um patamar comunicacional. Aceitar essas análises, mesmo parcialmente, implica uma revisão radical do lugar atribuído à comunicação em sua inserção na sociedade. Ao invés da antiga localização “supraestrutural” – recorrente inclusive em autores não marxistas –, a comunicação e sua derivada cultura midiática passam a ocupar também um estatuto, para continuar em metáforas marxistas, de componente “infraestrutural”, porque imprescindível à realização e reprodução (inclusive econômica) do capitalismo.

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Antes disto, Theodor Adorno e Max Horkheimer já tinham detectado a subsunção da produção da cultura a uma dinâmica de produção eminentemente capitalista, quando da formulação do conceito de indústria cultural. Este conceito, muitas vezes tão mal compreendido, em seu cerne, denuncia a preponderância da lógica da mercadoria (“indústria”) e a conseqüente subordinação a ela da lógica especificamente cultural, configurando assim uma produção (capitalista) de bens simbólicos. Isto é, aponta a expansão do capitalismo como modo de produção, agora não mais limitado a produzir bens materiais, como acontecia desde o século XVII, mas também incorporando setores cada vez mais significativos de bens simbólicos, desde o século XIX e, em especial, no século XX. Ainda que em meio a diversas peculiaridades, o capitalismo torna-se também o modo de produção de bens simbólicos. Desse modo, mesmo nas fronteiras de uma análise marxista parece impossível não refocalizar atualmente a comunicação e assumi-la como estruturante de uma sociedade contemporânea organizada em moldes de capitalismo tardio. Aliás, Castells (1992), Jameson (1991) e outros autores consideram que se vive hoje uma terceira fase do capitalismo. Nela, a informação se transforma na mercadoria mais valiosa. A noção de infraestrutura, abandonando seu significado marxista e sua metáfora dual, pode também assumir o sentido de base material da sociedade e, nesta acepção, ser igualmente reivindicada como pertinente às mídias. Para isto, basta conectar as mídias ao universo das redes. Já foi assimilado que elas dão o suporte imprescindível para o trânsito globalizado do capital, inclusive em sua forma mais veloz, volátil e voraz de capital financeiro. Indo adiante desta dimensão meramente financeira, pode-se propor uma presença mais abrangente das mídias, conformada como rede, como infraestrutura de comunicação que torna possível a nova circunstância societária, pois a articula e a molda como uma totalidade. Efetivamente, as redes aparecem como uma das mais significativas marcas da contemporaneidade. Só com a consumação do sonho espacial, com a possibilidade de satélites artificiais estacionários de telecomunicações nos anos sessenta, as redes, em seu desenho, substância e características atuais, se fazem viáveis. Televisão, na década de sessenta, e telemática, nos anos setenta, eis a idade das redes. Em A Natureza do Espaço, Santos (1996) nomeia três momentos diferenciados das redes: o pré-mecânico, o mecânico intermediário e o técnico-científico-informacional. Entretanto, para apreender a novidade das redes atuais, cabe distingui-las de suas analogias pretéritas. No passado, a malha ou circuito, por diferenciação à rede, pressupunha sempre território, materialidades (coisas, objetos etc.) e, por conseguinte, empecilhos. A rede, em sua singularidade contemporânea, deseja abolir os obstáculos, desterritorializando e desmaterializando. Sua fluidez, volatilidade e dinâmica não se ancoram em territórios. Sua quase imaterialidade e invisibilidade buscam garantir velocidade e instantaneidade. A supressão do espaço e do tempo afirma-se como constitutiva das redes, sua novidade essencial. Apesar de a palavra rede ter, conforme Parrochia (1993), origem latina (retiolus, diminutivo de retis), sendo retomada na França no século XII (reseau

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de résel), parece ser a contemporaneidade sua morada por excelência. Castells (1996), em sua admirável trilogia - The Information Age: Economy, Society and Culture - fala de uma era de capitalismo de redes, da transformação qualitativa da experiência humana ocasionada pela sociedade rede e afirma que as redes constituem mesmo a “morfologia social de nossas sociedades”, afetando a economia, o poder, a cultura e a experiência na atualidade. Relocalizada a comunicação midiática como um dos fatores estruturantes mais marcantes da sociabilidade contemporânea, um segundo movimento se anuncia como necessário: afirmar o caráter essencialmente expressivo desta infraestrutura, que produz de modo incessante sentidos, manifestos e publicizados. A onipresença tentacular desta infraestrutura de comunicação e sua imanente exposição por meio de permanente fabricação e mediação de sentidos pelas mídias constitui a singular ambiência da contemporaneidade. Cabe então, construir parâmetros que busquem elucidar a comunicação como ambiente, como tessitura onipresente que acolhe e envolve o ser e o estar no mundo na atualidade, como uma quase e segunda “natureza” que trança a sociabilidade contemporânea. Porém, antes de propor parâmetros consistentes para pensar as mídias como ambiente da atualidade, cabe distinguir esta concepção daquela acepção aproximada utilizada por Lippmann (em seu lendário livro Public Opinion, editado em 1922). Lippmann define as representações emanadas da comunicação como sendo pseudo-ambientes que se interpunham entre o homem e seu ambiente (verdadeiro). Mais que essa constatação, interessava a Lippmann as repercussões da existência social do pseudo-ambiente, pois, conforme este autor, elas “operavam, não no pseudo-ambiente onde o comportamento é estimulado, mas no verdadeiro ambiente”. A idéia de ambiência aqui reivindicada não se restringe à esfera dos conteúdos ou mesmo das representações, nem pode ser compreendida como mero falseamento (de conteúdos e representações). Pelo contrário, afirma-se que a comunicação, enquanto ambiente efetivo, se apresenta como uma espécie de nova “camada geo-tecno-social”, necessária e sobreexposta, que se agrega às camadas – natural e sócio-cultural – do ambiente existente na sociabilidade precedente. Para definir a sociedade como estruturada e ambientada pela comunicação, podem ser enumerados, sem um ordenamento hierárquico, alguns requisitos, que, em situações dadas, devem servir como indicadores acerca da pertinência e da sintonia dessa nomeação a uma determinada sociedade. Tais variáveis devem ser consideradas, constatadas e mesmo mensuradas para tornar possível a caracterização de uma sociabilidade como Idade Mídia. As variáveis propostas podem ser sinteticamente enumeradas nos seguintes tópicos: 1. Expansão quantitativa da comunicação, principalmente em sua modalidade midiatizada,

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na sociedade estudada, facilmente constatada pelos dados sobre números dos meios disponíveis, tais como: quantidade das tiragens e audiências, dimensão de redes em operação etc. 2. Diversidade das novas modalidades de mídias presentes no espectro societário, observado na complexidade da “ecologia da comunicação”, nas modalidades diferenciadas de mídias existentes e na história recente de sua proliferação e diversificação. 3. Papel desempenhado pela comunicação midiatizada como modo (crescente e até majoritário) de experenciar e conhecer a vida, a realidade e o mundo, retido por meio de dispositivos e procedimentos, qualitativos e quantitativos, a exemplo do número de horas que os meios ocupam no cotidiano das pessoas. 4. Presença e abrangência das culturas midiáticas como circuito cultural, que organiza e difunde socialmente comportamentos, percepções, sentimentos, ideários, valores etc. Dominância e sobrepujamento da cultura midiatizada sobre os outros circuitos culturais existentes, a exemplo do escolar-universitário, do popular etc. 5. Ressonâncias sociais da comunicação midiatizada sobre a produção da significação (intelectiva) e da sensibilidade (afetiva), sociais e individuais. 6. Prevalência das mídias como esfera de publicização (hegemônica) na sociabilidade estudada, dentre os diferenciados “espaços públicos” socialmente existentes, articulados e concorrentes. Tal prevalência pode ser constatada pelos estudos acerca das modalidades de publicização e suas eficácias. 7. Mutações espaciais e temporais provocadas pelas redes midiáticas, na perspectiva de forjar uma vida planetária e em tempo real. 8. Crescimento vertiginoso dos setores voltados para a produção, circulação, difusão e consumo de bens simbólicos, além da ampliação (percentual) dos trabalhadores da informação e da produção simbólica no conjunto da população economicamente ativa. Enfim, todas essas variáveis – e certamente outras possíveis de elaborar –, operando em uma dinâmica certamente desigual e combinada, devem tornar precisa a delimitação rigorosa das fronteiras de uma nova circunstância societária, a sociedade estruturada e ambientada pelas mídias. Mais que isto, o elenco de todas essas facetas, transtornadas pelas mídias, deve confirmar e permitir a mensuração e a gradação deste ambiente transbordante de comunicação, que tece e envolve o estar no mundo no espaço/tempo presente, além de apontar as possibilidades de aprofundamento em radicalidade dessa teia midiática no futuro próximo. Idade mídia como sociabilidade complexa As nomeações citadas, a sugestão do caráter e dos requisitos indicados buscam dar consistência e concretitude ao entendimento da contemporaneidade como uma sociedade estruturada e ambientada pelas mídias. Tal compreensão não dispensa, mas, pelo contrário, exige uma atenção para com suas marcas e constrangimentos capitalistas e, inclusive, iluministas, apesar da crise de muitos de seus valores e predições. A combinatória de todo esse conjunto complexo de marcas essenciais aparece como indispensável para desvelar a contemporaneidade. A incidência da comunicação não apenas estrutura e ambienta nossa singular contemporaneidade. Ela afeta em profundidade a configuração da sociabilidade

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atual, pois ela se vê composta e perpassada por “marcas” fabricadas pelas mídias, tais como o espaço eletrônico, a televivência e globalização. O espaço eletrônico, engendrado pela revolução das comunicações em rede, emerge como registro quase desmaterializado, como espaço sem território, mas que permite virtualizações e atualizações contínuas, conforme Pierre Lévy (1996). A televivência, viabilizada pelas mídias, pode ser definida como uma vivência à distância, descolada do lugar e desprendida da presença; como capacidade de vivenciar um ausente, tornado (simbolicamente) presente, em tempo real, por meio de signos. A globalização, ensejada pela comunicação midiática, caracteriza-se pela cotidiana disponibilização de um fluxo de signos e sentidos provenientes de uma extração global e não apenas de um local contíguo, como anteriormente. Mas tais traços midiáticos se realizam em uma determinada circunstância societária conformada já por outros estoques e fluxos, oriundos de outros momentos de sua história. A conjunção destas “marcas” introduzidas pelas mídias e destes estoques e fluxos anteriormente disponíveis produz um entrelaçamento, que varia entre a complementação e o conflito, e singulariza a contemporaneidade. Ela resulta assim em um sincretismo, para utilizar um termo reassumido por Canevacci (1996), potencial e sempre tenso, consubstanciado por, pelo menos, três constelações. A primeira delas se refere ao entrelaçamento que se constata no dia a dia entre os espaços geográficos - que foram alargados pelas navegações marítimas e da revolução dos transportes e, simultaneamente, concentrados pela revitalização dos territórios urbanos acontecida na modernidade - e espaços eletrônicos, expandidos e atualizados pelas “navegações virtuais”. Uma segunda constelação deriva da permeação cotidiana, da bricolage entre convivência, que pressupõe sempre presença e lugar, e televivência, uma vivência instantânea a distância, propiciada pelas mídias em rede. Uma última e terceira constelação, dentre as muitas possíveis de observar: a hibridação, termo tomado de empréstimo a Canclini (1997), entre fluxos culturais – materiais ou simbólicos – oriundos do local, entendido com um lugar investido de uma plêiade de sentidos, e outros fluxos provenientes de registros globalizados.

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Esta última convergência tem sido apreendida pela sugestiva e sempre tensa noção de glocalidade. O neologismo “glocalize” figura desde 1991 no Oxford Dictionnary of New Words. O uso inicial da noção foi atribuído aos teóricos de administração japoneses que concebem estratégias para o mercado mundializado como simultaneamente local e global. Canevacci (1996), em um horizonte mais cultural, imagina que “...a palavra nova, fruto de recíprocas contaminações entre o global e o local, foi forjada justamente na tentativa de captar a complexidade dos processos atuais”. Sua reflexão acerca do glocal, expressiva contração de global e local, retém linhas de força do contemporâneo. Assumimos a hipótese de que, antes de incolor homologação, a fase atual desenvolve uma forte tensão, descentrada e conflitual entre globalização e localização: ou seja, entre processos de unificação cultural – um conjunto serial de fluxos universalizantes – e pressões antropofágicas ‘periféricas’ que descontextualizam, remastigam, regeneram. (Canevacci, 1996, p.23)

Tais convergências, sempre tensas cabe insistir, forjam esta peculiar circunstância social, denominada sociabilidade contemporânea. Ela implica, outrossim, redefinições espaciais e temporais relevantes, pois a atualidade se plasma como espaço planetário em tempo real. Esta nova realidade-mundo tem como pressupostos, além de sua macro-inscrição capitalista e iluminista, o desenvolvimento das redes midiáticas e também de dispositivos sóciotecnológicos, tais como a desmaterialização e a miniaturarização, dentre outros. Todavia, para compreender a sociedade estruturada e ambientada pelas mídias em toda sua plenitude, inscrita em um novo patamar analítico, deve-se realizar não só um movimento horizontal que retenha as tensas combinatórias entre os pares espaço geográfico e eletrônico, convivência e televivência, local e global, mas igualmente um segundo movimento, agora vertical, que, ao agregar espaço geográfico, local, convivência, realidade contígua, em uma constelação, e espaço eletrônico, global, televivência e telerrealidade, em outra, desnude, de modo cristalino, as dimensões que compõem a atualidade e o caráter imanentemente complexo da sociabilidade contemporânea. Paul Virilio (1993), para além de sua preocupação com as velocidades, percebeu de modo tênue este caráter compósito da atualidade, não sem introduzir uma gradação de real e realidade, por certo, complicada. O desequilíbrio crescente entre a informação direta e a informação indireta, fruto do desenvolvimento de diversos meios de comunicação, tende a privilegiar indiscriminadamente toda informação midiatizada em detrimento da informação dos sentidos, fazendo com que o efeito de real pareça suplantar a realidade imediata. (Virilio, 1993, p.18)

As mídias, ao consumar um espaço eletrônico em rede, povoado de televivências em abrangência globalizante, em verdade, constróem uma outra e nova dimensão constitutiva da sociabilidade contemporânea, a qual se sugere denominar de telerrealidade, expressão empregada por Muniz Sodré (1990) no livro A máquina de Narciso. Tele para recordar sua inerente noção de distância

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e apontar a possibilidade do distante ser apreendido, transportado e transformado (simbolicamente) em acontecimento próximo, em algo que ganhe um sentido instantâneo e passe a compor o cotidiano como momento inerente à vivência contemporânea. Realidade para lembrar que esta dimensão de sociabilidade, configurada simbolicamente por imagens, palavras, sons, deve ter sempre afirmado seu estatuto de realidade. A exigência de incluir como real a representação da realidade deve permitir reconhecer, em conseqüência, que justamente na representação dessa realidade simbólica se define o real, nela se constróem as categorias que, realizando a divisão do real, permitem que se fale, veja, ouça, perceba etc. O conceito de telerrealidade deve servir, por conseguinte, para nomear uma nova e contemporânea dimensão de sociabilidade que se distingue e diferencia da realidade, tradicionalmente concebida como territorialidade (geográfica), localidade, proximidade, materialidade, presença e convivência. Telerrealidade aparece como nova formatação da realidade, possibilitada agora por espaços e tempos integrados em rede eletrônica e associada às noções de desterritorialização, globalidade, distância, espaço planetário, desmaterialização, não presencialidade, (tele)vivência e tempo real. A telerrealidade funciona como uma nova camada “geológica” que se sobrepõe e contamina o espaço geográfico, pleno de natureza e cultura. Com a televisão aberta em rede surge a telerrealidade, mas sua existência ainda se caracteriza pela ocasionalidade. A televisão por assinatura e principalmente as novas tecnologias midiático-informacionais, dentre elas a Internet, consubstanciam a telerrealidade, dotando-a de permanência. A telerrealidade transforma-se em dimensão, pública e privada, inseparável da atualidade. A singular sociabilidade contemporânea torna-se compósita porque se compõe ao estilo bricolage, entrelaçando, em conjunção tensa, essa camada suplementar, dimensão de origem midiática, que perpassa toda a tessitura societária e as camadas já assentadas da história da sociedade humana, um aglomerado díspare de práticas e instituições sociais forjadas pela modernidade, pelas tradições originárias de outras eras pré-modernas e, enfim, por toda a natureza humanizada. A singularidade dessa nova circunstância societária vai incidir nas cruciais questões da realidade e da existência. Esta dupla composição “fragmenta” a realidade contemporânea em uma realidade contígua, (con)vivida no entorno por cada indivíduo, e uma realidade remota, porque não inscrita no mapa de proximidades, agora (tele)vivida planetariamente e em tempo real como telerrealidade. Em verdade, estas duas dimensões da realidade, analiticamente separadas, hoje entrelaçam-se de tal modo na vida cotidiana que são vivenciadas como realidade una e contemporânea. O caráter composto da realidade na contemporaneidade possui ainda outra significativa conseqüência, muitas vezes não percebida: ele impõe o descolamento entre a existência e o existir publicamente. Hoje, a mera existência física já não assegura um existir social, expediente automático em uma sociabilidade de tipo comunitário, na qual a existência física e pública praticamente coincidem, pois a contigüidade do território, a exigência da presença e as dimensões possíveis ao mundo garantem o compartilhamento, o

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movimento de tornar comum coisas e pessoas, enfim a publicização. Nesta circunstância societária existir fisicamente significa, sem mais, ter existência pública. A situação transforma-se radicalmente na atualidade. As novas características adquiridas pela realidade-mundo, em especial o caráter compósito da sociabilidade, rompem o imbricamento apresentado anteriormente e impõem novos requisitos para uma existência pública. O existir físico na realidade tangível torna-se condição necessária, mas não suficiente para garantir uma existência publicizada. Esta requer que ao existir físico seja agregada uma outra existência, agora vivida na telerrealidade. Sem essa publicização possibilitada pela telerrealidade, a existência social não está garantida. A existência publicamente compartilhada passa a ser, ela mesma composta e problemática, verdadeiro campo de luta de poder. A postura assumida não tem, até aqui, nenhuma perspectiva normativa. Pelo contrário, tenta se ater a uma descrição das novas condições de sociabilidade. Não se valoriza a telerrealidade, essa dimensão pública midiatizada, nem positivamente, por alguma capacidade imanente, seja ela libertadora, emancipadora, democratizante, instauradora de potencialidades humanas; nem negativamente, pelo depreciamento de suas possibilidades, pela atribuição de características de controle, repressão, regressão. Ao buscar compreender a nova circunstância social, a posição aqui assumida afasta-se deliberadamente de posicionamentos predeterminados que destituem o novo de seu enigma, de sua abertura e indefinição inicial, de sua feição por tudo isso problemática. E que, ato contínuo, o prefiguram valorativamente, de modo positivo ou negativo, tanto faz. Não cabe aqui nem a esperança hoje tão celebrada em autores, admiradores e adeptos das potencialidades das novas tecnologias informacionais, a exemplo de Lyon (1988) e Pierre Lévy (1996) nem a rejeição prematura do novo horizonte, como acontece em pensadores, por vezes estimulantes, que desqualificam toda telerrealidade. Teoricamente próximos, a noção absorvedora de espetáculo e o conceito de simulacro, em Baudrillard (1991a), contrapõem com vigor e intransigência uma dimensão “real”- isto é, a realidade contígua pensada em termos modernos - a outra, telerrealidade, artefato artificializado, porque virtualização e atualização tecnomídias, que, por algum desígnio inexorável, corrompe a vida, expulsa do mundo do espetáculo ou da simulação. Referindo-se a esta última expressão, Landi (1992) percebeu com perspicácia: “A noção de simulacro é útil para entender nossa época, mas com a condição de que se livre do pressuposto da existência da não simulação, que sempre vem da mão do exercício do poder por parte daquele que crer possuir a verdade.” (Landi, 1992, p.121) Propõe-se como essencial - antes de valorações, negativas ou positivas, quase sempre apressadas e superficiais - buscar compreender teoricamente a complexidade da contemporaneidade, a singularidade do caráter compósito de sua sociabilidade e a significativa inscrição da comunicação, em especial em sua versão midiatizada, nesta peculiar circunstância societária estruturada e ambientada pelas mídias.

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Comunicação e idade mídia Nesta inscrição societária, a comunicação se ressignifica. A comunicação, que perpassa todos os poros sociais, abandona definições e fronteiras nas quais se via confinada, tais como: sua identificação como discurso, mensagem ou mais singelamente conteúdo; seu aprisionamento unilateral ao campo do significado, em detrimento da possibilidade mais complexa de produtora de sentidos, intelectivos e sensíveis; sua localização redutora na supraestrutura, com a decorrente assimilação à ideologia; sua contração a uma dimensão tecnológica ou técnica, e sua caracterização de mero instrumento, pelo entendimento de que seu ato de mediação, tomado por interesses próprios e regimes gramaticais específicos de funcionamento, garante uma possibilidade, formal ou real a depender de situações concretas de campos de força, de funcionar como “ator”, que ocupa um lugar de fala para dizer e fazer. Tal redefinição e demarcação das fronteiras de localização da comunicação, em sua versão midiatizada — desde algum tempo trabalhadas em suas teorias — é condição sine qua non para estudar rigorosamente sua configuração e ressonâncias na Idade Mídia. A sintonia com uma resignificação radical da comunicação e de sua conexão com a contemporaneidade não pode, de modo algum, deixar de tornar problemática esta relação e, pior, fazer retornar uma atribuição desmedida de poderes à comunicação midiática. Não se pactua com esta apressada e equivocada solução. Antes disto, pretende-se mapear as novas circunstâncias nas quais a composição entre comunicação e sociedade se realiza na atualidade. Ou seja, descritas as novas condições, caberá, com o campo de forças então conformado, analisar como se comportam as duas esferas sociais e como se efetua seu enlace. Da afirmação desta nova circunstância sócio-comunicacional, decerto não podem derivar, sem mais, posturas preconcebidas e fixadas acerca da predominância do poder da comunicação sobre outros campos sociais. A dinâmica dos deslocamentos de poder entre os campos da comunicação e as outras esferas sociais, antes de ser resolvida previamente, constitui-se em objeto privilegiado de investigação. Mais que isso, como premissa deste estudo descarta-se uma dominância unilateral e persistente de cada uma destas esferas. Afirma-se, pelo contrário, a disputa e alternância de predomínios em situações dadas, em campos de força determinados.

BILL VIOLA, Rezar sem interrupção (vídeo-instalação). 1992

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RUBIM, A. A. C. La contemporaneidad “medioval”, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.25-36, 2000. El presente artículo es producto parcial de la pesquisa Nuevas Configuraciones de la Política “Medioval” en curso y apoyada por el CNPq. El texto busca construir bases teóricas para pensar la contemporaneidad cómo sociabilidad estructurada y ambientada por los medios de comunicación. PALABRAS CLAVE: Comunicación; medios de comunicación de masa; socialización; teoria de la información; evolución cultural.

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Redes sociais, poder e saúde à luz das classes populares numa conjuntura de crise *

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VALLA, V. V. Social networks, power and health versus common people in a crisis environment, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.37-56, 2000. The process of globalization has driven the State, in its role of provider, into a state of crisis that is affecting the relationship between the lower classes and healthcare services in Brazil. The development of a neo-liberal world, with its concentration of income and its excluding effects, necessarily points toward the construction of another world, in which survival is closely tied to solidarity. Were it not for this crisis, perhaps a proposal of social support in the healthcare area would not draw so much attention. However, once the window is cracked open for the proposal to be examined more carefully, it becomes necessary to acknowledge that it is a legitimate proposal based on its own merits, regardless of the crisis itself. The discussion of social support as a health and education proposal reveals the possibility of approaching an issue that often generates contradiction among the mediators of popular education: the religiosity of the masses. Will this be overcome with time, or is it an integral part of the culture of the masses? KEY WORDS: Social support; social class; health services accessibility; poverty; religion. A crise do Estado provedor, provocada pelo processo de globalização, afeta de maneira dramática a relação das classes populares com os serviços de saúde no Brasil. O surgimento de um mundo neo-liberal, concentrador de renda e excludente necessariamente aponta para a construção de um outro mundo, em que a sobrevivência estará íntimamente relacionada com a solidariedade. Se não fosse por essa crise, talvez uma proposta como a do apoio social na área de saúde não chamasse tanto atenção. No entanto, uma vez “aberta a janela” para ver com mais cuidado essa proposta, é possível reconhecer que ela possui legitimidade por seus próprios méritos, e até independe da própria crise. A discussão do apoio social como proposta de educação e saúde abre a perspectiva de abordar uma questão que freqüentemente gera contradições no meio dos mediadores de educação popular: a religiosidade das classes populares. É algo a ser superado com o tempo, ou é parte integrante da cultura popular? PALAVRAS-CHAVE: Apoio social; classe social; acesso aos serviços de saúde; pobreza; religião.

* Apresentado na mesa-redonda “Comunicação e Redes de Poder em Saúde”, 2º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais em Saúde, São Paulo, dezembro de 1999. 1 Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense; Presidente do Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina. <valla@ensp.fiocruz.br>

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Introdução O lugar de onde falo é o da educação popular e saúde e a preocupação central é a das relações entre os mediadores (educadores populares, professores, religiosos, técnicos) e as classes populares. A idéia básica do artigo é que termos como “redes sociais” e “poder” se relacionam mais com as formas com que as classes populares se defendem e como buscam sua sobrevivência diante de quem as domina. Trata-se de uma postura de defesa, e neste sentido as classes populares se preocupam com que a justiça seja feita mais do que alcançarem o poder (Chauí, 1990). Assim, trabalho com a idéia de que as redes sociais das quais as classes populares participam já existem e que o poder que buscam é o de se defender deste capitalismo dito “selvagem” buscando, desta forma, sua “sobre-vida”. A crise de que se fala refere-se à inserção da América Latina no atual processo de mundialização. Stotz (1996) lembra que as empresas transnacionais — em número cada vez menor, em virtude de fusões e incorporações — passaram a impor seus interesses em todos os cantos do planeta, envolvendo questões como o grau de proteção das economias nacionais, o âmbito da intervenção direta do Estado na economia e os limites para o endividamento público em função de gastos sociais. Mas o problema é que os sacrifícios impostos à maioria das populações que vive apenas do seu trabalho não tem a contrapartida de economias em crescimento — pelo menos a taxas compatíveis com as populações e com garantia de melhoria de renda e bem-estar. O mundo do trabalho hoje está constrangido, de um lado, pelo desemprego estrutural e, de outro, pela precarização do trabalho (Valla e Stotz, 1997). Desde a implantação do Plano Real, por exemplo, pelo menos 800.000 empregos já foram perdidos, enquanto 2.500.000 vagas de trabalho foram eliminadas desde o início dos anos noventa (Rodrigues, 1997). Em fevereiro deste ano havia 1.474.013 desempregados nas seis maiores regiões metropolitanas do Brasil. Trata-se do maior número de desempregados na história do país (Brafman, 2000). Ao mesmo tempo, a indústria brasileira registrou seu melhor desempenho desde 1997, demonstrando que a melhoria da economia, aos olhos do governo, não necessariamente reflete as condições de vida das classes populares (Clemente, 2000). Mas esse fato traz pouco otimismo, pois não há previsão de o índice de juros cair para estimular o crescimento econômico. Luís Gonzaga Bellusso, da Unicamp, coloca que “essa história de que não dependemos mais de capitais de curto prazo é conversa fiada”, pois os juros altos são para atrair mais investimentos de capital estrangeiro especulativo e não para conter a inflação (Ribeiro, 2000). Tão grave é a situação econômica do país que o 1% mais rico da população detém 13,8% da renda total, enquanto os 50% mais pobres, 15,5% da renda. Ou seja, um rico ganha tanto quanto 50 pobres (Escóssia e Grillo, 2000). O pagamento da dívida externa já consome 65% do PIB do país e o governo já começa a gastar as verbas dos projetos sociais para poder cumprir seus “compromissos” com o FMI. O PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) da ONU advertiu o governo brasileiro que não somente são os seus gastos na área social muito aquém do esperado, mas que beneficiam Santo Sudário. A trama mais as classes médias e os ricos que os pobres (Rossi, 2000). E desde 1998 a

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REDES SOCIAIS, PODER E SAÚDE À LUZ...

Santo Sudário. A mancha

Caixa Econômica Federal não libera dinheiro do Governo Federal para saneamento básico como forma de cumprir as metas do FMI. Os especialistas em saneamento básico lembram que, num período de três anos, cada dólar gasto em saneamento significa três dólares economizados em saúde. Este ano o Governo Federal cortou em mais de sete bilhões de reais gastos na área social de saúde, educação, assistência e reforma agrária (Pacelli, 2000). A situação nos países em desenvolvimento é muito dramática porque políticas, instituições e serviços voltados para a proteção social — que nunca foram muito eficazes e dificilmente tinham caráter universal — vêm sendo revistos, desmontados ou limitados. Entretanto a profunda crise daí decorrente deve estimular reflexões e proposições capazes de redimensionar as relações entre o Estado e a sociedade, particularmente para favorecer a ampla maioria dos que se encontram excluídos dos benefícios da riqueza e do bem-estar. Com isso Stotz chama atenção para a necessidade de superar a mera defesa do papel do Estado em prover diretamente ou em regular a oferta privada (contratada ou autônoma) de serviços. Para que tais serviços contemplem de fato as necessidades sociais das populações, precisam levar em conta, obrigatoriamente, o que as pessoas pensam sobre seus próprios problemas e que soluções espontaneamente buscam. (Valla e Stotz, 1997). Até recentemente, a proposta hegemônica entre aqueles que se preocupam com a qualidade e quantidade dos serviços básicos e, portanto, com o destino do dinheiro público, era a de reivindicação e pressão sobre os governantes (Valla, 1991). Embora se julgue que tal proposta seja correta — e em última instância é como se provoca mudanças no mundo político, ou pelas eleições, ou nas ruas — o que se observa em quase toda a América Latina é uma certa perplexidade quanto aos resultados obtidos. O rígido mas contraditório controle fiscal exercido a partir do Governo Federal — seja em atendimento às exigências do Fundo Monetário Internacional, seja em gastos do dinheiro público, como, por exemplo, no pagamento da dívida externa ou na resolução dos apuros dos bancos privados — gera um ambiente de penúria e controle de tal modo que as autoridades contam com estes limites para poder dar pouca atenção às reivindicações dos setores organizados da sociedade civil de caráter popular. A recente epidemia de cólera no Peru, por exemplo, teve como desfecho uma taxa surpreendentemente baixa de mortalidade, mas muito mais em função da iniciativa dos grupos populares do que em função dos investimentos do governo peruano. Simbolicamente denominado o “duplo caminho”, este movimento, de um lado, cobrou do governo o que seria de sua responsabilidade, e, de outro lado, quando percebeu que o governo não respondia com os recursos necessários para combater adequadamente a epidemia, implementou uma política própria de mutirão para salvar os atingidos (Valla, 1996). O sacrifício que está sendo imposto a milhões de pessoas reabre a discussão dos problemas sociais como não sendo questões apenas do Estado. Necessariamente, a formação do mundo neo-liberal excludente, “cria novas ‘autonomias’ na base da sociedade....e remete para a construção de um outro mundo, com um novo tipo de consciência social, estimulada pela solidariedade, que se traduz em atos concretos vivenciados pelas pessoas no seu cotidiano” (Genro, 1997, p.3).

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O Estado brasileiro tem capacidade de resolver os problemas de saúde de sua população? Há uma clara contradição com relação à crise da saúde no Brasil. Embora haja uma nítida queda de qualidade de vida em parte de grandes parcelas das classes populares, uma vasta infra-estrutura de unidades de assistência juntamente com tecnologias como a da terapia de reidratação oral (soro caseiro) fazem com que menos crianças morram antes de completar um ano, e que mais adultos ultrapassem a idade de 65 anos. E, justamente porque as condições de higiene e alimentação são mínimas, é que os problemas conseqüentes de saúde oneram ainda mais os recursos disponíveis para a área de saúde pública. Pois mais pessoas estão sobrevivendo, mas suas condições de vida continuam sendo um problema de saúde. No caso do Brasil, tal quadro é agravado pelos baixos salários e precárias condições de trabalho oferecidos aos profissionais de saúde, dessa forma levando muitos a deixar o serviço público. As longas filas que se formam, tanto nas madrugadas nos centros de saúde, como as de toda hora nos hospitais públicos, criam uma situação em que a “escolha de Sofia” seja um fenômeno freqüente. Se, de um lado, o acesso ao atendimento seja o problema principal, por outro, a questão da resolutividade é secundarizada. Este dilema entre “eficiência” e “eficácia” na área de saúde tem sua correspondência no das vagas na escola pública e na questão da qualidade do ensino. É claro que face ao quadro acima descrito é necessário trabalhar para que setores da sociedade civil preocupados com a saúde no Brasil se organizem e demandem mais investimentos dos governantes para contornar a crise. A perplexidade surge, de um lado, da dimensão gigantesca do problema a ser superado; de outro, do reconhecimento do compromisso de “fazer algo”, embora a partir de uma sociedade civil debilitada. Um problema de saúde que atinge milhões de brasileiros, por exemplo, são as múltiplas expressões de saúde mental: cobrindo uma gama de sintomas que vão desde aquilo a que a classe média se refere como “ansiedade” ao que as classes populares chamam de “nervos”. Dados recentes de Argentina indicam que mais de 50% dos medicamentos consumidos pela população são psicofármacos (Bermann, 1995). É de perguntar se, mesmo que o sistema de saúde no Brasil estivesse funcionando satisfatoriamente, seria possível atender todos esses casos adequadamente. Possivelmente esta sensação de estar “batendo em ponta de faca” seja o sinal de que a discussão chegou a um certo impasse. Não que o fato de reivindicar uma política mais coerente dos governantes não seja necessário, mas que também haja outras dimensões do problema a serem vistas. Embora seja uma tarefa desagradável, é necessário avaliar a real capacidade do Estado brasileiro em atender aos anseios da população, caso o Estado insista no rumo neo-liberal que vem desenvolvendo desde o início da década de noventa. Os graves problemas de desemprego e crescente pobreza indicam os limites do sistema de saúde atual. Há um questionamento que se difunde entre profissionais de saúde: se a maneira como o atendimento de saúde se estrutura no Brasil seria capaz de lidar com o que alguns chamam de “sofrimento difuso

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apresentado pelas classes populares”. Alguns profissionais estimam que quase 60% das consultas tratam de problemas psicossomáticos, o tempo necessário para lidar com esses pacientes não se coaduna com a relação eficiência-eficácia (Valla e Siqueira, 1996). O que está em discussão é a real capacidade de o Estado brasileiro, como se estrutura hoje, satisfazer às demandas que as classes populares vêm apresentando. “Fazer o melhor possível” em cada unidade de saúde do país é certamente importante, mas não necessariamente leva em conta grande parcela da população que não mais se apresenta às unidades de saúde. Também não leva em conta se todas as queixas apresentadas são solucionadas de forma satisfatória (Vasconcelos, 1998). Apoio social e formas de saúde alternativa Inicialmente, o que se propõe é lançar mão de um debate da saúde pública que ocorreu com muito intensidade em setores progressistas nos Estados Unidos na década de oitenta. O debate em torno do que se chama social support, isto é, apoio social, está relacionado com a crise de saúde pública naquele país, mas que foi desenvolvido numa conjuntura diferente da mundialização no Brasil. Neste sentido, propõe-se uma releitura da proposta norte-americana, mas à luz dos aspectos particulares da sociedade brasileira (Valla, 1996). Apoio social se define como sendo qualquer informação, falada ou não, e/ou auxílio material, oferecidos por grupos e/ou pessoas que se conhecem, que resultam em efeitos emocionais e/ou comportamentos positivos. Trata-se de um processo recíproco, isto é, que tanto gera efeitos positivos para o receptor, como também para quem oferece o apoio permitindo, dessa forma, que ambos tenham mais sentido de controle sobre suas vidas e que desse processo se apreenda que as pessoas necessitam umas das outras (Minkler, 1985). Uma proposta que, embora não fosse uma questão essencial quando o debate foi lançado originalmente, aproxima-se muito da discussão que se trava hoje no Brasil sobre a solidariedade. Essencialmente, o debate em torno da questão do apoio social se baseia em investigações que apontam para o seu papel na manutenção da saúde, na prevenção contra doenças e como forma de facilitar a convalescença. Uma das premissas principais da teoria é a de que o apoio social exerce efeitos diretos sobre o sistema de imunidade do corpo, isto é, como buffer, no sentido de aumentar a capacidade de as pessoas lidarem com o estresse. Outro possível resultado do apoio social seria sua contribuição geral para a sensação de coerência da vida e do controle sobre a mesma, que, por sua vez, afeta o estado de saúde da pessoa de uma forma benéfica (Cassell, 1976). Em momentos de muito estresse, o apoio social contribui para manter a saúde das pessoas, pois desempenha uma função mediadora. Assim, permite que as pessoas contornem a possibilidade de adoecer como resultado de determinados acontecimentos, como, por exemplo, a morte de alguém da família, a perda da capacidade de trabalhar, ou um despejo da casa onde se reside por muitos anos. Cassell levanta a hipótese de que lugares de alta densidade populacional não necessariamente aumentam sua suscetibilidade à doença por causa da

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densidade em si, mas por outras razões. Uma sensação de não poder controlar sua própria vida juntamente com a sensação de isolamento podem ser relacionados com o processo de saúde/doença. A proposta do apoio social sugere que as conseqüências da desorganização social não atingem necessariamente todas as pessoas da mesma forma. Estudos têm demonstrado que os apoios disponíveis de determinadas organizações sociais podem influir beneficamente no sentido de proporcionar fatores de proteção contra o aparecimento de doenças, oferecendo melhorias de saúde física, mental e emocional (Cassell, 1974). Trata-se da noção de empowerment, isto é, um processo pelo qual indivíduos, grupos sociais e organizações passam a ganhar mais controle sobre seus próprios destinos e para quem a vida tem sentido (Minkler, 1985). Saúde alternativa, religiosidade e classes populares Embora a proposta de apoio social não seja uma solução para a crise de saúde, foi esta crise que serviu como motivo para que isso fosse discutido. Ao propor a questão do apoio social não se busca apenas uma solução pontual para os chamados “excluídos”, mas embutida na proposta está a pergunta se enquanto tal não merece ser considerada também exclusivamente por seus méritos. Neste sentido, serve como uma espécie de trampolim para rever a relação da saúde com a questão médica. De um lado, o apoio social oferece a possibilidade de realizar a prevenção pela solidariedade e apoio mútuo; de outro, oferece também discussão para os grupos sociais sobre o controle de seu próprio destino e a autonomia das pessoas face à hegemonia médica, por meio da “nova” concepção do homem como uma unidade só (Tognoni, 1991; Valla, 1996). É neste sentido que a discussão do apoio social, dentro de um contexto de uma relação homem integral e meio ambiente, cabe como questão nos currículos das escolas públicas, nas plataformas dos partidos políticos mais progressistas, nas associações profissionais e de moradores, e nas igrejas. Uma das propostas deste trabalho é relacionar a questão do apoio social com a religiosidade das classes populares. Bermann (1995) chama a atenção para o efeito ideológico do termo “estresse”. Normalmente a discussão deste termo se desenvolve em torno do resultado, e não em torno do processo em si, que é mais importante. Tratar apenas os sintomas transmite a ilusão de que o problema está no mal-estar que a pessoa sente quando procura assistência, desta forma não sendo visto como parte de um processo mais longo que acaba produzindo o mal-estar (Stotz, 1996). Neste sentido, esconde o desgaste do trabalho excessivo a que o trabalhador se submete para não perder o emprego, como também os horários irregulares que impõe o trabalho precário e terceirizado. Quem não tem emprego fixo que se coadune com seus interesses dificilmente escapa do mercado informal e de um “trabalho frustrante”. Um trabalho frustrante para as classes populares não significa uma “má escolha”, mas quase sempre uma “única escolha” por causa das poucas ofertas no mercado. Embora não se pretenda negar os processos de estresse que acometeram os membros das classes média e alta, ao mesmo tempo se quer chamar atenção

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Santo Sudário. Geometria da mancha

para o fato de que as classes populares nas grandes cidades tendem a sofrer um processo de estresse muito mais intenso. A vereadora Jurema Batista, do Rio de Janeiro, pergunta se há remédio para pressão arterial alta quando o helicóptero da Polícia Militar sobrevoa a favela procurando componentes do narcotráfico. Um engarrafamento no trânsito pode significar pequenas irritações para a classe média, mas para o morador da favela trata-se freqüentemente de uma falta de água contínua ou quedas freqüentes na voltagem e a danificação dos eletrodomésticos (McEwen, 1998). Uma das propostas para o combate ao estresse é a de introspecção e meditação. Embora teoricamente a prática de meditação não seja impossível em qualquer circunstância, certamente um lugar relativamente espaçoso e quieto facilita a concentração. Normalmente o período de meditação mais curto, uma hora, é dividido em duas partes: uma meia hora de ouvir uma leitura para fazer a passagem da rua para a sala de meditação, e uma meia hora de meditação de fato. Uma tarefa difícil para quem trilha o que Chauí (1990) chama o “caminho estreito”, isto é, uma vida de pouco dinheiro, espaço e tempo livre. Num país cujos serviços de saúde são tão moldados pelo modelo biomédico, dificilmente as atividades propostas na área de saúde alternativa são do setor público, desta forma exigindo algum tipo de pagamento (Parker, 1996). Embora não seja impossível que atividades de apoio social sejam desenvolvidas numa unidade de saúde pública — grupos de discussão, relaxamento muscular ou meditação — profissionais de saúde mais críticos afirmam que esse tipo de atividade é vista por muitos colegas como formas de “fugir do trabalho”. O estresse é causado pelo que os profissionais chamam de “superexcitação do organismo” e “carga alostática” é o nome que McEwen (1998) dá ao conjunto de indicadores de estresse. Trata-se de um estilo de vida em que a pessoa está sistematicamente exposta a agressões de ordem física e psíquica. Desta forma, o “susto contínuo” lança grandes quantidades de adrenalina no sangue por um longo período de tempo. Novamente, a causa pode ser a perda de R$100.000 na bolsa de valores, como pode ser a ameaça de uma guerra entre a polícia e os traficantes ou a perda do “barraco” durante a chuva forte. O que importa nessa discussão é que uma grande parcela das classes populares está exposta ao que é chamado “um estado de emergência permanente” (Valla e Stotz, 1996). A grande imprensa tende a definir o termo “emergência” como um acontecimento passageiro — um blecaute ou uma enchente, por exemplo. Uma vez que a água deixe de cobrir os automóveis, ou que a luz elétrica volte, para a grande imprensa terminou a emergência. Mas as condições de vida para muitos moradores de favela indicam esse estado de emergência permanente: distribuição irregular de água, difícil acesso às unidades de saúde, exposição permanente às balas “perdidas” ou ganhar a sobrevivência num mercado informal em processo de saturação. As recomendações que os médicos fazem sobre uma dieta moderada e prudente como também de exercício físico sistemático esbarram em obstáculos relacionados não somente com as condições de vida das classes populares mas também com questões culturais. De qualquer forma, jogar futebol nos domingos à tarde não parece corresponder à idéia de exercício físico

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sistemático; salve engano, não está muito desenvolvida no Brasil a discussão do que seria uma dieta moderada e prudente para as classes populares, levando em conta os custos e as questões culturais. Mesmo assim, McEwen (1998) lembra que essas recomendações não são suficientes em muitos casos, se não for possível agir na causa imediata do problema, pois o estresse tem causas sociais complexas, que não podem ser resolvidas pela medicina, como pobreza, más condições de trabalho ou ambiente poluído. McEwen acrescenta que pesquisas mostraram que quanto mais pobre uma pessoa, pior é sua saúde, não importando se ela tem ou não acesso a tratamento médico (McEwen, 1998; Bonalume, 1998). Laurell (1987) complexifica a categoria de “carga”. Com o exemplo da saúde do trabalhador, classifica as cargas em tipos distintos: física, química, biológica, mecânica, fisiológica e psíquica. Quando discute a sobrecarga e subcarga psíquica, refere-se a situações de tensão prolongada; de um lado, a consciência do perigo do trabalho, os altos ritmos do trabalho; de outro, a perda do controle do trabalho por estar subordinado à máquina (Bosi, 1979), a desqualificação do trabalho pela separação de sua concepção e execução e o parcelamento do trabalho que resulta em monotonia e repetitividade. Como se pode ver, condições de trabalho que diferem pouco das condições de vida das classes populares. Como ser menos competitivo e ansioso como forma de reduzir o estresse num mundo em que as ofertas do trabalho formal estão rapidamente declinando e no qual o mercado informal está se saturando? Assumir uma postura desarmada, franca e aberta se relaciona pouco com uma parcela da população que como forma de sobrevivência emprega uma linguagem permeada do “duplo código”, em que o “dizer e desdizer” na mesma frase é um constante (Martins, 1989). Numa recomendação genérica, Pereira & Barros (apud Ventura, 1998) chamam atenção para a importância do desabafo e do não “engolir sapos”. Essa “aceitação” faz com que o “veneno do corpo” acumulado acabe sendo expulso de outras formas. Mas o que pode significar “engolir sapos” ou desabafar para a maioria das classes populares? Desabafar na hora pode resultar em vários desfechos para as classes populares: pode significar perder o emprego, seja no trabalho da fábrica, seja como empregada doméstica. Numa cultura machista, desabafar na hora, ou seja “não engolir sapo”, “não levar desaforo para casa”, pode terminar num enfrentamento com fim incerto. O que parece evidente é que a crise do “acesso aos serviços” é apenas um dos problemas que a população brasileira — e no caso deste trabalho, os pobres — enfrenta com relação à saúde. Se a prevenção, o tratamento e a recuperação não são apenas questões do corpo e sim, como propõe a teoria do apoio social, da relação corpo mente, ou, se quiser, corpo alma, é muito provável que a grande procura das camadas populares pelas igrejas hoje signifique mais que refúgio da crise e da desordem. Para muitos que se dedicam ao tema das classes populares, há uma tendência, ou por formação acadêmica, ou por orientação política, de fazer uma leitura das falas e das ações delas pela categoria de ”carência”. Se, de um lado, a pobreza e a miséria se prestam a reforçar o uso desta categoria, de outro, há outros intelectuais que pensam que tal leitura possa freqüentemente

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empobrecer suas análises. Chamam atenção para uma outra categoria — a de “intensidade” — que traz dentro de si a idéia de “iniciativa”, de “lúdico”, da “aventura”, de”autonomia” ( Saidon, 1991; Almeida, 1995). José Carlos Rodrigues (1992), exemplificando a idéia de “intensidade”, aponta o caso dos “surfistas” dos trens no Rio de Janeiro. Pela categoria “carência”, o passageiro estaria em cima do trem, ou por falta de dinheiro, ou porque o trem está lotado. Entrevistas posteriores têm demonstrado que o “surfista” pôde pagar a passagem e que havia vagas no trem escolhido. Carência ou intensidade? Neste sentido, há de se ter cuidado com a interpretação das ações das classes populares e sua relação com a religião, pois o que pode ser visto como tentativa de resolver exclusivamente um problema material, poderia bem ser o resultado da vontade de viver a vida de maneira mais plenamente possível. Poderia também ser o resultado de procurar uma explicação, um sentido, algo que faz a vida mais coerente — que é justamente uma das propostas do apoio social. Cabe lembrar que no contexto cultural brasileiro a palavra “comunidade” tem se transformado numa referência às populações pobres, moradores de favelas e de bairros de infraestrutura precária. Mas não é somente a língua que tem modificado o sentido da palavra, também as mudanças sócio-econômicas da vida urbana brasileira, seja pelo crescimento das favelas ao ponto de não comportar uma “comunidade” só, seja pelo grau de violência nesses locais, dessa forma limitando o desenvolvimento de outras organizações populares (Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião, 1994). É neste sentido que cabe considerar como uma das explicações do extraordinário crescimento da presença das classes populares nas igrejas de todas as religiões, mas principalmente nas chamadas “evangélicas” ou “pentecostais” (Barros e Silva, 1995; Mariz e Machado, 1994). Machado (1996) observa que a falta de apoio institucional nesta época de mudanças sociais intensas faz com que essas igrejas ofereçam um “potencial racionalizador”, isto é, um sentido para a vida. Mariz (apud., Machado, 1996, p.30), por sua vez, comenta a frágil presença dos partidos políticos, das associações e do próprio Estado de Bem-Estar entre os pobres e que as religiões oferecem “alguns grupos de suporte alternativos....e criam motivações para resistir à pobreza”.

