A ENCARNAÇÃO DO VERBO E A REMOÇÃO DO QUERUBIM

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A ENCARNAÇÃO DO VERBO E A REMOÇÃO DO QUERUBIM

Berosi REDE CATITU CULTURAL


... “A origem do nome "querubim" (keruv em Hebraico) ainda é obscura. Alguns pesquisadores defendem que sua raiz está na palavra babilônica "karabu", significando "um ser abençoado, bendito". Outros defendem que sua origem está no nome do deus assírio "Kirabu", cuja representação é de um ser com aparência humana com corpo de um touro alado. A tradução hebraica mais próxima é Keruv (repolho), que enfatiza "invólucro" e "envolver", pois Deus se acomoda "no meio" dos querubins”. ESSE querubim título, a pessoa de quem se trata, sujeito e objeto de busca, quem seria? Leia, para responder-SE. Releia. E também para além do conhecimento, para atingir o grau de prazer que tal leitura provoca e aciona, mel e leite, alimentos antiquíssimos cheios de significados e significantes na História Sagrada. Reside aí, uma das chaves desse enredo. O Querubim. E da condição autoral, que permite ao narrador, também fazer parte desse séquito onde se acomodaria um Deus e assim obter de fonte limpa, informações e intuições. A outra chave, O Verbo, em sua medida de Alphabeto e Número correspondente, que encarnase. E então, em quintessência de milagre, o Divino torna-se um Homem. “Por mais homem que fosse Jesus, não lhe seria possível levar ao destino final a incumbência da Lei, pois li ele era um Homem, e todo homem tem limitações”, filosofa o autor... Todo um ensaio poderia nascer somente na explicação – ou tentativa de – decifração do título desse trabalho singularmente belo. ... Clevane Pessoa de Araújo Lopes


A ENCARNAÇÃO DO VERBO E A REMOÇÃO DO QUERUBIM Berosi

1ª edição ano 2014

Rede Catitu Cultural Belo Horizonte MG


Da Silva, Benedicto Rodrigues A encarnação do verbo e a remoção do querubim Belo Horizonte: Rede Catitu Cultural, 2014. 78 p. 1. Literatura Brasileira. ISBN 978-85-63464-18-7 © Berosi A ENCARNAÇÃO DO VERBO E A REMOÇÃO DO QUERUBIM Ilustração - Capa – Foto – Marcelo Bernardino 1ª Edição Rede Catitu Cultural Revisão: Marcos Fabrício Lopes da Silva Coordenação: Clevane Pessoa e Marco Llobus Projeto Gráfico: Guatassara Thiago Pousas, Karina Pousas e Marco Llobus Todos os Direitos Reservados

Da Silva, Benedicto Rodrigues A ENCARNAÇÃO DO VERBO E A REMOÇÃO DO QUERUBIM Belo Horizonte: Rede Catitu Cultural, 2014. 1ª Edição, 78 p. ISBN 978-85-63464-18-7 1. Literatura Brasileira. B869 COD. B869


Sumário Prefácio ........................................................... Parte 1 ............................................................. Parte II - O retorno .......................................... Parte III - Reminiscências, Testemunho final .