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Assim, a busca simultânea de grandes parcelas das classes populares pelo alívio dos seus sofrimentos, mas também a procura da solidariedade e conforto do apoio social mostram que “abaixo da linha-dágua, move-se um vasto conjunto heteróclito de articulações...em contextos de religiosidade e magia que são não-governamentais, sem fins lucrativos, e no entanto, informais...” (Fernandes, 1994, p.28). De um lado, o próprio processo do crescimento da urbanização, juntamente com a conseqüência do aumento das demandas dos bens coletivos e individuais; e, de outro, a dilapidação dos direitos sociais e humanos — tudo isso faz com que as “formas tradicionais de ajuda mútua... as reservas de ação social existentes à margem das instituições típicamente modernas” atraiam a atenção dos mais variados setores da sociedade civil (Fernandes, 1994, p.26). Que alguns líderes religiosos procuram utilizar suas igrejas como forma de se enriquecer ou de angariar votos para seus candidatos — e neste sentido, com a intenção de “manipular” os pobres — não é uma explicação satisfatória de porquê tantos brasileiros estão procurando as igrejas, e, em particular, as evangélicas e pentecostais. Pois, quantos outros grupos no Brasil gostariam de fazer o mesmo com as classes populares, e não conseguem? Há de procurar outra explicação, que relativiza a participação dos líderes religiosos. Possivelmente poderia ser o que Finkler (1985) chama de “símbolos emocionalmente densos que sejam derivados da experiência coletiva daqueles que sofram”. Fernandes (1994, p.110-1) cita o estudo do Finkler (1985) sobre os quinhentos centros espíritualistas e cinco milhões de fiéis no México a respeito do sucesso das “curas espírituais... com sofrimentos crônicos de uma forma que a biomedicina não é capaz de igualar....atenuam a dor, quando não eliminam, e ajuda as vítimas do sofrimento a tornar as suas vidas mais toleráveis e significativas”. Aqui é possível fazer novamente uma relação com a discussão do apoio social, em que “tornar a vida mais significativa” remete ao “controle sobre seu próprio destino” e ver “mais coerência e sentido em sua própria vida”. Cabe perguntar, inclusive, dentro da perspectiva da proposta de apoio social, se as melhorias no estado de saúde desses fiéis não vêm mais do fato de “estarem juntos continuamente no mesmo espaço físico” do que da ação isolada do líder religioso. Montero (1998) chama atenção para o fato de que a mundialização tem criado uma nova situação para os governos nacionais: muitas decisões tomadas nos níveis ambientais e financeiros não dependem da participação dos governos nacionais. Esse cenário novo faz freqüentemente o papel do cidadão ser reduzido únicamente ao exercicio do voto, diminuindo dessa forma, o interesse pelas eleições. Como consequência, há “O ressurgimento dos poderes locais... (e) a fragmentação do arcabouço jurídico-político dos Estados nacionais”, assim resultando em novas maneiras de ver a “soberania popular” e “vontade geral” (Montero, 1998, p.116). Na sociedade brasileira, cuja formação social não deu lugar à elaboração de um Estado de direito nos moldes clássicos — Estado submetido a leis, no qual o princípio de liberdade reconhecido é o da defesa de interesses definidos em termos da razão... as diferenças culturais.... invés de serem vistas como resquícios de um passado colonial ou obstáculos à modernização democrática, elementos fundamentais de nossa cultura tais como a magia, a possessão

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religiosa, o sentido da comunidade etc. se incorporam pouco a pouco à reflexão do modo particular como se constitui, no Brasil, o espaço público. (Montero, 1998, p.119)

O que muitos religiosos vêm proclamando por séculos, e o que igrejas como as dos espiritualistas, dos espíritas e dos pentecostais vêm afirmando por algumas décadas, é objeto de investigação científica nas últimas duas ou três décadas em várias partes do mundo. O “efeito placebo”, isto é, um efeito benéfico num(a) paciente que sinceramente acredita que uma determinada terapia traz benefícios — de onde vem a noção comum que alguém melhorou depois de ingerir um comprimido de “açúcar” — é um assunto que mais e mais aparece nas revistas científicas. Alguns pesquisadores já levantam a hipótese de que certos ritos afetam os sistemas endócrino e imunológico e que transes e outros estados alterados de consciência têm algo a ver com curas (Eng et al., 1985; Glik, 1988, 1990; Kark et al., 1996; Cox, 1995). Religião popular e modernização capitalista: uma outra lógica na América Latina O sub-título é o nome de um estudo desenvolvido pelo sociólogo chileno Cristián Parker (1996), no qual o autor desenvolve uma discussão que levanta novas abordagens em relação àquilo que foi até aqui discutido. Utilizando os primeiros contatos dos indígenas com os colonizadores religiosos espanhóis e portugueses cria um “ato inaugural simbólico” em torno do evento da “conversão”. Parker pensa que a conversão ao cristianismo foi possível por um “deslizamento no código de significação correspondente”, isto é, uma reinterpretação de seus conteúdos e ritos e imagens sagradas da cultura originária. Parker levanta a hipótese de que as classes populares, de uma forma semelhante, pelo sincretismo, fazem a mesma coisa para “resistir ao perigo de uma desintegração anômica que, em muitos casos... ocorreu levando milhares de índios ao suicídio” (Parker, 1996, p.32; Duviols, 1976, p.32). Utilizando o exemplo da aparição da Nossa Senhora de Guadalupe, Parker demonstra como foi possível às classes populares mexicanas transformar um ato de dominação da igreja mexicana oficial numa devoção em que os pobres enxergaram a santa como sua protetora contra seus dominadores, inclusive os da própria igreja oficial (Parker, 1996). Atrás dessa forma de ver a importância da religião popular para as classes populares está uma reinterpretação do processo de modernização na América Latina, fruto dos discursos modernizantes sobre o prometido progresso para todos (Parker, 1996). No bojo desta nova interpretação estão os estudos que chamam atenção para a possibilidade de que a “religião popular” seja uma das caraterísticas principais da cultura das classes populares latinoamericanas (Parker, 1996; Beozzo, 1990). Neste sentido, a religião popular pode ser descrita não somente como uma reinterpretação das propostas da religião oficial, mas também como uma forma particular e espontânea de expressar as “necessidades, as angústias, as esperanças e os anseios que não encontram

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resposta adequada na religião oficial... nas expressões religiosas das elites e das classes dominantes” ou até nos partidos políticos progressistas (Parker, 1996, p.55-6). Nos países de inserção periférica, como é o caso do Brasil, o crescimento veloz do setor de serviços como também do setor da economia informal faz um contraste grande com a introdução e consolidação da tecnologia de informática, que por si mesmo é poupador de mão de obra. Essa lógica global de acumulação, em que prédios luxuosos fazem vizinhança com barracos precários, cria a imagem de um mundo “menos maleável e mais arbitrário” em que as classes populares terão imensas dificuldades de satisfazer suas necessidades básicas (Parker, 1996, p.120-1). Esse processo de modernização, que inclui em seu interior o de secularização, manifesta-se de forma diferente daqueles que se processaram nos Estados Unidos e na Europa. O processo, que pouco tem a ver com a melhoria das condições de vida dos pobres, resulta no que o Parker denomina uma “transformação da mentalidade religiosa e não tanto uma queda irreversível da fé do povo” (Parker, 1996, p.124). Parker chama atenção para o fato de que essas mudanças são introduzidas na América Latina, num ambiente de extrema desigualdade de condições de vida e de oferta de trabalho e, portanto, não modificam o fato de que o “povo latinoamericano tem um fundo sentido religioso... que forma parte do sentido comum popular” (p.138). Neste sentido, Deus, compreendido como Pai e como Criador, poderoso e benevolente, que cuida e se lembra de seus filhos, “é a realidade mais fundamental da religiosidade popular.... é a transmissão de uma experiência vital; mais que a razão da vida, é a força que sustenta” (Parker, 1996, p.139). Justamente por causa da maneira pela qual o processo de modernização e secularização se implanta na América Latina, aprofundando as desigualdades em vez de garantir um conforto mínimo para a maioria, é que “revitalizam-se a magia e as superstições....que a urbanização subdesenvolvida pode igualmente estar na origem de transformações do campo religioso que...estimula a criatividade religiosa no povo” (Parker, 1996, p.145). Mas ao mesmo tempo é um “elemento de identidade coletiva” que “possibilita a manipulação de eventos ameaçadores, o reforço das energias de sobrevivência, a resistência cultural” (Parker, 1996, p.150; Kudo, 1980, p.69-89). Na realidade, a discussão que Parker desenvolve sobre a religião popular tem como hipóteses latentes pensar a miséria e a pobreza a que grandes parcelas da sociedade latinoamericana estão sujeitas como momento passageiro, ou considerar este estado de coisas parte do próprio processo de modernização na América Latina. Neste sentido, a pobreza e miséria a que as classes populares estavam sujeitas antes do aparecimento do processo de mundialização vêm se agravando depois do reajuste. O intenso incentivo a consumir faz com que se busque uma saída: ou pelo consumo simbólico, seja pela televisão e vídeo, seja pelos jogos ou drogas, seja pelas práticas e ritos mágico-religiosos (Parker, 1996; Evers, 1985). Embora o sentido religioso forme parte do sentido comum popular, não é de uma forma estática; modifica-se de acordo

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com as circunstâncias históricas. O que se pode afirmar é que certamente não deve ser visto como uma questão tradicional e arcaica (Parker, 1996). Nem se trata de frequentar as igrejas, nem “um simples costume introjetado nos processos de socialização precoce”, “mas de uma vivência da providência divina” (p.139-40). ...o aspecto religioso é um componente da cultura e esta deve ser entendida como um fenômeno histórico. Isto quer dizer que os significados e funções do religioso são relativos às épocas e às situações específicas dos agentes sociais que produzem e reproduzem esse conjunto de sentidos codificados. (Parker, 1996, p.272)

A hipótese de Parker é que as classes populares produzem coletivamente suas representações e práticas simbólico-religiosas, mas que essas manifestações se apresentam de formas diferenciadas, de acordo com sua inserção de classe na sociedade e de acordo com a manifestação religiosa. Essas representações e práticas freqüentemente têm o sentido de um protesto simbólico que, de acordo com a conjuntura, pode não ser visível. São estratégias de sobrevivência de que as classes populares lançam mão dentro de uma sociedade que lhes nega oportunidades de trabalho e seus direitos legítimos (Parker, 1996). De uma forma geral, mas com diferenças, o “catolicismo popular, o pentecostalismo abstencionista, os cultos afro-americanos e o espiritismo supersticiosos”, todos apontam para uma “eficácia simbólica” em função das necessidades básicas do presente (Parker, 1996). A fé em Deus e na Virgem Maria oferece um sentido para a vida. O espaço das manifestações (igreja, centro, templo) “garante um âmbito simbólico onde buscar consolo e encontrar energias morais e orientação para enfrentar a incerteza apresentada pela angustiosa situação da fome e da miséria familiar” (Parker,1996, p.275; Zuluaga, 1985, p.33). A fome e miséria são tão agudas, que as classes populares freqüentemente vivem no que Parker chama de “imediatismo”, “presentismo”, em que a busca de uma solução para a subsistência da família é uma forma racional de “adequação à realidade” (Parker, 1996). Como na discussão sobre as categorias de “previsão” e “provisão” (Valla, 1996), não se pensa no futuro (previsão) porque todas as energias estão mobilizadas para evitar a sensação de fome que já havia no passado, e garantir a subsistência no dia de hoje (provisão). A busca da ajuda “sobrenatural”, na realidade, é também uma estratégia de sobrevivência. A fome, o frio, a falta de recursos mínimos, uma vida marcada pela dor, o sofrimento e a violência... elevam os umbrais de incerteza. Tudo isso marca um

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certo encolhimento sobre si mesmo e sobre o núcleo familiar. A promessa à Virgem não supre, mas complementa as ações tendentes a obter o pedaço de pão para os filhos. O ritual—com certo conteúdo mágico— oferece um sentido, tira a angústia, alivia as tensões, possibilita fazer frente à incerteza nessa vida, fortalecendo e revitalizando o indivíduo na busca de soluções concretas para seu problema imediato de fome. Não se busca um benefício compensatório na outra vida... mas uma relação direta com os poderes sobrenaturais... a fim de tornar a vida mais suportável neste mundo. (Parker, 1996, p.83)

Buscando compreender os caminhos das classes populares Luz (1996) chama a atenção para a insatisfação de parcelas de todas as camadas sociais do Brasil com os serviços de saúde, sejam eles públicos ou privados. É esta insatisfação que empurra as pessoas a buscar alternativas. Teoricamente, não há nada que impeça que essas próprias alternativas existam no serviço público, mas não é uma questão só de investimento; há a necessidade de ver a relação saúde-doença de outra perspectiva. Tudo isso faz sentido quando nos lembramos que “...as camadas populares mantiveram sobre as questões envolvendo a saúde uma cosmovisão próxima da tradicional, na medida em que... não separam o homem da natureza, o corpo da alma” (Luz, 1996, p.275) . Numa perspectiva de educação popular transformadora, é necessário distinguir entre propostas de saúde alternativa “indivualizantes” das classes média e alta e os caminhos coletivos das classes populares, criados a partir de suas condições de vida. Certamente os caminhos alternativos percorridos pelas classes populares para aliviar seus problemas de saúde são diversos. Tanto pela questão da relação corpo-mente, quanto pela perspectiva do apoio social, o caminho da espiritualidade e da religião parece apontar como uma das trajetórias principais (Valla, 1998). A questão apontada acima de “engolir sapos” e/ou de desabafar pode ser uma pista de compreender melhor o “uso” que as classes populares fazem das igrejas, especialmente as igrejas que desenvolvem cultos em que o gritar e o cantar alto são uma constante (Cox, 1995). Em todos os países do mundo industrializado e em muitos dos países em desenvolvimento — e neste caso o Brasil é um exemplo ímpar — houve uma ênfase na privatização da assistência médica juntamente com sua especialização e tecnificação, resultando numa medicina que busca o lucro em primeiro lugar e é menos humana e mais medicalizada (Cox, 1995; Luz, 1996). As mais de duas décadas de ditadura militar e inflação elevada trouxeram suas contribuições para que o Brasil seja um país com um dos maiores índices de desigualdade no mundo e que se instalasse a crise de saúde já referida. Certamente uma das grandes surpresas reservadas à humanidade durante o século XX foi o ressurgimento da religião no mundo inteiro. Coincidência ou não, manifesta-se também na segunda metade do século um desencantamento com o que se conhece como medicina moderna ou “high tech”. E neste sentido, começa a voltar à cena uma complementariedade que exisitiu em grande parte da humanidade, que é a da religião com a saúde.

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Se a nossa época é voltada para os fantásticos progressos da pesquisa científica relacionada com a medicina, trata-se também de um curto período da história da humanidade (aproximadamente duzentos anos). Durante a maior parte da longa história da humanidade, no entanto, a magia, a religião e a cura quase sempre andavam juntas (Cox, 1995). Tudo indica que há vários fatores contribuindo para a volta desta relação religião saúde. A urbanização massiva que vem ocorrendo no planeta, principalmente a partir de imigrações e migrações, se de um lado, inicialmente pode ter tido como uma de suas causas a fascinação pela grande cidade, por outro significa para muitos a perda de um lugar seguro no campo ou no interior e a necessidade de recompor a vida e a identidade (Cox, 1995). É freqüente que os mediadores progressistas — militantes, profissionais, políticos — demonstrem dificuldades e conflitos com a relação que as classes populares mantêm com a questão religiosa. Se, de um lado, o debate sobre a existência ou não de Deus não parece mais um obstáculo na discussão política, por outro a inclusão da questão religiosa incorpora, com poucas exceções, apenas a proposta da Teologia da Libertação defendida pelas alas progressistas da Igreja Católica. Quando as propostas de outras religiões, tais como as pentecostais ou evangélicos, são abordadas, é freqüente que seja por um prisma de categorias como as de “manipulação” e “alienação”. Mas a dificuldade de compreender o que os membros das chamadas classes populares estão dizendo ou fazendo — por exemplo, no caso das igrejas já referidas — pode bem estar relacionado mais com um problema de postura do que com questões técnicas como, por exemplo, lingüísticas. A questão de postura estaria relacionada com a dificuldade de aceitar que as pessoas “humildes, pobres, moradoras da periferia” são capazes de produzir conhecimento, são capazes de organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade, e desta forma, fazer opções que apontem para possíveis melhorias para suas vidas. A compreensão do que está sendo dito também decorre da capacidade de entender quem está falando. Com isso, quer se dizer que dentro das classes populares há uma diversidade de grupos, e a compreensão deste fato passa pela compreensão de suas raízes culturais, seu local de moradia e a relação que mantêm com os grupos que acumulam capital (Martins, 1989) . Na realidade, esta discussão — que certamente não é nova no campo de educação popular — trata das dificuldades dos mediadores de interpretar as classes populares, ou seja, como afirma Martins (1989, p.122), que a “crise de interpretação é nossa”. É necessário que o esforço de compreender as condições e experiências de vida como também a ação política da população seja acompanhado por uma maior clareza de suas representações e visões de mundo. Se não, corre-se o risco de procurar (e não achar) uma suposta identidade, consciência de classe e organização que, na realidade, é uma fantasia de muitos mediadores (Martins, 1989). Não é nosso desejo, nem nosso incentivo verbal, que garante a suposta unidade das classes populares, mas, sim, a avaliação correta da maneira como

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compreendem o mundo. “...a prática de cada classe subalterna e de cada grupo subalterno, desvenda apenas um aspecto essencial do processo do capital.... Há coisas que um camponês, que esta sendo expropriado, pode ver, e que um operário não vê. E vice-versa” (Martins, 1989, p.108). É necessário desfazer a impressão de que o processo histórico anda mais rápido para o operário do que para o trabalhador rural ou morador de favela desempregado. É possível que um dos grandes problemas para os profissionais, pesquisadores e militantes seja a forma como as classes populares encaram uma vida, existência marcada, cercada de pobreza e sofrimento. É bem provável que estes setores da população tenham uma enorme lucidez sobre sua situação social. Mas clareza de sua situação social pode significar também clareza de que uma melhoria significativa seja uma ilusão. Neste sentido, a crença em melhorias e numa solução mais efetiva pode apenas ser um desejo, embora importante, dos mediadores comprometidos da classe média. Se a argumentação acima procede, então é possível que a relação que os profissionais estabelecem freqüentemente com a população, acabe sendo de uma cobrança de busca permanente de uma sobrevivência mais racional e eficiente (Chauí, 1990). A frase tão conhecida dos Titãs pode estar indicando, no entanto, um outro enfoque: “A gente não quer só comer. A gente quer prazer para aliviar a dor”. Neste sentido, a construção de aparências, que pode ser entendida como a construção de sonhos, não deve ser vista como uma forma apenas de “escapar da realidade”, mas pode estar indicando uma concepção mais ampla de vida. “Prazer para aliviar a dor”, então, pode tomar vários sentidos para a população, distintos dos sentidos que têm para a classe média. Certamente, um dos sentidos é o de que vale a pena viver, mesmo dentro de uma perspectiva em que não se pode vislumbrar uma saída no futuro para o sofrimento e a pobreza que se atura diariamente. Se, de um lado, este enfoque pode ajudar a compreender por que seja possível “passar fome para comprar uma TV... o êxtase com o futebol... com o alcoolismo....os jogos de azar” , de outro lado, também ajuda a entender porque “as religiões se oferecem muitas vezes como perspectivas substitutivas (compensação no além... os eleitos do Senhor=consciência substitutiva de elite... acesso a um mundo de protetores, transferência estáctica a um outro cosmo)” (Evers, 1985, p.130). Satriani (apud Martins, 1989) oferece a ideía de que a cultura popular, para poder se afirmar neste mundo do vencedor, utiliza a duplicidade, o duplo código, “...o afirmar e o negar, o obedecer e o desobedecer” (p.115), “o ajustamento aos valores dominantes e a sua rejeição; interpretações lúcidas combinam-se com ilusões aparentemente alienadas” (Evers, 1985, p. 130); “...um inconformismo profundo... sob a capa do fatalismo” (Chauí, 1990, p.70). Um estilo de vida que “se manifesta na linguagem metafórica, na teatralização que põe na boca do outro o que é palavra do sujeito emudecido” (Martins, 1989, p.115-6). Martins (1989, p.111) sugere que a cultura popular “deve ser pensada como... conhecimento acumulado, sistematizado, interpretativo e explicativo... teoria imediata”. Neste sentido, o aparente absurdo para o profissional pode ter uma lógica clara para a população.

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Finalmente, a idéia da cultura popular como memória da alternativa (Martins, 1989), deveria ser pensada no contexto da dificuldade que uma grande parcela das classes subalternas têm de poder agir somente dentro de um quadro previamente delimitado; tem sentido então “que a mudança só possa ser pensada em termos de milagre (ou seja, de que contém)... a possibilidade de uma outra realidade no interior do existente” (Chauí, 1990, p.79). Isto porque “...o milagre, pedra de toque das religiões populares e de estonteante simplicidade para a alma religiosa é ... inaceitável pelas teologias e apenas de fato por elas tolerado, pois rompe a ordem predeterminada do mundo por um esforço da imaginação” (Chauí, 1990, p.79). Conclusão A crise do Estado provedor, provocada pelo processo de globalização, afeta de maneira dramática a relação das classes populares com os serviços de saúde no Brasil. O surgimento de um mundo neo-liberal, concentrador de renda e excludente necessariamente aponta para a construção de um outro mundo, em que a sobrevivência estará intimamente relacionada com a solidariedade. Se não fosse por esta crise, talvez uma proposta como a do apoio social na área de saúde não chamasse tanta atenção. No entanto, uma vez “aberta a janela” para ver com mais cuidado essa proposta, é possível reconhecer que ela possui legitimidade por seus próprios méritos, e até independe da própria crise. A discussão do apoio social como proposta de educação e saúde abre a perspectiva de abordar uma questão que freqüentemente gera contradições no meio dos mediadores de educação popular: a religiosidade das classes populares. É algo a ser superado com o tempo, ou é parte integrante da cultura popular? Dentro da perspectiva de que as classes populares estão sistematicamente produzindo conhecimento sobre a realidade em que elas vivem, e como conseqüência, fazem uma avaliação dessa mesma realidade, é provável que as dificuldades que alguns mediadores enfrentam com a religiosidade popular esteja relacionada com o que Martins (1989) aponta como “uma crise de compreensão”. A proposta do apoio social, além de oferecer uma contribuição para a crise da saúde no Brasil, é também um instrumento que auxilia os mediadores a decifrarem as várias mensagens que as classes populares estariam produzindo por meio da religiosidade popular. Embora o termo participação popular seja hoje utilizado universalmente, sua aplicação tem um significado especial para a América Latina. A própria idéia de uma participação “popular” surge, justamente, para se distinguir de uma outra concepção de sociedade, em que quem tem estudo e recursos aponta o caminho “correto” para as classes populares. A ambigüidade do termo não vem somente das várias interpretações que poderiam resultar do seu uso, mas também do fato de que a tradição autoritária da América Latina, e do Brasil, contamina tanto os grupos conservadores, como também freqüentemente os progressistas. Há uma busca de controle das populações que moram nas periferias dos grandes centros e trabalham e moram nas áreas rurais. Controle, com a finalidade de pôr em prática suas concepções de como deve ser a sociedade brasileira.

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CHAGALL, O céu. 1984

VALLA, V. V. Redes sociales, poder y salud según perspectiva de las clases populares en una coyuntura de crisis, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.37-56, 2000. La crisis del Estado proveedor provocada por el proceso de globalización afecta de manera dramática a la relación de las clases populares con los servicios de salud en Brasil. El surgimiento de un mundo neoliberal concentrador de la renta, necesariamente excluidor, apunta hacia la construcción de otro mundo en que la sobrevivencia estará íntimamente relacionada a la solidaridad. Si no fuese por esta crisis, quizá una propuesta como la del apoyo social en el área de la salud no llamase tanto la atención. Sin embargo, una vez “abierta la ventana” para ver con más cuidado tal propuesta, es posible reconocer que posee legitimidad por sus propios méritos e incluso independe de la propia crisis. La discussión del apoyo social como propuesta de educación y salud abre la perspectiva para plantear una cuestión que frecuentemente genera contradicciones entre los mediadores de educación popular: la religiosidad de las clases populares. PALABRAS-CLAVE: Apoyo social; clase social; aceso a los servicios de la salud; pobreza; religiosidad.

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Políticas nacionais de comunicação em tempos de convergência tecnológica: uma aproximação ao caso da Saúde Áurea Maria da Rocha Pitta1 Flávio Ricardo Liberali Magajewski2

PITTA, A M. R.; MAGAJEWSKI, F. R. L. National communication policies during times of technological convergence: examining the case of Healthcare, Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.61-70, 2000. This article intends to convey an overview of the contribution presented by representatives of society in healthcare conferences and in meetings of healthcare advisors with regard to improving national policies in the field of communication. Explaining the outlook and the circumstances that form the context for these contributions, the authors indicate the possibilities and limits for building democratic relations in the Latin American context in general and in Brazil in particular. KEY WORDS: Communication; government policies and organization; community networks; technology diffusion; health system. O presente trabalho procura oferecer um levantamento das contribuições apresentadas por representantes da sociedade em conferências de saúde e encontros de conselheiros de saúde em torno do aperfeiçoamento das políticas nacionais no campo da comunicação. Esclarecendo o cenário e a conjuntura em que estas contribuições se colocam, os autores indicam as perspectivas e limites da construção de relações democráticas no contexto latino-americano em geral e no Brasil em particular. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação; organização e políticas governamentais; redes comunitárias; difusão de tecnologia; sistema de saúde.

Este artigo foi escrito especialmente com a finalidade de inaugurar uma lista de discussão na internet sobre comunicação e saúde. O debate pretende envolver profissionais de saúde e comunicação, conselheiros de saúde e demais interessados no tema. Para participar da lista de discussão, acesse o site da ABRASCO: www.abrasco.org.br.

Bióloga, Pesquisadora do Departamento de Comunicação e Saúde do Centro de Informação Científica e Tecnológica da Fundação Oswaldo Cruz. Membro do Grupo de Trabalho Comunicação e Saúde da ABRASCO. <aureapitta@alternex.com.br 2 Médico Sanitarista da Secretaria Estadual da Saúde de Santa Catarina. Membro do Grupo de Trabalho Comunicação e Saúde da ABRASCO. <magajews@matrix.com.br> 1

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Introdução O Brasil chega à chamada abertura democrática em meio à complexa problemática internacional de crise da soberania dos Estados Nacionais e às profundas transformações no pacto social entre classes construído e estruturado no pós-guerra em torno de um modelo taylorista-fordista de produção. A insuficiência das políticas redistributivas, dos sistemas de proteção social e de saúde e as condições de pobreza e indigência de grande parte da população acabaram por mobilizar setores da sociedade que, paralelamente à criação de redes sociais de apoio e de novos pactos de solidariedade, vêm pressionando os poderes públicos para a criação de mecanismos institucionais de controle, transparência e formulação partilhada de políticas econômicas e sociais – uma luta que se confunde com os processos de democratização inconclusa em vários países da América Latina e especialmente no Brasil. Ao mesmo tempo que se rompe um modelo de solidariedade fundado na lógica capital-trabalho, emergem no cenário social novas modalidades de organização dos movimentos político-culturais, assentados em novas e complexas redes de solidariedade social com acelerações de hibridizações de classes, ideologias, etnias, nações, e novas escalas de eventos e significações coletivas, com conseqüências na própria reconfiguração dos espaços territoriais, fronteiras geopolíticas e administrativas. Esta crise, portanto, não pode ser lida apenas a partir de argumentos do campo da economia, mas a partir de sua complexidade social – cultural, política, ideológica, ecológica, ética, tecnológica, simbólica. Crise de um pacto de solidariedade que não garantiu efetivamente a superação das iniqüidades inerentes aos sistemas capitalistas, tornando-se assim insuficiente como única modalidade de solidariedade social no interior deste sistema, mas que traz em seu bojo outras tantas que ao mesmo tempo a engendram. Uma delas, que nos interessa imediatamente em função deste ensaio, é a crise da “mediasfera” 3 que sustentou o pacto modernizador no Brasil4 . Desta forma, se no contexto analisado emergem novas identidades sociais, espaços e redes de pertencimento, as lutas coletivas incorporam novas estratégias que deslocam o ponto de partida das demandas direcionadas ao Estado. Estas demandas, agora estruturadas de forma policêntrica - com múltiplos e novos atores, objetivos e estratégias de expressão pública, passam a ensejar também novas possibilidades de usos das novas tecnologias de informação-comunicação, e que não podem mais ser desconsideradas pelo campo governamental. Esse contexto marca a crise de uma discursividade de tendência universalizante, típica do desenvolvimentismo. Se a década de oitenta foi marcada pela luta bem sucedida de desenvolver e inscrever no arcabouço jurídico do país as bases de um sistema de saúde público entendido como direito da cidadania, a década de noventa pode ser caracterizada pela luta, sem sucesso, de superação do atraso tecnológico e da natureza discricionária dos serviços de saúde utilizados pela população. Uma visão mais abrangente revela, neste contexto, o enorme esforço de setores organizados da sociedade brasileira no sentido da democratização dos meios de comunicação de massa no Brasil, hoje marcado pela disseminação da tecnologia

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Segundo Debray (1992), cada ideologia tem uma “performance mediológica” que lhe é própria, solidária que é à “mediasfera” que lhe dá vida.

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A transição jornal/TV acompanha no Brasil, a transição de um nacional desenvolvimentismo ao desenvolvimento modernizador. Sobre o tema ver Sodré (1990).

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POLÍTICAS NACIONAIS DE COMUNICAÇÃO EM...

Veja a este respeito Ramos (1995).

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da internet e pelas possibilidades de convergência entre esta e as tradicionais (Rádio, TV, Jornais, Correios), configurando o campo das (tele)comunicações 5 . Infelizmente, no caso da democracia brasileira, situação que se revela também nítida em outros países da América Latina, a democratização do acesso às, agora chamadas, (tele)comunicações vem contribuindo para ampliar o fosso que separa os incluídos dos excluídos dos benefícios da riqueza produzida coletivamente, o que vem exigindo dos poderes constituídos o compromisso com políticas de universalização comprometidas com a redução destas desigualdades. Dar mais concretude ao tema central deste ensaio significa, primeiramente, compreender a democracia - mesmo nas suas formas mais restritas e incompletas, não apenas como postura ética ou categoria genérica, mas como opção tecnológica ou “modo de fazer” comunicacional: como processo de trabalho concreto de construção de uma eqüidade não apenas econômica, mas social - política, cultural, simbólica, ética, tecnológica. A prática dos chamados “bons governos” não pode existir sem investimentos nestes modos de fazer concretos que viabilizam efetivamente novos pontos de partida – isso sim novo para nossa história de autoritarismo – para um projeto societário em que o sentido do desenvolvimento econômico, social e cultural das nações possa ser construído a partir de verbalizações mais amplas que a das necessidades e demandas sociais concretas de determinados segmentos sociais politicamente organizados de nossas sociedades. Quando falamos da necessidade de dar existência pública à produção político-social e cultural dos amplos e heterogêneos segmentos das populações latino-americana e brasileira – única base ética para decisões acerca da direcionalidade da produção de bens e serviços ou de uma distribuição equânime de recursos econômicos, culturais e políticos – em última análise estamos apontando para uma redistribuição de recursos de poder indispensáveis à autonomização das instituições, do cidadão e dos movimentos culturais e de cidadania, ou ainda da construção de um novo pacto social. É de propostas concretas de construção deste éthos comunicacional e de sua expressão no campo da saúde coletiva, que pretendemos nos aproximar neste texto, ou seja, de políticas e estratégias de comunicação que sirvam de base de sustentação para um projeto de democracia participativa entendido como um ideal ético-político a ser alcançado na direção a uma sociedade solidária, democrática e socialmente justa. Por outro lado, se levarmos em conta a dimensão conceitual e institucional do processo de reorganização do modelo de atenção à saúde no Brasil, trata-se de buscar uma política de comunicação articulada e coerente com alguns princípios no campo do planejamento/gestão e da epidemiologia - grandes eixos (re)ordenadores de um modelo de atenção à saúde comprometido com a construção da eqüidade e da satisfação de necessidades e demandas concretas dos cidadãos. Em primeiro lugar, no campo das experiências de gestão de serviços de saúde, vem crescendo nos últimos anos, na esteira dos processos de descentralização da gestão dos serviços públicos de saúde no Brasil, experiências municipais de planejamento participativo. Inscrita na Constituição de 1988 e nas Leis Orgânicas da Saúde (Leis 8080 e

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8142/90), a participação social no campo da gestão setorial vem avançando gradativamente no sentido dos Conselhos de Saúde se constituírem efetivamente em espaços de negociação e geração de acordos sobre a alocação dos recursos disponíveis em novas bases éticas. Da mesma forma, no campo da Epidemiologia e do planejamento em saúde, definem-se metodologias de trabalho que passam a levar em consideração não apenas os tradicionais “grupos de risco” ou “categorias de exposição”, mas sim, redes sociais e processos mais complexos de circulação da doença (epidemiologia) que apontam para formas também singulares de intervenção sobre seus determinantes (planejamento situacional). As experiências de Icapuí, Salvador (Distrito de Pau da Lima) e Londrina, entre outras, relatam abordagens integradas e inovadoras sobre problemas de saúde com ênfase na construção coletiva e democrática dos diagnósticos, prioridades e intervenções sobre a situação de saúde (Andrade & Goya, 1992; Mendes, 1995; Kadt & Tasca, 1996; Silva, 1996). Este novo arsenal conceitual vem impondo um redesenho das tradicionais fronteiras físico-territoriais e administrativas dos serviços de saúde e obrigando os gestores a pensar o planejamento de qualquer ação setorial – incluindo-se as de informação/comunicação ou de (tele)comunicações - com base em novos territórios de natureza sócio-espacial. Territórios constituídos socialmente por fluxos, movimentos, pautas culturais, formas de construção de necessidades em saúde e demandas sociais que se entrelaçam de forma complexa. Esta nova - e policêntrica - dinâmica setorial introduz no interior das instituições gestoras do sistema de saúde novos atores portadores de verbalizações e táticas próprias, e que vem demandando, a partir das Conferências Municipais de Saúde (chegando às conferências e fóruns nacionais), novas modalidades de uso dos meios de informação e comunicação ou das (tele)comunicações, mais compatíveis com necessidades sociais e de saúde concretas diagnosticadas e demandadas coletivamente (Pitta, 1995). É este amplo conjunto de movimentos que vem, crescentemente, nos fazendo interpelar as tradicionais formas de conceber as políticas de comunicação para a saúde – aqui preliminarmente definidas como um conjunto de relações comunicativas entre Estado e Sociedade, sejam estas mediatizadas ou não, que tenham vínculos concretos tanto com as metodologias de diagnóstico da situação de saúde quanto com as ações necessárias para promover a saúde frente às situações concretas diagnosticadas. Esta ampliação preliminar do conceito aqui exercitada se faz necessária no sentido de nos precavermos de uma reincidência em políticas de comunicação focalistas e restritivas, já que, como políticas nacionais de comunicação na saúde identificamos hoje apenas: uma política de “Comunicação Social” – imbuída de caráter persuasivo e com pretensões pedagógicas associada a uma política de “Comunicação Governamental” – que tem como objetivo difundir junto à opinião pública questões ou temas de interesse da esfera governamental. Políticas operacionalizadas por processos de trabalho culturalmente enraizados nas instituições governamentais, tendo vínculos menos ou mais sutis com estratégias de legitimação dos governos eleitos e responsáveis pelo exercício do poder setorial. No entanto, é a partir da análise dos discursos sobre o tema

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GOURMELIN, Encontro do acaso


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comunicação das últimas três Conferências Nacionais e fóruns intermediários, que se vem construindo discursivamente, em meio à conjuntura dinâmica e incerta do setor saúde no Brasil, e para além de sua Política de Comunicação real - coerente com as, exíguas a nosso ver, possibilidades de exercício efetivo da democracia no processo de definição de políticas de saúde – um enfoque ampliado de comunicação coerente com um novo e democrático modelo de gestão verdadeiramente pública em saúde (e em (tele)comunicações aplicadas à saúde) no Brasil. O debate setorial em torno das políticas de comunicação: estado da arte

Consultar os Anais dos II, III e IV Congressos Brasileiros de Epidemiologia (1992-98) e dos III, IV e V Congressos Brasileiros de Saúde Coletiva da Associação Brasileira de PósGraduação em Saúde Coletiva Abrasco.

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7 Partimos aqui do pressuposto de que as Conferências Nacionais são uma privilegiada caixa de ressonância das necessidades e propostas da sociedade brasileira no que diz respeito às políticas de saúde (o leito sobre o qual o desaguadouro das ações do executivo deveriam estar assentadas). Os traços das propostas e debates que atravessaram as 8a e 9a conferências podem ser consultados em Pitta (1995).

Leitura dos relatórios parciais aprovados em plenária.

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Espaços de (re)discussão das políticas e práticas institucionais, bem como a emergência de novas articulações conceituais entre saúde, democracia e comunicação vêm se dando desde 1989 em duas diferentes “arenas”. Uma primeira, representada pela crescente produção acadêmica em torno do tema 6 , em Encontros, Oficinas de Trabalho e espaços de discussão, em especial nos Congressos da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – Abrasco. Uma segunda, político-institucional, representada por encontros nacionais como Conferências de Saúde, Plenárias e Encontros de Conselheiros de Saúde em que o tema vem sendo recorrentemente debatido. No plano acadêmico, se a produção teórica no campo dos discursos em Saúde por meio da grande imprensa e das campanhas educativas vem crescendo nos últimos anos, muito pouco vem sendo construído com respeito à natureza das políticas governamentais de comunicação e de sua relação com o contexto contemporâneo das novas tecnologias de comunicação e da construção de instituições democráticas na América Latina, Brasil e no campo da Saúde. No âmbito dos grandes eventos nacionais, vem assumindo crescente expressão não apenas uma crítica - na maioria das vezes impressionista - às atuais políticas e estratégias governamentais de comunicação, mas também reivindicações e propostas que freqüentemente não são consideradas pelos gestores federais. Se tomarmos como ponto de partida a 10ª Conferência Nacional de Saúde7 , podemos dizer que, às tradicionais propostas no campo de uma “comunicação pedagógica” voltada fundamentalmente para a prevenção de doenças, sobressaem, em especial nos itens referentes ao “Controle Social”, os contornos de uma política que dá mais concretude à relação entre comunicação e exercício da cidadania e ao conceito de liberdade de expressão (direito à comunicação) – já apontado, como princípio, desde a Oitava Conferência Nacional de Saúde, de 1986. A última Conferência Nacional de Saúde propõe8, num primeiro âmbito, a divulgação ampla das atividades, resoluções, datas e locais de reuniões dos Conselhos, e prestação pública de contas às bases dos movimentos sociais que o integram e à sociedade como um todo 9. Em um segundo, a implementação de formas interativas de relação governo-sociedade (uma rede de mediações sociais)10 conforme o que segue. No que diz respeito às ações dos gestores – sistematizadas sob o item “IEC”, propõe-se: 1. Em relação ao “I” de Informação em Saúde A implantação de um Sistema Nacional de Informações em Saúde, que

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contemple, conforme dispõe a Lei Federal n° 8080/90, a produção, organização e divulgação de dados de interesse para a saúde, integrado com ações e programas de educação e comunicação em saúde, de forma a subsidiar não somente ações técnicas, administrativas e gerenciais, mas também ações de capacitação profissional, educação para a cidadania, pesquisa e acompanhamento das ações e serviços de saúde, planejamento participativo, bem como programas interinstitucionais11 . 2. Em relação ao “E” de Educação em Saúde Que o Ministério da Saúde e as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde reestruturem suas ações educativas, redimensionando-as para respeitar a realidade e as diversidades locais e regionais, a cultura das comunidades e o perfil epidemiológico, definidas e acompanhadas pelos Conselhos de Saúde e junto aos profissionais de Saúde, movimentos sociais e população como um todo. 3. Em relação ao “C” de Comunicação em Saúde O fortalecimento da imagem do Sistema Único de Saúde como alternativa pública de atenção à saúde, bem como o uso de novas tecnologias no sentido da formação do cidadão e do profissional de saúde para o exercício da cidadania ou com vistas a diagnosticar situações de saúde-doença e desenvolver ações com vistas a promoção da saúde com a promoção da qualidade de vida12 . Como proposta integradora das três áreas (I, E e C), a 10a Conferência definiu-se pela criação de CENTROS DE DOCUMENTAÇÃO, INFORMAÇÃO, COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO EM SAÚDE voltados para a democratização das informações e acessíveis aos Usuários, Conselheiros, Trabalhadores em Saúde e Gestores do sistema em Sistemas Locais, Estaduais e Nacional de Saúde. Os Centros teriam como função subsidiar os processos de formulação de políticas, o controle e a fiscalização das políticas e ações governamentais por parte da população, bem como a gerência e o planejamento das ações, propondo a incorporação de tecnologias adequadas como computadores, Internet, CD-ROM, e acesso on line a diferentes bases de dados e documentação. Como proposta operacional para uma infra-estrutura nacional, propõe-se a criação de “Pólos Municipais” articulando diferentes tecnologias para diferentes usos, e articulados às políticas setoriais de Educação. Estes pólos articulariam, em termos de infra-estrutura nacional, tecnologias como Rádio, Televisão, Jornal, Fax, Internet e Telefones gratuitos13 . Em 1998, o II Encontro Nacional de Conselheiros de Saúde acabou por delimitar os diferentes âmbitos de uma Política de Comunicação para a Saúde que vai além dos “meios” e de uma carta de princípios genéricos. Da resistematização das propostas do II ENC pode-se ressaltar a natureza comunicacional de alguns espaços ou arenas, que constituem uma rede mais ampla de relações comunicativas. O escopo das propostas aqui sintetizadas14 , por ter sido enunciado por um conjunto de atores sociais mais amplo que aqueles dos quadros técnicos das instituições governamentais de saúde, acabou por expressar os anseios de novas e mais democráticas modalidades de comunicação entre governos eleitos e sociedade - configurando o que Mattos (1999) denominaria de Comunicação Pública: aquela que pressupõe uma democracia consolidada, em que a interpenetração entre o público e o privado admite a participação de uma ampla gama de setores sociais organizados, com a

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a) A abertura de espaços para os Conselhos de Saúde na mídia impressa, falada e televisada garantidos pelo Estado – democratizando espaços na mídia; b) A produção e distribuição ampla e periódica de Boletins Informativos pelos Conselhos; c) A criação do Jornal dos Conselhos, financiado pelos Conselhos e/ou por outras fontes, com linha editorial própria, edição periódica, divulgando resoluções dos Conselhos, experiências inovadoras e outros artigos de interesse dos Conselheiros e da sociedade.

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10 Criação e implementação de ouvidorias nas três esferas de governo vinculadas aos respectivos Conselhos de Saúde com divulgação ampla do seu trabalho; criação junto aos Conselhos de Saúde de Serviços do tipo Disque Denúncia; articulação dos Conselhos de Saúde com outras instâncias como o Ministério Público e PROCOM para melhor cumprir suas funções de acompanhamento da utilização de recursos públicos e de fiscalização do funcionamento do SUS; descentralização das reuniões dos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, alternandoas entre as sedes administrativas e os distritos ou


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municípios pólo, com reuniões ampla e previamente divulgadas; criação de fóruns permanentes de defesa da cidadania plena, com ampla divulgação; abertura efetiva das reuniões dos Conselhos às comunidades; articulação autônoma dos Conselhos de Saúde de forma a promover seu fortalecimento como ator político; criação de sistema que integre a ação dos Conselhos Municipais e Estaduais com os Conselhos Gestores de Unidades de Saúde e de Hospitais; acesso, aos conselheiros, a todas as informações sobre produção de serviços, indicadores de saúde ou qualquer outra solicitada aos gestores de saúde, e necessárias para deliberar.

11 Um Sistema que possibilite a superação de bases de informações meramente quantitativas e com fins exclusivamente administrativos e pudesse estar orientado pela transparência e permeabilidade ao controle social nos diferentes âmbitos do SUS, além de outras propostas. Organizar sistema de prontuários informatizados de todos os usuários para os atendimentos em

exigência de negociação permanente entre os atores, independente do caráter estatal de qualquer participante. Ao analisá-las, as reorganizamos em alguns grandes âmbitos: 1.Trata das relações entre Conselhos de Saúde - como instâncias de formulação e controle de políticas e ações de saúde - e os respectivos gestores. 2.Trata da relação entre a política de comunicação para a saúde com as próprias atribuições e funcionamento dos Conselhos de Saúde e de suas áreas técnicas de Comunicação e do qual ressaltamos a proposta de constituição de câmaras técnicas de Comunicação com o objetivo de assessorar os Conselhos na formulação das políticas de comunicação para o SUS e dos próprios Conselhos; a criação de mecanismos de ausculta pública que transcendam os espaços dos Conselhos de Saúde - diferentes modalidades de ouvidorias; a criação de Conselhos editoriais nos Conselhos de Saúde com vistas a consensuar pautas, políticas de difusão e outras ações no campo das comunicações em geral; propostas de criação de uma REDE de Comunicação entre Conselhos de Saúde e entre estes e a sociedade – aqui merece ser recuperada a proposta da 10a CNS de criação de Centros de Documentação, Informação, Comunicação e Educação que interpretamos aqui como aquilo que vem sendo denominado de “Quiosques da Saúde”, “Salas de Situação” ou “Salas Públicas”. Ressalte-se também neste âmbito a proposta de controle social sobre as ações de comunicação e de obrigatoriedade de transparência de gastos com atividades da área de comunicação. Neste âmbito merece ainda especial atenção a questão da formação de Recursos Humanos para o SUS em geral e a necessidade de formação profissional para atividades de perfil mais amplo e complexo do que as tradicionais atividades de comunicação (Jornalismo, Publicidade e Propaganda - PP, Relações Públicas – RP e Radialismo). 3. Trata de propostas que dizem respeito a estratégias de Comunicação entre Conselheiros e população: questões de comunicação que dizem respeito à construção da representatividade e legitimidade dos conselheiros de saúde e conseqüentemente dos próprios Conselhos de Saúde. É importante ressaltar a convergência entre o que vem sendo proposto como estratégia de gestão descentralizada das ações de Informação, Educação e Comunicação pelos últimos Encontros Nacionais de Saúde e aquilo que vem sendo proposto pela ANATEL15 como estratégia nacional de configuração de uma ampla rede nacional de (tele)comunicações. Segundo a Agência em sua proposta de criação da Rede Br@sil.gov (Brasil, 1999), os recursos em (tele)comunicações no Brasil devem permitir a viabilização de uma infra-estrutura nacional que torne acessível a todo cidadão brasileiro, “Pontos Eletrônicos de Presença” (PEPs) de uma infovia nacional “com soluções versáteis e de baixo custo”.

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Considerações finais Queremos deixar para a avaliação dos leitores alguns tópicos que consideramos importantes por serem recorrentes nos debates acadêmicos, atualmente valorizados pelo reforço que as indicações de encontros nacionais de conselheiros e mesmo de Conferências vêm fazendo. Chamamos a atenção, em primeiro lugar, para a necessidade de articulação das propostas para o campo da Comunicação com outras dos campos da Educação e da Informação em Saúde, dada a impossibilidade de separar estes três campos de atividades que se entrelaçam intimamente – em especial tendo em vista a conjuntura de acelerada convergência entre diferentes tecnologias de Comunicação/Informação, e pela própria natureza comunicacional de qualquer processo educacional e informacional. Em segundo lugar, é importante atentar para o consenso firmado e a ser mais bem discutido – expresso no item 22° da recente “Declaração conjunta do Ministro da Saúde e dos Secretários Estaduais de Saúde – de “fortalecimento dos instrumentos de Informação e Comunicação com a população por meio da Rede Nacional de Informação em Saúde e Disque-Saúde interligando via Internet os 5.507 municípios brasileiros até o ano 2003”16 . Há o risco de se compreender de forma restritiva o amplo leque de tecnologias que podem ser acionadas para dar conta das propostas de integração entre “I”, “E” e “C” já verbalizadas nos fóruns coletivos nacionais. Finalmente, é preciso atenção especial para um necessário debate nacional – uma Conferência Nacional específica? - das propostas das Oitava17 , Nona e Décima Conferências Nacionais de Saúde18 no sentido de construir as aproximações possíveis com as propostas que vêm sendo debatidas no Comitê Sobre Infra-estrutura Nacional de Informação (C-INI) - Sub-Comitê Saúde – da ANATEL que em sua proposta de uma rede de “Pontos Eletrônicos de Presença” ou PEPs se aproximam em muito dos conceitos de “salas de situação” ou “quiosques da saúde” já indicados anteriormente. Consideramos fundamental que este debate não desconsidere os condicionamentos de ordem econômica das políticas de comunicação setoriais hoje existentes – inspiradas no campanhismo sanitário do início do século – sustentadas pelo ambiente cultural e de formação de RH no campo da Comunicação que nos fazem recair em projetos e estratégias difusionistas, que consomem largos investimentos públicos e de “eficácia educativa” duvidosa. Condicionamentos que têm como conseqüência um processo centralizado e pouco permeável às demandas sociais no que toca à formulação e implementação de uma política nacional de comunicação para a saúde nos moldes que preconizamos nos parágrafos introdutórios deste trabalho. Assim, apesar de o discurso da democracia percorrer muitas das justificativas que dão sentido a políticas desenvolvidas nos últimos anos no Brasil e nos países da América Latina, o que se observa são estratégias que enrijecem de tal forma sua legitimação e execução que as adscrevem a um modelo de mão única incompatível com os preceitos democráticos com que se procura, como ideal a ser alcançado, orientar o processo de formulação de políticas e ações de saúde no Brasil. É a compreensão desta totalidade ao mesmo tempo complexa e contraditória

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todo o Sistema de Saúde, respeitadas as disposições dos Códigos de Ética Profissional e respeitada a privacidade e a confidencialidade do usuário. Criar o Sistema Único de Cadastramento de Estabelecimentos de Saúde (ao Ministério da Saúde foi dado o prazo de 90 dias para apresentar ao Conselho Nacional de Saúde, para discussão e aprovação, proposta da criação do Sistema. Implantar a longo prazo o Cartão SUS, nacionalmente, com o objetivo de cadastrar os usuários, organizar a rede de Atenção Integral à Saúde e implantar um Sistema de Informações que garanta o acesso de todos os usuários a todas as ações e serviços públicos, conveniados e contratados. 12 Fica clara uma crítica ao modelo pedagógico que se restringe à prevenção, especialmente a sua ênfase às variáveis biológicas de determinação da doença, desqualificando como varáveis relevantes do processo de determinação questões sociais como a posse e uso da terra, acesso à habitação, alimentação, saneamento básico, trabalho justo, lazer, transporte e participação na formulação de políticas e controle das ações governamentais.


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13 A proposta, assim, indica uma opção por estratégias de articulação em REDE através da qual possam ser definidas e implementadas ações em articulação com entidades religiosas, escolas, sindicatos, associações de moradores, agentes comunitários e outros segmentos.Quanto às campanhas publicitárias e o uso do rádio e da TV, os temas girariam em torno de uma defesa pública do SUS, a divulgação das experiências bem sucedidas na gestão do sistema público de saúde. Propõe-se ainda a constituição de comissões paritárias para a definição de políticas mais democráticas de comunicação em todos os níveis do Sistema de Saúde de forma a possibilitar uma maior interrelação entre os Conselhos de Saúde de todos os municípios e Estados brasileiros e a população de cada unidade federativa.

14 Disponíveis na íntegra no site da Conferência Nacional de Saúde on line em www.saude.gov.br ou www.datasus.gov.br

que, em nossa opinião, pode criar um melhor entendimento sobre a construção da almejada “visibilidade das democracias”, como propõe Bobbio (1986). É enfim, também o reconhecimento desta REDE de mediações existentes entre governantes e governados e de suas estratégias de comunicação – incluindo as tecnologias que incorporam para este exercício. É importante ressaltar paralelamente, que não se trata aqui de louvar a disponibilização de fluxos de dados e informações em saúde dos sistemas governamentais, mas de analisar a perspectiva de constituição de uma rede com características até o momento desconsideradas pelas propostas governamentais. Nesta REDE se posicionam, em desiguais posições de poder de enunciação e autonomia, sujeitos. Assim entendida e aceita, esta rede é essencialmente assimétrica, e portanto atravessada por desiguais possibilidades de incorporação de tecnologias de Informação e Comunicação e requer igualmente políticas reguladoras que permitam a redução destas desigualdades de acesso. Sobre as políticas de incorporação de tecnologias é necessário também chamar a atenção para a existência de duas lógicas inspiradoras do caráter desta incorporação. A opção por qualquer uma delas definirá o perfil futuro desta REDE. Uma, determinada pela oferta – pelo que há de disponibilidade em um mercado agressivo e em expansão, que pode resultar em incorporação às cegas de tecnologias que acabam por não corresponder às demandas sociais concretas. Outra, determinada pela demanda por uma maior participação nos processos de tomada de decisão, transparência e proximidade espacial entre governantes e governados, o que pressupõe uma certa descentralização - aqui entendida como a “relevância da periferia com respeito ao centro” - (Bobbio, 1986) tornada possível por meio de redes sociais representativas, mediadoras/ reguladoras dos sistemas de visibilidade e ponto de partida das decisões sobre incorporação tecnológica. Como compatibilizar a proposta de democratização das instituições públicas de saúde no Brasil com as possibilidades trazidas pelas tecnologias de Comunicação - em processo de acelerada convergência tecnológica e de expansão, via mercado - é a questão que fica em aberto ao final deste trabalho. É evidente que ao mesmo tempo em que apontamos o espaço já conquistado de democratização setorial (conselhos, conferências) como locus privilegiado em que este debate pode ser aprofundado e redefinido em favor da consolidação da sociedade mais justa e eqüânime como imagem-objetivo a ser alcançada, temos também a consciência do poder midiático e institucional que envolve estas estruturas de controle social e de formulação de políticas em geral. Portanto, o processo que estamos analisando está longe de ser definido sempre a favor dos princípios éticos que orientaram a constituição do Sistema Único de Saúde no Brasil e inspiram a democratização de outros sistemas de saúde e de comunicação na América Latina. Finalmente, nossa experiência, por tudo o que foi colocado acima, nos faz crer que as lutas pela universalização (democratização) das (tele)comunicações com vistas ao acesso de novos atores sociais a espaços de poder e influência dentro e fora do setor saúde, pelo conjunto da produção social sensível à natureza do seu éthos e conseqüentemente do seu modus operandi, é uma das chaves para a transformação social e para, enfim, um encontro continental com a modernidade civilizatória e emancipadora dos sujeitos.

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15 O conselho diretor da ANATEL instalou em 14/ 09/98, o Comitê Sobre Infraestrutura Nacional de Informação – CINI, conforme a lei geral das telecomunicações (Lei 9.472 de 16/ 07/97).

BRASIL. Governo Federal. ANATEL - Agência Nacional de Telecomunicações. Rede Br@sil.gov: uma proposta para o desenvolvimento e a cidadania. Brasília, 1999. DEBRAY, R. Traité de Mediologie General. Paris: Editora Gallimard, 1992. FERNANDES DA SILVA, S. A construção do SUS a partir do município. São Paulo: Hucitec, 1996. KADT, E., TASCA, R. Promovendo a eqüidade:um novo enfoque com base no setor da saúde. São Paulo: Hucitec,1993. LEVY, P. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. MATTOS, H. Propaganda governamental e redemocratização no Brasil: 1985/1997. In: IV Reunião da Coordenação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 1999. [on line]. http://sites.uol.com.br/jorgealm. MENDES, E. V. Distrito Sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec, 1995.

16 Documento mimeo, 1999.

17 A Oitava Conferência já aponta como pressuposto o Direito à Saúde, à Educação e à Informação plenas, e o direito à livre organização e expressão, aqui entendido como Direito à Comunicação.

PITTA, A. M. R. Interrogando os campos da Saúde e da Comunicação: notas para o debate. In: _______. (Org.) Saúde e Comunicação: visibilidades e silêncios. São Paulo: Hucitec, 1995. RAMOS, M. C. Saúde, Novas Tecnologias e Políticas Públicas de Comunicações In: PITTA, A. M. R. (Org.) Saúde e Comunicação: visibilidades e silêncios. São Paulo: Hucitec, 1995. SILVA, S. F. A construção do SUS a partir do município: etapas para a municipalização plena da saúde.São Paulo: HUCITEC, 1996. SODRÉ, M. A máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil. São Paulo: Cortez, 1990.

PITTA, A M. R.; MAGAJEWSKI, F. R. L. Políticas nacionales de comunicación en tiempos de convergencia tecnológica: una aproximación al caso de la salud, Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.61-70, 2000. El presente trabajo procura ofrecer un levantamiento de las contribuciones propuestas por representantes de la sociedad en conferencias de salud y encuentros de consejeros de salud en torno al perfeccionamiento de las políticas nacionales en el campo de la comunicación. Aclarando el escenario y la coyuntura en que estas contribuciones se colocan, los autores indican las perspectivas y límites de la construcción de relaciones democráticas en el contexto latinoamericano en general y en Brasil en particular. PALABRAS-CLAVE: Comunicación; organización y políticas governamentales; redes comunitarias; sistemas de la salud.

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18 Esta última sistematizada em anexo no que toca ao campo da Informação, Educação e Comunicação.


A comunicação midiática e o Sistema Único de Saúde Valdir de Castro Oliveira1

OLIVEIRA, V. C. Media communication and the Single Healthcare System, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.71-80, 2000.

This article discusses the relation between media communication networks and the symbolic constitution of government health policies, as illustrated by the Single Healthcare System (SUS – Sistema Único de Saúde). Given this angle, we focus our analysis on how the media interprets and reconfigures this healthcare field, from the point of view of power relations. We develop the idea that media communication does not take place outside a context of conflict, transformation and political struggle within society, which indicates, produces and reproduces a given form of interpretation of reality. KEY WORDS: Persuasive communication; mass media; public health; public policy. Este artigo discute a relação entre as redes de comunicação midiática e a constituição simbólica das políticas públicas de saúde representada pelo SUS. Sob este aspecto focalizamos a análise na maneira pela qual a mídia interpreta e reconfigura este campo da saúde na perspectiva das relações de poder, trabalhando com a idéia de que a comunicação midiática não é desenvolvida fora de um contexto de conflito, transformação e luta política na sociedade, que indica, produz e reproduz uma determinada forma de interpretação da realidade. PALAVRAS-CHAVES: Comunicação persuasiva; meios de comunicação de massa; saúde pública; política social.

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Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais

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VALDIR DE CASTRO OLIVEIRA

Introdução De que maneira as questões comunicacionais e informacionais afetam as formas de percepção da população sobre o SUS – Sistema Único de Saúde – enquanto uma política pública de saúde? Para responder a esta indagação, partimos do princípio de que a efetivação de suas proposições ético-políticas dependem fundamentalmente de um amplo conhecimento por parte da população, tanto em termos de visibilidade pública quanto de informações e conhecimentos que permitam a ela reconfigurar seu entendimento sobre a saúde pública brasileira, o que envolve necessariamente, processos comunicacionais. Ao propor a universalidade, o acesso gratuito e a participação da comunidade no sistema de saúde, o SUS cria um novo paradigma na relação da sociedade com as instituições públicas e privadas, afetando fundamentalmente seu sistema político-institucional. Como política pública, é incisivo em relação ao controle social e sua gestão, implementação e viabilização dependem, entre outras coisas, da organização de diferentes modalidades comunicacionais e fluxos informacionais (midiáticos e não midiáticos). Graças à comunicação midiática o termo SUS hoje está incorporado ao vocabulário da população como uma referência concreta para a resolução de problemas cotidianos ligados à saúde. Por outro lado, podemos dizer também que esta mesma população ainda não conseguiu apreender claramente qual é seu real alcance e significado para a mudança do sistema brasileiro de saúde, principalmente no campo político. E, em boa medida, as formas de apreensão política do significado do SUS têm a ver com os processos comunicacionais desenvolvidos. Esta questão pode ser melhor entendida se levarmos em conta que parte das pesquisas e sondagens de opinião pública 2 mostra que a saúde é apontada como um dos principais problemas da sociedade, que, na maioria das vezes, não consegue identificar no sistema operacional do SUS os principais fatores que dificultam seu funcionamento e comprometem o atendimento à demanda. As principais imagens e informações publicamente divulgadas pela mídia sobre o SUS são mais comumente associadas às mazelas e dificuldades do setor, quase sempre a partir de uma suposta ineficiência do Estado, incompetência das autoridades ou dos profissionais da área, levando à construção de uma ordem simbólica pouco reflexiva sobre o campo da política de saúde representada pelo SUS. Essa mesma forma de comunicação é extremamente parcimoniosa e tolerante com o setor privado e incapaz de estabelecer um quadro referencial de análise por parte do público, de tal maneira que ele pudesse ter informações relevantes para discernir os dois sistemas (público e privado) como complementares e não antagônicos. Ao deixar de melhor informar a sociedade, a visibilidade pública obtida pelo SUS, longe de promovê-lo, torna-o politicamente frágil no contexto das lutas políticas e ideológicas que marcam o país na atual conjuntura. Como este tipo de questão não alcança o grande público, o debate acaba se restringindo aos grupos mobilizados da sociedade. A partir destas questões procuramos entender a lógica que preside a construção das mensagens e das imagens produzidas pelas mídias em relação à sociedade e ao SUS.

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2 Pesquisa realizada pelo Ibope por iniciativa da Fundação Nacional de Saúde e do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde em 1998, com duas mil pessoas, mostrou que a maioria dos entrevistados não soube definir com precisão o significado da sigla SUS. Mesmo assim, para 41% a qualidade dos serviços públicos de saúde está melhorando, enquanto 32% julgaram que está piorando.


A COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA E O

As redes midiáticas de comunicação

A tese de Castells é a de que o surgimento da “economia informacional caracteriza-se pelo desenvolvimento de uma nova lógica organizacional que está relacionada com o processo de transformação tecnológica, mas não depende dele. São a convergência e a interação entre um novo paradigma tecnológico e uma nova lógica organizacional que constituem o fundamento histórico da economia informacional. Contudo, essa lógica informacional manifesta-se sob diferentes formas em vários contextos culturais e institucionais” . Castells, 1999, p.174)

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O sistema de comunicação midiática é indissociável da paisagem da sociedade contemporânea e profundamente responsável por forjar nossas formas de perceber o mundo e de nos relacionarmos com o cotidiano social. Ao articular e integrar vários sub-sistemas e suportes de comunicação, ele nos induz a relacionamentos com as redes comunicacionais geradas ou tornadas possíveis pelo telefone, fax, televisão, cinema, jornais, televisão, satélites de telecomunicações, correio eletrônico, internet. Os fluxos informacionais, cada vez mais velozes, permitem a ligação quase simultânea entre diferentes regiões do planeta, tornam acessíveis os mais diferentes tipos de informação e possibilitam a globalização. A “instantaneidade da informação globalizada aproxima os lugares, torna possível uma tomada de conhecimento imediata de acontecimentos simultâneos e cria, entre lugares e acontecimentos, uma relação unitária na escala do mundo” (Santos, 1994, p.49). Embora não estejam igualmente disponíveis para todas as sociedades e seus respectivos segmentos sociais, como observa o sociólogo espanhol Manuel Castells (1998), estamos vivenciando um tempo em que a geração, o processamento e a transmissão da informação foram transformados em fontes fundamentais da produtividade e poder devido às novas condições tecnológicas surgidas neste período histórico; pela primeira vez na história, assistimos a uma radical integração de diferentes modalidades comunicacionais, como a escrita, oral e audiovisual, a chamada multimídia 3 . Há uma rápida e profunda alteração no cenário comunicacional. “Todas as expressões culturais, da pior à melhor, da mais elitista à mais popular, vêm juntas nesse universo digital que liga, em um supertexto histórico gigantesco, as manifestações passadas, presentes e futuras da mente comunicativa. Com isso, elas constróem um novo ambiente simbólico” (Castells, 1999, p.394). Embora os processos comunicacionais pessoais, grupais ou intergrupais ainda sejam constitutivos de nossa experiência e de nossa identidade social, não há dúvida de que este novo ambiente simbólico do qual nos fala Castells (1999) corresponde a uma ampliação de nossas bases cognitivas para a interpretação do mundo. Paradoxalmente, também por esta mesma ampliação das possibilidades comunicativas e informativas são forjadas várias espécies de mimetismo informacional e cognitivo. Num sistema econômico cuja lógica está sempre a promover um contínuo deslocamento do sujeito social do campo da política para o campo do consumo, a comunicação, principalmente a midiática, continua sendo determinante para relações sociais assimétricas e de sujeitamento social. Isto é obtido graças a um eficiente jogo discursivo, no qual a pedagogização das mensagens midiáticas tende a criar a ilusão de transparência e naturalizar as relações sociais, deixando de revelar que o sistema econômico é um espaço organizatório da vida social. Reforça-se, na verdade, o deslocamento do sujeito da enunciação para as zonas sombrias do processo comunicativo, esquecendo que a razão de ser de um discurso não reside na competência propriamente lingüística do locutor e sim no lugar de onde ele é socialmente proferido, reiterando formas autorizadas de discurso, como nos lembra Bordieu (1994). Assim, os consensos, os conflitos e as formas de cooperação

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social passam a ser codificados pela mídia na esfera pública como a principal instância de expressão de normas de conformidade dos discursos e de ações da sociedade moderna, definindo o estatuto dos atores sociais. Como lembra Rodrigues (1990), não podemos dizer que a mídia é um simples instrumento à disposição dos indivíduos, dos grupos informais ou dos grupos organizados para dar a conhecer fatos, acontecimentos, pensamentos, vontades ou afetos. É, sobretudo, responsável por reproduzir as relações sociais assimétricas e atribuir sentidos aos mundos, em conformidade com a dinâmica cultural da sociedade contemporânea. Por esta razão não podemos analisar o universo midiático sem levar em conta a maneira como ele se constitui em campo de forças no qual diferentes atores sociais buscam fazer prevalecer determinados sentidos através de suas práticas discursivas, tornando-o um locus de tensão permanente. É como se fosse uma arena social em que coexistem tentativas diversas de construção, afirmação ou negação de significados. Como nos lembra Bahktin (1981), as práticas discursivas constituem um lugar por onde transitam diferentes disputas de hegemonia de sentidos. Por meio deste cenário discursivo o cotidiano social é construído e apresentado pela maior parte das redes comunicacionais midiáticas. Entretanto, essas redes não podem ser apreendidas apenas a partir da análise do universo midiático. É necessário buscar compreender de que maneira uma percepção social mais ampla, presente na mídia, se articula e transforma outros processos comunicacionais vivenciados na arena social. Se a mídia é hoje o lugar privilegiado de visibilidade pública e legitimidade das forças atuantes na sociedade, uma melhor compreensão do processo midiático só pode ser obtida se for conjugada com uma análise de outros processos interacionais que ocorrem simultaneamente fora do universo das mídias. Por isso, por exemplo, ao promover ações, o Estado, as instituições públicas e privadas, os agrupamentos políticos ou movimentos sociais consideram, previamente, estratégias comunicacionais que lhes garantam formas de reconhecimento público e legitimação. Assim procedendo, essas instâncias promovem a emergência de uma nova geração de problemas que desafiam o estudioso da área, porque o que passa a estar em jogo não é apenas o sucesso ou insucesso das estratégias comunicacionais adotadas, e sim o surgimento e a reconfiguração de novas formas de sociabilidade. Estas, por sua vez, implicam a redefinição do jogo de forças dos atores sociais, em termos de construção de consensos, surgimento de novos conflitos ou de simples luta pela manutenção do poder, gerando novas formas de modelação dos sentidos de participação social. Ao analisar a comunicação nos processos sociais ou, no caso do tema deste artigo, o sistema de informação e comunicação relacionado à proposta do SUS, precisamos entender tanto os efeitos de sentidos provocados pela rede comunicacional midiática quanto aqueles provocados por processos interacionais não midiáticos presentes no cotidiano social. É neste contexto que são construídas e produzidas novas formas de sociabilidade e de materialização das estratégias políticas dos atores sociais. Canclini (1998) observa que na contemporaneidade houve um deslocamento da política de seus lugares tradicionais, os partidos, para o universo midiático. Assim, muitas das questões ligadas à cidadania são hoje respondidas mais pelo consumo privado de bens e de meios de comunicação de massa, que por conceitos de democracia e participação coletiva em espaços públicos.

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A mídia e o contexto do SUS como política pública

Pode-se dizer que o antigo sistema de prestação de serviços de saúde garantia acesso a serviços quase exclusivamente àqueles que tivessem o passaporte para a cidadania (carteira de trabalho), que os inseria no âmbito de cobertura do antigo Inamps. Menicucci, 2000.

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Sendo o SUS uma política pública voltada para a promoção do bem-estar social e aberta ao controle social, por que uma subreptícia oposição a ele ganha visibilidade na mídia? Embora não seja nosso propósito responder a todas as variáveis que envolvem esta pergunta, destacamos aqui o fato de o SUS ser resultado de longas lutas sociais, que culminaram com sua implantação pela Constituição Federal de 1988, que destaca a saúde como “direito de todos e dever do Estado” (art.196) e aponta para a criação de um sistema de saúde radicalmente diferente do que até então havia vigorado no Brasil. Surgido no bojo dos debates que antecederam a Constituição de 1988, travados em um novo contexto mais arejado e plural e que clamava por uma ordem política mais democrática, impunha-se como exigência ao novo modelo de saúde a necessidade de novos formatos institucionais para seu funcionamento no que se refere às relações Estado-Sociedade. Com a proposta de ser um sistema de saúde de caráter universal, gratuito, descentralizado e democrático, operacionalmente o SUS abandona o modelo antigo baseado no atendimento médico e na assistência hospitalar excludentes4 . Como mostra Menicucci (2000), a contradição basilar do SUS é sua conformação de sistema público de saúde de caráter universal em um país cheio de desigualdades, com uma situação de saúde precária. isso, possivelmente, tenha contribuído para restringir a meta da universalização do acesso a serviços de saúde em “um quadro econômico de crise e de rearticulação políticoideológica em que a própria idéia de direitos universais garantidos através das políticas sociais passou a ser colocada em questão” (Menicucci, 2000, p.28) . Em conseqüência, houve pouca variação nos recursos destinados à saúde, embora os procedimentos e atendimentos feitos pelo SUS requeressem um dispêndio financeiro cada vez maior em todos os níveis de governo. Na contramão da história, o SUS, enquanto um modelo democrático e descentralizado e uma política pública voltada para superar a distância entre os segmentos sociais e amenizar a exclusão social, passa dificultades que comprometem sua gestão e implementação. Entre outras, destacamos aquelas relativas ao gerar e gerir informações e processos comunicacionais relevantes para a população, permitindo a ela melhor entendê-lo e apreendê-lo enquanto uma política pública voltada para seus interesses e demandas. Tais dificuldades podem ser entendidas, inicialmente, se reconhecermos que as informações geradas pelo aparato técnico-informacional não são de fácil acesso à população (Ribeiro, 1998). Os dispositivos informacionais e comunicacionais “não foram amplamente apropriadas pelos defensores do sistema público de saúde”, fazendo-se necessário que a luta neste campo seja articulada à luta pelo acesso social à saúde, pois “caminhamos para um futuro em que as novas condições técnicas de produção e difusão do saber não podem permanecer apenas em mãos dos donos do poder. A sociedade necessita do desvendamento de formas de gestão dos recursos que garantam a vida e a saúde” (Ribeiro, 1998, p.18). Entretanto, o desvendamento proposto pela autora não é uma empreitada fácil, principalmente se tivermos em conta o sistema midiático de comunicação. Isto porque estamos pressupondo que as relações sociais no Brasil são profundamente assimétricas e, igualmente, afetam as formas de interação e sociabilidade presentes na dinâmica social. Ao invés do desvendamento, temos

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um contínuo obscurecimento das questões sociais que costumam ser tratadas mais em nível de governo do que por uma participação horizontal da população. Como a maioria do sistema midiático reproduz estas formas de relações sociais e de poder, supomos que suas preocupações principais não estão voltadas para promover mudanças significativas nos cenários de poder ou nas condições de vida da população. A mídia nacional, organizada hoje em forma de rede e concentrada em algumas grandes empresas, é responsável pelo monopólio da fala e pela constituição da agenda pública. Representando ou sendo favorável a grupos de poder na sociedade, fora e dentro do aparato de Estado, jornalisticamente, a maioria se mostra mais preocupada em produzir notícias que revelem os desvios do SUS do que as mudanças substantivas que ele pode provocar no cenário social. Em conseqüência, rotineiramente, os escândalos e notícias de impacto (como a morte nas filas de atendimento, a corrupção desenfreada, o mau atendimento, o desdém dos funcionários públicos e dos profissionais da saúde em relação aos usuários, entre outras coisas) passam a determinar a agenda pública, ao lado de mensagens funcionais que estimulam a população a responder a determinados apelos das autoridades do setor para melhor integrá-la à lógica de funcionamento do sistema social vigente ou dele receber um atendimento adequado. Entre uma modalidade e outra de mensagens geradas pelas mídias, podemos notar que, passando por um prisma ideológico, o que é público passa a ser visto negativamente em contraposição ao que é privado respondendo, assim, a determinados pressupostos de entendimento e de ação sobre a organização social defendidos por alguns grupos de interesse, como o complexo industrialfarmacêutico e hospitalar, as empresas e os planos de saúde. Neste contexto, a primazia do privado se sobrepõe claramente ao que é considerado público, tanto na perspectiva de uma visão patrimonialista5 quanto ultraliberal sobre o papel do Estado em relação à sociedade. Hierarquizando a relação entre o que é público e privado, o primeiro aparece como sintoma de ineficiência, desperdício, mau atendimento ou corrupção, como se fosse portador de uma doença crônica, generalizada e sem cura. Em contrapartida, o setor privado passa a ser valorado positivamente, juntamente com determinadas ações desenvolvidas por entidades públicas não estatais ou não-governamentais, como, por exemplo, a Pastoral da Criança, a excelência tecnológica e administrativa de alguns hospitais particulares, as ONGs, a exaltação de parcerias bem sucedidas entre o público e o privado, com o sucesso creditado na conta do segundo e, o insucesso, na do primeiro. Neste constante jogo comparativo promovido pelo campo midiático, o privado também não escapa de críticas, embora predomine nelas o pressuposto do desvio e não o de uma causa estrutural ou como resultante das redes de poder do setor econômico. Este é o caso da falsificação de medicamentos ou dos preços abusivos praticados por alguns laboratórios, em que a crítica assume tom quase que puramente moral e mobiliza a indignação nacional contra essa forma de “delinqüência”. É neste cenário que é enfatizado o papel puramente normatizador e fiscalizador do Estado. A exacerbação dessa lógica dualista na construção das mensagens impede que a mídia mostre a coincidência de interesses e a relação mantida entre o setor privado e o setor público. Também raramente mostra de que maneira o

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5 Segundo Sorj (2000), os processos de urbanização e transformação das relações sociais no campo reduziu o poder dos grandes proprietários rurais e fez o fenômeno do patrimonialismo local perder relevância. O novo patrimonialismo, de base urbana, tem como fundamento as relações de imbricação entre os interesses dos grupos dominantes e o Estado, a impunidade e o descontrole da máquina governamental, que transformou em grande parte o sistema repressivo e jurídíco num instrumento de violência contra os grupos mais pobres e de impunidade dos mais ricos.


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setor privado ocupa espaços no Estado, por cargos estratégicos que conquista nos governos, quer seja sob a perspectiva patrimonialista, que enfatiza a apropriação de recursos públicos por alguns setores ou grupos, quer seja como resultante de posições político-ideológicas, como aquelas que prevêem uma ampla redução no papel do Estado em relação à sociedade dentro do figurino neoliberal. Ao mostrar uma coisa e não outra, a mídia contribui para que as idéias de cidadania e de espaço público sejam restringidas ao plano da oferta de serviços e consumo pelo Estado e pelas empresas privadas e não pela inserção substantiva do cidadão e dos grupos sociais na organização e reorganização do aparato de Estado e da economia. Diante desta lógica perversa, como mostra Ribeiro (1998), tanto as tecnologias informacionais quanto as técnicas de intervenção social se tornam insuficientes para diminuir as distâncias entre classes e segmentos de classes e, em certa medida, responsáveis por permitir a permanente reprodução destas distâncias, impedindo que a técnica seja apropriada em benefício da sociedade. No caso da mídia jornalística, por exemplo, observa-se basicamente duas formas de tratar a notícia de saúde: uma em que os assuntos são apresentados de maneira crítica, opinativa e polêmica, principalmente através de reportagens, colunas e artigos publicados pelos jornais, rádio ou televisão e outra em que as notícias são produzidas e contextualizadas a partir de seu caráter factual, isto é, quando os assuntos são tratados a partir dos acontecimentos que irrompem entropicamente na superfície social e, ao invés de enunciados, são anunciados na esfera pública. Se no primeiro caso existe uma informação crítica, mas pouco acessível aos setores majoritários da sociedade, no segundo esta dimensão crítica nem sempre é preponderante, pois os fatos costumam ser trabalhados descritivamente em função de um maior ou menor grau de particularidade. De acordo com esta lógica, segundo os velhos manuais de jornalismo, o cachorro que morde o homem não é notícia, mas o homem que morde o cahorro, sim, realçando-se assim o particularismo do acontecimento. A notícia não circula no espaço público pelo seu valor em si, mas por ser uma mercadoria dotada de valor de troca. Através de sua forma narrativa e de um sistema logotécnico cada vez mais sofisticado, o relato jornalístico seleciona, amplia e hierarquiza os acontecimentos, permitindo que o cidadão comum articule seu cotidiano social e nele se reconheça. “A notícia gera um tipo de unidade narrativa que, segundo se presume, tranquiliza a consciência do indivíduo insegura em face da dispersão humana na grande cidade, da vicissitude dos acontecimentos, da condição precária da identidade no espaço urbano, do desconhecimento das causas, da incidência trágica do acaso” (Sodré, 1996, p.133). O autor completa dizendo que essa “oblíqua exigência de tranquilização preside a técnica do texto jornalístico de não se abordar os assuntos de forma negativa ou duvidosa – escrever que o fumo faz mal à saúde seria mais adequado do que dizer que não existem provas de seus efeitos nocivos”. Isso não significa dizer que a notícia atua apenas desta forma e que sempre corresponda ao acontecido de fato e sim que “ela atende à retórica organizada da singularidade factual do cotidiano, consagrado pela lógica comercial de um grupo logotécnico denominado empresa jornalística” (p.133). Politicamente, junto à publicidade dada aos assuntos por meio da notícia,

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existem pessoas e instituições que tentam obstaculizar sua divulgação e evitar que ela chegue à esfera pública. De outro lado, estão os mídias, cuja função precípua é dar publicidade a tais assuntos, gerando, em conseqüência, uma tensão permanente entre o segredo e a publicidade. É isto que faz com que as fontes da informação jornalística (grupos sociais, empresas e instituições públicas e privadas) busquem interferir no dispositivo jornalístico midiático, por exemplo, com assessorias de comunicação ou veículos próprios (produção videográfica, canais internos de televisão, revistas ou jornais de divulgação, entre outros). Predomina, no entanto, a mídia jornalística organizada como empresa e, assim sendo, ela exacerba seu papel de ator político e, simultaneamente, imprime na notícia seu valor de troca. Desta forma, interpela diversos campos constitutivos da sociedade6, expondo suas contradições na esfera pública ou evidenciando um hiato entre a competência discursiva (pressupostos axiológicos) destes campos sociais e a prática concreta que exercem no cotidiano social. Assim, o hospital que nega atendimento a um paciente por falta de vaga ou dinheiro sofre o assédio da mídia porque tal comportamento contraria determinada expectativa dos atores sociais. O hospital, por sua vez, busca tentar influenciar nesta notícia, explicando ou tornando públicas suas decisões a respeito do caso. Apesar do caráter mercantil que preside a produção da notícia, devemos levar em conta que existem espaços onde a saúde pode ser mostrada sob uma ótica tendencialmente crítica, interpretativa ou opinativa e em que o governo, as autoridades e o sistema de saúde, público ou privado, podem transmitir informações relevantes ou ser criticamente desnudadas pela ação jornalística. Ou seja: se alguns veículos de comunicação ficam estacionados na superfície descritiva dos acontecimentos, outros buscam entender e expressar as circunstâncias que atuam na geração do acontecimento, apurando, de maneira mais aprofundada, o grau de responsabilidade das pessoas e instituições, as conseqüências sociais e o impacto causado à sociedade pelo fato noticiado. Não há dúvida de que os acontecimentos negativos na saúde suscitam amplas e variadas reportagens e influenciam fortemente a agenda das mídias. Eles criam uma expectativa de consumo da mensagem, trabalham com a lógica da imprevisibilidade, do acontecimento que interfere no cotidiano social e envolvem não só as supostas vítimas, mas também as relações de poder. Um exemplo disso é o caso da tragédia em Caruaru. Apesar de a morte de dezenas de pacientes por complicações da hemodiálise ter ocorrido em uma clínica particular, o que se exacerbou na cobertura jornalística foi a ineficácia do público e também o mal-estar provocado pelo comportamento das autoridades através do jogo de empurra das responsabilidades. Em casos como estes, o desvelamento das contradições entre um universo discursivo institucional e a realidade freqüenta intensivamente a mídia jornalística e, diante de um suposto retorno à normalidade, desaparece. A quantidade de acontecimentos similares publicamente mediados coloca o sistema de saúde à prova, revelando suas fragilidades e dificuldades. Mas, como a mídia costuma ficar apenas na superfície descritiva dos problemas, na espetacularização do fato, sem estabelecer relações de causa e efeito, acaba por gerar um clima de impotência e indignação junto ao público, que, diante dos acontecimentos, reitera seu papel de espectador sem atentar para a responsabilidade e possibilidades de participação social. Voltando ao exemplo de

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Para Rodrigues (1990) devemos entender os campos sociais como um espaço de definição de “esferas de legitimidade que impôem, com autoridade indiscutível, atos de linguagem, discursos e práticas conformes, dentro de um domínio específico de competência. A legitimidade é, assim, o critério fundamental de um campo social.