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Prefácio A partir do título, este livro promete o abrir-se de portais misteriosos e reflexos de dogmas que instigam a imaginação humana. Sem dúvida, “A Encarnação do Verbo e a Remoção do Querubim”, instiga o leitor a trilhar por sendas que antes permaneciam escondidas atrás de ramagens entrançadas naturalmente, mas sempre existiram. Apesar e, no entanto, as estratégias do autor, Benedicto Rodrigues da Silva (Berosi), para a recriação dessa história dentro da História, são fascinantes, partindo da particular de personagens e protagonistas, para a universal, de Jesus Cristo. Sem nenhuma das formas usuais de contadores outros, apresenta fórmula singular de colocar família, amorosidade, paternidade e filiação, numa cornucópia de nouvelle vague, donde a consistência é mantida pelos liames de uma historia sagrada e aparentemente conhecida. Na primeira pessoa, mostra no entanto, um olhar múltiplo. Conhece-se águas e terras, cenários vívidos de uma viagem no tempo. Emoções e sentimentos entrelaçam firmemente, mas com larga margem de possibilidades, um enredo corajoso, pois muitos julgam conhecer a vida do Nazareno. O autor, no entanto, fecha gestalts impensadas, e não teme dar a sua própria versão de fatos determinados. Cuidadosa pesquisa foi paralela à recriação daquela época. Necessário se fazer um glossário enriquecedor. De outra forma, 1 poucos saberiam o que é uma “colônia de búgulas ”, por exemplo – ou decifrar os adjetivos usuais naquele tempo - ou mesmo termos náuticos, marítimos, geográficos. Sem dúvida, depois de concluir a leitura, muitos terão ampliado seu vocabulário. As metáforas são muitas e se o cego diz a Cristo “Eu quero VER”, é desejo antigo do homem também enxergar, em tudo que lhe foi oferecido pelas religiões ou mesmo pela História, um algo mais que possa conceber e explicar melhor o que realmente aconteceu. Isso, o imaginário do autor, associado às verdades pré-existentes, faz magistralmente. VER é pois saber, aprender e apreender a veracidade através de gázeas perpectivas. E sairemos da leitura elaboradamente menos ceguetas, míopes ou vendas. 1 - Búgula - Planta medicinal lamiácea, também conhecida por erva-de-são-lourenço.

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Conheço um pouco o autor, pai de um poeta e editor de minha estima (*), o jovem Marco Llobus - cujo nome real pertence a um dos personagens periféricos à trama central -“Marco Belchior, filho de Marco Antonio”, revelando talvez a força parental, um dos esteios dessa narrativa, trazida à tona. O que mais vemos, são as ações e o clamores dos laços de sangue ou de amizade, e os supremos, as relações com Jesus Cristo. Algumas vezes, estive em casa de meu amigo a trabalho e vislumbrava um senhor a escrever em seu notebook. Conversar, foi por telefone, ocasionalmente. Eu já lera uns contos dele, que o orgulhoso Marco trouxera-me, de seu genitor inspirado. Mas ser convidada para prefaciá-lo, confessor que foi uma sensação muito boa-afinal, eu venho de algumas leituras desse texto, na qualidade de revisora ou conselheira editorial. Venho ainda de saber que esse livro é um presente filial ao pai contista. Mais uma vez, corroboram-se as relações parentais de primeiro grau que tanto são apresentadas em A Encarnação do verbo e a remoção do Querubim... Ora, um Querubim é um ser alado, vem logo abaixo dos Serafins. ”Querubim (do Hebraico ·Â¯Î - "keruv" ou do plural Ìȷ¯Π- keruvim) é uma criatura sobrenatural, espiritual, mencionada várias vezes no Tanakh (ou o Antigo Testamento), em livros apócrifos e em muitos escritos judaicos”. E mais: “A origem do nome "querubim" (keruv em Hebraico) ainda é obscura. Alguns pesquisadores defendem que sua raiz está na palavra babilônica "karabu", significando "um ser abençoado, bendito". Outros defendem que sua origem está no nome do deus assírio "Kirabu", cuja representação é de um ser com aparência humana com corpo de um touro alado. A tradução hebraica mais próxima é Keruv (repolho), que enfatiza "invólucro" e "envolver", pois Deus se acomoda "no meio" dos querubins”. ESSE querubim título, a pessoa de quem se trata, sujeito e objeto de busca, quem seria? Leia, para responder-SE. Releia. E também para além do conhecimento, para atingir o grau de prazer que tal leitura provoca e aciona, mel e leite, alimentos antiquíssimos cheios de significados e significantes na História Sagrada. Reside aí, uma das chaves desse enredo. O Querubim. E da condição autoral, que permite ao narrador, também fazer parte 06


desse séquito onde se acomodaria um Deus e assim obter de fonte limpa, informações e intuições. A outra chave, O Verbo, em sua medida de Alphabeto e Número correspondente, que encarna-se. E então, em quintessência de milagre, o Divino torna-se um Homem. “Por mais homem que fosse Jesus, não lhe seria possível levar ao destino final a incumbência da Lei, pois li ele era um Homem, e todo homem tem limitações”, filosofa o autor... Todo um ensaio poderia nascer somente na explicação – ou tentativa de – decifração do título desse trabalho singularmente belo. As respostas às nossas humanas indagações. Às aspirações do narrador: “E isto foi revelado com maior autenticidade aos humildes discípulos. No entanto, eu era homem de Letras, mas não O identifiquei. A revelação foi feita aos puros de coração. Por omina seculum secuorum”, reconhece o protagonista. E o autor, na grande lição de humildade, Em perfeita sintonia. Quanto a mim, agradeço sumamente o privilégio de prefaciar essa narração, tão enriquecedora. Saio da leitura mais simples, mas enriquecida na alma em rebouliço pelo presente – neste dezembro, já perto de mas um Natal, numa data aleatória, mas mantida pelas tradições. “E o verbo se fez carne e habitou entre nós.” Teço verazes loas ao autor deste livro, pela coragem com que se faz humilde para as descobertas e inspirações. Clevane Pessoa de Araújo Lopes Belo Horizonte, MG-Brasil Em 10/12/2012

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A ENCARNAÇÃO DO VERBO E A REMOÇÃO DO QUERUBIM - Parte I -



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Parte 1 Outono... Estação premonitória de eventos que nos excitam a alma em ânsias de aventuras. No momento em que inicio estas anotações e exponho meus pensamentos, aguardo o início da viagem que projetei e que posteriormente foi realizada. Ela se faz presente, e é a estação única, para mim notável, porque deixa nitidamente apercebermo-nos da promessa de primavera, que virá logo após o inverno. Já notastes, amigo, a maravilha dos odores originários das árvores do meu querido Nilo, quer dizer, das árvores que margeiam a dádiva de Osíris para o meu país? ... Bem, a minha ansiedade realmente provinha mais da expectativa de um 2 próximo retorno à terra de minha Katiuschia, para meu gáudio , claro. Tão logo terminasse o inverno, na primeira quinzena da primavera, havia prometido à minha rainha voltar à sua terra. Era de todo conveniente que assim procedêssemos para aproveitarmos um pouco melhor a expectativa de um calorzinho ameno, próprio da estação das flores. Moramos todos estes anos aqui no delta do nosso amoroso rio, e estranhamos sobremaneira os rigores do inverno quando em águas do mar Egeu. Por isso, partiríamos na primeira quinzena após o início da primavera. Convém que seja dito que a minha princesa cativou-me e tornou-se minha esposa, durante viagem anterior, próxima ao seu país de origem. E lá se vão oito anos! Naquela época, na casa de meu cunhado Alec, conheci uma menina de cabelos louros encaracolados, olhos azuis. Muito doce pessoa. Vinham ela e a família, fugindo de perseguições políticas em seu país, do interior de suas montanhas e 3 se estabeleceram às margens do Bósforo . Daí para o acerto final após as devidas formalidades requeridas pela família da moça, concluímos tudo e nos amarramos, fixando moradia aqui em Alexandria. Para que entendam todo o meu deslumbramento, convém esclarecer que sou escuro - saindo-me à minha mãe. Depois falo dela, minha mãe. Mas, tenho os cabelos ruivos, de meu pai. Chocante, não? Não sou um tipo muito comum. Fomos criados eu e minha irmã por um 2 - Gáudio - festa, banquete, folgança. 3 - Bósforo - rio que liga o Mar Negro com Mar de Mármara e separa a Ásia da Europa. Etimologicamente “Bos” significa boi na língua Trak e “Poros” significa uma passagem na velha Grécia.