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Caruaru, os jornais sequer noticiaram a existência dos Conselhos de Saúde, nos quais a sociedade está representada. Muitos serviços na área de saúde são mostrados pela mídia por meio de informações de utilidade pública ou de ordem didática. Assuntos como direitos do cidadão, condições de acesso aos serviços, orientações médicas, diálogo com a sociedade, campanhas públicas de saúde, são rotineiramente cobertos pelos jornais, em alguns casos, em editoria própria. A dimensão crítica ou os interesses que levam um jornal a pautar um assunto e angular sua cobertura variam de um veículo para outro, principalmente quando se trata de assuntos polêmicos. Entretanto, cumprindo a função social de zelar pelo interesse público, a mídia apresenta uma cobertura convergente em assuntos que fazem parte de uma dimensão consensual, presente no imaginário social sobre a saúde. Embora as informações divulgadas adquiram caráter público e estejam, pelo menos teoricamente, à disposição de todas as pessoas, um conjunto de fatores impede sua livre circulação e a plena apreensão, principalmente pelos setores que estão à margem das compensações sociais e simbólicas oferecidas pela sociedade. O que se observa, na maioria dos casos, é que o tratamento crítico, aprofundado ou didático atingem um público potencialmente bem informado ou portador de um universo cultural e simbólico mais amplo do que o da maioria da população. Num contexto em que a informação de qualidade migra cada vez mais para a comunicação segmentada, principalmente na televisão, faz com que o público fique cognitivamente desprovido de uma base mais sofistiscada de interpretação do mundo. Submetendo-se, acriticamente, às indistintas imagens veiculadas, sobretudo a imagética, boa parte do público tende a considerá-las uma expressão representativa e inquestionável do real, ignorando as mediações e simulações que tornaram possível sua construção. Falta a uma parcela da população referências culturais e informativas que tornem possível entender a ordem simulativa necessária à construção do discurso jornalístico. E não podemos esquecer que a maneira como as informações são publicamente apresentadas nem sempre contribuem para que essas pessoas tenham um discernimento crítico sobre os fatos anunciados. Apesar da oferta global e potencialmente igualitária de informações, obstáculos econômicos e sócio-culturais contribuem para aumentar o fosso existente entre aqueles que poderiam pensar criticamente e transformar as informações em moeda política nas transações sociais e quem circula na periferia do poder, carente de boa parte das compensações sociais e simbólicas do sistema, principalmente da dimensão crítica, interpretativa e polêmica das comunicações públicas. Nesse contexto político-comunicacional, enquanto política pública de saúde, o SUS ainda não conseguiu criar para si uma melhor imagem na esfera pública e tampouco desmontar uma construção discursiva sectariamente corrosiva e conduzida por grupos contrários a ele. A seu favor, tem a luta de movimentos sociais e populares, que fazem da defesa da plena implementação e efetivação do SUS sua principal bandeira. Luta que se dá, precisamente, no espaço aberto pelas possibilidades de participação e controle social previstas nas premissas constitutivas do SUS, entre outros, os Conselhos de Saúde. Essa forma de alargamento da esfera pública é um terreno propício para o efetivo exercício da

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cidadania e uma importante instância de participação da sociedade, de confronto e debates de idéias, de cooperação, de entendimento e de discernimento. Quando essa luta estiver na pauta da rede midiática que forma e informa a maioria da população brasileira talvez o SUS possa construir uma outra imagem enquanto política pública. Referências bibliográficas BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981. BOURDIEU, P. A economia das trocas linguísticas. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu/Sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994. p.156-83. CANCLINI, N. G. Democracia e Mass Media. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1998. CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991. MENICUCCI, T. M. G. Saúde no Brasil: os desafios para a construção de um sistema público eficiente e eficaz. Conjuntura Política. Bol. Anál. Dep. Ciênc. Polít. UFMG, n.15, p.27-31, 2000. OLIVEIRA, V. C. Os mídias e a mitificação das tecnologias em saúde. In: PITTA, A. M. R. (Org.) Saúde & comunicação: visibilidades e silêncios. São Paulo: Hucitec/Abrasco, 1995. p.133-45. RIBEIRO, A. C. T. Tecnologias de informação e comunicação, saúde e vida metropolitana. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.2, n.2, p.7-20, 1998. RODRIGUES, A. D. Estratégias de comunicação: questão comunicacional e formas de sociabilidade. Lisboa: Ed. Presença, 1990. SODRÉ, M. Reiventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petropólis: Vozes, 1996. SORJ, B. A nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. SANTOS, M. Técnica, espaço e tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1994.

OLIVEIRA, V. C. Las redes mediáticas y el Sistema Único de Salud, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.71-80, 2000. Este artículo discute la relación entre las redes mediáticas y la constitución simbólica de las políticas públicas de salud representada por el SUS (Sitema Único de Salud). Bajo este aspecto, enfocamos el análisis en cómo los medios interpretan y reconfiguran este campo de la salud bajo la perspectiva de las relaciones de poder, trabajando con la idea de que la comunicación no es desarrollada fuera de un contexto de conflicto, transformación y lucha política en la sociedad, que indica, produce y reproduce una determinada forma de interpretación de la realidad. PALABRAS CLAVE: Comunicación persuasiva; medios de comunicación de masa; salud publica; politica social.

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Leishmaniose visceral: história jornalística de uma epidemia em Belo Horizonte, Brasil

Paula Dias Bevilacqua1 Helena Heloísa Paixão2 Maria Ceres Pimenta Spinola Castro3 Celina Maria Modena4

BEVILACQUA, P.D. et al. Visceral leishmaniasis: the journalistic history an epidemic in the city of Belo Horizonte, Brazil, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.83-102, 2000.

The objective of this paper is to recover the journalistic history of the visceral leishmaniasis epidemic that has been affecting the city of Belo Horizonte, Brazil, since 1993. It was pieced together from its chronological history, as well as from the narratives and discourses on the epidemic in 101 articles published by the mass media between 1993 and 1996. As regards methodology, the analysis relied on a proposal of Foucault’s described in his 1972 work, “A Arqueologia do Saber” (The Archeology of Knowledge), and it highlights the existence of three major lines of discourse, which characterize thematic groups, in the subject matters studied, i.e., discourse produced by Science, by the State and by Society. Each one of them makes its own contribution as to how the illness is depicted in the journalistic universe, and puts forth its own views on these arenas. Thus, by studying journalistic texts, one can decipher another epidemic process that developed concurrently with the one affecting human beings and dogs, expressed in the narrative constructions on visceral leishmaniasis in newspaper articles. KEY WORDS: leischmaniasis visceral; mass media; disease outbreaks. Este trabalho busca recuperar a história jornalística da epidemia de leishmaniose visceral que acomete o município de Belo Horizonte, Brasil, desde 1993. Este resgate se fez através da sua história cronológica e das construções narrativas e discursivas sobre a epidemia em 101 matérias publicadas na grande imprensa, durante o período de 1993 a 1996. Utilizando-se como orientação metodológica a proposta de Foucault (1972), em seu trabalho “A Arqueologia do Saber”, a análise aponta para a configuração de três grandes discursos, caracterizando grupos temáticos, nas matérias estudadas: o da Ciência, o do Estado e o da Sociedade. Cada um dos grupos contribui para a construção da doença no espaço jornalístico e veicula opiniões próprias de cada um destes universos. Dessa forma, a leitura dos textos jornalísticos permite o desnudamento de outro processo epidêmico, que se desenvolve paralelamente àquele que acomete as populações humana e canina, expresso nas construções narrativas sobre a leishmaniose visceral nos textos de jornal. PALAVRAS-CHAVE: leishmaniose visceral; meios de comunicação de massa; surtos de doenças.

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Professora do Departamento de Veterinária, Universidade Federal de Viçosa. <paula@mail.ufv.br> Professora da Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. 4 Professora da Escola de Veterinária, Universidade Federal de Minas Gerais. 2 3

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Comunicação Social e a produção de conhecimento e comportamentos A Comunicação Social, na atualidade, tem sido explorada por várias áreas do conhecimento, que procuram aproximar campos de práticas e de investimentos teórico-metodológicos bastante complexos. Este processo foi possibilitado a partir da conscientização a respeito da grande importância que a comunicação adquiriu na sociedade contemporânea, como por exemplo, no que diz respeito aos reais poderes e possibilidades dos aparatos de comunicação e informação, considerados como um dos grandes fenômenos do século XX. Além disso, a implantação de uma rede mundial de telecomunicações possibilita a uma grande parcela da população receber diariamente notícias de outras sociedades e incorporar à cultura a noção, ainda que pobre e caricata, do global. As transformações e possibilidades derivadas deste processo estão ocorrendo muito próximas a nós, dentro das residências, levando-nos a perceber, mesmo que discretamente, a magnitude e onipotência que os meios de comunicação representam em nosso cotidiano. Entretanto, mais do que o papel de difusão de informações diminuindo as fronteiras físicas e espaciais entre o emissor e o receptor da mensagem, os meios de comunicação têm o papel fundamental de interferir no comportamento e na constituição de um imaginário social que permeia o conjunto da sociedade. É neste sentido que Oliveira (1995) nos fala que não podemos considerar o discurso como uma mera transmissão de informações, mas, antes, como efeitos de sentidos, pois “os discursos são socialmente situados e são sempre o resultado de um conjunto simbólico de forças que procuram nomear, hierarquizar, interpelar ou acionar os sujeitos sociais.” (p.26) Obviamente que vários outros campos sociais, como a escola, a saúde, o saber médico e o político, afiguram-se como importantes campos a influenciar o comportamento dos indivíduos. Entretanto, nas sociedades modernas, fortemente influenciadas pela proliferação dos meios de comunicação de massa e por uma relativa estrutura de consumo de bens simbólicos e materiais, existe uma fragmentação do poder que permeia os campos sociais, os quais lutam para interferir na esfera pública. Contudo, esses campos não interpelam ou proferem mensagens neste espaço por si mesmos, e, sim, nediante as mídias que, a cada dia, se tornam o seu principal ator (Oliveira, 1995). Esta última questão também é referenciada por Rondelli (1995) quando sugere, citando particularmente a televisão, que os meios de comunicação aparecem como o lugar da ampliação do intercâmbio dos discursos construídos em vários campos do saber. Esta autora identifica em seu trabalho alguns discursos que trazem como tema a saúde, a doença e o corpo, disponibilizados para a sociedade diariamente. Assim, tem-se: a) o da medicina, como discurso lógico, racional e científico, cujos lugares de realização são as pesquisas divulgadas em congressos e encontros; b) o dos médicos e o de outros profissionais da saúde, ou seja, o de uma “comunidade da saúde”, elaborado a partir da rotina de trabalho cotidiana, que, embora informado pelo primeiro nível, não deixa de especificá-lo, a

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partir das circunstâncias e dos limites conjunturais da prática profissional diária; c) o das interpretações, leituras e dos usos e não-usos que os pacientes fazem dos diagnósticos e das prescrições médicas, costuradas com noções herdadas do senso comum; d) o do público leigo que se depara, sobretudo, com o cruzamento e a interposição de várias lógicas de linguagem e que, a partir deste mixed formado por discursos de origens múltiplas, elabora suas próprias conclusões - cientificamente corretas ou não - , reconhece-as como verossímeis e dignas de crédito, validando-as como guias de comportamento, que podem ser até incoerentes, por operarem com lógicas distintas ou mesmo que se defrontam; e) o dos meios de comunicação, os quais compreendem vários tipos de publicações, especializadas ou não, como: publicações científicas, livros e revistas, a grande imprensa e outros. Neste sentido, os vários eventos mórbidos que acometem as diversas populações encontram nos meios de comunicação um outro espaço de circulação e disseminação, legitimados por meio de um discurso médico-científico competente. Além disso, a opinião expressa pelos meios de comunicação reproduz as representações sobre o adoecer e morrer características dos grupos sociais, as quais, necessariamente, não revelam relação ou compromisso com as demandas reais por serviços ou ações de saúde da comunidade como um todo. Tratamento das matérias jornalísticas Os processos epidêmicos podem ser descritos, analisados e entendidos de uma forma eminentemente quantitativa, utilizando-se, para este fim, gráficos, tabelas, coeficientes, indicadores e outros instrumentos de análise, caracterizando o evento a partir de um olhar probabilístico e numérico. Entretanto, os números isoladamente podem ser limitados ou limitantes ao pesquisador que busca inferir explicações mais totalizantes dos eventos em saúde, ou seja, que procura ultrapassar o entendimento reducionista e fragmentador do objeto característico da análise de risco tão em voga na Epidemiologia atual. Por outro lado, a interface que esta ciência se permitiu realizar com a área das Ciências Humanas possibilitou o conhecimento e, sem dúvida mais relevante, a utilização de vários instrumentais de análise, originalmente das Ciências Humanas e perfeitamente adaptáveis para a Ciência Epidemiológica, para uma compreensão menos parcelada dos fenômenos da saúde. O presente trabalho apresenta uma abordagem diferente do tratamento quantitativo dos dados produzidos durante um processo epidêmico, o que, obviamente, não exclui ou inviabiliza a análise numérica, mas constituindo uma análise sob outra ótica, vem, minimamente, complementar o conhecimento subjacente. O evento escolhido como foco de análise foram as epidemias humana e canina de leishmaniose visceral que acometem o município de Belo Horizonte/MG, desde 1993. Esta enfermidade caracteriza-se,

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epidemiologicamente, por apresentar o cão como o principal reservatório urbano, sendo transmitida, em nosso meio, entre a população canina e desta para o homem pelo inseto vetor Lutzomyia longipalpis (Genaro, 1997). Por outro lado, a epidemia de leishmaniose visceral (calazar) constituiu-se como acontecimento jornalístico, passando a fazer parte da agenda da grande imprensa circulante no município de Belo Horizonte. Foram selecionadas todas as matérias jornalísticas publicadas pela grande imprensa no período de 1993 a 1996. Estas matérias receberam, inicialmente, um tratamento descritivo, caracterizando o componente morfológico da análise de discurso5 . Neste segundo momento, a leitura das matérias teve como objetivo a análise de seus conteúdos enunciativos para se reconstruir a história da epidemia como fato jornalístico. Apesar de a análise de discurso ser concebida com uma base sociológica e uma base linguística, optou-se por privilegiar a análise sociológica, tendo como orientação metodológica a proposta de Foucault (1972), em seu trabalho “A Arqueologia do Saber”. A análise que se segue foi fracionada, segundo o ano de publicação da matéria, para que fosse possível uma comparação simultânea da evolução das epidemias humana e canina, verificadas a partir de informações referentes a casos e óbitos humanos e às medidas de controle do reservatório e do vetor fornecidas pelo Núcleo de Epidemiologia (NEP) e pelo Serviço de Controle de Zoonoses (SCZ) da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte (SMSA/PBH).

Detalhes desta análise preliminar estão descritos em Bevilacqua et al. (1999a).

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“Leishmaniose visceral sai do campo e começa a chegar a BH”6 O ano de início de estudo deste trabalho, 1993, apresentou, ao todo, sete notícias publicadas na grande imprensa referentes ao tema leishmaniose visceral. Entretanto, apenas uma notícia, publicada no mês de outubro, cita, especificamente, a epidemia de leishmaniose visceral que já acometia Belo Horizonte desde o ano anterior. Nas outras matérias, a epidemia em Belo Horizonte aparece de forma secundária, articulada a outros temas, como: desenvolvimento de vacina contra o calazar, movimento grevista do serviço público ou urbanização de doenças rurais. Quatro matérias sugerem uma possível urbanização do calazar e de outras enfermidades, como a leishmaniose tegumentar e a raiva, características do ambiente rural. Apesar de fazerem referência a um potencial despreparo dos serviços de saúde pública para lidarem com os problemas emergentes, procuram justificar a urbanização como resultante de desequilíbrios ambientais oriundos de desmatamentos e outras atividades humanas. Além disso, citam o processo de ocupação do espaço urbano de forma não organizada, gerando áreas sem infra-estrutura básica de saneamento e outros serviços. O desequilíbrio ambiental pelo desmatamento, monoculturas, migração e urbanização desenfreada, sem infra-estrutura de serviços básicos têm causado uma verdadeira ‘revolução dos bichos’. Antes confinados na mata, os insetos e répteis agora

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Leishmaniose... (1993)

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invadem as cidades e formam um novo perfil epidemiológico de doenças, que não causavam tanto temor por serem consideradas silvestres, como é o caso da Leishmaniose Visceral e Tegumentar e da raiva transmitida por morcegos. [...] O aparecimento ou a volta de doenças pode ser atribuído, em alguns casos, à falta de ações da saúde pública, mas em outros a culpa é do próprio modelo de desenvolvimento econômico. A advertência é do epidemiologista da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Paulo Sabroza: ‘Nosso modelo de desenvolvimento levou a formas de organização do espaço que fizeram surgir novos nichos ecológicos para velhos parasitas’. A expulsão do homem do campo e como conseqüência a desenfreada urbanização dos centros urbanos, sem infra-estrutura de saneamento, são fatores citados pela epidemiologista da Secretaria Estadual de Saúde, Isabel Teixeira, como os mais agravantes do modelo brasileiro de desenvolvimento. Enumera, ainda, a miséria e a falta de investimento na educação, e atualmente o total sucateamento da saúde pública, que: ‘não tem preparo para trabalhar com esse novo quadro epidemiológico’. As doenças antigas que já se pensavam erradicadas ressurgem novamente nesse ambiente favorável à sua proliferação.” (Santos..., 1993) (grifos da autora)

Os indivíduos emissores desses relatos compreendem, em sua maioria, profissionais da Secretaria Estadual de Saúde do Estado de Minas Gerais (SES/MG) e professores da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ). Essas citações denunciam um quadro bastante atual de crescente descaso das instâncias governamentais com serviços básicos de cunho social como saúde, educação e saneamento. Além disso, imputam grande responsabilidade ao processo de urbanização desenfreado e sem planejamento que vem se desenvolvendo nos grandes centros. Na realidade, as enfermidades relacionadas nas notícias de jornal, como a raiva, a leishmaniose tegumentar e o próprio calazar, nunca deixaram de fazer parte do cotidiano, por exemplo, das populações rurais, contrariando um dos relatos que faz referência a “...doenças antigas que já se pensavam erradicadas ressurgem novamente...”. Não se trata, então, de aceitarmos a idéia de que este quadro de saúde é um retrocesso a uma conjuntura epidêmica igual à que marcou a expansão do capitalismo no século passado. Como nos relatam Sabroza et al. (1995), esta idéia não assume as profundas transformações ocorridas nas sociedades, o que nos leva a afirmar que agora essas mesmas doenças são expressão de novos processos e problemas de saúde, decorrentes da modernidade perversa estabelecida pelo modelo de desenvolvimento capitalista dependente, agora em sua fase pós-industrial.

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Neste cenário, devemos salientar a importância dos fluxos migratórios em modificar os perfis epidemiológicos de ocorrências das enfermidades, relatada por Carvalheiro (1986, p.32), referindo-se à doença meningocócica na cidade de São Paulo, da seguinte forma: O intenso processo de absorção de migrantes oriundos do interior do Estado e dos demais Estados do país é extremamente importante na configuração dos perfis epidemiológicos, uma vez que os migrantes representam grupo particular de risco, quer seja por suas condições geralmente precárias de inserção social, quer seja pela ausência de imunidade para as doenças existentes nas grandes áreas urbanas, dentre as quais a doença meningocócica.

Interessante, que o migrante tanto pode ser considerado como grupo de maior risco, pelas razões expostas acima, como ser responsabilizado pela introdução de enfermidades características de suas áreas de origem. Fato este que pode ser exemplificado pela leishmaniose visceral, uma vez que sua disseminação pode ser atribuída aos cães que normalmente acompanham as famílias de migrantes7 . A urbanização da leishmaniose visceral é, então, imputada como resultante da presença de cães infectados na cidade, os quais foram introduzidos juntamente com indivíduos que migraram para os centros urbanos oriundos de regiões reconhecidamente endêmicas como o Nordeste do Estado. “Os cães chegaram com seus donos do Nordeste de Minas, avalia Mayrink” (Biotério..., 1993). Deparamo-nos então, neste período, com o calazar às portas de Belo Horizonte. Entretanto, a urbanização da leishmaniose visceral, em várias cidades dos Estados do Nordeste do Brasil, já havia sido prevista nos idos da década de cincoenta pelo trabalho realizado por Deane (1956) no Ceará. Os resultados da pesquisa de Deane foram a primeira descrição de leishmaniose canina urbana no Brasil. Este autor sugere que este processo possa existir em outras cidades nordestinas em função das correntes migratórias que se estabelecem das áreas afetadas pela seca para os centros urbanos sugerindo, conscientemente ou não, a força da determinação social no processo saúde-doença. Apesar desta antiga advertência, o descompromisso do Estado com as condições de vida da população é cada vez mais acentuado, deixando evidente que a urbanização da leishmaniose visceral (e de tantas outras enfermidades) não é uma condição excepcional, sendo apenas uma questão de tempo para que a doença se expanda para outras cidades, outros Estados, seguindo a trilha do crescimento desordenado, da pobreza, da desesperança, dos homens migrantes e de seus companheiros fiéis, os cães. A primeira notícia, do ano de 1993, a comentar a existência de calazar canino em Belo Horizonte, trata deste tema de forma indireta. Observa-se

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Segundo Deane (1956), o cão é, sem dúvida, o principal reservatório não humano da leishmaniose visceral. Isto se justifica pelo fato de o cão desenvolver um intenso parasitismo dérmico e esse persistir mesmo após o desaparecimento das leishmânias das vísceras. Sua ação enquanto reservatório se verifica, principalmente, nas proximidades de habitações humanas, uma vez que o cão é um animal doméstico. Além disso, o animal infectado pode permanecer por longos períodos sem manifestar qualquer sintomatologia clínica, mas sendo capaz de transmitir a doença, através do vetor, para outros cães ou o homem.


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que a principal referência desta matéria é o movimento grevista dos servidores públicos federais que ocorreu em 1993. A leishmaniose visceral aparece como tema secundário pelo fato de os funcionários da Fundação Nacional de Saúde (FNS), entidade responsável, nesse período, pelo controle desta doença em Belo Horizonte, também terem aderido à paralisação, o que poderia acarretar um possível prejuízo da campanha de controle. A paralisação dos funcionários públicos funciona como articulador do tema leishmaniose visceral, ou seja, é a partir do primeiro acontecimento que o segundo aparece como evento significativo. A única matéria que trata, em específico, da leishmaniose visceral em Belo Horizonte, apresenta um conteúdo eminentemente informativo. São apresentados aspectos biológicos relacionados à doença, como seu caráter parasitário, forma de transmissão, além de explicações sobre a urbanização e as atividades de controle desenvolvidas pela SMSA/PBH. O título desta matéria alerta para a presença da doença em Belo Horizonte:“Leishmaniose visceral sai do campo e começa a chegar a BH” (Leishmaniose..., 1993) O tratamento conferido à epidemia de leishmaniose visceral pela grande imprensa, durante o ano de 1993, permite sugerir que este acontecimento ainda não apresentava relevância significativa para atrair a atenção dos meios de comunicação, o que, provavelmente, pode ser explicado pelo fato de que, neste ano, a doença ainda estava restrita aos cães, sendo pequena sua abrangência geográfica pelo espaço urbano belo-horizontino. (Bevilacqua et al., 1999b, p.231)

Ressaltamos que o principal eixo temático utilizado pela grande imprensa neste momento caracterizou-se pelo discurso científico. Privilegiar o discurso científico confere verossimilhança e credibilidade à matéria, como já evidenciado em estudos semelhantes que analisaram as construções narrativas e discursivas sobre a Aids (Herzlich & Pierret, 1992; Soares, 1998). O discurso mediático utiliza a ciência, já que as concepções médicocientíficas acerca da saúde/doença exercem importante papel cultural em nossa sociedade, para fazer valer a informação por ele veiculada. Não se trata de discutir a veracidade do conhecimento divulgado, mas entender que ao mesmo tempo que a grande imprensa se apropria do discurso médicocientífico como forma de atribuir ‘uma verdade’ às suas matérias, o conhecimento tornado público adquire legitimidade na sociedade, conforme nos relata Camargo Júnior (1995, p.18): ...o grande eixo de sustentação da produção de sentido em nossa sociedade é a chamada ‘ciência’. Ainda que sob uma crítica mais veemente agora do que há trinta ou quarenta anos, o papel hegemônico da ciência em nossa cultura segue sem grandes abalos [...] basta esta constatação: no ocidente, dizer-se que algo é científico equivale a dizê-lo verdadeiro, fundamentado, merecedor de crédito. Um papel fundamental neste processo de ordenação do mundo é desempenhado pelos meios de comunicação de massa.

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Apresentando quase invariavelmente uma visão mágica da ciência, onde a argumentação é substituída pelo apelo à autoridade dos cientistas, a divulgação científica é uma arena importante para o estabelecimento e difusão das verdades.

“Surto de leishmaniose atinge Belo Horizonte”8 O interesse pela doença cresce notavelmente durante o ano de 1994, no qual foram publicadas, pela grande imprensa, 35 matérias sobre o tema “leishmaniose visceral”. Destas, vinte falaram, especificamente, da epidemia da doença no município de Belo Horizonte. No primeiro semestre de 1994, as matérias publicadas pela mídia ainda reservam o caráter informativo, versando sobre temas variados como: atividades desenvolvidas pelo serviço público para o controle da epidemia, localização espacial dos casos caninos, além de dados gerais sobre a doença, como transmissão, sintomas no homem e no cão e características sobre o vetor. Os emissores destas informações foram identificados como profissionais da SMSA/PBH e professores do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB/UFMG). Este momento também privilegia o discurso científico na elaboração das matérias jornalísticas. No ano de 1994, a grande imprensa institui um novo discurso ao tratar da leishmaniose visceral, que denominamos “discurso do Estado”, no qual são emissores os profissionais ligados à SMSA/PBH e à SES/MG. As matérias agrupadas no grupo temático Estado trazem informações sobre as atividades de controle desenvolvidas pelos órgãos públicos para combater a epidemia. As palavras/expressões utilizadas pelo discurso mediático, no início do ano, não denotam prenúncio negativo sobre a ocorrência do calazar canino em Belo Horizonte, entretanto fica clara a posição representada pelo Estado como aquele que deve ordenar e legislar em nome da saúde pública. Neste sentido, a principal imagem associada ao Estado é a de exercer “atividades de controle”, é aquele que age e/ou move a ação, fazendo o agir, conforme se pode verificar nos títulos de algumas matérias transcritos abaixo: “Leishmaniose: Prefeitura inicia pesquisa sobre a doença” (Leishmaniose..., 1994c) “Controle da leishmaniose: Regional Leste sacrifica 44 cães no Santa Inês” (Controle..., 1994) “Leishmaniose ainda preocupa prefeitura” (Leishmaniose..., 1994a) “Leishmaniose: Zoonoses começa pesquisa para controlar a doença” (Leishmaniose..., 1994d) “Saúde: Zoonoses detecta leishmaniose em 200 cães de BH” (Saúde..., 1994)

Com o passar dos meses, há o agravamento da epidemia canina, porém ainda restrita aos Distritos Sanitários (DS) Leste e Nordeste.

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Barcelos (1994).


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Qualitativamente, este fato passou a ser explorado pela grande imprensa pela mudança nas palavras/ expressões utilizadas pela mídia. Estas passam a sugerir que a leishmaniose visceral canina constitui um sério problema de saúde pública em Belo Horizonte, como percebe-se nos títulos a seguir: “Leishmaniose é uma ameaça maior no bairro Santa Inês” (Leishmaniose..., 1994b) “Epidemia de doença canina atinge o Santa Inês” (Epidemia..., 1994) “Surto de leishmaniose atinge Belo Horizonte” (Barcelos, 1994) “Polêmica: Fundação de Saúde teme surto de leishmaniose em BH” (Polêmica..., 1994)

O ano de 1994 contou com 29 casos de calazar humano, sendo que quatro foram diagnosticados no primeiro semestre, nos meses de fevereiro, março e junho, e o restante durante o segundo semestre do ano, conforme informações do SVCZ/ SMSA/PBH (Dados disponíveis, mas não publicados).

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Apesar de a leishmaniose visceral já começar a se manifestar na população humana, a partir do ínicio de 19949 , apenas três matérias fazem referência à existência de casos humanos de calazar, durante o primeiro semestre desse ano. Além disso, são usadas expressões como “suspeita” e “apenas”, o que caracteriza o desinteresse demonstrado pela grande imprensa, provavelmente, pelo fato de a epidemia humana não ter alcançado ainda magnitude significativa em termos numéricos e por nenhum caso ter evoluído para o óbito. “Há suspeita, inclusive, de que uma criança tenha sido infectada pela doença.” (Leishmaniose..., 1994a) “O Departamento de Zoonose vem comprovando que em Belo Horizonte a leishmaniose tem aparecido apenas no cachorro, uma vez que somente dois casos de contaminação humana foram notificados.” (Saúde..., 1994)

Durante o segundo semestre de 1994, especificamente a partir do mês de setembro, a atenção sobre a leishmaniose visceral adquire novo incremento trágico: o óbito, por calazar, de duas crianças internas da Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor, a Febem. Durante o mês de outubro, duas notícias comentam este acontecimento, com a referência sendo feita, inclusive, no título, como verifica-se numa delas: “Duas crianças morrem na Febem com leishmaniose” “Seis casos de leishmaniose visceral foram registrados na Região Leste de Belo Horizonte, nos últimos 10 dias. Na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), no bairro Horto, duas crianças abrigadas na creche da instituição já morreram vítimas da doença, antes mesmo de ser diagnosticada.” (Duas..., 1994)

Percebe-se, no discurso mediático, mesmo quando se trata do falecimento das crianças, um conteúdo eminentemente informativo, ou seja, os óbitos das crianças internas da Febem constituem mais um item que caracteriza a

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epidemia de leishmaniose em Belo Horizonte, assim como sua definição, forma de transmissão, sintomas, reservatórios e métodos de controle. Adicionalmente, em duas matérias publicadas durante o mês de outubro de 1994, os casos de calazar ocorridos na Febem apareceram como tema secundário, articulados ao afastamento do presidente dessa instituição, apesar dos óbitos mencionados. Este aspecto é explorado por Castro (1997), ao analisar o fenômeno Ângela Diniz na grande imprensa. Esta autora, considerando a imprensa como “um espaço conflagrado de sentidos” observa que os acontecimentos noticiados no meio jornalístico estabelecem, no público leitor, níveis diferentes de identificação, podendo, em um extremo, haver o completo ajustamento entre acontecimento/leitor e, no outro, a completa repulsa. A concordância ou não com a idéia publicada seria, então, dependente dessas identificações. No caso dos óbitos ocorridos entre as crianças internas da PLUTONICS Febem, torna-se óbvio que estas não encontram, em nossa sociedade, uma matriz de sentido de identificação positiva, ou seja, são crianças sem família, sem referência, sem nome que estão sendo vítimas da leishmaniose visceral, o que torna o acontecimento irrelevante. “Leishmaniose visceral: epidemia já se alastrou à Zona Sul”10 Quantitativamente, o ano de 1995 foi similar ao ano anterior, tendo sido publicadas, pela grande imprensa, 38 matérias jornalísticas abordando o tema leishmaniose visceral. Deste total, 28 notícias tratam da epidemia de leishmaniose no município de Belo Horizonte, em especial. A análise da evolução espacial da epidemia de leishmaniose visceral na cidade revelou a expansão da doença para outros distritos, além dos DS Leste e Nordeste, já durante o ano de 1994, fato este agravado durante os anos subseqüentes, 1995 e 1996 (Bevilacqua, 1999). Entretanto, este acontecimento só é noticiado pela grande imprensa no início de 1995, referindo-se, especificamente, ao DS Centro-Sul. As duas primeiras matérias desse ano, publicadas no mês de fevereiro, trazem em seus títulos referência da presença do calazar canino naquele distrito. Posteriormente, no mês de setembro, uma outra matéria também cita, em seu título, que a leishmaniose visceral chegou à zona sul da capital mineira. A presença da doença em outros distritos não é tratada com o mesmo destaque, revelando um tratamento diferenciado, pela mídia, quando ela passa a ocorrer na “zona sul” de Belo Horizonte, região constituída por bairros com alto padrão de ocupação e que congregam grande parte da população de classe média e alta do município. As matérias que noticiam a presença do calazar canino no DS CentroSul instituem, na construção narrativa e discursiva do calazar, um terceiro discurso, o discurso social, representado pelas falas e opiniões de moradores de bairros atingidos localizados no distrito. A mídia ainda não havia utilizado os discursos de indivíduos residentes em bairros dos DS Leste e Nordeste ou mesmo de outros bairros posteriormente acometidos

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10 Leishmaniose... (1995d)


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11 Texto transcrito da matéria: Leishmaniose... (1995b)

12 Texto transcrito da matéria: Zona... (1995)

13 O teste utilizado pela prefeitura era a imunofluorescência indireta, o qual apresenta sensibilidade de 98% e especificidade de 70% sendo, inclusive, recomendado pelo Ministério da Saúde para todo o país. Esta recomendação é norteada por vários critérios, pois, numa situação epidêmica, em que se tem como objetivo o controle de um determinado agravo, a eleição do teste a ser usado como meio diagnóstico deve atender a alguns requisitos, como: baixo custo, simplicidade, reprodutibilidade, alta sensibilidade (poucas reações falso-negativas) e alta especificidade (poucas reações falsopositivas).

pelo calazar. Percebe-se que a relevância conferida pela grande imprensa para a população residente no DS Centro-Sul é diferente daquela destinada à população de outros distritos, estando a primeira, inclusive, autorizada a se pronunciar no espaço jornalístico. As matérias jornalísticas que comentam o aparecimento da leishmaniose visceral no DS Centro-Sul permitem identificar a representação social que a população desta área tem a respeito dessa doença. Para os moradores desses bairros o calazar seria “coisa de cachorro de gente pobre, sem higiene e sem alimentação adequada”11 , ou que a “doença fosse um problema restrito às favelas e que só atingisse animais desnutridos e raquíticos”12, o que explica a admiração que as pessoas manifestam quando a doença passa a acometer os cães pertencentes a proprietários residentes no distrito. Neste período foram identificadas algumas matérias que questionam a validade dos exames realizados pela SMSA/PBH13, ou seja, de que estariam identificando grande número de animais falso-positivos e de que não seriam os mais específicos para o diagnóstico da leishmaniose visceral, pois poderiam apresentar reação cruzada com outras enfermidades como a leishmaniose tegumentar ou a Doença de Chagas14 . Entretanto, refletindo sobre o tipo de teste ainda utilizado para o diagnóstico desta zoonose, descrita pela primeira vez no Brasil por Penna em 1934 (Rodrigues da Silva, 1957; Pessôa & Martins, 1982), observa-se que muito tímida foi a evolução do conhecimento científico nessa área, quando comparamos a enfermidade com a Aids. Há aproximadamente cincoenta anos utiliza-se praticamente a mesma técnica diagnóstica para a identificação do calazar, sendo inclusive conhecidos os problemas relacionados aos falso-positivos, enquanto o fenômeno Aids suscitou uma revolução em tecnologia no que diz respeito ao diagnóstico, tratamento e controle desta enfermidade, em poucos vinte anos. Neste sentido, Soares (1998, p.68), a partir da idéia de Derrida de que o espaço da experiência técnica entre o saber e a habilidade tende a se tornar cada vez mais animista, mágico e mítico, comenta que: A contemporaneidade, portanto, reveste-se de elementos cada vez

A detecção concomitante da leishmaniose visceral e de outras enfermidades, como a leishmaniose tegumentar e a doença de Chagas, pelo teste de imunofluorescência indireta, não invalida sua eleição como teste diagnóstico, pois, também para as outras doenças mencionadas, a recomendação é de sacrifício do animal positivo, já que não existe tratamento eficaz para o animal doente em nenhuma das enfermidades citadas. 14

mais míticos pela desproporção que se estabelece entre o que se

conhece e o que se sabe. Em linhas gerais, trata-se de um profundo desconhecimento em relação às novas tecnologias e aos objetos usados no cotidiano, funcionando da mesma forma que o fanatismo religioso ao criar o obscurantismo, o mítico, o mistério, o desconhecido. A Aids enquanto doença parece ser já bastante conhecida (a questão da informação), mas dela pouco se sabe (e é essa a busca incessante da ciência).

Ainda neste paralelo com a Aids, da leishmaniose visceral pouco se conhece e pouco se sabe. Esta diferença revela a existência de critérios não imparciais e, por isso, nem sempre comprometidos com determinadas parcelas da sociedade, orientando a produção do conhecimento científico, pois à medida que o calazar se mantém restrito ao ambiente rural, ceifando as vidas dos

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trabalhadores do campo ou de crianças subnutridas, não se esperam investimentos para o controle ou erradicação desta doença. A partir do discurso proferido pelos moradores da Zona Sul, também podemos perceber que as reivindicações desses moradores merecem espaço na grande imprensa, o que não se verificou quando a doença estava restrita a outros distritos. Na verdade, estas reivindicações traduzem anseios da população de Belo Horizonte de uma forma geral, pois exigem um maior esclarecimento, por parte da prefeitura, com relação à epidemia de calazar. Assim como esta proprietária, outras da vizinhança da rua Henrique Sales estão entendendo que a situação é de alerta. ‘Depois da morte de meu cachorro, saí de vizinho em vizinho avisando dos riscos’, conta Leda Valadares. Ela quer saber de mais detalhes sobre a doença, como seu cão foi contaminado e como a doença se prolifera. ‘Faço a minha parte cuidando pessoalmente da higiene do canil, mas não sei se isso é tudo que devo fazer’. Luiza Ramos diz que a presença dos técnicos do Serviço de Zoonoses deve ser bem-vinda a todos os proprietários. Primeiro, porque é gratuita e esclarecedora. Depois, serve de alerta a todos. ‘Se o pessoal não tivesse aparecido por aqui, não saberíamos desta situação. Estamos todos apreensivos, mas o fato existe e deve ser encarado’. O que os moradores reclamam é mais esclarecimento por parte dos técnicos do Serviço de Zoonoses. Eles querem mais informações sobre a doença, saber se há outros casos notificados e, principalmente, o resultado dos exames de sangue. (Leishmaniose..., 1995b)

Na transcrição acima podemos perceber que, para esses moradores, o Serviço Público exerce, eminentemente, uma função informativa, não sendo reconhecido seu papel de promotor da saúde. Esta concepção apresenta conseqüências importantes, pois uma vez que as ações planejadas pela prefeitura não têm legitimidade neste espaço, sua execução pode sofrer impedimentos, determinando, inclusive, sua inviabilidade. Essas dificuldades foram, de fato, vivenciadas pela SMSA/PBH, pois quando as atividades de coleta de sangue dos cães e o sacrifício dos animais positivos foram estendidas para os bairros do DS Centro-Sul, houve resistência por parte dos moradores em aceitá-las e colaborar com as recomendações do serviço público, conforme constata-se no texto abaixo: Segundo denúncias da proprietária de um cão, Divina Duarte, também moradora do Luxemburgo, quando os técnicos chegavam, as pessoas alegavam que tinham veterinários particulares e que não iam deixar seus cães serem examinados. ‘Havia até um certo

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constrangimento deles ao se aproximar de nossas casas. Era como se estivessem pedindo desculpas pelo incômodo. (Leishmaniose..., 1995b)

Concomitantemente, o discurso da mídia revela-se como de natureza não neutra, pois uma característica importante das matérias jornalísticas publicadas durante o ano de 1995 é o fato de a leishmaniose visceral ser tratada, pela grande imprensa, como uma ameaça à população, e sua expansão, pelo espaço urbano belo horizontino, como decorrente de atitude negligente por parte do serviço público, conforme os títulos de algumas notícias: “Leishmaniose deixa Beagá em alerta” (Leishmaniose..., 1995c) “Uma doença que mata: Surto de leishmaniose pode se alastrar” (Uma..., 1995) “Autoridades finalmente se mexem: Leishmaniose se alastra pela Grande BH” (Autoridades..., 1995) “PBH sonega informação: Secretaria não age e a leishmaniose se alastra” (PBH..., 1995) “Leishmaniose ameaça Beagá” (Leishmaniose..., 1995a) “Epidemia: Leishmaniose visceral não está controlada” (Epidemia..., 1995)

As matérias que apresentaram um discurso temático relacionado ao Estado apresentaram informações contraditórias, ora revelando que a situação ainda se comportaria de forma epidêmica, ora informando que a doença estaria controlada. Neste momento, a SMSA/PBH utiliza informações estatísticas para comprovar que a situação epidêmica estaria controlada, pois a existência de poucos casos em 1995, quando comparado com o ano de 1994, mostraria uma tendência decrescente dos casos humanos em Belo Horizonte. A utilização da informação estatística associada a palavras como “apenas” e “somente” torna trivial a ocorrência de poucos casos de calazar humano, sendo semelhante o efeito quando a referência é feita aos óbitos: Em 1994 foram registrados 17 casos na região Leste, 12 na Nordeste, incluindo seis óbitos. Este ano, a região Nordeste apresentou apenas um óbito, incluído em 11 casos. Nos distritos Norte e Oeste foram um e seis no Leste. Sendo que nos meses de junho e julho não foram registrados (sic) nenhum caso’, afirmou a epidemiologista Gilvânia Cosenza, do Núcleo de Epidemiologia. (Contratação..., 1995)

Sem dúvida que o tratamento quantitativo da epidemia de calazar é de utilidade para a caracterização e o acompanhamento deste processo na população, entretanto, não é aconselhável que se desconsidere ou se trate com menor importância a ocorrência do evento quando este não possuir a devida “significância estatística”. Neste sentido, apesar de os dados quantitativos indicarem uma tendência

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decrescente da epidemia de calazar, não foi esta a situação vivenciada por Belo Horizonte. O ano de 1995 chega ao seu fim com a notificação de 45 casos humanos de leishmaniose visceral e o total de quatro óbitos, além do comprovado aumento e expansão da epidemia canina no município (Bevilacqua et al., 1999b). 1996: A personalização do animal doméstico O ano de 1996 contou com 22 matérias jornalísticas publicadas na grande imprensa sobre o tema leishmaniose visceral, sendo que onze referiam-se, especificamente, à epidemia em Belo Horizonte. Percebe-se que houve um razoável declínio quantitativo das notícias, quando comparado com os anos de 1994 e 1995. O caráter informativo das matérias é também perpetuado ao longo desse ano. Entretanto, uma característica interessante, identificada em três matérias jornalísticas, aparece: a utilização do recurso jornalístico da personalização, pelo discurso mediático. Duas matérias trabalham a personalização do animal e a terceira apresenta a história de uma criança acometida pelo calazar. A personalização do animal também havia sido identificada no ano de 1995 em uma matéria publicada no mês de fevereiro. O processo de personalização, segundo Wolton apud Castro (1997), é um recurso utilizado pelos meios de comunicação que possibilitaria, a partir da emergência dos acontecimentos, a atuação da mídia sobre a realidade. Uma dessas formas de atuação seria no sentido de que: ...a personalização proporcionaria a identificação - negativa ou positiva, não importa - do receptor com a imagem criada pela mídia, garantindo os laços afetivos fundamentais para o funcionamento do processo comunicacional. Assim, a transformação de acontecimentos em ‘estórias pessoais’ - ponto de partida para a criação de um personagem - parece ser a forma adequada para a construção do discurso mediático ao lhe garantir, através do ‘modo identificatório’, [...] a sua realização no campo da afetividade. (Castro, 1997, p.15)

Mediante este recurso a grande imprensa relata histórias de interesse humano, permitindo a identificação do leitor com a história relatada. A intenção de capturar a atenção do leitor tem uma finalidade econômica, pois estimulando a aquisição do jornal, este é vendido. Ainda considerando o processo de personalização realizado pela mídia, Castro (1997) acrescenta que este só poderá se efetivar com o consentimento do sujeito que fornece a base para sua concretização, ou seja, é preciso que o indivíduo “consinta na sua conversão em personagem e que assuma um comportamento performático garantindo os efeitos mediáticos” (p.16). No caso específico da leishmaniose visceral, o processo de personalização do animal não se dá, obviamente, com o consentimento deste, mas, indiretamente, por meio de seus donos:

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Jamila Duarte Mourão, proprietária do pequeno Luppi, tomou as precauções indicadas pelos veterinários do Serviço de Zoonoses e outras pessoas para evitar qualquer tipo de risco. Os veterinários recomendaram evitar levar o cão à rua, entre cinco e seis horas da tarde, oportunidade em que os mosquitos ficam mais ativos e costumam picar mais. ‘Nunca mais levei Luppi neste horário para passear’. As medidas adotadas por Jamila Duarte e que devem ser seguidas são as seguintes: se o cão tiver orelhas grandes, ‘eu prendo com uma borrachinha para evitar que elas toquem o chão’. E o cão só sai à rua para suas necessidades fisiológicas com uma camiseta que cobre todo o dorso do animal. ‘Assim evito que os mosquitos o piquem’. (Leishmaniose..., 1995b) 15 O cão de estimação da família de Ângela, um poodle toy, carinhosamente apelidado de ‘Floquinho’, terá de 15

Esta matéria foi publicada quando a leishmaniose visceral passou a ser identificada no DS Centro-Sul. A transcrição refere-se ao depoimento de uma moradora do bairro Luxemburgo, pertencente a este distrito.

ser sacrificado e ninguém da casa conforma-se com a morte do animal. A costureira disse que comprou o cão em 1990, por 3 salários mínimos, para presentear a filha Luana de Jesus Belisário, de 8 anos, que havia perdido o pai em consequência de um acidente automobilístico. ‘Foi uma tentativa de amenizar o trauma causado pela morte do meu marido, uma recomendação da psicóloga. Hoje Floquinho é o xodó da família’, contou a costureira. (Costureira..., 1996)

Segundo Castro (1997), o modo característico de funcionamento do personagem criado pela mídia se faz pelo mecanismo de sedução, ou seja, o personagem é um sedutor que busca fascinar o outro com sua imagem. Este mecanismo se daria na medida que a sedução se dirige para aquele que do outro lado da cena - o receptor - se deixa fascinar pela teatralidade, um dos modos operatórios privilegiados pela mídia na composição da estória do personagem focalizado. É nessa dimensão de teatralidade que a estória mediática ‘fisga’ o receptor, produzindo a sedução que o enlaça (p.16).