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casal da confiança de minha mãe, que sobrevivera ao meu pai por pequeno período. Ela deve ter quebrado muito a cabeça para evitar que nós, seus filhos, viessem a ser descobertos. Talvez não nos deixassem sobreviver. Vivemos uma vida de reclusos, quase como dois precitos4; sem celas, é verdade, mas mantendo um anonimato julgado necessário. Tínhamos dinheiro e jóias deixados por ela, minha mãe, que fora importante e poderosa, participando, em determinada época, do domínio da Judéia. Ela e meu pai. Mas, passemos à viagem. Possuía um bom barco de madeira leve conseguida no interior do continente africano, de uns quarenta e quatro côvados. O lastro dele foi obtido por lingotes de ferro presos ao casco, sob o convés, e que nos permitia, a mim e ao meu capitão, deslocarmo-nos por águas mais rasas com sucesso maior que as demais. Uma quilha 5 bem sólida e trabalhada, com uma bujarrona bem plantada na parte dianteira, não muito, no centro dos seus dezoito côvados de largura. Tempos atrás, quando eu não tinha conhecimento do assunto, fiz uma proteção que me parecera inteligente, com talos de papiros, mas isso se revelou uma coisa mais que boba, pois o que aconteceu foi proporcionar ninho aprazível para uma colônia de búgulas. Partimos em uma manhã primaveril, sol lindo e claro, sem nuvens. O Nilo se arremetia contra as ondas do mediterrâneo com vontade de superá-las. Isso nos favoreceu na largada. Viajamos em oito pessoas, mais Katiuschia. Fero, o Capitão, seis remadores (para o caso de necessidades) e eu. Pessoas de minha confiança, tanto que levava comigo a esposa. Preocupava-me muito suas dores de cabeça. Será que é por isso que não temos filhos? Será por sermos tão diferentes? - mas, não é ela mulher e eu homem? Às vezes fico pensando: animais de sangue quente, mas de naturezas diferentes, quando cruzam não produzem crias. Até que ponto seríamos diferentes? Quando fomos criados, todos nós, será que algo foi determinado para estigmatizar a uns e outros não? Por que favorecer a certos grupos em detrimento de outros? Será justo? Por que uns são feios e outros bonitos? Uns negros, outros brancos. Por que não sermos mais iguais? Não importa, preciso 4 - Precitos - Renegados, banidos, repudiados. 5 - Bujarrona - Vela triangular grande que se iça à proa.

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conseguir meus descendentes. Mas só se forem meus e do meu amor, porque uma família precisa ter raízes. ...Viajemos. As águas do mediterrâneo estavam meio barrentas, devido ao recebimento das águas do Nilo, já que chovia nas cabeceiras. Mas logo, logo, se tornaram mais verdes e transparentes. A minha estrela estava bem, era o que importava. A velocidade do barco era notável, sob o comando do capitão Fero. Ao anoitecer do segundo dia, digo, terceiro dia, aportamos para descanso próximo à ilha de Karpathos, para encetar viagem no dia seguinte pelo mar Egeu, mar este testemunha de aventuras náuticas dos Jônios, mestres no comércio pelos oceanos do nosso mundo, exercendo domínio nos negócios e políticas já mesmo antes de Roma ser o que é. Aliás, segundo o Alec, Roma só é grande porque aprendeu com os descendentes daqueles. Eu digo mais, porque Roma não tem os valores morais, intelectuais, culturais e princípios dos gregos, mestres do pensamento da humanidade. Roma é grande na arte do domínio, ao passo que Atenas o é em relação ao espírito e no coordenar o pensamento do homem. O próprio Otávio, assim como Júlio, procurou se inteirar do conhecimento grego. Mas, voltemos à nossa viagem. Aportamos próximos a Karpathos por segurança, já que iniciaríamos quase que um périplo, se assim for entendido o fato de que nos movimentaríamos, doravante, segundo o meu amigo Fero, por aproximadamente um dia e pouco por entre aquele amontoado de ilhotas que compõem a nossa rota. Aproveitamos a parada para adquirir água nova e suprimentos na ilha. Minha princesa continuava dando mostras de um bem-estar geral. Após uma noite de descanso, logo ao alvorecer, reiniciamos viagem. Não mais dentro da tranqüilidade até agora desfrutada, porquanto seria necessária maior atenção aos acidentes geográficos representados pela presença de montes de terra em nossa rota, assim como, também, pela possível e desagradável presença de bucaneiros que por ali proliferavam, apesar de sempre, também, ser plausível o encontro de naus romanas que policiavam a área. Mas os piratas poderiam aparecer de surpresa e atacar, fugindo para se

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esconderem por entre as miríades de ilhotas ali existentes. De qualquer forma, fomos deixando para trás: Astipália, ou Astipalaia, Amorjós, Içaria, Psarakhos e alcançamos uma ilha maior, de nome Lesbos. Dois dias após, de tardezinha, chegamos às proximidades de Gokceada, após passarmos por Bozcaada e novamente ancorarmos, agora em pleno começo do estreito que tem o nome de Dardanelos. Não nos pareceu aconselhável continuar viagem pelo estreito durante a noite. Também achamos mais lúcido não nos aproximarmos muito da costa, por motivo de segurança. Foi uma noite de vigília, mais pela bagunça que percebíamos do lado direito, em pleno território turco, de onde ouvíamos muita algazarra, do que por outro motivo qualquer. Seguindo na manhã seguinte, por um período de três horas, mais ou menos, adentramos no mar de meus sonhos. Oh! Osíris, Adonai, ou que nome realmente tenhas, eu te louvo. Como um ser que não fosse realmente o Criador de toda a beleza deste nosso mundo, poderia conceber e executar tamanha formosura? De onde tirastes este azul turquesa e premiastes esta formação de águas tão transparentes e apaixonantes? Isto é um requinte da natureza que dói, de tão belo. “Vamos devagar, capitão, porque aqui requer que se faça uma oração”. De tardezinha, chegamos à cidade onde residia meu cunhado e minha irmã, na entrada do Bósforo e em pleno continente europeu. Convém que eu diga ser o meu cunhado, um judeu grego, encarregado dos negócios de uns patrícios romanos e dono, também ele, de uma razoável fortuna. A casa do casal fora construída acima da sede de seus negócios, que era enorme, sobrando muito espaço na parte superior com um pátio calçado de madeira. Ali ficamos por mais o dia seguinte, após alojar a marujada em uma boa estalagem na zona portuária. Apreciei sobremaneira os modos com que minha irmã recebeu e tratou a todos nós, de um modo especial a Katiuschia. Também agora se faz imprescindível dizer ser o Alec um bom judeu praticante, respeitador das tradições religiosas de seu povo. Por diversas vezes, conversamos sobre isso. Eu, de minha parte, achava mais que estranho o adorar-se um Ser ou Adonai, ou Deus, sendo que o próprio nome não deveria, ou sei lá, não poderia ser