A mídia, então, na encenação da estória de seu personagem com o objetivo de seduzir o receptor, cria um espaço no qual o social se apresenta de forma teatral, tornando públicas as figurações da realidade social mobilizadas nessa encenação. Dessa forma, o receptor, aqui convertido em assistência, vivencia imaginariamente as figurações do social mobilizadas nas ações do personagem mediático. A teatralização do social, enquanto modo operatório do personagem mediático, exerce seu poder de sedução de uma forma não violenta e não autoritária, pois a encenação do social é uma forma de dissimulação que tem por objetivo subtrair à atenção elementos que

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poderiam produzir repulsa ou recusa e construir algo que seja atrativo para mover o objeto da sedução na direção pretendida pelo sedutor (Castro, 1997). No nosso tema específico, a sedução se dá pela identificação que existe entre o receptor e a estória dos cães sacrificados e seus donos sofrendo por esta perda. A imagem que se constrói e a encenação da estória do personagem se fazem utilizando-se do recurso trágico adotado na narrativa das notícias publicadas. A maneira como a mídia constrói o discurso sobre/do personagem, ou seja, o estilo narrativo, é exatamente um outro fator necessário para que a relação entre personagem-receptor, que se conforma a partir da identificação e se consolida pela sedução, se complete (Castro, 1997). Nas próprias palavras de Castro, “o trágico seria aquele tipo de acontecimento - artístico, ficcional, mítico, real - que, sendo capaz de suscitar compaixão e temor, promova a catarse das paixões semelhantes a essas” (p.17). Fazendo a analogia do acontecimento trágico no âmbito da mídia com a tragédia enquanto produção artística, notadamente a tragédia grega, a autora nos aponta requisitos para o aparecimento do efeito do trágico. Um destes requisitos, que nos parece particularmente interessante e vinculado ao tema em questão, diz respeito ao fato de que o acontecimento, para obter o efeito do trágico deve ter, em alguma medida, uma possibilidade de relação com o nosso próprio mundo. O caso deve interessar-nos, comover-nos. Somente quando temos a sensação do nostra res agitur, quando nos sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser, é que experimentamos o trágico. (Lesky, 1990, apud Castro, 1997, p.18)

Adicionalmente, o animal que é personalizado, merecendo atenção no espaço jornalístico, é o cão de raça e pertencente a proprietários com um determinado nível sócio-econômico. São animais que aparecem nomeados e com referência, inclusive, ao seu valor econômico. Interessante que o processo de personalização é utilizado para apresentar estórias de animais. Apenas uma matéria, no ano de 1996, comenta o processo vivenciado por uma criança acometida por calazar. Contudo, o acontecimento referente aos óbitos de crianças internas na Febem, no ano de 1994, não mereceu a mesma atenção da mídia. Para exemplificar esta diferença, as crianças que faleceram não foram sequer nomeadas no discurso mediático. O tratamento diferenciado conferido pela grande imprensa reforça as desigualdades sociais a que aquelas crianças estão submetidas, são indivíduos marginalizados desde o discurso mediático, não havendo menção à forma mais simples de referência ao cidadão, que é o seu nome. Considerações

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A análise desenvolvida neste trabalho reforça a idéia de que saúde/doença devam ser concebidas como processo e, sendo assim, possam encontrar vários espaços, naturalizados ou socializados, de desenvolvimento. Paralelamente à expansão geográfica e quantitativa das epidemias de leishmaniose visceral humana e canina em Belo Horizonte, conformou-se outra trajetória deste mesmo evento que extrapola os limites biológicos de ocorrências das enfermidades, qual seja, o corpo humano e animal. Esta trajetória encontra no espaço jornalístico uma dimensão diferente de ocorrência, expressa pelo discurso mediático. Este, como expressão direta de diversos atores sociais, apresenta características próprias dos grupos sociais que representam seus emissores. Esta gama de discursos que inunda o cotidiano das pessoas, que transforma e “enriquece” o próprio discurso do senso comum, também é capaz de produzir transformações ou reforçar atitudes e comportamentos individuais, os quais, por sua vez, se transferem para o nível coletivo, tanto pela amplificação resultante da divulgação advinda dos meios de comunicação como pelas trocas interpessoais de experiências vividas diariamente. A doença, considerada objeto de construção social ou de representações sociais coletivas, partilhadas e comungadas por indivíduos da coletividade, encontra, no processo de comunicação, um espaço onde pode ser legitimada, por exemplo, por meio de um discurso bio-médico competente, e reproduzida. Conseqüentemente, possibilita a produção de efeitos de sentido, formando e conformando conhecimentos e comportamentos variados sobre a doença, em momentos históricos particulares. A produção e reprodução de sentidos nos indivíduos pelos meios de comunicação pode apresentar considerável relevância quando trata do tema saúde/doença, uma vez que este processo interfere na construção de comportamentos e de imaginários sociais. Em se tratando do processo saúde-doença, os indivíduos são, em primeira e última instância, seus sujeitos e objetos; sujeitos, pois são responsáveis em transformá-lo e dinamizá-lo enquanto “processo”, e objetos, pois é neles que as transformações se verificam. Os indivíduos, então, encontram nos meios de comunicação, no discurso mediático e nas opiniões proferidas, um amplo espectro de influência em seus comportamentos e atitudes, que podem obviamente determinar aspectos importantes da orientação adquirida por um evento mórbido específico. Nesse contexto, a epidemiologia encontra sua interdisciplinariedade com a área da comunicação social, na medida que a opinião, veiculada no discurso mediático, pode produzir e reproduzir representações diversas sobre saúde/ doença e se constituir em um determinante importante deste processo. Referências bibliográficas

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TABELA 1 Número de matérias publicadas e utilizadas na análise, segundo jornal e ano de publicação. Belo Horizonte, 1993 a 1996.

ANOS

JORNAIS 1993

1994

1995

1996

Estado de Minas

3

4

3

0

Hoje em Dia

0

5

2

1

Diário da Tarde

0

1

4

0

Jornal de Casa

0

0

1

0

TOTAL

3

10

10

1

BEVILACQUA, P.D. et al. Leishmaniosis visceral: historia periodística de una epidemia en Belo Horizonte, Brasil, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.6, p.83-102, 2000 Este trabajo trata de recuperar la historia periodística de la epidemia de leishmaniosis visceral que acomete al municipio de Belo Horizonte, Brsil, desde 1993. Tal rescate se ha hecho a través de su historia cronológica y de las construcciones narrativas y discursivas sobre la epidemia en 101 textos publicados en la prensa general durante el periodo de 1993 a 1996. Utilizándose como orientación metodológica la propuesta de Foucault (1972), en su trabajo “La Arqueología del Saber”, el análisis apunta la configuración de tres grandes discursos, caracterizando grupos temáticos en las materias estudiadas: el de la Ciência, el del Estado y el de la Sociedad. Cada uno de los grupos contribuye para la construcción de la enfermedad en el espacio periodístico y divulga opiniones propias de cada uno de estos universos. De esta forma, la lectura de los textos periodísticos permite el desnudamiento de otro proceso epidémico que se desarolla paralelamente al que acomete a las poblaciones humana y canina, expresado en las construcciones narrativas sobre la leishmaniosis visceral en los textos del periódico. PALABRAS CLAVE: leishmaniosis visceral; prensa general; epidemia.

GASTON PHOEBUS, The maladies of dogs being treated. Biblioteca Nacional, Paris.

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Bactrins e quebra-pedras

Melvina Afra Mendes de Araújo1

ARAÚJO, M. A. M Antibiotics and healing plants, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p.103-10, 2000. This article discusses issues concerning biomedical logic vis à vis popular medical lore. Its starting point is the Plant Therapy Implementation Project at the Municipal Healthcare Network of the town of Londrina (state of Paraná, Brazil), as well as the cosmological elements that guide the practice of curing with medicinal herbs. KEY WORDS: Anthropology; medicinal plants; popular medicine; state medical coverage; alternative therapies. Neste artigo busco discutir questões referentes ao encontro entre as lógicas biomédica e popular, partindo da análise do Projeto de Implantação da Fitoterapia na Rede Municipal de Saúde de Londrina/Pr e de elementos da cosmologia que orienta as práticas de cura com ervas medicinais. PALAVRAS-CHAVE: Antropologia; plantas medicinais; medicina popular; cobertura de serviços públicos de Saúde; terapias alternativas.

1 Doutoranda em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). <melvina@usp.br>

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MELVINA AFRA MENDES DE ARAÚJO

Elaborado a partir de pesquisa realizada com um grupo biomédico e outro popular2 , em Londrina/Pr, no período compreendido entre os anos de 1995 a 1998, este artigo trata dos dilemas inerentes à tentativa de diálogo entre dois universos culturais distintos. O ponto de partida da pesquisa é a discussão sobre a implantação da fitoterapia na Rede Municipal de Saúde de Londrina, colocando em pauta o relacionamento entre as lógicas biomédica e popular através do preceito de “recuperação do conhecimento terapêutico popular”. A fitoterapia foi objeto de uma longa discussão que resultou na elaboração do Projeto de Implantação da Fitoterapia na Rede Municipal de Saúde de Londrina. Esse projeto, apesar de ter contado com o apoio dos dirigentes da Autarquia do Serviço Municipal de Saúde de Londrina (gestão 93-96) e de ter sido objeto de reivindicação de setores do movimento popular em saúde, não chegou a ser concretizado. Assim, arrisco afirmar que a intenção de se implantar a Fitoterapia encerrou um encontro entre duas lógicas tentado politicamente e um desencontro de dois mundos no plano da cognição. Pretendo, pois, analisar o Projeto de Implantação da Fitoterapia na Rede Municipal de Saúde de Londrina (Prefeitura de Londrina, 1996) e alguns elementos da cosmologia que orienta as práticas de cura da população residente na área de abrangência da Unidade Básica de Saúde do Conjunto Habitacional São Lourenço, lançando luz sobre os problemas referentes ao encontro entre as lógicas biomédica e popular. Bactrins e quebra-pedras A elaboração do projeto de implantação da Fitoterapia na Rede Municipal de Saúde de Londrina teve como pano de fundo as discussões acerca da humanização e universalização da atenção à saúde nos serviços oficiais. No momento em que o projeto estava sendo elaborado (entre os anos de 1993 e 1996), a cidade era administrada por um grupo político que tinha à frente o Partido dos Trabalhadores e o setor saúde contava com aguerridos defensores dos princípios norteadores do Sistema Único de Saúde – SUS. Dentre os princípios do SUS o que mais interessa ressaltar neste momento - por ter sido fundamental na orientação da gestão municipal e, de maneira particular, da área de saúde - diz respeito à participação popular. Partindo do pressuposto de dar voz à população e tentar implementar formas mais humanizadas de atenção à saúde, que respeitassem as concepções e práticas de cura próprias da população a que se destinam os serviços públicos de saúde, o grupo de Fitoterapia da Rede Municipal de Saúde de Londrina passou a organizar esforços para elaborar um projeto que levasse em conta algumas questões consideradas importantes para uma aproximação com a população, lançando algumas críticas ao próprio savoir faire biomédico. A discussão sobre a implantação da fitoterapia emerge de um processo de autocrítica da biomedicina, em que alguns de seus pressupostos são colocados sob suspeita. A crítica lançada pelo grupo de Fitoterapia da Rede Municipal de Saúde de Londrina à biomedicina refere-se à desconsideração da influência dos fatores emocionais nos processos de adoecimento e cura, bem como à

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A pesquisa de campo foi realizada com o grupo de Fitoterapia da Rede Municipal de Saúde de Londrina e com a população residente na área de abrangência da Unidade Básica de Saúde do Conjunto Habitacional São Lourenço, região sul da cidade. Em ambos os grupos a pesquisa teve como base a observação participante, sendo que, no primeiro, o trabalho foi desenvolvido a partir de reuniões semanais (nos anos de 1995 e 1996) organizadas, particularmente, para discussão e elaboração do Projeto de Implantação da Fitoterapia na Rede Municipal de Saúde de Londrina. Com o grupo popular, a pesquisa foi desenvolvida a partir da convivência com a população e mediante entrevistas abertas e não estruturadas, realizadas ao longo de quatro anos, com as pessoas indicadas como conhecedoras de “remédios caseiros” ou de “remédios de plantas”. Foram nove mulheres entrevistadas (não por escolha da pesquisadora, mas por terem sido indicadas pela população).

2

Introdução

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BACTRINS E QUEBRA-PEDRAS

3 A proposta de “resgatar os conhecimentos terapêuticos populares” faz parte do 4º Plano Operativo do Projeto UNI – Londrina.

4 Um apanhado sobre os princípios ordenadores da medicina de origem científica pode ser encontrado em Araújo (1998).

5 Os princípios do catolicismo popular encontrados entre a população pesquisada já foram descritos por autores como Brandão (1986), Zaluar (1973 e 1980), Camargo & Souza (1973). Como observam estes autores, o princípio da reciprocidade, um dos preceitos mais importantes do universo ético do catolicismo popular, orienta as normas de conduta que os homens devem manter entre si e com as divindades. A manutenção ou quebra dessas relações são consideradas, pelo grupo pesquisado, responsáveis pela boa sorte e pelos infortúnios, dentre os quais estão incluídas as doenças classificadas como espirituais.

fragmentação do corpo e seus males em virtude da supervalorização das especialidades. Os diagnósticos centrados principalmente no uso de tecnologias afastam, de acordo com as concepções do grupo de Fitoterapia, o médico do paciente, dificultando a existência de uma cumplicidade entre eles, fator fundamental para um melhor êxito do tratamento. Incluindo-se entre as chamadas medicinas alternativas - formas de tratamento do corpo e suas doenças que propõem uma reação aos princípios da medicina de origem científica - a Fitoterapia é vista, pelo grupo aqui analisado, como portadora de uma possibilidade de mediação entre os conhecimentos curativos biomédico e popular. A reação à biomedicina, neste caso, pressupunha a incorporação de um conhecimento popular à prática biomédica. Porém, se, num primeiro momento, a fitoterapia se organizou em contraposição à pratica médica convencional (pelo menos nos moldes em que foi proposta pelo grupo da Rede Municipal de Saúde de Londrina), acaba por manter-se fiel aos princípios orientadores da medicina científica. O argumento de que a implantação da fitoterapia funcionaria como um impulso para a aproximação entre o par médico-paciente, está baseado no fato de que o uso de plantas nos processos de cura é comum nos meios populares. Esta seria, segundo o grupo de fitoterapia, uma forma de “resgatar o conhecimento terapêutico popular”3 , respeitando suas formas de compreender a doença e o corpo. No entanto, se, por um lado, o grupo de fitoterapia propunha a incorporação das ervas nos procedimentos terapêuticos das Unidades Básicas de Saúde, por outro, estas ervas não poderiam ser utilizadas nem indicadas em seu estado natural. Mais que isso, uma planta apenas poderia ser recomendada após a comprovação científica de seu princípio ativo. Dessa forma, o grupo de fitoterapia, apesar de pretender incorporar uma prática terapêutica distinta daquelas já oficialmente adotadas no âmbito da medicina de origem científica e de tecer críticas ao savoir faire biomédico, acaba, em sua intenção de incorporar à prática biomédica elementos das práticas terapêuticas populares, pinçando elementos das práticas de cura populares e os classificando a partir dos princípios ordenadores da medicina de origem científica4 . Entretanto, a incorporação das ervas medicinais de acordo com os critérios científicos estabelece uma distinção entre o seu uso nos meios populares e aquele que tem lugar no interior das práticas biomédicas, pois, entre a população estudada, a utilização das ervas apenas faz sentido se relacionada a uma maneira particular de se perceber o mundo, em que doença e cura são vistas como inerentes à vida. Tendo como pano de fundo os princípios do catolicismo popular5 , em que a reciprocidade6 é fundamental, o corpo é percebido como espaço privilegiado da manifestação de desajustes nas relações dos homens entre si e deles com as divindades. Dessa forma, os desequilíbrios nessas relações integram o leque de possibilidades de causação dos males, sendo a cura concebida como um processo em que se busca o reequilíbrio do corpo e da alma. A compreensão da visão de mundo da população pesquisada é fundamental para que se possa entender o sentido da utilização das ervas medicinais, dietas alimentares e restrições impostas às

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pessoas que atravessam momentos da vida em que cuidados especiais parecem necessários. Algumas categorias de pessoas são consideradas em situação de risco, precisando então de cuidados especiais. São incluídas neste grupo a grávida – a quem não se recomenda a ingestão de remédios e o lombriguento (aquele que tem lombrigas ou bichas em demasia), por exemplo. Segundo a população pesquisada, à grávida e ao lombriguento (particularmente se se tratar de uma criança) não deve ser negada a satisfação do desejo de comer ou beber. Aqui entra em pauta um princípio fundamental para a organização dessa lógica, que é o princípio da reciprocidade. Explico melhor. De acordo com as concepções deste grupo, existe em cada um de nós uma bicha chefe que comanda as vontades do corpo e que é responsável pela manutenção da vida. Entretanto, para que a bicha chefe dê o ânimo necessário à continuação da vida é preciso alimentála, ou seja, é preciso que suas vontades sejam satisfeitas. Porém, a satisfação dos desejos da bicha chefe não isenta seu portador do risco da morte, pois à medida que recebe alimentos ela vai se reproduzindo e quanto mais se reproduz, mais alimentos exige. Há um limite a partir do qual o hospedeiro não mais dá conta de satisfazer os desejos de seus hóspedes. Nesse caso, ou ele toma algumas precauções no sentido de eliminar o excesso de bichas (indica-se para esse fim a ingestão de purgantes) ou corre o risco de sofrer um ataque de bichas. O ataque de bichas ocorre, segundo essa concepção, quando, não mais encontrando alimentos suficientes na barriga do seu hospedeiro, as bichas migram para outras partes do corpo – particularmente os orifícios superiores7 – podendo até causar sua morte. Ao contrário do lombriguento, em que quem cria é a bicha chefe que ele carrega na barriga, a grávida é criadora da vida do ser que leva em seu ventre. No entanto, a satisfação dos desejos desse ser é fundadora de uma aliança geracional cuja direção da doação deverá ser invertida posteriormente. Se durante a gravidez e a infância é a mãe a responsável pela satisfação dos desejos do filho, quando ela for velha é deste a responsabilidade de lhe dar sustento. Nesse sentido, é interessante observar que as explicações nativas acerca da existência de manchas ou marcas na pele recaem sobre a não satisfação de um desejo de comer ou beber durante o período de gestação de seu portador. A presença de manchas ou marcas congênitas na pele seria denunciadora de uma situação de falta. Considerando que quanto mais for considerada boa mãe, melhores são as chances de uma mulher ser amparada pelos filhos na velhice, esta é uma questão tratada com grande zelo entre o grupo pesquisado. As considerações acerca do lombriguento e da grávida apontam no sentido de mostrar que o desejo é bem visto, pelo grupo pesquisado, enquanto criador de vida, mas temido quando ameaça suprimir a razão pela imposição da satisfação dos desejos e a continência alimentar, das ações e paixões, pelo pecado. Essas concepções estão ancoradas num universo lógico em que a vida na terra é pensada como lugar da dor, do sofrimento e da incompletude, sendo a plenitude apenas possível de ser alcançada após a morte, caso a alma seja aceita no paraíso8 .

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6 A noção de reciprocidade aqui adotada parte do Ensaio sobre a dádiva, de Mauss (1968), segundo o qual há, na constituição de grupos, a obrigação de dar, receber e retribuir.

7 O corpo, segundo essas concepções, é dividido em partes a que se atribuem características particulares. Esse tema é tratado em Araújo (1998).

A cosmologia desse grupo é riquíssima e não há aqui espaço para fazer uma análise mais detalhada sobre ela. Desenvolvo essa questão em minha dissertação de mestrado Das ervas medicinais à fitoterapia: encontros e desencontros entre as lógicas biomédica e popular.

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9 O sentido do termo reinterpretação aqui adotado aproxima-se da idéia defendida por Sahlins (1990) de que a estrutura é atualizada pela conjuntura, ou seja, as significações são atualizadas através da ação. Esse movimento de atualização das significações, longe de suprimir uma maneira de ser de uma cultura, é o que faz a estrutura se manter. Faz-se necessário, no entanto, salientar que Sahlins (1990), ao contrário de LéviStrauss (1985; 1993), não pensa a estrutura como inconsciente, mas como um modo como as significações se relacionam com a cosmologia.

Autores como Marta Campos (1982), Andréa Loyola (1984 e 1987) e Marcos Queiroz (1980 e 1993) fundamentam suas análises sobre as relações entre a biomedicina e as práticas populares de cura no argumento de que estas estão sendo paulatinamente suprimidas por aquelas. Já a abordagem de Elda Rizzo de Oliveira (1985a, 1985b), parte do pressuposto de que as práticas populares de cura fazem parte de um movimento de resistência à cultura dominante, que se expande e tenta destruir todas as outras manifestações culturais. Noutra direção aponta o trabalho de Paula Montero (1985) quando mostra que a medicina popular age nos interstícios da medicina oficial, não se constituindo porém de forma fechada em relação ao sistema biomédico. As duas primeiras interpretações são, sob meu ponto de vista, insuficientes, pois nem as práticas populares de cura estão desaparecendo, nem existe, no meio popular, um movimento no sentido de oferecer resistência às práticas biomédicas. Essas análises deixam de atentar para o movimento de recriação cultural, em que essas práticas, ao mesmo tempo que estão continuamente se modificando, se perpetuam. Ao buscarem formas descritas por estudos realizados no passado - muitas vezes no meio rural - essas pesquisas deixam de perceber as novas nuances pelas quais os conhecimentos curativos se mantêm e se renovam. Nesse sentido, faz-se necessário notar as maneiras pelas quais o conhecimento popular de cura encontra para se perpetuar, utilizando-se das brechas deixadas pelo sistema médico oficial. Frente a posturas de negação da validade do conhecimento popular de cura, essa população, ao longo dos anos, criou algumas formas de lidar com os médicos, mantendo e falando de suas práticas tradicionais, sem correr o risco de sofrer reprimendas. Isso poderia ser observado a partir de várias atitudes, mas uma das coisas que mais chamou a atenção foi a denominação de plantas com nomes comerciais de medicamentos industrializados. Entre as ervas medicinais plantadas nos quintais dos meus informantes encontrei anador, dipirona, novalgina, insulina e bactrim. A denominação de plantas com nomes comerciais de medicamentos industrializados provoca um mal-entendido que funciona no sentido de fazer com que, no diálogo entre médico e paciente, cada um acredite estar falando a mesma linguagem, embora estejam dizendo coisas diferentes. Durante uma consulta, geralmente o médico indaga se o paciente está tomando algum medicamento e qual é. Quando o paciente responde que tomou bactrim, sua resposta tem um impacto completamente diferente daquele causado pela declaração de que se tomou um chá de folhas de uma determinada planta. O que o médico não sabe é que bactrim é também um nome atribuído a uma erva medicinal. A incorporação desses nomes deve ser entendida como uma forma de reinterpretar9 elementos da biomedicina incluindo-os na lógica que orienta e dá sentido aos cuidados corporais no meio popular. As práticas de cura com ervas medicinais encontradas entre a população pesquisada são, pois, modos de pensar e agir, reinterpretações das novas condições de vida, tendo como base um sistema lógico que ordena e dá sentido aos cuidados corporais, às relações interpessoais e à vida como um todo. Ou seja, as mudanças ocorridas no contexto em que vive esta população – migração do meio rural para o urbano, transformações no estilo de vida, tipo de trabalho, habitação e alimentação, por

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exemplo – são pensadas a partir de uma lógica que ordena as novas experiências a que essa população é exposta. Desse modo, a perspectiva adotada pelo grupo de fitoterapia, quando se propõe a “recuperar” o conhecimento terapêutico popular, apenas é possível em virtude do desconhecimento de que, por detrás dos nomes de remédios industrializados permanecem as ervas e uma lógica própria de sua utilização que inclui também os remédios “dos médicos”. Assim, não cabe falar em “recuperação das práticas terapêuticas populares”, como o fez o grupo da Rede Municipal de Saúde de Londrina, visto que apenas pode ser recuperado aquilo que foi perdido e este não é o caso das práticas de cura com ervas medicinais entre a população pesquisada. As práticas de cura com ervas medicinais não só são colocadas em ação como seus agentes utilizam o espaço da Unidade Básica de Saúde para propagar esse modo de cura. Entre uma consulta e outra, enquanto aguardam nas filas de espera, os usuários da Unidade trocam receitas. Quando alguém alcança a cura de um mal que o atormentava há muito tempo, pelo uso de remédios caseiros, geralmente dirigese à Unidade e deixa lá a receita do remédio que o curou. Também lá se tem informação sobre quem conhece as ervas medicinais e sabe curar com elas, bem como onde se pode encontrar determinadas plantas. A idéia de tentar “recuperar as práticas terapêuticas populares” aponta para a existência de uma dificuldade, por parte dos médicos, dos autores que partem da perspectiva utilitarista ou pensam as práticas populares de cura em contraposição à biomedicina, de perceber que a lógica que orienta essas práticas permanece mesmo sem a rejeição de procedimentos biomédicos. As práticas populares de cura não precisam recusar a medicina de origem científica para continuarem existindo, pois enquanto forma de devolver ao corpo seu equilíbrio, os procedimentos biomédicos são incluídos e pensados a partir do mesmo arcabouço lógico que orienta e dá sentido à vida. Dessa forma, apesar de utilizar elementos e práticas próprios da biomedicina, a população pesquisada continua mantendo um modo próprio de pensar o mundo. A vitalidade desse modo de pensar e perceber o ser no mundo é garantida justamente por sua capacidade de ressignificar as práticas com as quais se depara em novos contextos. Assim, não existe incoerência na apropriação do espaço da Unidade Básica de Saúde como um ponto centralizador de informações acerca de tratamentos para os males do corpo e também para aqueles considerados originários da intervenção sobrenatural. Enquanto lugar dedicado à cura, nada mais pertinente que concentrar ali esse tipo de informação. Como, nesse meio, o princípio que orienta as relações dos homens entre si é o da reciprocidade, os quintais da vizinhança estão sempre à disposição de quem procurar. Além disso, após ter sido “agraciado” com um exemplar de uma planta medicinal desconhecida ou que estava em falta na região, a primeira providência é ir até a Unidade e anunciar onde as pessoas podem encontrá-la. Assim, com ou sem a aprovação dos médicos, as ervas continuam a fazer parte das práticas populares de cura. É bem verdade que os pacientes não costumam declarar aos médicos que fazem uso das ervas medicinais em seus processos de cura, a menos que haja alguma sinalização, por parte do médico, de aceitação desta prática.

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Com as discussões sobre a implantação da fitoterapia passou a haver uma maior displicência em relação à manutenção do sigilo em torno da utilização de chás, garrafadas, emplastos e xaropes preparados em casa, a partir das ervas, entre os pacientes da Unidade Básica de Saúde do São Lourenço. Cabe ressaltar que esta Unidade, durante o período em que foi realizada a pesquisa, possuía uma equipe que tinha um bom relacionamento com a população local e agregava profissionais de saúde simpáticos à Fitoterapia. Apesar de a abordagem fitoterápica desconsiderar a lógica que orienta o uso das ervas medicinais nos meios populares, sua inclusão no campo de discussão das possibilidades de cura aceitáveis no interior da medicina oficial abre um espaço para que seja produzida uma transformação nas condições de uso do saber tradicional sobre as ervas medicinais. Neste sentido, a discussão do projeto de implantação da fitoterapia foi tomada pela população como uma forma de dar mais credibilidade a suas práticas. Não foram poucas as vezes em que ouvi comentários do tipo “as ervas são tão boas para curar que até os médicos estão querendo aprender a usá-las”. Não obstante os esforços iniciados pelo grupo de fitoterapia e de sua aprovação institucional, essa prática não chegou a ser implantada na rede municipal de saúde de Londrina. No quadro das prioridades estabelecidas para o que a equipe dirigente da Autarquia do Serviço Municipal de Saúde de Londrina considerou como melhoria da qualidade da atenção à saúde, coube à fitoterapia um lugar de menor destaque. Sendo assim, não lhe foi atribuída importância suficiente para que essa prática passasse a fazer parte dos procedimentos terapêuticos desenvolvidos nas Unidades Básicas de Saúde. Embora haja uma certa concordância em torno da proposição de que a eficácia do tratamento esteja relacionada à compreensão do que diz o paciente, há quase que um consenso, entre os médicos, de que compreender se restringe à “paciência” para ouvir as queixas dos doentes. Dessa forma, apesar de ouvirem continuamente o que dizem os pacientes, os biomédicos permanecem sem se dar conta da cosmologia que sustenta os medos, as considerações referentes às doenças e suas possíveis causas, proibições alimentares e comportamentais frente a determinadas situações. Os procedimentos já consagrados pelo reconhecimento científico continuam a orientar a prática biomédica, impedindo que, além de ouvir, eles possam escutar – no sentido de buscar perceber a lógica que orienta essa forma de pensar - o que dizem seus pacientes. As discussões lançadas pelo grupo de fitoterapia sinalizaram uma possível abertura da biomedicina em relação a outras práticas de cura. No entanto, apesar da existência de uma crise interna, que aponta para a necessidade de incorporação de outras práticas, houve uma reação contra a abertura, expressa em resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM nº 1499/98), que proíbe aos médicos a utilização de práticas terapêuticas não reconhecidas cientificamente. Esta resolução, bem como sua repercussão junto aos médicos partidários de práticas alternativas, ainda precisa ser mais bem estudada, por se tratar de um fato recente. Entretanto, o Conselho Federal de Medicina certamente não teria se dado ao trabalho de lançá-la se essas práticas não estivessem encontrando

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eco entre os médicos, o que demonstra o dilema que está no coração da crise interna pela qual passa a medicina de origem científica, ainda sem solução. Referências bibliográficas ARAÚJO, M.A. M. Das ervas medicinais à fitoterapia: encontros e desencontros entre as lógicas biomédica e popular. São Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. BRANDÃO, C. R. Os deuses do povo: um estudo sobre religião popular. São Paulo: Brasiliense, 1986. CAMARGO, C. P. F., SOUZA, B. M. Catolicismo no Brasil. In: ______. Católicos, protestantes e espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973. CAMPOS, M.S. Poder, saúde e gosto: um estudo antropológico acerca dos cuidados possíveis com a alimentação e o corpo. São Paulo: Cortez, 1982. LONDRINA. PREFEITURA MUNICIPAL. Autarquia do Serviço Municipal de Saúde. Conselho Municipal de Saúde. Rumos da saúde para Londrina: plano municipal de saúde para o biênio 1996-1997. Londrina, 1996. LOYOLA, M. A. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo: Difel, 1984. LOYOLA, M. A. Medicina popular: rezas e curas de corpo e alma. Ciênc. Hoje, v.6, n.35, p.34-43, 1987. MAUSS, M. Essai sur le don. In: ______. Sociologie et anthropologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1968. MONTERO, P. Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro: Graal, 1985. MONTERO, P. Magia e pensamento mágico. São Paulo: Ática, 1990. OLIVEIRA, E. R. O que é benzeção. São Paulo: Brasiliense, 1985a. OLIVEIRA, E. R.O que é medicina popular. São Paulo: Brasiliense, 1985b. PROJETO UNI. Projeto UNI Londrina: uma nova iniciativa na educação dos profissionais de saúde: união com a comunidade. Londrina, 1992. (mimeogr.) PROJETO UNI. Prouni/Londrina em ação II: processos e resultados. Londrina, 1994. (Relatório técnico de avaliação do 1º ano - outubro de 92 a junho de 94). PROJETO UNI. Prouni/Londrina em ação III: resultados: ações e realizações do 3º ano (julho de 94 a junho de 95). Londrina, 1995. QUEIROZ, M. S. Feitiço, mau-olhado e susto: seus tratamentos e prevenções. Aldeia de Icapara. Relig. Soc., n. 5, p.131-60, 1980. QUEIROZ, M. S. Estratégias de consumo em saúde entre famílias trabalhadoras. Cad. Saúde Pública, v. 9, n. 3, p. 272-82, 1993. SAHLINS, M. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. STRAUSS, L. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. STRAUSS, L. Antropologia estrutural 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. ZALUAR, A. Sobre a lógica do catolicismo popular. Dados, n. 11, p.11-39, 1973. ZALUAR, A. Milagre e castigo divino. Relig. Soc., n. 5, p.161-87, 1980.

ARAÚJO, M. A. M Lógica biomédica y expresión popular, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.4 , n.7, p. 103-10, 2000. En este artículo busco discutir cuestiones referentes al encuentro entre las lógicas biomédica y popular, partiendo del análisis del proyecto de implantación de la fitoterapia en la red municipal de salud de Londrina, estado de Paraná, Brasil; y de los elementos de la cosmología que orienta las prácticas de cura con yerbas medicinales. PALABRAS-CLAVE: Antropología; plantas medicinales; medicina popular; cobertura de los servicios públicos de la salud; terapías alternativas.

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Uma proposta de abordagem transdisciplinar para avaliação em Saúde Oswaldo Yoshimi Tanaka1 Cristina Melo2

As avaliações dão ao mundo humano seu relevo. Basta que não se leve em conta nem o bom, nem o belo, nem o útil, nem o precioso etc., para se confinar a uma pretensa objetividade, e eis que a objetividade carece precisamente de seu objeto! (Lévy, 1994, p.172.)

Introdução A avaliação é uma função de gestão destinada a auxiliar o processo de decisão visando torná-lo o mais racional e efetivo possível. Na atual conjuntura, o alto custo da atenção a saúde, seja por sua cobertura ou complexidade, tem exigido dos gestores decisões que beneficiem maior número de usuários e que consigam resultados mais eqüitativos com os mesmos recursos disponíveis. Para que isso aconteça é necessário que se defina claramente o para quê se está fazendo a avaliação. Isto significa ter claro qual a decisão em jogo e quem tem o poder para decidir. Para que a decisão a ser tomada seja realmente efetiva e não se torne apenas uma medida racionalizadora de recursos será necessário que se tenha sempre em mente que a avaliação deverá ser feita tendo como beneficiário final o cliente/usuário do serviço/ programa ou projeto e não exclusivamente quem solicitou a avaliação. Esta característica peculiar faz com que a avaliação se torne um campo de

Professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. <oytanaka@usp.br> Professora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia; Doutoranda na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. <cmmelo@uol.com.br> 1 2

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trabalho propício para a aplicação transdisciplinar dos conhecimentos existentes em áreas como a de Epidemiologia, Administração, Estatística, Ciências Sociais etc. Isto porque, para alcançar tais objetivos mais compreensivos, a avaliação exige a utilização de conceitos e técnicas abrangentes e mais adequadas ao que será avaliado e não a adoção de modelos pré-estabelecidos e rígidos. Em realidade, o que se quer responder com a avaliação se constitui em uma seqüência de perguntas, geradas por uma clara pergunta inicial, que vão sendo formuladas na medida em que se avança no processo de análise dos dados. A partir das questões formuladas se fará uma primeira aproximação dos dados disponíveis. Na medida em que se aprofunde o conhecimento dado pelas informações coletadas, novas perguntas são formuladas para ajudar a entender o significado ou representatividade dos dados. Cabe lembrar que as questões surgidas devem manter coerência com a pergunta inicial, norteadora do processo de avaliação. Esta característica metodológica da avaliação facilita o processo de utilização transdisciplinar de distintos conhecimentos existentes e disponíveis. Assim, na avaliação de sistemas, serviços ou programas/projetos de saúde é possível iniciar o processo de avaliação com a abordagem sistêmica da administração (Donabedian, 1980; 1982; 1985), que permite analisar o processo de trabalho e as relações com os resultados e seguir com o estudo de impacto epidemiológico visando entender as repercussões das ações operacionalizadas para atender a população usuária ou de referência. Para aprofundar o significado das mudanças apontadas, podemos adotar uma abordagem qualitativa com os usuários e profissionais envolvidos nas atividades. Contexto Segundo Lévy (1994, p.61) “os procedimentos de decisão e avaliação hoje em uso foram propostos para um mundo relativamente estável e em uma ecologia da comunicação simples.” A compreensão da essência transversal do processo de avaliação é uma exigência contemporânea, mas é também uma exigência no caminho de tentar alcançar a complexidade que é avaliar serviços, práticas e ações desenvolvidos no campo da saúde. A adoção deste enfoque torna-se ainda mais necessário quando se analisa o momento atual das políticas de saúde – com a descentralização de ações para o sistema municipal - em que os municípios assumem novas responsabilidades face aos problemas locais de saúde. Estas novas responsabilidades exigem não só maior capacidade técnica como também o desenvolvimento de capacidades sociais para responder a um papel ainda novo no contexto brasileiro. Tais características exigem, ainda, um maior grau de experimentação na ação, visando descobrir caminhos e meios próprios para a solução dos problemas identificados. Este movimento, por sua vez, tem uma necessidade ainda maior de acompanhamento e avaliação sistemáticos visando a uma reorganização e redirecionamento das ações.

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UMA PROPOSTA DE ABORDAGEM TRANSDISCIPLINAR...

A opção por discutir uma abordagem transdisciplinar para avaliar sistemas, serviços e programas/projetos de saúde origina-se na própria essência da avaliação, compreendida como um campo de aplicação de outros saberes e práticas. Ao avaliar, utilizamos teorias, conceitos e instrumentos de diversas outras áreas do conhecimento, fazendo com que a avaliação deva ser compreendida como área de aplicação e não como uma ciência. A adoção da transdisciplinariedade está também baseada na necessidade de utilizar, na avaliação, os conhecimentos dos próprios profissionais envolvidos no processo de trabalho. Desta maneira, é possível aproveitar ao máximo o conhecimento produzido pela prática e ao mesmo tempo envolver os profissionais na tomada de decisão, tornando-a mais participativa e democrática. A transdisciplinariedade é compreendida como o meio pelo qual a avaliação pode ser empregada de forma a buscar coletivamente soluções para os problemas enfrentados, isto porque: . Exige um esforço coletivo de capacidades e aprendizagem para a ação. . Deve ser compreendida como um espaço estruturante de conhecimentos e práticas e não como estratos distintos de disciplinas vistas como territórios estanques. . Abre caminho para um exercício democrático na tomada de novas decisões. . Auxilia na direção de uma avaliação voltada o mais próximo possível para os grupos humanos envolvidos e interessados nos resultados produzidos. . Permite recuperar vínculos existentes entre as diversas disciplinas e seus conhecimentos para compreender o que é avaliado. . Mantém o foco nas necessidades identificadas na implantação do serviço, programa ou projeto, a partir das quais se organiza a atenção ao cliente. Assim, um enfoque transdisciplinar da avaliação leva em conta os conhecimentos necessários para sua aplicação visando ir além de um mero recorte analítico. Neste caminho, seria possível a produção de uma forma própria de saber que permita a tomada de decisões. Estas novas decisões devem contribuir para a reorganização das ações avaliadas e para a produção de um fluxo contínuo de interações para a produção de competências, visando o enfrentamento da situação e dos problemas identificados. No contexto da descentralização de ações e serviços de saúde, fica patente a possibilidade da condução da gestão da saúde com a participação de sujeitos distintos. A descentralização, e, conseqüentemente, as novas responsabilidades que são assumidas pelo sistema local de saúde, exige o desenvolvimento de competências que podem ser subsidiadas pelo relevo da realidade que a avaliação pode fornecer ao sistema, serviços ou programas/projetos de saúde.

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Delineamento da proposta A vantagem de utilizar uma abordagem transdisciplinar na avaliação não é porque ela aumenta a validade dos resultados ou aprofunda o conhecimento, mas porque ela é o melhor caminho para responder o para quê fazer a avaliação, isto é, responder a objetivos avaliativos que contemplem, necessariamente, os interesses dos usuários/beneficiários dos serviços/programas ou ações. Uma avaliação com esta finalidade tem de lançar mão de conhecimentos diversos. Trabalhar a transdisciplinariedade é fazer recortes dos conhecimentos, cuidando para que tais recortes não sejam apenas retalhos superpostos. Isto porque o resultado pretendido na utilização de conhecimentos, técnicas ou instrumentos de distintas disciplinas na avaliação não é um amálgama de todos os componentes utilizados. Um desenho de avaliação que pretenda ser transdisciplinar deve utilizar os conhecimentos disponíveis na direção em que estes contribuam para a construção do processo interativo/relacional necessário à análise da situação avaliada. Esta ruptura tem como base a compreensão de que os conhecimentos organizados em disciplinas não devem servir apenas para manter a lógica de construção e organização das relações de poder no âmbito de microespaços, a exemplo das universidades. Os conhecimentos disponíveis devem ser utilizados a partir de seu potencial de apoio à intervenção na realidade, recompondo ou reorganizando conhecimentos, técnicas e instrumentos de maneira mais objetiva e operacional. Como ultrapassar os limites de cada disciplina para criar uma abordagem transdisciplinar na avaliação? Em primeiro lugar ter clareza do para quê fazer a avaliação, pois este foco facilita o modo de organizar o conhecimento disponível e necessário para aplicar na abordagem transdisciplinar. A abordagem transdisciplinar permite organizar o conhecimento necessário no processo da avaliação, pela construção dos recortes que faço para alcançar as respostas às perguntas avaliativas. A construção destes recortes é única e particular a cada avaliação. Deste modo não existe um “desenho” com a abordagem transdisciplinar dado a priori, uma vez que esta varia de acordo com a direcionalidade da pergunta avaliativa. Os recortes feitos vão se recompor em um novo conhecimento surgido a partir da utilização das múltiplas perspectivas utilizadas. Portanto, a abordagem trandisciplinar é construída “em processo”. Isto significa que os conhecimentos das distintas áreas serão incorporadas com os recortes necessários para responder, com a maior factibilidade possível, ao para quê da avaliação e não para esgotar o rigor metodológico do campo de conhecimento de cada disciplina. A abordagem transdisciplinar dos conhecimentos existentes e necessários num processo de avaliação serão utilizados de forma única. Isto implica que cada avaliação terá um desenho próprio, sem a adoção de modelos fixos. O

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“modelo” a ser construído deve ser o mais pertinente para responder às perguntas formuladas, utilizando-se dos recursos disponíveis e no tempo oportuno para que subsidie efetivamente as decisões em jogo. A abordagem transdisciplinar deve facilitar a discussão e o modo de organização das idéias produzidas no processo da avaliação. Por onde começar? O recorte desta abordagem é dado pela pergunta inicial que orienta todo o processo. A partir daí pode-se seguir “o modelo” que for mais “confortável” para quem avalia, desde que se considere a factibilidade da proposta e sua coerência com a pergunta avaliativa. Na realidade brasileira, em que a incorporação da avaliação na gestão de sistemas, serviços e programas/projetos ainda é incipiente e assistemática, pode ser mais fácil iniciar a avaliação por um enfoque quantitativo. Isto porque existe uma maior disponibilidade e/ou facilidade em obter dados quantitativos sobre o que se quer avaliar. Nesta direção, pode-se iniciar uma avaliação centrada na produção de serviços e ações, pela análise de cobertura, de produção e produtividade, relacionando-os com resultados e com a estrutura. Quando a pergunta avaliativa buscar compreender com maior profundidade o significado das relações entre as ações e os resultados, este caminho exige uma abordagem com predominância qualitativa. Em geral as situações avaliadas no campo da saúde irão exigir a adoção de múltiplas abordagens, para que não se perca a capacidade de explicação e compreensão da situação. Isto significa afirmar que tanto perspectivas quantitativas como qualitativas serão pertinentes, a depender da pergunta avaliativa. A experimentação em situações concretas dos pontos aqui abordados pode conduzir para a incorporação da avaliação como um instrumento de gestão coletiva do trabalho em saúde. Isto porque a abordagem transdisciplinar facilita a construção coletiva do conhecimento, da gestão e da ação em saúde. Esta proposta de experimentar uma abordagem transdisciplinar pode direcionar a avaliação em saúde de modo que esta contribua para o desenvolvimento de uma competência coletiva, fundamental para a reorganização e produção de ações e serviços de saúde dirigidos às necessidades da população. Então... A aparente simplificação das idéias formuladas no texto não pretende reduzir o desafio que é pensar e agir em campos de conhecimento vastos e complexos, como a utilização da avaliação como instrumento para a gestão de sistemas, serviços e programas de saúde. Esta é apenas uma tentativa de direcionar idéias para o campo do pragmático, sem que se exija um domínio pleno de conteúdos e teorias que, para a maioria dos que trabalham com

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saúde, serve de justificativa para um imobilismo e/ou para reforçar a crença de que somente especialistas são capazes de usufruir da teoria para alimentar uma prática que por fim, alimentará a teoria. Não acreditamos que é preciso dominar todos os referenciais ou necessariamente optar por um deles para fazer da avaliação em saúde o que ela é: uma possibilidade de transcender o cotidiano para nos levar de volta a ele, com ações concretas e que possuam um significado e uma construção coletiva.