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mencionado. E que esse Ser expulsou o patriarca da humanidade do jardim de delicias para o qual o construiu e destinara, e, ainda, colocado um guardião às portas, para que o tal não mais ali adentrasse. Sempre dizia que preferia o meu Osíris, que amou aqui na terra e teve esposa, ensinando do que sabia aos meus antepassados. Morreu, ressuscitou, e reinou entre nós. Ensinounos até a plantar e trabalhar a terra. Prefiro uma declaração de amor ao invés de uma guerra. Mas, cada um sabe do que realmente precisa e crê. Vamos em frente. A minha viagem prende-se à necessidade de trazer o resultado dos negócios por mim administrados em sociedade com minha irmã, e aproveitar a oportunidade de fazer uma pescaria no grande mar interior que é ligado à Trácia6 pelo Bósforo. Se seguires pela margem esquerda encontrarás, não muito distante, rios lindos que ali desembocam. Se quiseres ir mais além, encontrarás o grande rio pelo qual chegou ao continente europeu a minha amada. Mas não iremos tão longe. Vamos pescar, lançando nossas redes por esse caudal líquido mais próximo de nossa casa, ou melhor, mais próximo da casa de Alec. Lançar as redes por esse rio é força de expressão, porque o que queria mesmo era apanhar alguns peixes grandes, em pleno lago Negro, e retirar deles (esturjão) as ovas tão saborosas que a minha amada bem preparava. Ao segundo dia, já tínhamos algumas caixas cheias de pescado - esturjão, arenques e até mesmo alguns arredondados blenídeos, muito saborosos que chegamos a apreciar ali mesmo. Um dos marinheiros, suponho que o aguadeiro, era mestre da conservação de pescado. Retalhava-os e salgava-os - que era de se ver. Pensava em ficar mais um dia por ali, e nem havia recolhido as redes quando, lá pelo pôr do sol, se aproximou de nós um barco, em correria, o que nos levou a suspeitar um ataque. Mas isso passou, e percebemos tratar-se do barco do meu cunhado e que vinha esbaforido. Queria o mestre dele que zarpássemos logo, ao que eu ponderei não poder fazê-lo, pois, seriam necessárias algumas medidas para tal finalidade. Já que não se tratava de doença na família (e eu temi pela Estrela) nada me parecia tão urgente. Falou então, o turco, da ânsia do meu cunhado em ver-me; o assunto era urgente e importante, não sabendo ele dos motivos. 6 - Trácia - região histórica do sudeste da Europa, banhada pelo rio Bósforo.

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De qualquer forma, nos apressamos e voltamos ainda naquela noite. Pela manhã, ou melhor, madrugada, chegamos ao nosso destino pretendido. Estranhei, pois vi o barco do Alec pronto, e era o maior dos dele e apto para zarpar. Mas o que ele me disse, tão logo nos encontramos, pela manhã, me aborreceu. Queria que o ajudássemos a seguir uma estrela, veja só! - Você está louco, amigo, entendo pouco de estrelas, e o que sei é que elas se encontram muito longe. E que ninguém sabe ao certo a qual distância elas se encontram de nós. O que ele disse foi tão somente: - Esta está bem próxima, você verá. Vem cá fora! Estávamos, eu e ele, em uma espécie de alpendre no pavimento superior da casa, e parte da abóbada celeste era ocultada pelo telhado. Saímos e... Cadê a tal estrela?_- Bel, disse-me ele, ainda agorinha ela se encontrava ao sul, brilhando, que era uma beleza. Vou aproveitar para fazê-lo ciente do meu empenho e da certeza do que ela me mostrará. “Segundo uma promessa antiga feita por um profeta, nossa gente será privilegiada com o nascimento de um menino judeu, da casa de Davi, portanto, em Belém de Judá. E que esta criança se tornará forte e será grande pela graça de Iehavé (aí ele cobriu com pudor os olhos) e libertará o meu povo e todo Israel de seus opressores. Em fim, um grande guerreiro, como nunca se viu. E uma estrela brilhante assinalará o local onde ocorrerá o nascimento deste Varão”. Fui obrigado a retrucar: - “Liberta-los-á de Roma? Um único homem, oriundo de um país tão pobre e de um povo tão dividido? - Estás brincando?” - Nunca fiz glosa7 com coisas de minha fé, foi a resposta. Porque a minha fé, na verdade, é tudo o que eu tenho. Portanto, amigo, sei onde nascerá a criança e isto é para já. Olha, lá para os lados do interior deste país, não estás vendo, agora, aquele brilho ali ao sul? – Fiquei pasmo! No pequeno período em que estudei astronomia em Alexandria, nunca havia visto próximo um tal brilho e nem estrela naquelas paragens. E olha que localizar e entender algo da abóbada celeste era e é fundamental para um estudante da matéria. Mas, continuou o meu louro cunhado: 7 - Glosa - brincadeira, comentário, crítica.