Referências bibliográficas DONABEDIAN, A. The definition of quality and approach to its assessment. Ann Harbor: Health Administration Press,1980. v.1. DONABEDIAN, A. The criteria and standarts of quality. Ann Harbor: Health Administration Press,1982. v.2. DONABEDIAN, A. The methods and fidings of quality assessment and monitoring: an illustrated analisys. Ann Harbor: Health Administration Press,1985. v.3. LÉVY, P. A Inteligência Coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Editora Loyola, 1994.

PALAVRAS-CHAVE: Avaliação; serviços de saúde; conhecimento de resultados (Psicologia).

Bolas de fogo

KEY WORDS: Evaluation; health services; knowledge results (Psychol).

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Evaluación: reflexiones acerca del tema

Hugo Mercer1

El artículo “Uma proposta de abordagem transdisciplinar para avaliação em saúde”, representa un aporte interesante para la actividad de evaluación en el campo de la salud. Atención a todo aquel que desee realizar evaluaciones en el área, pues esa es una labor de naturaleza compartida y cuanto más amplia sea su perspectiva analítica mejores serán las decisiones tomadas. El trabajo apunta a demostrar que la buena evaluación requiere de la presencia, contribución y compromiso de otros campos del conocimiento, que exceden el ámbito de la medicina. Con acierto, se fundamentan las ventajas de un enfoque integrador, dentro del cual tienen cabida los conocimientos existentes en áreas como la epidemiología, la administración, la estadística y las ciencias sociales. La perspectiva integradora queda comprendida dentro de lo que en el artículo se adjetiva como transdisciplina. Considero que conviene ampliar la reflexión acerca de lo que implica transdisciplina. Hace una década Jean Piaget y Rolando García publicaron “Psicogénesis e historia de la Ciencia” (Piaget & García, 1980). En ese texto formulaban - con la cautela propia de dos destacados investigadores - una hipótesis provocativa, la existencia de una correspondencia entre las etapas del desarrollo cognitivo en los niños y la construcción del saber científico. Para demostrarlo apelaban a la historia del algebra y la física. Esa homologación entre el desarrollo del niño y la historia de la ciencia brindaba un enfoque alternativo a la construcción de teorías científicas, tal como lo habían planteado Kuhn (1976) y Lakatos (1970). Las etapas que identifican Piaget y García son tres. La primera, durante la cual se registra una relación unilineal entre el sujeto y el objeto del proceso cognitivo (unidisciplinaria). El niño busca incorporar el objeto del conocimiento, aproximándose a él con sus propios recursos sensoriales y

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Profesor de Sociología de la Salud, Universidad de Buenos Aires. <hmercer@jus.gov.ar>

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motrices. En una segunda etapa, la relación entre el sujeto cognoscente y el objeto de conocimiento comienza a ser mediada por el saber de “otros significativos” (padres, maestros) quienes aportan códigos, instrumentos y conceptos que permiten la integración progresiva del objeto a ese marco establecido de clasificaciones y relaciones, complementando los recursos del niño con sus propios saberes y experiencias; etapa a la que denominan interdisciplinaria cuando la homologan con el desarrollo de la ciencia. Finalmente, una tercera etapa significativa se produce cuando el conocimiento es producto de una interrelación entre el sujeto y el objeto de conocimiento. No es solo el sujeto quien dirige y concentra el proceso cognitivo sino que el objeto tiene la capacidad de interactuar, participar en esa construcción. Las nuevas facetas que comienzan a ser conocidas sobre el objeto generan modificaciones en las estructuras conceptuales del sujeto, en sus códigos, clasificaciones e incluso en los instrumentos de conocimiento. El saber que entonces se genera reconoce otra entidad, no es producto de la combinación de enfoques disciplinarios, sino que es resultado de una integración de calidad y entidad diferente, en la que se produjo la integración de las disciplinas, pero que sobre todo permitió la expresión del objeto de conocimiento. Esa etapa es la que Piaget y García denominaron transdiciplinaria. Si la hipótesis de la homologación entre desarrollo cognitivo de la niñez e historia de la ciencia es provocativa y factible en el ámbito de las ciencias exactas; cuando se lo traslada al de las ciencias sociales o que actúan sobre lo humano, como es el caso de la evaluación en salud; las repercusiones de la transdisciplina deben ser contempladas en sus diversas y variadas implicaciones. La que deseo destacar, y creo que no está explorada en el texto, es que la evaluación es realmente transdisciplinaria, no cuando admite la participación de otras disciplinas, ni siquiera cuando las integra, sino cuando permite la expresión del objeto del conocimiento. Cuando la población, el grupo, el servicio o el programa evaluado encuentra condiciones para que su propio discurso sea reconocido con autonomía en la producción de la evaluación. No se trata solo del empleo de técnicas cualitativas, sino de avanzar en una construcción que apele a todo puente e instrumento conceptual integrador y que al mismo tiempo posibilite acceder a las dimensiones expresivas de los procesos que están ocurriendo en el objeto del conocimiento. Esto es particularmente relevante en el campo de las ciencias sociales, donde se trabaja con objetos que en realidad son sujetos, activos, conflictivos y tan llenos de intereses, conflictos y cambios como los profesionales de las disciplinas dispuestos a evaluarlos. Una evaluación transdisciplinaria sería entonces, aquella que integra disciplinas, pero sobre todo aquella que posibilita que el objeto del conocimiento participe en la construcción del conocimiento, alterando la clásica relación donde quienes evalúan determinan lo relevante. Permitiendo, en cambio, que desde el propio objeto de conocimiento se expresen perspectivas diferentes a las ya construidas. Existen variados ejemplos de la utilidad de un enfoque de este tipo. Por ejemplo, las perspectivas epidemiológicas concentradas en la mortalidad son

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reacias a admitir cuestiones que escapen a la clasificación aceptada de enfermedades. Así como los enfoques de prestación de servicios médicos se resisten a reconocer la vigencia de estrategias propias de la población en el uso de recursos de maneras no “convencionales”. Esas perspectivas, distantes de los cambios en el objeto del conocimiento y celosas de las tradiciones de sus respectivas disciplinas, tardan en admitir la nueva configuración de las necesidades y capacidades en materia de salud; la aparición de diferentes cuestiones sociales (desánimo/pobreza/violencia) o la variación en escala que han experimentado los problemas de exclusión social. La transdisciplina aplicada a la evaluación permitirá aprovechar lo mejor de las disciplinas y, más importante aún, posibilitará que la evaluación sea tarea compartida entre sujetos sociales. En ese sentido, el artículo que comento es valioso porque genera la oportunidad de nuevas reflexiones, abre en los lectores la idea de que la evaluación es una tarea de construcción permanente, y eso es bastante oportuno en contextos que se resisten al cambio. Referências bibliográficas KUHN, T. La revolución científica. México: FCE, 1976. LAKATOS, I. Falsification and methodology of scientific research programmes. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A. (Orgs.) Criticism and the growth of knowledge. Cambridge:Cambridge Universiity Press, 1970. PIAGET, J., GARCÍA, R. Psicogénesis e historia de la Ciencia. México: Siglo XXI, 1980.

PALAVRAS-CHAVE: Avaliação; conhecimento. KEY WORDS: Evaluation; knowledge.

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A avaliação transdisciplinar e poder: levantando algumas questões Luiz Carlos de Oliveira Cecílio

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O indivíduo que avalia o trabalho de alguém detém autoridade. O controle através da avaliação tem sua eficácia máxima quando os indivíduos avaliados acreditam que as avaliações são importantes, centrais para seu trabalho e passíveis de serem influenciadas por seus próprios esforços. Quando se acreditar que as avaliações têm base sólida, os indivíduos serão mais controlados pelo processo de avaliação. (Richard Hall, Organizações, estruturas e processos)

O autor desenvolve seu texto a partir de dois eixos de grande importância: a necessária construção, em ação ou processo, de uma tecnologia de avaliação com características de transdisciplinaridade e a idéia de que esta avaliação “deverá ser feita tendo como beneficiário principal o cliente/usuário do serviço/programa ou projeto”. As reflexões que faço têm como ponto de partida a declaração que inaugura o artigo: “a avaliação é uma função da gestão”. Concordando com esta idéia, aponto algumas questões que têm sido trabalhadas no campo da teoria das organizações para tentar mostrar possíveis dificuldades na construção desta tão necessária prática transdisciplinar nas organizações de saúde. Quando nosso tema é a gestão das organizações de saúde – e o artigo analisado, afinal, trata também disto - nos filiamos, de forma mais ou menos explícita, a algum paradigma teórico para pensar as organizações. Tal paradigma acaba tendo muito peso na nossa capacidade de declarar problemas (no sentido de identificar, recortar ou antever problemas que merecerão nossa atenção) no momento mais “instrumental” de condução das mudanças organizacionais pretendidas (e a adoção da avaliação transdisciplinar é uma mudança muito profunda na cultura e forma de operar das organizações). O esforço que faço é no sentido de identificar o paradigma de organização que o autor adota e, como conseqüência, destacar aspectos que necessitam de uma discussão mais cuidadosa.

1 Médico sanitarista, professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas. <lcecilio@correionet.com.br>

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Há uma primeira indicação do autor nesta direção quando afirma que “é possível iniciar o processo de avaliação com a abordagem sistêmica de administração (grifo meu) que permite analisar o processo de trabalho e as relações com os resultados e seguir com o estudo do impacto epidemiológico visando entender as repercursões das ações operacionalizadas para atender a população usuária ou de referência”. Logo no início do artigo, a avaliação foi apontada como uma “função destinada a auxiliar o processo de decisão visando tornálo o mais racional (grifo meu) e efetivo possível”. Há, ainda, uma declarada preocupação do tema da “eficiência organizacional”. A partir destas indicações iniciais, pode ser dito que o autor adota como referência uma perspectiva racional tal como apontado por Lima (1994). “Nesta perspectiva (a racional) a organização é considerada como instrumento racionalmente desenhado para alcançar objetivos pré-definidos. (...) as tarefas e atividades são estruturadas segundo racionalidade técnica ou instrumental, ou seja, da maneira mais racional para que os fins sejam atingidos com uma eficiência máxima”. Sob este rótulo genérico de “perspectiva racional” podem ser agrupadas várias abordagens que vão dos clássicos da administração aos comportamentalistas e decisionistas, do estruturalismo/funcionalismo weberiano/parsoniano aos “sistêmicos” e “contingencialistas” e tantas outras abordagens mais contemporâneas como as propostas de gestão da qualidade total em suas inúmeras variantes. A crítica central à perspectiva racionalista é em relação ao déficit no tratamento dos atores institucionais, com seus múltiplos projetos, interesses, formas de significar a organização, controles distintos de todas as formas de recursos, inclusive de poder, conflitos, tudo enfim que nos alerta para não cairmos na tentação (ou equívoco) de pensarmos ser possível implantar uma racionalidade única na organização, por mais que ela nos pareça justa, inclusive quando ancorada no firme propósito de estar comprometida com os interesses dos usuários, como tão bem o autor se preocupa em esclarecer. Este tipo de consideração parece particularmente pertinente em relação às organizações de saúde em sua singularidade, tal qual destacado por autores como Dussault (1992) e Cecilio (2000), entre outros. Aceita a insuficiência do paradigma formal, racionalista, estratégico (Rivera, 1991), estrutural-funcionalista (Silverman, 1970) para abordar as organizações de saúde, trata-se de explorar novas abordagens das organizações, a partir de múltiplas matrizes teóricas que vão da ênfase no agir comunicativo habermasiano, à teoria da ação e à exploração das imensas possibilidades que se abrem a partir do institucionalismo (Merhy, 1998), todas com uma característica em comum: a ênfase na existência de sujeitos e seu papel ativo na construção das organizações, muito mais que em “estruturas”, com sua racionalidade “macro”, finalística, instrumental, capturadora de pessoas em papéis pré-estabelecidos e definidos em função dos “objetivos organizacionais”. É verdade que o autor aponta para a “possibilidade de condução da gestão da saúde com a participação de sujeitos distintos” (no contexto da municipalização) como também afirma que “é possível aproveitar ao máximo o conhecimento produzido pela prática e ao mesmo tempo envolver

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os profissionais na tomada de decisões, tornando-a mais participativa e democrática”. Pode ser reconhecido, nestas afirmações, um deslocamento para uma percepção mais política e comunicativa das organizações? Neste caso, estaríamos diante de uma inevitável combinação de várias “perspectivas”, ou melhor, poderíamos dizer que a racionalidade mais instrumental apresentada pelo autor estaria atravessada ou interpenetrada pelo jogo de atores em situação, produtores de fatos, significados, jogadas, capazes de acumular e desacumular poder e produzir mudanças, como querem os paradigmas construídos a partir da teoria da ação ou do agir comunicativo? Pode ser e, talvez, no atual estágio de conhecimento das organizações não nos reste – diante da impossibilidade ou inexistência de uma “teoria unificada”- senão trabalhar com um ecletismo que vá dando conta de tantas questões teóricas e práticas que vamos tendo que resolver. No entanto, permanece problemático na construção do texto o fato de a pergunta inauguradora de todo o processo – o para quê (da avaliação) - vir acompanhada de afirmações do tipo “ser necessário ter claro a decisão em jogo”, saber “quem tem o poder de decidir” e “para que a decisão seja realmente efetiva”. Aqui, o paradigma racionalista, estratégico e formal das organizações, implicitamente adotado pelo autor, fica mais evidente: nas organizações de saúde não há uma única decisão em jogo, nenhum ator tem o poder (ou o monopólio) para decidir e não é possível afirmar que existe uma única “efetividade”, mas múltiplas efetividades, dependendo do ator que recorta a situação. A preocupação do autor de comprometer uma desejada racionalidade do processo decisório com os interesses do cliente/ usuário - este necessário engate da organização com “o fora”- parece não dar conta da complexidade da tarefa que é o abrir “o dentro”, inclusive na construção da transdisciplinaridade. Daí que reforço a idéia de que o paradigma adotado para pensar a organização tem muito peso para orientar a formulação dos problemas que serão tratados no trajeto de implantação das idéias apresentadas no artigo. Para finalizar, aponto um tema para futuros debates: a construção da transdisciplinaridade, por tudo o que sabemos das relações entre poder/ saber, não poderá ser adequadamente tratada sem levar em conta os importantes deslocamentos de poder em que resultará. Os vários saberes estão “colados” a atores reais, histórica e socialmente construídos e legitimados dentro, mas também aquém das organizações, como nos lembra Foucault. Não é possível “naturalizar” o encontro de saberes previsto na avaliação transdisciplinar, como se a questão “política” ou do poder

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estivesse previamente resolvida. Por tudo isto, o debate posto pelo autor não poderá prescindir de uma reflexão mais cuidadosa sobre o caráter das organizações de saúde, em particular as singulares relações de poder que a caracterizam. Referências bibliográficas CECILIO, L.C.O. Considerações sobre alguns pares de opostos que tornam singular a gestão do hospital. Campinas: Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade de Campinas, 2000. (mimeogr.) DUSSAULT, G. A gestão dos serviços públicos de saúde. Rev. Adm. Pública, v.26, p.8-19, 1992. LIMA, S.M.L. O processo de definição e implementação de objetivos numa organização pública no setor saúde: do conjunto sanatorial de Curicica ao hospital de clínicas básicas Raphael de Souza Paula. Rio de Janeiro, 1994. Dissertação (Mestrado) à Escola Brasileira de Administração Pública, Fundação Getúlio Vargas. MERHY, E.E. O desafio da tutela e da autonomia: uma tensão permanente do ato cuidador. Campinas, 1998. (mimeogr.) RIVERA, F.J.U. Agir comunicativo e planejamento social: uma crítica ao enfoque estratégico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1991.

CHEVALLIER, Amarelinhas.

SILVERMAN, D. Teoria de las organizaciones. Buenos Aires: Nueva Visión, 1970.

PALAVRAS- CHAVE: Avaliação; tomada de decisão; organização e administração; serviços de Saúde. KEY WORDS: Evaluation; decision making; organization and administration; health services.

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A articulação de enfoques quantitativos e qualitativos na avaliação em saúde: contemplando a complexidade dos objetos Marina Peduzzi

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No artigo em debate, os autores concebem a avaliação em saúde como função da gestão, destinada a auxiliar o processo de decisão e apoiar as intervenções na realidade, cujo sucesso pode ser apreendido pelo(s) benefício(s) que acarreta ao(s) usuário(s) dos serviços/programas ou projetos avaliados. Portanto, o destinatário da avaliação em saúde é o usuário, o mesmo destinatário do exercício cotidiano do trabalho dos vários profissionais – gestores e produtores do cuidado direto, para os quais a avaliação consiste em uma ferramenta, um dos instrumentos por meio do qual cumprem sua responsabilidade social de agentes do trabalho em saúde. Assim concebida e contextualizada, no entender dos autores “a avaliação torna-se um campo de trabalho propício para a aplicação transdisciplinar dos conhecimentos (da área da saúde)”, visto que abarca objetivos mais compreensivos que não são contemplados pela adoção de modelos préestabelecidos e rígidos. De fato, conta-se com uma significativa literatura acerca da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade como projetos que permitem abarcar a complexidade dos objetos e entendo que os autores inserem a avaliação em saúde no âmago dessa discussão, embora preocupados sobretudo com a sua aplicabilidade no cotidiano dos serviços. Esta ressalva faz-se necessária, visto que a produção teórica sobre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade trata-as como problemáticas atinentes, particularmente, à investigação científica e ao ensino acadêmico, configurando-as como uma construção discursiva eminentemente epistemológica (Japiassu, 1976; Minayo, 1994; Spink, 1992; Schramm, 1994; Nunes, 1995; Almeida-Filho, 1997; Ayres, 1997; Peduzzi, 1998).

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Professora do Departamento de Orientação Profissional, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, USP. <marinape@usp.br>

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Há, portanto, que se considerar a distinção conceitual entre ambas, apresentadas pela literatura como diferentes possibilidades de relações disciplinares. Nesse debate, a transdisciplinaridade representa uma etapa superior que se sucede à interdisciplinaridade, que situa as relações ou reciprocidades entre as diversas disciplinas no interior de um sistema total, tomando por base uma axiomática geral compartilhada capaz de instaurar uma coordenação, em vista de uma finalidade comum (Japiassu, 1976; Nunes, 1995; Almeida-Filho, 1997). Consideradas essas questões conceituais, entendo que a proposta dos autores refere-se a uma abordagem interdisciplinar da avaliação em saúde, na qual buscam obter uma coordenação e colaboração entre as diferentes áreas de conhecimento para melhorar a qualidade de resposta aos interesses dos usuários. Os próprios autores chamam a atenção para que cada processo de avaliação tenha um desenho próprio e único pertinente às perguntas formuladas, utilizando os recursos das distintas disciplinas para subsidiar efetivamente as “decisões em jogo”. Nessa perspectiva, estão mantidas as especificidades de cada campo disciplinar e a avaliação é compreendida como uma área de aplicação desses conhecimentos. Assim, coloca-se a necessidade de incorporar a interdisciplinaridade na avaliação em saúde. Um segundo aspecto importante da proposta e imediatamente relacionado a este primeiro, é a sua potencialidade no sentido de permitir uma avaliação mais ampla e multidimensional, visto que articula enfoques quantitativos e qualitativos. Essa articulação é promissora à medida que possibilita contemplar a complexidade dos objetos da avaliação em saúde, referidos à organização do trabalho; à eficiência, eficácia e efetividade na prestação de serviços; ao processo saúde-doença; à interação usuário-serviço e usuário-profissional e outros. Tomar em consideração a complexidade dos objetos de estudo e de intervenção significa considerar que não são lineares mas sim múltiplos e sintéticos, ou seja, os vários aspectos que configuram o objeto recortado para avaliação guardam, entre si, relações de reciprocidade e mútua influência. Além disso, considerar a complexidade quanti-quali da avaliação implicará em reconhecer a relação sujeito-objeto como intrínseca ao conhecimento e este como possibilidade de apreender os fenômenos por meio de um processo que, ao mesmo tempo, disjunte e associe, concebendo os vários níveis de emergência da realidade sem reduzi-los às unidades elementares e às leis gerais (Morin, 1990). A integração dos enfoques quantitativo e qualitativo na avaliação em saúde também permite contemplar a constituição das práticas de saúde como trabalho reflexivo em serviços. Este tem como característica, por um lado, buscar reconhecimento, respeito e preservação da particularidade, individualidade e variabilidade das necessidades dos usuários e, por outro lado, aplicar certas regras, conhecimentos e valores gerais. Ou seja, o serviço em saúde somente será bem-sucedido se produzir um equilíbrio entre esses dois aspectos, considerando, ao mesmo tempo, a “especificidade do caso” e a “generalidade da norma”. A aproximação sucessiva do objeto de avaliação por meio de abordagens quantitativas e qualitativas permitirá abarcar essa

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complexa dinâmica operacionalizada pelo agente do trabalho, isto é, permitirá tanto identificar e explicar as relações entre os objetivos e os resultados alcançados no recorte específico em avaliação, quanto compreender em profundidade o significado dessas relações. Os autores do artigo consideram que a avaliação está baseada também nos conhecimentos e práticas dos profissionais e, assim, tomam em consideração os aspectos destacados acima. O trabalhador exerce e interpreta seu trabalho com autonomia profissional, visto que fundamenta suas ações em saberes técnicos e pode introduzir inovações no processo de trabalho, pois a aplicação da técnica é permeada pela intersubjetividade. Isto é, por meio do dialogo entre usuárioprofissional e entre os profissionais da equipe de saúde, o agente reconhece as necessidades de saúde dos usuários e pode inovar no que se fizer necessário. O que se quer ressaltar e parece contemplado pela proposta é que os profissionais tanto reiteram a técnica estabelecida, quanto inovam naquilo que o “estabelecido” não permite compreender/intervir, e ambas as esferas, o esperado e o efetivamente realizado, devem ser objeto e parâmetro para a avaliação. Embora não esteja diretamente referida, a utilização de técnicas de pesquisa quantitativa e qualitativa possibilita a avaliação dos processos de trabalho, tanto no que diz respeito às ações e aos resultados, quanto à interação dos sujeitos envolvidos. Retomando o primeiro aspecto da proposta e com isso finalizando estes breves comentários, a análise desse material empírico, coletado com base em distintas técnicas e fontes, requer a articulação de quadros teórico-conceituais diversos, numa perspectiva interdisciplinar da avaliação em saúde. Referências bibliográficas ALMEIDA-FILHO, N. Transdisciplinaridade e saúde coletiva. Ciência e Saúde Coletiva. v. 2, n. 1/2, p. 520, 1997. AYRES, J.R. de M. Deve-se definir transdisciplinaridade? Ciência e Saúde Coletiva. v. 2, n. ½, p. 36-38, 1997. JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. MINAYO, M.C.S. Interdisciplinaridade: Funcionalidade ou utopia? Saúde e Sociedade. v 3, n 20, p. 42-63, 1994. MORIN, E. Ciência com consciência. Lisboa: Europa-América, 1990. NUNES, E.D. A questão da interdisciplinaridade no estudo da saúde coletiva e o papel das ciências sociais. In: CANESQUI, A.M. (Org.) Dilemas e desafios das ciências sociais na saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 1995. PEDUZZI, M. Equipe multiprofissional em saúde: a interface entre trabalho e interação. Campinas, 1998. 254p. Tese (Doutorado). Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. SCHRAMM, F.R. A ética natural. Aula proferida na disciplina História e Paradigmas do Conhecimento em saúde, Pós-Graduação em saúde Coletiva/FMC/Unicamp, Campinas, 1/julho/1994 (mimeo). SPINK, M.J.P. Saúde: um campo transdisciplinar? Rev. Ter. Ocup. USP. v 3, n ½, p. 17-23, 1992.

PALAVRAS- CHAVE: Avaliação; tomada de decisão; serviços de Saúde. KEY WORDS: Evaluation; decision making; health services.

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Universidade e formação docente*

António Nóvoa é professor catedrático na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Autor de várias obras no campo da formação de professores e no domínio das Ciências da Educação, seus livros - Os professores e sua formação, Profissão professor, Vidas de professores -, editados em 1992 com a colaboração de especialistas portugueses e estrangeiros, abriram novos caminhos à reflexão e à pesquisa no campo da formação docente. Valorizando o cotidiano pedagógico e discutindo a importância que as “histórias de vida” podem adquirir nos estudos sobre os professores, a profissão docente e as práticas de ensino, António Nóvoa tem procurado despertar, nos professores, a vontade de refletir sobre os seus percursos profissionais, sobre a forma como sentem a articulação entre o profissional e o pessoal, sobre a forma como foram evoluindo ao longo da sua carreira.

* Entrevista realizada em 18 de abril de 2000 pelas professoras Miriam Celí Pimentel Porto Foresti e Maria Lúcia Toralles Pereira (Instituto de Biociências, Unesp/Botucatu), que também respondem pela edição (com colaboração de Adriana Ribeiro, Fundação Uni Botucatu).

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ENTREVISTA

Nas suas palavras, este enfoque deve-se ao fato de que ser professor obriga a opções constantes, que cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar, e que desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser. Suas idéias têm representado uma contribuição valiosa aos estudiosos da área, estimulando inúmeras investigações e estudos. Nos últimos anos, a preocupação com a formação docente vem ganhando espaço na área educacional. Na década de noventa, no quadro das mudanças sociais e tecnológicas que apresentaram novas maneiras de pensar, trabalhar e organizar o conhecimento, uma redefinição das práticas sociais tenderam a modificar os papéis sociais e profissionais, tradicionalmente atribuídos e constituídos. No campo da educação, os professores vêm sofrendo uma série de processos de mudanças. Procurando discutir e explicar esses processos, que considera fundamentais para o futuro debate da profissão docente, Nóvoa utiliza, em um de seus livros, a metáfora do jogo do bridge (já utilizada em parte por Houssaye em 1988, em Le triangle pédagogique). Nesse jogo, um dos parceiros ocupa o “lugar do morto” - embora não podendo interferir no desenrolar do jogo, nenhuma jogada pode ser feita sem atender às suas cartas. Partindo do triângulo pedagógico, que se organiza em torno de três vértices - os professores, os alunos, o saber - Nóvoa propõe que “imaginemos agora um triângulo no qual dois vértices criam uma relação privilegiada, representando o terceiro vértice o ‘lugar do morto’: está presente, tem de ser levado em consideração, mas a sua voz não é essencial para fixar o desfecho dos acontecimentos”. Com base nessa relação privilegiada entre dois vértices apresenta, de forma simplificada, três grandes modelos pedagógicos: a ligação entre professores e o saber configura uma perspectiva que privilegia o ensino e a transmissão dos conhecimentos; entre professores e alunos, valoriza os processos relacionais e formativos; e entre alunos e o saber favorece uma lógica da aprendizagem. Observando que no momento atual tem adquirido ênfase o eixo saber / alunos, afirma que os professores têm ocupado o “lugar de morto”, embora estejam presentes em todos os discursos sobre educação. António Nóvoa tem explorado problemas com os quais os professores se defrontam nos dias de hoje, assinalando aspectos fundamentais a serem considerados na análise e discussão da profissão docente. Especialmente nestes últimos anos, em que as formas de exclusão dos professores, legitimadas em processos de tecnologização, privatização e racionalização do ensino, os situam numa encruzilhada de opções e dúvidas, Nóvoa lembra que a compreensão e a discussão desse processo exige uma reflexão mais profunda, que fuja à linearidade explicativa e às simplificações, percebendo a complexidade das posições em confronto. Há muitos anos partilhando do debate brasileiro sobre formação de professores, António Nóvoa esteve mais uma vez no Brasil, em abril deste ano, para participar do I Congresso Ibero-Americano de Formação de Professores, promovido pela Universidade Federal de Santa Maria, RGS.

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ENTREVISTA

Na oportunidade retomou muitas das idéias que tem desenvolvido em seus livros, artigos e palestras e observou, citando um pedagogo francês do século XIX, que o grande drama dos educadores é passar a vida a defender certas idéias, certas teses, certas inovações e, de repente, ser obrigado a dizer: “não é bem isso o que eu queria dizer”. Referia-se ao fato de que muitas idéias produzidas, quando apropriadas por outros, em outros contextos, podem ganhar muito mas também perder muito. E esse é o drama de todos aqueles que não querem fechar o pensamento de uma forma ortodoxa. Pelo contrário, querem que seu pensamento esteja comprometido com uma postura social e política. Neste sentido, o professor Nóvoa ressaltou o papel vigilante e a responsabilidade intelectual daqueles envolvidos com a produção e a socialização do conhecimento de uma determinada área. “Essa é a nossa única esperança ... a vigilância e a consciência crítica”. Durante esse evento, em meio a inúmeras atribuições, concedeu esta entrevista à Interface. Num diálogo informal, pontuado por sua conferência na Sessão de Abertura do Congresso, António Nóvoa nos fala de universidade, formação docente e avaliação, enfatizando a necessidade do fazer reflexivo do professor universitário, mediante trabalhos de discussão com acompanhamento de grupos, visando instaurar rotinas de partilha no interior das universidades. Sinaliza para o caráter da profissão docente no ensino superior, discutindo as novas demandas e os desafios desta atividade em face das mudanças nas universidades, na relação com o conhecimento e no público, dada a heterogeneidade crescente e a tendência à diversidade de interesses. Fala, também, da educação médica, assinalando que a idéia de formação clínica, tutoria, supervisão, estará em cima da mesa de toda a universidade nas próximas décadas.

Interface: Considerando as suas colocações sobre a realidade e as perspectivas no campo da formação de professores e sobre a necessidade de garantir o espaço universitário como espaço privilegiado desta formação, “onde a pesquisa adquire todo o seu significado”, que reflexões o senhor poderia fazer especificamente sobre a configuração da profissão docente na Universidade, sobre a formação do professor universitário, também ele detentor de saberes?

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ENTREVISTA

Nóvoa: Numa avaliação geral, o que foi colocado por vocês suscita três idéias. A primeira é que está hoje o ocorrendo uma mudança, que nós não estamos conhecimento ainda a perceber bem, na idéia de não está só na “Universidade”. Nós falamos de Universidade, Universidade hoje, como falávamos há um século atrás, considerando que é mais ou menos a mesma coisa. Ora, a velocidade das mudanças no espaço universitário é enorme. Uma dessas mudanças, absolutamente essencial, é o fato de na sociedade atual os conhecimentos existirem em abundância; quer dizer, se antes a Universidade era o lugar onde os conhecimentos existiam e eram difundidos, hoje grande parte desse conhecimento já não está na Universidade. Está na Internet, nos meios de comunicação interativa, em muitos lugares, mas não está mais na Universidade, ou está apenas em parte na Universidade. Interface: E como a Universidade está enfrentando essa mudança?

Nóvoa: A Universidade continua a trabalhar fazendo de conta que é ainda a única detentora do conhecimento, o que é um absurdo. Ela tem que se reorganizar, passando de uma função de transmissora do conhecimento para funções de reconstrução, de crítica e de produção de conhecimento novo. É muito nítida a existência, hoje em dia, de algumas grandes universidades que estão a repensar o sentido das “aulas” e da “presença física” dos alunos. Os professores têm as lições disponibilizadas via “novas tecnologias de informação”, criando um acesso mais fácil por parte dos alunos. O que não é possível, por esta via, é resolver problemas da relação pedagógica, das dúvidas, da apropriação dos saberes, do trabalho crítico sobre o conhecimento. Na minha opinião, as universidades vão progressivamente conceder uma maior atenção aos processos de acompanhamento dos alunos, através de formas de orientação e tutoria, de aconselhamento e integração dos alunos em grupos de pesquisa. Será esse conjunto de atividades pedagógicas e científicas, e não as “aulas” propriamente ditas, que definirá a Universidade do futuro. Interface: Isto significa que as atividades das aulas irão desaparecer?

Nóvoa: Provavelmente, elas serão substituídas, com vantagem, por uma

Os professores terão de desenvolver tipos de relação pedagógica muito diferentes dos que existem hoje em dia. E isso vai

diversificação dos meios de acesso à informação e ao conhecimento.

obrigar os docentes do ensino universitário a mudarem uma boa parte da imagem que têm da sua própria profissão. Terão de se atualizar, de criar dispositivos de atendimento dos alunos, de fomentar a sua presença em grupos de trabalho e de reflexão, de promover a integração dos jovens em equipes científicas etc. Na minha opinião, esta é a primeira mudança geral na Universidade, que tende a transformar a função docente no contexto universitário.

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ENTREVISTA

Interface: E quanto à segunda idéia?

Nóvoa: Uma outra mudança, a meu ver tão importante quanto a primeira, é a transformação do “perfil tradicional” dos estudantes universitários. Até agora, freqüentavam a Universidade, essencialmente, jovens dos 18 aos 23-24 anos. No futuro, veremos cada vez mais pessoas com 30, 40 ou 50 anos buscando a Universidade. E

não só vai haver mudança da população estudantil, mas também do que essa população estará a fazer nas universidades. Até agora, eram jovens à procura de uma formação inicial; no futuro, serão cada vez mais adultos que procuram valorizar-se, trabalhadores que buscam uma atualização ou profissionais em formação contínua. Esta evolução é muito nítida em certos países (como, por exemplo, no Canadá), nos quais uma grande porcentagem dos alunos já não corresponde ao “perfil tradicional” do estudante universitário. Mesmo em países como Portugal, onde a renovação e expansão universitária são muito recentes, temos neste momento cerca de metade dos alunos das universidades com mais de 25 anos. Esta é uma mudança decisiva, que toca no cerne da ação pedagógica do professor universitário. Este não pode continuar a falar para um “aluno médio", para um público que ele imagina mais ou menos homogêneo, e tem de atender à crescente diversidade de perspectivas e de interesses dos estudantes. Esta é uma segunda razão que levará, certamente, a mudanças significativas da relação pedagógica no seio da Universidade. Interface: E como promover esta mudança?

a mudança não se fará tanto pela iniciativa dos próprios professores, mas antes pela adoção de novos modos de trabalho universitário. Vai Nóvoa: Esta é a terceira idéia a que eu me referi no início. Eu acredito que

ser produzida pela própria lógica de funcionamento das universidades. Ou seja, quando os alunos exigirem que o professor disponibilize as suas lições através das “novas tecnologias da informação”, ou quando os alunos procurarem formas de mobilidade entre diferentes universidades (como já acontece, em alguns casos, na Europa), ou quando os alunos buscarem inserir-se em grupos de pesquisa, quando esses processos se tornarem mais ativos... os professores vão sentir essa necessidade de transformação. O que eu quero significar é que a questão da formação docente não é puramente pedagógica ou metodológica. um novo Não basta ensinar a um professor meia dúzia de técnicas equilíbrio pedagógicas para que o problema se resolva. A questão entre ensino é muito mais vasta e remete para um novo equilíbrio e investigação entre as funções tradicionais da Universidade: o ensino e a investigação. Hoje em dia, as realidades do ensino e da investigação são muito diferentes do que eram num passado recente. E muitos professores universitários continuam a fazer de conta que nada mudou...

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ENTREVISTA

Interface: Em outras palavras...

Nóvoa: Quando o professor deslocar a atenção exclusivamente dos “saberes que ensina” para as pessoas a quem esses “saberes vão ser ensinados”, vai sentir a necessidade imperiosa de fazer uma reflexão sobre o sentido do seu trabalho. Seria necessário que esta reflexão tivesse, simultaneamente, uma dimensão individual (autoreflexão) e uma dimensão coletiva (reflexão partilhada). Acredito que é possível instaurar grupos de reflexão pedagógica, dentro das universidades, que conduzam pouco a pouco a instaurar rotinas de debate, de supervisão, de formação inter pares. Para recorrer ao exemplo das ciências médicas, temos em Portugal experiências importantes de grupos de professores que se juntaram em torno do ensino de dadas disciplinas, tendo começado a trabalhar na produção de novos materiais, com apoio de ambientes virtuais e das tecnologias da informação, recorrendo a apoios exteriores (eu próprio fui várias vezes discutir com eles aspectos pedagógicos e outros), desenvolvendo projetos de inovação e de pesquisa sobre a “aprendizagem em Medicina”, apresentando comunicações em congressos científicos e, a partir de toda essa atividade, foram integrando na sua identidade de professor universitário uma preocupação não só com os saberes, mas também com os alunos e com a maneira de trabalhar esses saberes. Esta parece-me a via adequada para provocar a formação do professor universitário. Pessoalmente,

tenho uma grande desconfiança em

relação aos cursos de Pedagogia, ou de Técnicas de Ensino, ou de Metodologias, ou de utilização de audiovisuais, ou outros quaisquer, que tendem a transformar a questão da “pedagogia universitária” numa questão de técnicas ou de métodos, esvaziando-a das suas referências culturais e científicas. Interface: Em que áreas o senhor acredita que esse processo possa ocorrer com maior facilidade?

Nóvoa: Uma das áreas, ao menos na Europa, onde há uma maior sensibilidade para esta questão é, justamente, a área de Educação Médica. Por duas ou três razões principais. A primeira prende-se ao fato de estarmos perante profissões do humano, atividades da relação, o que torna os médicos atentos às pessoas e aos seus modos de ação, de desenvolvimento e de formação. A segunda diz respeito à multiprofissionalidade que atravessa o campo da Saúde, obrigando a um diálogo constante entre práticas e profissões. Em Portugal, por exemplo, os setores da Enfermagem sempre revelaram uma grande preocupação com as questões da Pedagogia e da formação, o que se revelou benéfico para outras profissões da Saúde que acabaram por usufruir desta tradição. Finalmente, há uma terceira razão, que me parece importante: os médicos têm uma experiência única de formação clínica, que implica processos de tutoria, de acompanhamento e de supervisão que tendem a tornar-se dominantes no espaço universitário. Interface: No bojo dessa discussão sobre reformulação de modelos e pedagogias, a que o senhor também se referiu em sua conferência, ressurge, em várias áreas de formação, a idéia do aprender a aprender. Considerando a nossa responsabilidade

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intelectual de, em suas próprias palavras, “estarmos atentos ao modo como as idéias circulam e são apropriadas nos diferentes contextos”, que outras reflexões poderíamos fazer, no sentido de não desconsiderar a prática, a história e toda discussão já acumulada em torno da formação?

Nóvoa: O “aprender a aprender” foi uma idéia, um slogan, que marcou uma determinada época histórica. Quis-se dizer que têm de ser as pessoas a buscar o conhecimento, num processo contínuo de atualização, que leve cada um a adquirir os instrumentos para uma permanente renovação do saber. Este movimento teve alguma importância, chamando a atenção para a necessidade de orientar um estudo autônomo, de ter uma leitura crítica da informação, de organizar e sistematizar o saber, de buscar por si próprio o conhecimento... Interface: E qual seria o aspecto crítico da idéia do aprender a aprender, então?

Nóvoa: Nos últimos anos tem havido uma deturpação, um desvio deste conceito, que nos levaria a considerar queseria possível aprender a aprender no vazio, isto é, a aprender a aprender sem ter como matéria-prima um determinado conhecimento. Ora, eu creio que essa matéria-prima (os conhecimentos, os saberes) é um desvio no absolutamente essencial em qualquer processo de conceito aprendizagem e que não devemos valorizar os modos "aprender a de apropriação que a esqueçam. Ao dizer isto, não aprender" quero consagrar a atual estrutura dos saberes ou a organização das disciplinas. Existe, hoje em dia, uma profunda redefinição do espaço científico, que passa por uma reconstrução dos saberes e dos seus campos disciplinares. As Ciências da Saúde são, aliás, um bom exemplo desta realidade. A reflexão sobre a formação não pode ignorar este fato. Mas uma coisa é estarmos atentos a estes processos de mudança e outra, bem diferente, é alimentarmos a ilusão absurda de que se pode ensinar e aprender num vazio de saberes e de conteúdos. Interface: Dentro deste quadro, que responsabilidade se coloca para a área de formação na Universidade?

Nóvoa: Todos os que trabalhamos nesta área devemos ser capazes de identificar, com clareza, o que é verdadeiramente formador: a capacidade de compreender o saber, o modo como ele se constitui historicamente, os momentos de virada de uma determinada disciplina, as vias alternativas que poderia ter seguido

nesta compreensão do modo como os saberes se organizaram e reorganizaram que reside a essência da formação universitária. Estamos perante um processo longo, que etc. É aqui,

tem uma parte “informativa” (de aquisição dos saberes), mas que tem também uma dimensão histórica, crítica e, pelo menos na formação pós-

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graduada, uma dimensão de participação na própria produção de conhecimento científico. Interface: Mas como resolver este dilema, professor?

um do

Nóvoa: É evidente que este dilema não é de agora: é um dilema muito antigo e que continuará por muitos anos. Na introdução de um livro meu – Profissão Professor – utilizei o triângulo pedagógico, da autoria de Jean Houssaye, para discutir esta questão. Em toda a situação pedagógica há um professor, um aluno e um saber. Regra geral, dois desses pontos estão intimamente ligados, ficando o restante como “o terceiro excluído”. Nas pedagogias clássicas, o professor está ligado ao saber e o aluno outro papel pouco importa; nas pedagogias ditas inovadoras, ou não professor diretivas, o professor está ligado ao aluno e o saber tem um papel secundário... Acredito que estejamos a caminhar no sentido de privilegiar a relação entre o aluno e o saber, concedendo ao professor papel fundamental, não tanto na transmissão do saber, mas no apoio ao aluno na construção e na configuração desse saber. Interface: Gostaríamos, ainda, que o senhor comentasse um pouco sobre os debates, os conflitos e as controvérsias que estão tendo lugar na área da educação e da formação de professores, em particular na Universidade, envolvendo dispositivos de controle da vida dos professores, expressos em novas linguagens e novos modos de falar em educação: indicadores de qualidade, performance, normas, padrões de avaliação, “rankeamento”, acreditação, avaliação externa.

Nóvoa: Esta é uma questão muito difícil, pois cruza aspectos muito diversos... No plano da Universidade, cruza uma globalização que, na verdade, é sobretudo uma

O modelo das universidades norteamericanas está sendo exportado para todo o mundo, constituindo

americanização do mundo.

uma referência, por exemplo, nos debates europeus. A América do Norte tem mais de um século dessa cultura universitária, que se constrói num jogo de liberdade e de regulação (rankeamento, classificação, avaliação...). Estes procedimentos não estão explicitamente formalizados, definindo-se no interior de uma cultura que foi consolidando certas regras e práticas que têm de ser cumpridas por todos. É muito sutil e caldeado por um tempo histórico que permitiu ajustamentos e acomodações. Mas quando tentamos enxertar, em culturas universitárias e em países que têm uma história diferente, essa panóplia de regras e de instrumentos, estamos a criar problemas muito complicados. Há um artigo notável, escrito há alguns meses por um alemão, Hans Weiler, em que ele explica a passagem de uma lógica do ex ante para uma lógica ex post no funcionamento do mundo universitário. Ele faz uma crítica das novas palavras, da “nova língua”, que invade os espaços educativos e universitários: indicadores, accountability, prestação de contas, sistemas de acreditação, critérios de aferição,

Estas linguagens não são inocentes. Estão a construir, e não apenas a descrever, as nossas

medidas, performances, standards, padrões, normas etc.

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realidades universitárias. Eu admito que há a necessidade de instaurar novos dispositivos de regulação no espaço universitário, mas recuso-me a aceitar que esta “nova língua” se transforme num “língua única”. Interface: E na sua opinião, quem deveria conduzir esse processo?

Nóvoa: Eu, pessoalmente – sem dúvida por razões ideológicas -, preferiria que isso fosse feito por meio de uma lógica de Estado, que a qualidade do ensino universitário fosse assegurado por meio de entidades públicas. Não estou a falar de “organismos burocratizados”, mas antes de espaços públicos que funcionassem como dispositivos de regulação do sistema universitário. Não creio que o “mercado” possa cumprir esta função. E parece-me que a “autonomia universitária”, pela qual todos nos batemos, não consegue resolver, por si só, o problema. Neste sentido, o modelo holandês, por exemplo, parece-me bastante interessante. Em vez de um apelo à “competitividade”, há a obrigação pública de fornecer um ensino de “qualidade” em todas as instituições. Na verdade, um processo de competição, que levaria à “excelência” de certas universidades e ao “desprestígio” de outras, acabaria sempre por prejudicar gerações inteiras de alunos, com resultados sociais irreparáveis. Todos sabemos que, nessas lógicas de seleção, são sempre os alunos com capital social e cultural mais baixo que acabam por sair prejudicados... Interface: E como está ocorrendo esse processo em Portugal?

Nóvoa: O caso português é muito problemático. Nos últimos anos, houve um aumento “impressionante” do número de alunos no ensino superior. Mas este aumento fez-se à custa da “qualidade” de formação dos alunos e da abertura, muitas vezes sem as condições mínimas, de cursos e de instituições, na esfera pública e privada. Hoje, há um consenso quanto à necessidade de uma maior “avaliação” e “controle”. Um dos fenômenos mais curiosos é a importância que adquiriram as ordens profissionais: dos engenheiros, dos médicos, dos advogados, dos arquitetos... que procuram intervir na definição dos cursos respectivos. Compreende-se a sua preocupação, mas discordo em absoluto de um ensino universitário controlado pelas corporações. Como discordo de um ensino universitário controlado pelas lógicas do mercado. Durante algum tempo, alimentei a ilusão de que seria possível instaurar ad intra, no espaço de autonomia universitária, os necessários instrumentos de regulação. Hoje, os arranjos e a incapacidade de auto-reforma das instituições deixam-me menos otimista. Creio que temos de imaginar formas mais abertas e participadas de regulação, evitando as tendências corporativas e instaurando processos que valorizem as duas grandes missões da Universidade: formar pessoas e produzir cultura e ciência.

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ABRAHAM ORTELIUS (cartógrafo alemão). Europa, 1595

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A educação dos profisisonais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança ALMEIDA, M., FEUERWERKER, L., LLANOS, M. (Orgs.). São Paulo: Hucitec; Buenos Aires: Lugar Editorial; Londrina: Ed. UEL, 1999. 2v.

A formação e o trabalho dos profissionais de saúde na América Latina vêm sendo decisivamente impactados pela reorganização dos sistemas de saúde, pelas pressões para a reforma da Universidade e pelo processo de reforma e descentralização político-administrativa do Estado. Às forças comuns que respondem por um conjunto de políticas públicas “globalizadas” se contrapõe uma diversidade de respostas nos diferentes países, que se traduzem em múltiplas alternativas de conformação de modelos de organização de cuidados à saúde, de regulação de mercados de trabalho e de exercício profissional, de revisão da relevância social da Universidade e de seus processos de formação profissional, e de redefinição de atores em novas esferas de decisão em sistemas mais descentralizados de gestão com graus diversos de controle social. Assim abordadas, parecem claras para muitos de nós as relações entre o contexto acima descrito e as práticas da formação profissional em saúde. Faz sentido imaginar que todas essas condições se traduzam concretamente, em maior ou menor grau, nas práticas cotidianas das pessoas em seus espaços de trabalho - quer sejam os ambulatórios e hospitais, as faculdades e escolas das ciências da saúde - e nas relações entre os usuários dos serviços, alunos, professores e profissionais da saúde. Entretanto, ao pensar nas escolas existentes em nossos países, observamos que o que parecia tão claro se obscurece. A maior parte dos processos de formação, por estar fundamentada preponderantemente em um

modelo disciplinar centrado na racionalidade biomédica, remete alunos e professores a uma redução drástica dos processos de saúde-doença à sua dimensão biológica, dos sujeitos/pacientes à sua doença, da doença dos sujeitos ao seu substrato anátomopatológico, e do cuidado ao protocolo de medidas terapêuticas aplicáveis à nosologia em questão. Esta redução subtrai, aparentemente, da formação profissional todas as outras dimensões que permitem configurar o exercício profissional como uma prática socialmente construída, que comporta visões de mundo, intencionalidades, contradições. Para asssim fazê-lo, a organização curricular assenta-se em sólida base de disciplinas biomédicas, cujo domínio teórico é a condição para o início da formação profissional, postergada para a segunda metade do curso. De forma pretensamente neutra, defende-se que a prática no ambiente hospitalar permite a exposição aos melhores recursos de que a ciência dispõe para oferecer às pessoas, aí reduzidas, muitas vezes, a objetos de aprendizagem de alunos que nelas não reconhecem seus futuros pacientes. Em outras palavras, no cotidiano das escolas que formam profissionais da saúde é como se prevalecesse um “outro” contexto, construído e reproduzido nas enfermarias e nas salas de aula, no qual não cabem muitas das contradições do mundo de fora, do “extra-muros”. As iniciativas de reforma comprometidas com a relevância social da escola e dos processos de formação no campo da saúde

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têm historicamente procurado articular esses dois contextos aparentemente desconectados - universidade e serviços buscando ligar os espaços de formação aos diferentes cenários da vida real e de prestação de cuidados à saúde. Essa foi, por exemplo, a perspectiva central do movimento de integração docente-assistencial (IDA) que prevaleceu nos anos oitenta como estratégia relevante de mudança. Considerando a experiência acumulada nos últimos quarenta anos, particularmente no campo da educação médica, e reconhecendo a inadequação dos modelos de formação para enfrentar os desafios atuais da atenção à saúde, é formulado, no início dos anos noventa, por iniciativa da Fundação Kellogg, o Programa UNI (Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde - União com a Comunidade). Sua proposição central é que a relação de parceria entre a universidade, os serviços locais de saúde e a comunidade seja a base sobre a qual devem estar fundados os processos de transformação da educação dos profissionais e dos sistemas de saúde. Até então, esses atores estabeleciam entre si relações bilaterais, expressas pela Integração Docente-Assistencial (Universidade-Serviços), pela Extensão Universitária (UniversidadeComunidade) e pela Atenção Primária à Saúde (Serviços-Comunidade). O UNI propõe, em contraposição, articular esses três atores num sistema mais complexo e orientado para a inovação das práticas de saúde e da formação profissional. Na década de noventa, com investimentos da Fundação Kellogg da ordem de cincoenta milhões de dólares, foram desenvolvidos 23 projetos em 11 países da América Latina, envolvendo 103 cursos de graduação de 23 universidades, 23 secretarias municipais ou

coordenações regionais de saúde, serviços de diferentes níveis de complexidade e mais de 600 organizações comunitárias. Além de financiar a elaboração e o desenvolvimento dos projetos, o apoio da Fundação incluiu os recursos necessários para um cuidadoso processo de formação de lideranças, bem como de acompanhamento e avaliação das experiências. São essas experiências, olhadas sob diferentes ângulos e perspectivas, que compõem o livro A Educação dos Profissionais na América Latina - Teoria e Prática de um Movimento de Mudança, editado em dois tomos, instigantes tanto por seus conteúdos específicos como pela complementariedade que oferecem. O primeiro, Um Olhar Analítico, traz a contribuição de autores reconhecidamente comprometidos com a construção do próprio ideário UNI e de consultores externos aos projetos, que têm como objeto de investigação e prática elementos essenciais e constituintes dos processos UNI2 . Ao analisarem o percurso histórico da saúde e da educação, os autoresformuladores permitem ao leitor compreeender as bases da elaboração do UNI enquanto constructo que representa a reelaboração das experiências pregressas e a projeção de um novo referencial de ação. Suas proposições expressam um conjunto de estratégias - ajustadas às demandas contemporâneas da formação e provisão de cuidados à saúde - que reafirmam os compromissos de cidadania, de eqüidade e de justiça social, e conferem ao programa relevância crucial no contexto latinoamericano. A experiência acumulada nos oito anos de desenvolvimento do programa permite a esses autores-formuladores revisitar o

2 Achamos importante, para efeito desta resenha, diferenciar a natureza das contribuições desses dois tipos de colaboradores. Os autores-formuladores, por chamar assim, são aqui entendidos como aqueles comprometidos com a formulação do ideário e/ou a implementação dos programas institucionais da Kellogg. Os consultores externos, por sua vez, não têm vinculação com os projetos, o que lhes permite um olhar mais distanciado e, por sua expertise, uma contribuição de natureza mais teórica. Essa distinção pretende, tão somente, realçar a especificidade e a complementariedade desses dois tipos de contribuições.

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ideário e demonstrar explicitamente uma de suas virtudes, aquela que assume que o processo é de construção e de des-construção permanente. Nesse caminho, são abordados os avanços inquestionáveis alcançados, dentre os quais destacamos: a conformação dos projetos enquanto espaços de construção democrática, contando com a participação de atores até então distantes, na maioria dos casos, dos cenários de negociação criados; e a constituição de sujeitos orientados por projetos coletivos que resgatam valores como a solidariedade e a responsabilidade compartilhada. A reconstrução da proposta pelos autoresformuladores parte do reconhecimento do limitado grau de estruturação teóricoconceitual inicial e da análise de suas implicações para o desenvolvimento dos projetos. A diversidade de iniciativas, estimulada e preservada como riqueza e força do programa, requeria, por sua vez, compreensão e análise da heterogeneidade dos cenários locais e de seus problemas para a elaboração de estratégias efetivas por parte do Programa, cujo timing, retrospectivamente, parece não ter sido ajustado às necessidades. Como formuladores, reavaliam os tempos e espaços políticos para a construção da sustentabilidade e da institucionalização dos propósitos UNI e dos resultados concretos obtidos. Os consultores externos, com base em suas experiências em diferentes projetos e em suas respectivas áreas de expertise, contribuem com uma reflexão sobre conceitos-chave da proposta UNI. Iluminam, desta forma, muitas observações dos protagonistas dos diferentes projetos contidas no Tomo II e reafirmam a densidade teórica de muitas das conclusões apresentadas pelos autores-formuladores. Entre os conceitos criticados pelos consultores destaca-se o de parceria, categoria central na construção da proposta UNI. Apresentada no plano formal como substantiva, horizontal e igualitária entre os

componentes (academia, serviços e comunidade), a parceria aparece na proposta, entretanto, desprovida de seu ingrediente essencial, aquele que define, de fato, o rumo e o sentido da negociação: o poder. Ao negligenciá-lo, a proposta, na verdade, está assumindo como homogêneos cada um desses componentes, e subestimando as desigualdades de poderes e saberes entre eles e as contradições delas decorrentes. Em conseqüência, tende a subestimar as possibilidades de reprodução da hegemonia da Universidade, pretensamente anuladas pela paridade formal da representação de todos os componentes nos espaços de negociação. A realidade do desenvolvimento dos projetos, no entanto, mostrou rapidamente os limites dessa concepção, e as descrições das experiências dos projetos, contidas no segundo volume, revelam as disputas ocorridas tanto no interior da academia, dos serviços e da comunidade, como nos espaços de negociação entre eles. É interessante chamar a atenção, ademais, para o tratamento que é dado a outras questões relevantes para a análise de experiências comprometidas com as transformações das práticas em saúde. Entre elas queremos destacar: o conceito de modelo assistencial que orienta a formulação de estratégias de articulação com os serviços de saúde, particularmente relevante para o contexto brasileiro de construção do SUS e de municipalização; as concepções de trabalho com a comunidade sob as perspectivas da gestão e da parceria, principalmente por sua importância na discussão do controle social e das práticas de promoção à saúde; e os desafios, no plano educacional propriamente dito, da formação e do desenvolvimento de recursos humanos em saúde. Salientamos, ainda, o espaço privilegiado que ocupa a abordagem da avaliação enquanto ferramenta e como processo, e a ênfase dada ao detalhamento metodológico, histórico e crítico da avaliação do cluster UNI. Por fim, o enfoque integrado

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das mudanças organizacionais que tiveram lugar na academia, nos serviços de saúde e nas entidades comunitárias exemplifica com clareza como pode ser fecunda a análise dos processos de transformação das práticas em saúde quando assentados na interdisciplinariedade. O segundo tomo, As Vozes dos Protagonistas, apresenta as experiências dos diferentes projetos desenvolvidos na América Latina. Está organizado de forma a destacar, em sua primeira parte, as experiências que têm como objeto de reflexão as próprias estratégias de desenvolvimento dos projetos. A parte seguinte aglutina artigos que relatam e analisam diferentes experiências na construção das parcerias, abordando a especificidade desse processo em relação tanto às inovações na formação profissional, nas práticas de saúde, e na gestão dos serviços, quanto à criação de novos espaços de participação social em saúde. Analisado sob um outro ângulo, este tomo permite, ademais, uma fértil reflexão sobre o plano político das transformações promovidas pelos projetos UNI, no sentido de suas possibilidades e limites para influenciar as políticas públicas de educação e saúde. Ganha destaque, nesta abordagem, a discussão de redes como espaços de conformação de um novo ator social, representado pela força dos projetos UNI. No Brasil, a participação da rede UNIDA no processo de definição das diretrizes curriculares promovido pelo MEC exemplifica o potencial desta articulação. A maior riqueza desse tomo reside na polifonia e na diversidade de abordagens que a singularidade de cada projeto comporta, aí considerados os contextos específicos de seu desenvolvimento. Seria de todo impossível e fugiria ao escopo desta breve resenha analisar as contribuições dos diversos colaboradores. Chama a atenção, entretanto, no conjunto de artigos apresentados, o compromisso com a inovação e a construção de parcerias e de novas práticas nos âmbitos dos serviços, da universidade e da

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comunidade, traduzido não apenas nos relatos sobre o realizado mas, sobretudo, nos desafios e nas novas perguntas que surgiram no decorrer do processo. As palavras de um dos autores “ ....ao começar era muito difícil entender a natureza dos processos que pretendíamos modificar e com isso reconhecer a dimensão da tarefa” (p.55) anima-nos a destacar a enorme importância que a ruptura das certezas e o reconhecimento do desconhecido e da natureza dinâmica das transformações têm para a análise dessas experiências sob a perspectiva de seus sujeitos. Ao fazê-lo, os atores que trabalham por mudanças na formação profissional no campo da saúde preponderantemente biologicista, mecanicista, ahistórica - podem perceber como ela própria, ao eliminar a dimensão social de sua natureza, obstaculiza a sua compreensão e, ao mesmo tempo, o potencial que cada sujeito tem de transformá-la. Entendidas nesta dimensão de reconstrução das práticas dos sujeitos, as experiências relatadas expressam a possibilidade de construir caminhos num cenário político de fragmentação de interesses e em que se busca fazer prevalecer a idéia de que não há alternativas senão aquelas já definidas e desenhadas por macropolíticas sobre as quais nada mais podemos fazer. Expressam, sobretudo, a força das transformações possíveis nos nossos espaços cotidianos de trabalho, nos ambulatórios, nas enfermarias, nas faculdades, nas organizações da sociedade civil. Traduzem laços solidários e dão sentido à riqueza das conexões, ao poder de novas redes que mobilizam intencionalidades e vínculos. Eliana Claudia de Otero Ribeiro Professora do Laboratório de Currículo e Ensino do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. <eclaudia@unisys.com.br>


Prática profissional e Ética no contexto das políticas de saúde

O trabalho, desenvolvido em uma cidade do interior de São Paulo, constitui um estudo das práticas profissionais em saúde e sua dimensão ética, analisadas à luz das políticas liberais e de Bem-Estar Social. Conhecendo as influências dessas políticas nas práticas profissionais e na observância de princípios éticos e de preceitos legais do Sistema Único de Saúde, foram entrevistados profissionais da área com responsabilidade de elaboração da política de saúde local, coordenação de instituições de saúde e chefia de unidades ambulatoriais e unidades especializadas. Da leitura das entrevistas identificaram-se quatro núcleos temáticos: Relações entre usuários, serviços e sistema de saúde; relações entre profissionais de saúde e serviços de saúde; relações entre profissionais de saúde e usuários e relações entre profissionais de saúde e o sistema de saúde. A análise das entrevistas apontou desigualdades de acesso aos serviços da rede básica de saúde por falta de estrutura e dificuldades de acesso aos serviços de atenção secundária e terciária, especialmente em algumas áreas, explicadas por uma sobrecarga decorrente das deficiências da rede básica. As dificuldades de acesso aos serviços assistenciais, de acordo com os depoimentos, têm causado o agravamento de doenças pela impossibilidade de se proceder mais precocemente ao diagnóstico e tratamento. O número de internações hospitalares vem diminuindo nos últimos anos. O hospital universitário vem apresentando elevadas taxas de ocupação de leitos devido a uma demanda de doentes

cada vez mais graves, ficando impossibilitadas as internações por causas necessárias, porém não urgentes. Em contradição, foi apontada a existência de leitos ociosos do SUS no hospital privado conveniado. Os serviços de saúde do município estão atendendo uma demanda espontânea, de modo desarticulado e descontínuo, precariamente hierarquizado, recaindo sobre os serviços de maior complexidade a responsabilidade compensatória das deficiências de recursos dos demais. O material revela, também, iniqüidades praticadas por profissionais de saúde na concessão de privilégios quanto ao acesso a serviços diagnósticos, internações ou tempo de espera para atendimento a indivíduos “melhor posicionados socialmente” ou que têm relações de parentesco e amizade. O estudo permitiu verificar que o referencial bioético da beneficência e não maleficência pode estar comprometido: por uma política social restritiva que faz importantes limitações financeiras para a assistência à saúde; pela necessidade de seleção de pacientes aos benefícios; por critérios inadequados de seleção de pacientes; e pela precariedade das adaptações e improvisações decorrentes da escassez de recursos. Grande parte dos entrevistados fez referência à gravidade da situação atual do sistema de saúde, apontando as condições adversas enfrentadas no exercício profissional, manifestando uma percepção fatalista do sistema de saúde e uma visão

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mecanicista dos fatos. Como conseqüência, são buscadas saídas alternativas individuais, nem sempre lícitas ou éticas, para a solução dos problemas. No contexto do sistema capitalista, o confronto entre as duas políticas presentes no setor - a política de bem-estar social, exigindo garantias de direitos sociais, e a política liberal, fazendo restrições e, por

conseguinte, negando tais direitos - promove ambigüidades e contradições que atingem as dimensões éticas do trabalho profissional na saúde. Heloisa Wey Berti Mendes Dissertação de Mestrado em Saúde Coletiva, 1999 Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista

Transtornos psiquiátricos e solicitações de interconsulta psiquiátrica em hospital geral: um estudo caso-controle

A interconsulta psiquiátrica (ICP) vem sendo considerada um instrumento de pesquisa, ensino e assistência que traz vantagens e benefícios tanto para o paciente quanto para o profissional de saúde e a instituição. No entanto, a utilização deste recurso no Brasil é ainda pequena. Sabe-se que 30 a 50% dos pacientes internados em hospital geral (HG) podem apresentar uma patologia psiquiátrica, mas que apenas 1% a 12% destes são reconhecidos como tal e encaminhados para avaliação. Pretendeu-se com este trabalho caracterizar os transtornos psiquiátricos em um HG; identificar as diferenças entre pacientes encaminhados e aqueles que não o foram; verificar os motivos de solicitação de ICP e as relações da ICP com o ensino de graduação e residência médica. Para tal realizou-se um estudo caso-controle de 141 pacientes (47

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casos e 94 controles), analisando variáveis sócio-demográficas, clínicas, grau de informação quanto à doença, procedimentos diagnósticos e terapêuticos; e relacionamento estabelecido entre pacientes e equipe de saúde. Foram utilizados o Self Report Questionnaire (SRQ), o CAGE e o Brief Psychiatric Rating Scale (BPRS), além de um questionário especialmente elaborado para o estudo. Os critérios diagnósticos utilizados foram da CID-10. Observou-se que alterações de comportamento tanto com manifestações de exaltação (agitação e/ou inquietação) quanto depressivas, aumentaram a freqüência dos pedidos de ICP; 95,8% dos casos e 27,7% dos controles receberam um diagnóstico psiquiátrico; transtornos orgânicos e transtornos decorrentes do uso de álcool foram os diagnósticos mais freqüentes no grupo I


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(casos), enquanto no grupo II (controles) os transtornos de ansiedade, transtornos depressivos e transtornos decorrentes do uso de álcool prevaleceram. Houve diferença estatisticamente significante na distribuição de diagnósticos por sexo, sendo alcoolismo mais freqüente no sexo masculino e depressão no sexo feminino; diagnóstico este em pequeno número e, provavelmente, com casos não identificados. Pacientes do grupo controle estavam mais bem informados e estabeleceram relacionamentos mais adequados do que os casos, provavelmente devido à melhor condição psíquica durante a internação. A análise de regressão logística mostrou que pacientes com CAGE positivo têm 12,85 vezes mais chances de serem encaminhados para ICP; os sem ocupação 2,44 vezes mais chances da mesma ocorrência; e aqueles que não identificam seu médico, 1,48 mais chances. Ou seja,

alcoolismo e alterações cognitivas novamente foram os principais responsáveis pelo encaminhamento à ICP. O ensino do uso de instrumentos como o SRQ - que quando > 6, discriminou quem era paciente em 5,43 mais vezes - e o CAGE para alunos de graduação, podem ser úteis na formação do clínico geral. Além disso, pela descrição do quadro do paciente, levantamento de hipóteses diagnósticas e discussões conjuntas pode-se avaliar tanto a adequação do conteúdo programático da graduação quanto a residência médica. Pesquisas adicionais deverão ser feitas para avaliar de que maneira o serviço de ICP implantado melhorou as habilidades de diagnóstico e tratamento de transtornos psiquiátricos no hospital geral investigado. Sumaia Inaty Smaira Tese de Doutorado, 1999 Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

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Educação ambiental e paradigmas de interpretação da realidade: tendências reveladas

Partindo da necessidade de compreender as referências teóricas que fundamentam as práticas de formação dos educadores ambientais nos cursos de graduação de Instituições de Ensino Superior, este estudo definiu, para investigação, as representações dos professores dos cursos de Biologia, Química e Geografia das universidades públicas do Estado de São Paulo, analisadas a partir de entrevistas realizadas com os professores que desenvolvem as atividades de formação desses educadores. Para compreender as referências teóricas da educação ambiental desses professores, adotou-se o materialismo histórico-dialético como referencial metodológico, tomando como categorias-sínteses para análise as representações da relação homem-natureza e as da educação. As reflexões empreendidas demonstraram concepções que revelam, tendencialmente, um quadro teórico cujo núcleo de representações pode ser organizado em tendência natural, tendência racional e tendência histórica, determinadas segundo as trajetórias acadêmicoprofissionais desses professores. As concepções identificadas como tendência natural representam a relação homemnatureza pela idéia de que a posição do homem no ambiente é definida pela própria natureza e de que a educação, em particular a ambiental, tem como função reintegrar o homem à natureza e, por conseqüência,

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adaptá-lo à sociedade. Na tendência racional estão discutidas as concepções que entendem que o homem tem domínio sobre a natureza pela razão instrumental, e que o papel da educação e da educação ambiental esgota-se na transmissão/aquisição de conhecimentos técnico-científicos que também são considerados como princípio da organização da sociedade. A tendência histórica é caracterizada pela idéia de que a relação homem-natureza é construída pela história social; a educação, em particular na sua dimensão ambiental, tem como função instrumentalizar os sujeitos para uma prática social ecológica e democrática. As análises sobre as formulações teóricas dos professores entrevistados apresentaram indicadores que permitem afirmar que a formação dos educadores ambientais nos cursos de graduação vive um movimento de transição de paradigmas de interpretação da realidade. O principal constituinte e indicador desse movimento diz respeito às idéias de trabalho interdisciplinar. Dessa forma, emergem deste estudo algumas diretrizes teórico-metodológicas para a organização da formação dos educadores ambientais nos cursos de graduação.

Marília Menezes Freitas de Campos Tese de Doutorado, 2000 Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Unicamp


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Mulheres e homens alcoolistas: um estudo comparativo de fatores sociais, familiares e de evolução

O alcoolismo afeta cerca de 5% das mulheres e 15% dos homens na população brasileira acima de 15 anos de idade e na maioria dos países ocidentais. Apesar de os estudos enfocarem predominantemente o alcoolismo masculino, pesquisas têm mostrado mudança na proporção de ocorrência de alcoolismo em homens e mulheres, em uma variação de 14:1 até 2:1. Segundo alguns autores, as razões levantadas para tentar explicar as diferenças no padrão de ingestão entre homens e mulheres se baseariam nos seguintes fatores: os homens começam a beber com menor idade; há uma repressão social e cultural para que as mulheres não bebam em excesso (uso nocivo ou problemático); mesmo aquelas que costumam beber em excesso, procuram esconder esse fato; há diferenças orgânicas importantes como: peso corporal menor, maior quantidade de tecido adiposo, menor massa muscular e menor volume de água corpórea, menor quantidade de enzimas metabolizadoras de álcool, além de outras variações no metabolismo e as flutuações hormonais (tanto próprias das funções fisiológicas reprodutivas, como decorrentes da ingestão de anticoncepcionais e/ou das terapias de reposição hormonal). A literatura discute o efeito de atitudes culturais tolerantes, que fazem do “beber” ou consumir drogas uma conduta ligada ao sexo masculino. Considera, de forma pertinente, que normas, valores, atitudes e expectativas podem ser tão ou mais importantes que as diferenças biológicas entre os sexos, para diminuir o padrão de consumo e suas conseqüências. As mulheres estariam

ingerindo bebidas alcóolicas por um período igual ao dos homens ao longo da história e, em certas culturas, tão freqüentemente quanto eles. Destaca, portanto, a necessidade de ampliar o enfoque transcultural para compreender melhor os diversos papéis da mulher frente ao álcool. Esse estudo descreveu, analisou e comparou o perfil de pacientes alcoolistas, com base no gênero e segundo variáveis sócio-demográficas e econômicas, história do uso de álcool, relacionamento familiar e evolução dos pacientes que procuraram tratamento. Para tanto contou-se com 171 alcoolistas, 114 homens e 57 mulheres inscritos no Programa de Alcoolismo do Ambulatório de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP, no período de 1990-94. Utilizou-se para a coleta dos dados, um questionário semi-estruturado e um instrumento padronizado para avaliação da gravidade da Síndrome de Dependência do Álcool - “Short Alcohol Dependence Data” SADD. Quanto às características sóciodemográficas, 56,1% das mulheres e 57,0% dos homens tinham entre 30 e 44 anos; 21,1% das mulheres e 6,1% dos homens eram analfabetos, com renda familiar entre dois a três salários mínimos (57,4% das mulheres e 46,3% dos homens). Os principais resultados mostraram que embora a maioria residisse com familiares, a estrutura familiar estava comprometida, com relacionamento difícil (55,6% das mulheres e 65,7% dos homens). A violência familiar foi detectada em 74,1% das mulheres e 61,1% dos homens. O agressor, na maioria das vezes, era um familiar (o cônjuge) em 42,9% das mulheres

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e 29,6% dos homens. Em relação ao uso de álcool, as mulheres iniciaram a ingestão mais tarde que os homens, em geral com seus cônjuges, enquanto estes o fizeram mais cedo sozinhos (79,8%). Não houve diferença de evolução ao tratamento entre os gêneros. O principal fator determinante da melhor resposta ao tratamento foi o nível de gravidade de dependência: dependentes leves e moderados apresentaram mais chances de melhorar do que quem o iniciou com dependência grave. Maria Odete Simão Dissertação de Mestrado, 1999 Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

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Workshop: mapeamento de projetos de pesquisa e de intervenção sobre recursos humanos em saúde, no âmbito nacional* Marina Peduzzi1 Lilia Blima Schraiber 2

Observa-se um amplo leque de questões sobre recursos humanos em saúde (RHS), que faz interface imediata com distintos aspectos do cotidiano dos serviços: a formação dos profissionais, sua incorporação aos serviços, o planejamento em saúde, o gerenciamento e avaliação dos serviços, a organização do trabalho, o modelo de atenção e outros. No entanto, situar-se na interface entre múltiplos aspectos complexos acarreta ambigüidade no trato da questão, pois, por um lado, os RHS são reconhecidos como fator estratégico para o sucesso dos resultados na prestação de serviços de saúde e, por outro lado, são diluídos entre uma infinidade de fatores, retirando-lhe a visibilidade necessária para investimentos permanentes, seja no exercício cotidiano do trabalho, seja na formação ou na investigação. Já se percorreu, no Brasil, uma trajetória respeitável no debate sobre os problemas da formação e da utilização dos RHS. Esses problemas são acarretados, dentre outros fatores, pela ausência de articulação

específica para buscar tal integração entre as esferas da educação e do trabalho, embora estas apresentem conexões e interdependências de várias ordens, enquanto práticas sociais. Os referidos problemas também são acarretados por certos descolamentos de ambas as esferas – educação e trabalho em saúde – em relação às necessidades de saúde da população brasileira, descolamentos já dados pelo modo tecnológico de apreender tais necessidades para a ação do trabalho e para uma formação de mesma direcionalidade. As dificuldades encontradas tanto na capacitação quanto na efetiva inserção dos profissionais nos serviços, estão também expressas na pesquisa sobre a temática, pois as peculiaridades do objeto e seus contextos, quais sejam, os processos de trabalho, a organização dos serviços e as políticas de saúde, de educação, de ciência e de tecnologia, interferem imediatamente seja no ensino, no trabalho ou na investigação. A pesquisa sobre recursos humanos em saúde conta com importantes contribuições

* Este evento fez parte do programa de atividades do Professor Visitante Gilles Dussault, realizado com auxílio financeiro da FAPESP/ Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. São Paulo, 02 a 10 de maio de 2000. 1

Professora do Departamento de Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. <marinape@usp.br>

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Professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. <liliabli@usp.br>

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desde os anos sessenta e setenta, embora seja da década de oitenta o início do esforço por institucionalizar a investigação nessa área, particularmente com base no apoio empreendido pela Organização PanAmericana da Saúde, Ministério da Saúde, FINEP e outras agências. Foi com a finalidade de atualizar e aprofundar esta discussão, que se realizou o Workshop: Mapeamento de Projetos de Pesquisa e de Intervenção sobre Recursos Humanos em Saúde, no Âmbito Nacional, na Escola de Enfermagem da USP, em parceria com o Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. O Workshop contou com a participação do Professor Visitante Gilles Dussault, da Universidade de Montreal, Canadá, experiente pesquisador na área de recursos humanos em saúde. Também contou com a participação de representantes de outros dezoito grupos/instituições comprometidos e atuantes, de diversas maneiras, com a área de RHS. Sabendo-se que a pesquisa, nesta área, está, por vezes, diretamente associada a projetos de intervenção – na formação, na organização dos serviços, na formulação e implementação de políticas, optou-se por debater articuladamente os projetos de pesquisa e de intervenção. Gilles Dussault apresentou um quadro de análise das políticas de recursos humanos e de reforma do setor saúde, com destaque para o diagnóstico e as estratégias de gestão de RHS, contribuindo tanto com o referencial teórico-conceitual, quanto com um instrumental de intervenção nas práticas. Nesse sentido, assinala mudanças necessárias no tocante aos RHS, que serão, no nosso entender, viabilizadas por esforços de intervenção e pesquisa, mutuamente potencializados, em contextos ético-políticos favoráveis à oferta de serviços de qualidade e acesso universal: planejamento do estoque de RHS, incentivos para corrigir desequilíbrios, modernização da educação, formalização da educação continuada, garantia de qualidade, profissionalização da gestão e melhoria das

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condições de trabalho. Com base nas reflexões e propostas produzidas pelo trabalho dos integrantes da oficina, considerou-se que para consolidar um sistema de saúde que garanta eqüidade, universalidade, eficiência, eficácia, controle de gastos e satisfação dos usuários e trabalhadores, devem-se implementar mudanças nas práticas de saúde que tomem em conta diretamente os RHS e sua questões e não apenas o profissional como parte do contexto das condições de trabalho ou do mercado de trabalho, ou ainda, produto do processo de transmissão/aquisição de conhecimentos científicos e/ ou saberes profissionais. Assim sendo, faz-se necessário analisar quais elementos do processo de formação ou/e da organização de serviços têm maior potencial para mobilizar as pessoas a mudarem suas práticas e quais os contextos favoráveis a essas mudanças. Assim como investigar as repercussões acarretadas pela introdução de novos saberes e novas tecnologias nas particularidades do concreto cotidiano dos processos de trabalho de cada área profissional, no trabalho em equipe, no modelo de atenção à saúde, nos custos e no desenvolvimento de RHS. Quanto a este aspecto ficaram evidentes, mais uma vez, as peculiaridades da formação e da inserção nos processos de trabalho, dos profissionais de diferentes níveis de escolaridade, e a necessidade de problematização da questão do conhecimento científico no nível médio. Os projetos apresentados mostram a complexidade dos recursos humanos quando tomados como objeto de reflexão e/ou intervenção, dada sua imediata interface com outros aspectos das práticas e a, então, intrínseca, interdisciplinaridade, multiprofissionalidade e intersetorialidade do objeto. Quanto à produção teórica na área, as discussões resultaram, sinteticamente, em um quadro que mostra, nos anos sessenta e setenta, a predominância de estudos sobre formação universitária e a introdução da abordagem histórico-estrutural; nos anos


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oitenta, a consolidação da linha de pesquisa sobre força de trabalho em saúde, num recorte metodológico quantitativo, embora a categoria de análise seja originária das ciências sociais e, nos anos noventa, o predomínio dos estudos de abordagem qualitativa. Embora, no Brasil, esteja consolidada uma tradição de pesquisa sobre RHS, com uma extensa literatura tanto na vertente quantitativa, quanto na linha qualitativa, discutiu-se a dificuldade de relacionar os resultados de ambos os tipos de estudo e o prejuízo que isto representa para as intervenções. Nesse sentido, destacou-se o desenho de pesquisa quanti-quali como alternativa metodológica. Todavia, há que se considerar que a escolha da metodologia ocorre em função das perguntas colocadas à pesquisa e dos problemas a serem investigados, bem como da necessidade de garantir a confiabilidade das informações e a validade das conclusões produzidas com a investigação. Os estudos qualitativos permitem compreender fenômenos complexos, e em especial aqueles que envolvam a dimensão subjetiva e os valores como parte do objeto a ser estudado, o que leva a possibilidades de generalização de caráter próprio a essa forma de apreensão do real: menos que uma inferência para a norma geral de comportamento regular e idêntico e mais como genericidade de experiência humana com toda a diversidade e irregularidade que isto implica, seus resultados guiam o conhecimento dos acontecidos para iluminar exatamente a gama das possibilidades e o espectro das potencialidades, no que se refere aos comportamentos dos profissionais em seus trabalhos cotidianos. Dada a complexidade de cada realidade, não será tarefa fácil generalizar as conclusões dos estudos na área de RHS; no entanto, as pesquisas qualitativas devem demonstrar a validade de seus resultados com base, sobretudo, na coerência das premissas frente às perguntas colocadas e na consistência do quadro teórico adotado.

Fica assim, mais uma vez destacada a importância dos elos entre a dimensão da intervenção e da pesquisa em RHS, pois que a primeira é fonte inspiradora e destino da segunda e a investigação científica, quando conduzida com sucesso, pode conferir qualidade à formação, à organização e produção de serviços de saúde. No tocante aos encaminhamentos ficou registrada a riqueza da articulação dos projetos em rede, e o destaque para alguns fatores decisivos na manutenção dessa articulação, no Brasil, isto é, o movimento da Reforma Sanitária Brasileira; o desenvolvimento de um sentido de “pertencer” à Rede; a percepção da necessidade e importância de um projeto comum de intervenção; a organização político-administrativa que permite interlocução entre as esferas federal, estadual e municipal; a capacidade instalada, seja de universidades, seja de serviços de saúde; e as várias instâncias criadas no interior do campo da Saúde Coletiva que fortaleceram os elos e o diálogo, possibilitando associações múltiplas, com as questões de RHS como um dos eixos propícios a articulações (CEBES, ABRASCO, CADRHUS, Programa UNI, Rede IDA-Brasil atualmente Rede UNIDA, outros). Os projetos apresentados permitiram, parcialmente, o mapeamento, ou seja, a descrição do território dos estudos/ intervenções sobre RHS e a localização de pontos de interesse nesse cenário. O marco referencial trazido por Gilles Dussault possibilitou uma definição das fronteiras e dos componentes desse território que, articulado a outros quadros referenciais, permitirá maior clareza no recorte dos objetos de estudo e intervenção, e nas abordagens pertinentes. Com base nesse trabalho os participantes do Workshop colocaram-se de acordo quanto a necessidade de dar prosseguimento ao mapeamento, de modo a torná-lo o mais completo possível, bem como da análise sobre “o que já foi feito e o que resta por fazer na construção do

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território dos RHS”, com a finalidade de que os esforços sejam realizados na direção das lacunas existentes e da implementação das mudanças necessárias nas práticas de saúde e, especificamente, em recursos humanos. Com este diagnóstico optou-se pela elaboração e execução de um projeto de pesquisa inter-institucional, de âmbito nacional, para o completo mapeamento de projetos na área, com o objetivo de reconhecimento das tendências e alternativas mais eficazes, tanto no que diz respeito à

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investigação quanto à intervenção nos serviços de saúde, subsidiando políticas no setor. As contribuições dos grupos/ instituições mostraram peculiaridades nas temáticas e abordagens e confirmaram a necessidade de conhecer e compreender melhor as distinções, aproximações e interseções existentes, com vistas a uma articulação dessa produção. Aproveitando a riqueza da experiência de articulação de projetos, em rede, da REDE UNIDA, esta foi, desde já, escolhida como locus de integração da pesquisa a ser desenvolvida.


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Docência Universitária e Inovação: primeiro congresso internacional Maria Lúcia Toralles Pereira1 Miriam Celí Pimentel Porto Foresti2 Reinaldo Ayer de Oliveira3

Aconteceu em junho, na cidade de Barcelona, Espanha, o I Congreso Internacional Docencia Universitaria e Inovación, organizado por três universidades públicas: Universidade de Barcelona, Universidade Autônoma de Barcelona e Universidade Politécnica de Barcelona. Trazendo questões atuais que desafiam de forma crescente o ensino universitário no cenário latino-americano e europeu em tempos marcados pela presença da avaliação externa e pelo discurso da qualidade na perspectiva da excelência docente, o evento constituiu um fórum de debates incluindo atividades diversificadas: conferências magnas, proferidas por profissionais reconhecidos internacionalmente no campo do ensino superior e da pesquisa sobre docência universitária; palestras e mesas-redondas com professores de universidades catalãs; e apresentação de mais de duzentos trabalhos em Seções de Comunicação. Com mais de quinhentos participantes e organizado a partir de nove temas, o congresso trouxe para o centro do debate idéias e reflexões sobre organização institucional, avaliação, motivação, formação do professor universitário, inovações tecnológicas, aprendizagem ativa, intercâmbio de professores, práticas em empresas e perfil dos estudantes do princípio do século XXI. Abrindo o Congresso, o Professor Graham Gibbs, pesquisador da Open University, Inglaterra, com reconhecida experiência na área da docência universitária, proferiu a conferência Perspectivas internacionais do uso da avaliação para melhorar o ensino na universidade, abordando a questão da qualidade do ensino e refletindo sobre as mudanças ocorridas nas universidades com a chegada dos sistemas avaliativos. Em sua apresentação, ponderou que, se até pouco tempo a competência docente era definida quase exclusivamente pela competência no campo científico, hoje já se reconhece que a excelência na pesquisa não significa excelência no ensino. Ainda que esta discussão exija uma cuidadosa análise no contexto das orientações dos agentes econômicos internacionais, que visam adequar os sistemas educacionais e os profissionais do ensino às necessidades de produção e de circulação do mercado mundial, este fato demanda processos de avaliação diferentes e preocupações específicas com a formação do professor universitário.

Professores da Universidade Estadual Paulista, Unesp/Botucatu. <toralles@ibb.unesp.br>; <mforesti@ibb.unesp.br>; <ayer@fmb.unesp.br> 1, 2, 3

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Numa análise do contexto social e tecnológico, Joan Majó, ex-ministro do Governo da Espanha, enfatizou os desafios da sociedade atual na perspectiva de um equilíbrio ecológico, social, cultural e econômico. Defendendo a substituição progressiva dos recursos materiais pelo acesso à informação mediante o uso das novas tecnologias, disse que o segredo para este desenvolvimento equilibrado é perceber que o bem estar hoje é muito mais uma questão de acesso ao conhecimento do que de posse de um bem. Discutiu a troca de bem material por virtual, fazendo uma analogia de suas idéias com um exemplo do cotidiano: cada pessoa não precisa carregar um relógio para medir o tempo, precisa realmente saber a hora, o que implica acesso à informação e às tecnologias adequadas à apreensão do tempo. Estas mudanças, pontuadas pela consolidação da sociedade informacional, na qual o conhecimento assume um papel estratégico, criam novas necessidades, exigindo outras posturas daqueles que são os responsáveis pela formação, na Universidade, dos profissionais que atuarão no século XXI. O conjunto das demais atividades criou as condições para o debate produtivo das idéias veiculadas, intensificado durante as Seções de Comunicação. Os temas motivação, avaliação e aprendizagem ativa geraram grande interesse dos participantes. A discussão sobre aprendizagem ativa, abordando a necessária participação do aluno em seu processo de aprendizagem, antiga e também bastante debatida no Brasil nos últimos anos, recebeu a atenção dos participantes, trazendo experiências significativas e variadas, apoiadas em reflexões teóricas inscritas no bojo das teorias construtivistas da aprendizagem. Sem negar o papel histórico da aula magistral, mas questionando seu uso abusivo e quase exclusivo nos cursos universitários de diferentes áreas, a tônica dos debates apontou para a necessidade de criar espaços de ampla comunicação entre professores e alunos e de se incluirem entre os procedimentos de ensino o diálogo, a tutoria, o estudo de caso, a resolução de problemas, a simulação etc. Facilitando a participação dos alunos pelo trabalho em pequenos grupos, tais estratégias favorecem a sua autonomia intelectual e a postura crítica no processo de aprendizagem. Finalizando o evento, o professor Kenneth Zeichner, da Universidade de Wisconsin, USA, trouxe para o centro da discussão a pertinência da pesquisaação para trabalhar o desenvolvimento profissional do professor universitário. Ressaltou a importância de uma postura investigativa sobre a própria prática, a partir de grupos de discussão de professores. Ao finalizar suas reflexões, apontou a obra de Paulo Freire como um marco da pesquisa-ação crítica, citando ainda como exemplo de pesquisa-ação a ser conhecido, a recente pesquisa da brasileira Elvira de Souza Lima, trabalhando com professores rurais comprometidos com um projeto de formação docente. Orientado pelos objetivos de contribuir para a melhoria da qualidade da docência universitária nas universidades e favorecer o intercâmbio entre universidades em termos da discussão sobre inovação e qualidade do ensino, o Congresso representou um importante fórum de debate e discussão de idéias, soluções, perspectivas. No momento atual em que a inovação, no campo da educação superior, tende a ser pensada a partir de fluxos de nformações numa rede de cooperação universitária, o evento abriu espaço para o intercâmbio de experiências entre pesquisadores de diferentes áreas e países, cumprindo o papel de sensibilizar e mobilizar docentes universitários para o problema do ensino e sua necessária articulação com a pesquisa, criando atitudes para uma reflexão crítica sobre o papel da universidade no século XXI.