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- “Sempre solicitei, em minhas preces, que se este nascimento ocorresse durante a minha vida, me permitisse o todo poderoso presenciar este evento maravilhoso. A estrela tu já vistes. Minha historia ouvis-te; te compete agora decidir. Continuou perorando8. - Peço perdão para o que vou dizer. Tua esposa está bem, minha casa está em ordem. Já pegastes teus peixes e conseguistes as ovas que querias. Já recebestes os beijos do teu sobrinho. Se por um acaso, ou por qualquer motivo não quiseres ou não te interessares pela aventura a que sou, por minha fé, obrigado a empreender, deixo-te como tua a minha casa e sob tua guarda minha família. Vou de barco, pela costa, que considero mais cômodo e rápido do que pelo interior.” - Que pude fazer? Já tinha ele preparado todo o necessário, em termos de provisões para duas naus (a minha e a dele). Mandei chamar o meu amor (que estava com uma leve dor de cabeça), despedimo-nos dos que ficavam e fizemo-nos ao mar rumo ao canal que nos levaria ao Marmara e posteriormente ao mediterrâneo. Mas, ele ainda tinha outras surpresas. Os barcos viajando próximos um do outro. Estando comigo no convés do meu, olhou-me bem nos olhos, analisando minhas reações, disseme: “Tenho que levar conosco o Felipe, e deveremos apanhá-lo lá em Cesaréia”. De momento não atinei com o que ele queria dizer. Mas, depois... “Senhor Alec, não estás te referindo, naturalmente, ao filho daquele sápatra9, não é? Não acredito que pretendas colocar-me frente a frente ao filho do traidor de meus pais. E em se tratando de uma viagem pelo interior, e que ninguém sabe por quanto tempo, ter que conviver com tal criatura!” (A titulo de esclarecimento, devo mencionar que naqueles dias se contavam 27 anos em que o senado romano transformou um homem em deus e ainda, por cima, deu-lhe a alcunha de Augusto. E era ele todo poderoso. E formou aliança, para não dizer quadrilha, com o pai do tal Felipe - de nome Herodes Magno, para alguns, um obsceno crápula responsável pelas mortes de meus genitores, logo após traí-los). 8 - Perorando - concluir ou fechar a oração ou discurso. 9 - Sápatra - governantes de “provincias” divididas após a mor¬te de Alexandre, o grande, que não deixou sucessor para seu império.

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- Bel meu irmão, devo esclarecer-te. Felipe não pode ser responsabilizado pelos desatinos do pai. É ele um legitimo Judeu, por nascimento e convicção, ao contrario do seu genitor, que é um samaritano; é homem fino e educado, tendo herdado da mãe, da princesa Mariamna, de fina cepa judia o caráter reto e nobre. Não compactua ele, em nada, com os despropósitos de seus dois outros irmãos - ainda mais que irmãos por parte de pai apenas. Mas com a velhice deste último, e sabedor do que herdará em breve, está administrando a cidade que elegeu para sua Capital, o que apenas demonstra sua visão de homem de Estado. Também ele sabe da profecia e, em encontros anteriores em meu estabelecimento, fizemos um acordo quanto ao fato de visitarmos, se isso nos fosse possível e permitido ao nascimento do menino. Poucos seres em nosso mundo, eu acredito, terão este privilégio, gozarão desta graça. Aquelas palavras me convenceram, além do fato de eu estar curioso de inteirar-me do que estava realmente acontecendo. Ainda assim retruquei – “e se a estrela sumir, se apagar, como localizar o rebento?” - Não se apagará, tenho certeza. Não se esta for A estrela, e eu assim o creio. Bem, estamos de volta, atravessando aquela beleza imensa e cristalina, em direção ao Mediterrâneo e, posteriormente, ao pequeno porto de uma cidade presumidamente fenícia, cujo nome não me lembro. Parece-me que Pitelomaída. Pois essa cidade fica a oeste das cabeceiras do lago de Betsaré, de onde poderíamos seguir viagem até Cesareia, passando em rota já conhecida, deles, meus cicerones. A travessia do mar Egeu já não foi tão feliz, para mim, porquanto a vela principal do meu barco rasgou-se, não se sabe como, talvez como sinal azíago10 do que enfrentaríamos. Logo em seguida, ao segundo dia, minha guerreira passou mal, com muita dor de cabeça e tonturas. Ao todo, gastamos quatro dias até chegar ao tal e bendito porto. Fomos bem recebidos e a aquisição de dez asnos para nosso transporte, do material e viveres foi bastante agradável. Dos quatorze homens que compunham nossas embarcações, seis ficaram para a guarda dos barcos, inclusive de minha princesa, com a missão de, ao segundo dia, depois de medicada minha amada, descerem ao porto de 10 - Azíago - de mau agouro.