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Acreditação Institucional e Certificação Profissional: seminário da Cinaem Hêider A. Pinto1 Reinaldo Ayer de Oliveira2

há tempo a perder: entidades e escolas No primeiro fim de semana de maio do ano médicas devem, urgentemente, aprofundar 2000, a Cinaem (Comissão o debate. Interinstitucional Nacional Os dez anos do movimento Os temas propostos geraram, ao longo do de Avaliação do Ensino geraram uma nova cultura Seminário, polêmicas em várias direções, Médico) mais uma vez instituinte na educação médica especialmente no que se referiu a amplia e avança: realiza, com vocabulário, valores, mecanismos de classificação institucional e em São Paulo, um saberes e entendimentos regulamentação profissional. Trouxeram à seminário internacional inovadores e comprometidos tona discussões complexas e controvertidas para debater Acreditação com a transformação; que vão, de um recorte simplista que Institucional e Certificação produzindo qualificado considera um sistema de acreditação Profissional e envolve, diagnóstico da educação organizado sobre uma lógica excludente, nessa discussão, mais de médica; e possibilitando a competitiva, lucrativa e orientada para cincoenta escolas médicas, construção coletiva das responder ao mercado a concepções todos os conselhos diretrizes para a docência segundo uma ótica includente, eqüânime, regionais de medicina, médica, o sistema de cooperativa, solidária, formativa, mais de vinte sindicatos avaliação, a gestão da escola e democrática, que objetiva a construção de médicos, entidades o processo de formação um aparelho formador que responda às representativas da área necessárias para a produção necessidades do sistema de saúde e da associativa da medicina, de uma escola médica de população. Possibilitar um debate estudantes e qualidade no entendimento dos democrático e coletivo como o que foi visto representantes das 11 atores que deram vida ao durante o Seminário mostra maturidade e entidades que compõem a processo. afirmação do movimento de transformação Cinaem. da educação médica orientado pela Cinaem. O seminário foi organizado Os desdobramentos deste Seminário como espaço de debate entre os prometem inaugurar uma unidade de conhecimentos (saberes) sobre a acreditação políticas e objetivos entre as entidades que e certificação e as posições dos participantes formam este corpo, respeitando as (práticas), temas tão pertinentes na evolução singularidades, atribuições e motivações de do projeto da Cinaem e já objetos de estudos cada uma. Para um caminhar solidário e e proposições em vários fóruns responsável é necessário que a discussão seja internacionais. Uma vez que a repercussão agendada nacionalmente, tomando-se o dessas discussões afetará os destinos da cuidado de não afastar um importante escola médica e da atividade profissional na parceiro: o Estado. América Latina, especialmente no Brasil, não

Coordenador Geral da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina, DENEM/Movimento em Defesa da Vida; vicepresidente da Cinaem. <heiderap@hotmail.com> Conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp); Professor da Faculdade de Medicina de Botucatu/ Unesp. <ayer@fmb.unespbr>

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Simpósio sobre Educação Médica: uma experiência na Faculdade de Medicina de Botucatu Juliana Maria Gera Abrão; Tatiana Cristina Miranda de Oliveira; Silvia Pereira Gulart; Liana Cunha Pupo; Enoch Quimberé de Sá Barreto; Samuel de Moraes Ielo; Caio Roberto Schwasty de Siqueira; Leonardo Tagliari de Ângelo1

Aconteceu, em abril deste ano, o I Simpósio sobre Educação Médica da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), organizado pelos alunos do Centro Acadêmico Pirajá da Silva (CAPS) desta Faculdade. A iniciativa surgiu da necessidade identificada pelos estudantes de realizar, dentro da Faculdade em que estudam, debates sobre Educação Médica em geral, como os que vêm acontecendo já há alguns anos em âmbito nacional (nos Congressos, Encontros, Oficinas). O evento teve o intuito de despertar o interesse e tornar mais amplo o conhecimento da comunidade acadêmica acerca do assunto e, também, criar e desenvolver discussões sobre Ensino Médico entre alunos, docentes e administradores da Faculdade, num espaço compartilhado e aberto a todos. A promoção do evento ainda teve por finalidade ampliar os debates sobre o curso de Medicina da FMB e as transformações que nele já estão ocorrendo, analisando-as frente

às mudanças didático–pedagógicas, estruturais e ideológicas propostas para a formação de médicos mais preparados para a atuação profissional no contexto social em que estão envolvidos. A programação trouxe à tona temas gerais sobre Ensino Médico e outros específicos à realidade vivida no curso de Medicina da FMB. O evento começou por refletir sobre o sentido da palavra “ensinar” de maneira a permitir a construção de conceitos referentes a métodos, proposições e posicionamentos em relação aos resultados do ensino médico atual. A discussão sobre “Reumanização do Ensino Médico” abordou o direcionamento dado à prática médica nos dias de hoje face aos avanços tecnológicos, às condições do Sistema de Saúde vigente no país e às cobranças e competições existentes no mercado de trabalho. O “PBL” (Problem Based Learning) e o “Currículo Nuclear” também foram temas de reflexão do

Alunos da Faculdade de Medicina de Botucatu; Departamento de Educação em Saúde do Centro Acadêmico Pirajá da Silva (CAPS), FMB/Unesp. <camed@uol.com.br>

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universitária. Dos cerca de 540 alunos e trezentos docentes existentes na FMB, 130 compareceram e participaram do evento, dos quais 2/3 eram estudantes. Embora não diminua a importância da realização do evento, a ausência de grande parte da comunidade acadêmica explicita parte das dificuldades enfrentadas neste momento de transição do modelo curricular do curso médico da FMB, em que a discussão do coletivo e a busca de respostas e construções novas se fazem necessárias. Com essa iniciativa, os alunos do CAPS criam um espaço próprio e legítimo para discutir sua formação. Elogiado pelos participantes, o Seminário alcançou resultados positivos, no sentido de ampliar o repasse de informação e as discussões sobre assuntos antes restritos a reuniões dos órgãos colegiados da FMB; identificar docentes e discentes engajados na proposta de transformar o ensino médico; levantar os entraves que impedem as mudanças; possibilitar a alunos, docentes e representantes do Conselho de Curso de Graduação em Medicina, criarem coletivamente propostas de melhoria para o ensino na FMB. Ao final, algumas ações foram propostas, como: iniciar um núcleo de ensino médico na FMB; promover avaliações periódicas do curso, de modo a detectar suas deficiências e analisar os resultados de possíveis mudanças; realizar outros encontros semelhantes e dar continuidade a tais debates nas reuniões do CAPS, dos departamentos e dos órgãos colegiados da FMB.

ica. utomát sagem a n e M , T SCHMID

Seminário, trazendo discussões e debates que proporcionaram compreender melhor o rumo dado ao curso da FMB desde a mudança curricular ocorrida em 1996. Com o tema “Mudança Curricular na FMB”, a atenção do debate centrou-se na problemática concreta vivida nesta Faculdade, começando por apresentar dados levantados e analisados pelos estudantes do CAPS acerca do grau de conhecimento em relação ao PBL dos alunos que estudam sob a nova proposta curricular. Para aprofundar os elementos do debate, aconteceram a exposição sobre “Regime Seriado”, no qual se pauta o curso de Medicina da FMB, e a apresentação sobre pontuais mudanças desenvolvidas no curso de Saúde Pública. Esses temas embasaram as discussões que se seguiram sobre a mudança curricular, considerando seus motivos, suas formas de construção, principais diferenças em comparação ao currículo antigo, falhas, virtudes e possíveis razões para as dificuldades enfrentadas. O “Internato na Graduação Médica” teve um espaço especial, devido ao fato de, no momento, os estudantes terem iniciado diversos questionamentos referentes aos cursos de 5º e 6º anos na FMB. O tema fechou o evento, trazendo argumentos e críticas concretas sobre a formulação do Internato (excessiva carga horária), seus objetivos (especialização), a função do interno dentro do hospital e o compromisso da instituição com o ensino - questões já apontadas em outros espaços da vida

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O Movimento Estudantil de Medicina e a transformação da Escola Médica Hêider A. Pinto1

A luta do Movimento Estudantil de Medicina (MEM) para a transformação da escola médica é antiga e já teve diferentes alicerces conceituais. Hoje, imbricada em um movimento pela transformação da educação médica, assume novos contornos e se realiza em diversos espaços cada vez mais amplos dos concebidos inicialmente. Se traçarmos um paralelo a partir do movimento estudantil podemos perceber como foi o envolvimento cada vez maior de diversos atores que se somaram a um processo que ainda se amplia e que caminha a passos largos para a hegemonia. Desde muito o MEM coloca como tema de reflexão-atuação privilegiado a transformação da educação médica. Esta transformação sempre foi pensada no sentido de adequar-se às necessidades sociais e à construção de um sistema de saúde integral, com controle social e acesso universal, gratuito e orientado para responder à luta pela qualidade de vida da sociedade. Na década de oitenta, mais especificamente após 86 (ano de criação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina, DENEM), o MEM fez uma opção clara de se qualificar tecnicamente sobre o tema, educação médica, a fim de acumular poder para pressionar um movimento de transformação da escola médica. Havia uma

certa resistência, por parte de alguns grupos, em aceitar a necessidade de aprofundamento teórico sobre o tema como sendo papel do movimento estudantil. Esses grupos defendiam que o MEM deveria ser um ator de pressão social e não formulador de projetos e modelos, muito combativo e pouco propositivo, além de não considerarem estratégica uma luta setorial dentro de um projeto de transformação maior da sociedade. Nos primeiros anos da DENEM os Encontros Científicos dos Estudantes de Medicina (ECEM’s) foram espaços importantes de envolvimento dos estudantes na discussão sobre o sistema de saúde vigente, do modelo hegemônico das escolas médicas e da relação e falta de integração entre estes dois. Em dois anos de sucessivos encontros da DENEM, foram problematizados temas e construídas propostas alternativas aos mesmos, sendo formulada a Proposta de Transformação do Ensino Médico (PTEM), aprovada por unanimidade em um ECEM. Munidos de uma proposta alternativa, os CA’s e DA’s de Medicina de todo o país pautam esta discussão nas escolas e forçam uma tomada de posição dos outros atores que compõem este espaço: professores e funcionários técnico-administrativos. A

Aluno do sétimo período do curso de Medicina da Universidade do Pernambuco; Coordenador Geral da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina, DENEM/Movimento em Defesa da Vida. <heiderap@hotmail.com>

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capacidade de envolvimento de estudantes em torno desta luta foi maior do que o inicialmente esperado. Isto pode ser explicado, entre outras razões, pelo fato de este debate manter uma imbricada conexão entre uma luta social mais geral e o cotidiano de todos os estudantes (todos vivenciam, têm entendimentos, anseios e angústias em relação ao tema). Entretanto, a capacidade de envolvimento dos estudantes que não militavam na DENEM mostrou ter limites. O movimento cresceu, porém não o suficiente para propiciar uma correlação de forças que tensionasse e impulsionasse a transformação. Apesar da DENEM contar com uma estrutura democrática horizontalizada em que as demandas que orientam as ações da entidade são levantadas pelos próprios estudantes, nas avaliações constatou-se que a agenda do estudante não militante era diferente da agenda prioritária do movimento. Esta agenda em grande parte era pautada pela escola, daí surgindo uma constatação fundamental da DENEM no início da década de noventa: além de responder a tantas outras necessidades, a transformação da escola médica era também fundamental para o próprio fortalecimento da DENEM. A escola médica e a sociedade trabalham, geram e circulam insuficientemente valores como solidariedade, eqüidade, justiça, liberdade, democracia, crítica, esperança, auto-estima, entre tantos outros, fundamentais para a valorização e o engajamento do estudante no movimento estudantil. Entender a escola médica como importante espaço-processo de formação dos indivíduos - construtor de referências, significados e valores, gerador de demandas e produtor de modos de subjetivação – foi fundamental para explicar a força com que a DENEM entrou na luta para a almejada “revolução” da educação e escola médica. Na década de noventa, com outra estrutura e já atendendo pelo título “movimento em defesa da vida”, a DENEM

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compreende que para que fosse desencadeado um processo legítimo, sólido, qualificado e efetivo de transformação deveria haver um envolvimento, no debate e na construção, de toda a comunidade acadêmica. Era preciso que este projeto fosse do coletivo da escola, portanto, de professores, alunos e técnicosadministrativos. Em âmbito nacional isto se traduziu na necessidade de aumentar a interlocução com a Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) que tinha sido vista em muitos momentos quase como um foco de resistência à intensidade das transformações almejadas pela DENEM. Entender aquela associação como importante ator com o qual poderia haver conflitos e contradições mas também um diálogo produtivo foi diferencial na relação entre as duas entidades e no processo histórico da educação médica nesta década. A partir de 91 ocorre um novo fenômeno de ampliação dos atores envolvidos na problematização do tema. Com a criação da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM) 11 entidades que compõem esta Comissão (dentre elas ABEM, DENEM, Conselhos de Medicina, Associação Nacional dos Docentes do Enino Superior etc) se envolvem intensamente com a questão. Além da comunidade acadêmica, o movimento passa a contar com entidades relacionadas com o trabalho e a prática médica, com a Universidade e com o setor saúde, trazendo mais legitimidade e inumeráveis benefícios para o movimento pela transformação da escola médica. O movimento se massifica, apesar de contar com um colegiado “diretor” formado pelas 11 entidades. O processo de produção de instrumentos e saberes, formulação de políticas, apontamentos de objetivos e pactuação de compromissos passa a se dar por meio de uma viva construção coletiva em oficinas com a maioria das escolas médicas do país e participação paritária de professores e alunos.




A educação superior no século XXI: comentários sobre o documento da Unesco Sérgio Castanho 1

Como deverá ser a universidade no século XXI? Uma das formas de pensar o tema é comentar a Declaração mundial sobre a educação superior no século XXI: visão e ação (UNESCO, 1998) que, excluindo o documento complementar, indicativo de ações a serem implementadas (p.15-22), compõe-se de quatro partes: Preâmbulo; Missões e funções da educação superior; Uma nova visão da educação superior; e Da visão à ação. Por “educação superior” o documento entende: “todos os tipos de estudos, de formação ou de preparação para a pesquisa, num nível pós-secundário, oferecidos por uma universidade ou outros estabelecimentos de ensino acreditados pelas autoridades competentes do Estado como centros de ensino superior”. Pela definição, há uma certa precedência da universidade sobre outras formas de organização do ensino superior, sendo estas, no entanto, admitidas, à condição de se credenciarem perante as autoridades governamentais. Há, pois, o princípio da publicidade (caráter público), se não na forma jurídica das instituições, pelo menos no seu controle pelo Estado. Outro ponto que aí vemos é o da concomitância entre o ensino (“formação”) e a pesquisa

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(“preparação para a pesquisa”), apesar de o conectivo “ou” poder confundir. No Preâmbulo, ressalta a procura sem precedentes pela educação superior, acompanhada de sua enorme diversificação e da consciência do seu papel para o desenvolvimento sociocultural e econômico. O dado numérico apresentado é impressionante: de 1960 a 1995 as matrículas no ensino superior cresceram de 13 para 82 milhões, acusando uma expansão de seis vezes, quer dizer, mais de 500%. No entanto, o próprio documento ressalta que esses números não são tão róseos quanto aparentam, pois ocultam a dramática realidade das diferenças entre países ricos e pobres e, no interior de cada país, entre as elites e as classes populares. Apesar de sofrer, como instituição, as conseqüências desse desnivelamento, a educação superior tem a tarefa de superá-lo: “... a própria educação superior há de empreender a transformação e a renovação mais radicais que jamais tenha tido...” (p.2). Na segunda parte, Missões e funções da educação superior, há uma nítida separação entre “missões”, ligadas à promoção de “valores fundamentais”, e “funções”, vinculadas a tarefas historicamente

Professor de História da Educação da Universidade Estadual de Campinas. <castanho@correionet.com.br>

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relevantes. As missões básicas são as de “educar, formar e realizar pesquisas”. Por “educar” entende o documento tanto a capacitação profissional quanto a preparação para a cidadania, envolvendo “conhecimentos teóricos e práticos de alto nível”. Por “formar”, entende o abrir-se para a participação ativa na sociedade e no mundo. Por “realizar pesquisas”, entende a promoção, a geração e a difusão de conhecimentos, tanto na área das ciências naturais e da tecnologia quanto “no campo das ciências sociais, humanidades e artes criativas”. São missões articuladas a essas fundamentais a de integração cultural, “num contexto de pluralismo e diversidade cultural”; a de proteção e consolidação dos “valores da sociedade”, a primeira em que percebi um ranço conservador num documento geralmente aberto, mas, assim mesmo, contraditório, pois no mesmo parágrafo alude ao seu contrário, a saber, a missão de proporcionar “perspectivas críticas e objetivas a fim de propiciar o debate sobre as opções estratégicas e o fortalecimento de enfoques humanistas”; e, enfim, a de contribuir para o aperfeiçoamento educacional “em todos os níveis”, numa referência à formação inicial e continuada de docentes para os níveis anteriores e também para o superior. No que respeita às funções da educação superior, o documento aponta para quatro: ética, autonomia, responsabilidade e prospectiva. A função de autonomia é vista sob um duplo ângulo, a de liberdade de pensamento por ter a universidade “uma espécie de autoridade intelectual” em relação à sociedade, e a de autonomia stricto sensu, tal como a entendemos correntemente quando nos referimos à “autonomia universitária”. Apesar disso, o caráter corporativo presente na idéia de autonomia é restringido pela Declaração ao exigir prestação de contas da universidade à sociedade. A função ética representa uma espécie de contraprestação à sociedade pelo prestígio que adquiriu em função de sua presumida capacidade

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intelectual. Para desempenhar essa função, a universidade há de se pautar pelos valores “universalmente aceitos”, em particular a paz, a justiça, a liberdade, a igualdade e a solidariedade. Quanto à função de responsabilidade, o documento da UNESCO alerta para o contrapeso da “liberdade acadêmica” que é o conjunto de deveres sociais da universidade. Por último, a universidade cumpre sua “função prospectiva” (tive a tentação de denominá-la “oracular”) quando funciona como um “centro de previsão, alerta e prevenção”. Não é demais recordar que “saber é prever”. Jamais me esquecerei de certa ocasião, no Chile, em que um dirigente universitário dizia que a sua instituição estava perfeitamente apta para captar os sinais de erupção dos vulcões que a circundavam e, assim, poder alertar a tempo a população para desocupar a área. Um oposicionista, sentado perto de mim, comentou: “Eles só não enxergam os sinais de erupção dos vulcões sociais”. Na terceira parte, Para uma nova visão da educação superior, o primeiro ponto é a igualdade de acesso. Para ser igualitário, o acesso deve repousar exclusivamente nos méritos dos candidatos. Embora o documento passe ao largo da questão da formação desse “mérito” numa sociedade de classes, num dos seus tópicos pede uma espécie de “reserva de vagas” (sem usar esta expressão) para “minorias culturais e lingüísticas” e também para “grupos desfavorecidos”. Realmente o mérito não depende apenas das condições personalíssimas do indivíduo, biológicas e psicológicas, mas das oportunidades educativas que teve ao longo da vida, desde o ambiente cultural na família até à qualidade da escola que freqüentou nos níveis préuniversitários. Um outro ponto é o da oportunidade de acesso “em qualquer idade”. O documento repisa, nas diversas partes que o compõem, a educação superior como um “sistema aberto”, ao qual se entra, do qual se sai e ao qual se retorna em diversos momentos e com diversas idades. Um tópico especial (artigo 4º, p. 6) é


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dedicado às oportunidades de acesso e de participação abertas às mulheres. Além de proclamações por uma política igualitária, este tópico pede que a universidade fomente “os estudos sobre o gênero”, considerando-os estratégicos para a transformação da própria educação superior e da sociedade, tópico especialmente válido do ponto de vista crítico-cultural-popular. O artigo 5º (p. 7) é dedicado à pesquisa. Ela é considerada como “função essencial de todos os sistemas de educação superior”. Estes têm a obrigação de promover estudos de pós-graduação. A universidade orientada para a pesquisa assenta suas bases na inovação, na interdisciplinaridade e na transdisciplinaridade. Na alínea “c” deste artigo são arroladas todas as áreas que devem ser objeto de pesquisa, creio que para marcar com força o afastamento do documento de qualquer compromisso com o tecnicismo: “... incrementar a investigação em todas as disciplinas, compreendidas as ciências sociais e humanas, as ciências da educação (incluída a pesquisa sobre a educação superior), a engenharia, as ciências naturais, as matemáticas, a informática e as artes ...”. Já na alínea “a” o documento pedia um “equilíbrio adequado entre a pesquisa fundamental e a orientada para objetivos específicos”. A universidade, trabalhando conjuntamente o ensino e a pesquisa, potencializa a sua qualidade. O ponto seguinte nesta terceira parte é dedicado à “pertinência”. De uso menos corrente em estudos educacionais entre nós, a pertinência diz respeito à adequação entre a instituição educacional e a sociedade. Já que a instituição “pertence” à sociedade, é justo esperar que sua ação seja conforme às necessidades e aspirações sociais. A pesquisa universitária deve orientar-se para as necessidades da sociedade, o respeito às culturas e a proteção do meio ambiente. Também o serviço à sociedade deve ser incrementado. Além disso, a universidade deve contribuir para o desenvolvimento do conjunto do sistema educativo. Para encerrar,

“a educação superior deveria apontar para a criação de uma nova sociedade não violenta e de que esteja excluída a exploração, uma sociedade formada por pessoas muito cultas, motivadas e integradas, movidas pelo amor à humanidade e guiadas pela sabedoria” (art.6º, d, p.8). O artigo 7º coincide com reflexões recorrentes no ambiente acadêmico brasileiro, dizendo respeito à cooperação especificamente com o mundo do trabalho e genericamente com a sociedade. Num lance bastante progressista o documento pede a participação de representantes do mundo laboral em órgãos da administração superior da universidade. Pede também que se encontrem possibilidades de combinar estudos e trabalho. Reivindica que a educação superior seja “fonte permanente de formação, aperfeiçoamento e reciclagem profissionais”. É muito comum, em documentos “amplos” como soem ser as “declarações universais”, que se dê um golpe de martelo no cravo, outro na ferradura. Desse modo, o artigo 8º abandona a linha geralmente progressista de seu discurso e abre espaço para a “diversificação como meio de reforçar a igualdade de oportunidades” (p. 9). Ora, a diversificação, inclusive nos termos propostos aqui, nada mais é do que o plurimodalismo do modelo neoliberal. As modalidades incluem: “títulos tradicionais, cursos rápidos, estudos em tempo parcial, horários flexíveis, cursos em módulos, ensino à distância com ajuda etc.”. Creio que não podemos aferrar-nos à titulação tradicional. Nem às modalidades clássicas de cursos. Os novos tempos exigem respostas institucionais novas. Mas receio que a abertura incondicionada provoque uma perda de qualidade que acabará atingindo justamente os que mais necessitam de uma educação superior qualitativamente forte, isto é, os estudantes trabalhadores, provindos das classes populares. Os cursos rápidos, como as licenciaturas curtas da reforma universitária da ditadura militar no Brasil (lei 5.540/68), agora reeditadas na lei 9.394/96,

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trazem más recordações e alimentam sombrios presságios. Da mesma maneira, os institutos superiores de educação - uma “nova modalidade” prevista na recente LDB irão aligeirar a formação de professores, mas talvez também banalizá-la, ao separar a produção de conhecimentos do seu ensino. Que dizer dos cursos seqüenciais, que, embora não se apresentem como forma alternativa de graduação, fatalmente funcionarão como tal, dando acesso a profissões mais “leves”, leia-se, mal remuneradas, “exigidas pelo mercado”? E os “mestrados profissionalizantes”, instituindo a confusão aviltadora entre um título de prestígio (mestre) e um conteúdo curricular de mera especialização? A parte metodológica está contemplada no art. 9º. A aparência deste artigo é progressista, mas pode esconder, sob a capa do reformismo formal, um sério conservadorismo de fundo, além de ocultar armadilhas, como esta que considero assustadora: “Esta reestruturação dos planos de estudo deveria tomar em consideração as questões relacionadas com as diferenças entre homens e mulheres ...”. A quarta e última parte da Declaração, denominada Da visão à ação, é uma plataforma, um programa de ação. O primeiro ponto diz respeito à avaliação da qualidade universitária e trai uma certa similaridade com o discurso empresarial da qualidade total. O segundo ponto diz respeito à tecnologia na educação superior e abrange desde aspectos consensuais como o da formação de redes de apoio à pesquisa e ao ensino até temas como educação à distância, que, como se sabe, quanto ao nível superior, é polêmica. O terceiro ponto pede o reforçamento da gestão e do financiamento da educação superior, enquanto o quarto enfatiza o caráter de serviço público desse financiamento. Já o art. 15 repisa um ponto que é muito caro à UNESCO, a saber, a comunicação dos conhecimentos teóricos e práticos entre os países e os continentes, a internacionalização do saber superior, a

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globalização cultural. O sexto e o sétimo pontos, contidos nos artigos 16 e 17 (p.1415), dizem respeito à cooperação internacional. A Declaração é um documento que, do ponto de vista dos modelos que apresentei em trabalho anterior (Castanho, 2000), pouquíssimo tem a ver com o tradicional corporativo, pouco com os clássicos modernos e muito com os contemporâneos. Na verdade, trata-se de um documento de compromisso entre os modelos contemporâneos, incorporando parcialmente o modelo emergente, ou seja, o neoliberalglobalista-plurimodal, também parcialmente o modelo estabelecido e em crise de hegemonia, o democrático-nacionalparticipativo, tendo mesmo, em certas passagens, um tom que o aproxima do referencial crítico-cultural-popular. Este último, por definição, é a voz da resistência à exclusão, da promoção da inclusão, é o discurso do não, um grito que sobe dos subterrâneos da liberdade. O modelo estabelecido e em crise de hegemonia é o discurso do talvez, que esconde o sim ao proclamar o não. E o modelo emergente, o neoliberal, é o discurso do sim sem disfarces, da promoção ativa da exclusão em nome da eficiência capitalista. Referências bibliográficas CASTANHO, S. A universidade entre o sim, o não e o talvez. In: VEIGA, I. P. A., CASTANHO, M. E. L. M. (Orgs.). Pedagogia universitária: a aula em foco. Campinas: Papirus, 2000. UNESCO. Declaración mundial sobre la educación superior en el siglo XXI: visión y acción. Paris: UNESCO, 1998. UNESCO. Marco de acción prioritaria para el cambio y el desarrollo de la educación superior. Paris: UNESCO, 1998.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino superior; educação; universidades; declaração da Unesco. KEY WORDS: Higher education;


A editora universitária, os livros do século XXI e seus leitores

José Castilho Marques Neto1

A editora universitária e o mundo do livro Cada vez mais a universidade brasileira se dá conta de que a atividade editorial acadêmica é, antes de mais nada, parte constitutiva da maturidade intelectual da instituição. Este pensamento, que se fortaleceu nos últimos anos, também evidencia que não basta publicar, mas divulgar e fazer chegar o livro às mãos do leitor, disseminando conhecimento, fazendo do livro e da revista produzidos pela Universidade parte integrante da vida do profissional que mais do que nunca precisa de formação contínua e abrangente. A Editora Universitária no Brasil está tomando cada vez mais o lugar já ocupado por centenárias experiências de universidades européias: ser um forte elo entre a produção acadêmica e a sociedade. Não estamos mais dialogando apenas entre pares acadêmicos, até porque não é necessário, em tempos em que impera a comunicação virtual, a universidade ter uma editora para isso. Além da circulação de idéias entre a comunidade científica, a editora universitária hoje dialoga com uma imensa gama de leitores que buscam no saber acadêmico a fonte para suas profissões e, porque não, para entender melhor o mundo contemporâneo. Esta concepção de editora universitária que busca o leitor consolidou-se junto aos editores acadêmicos pela firmeza com que foi apresentada por projetos inovadores, como o da UNESP, modelo hoje seguido com grande êxito por outras universidades que procuram construir editoras profissionalizadas. Mas esta concepção de editora universitária também se impôs pelo crescimento e profissionalização do mercado editorial brasileiro. Esse mercado faturou, em 1999, R$ 1.817.826.339,00, tem 400 editoras cadastradas e 1.200 livrarias ou pontos de venda de livros. Já não se trata de uma atividade artesanal, ou lúdica, numa visão mais romântica. O mercado editorial e livreiro no Brasil já é parte significativa da economia nacional, atraindo investidores e capitalistas do exterior que já adquiriram fatias

1 Professor da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, UNESP/Araraquara; Diretor-Presidente da Fundação Editora da UNESP e Presidente da Associação Brasileira das Editoras Universitárias (ABEU).

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CASSANDRE, Não o torne ilegível, 1929.

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expressivas deste mercado. É claro que, ao lado da pujança desses números que colocam o Brasil como oitavo produtor mundial de livros, há o contraste que aponta um consumo anual de 2,5 livros por habitante, incluindo-se neste número o livro didático, que representa quase 60% da venda de livros em circulação no Brasil. O livro “científico, técnico e profissional”, conforme a nomenclatura utilizada pelo documento Diagnóstico do setor editorial brasileiro (Naves & Oliveira, 2000), mostra que em 1999 este segmento produziu 11.654 títulos (crescimento de 10% em relação a 1998) e 20.842.864 exemplares (crescimento de 9% em relação a 1998). A mesma pesquisa aponta, ainda, que este segmento faturou R$ 367.823.959,00 (-16% rel./98) e vendeu 19.403.417 exemplares (-9% rel./98). As pesquisadoras do referido documento concluíram que os livros científicos, técnicos e profissionais foram os únicos que experimentaram um aumento do número de exemplares produzidos em relação ao mesmo período do ano anterior. A razão desse comportamento é assim relatada: Este aumento buscou atender a uma demanda gerada pela mudança de comportamento por parte do consumidor, hoje interessado no aprofundamento do conhecimento de retorno prático. O afunilamento do mercado de trabalho, aliado à escassez de recursos, tornou imprescindível àquele que deseja garantir-se obter um nível maior de excelência. O aprofundamento dos conhecimentos, tanto em áreas específicas de atuação como na área de conhecimentos gerais tornou-se inevitável, uma vez que o próprio mercado exige uma atuação em diferentes áreas. (Naves & Oliveira, 2000, p.21)

Embora não tenhamos uma pesquisa deste tipo e abrangência exclusiva para os livros das editoras universitárias, certamente podemos afirmar que fazemos parte desse segmento “científico, técnico e profissional”, não apenas pelos títulos que editamos como também pela crescente inserção das editoras acadêmicas na rede de distribuição voltada para o leitor universitário, não necessariamente aquele leitor que está nos bancos escolares. Sendo assim, uma das conclusões que se pode inferir dessas análises é a de que, não obstante as formas alternativas de distribuição dos nossos títulos, a editora da universidade deve também reforçar sua presença nos círculos de divulgação e distribuição do livro brasileiro, ampliar a possibilidade do saber universitário, atingir camadas mais amplas da população letrada e, ao mesmo tempo, lutar pela formação de novos leitores.

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Produção e disseminação de informações no livro do século XXI

Conforme conferência de Dick Brass, VicePresidente de Desenvolvimento Tecnológico, Microsoft Corporation (USA). 26° Congresso da União Internacional de Editores. Buenos Aires, 1°- 4, maio 2000.

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Neste contexto, é importante estarmos preparados, como editores universitários, para as mudanças que já estão em marcha no mundo do livro. O discurso de pesquisadores e profissionais da área apontam para a “terceira revolução do livro”. Desde a primeira revolução, marcada pelo aparecimento do livro como o conhecemos ainda hoje (o códice que substituiu os rolos da Antigüidade no século IV d. C., com suas páginas numeradas e formato revolucionário que libertou as mãos do leitor, criando uma nova relação entre o leitor e o livro), passando pela segunda revolução com a disseminação do livro impresso por Gutemberg e, finalmente, chegando ao nosso tempo com a informática e o livro eletrônico (ebook). Em futuro próximo o “papel eletrônico” se juntará aos artefatos hoje conhecidos, e todos eles organizarão de maneira diferente a relação do texto com o leitor, graças, principalmente, aos recursos do hipertexto. A terceira revolução do livro promete, segundo as grandes corporações de informática ou os respeitáveis laboratórios do MIT que a produzem, a realização de muitas utopias que a humanidade culta desejou, como, por exemplo, a disseminação e a democratização do conhecimento; a interrelação contínua entre autor e leitor (na construção de textos que quebram a barreira unilateral entre o escritor e seu leitor, que teria condições de interferir na produção autoral e interagir com a criação); a criação de bibliotecas domésticas gigantes e plurais, realizando o sonho da Biblioteca de Alexandria. Essas e outras utopias estão sendo geradas pelos avanços científicos e, na visão dos analistas e produtores de novas tecnologias, são irreversíveis, a tal ponto que a gigante Microsoft prevê que em 2008 o livro eletrônico ultrapassará em vendas o livro em papel; em 2015 a biblioteca do Congresso Americano será totalmente revertida para o livro eletrônico e, em 2017, a biblioteca de livros de papel será vista como um objeto de charme antigo2. Nesta perspectiva, em que há aparentemente uma inevitabilidade da civilização da tela do computador, do triunfo das imagens e da comunicação eletrônica, cabem três perguntas, entre outras tantas que podemos formular perante o cenário atual e o do futuro próximo: 1) o livro, como o conhecemos, desaparecerá? 2) ao lado da nova tecnologia, estaremos construindo leitores? 3) qual o papel do editor (e das editoras) neste novo mundo do livro?. Reunindo as três questões do ponto de vista da universidade, caberia questionar: as universidades devem investir, ou continuar investindo, nas editoras universitárias? À primeira questão remeto a Roger Chartier (1999), autor de A aventura do livro – do leitor ao navegador , que, em recente conferência, declarou: ...o mais provável para as décadas futuras é a coexistência, não necessariamente pacífica, das duas formas do livro e dos três modos de gravação e comunicação de textos: o manuscrito, a publicação impressa, a textualidade eletrônica. Esta hipótese é

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sem dúvida mais razoável que os lamentos sobre a irremediável perda da cultura escrita ou os entusiasmos desmedidos que anunciam a entrada imediata da nova era de comunicação. (Anais do Congresso da União Internacional de Editores, 2000, p.47-8)

A segunda questão referente à formação de leitores já é mais complexa e exige uma reflexão rigorosa das nossas instituições educacionais, dos governos e da sociedade civil, já que está necessariamente ligada a índices cruéis de pobreza e miséria. Se hoje encontramos muitas formas de classificar os países, não podemos mascarar os índices de pobreza da maioria deles. Segundo o insuspeito Banco Mundial, 80% da população mundial vive em zonas de pobreza, o que favorece as dificuldades da alfabetização: pobreza endógena e hereditária, baixa esperança de vida e altas taxas de mortalidade infantil, desnutrição e multilingüismo. Dados como estes, analisados pela educadora Emilia Ferreiro (2000) demonstram que a humanidade adentra o século XXI com 1 bilhão de analfabetos, com o agravante de que os países considerados ricos (os 20% restantes) descobriram o que ela chama de “iletrados”. Em que consiste esse fenômeno dos iletrados? Ferreiro nos responde que ele corresponde a uma realidade muito simples: “a escolaridade básica universal não assegura a prática cotidiana da leitura nem o gosto pela leitura nem muito menos o prazer da leitura”. (Anais do Congresso da União Internacional de Editores, 2000, p.98) Esta análise demonstra claramente que o mundo que cria as novas tecnologias não está automaticamente produzindo alfabetizados para a vida cidadã. E cabe perfeitamente a pergunta da mesma educadora: “Se a escola não alfabetiza para a vida e o trabalho ... para que e para quem alfabetiza?”. Diante dessas reflexões, cabe perguntar também: é possível seguir apostando na preservação dos valores democráticos em nossas sociedades iletradas sem fazer os esforços necessários para aumentar o número de leitores – leitores plenos, não apenas decifradores de letras? Buscar soluções arrojadas e criativas para resolver este problema, envolvendo a criação e ampliação de bibliotecas públicas e privadas abertas à comunidade, nos parece iniciativas centrais de um esforço que só terá êxito se for coletivo, e só alcançará os objetivos de formar novos leitores e disseminar informação, se contar com a vigilância cidadã dos responsáveis pela cultura em todos os níveis. A terceira questão remete ao velho ofício de editar, essa atividade aparentemente antiquada, que trata de livros e seus conteúdos. É preciso não esquecer que um texto publicado em livro tem duas bases inalienáveis, sejam quais forem os suportes dados a esse livro: a criação editorial e a criação dos conteúdos (informativos, científicos, literários, culturais etc.). Estes são os valores reais que o leitor busca ao adquirir um livro, independentemente de onde o adquire, pela Internet ou no velho sebo do centro da cidade. O ofício de editar, que mescla funções de arte e técnica,

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descobrindo e motivando autores, interagindo na busca do texto certo e da expressão correta e dando-lhe aspectos formais compatíveis ao conteúdo criado pelo autor são imprescindíveis e, mesmo que o livro desapareça em seu suporte atual, o que duvido, o editor continuará presente como a “alma do negócio”, organizando adequadamente a avalanche de textos que chega às mãos dos leitores. É importante lembrar que o ofício do editor tem muito a ver com as atividades universitárias, já que o editor é o profissional que mais se aproxima do autor na viagem que se inicia na criação intelectual e termina no leitor. É também o editor, pelas próprias características de sua profissão, um dos que mais atua na defesa dos direitos autorais e da propriedade intelectual, bem precioso dos docentes e pesquisadores, autores de nossas universidades. A universidade e sua editora Esta pequena reflexão em torno do mundo do livro, aponta para o quanto a universidade brasileira deve voltar-se, ou continuar voltando-se, para esta atividade. De todos os pontos de vista examinados – disseminação de conhecimentos e novas tecnologias; formação de leitores integrais, possibilitando a cidadania; função central do editor na ordenação da comunicação escrita – sempre encontramos o ensino e a pesquisa universitária vinculados a um forte setor acadêmico de publicações, interagindo e cooperando, em igualdade de condições, com editoras nacionais e internacionais. Num país como o nosso, em que a educação básica não pode deixar de desenvolver também o conhecimento desbravador de novas fronteiras, cabe sim, às instituições de ensino superior o papel de difundir editorialmente o conhecimento. Para esta missão, a universidade tem suas editoras e centros de publicações, devendo ter sempre a preocupação de atualizá-los e incentivá-los a participar das novas e das tradicionais tecnologias. Não é ocioso lembrar que a editora universitária, principalmente aquela ligada a universidades públicas e comunitárias, não tem fins exclusivamente comerciais. Esta condição permite a ela traçar inúmeros projetos de interesse científico ou cultural e, dependendo de seu projeto editorial e institucional, poderá ser desde uma editora que divulgará a produção científica internacional até aquela que preservará a cultura e a produção acadêmica de uma micro região. A multiplicidade de projetos editoriais da academia, aliada à preocupação social que é inerente à atividade

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universitária, possibilita editoras fortes e peculiares em suas distintas missões. A possibilidade de contribuir para os rumos culturais e para a difusão do conhecimento científico em nosso país, criando diálogo com outros saberes, e não dependência, talvez seja o grande elo de força entre todas as editoras universitárias brasileiras. No momento em que constatamos em muitos países da América Latina que a produção editorial, em áreas sensíveis como a da educação e a da cultura, está entregue a empresas multinacionais, cujo único objetivo é o lucro, cabe refletir se deve a universidade abrir mão de interferir positivamente, e ao lado de editoras sérias e compromissadas do país, para a manutenção do saber e da cultura brasileira, que, no caso, é a preservação da própria identidade do país como nação.

Referências bibliográficas ANAIS. Conferência no 26º Congresso da União Internacional de Editores. Buenos Aires, 1º - 4 mai. 2000. CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora Unesp, 1999. FERREIRO, E. In: ANAIS. Conferência no 26º Congresso da União Internacional de Editores. Buenos Aires, 1º - 4 mai. 2000. NAVES, E. M.; OLIVEIRA, M. Diagnóstico do setor editorial brasileiro. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 2000.

PALAVRAS-CHAVE: Indústria editorial; livros; universidades. KEY WORDS: Book industry; books; universities. MIRIAM DANOWSKI, Arte Postal, 1981. XVI Bienal de São Paulo

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Foto: Vidal Cavalcanti

Adolescência e vulnerabilidade

Elisabeth Maria Vieira Gonçalves1

Os adolescentes se encontram com adolescentes para conversar sobre vida, prazeres, medos, coragem, corpo, sexualidade. Falam sobre suas expectativas, seus projetos de vida e como se prevenir das DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) e AIDS. Contam o que sabem. Discutem o que não sabem. Pensam, trocam idéias, expressam dúvidas e sentimentos relacionados à vivência da sexualidade. Aprendem uns com os outros. Chegam de diferentes regiões da cidade, vindos de diversos grupos e segmentos sociais. Trabalham juntos.

* Álbum seriado produzido como material didático de apoio ao trabalho de multiplicadores na prevenção das DST e Aids, São Paulo, 1998. 1 Coordenadora do Projeto “Trance essa Rede”, Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual (GTPOS). <gtpos@that.com.br>

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CRIAÇÃO

Este é o Projeto TRANCE ESSA REDE, financiado pelo Ministério da Saúde e coordenado pelo GTPOS – Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual - desde 1996, que visa a construção de uma rede de ações educativas, desenvolvidas por adolescentes multiplicadores, na área da sexualidade e prevenção das DST/Aids. Os adolescentes multiplicadores reúnem-se, semanalmente, com outros adolescentes, em grupos de trabalho, oficinas e participam de grupos de supervisão com educadores e técnicos do GTPOS. Neste processo de multiplicação de ações educativas, os adolescentes visualizam as propostas de intervenção, participando desde o planejamento, a realização, até a avaliação das ações. Os seus questionamentos incluem principalmente discussão de valores, preconceitos, mitos, modelos e estereótipos que envolvem o exercício da sexualidade; as relações homo/hetero/bissexuais; a gravidez na adolescência e a responsabilidade dos adolescentes, garotos e garotas, nos cuidados com sua saúde sexual e a do outro. Esta experiência tem estimulado espaços de debate e de convivência, promovendo a atuação dos jovens como SUJEITOS capazes de intervir e transformar a realidade em que vivem. Reconhecem a importância da promoção da saúde e a prevenção da Aids como direito constitutivo da cidadania. A idéia do Álbum ADOLESCÊNCIA E VULNERABILIDADE surgiu nesses encontros. Foi produzido para dar apoio aos educadores e adolescentes para o trabalho de multiplicação. A partir de imagens, conceitos e atividades, os educadores podem criar e recriar, transformando o álbum em veículo de comunicação, ação e, portanto, de prevenção. Pode ser usado nos espaços da escola, da comunidade, enfim, em qualquer lugar que reúna grupos de adolescentes. A imagem, estratégia norteadora do material, pretende ser um estímulo disparador de discussão sobre os vários aspectos que vulnerabilizam o adolescente frente à infecção pelo HIV e outras DSTs. A tiragem inicial do Álbum, coordenada pelo GTPOS, foi de três mil exemplares, tendo o Ministério da Saúde – CN DST/Aids impresso outros vinte mil para distribuição gratuita para todo território nacional.

GTPOS – Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual Rua Monte Aprazível, 199 Vila Nova Conceição 04513-030 São Paulo/SP Fone: (11) 3842-8249 Fax: (11) 3842-2174

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