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Ascalon e ali nos aguardarem em segurança. Fero prometeu-me que dedicaria sua própria vida em defesa do meu maior bem. Viajamos por umas cinco horas, e eu ia apreciando aquela beleza toda. Quando pouco andado pelo continente, após uma planície linda, montes em elevação se assenhoreavam do ambiente, que não é de todo agressivo, mas que garantem o suporte daquele mundo, todo ele, em razão de aquelas águas fluviais ficarem abaixo do nível do mar, visivelmente, e eu me pergunto até quando estas águas salgadas respeitarão a integridade daquele oásis. Descemos muito, após a subida, parece-me que uns duzentos côvados, no todo, até chegarmos ao mais lindo lago de água doce que me foi dado contemplar. É incrível. Um rio até que bem modesto, exibe uma maravilha cercada de colinas, onde se sacia a sede e onde homens exibem como troféus peixes lindos e fresquinhos. Falemos de seres humanos. Quando, em pleno lago negro, lá na Turquia, distribuindo carnes de peixes de que não gostávamos, por sua coloração escura, aos nativos (destes peixes só aproveitávamos as ovas das fêmeas) registramos que a aparência daquele povo destacava, como característica racial, notável proeminência nasal, eu direi mesmo que adunca11 ao extremo, apoiada em um vasto e negro bigode encimado por olhos pequenos e negros. Vigilantes. Os felás nativos usavam punhais como arma 12 de defesa, mas os de classe superior portavam vistosas cimitarras curvas em suas ilhargas. Poucos as usavam sobre o ventre. Mas, aqui, nas cabeceiras do mar da Galileia, o visual era diferente, apresentando-nos indivíduos de tez clara, muitos de olhos azuis, nariz afinado e perfil esguio. No entanto, a maioria exibia uma cor amorenada, talvez em decorrência de uma permanente exposição aos raios do astro-rei. Estávamos, neste exato momento, em terras de Herodes Antipas, filho de Herodes o Grande, este sim, herdeiro em potencial de um bom quinhão do samaritano, assim como, também, herdeiro do gênio irascível e corpanzil avantajado do pai. Isto não obstante, dispusemos-nos a um bom e refrescante refrigério nas águas cristalinas que ali se nos ofereceu. Armamos acampamento, naquela tarde, às margens da estrada que nos levaria a Cafarnaúm, que era caminho que nos conduziria até 11 - Adunca - em forma de garra, recurvado. 12 - Cimitarras - espada de lâmina larga e curva.

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Cesareia de Felipe, e, se o quiséssemos, até Damasco. Depois de uma noite tranqüila, reiniciamos viagem. Era a estrada construída em meio a uma vegetação rasteira e cheia de espinhos, desanimando-nos de qualquer aventura, salvo por necessidade fisiológica com que se nos deparássemos, o que, è claro, acontece normalmente. Do ponto em que estávamos, até Cafarnaúm, foi um pulo, como se diz. Uma hora depois, eis o curso d'água, o próprio Jordão, que fornece a vida ao lago logo abaixo. Peço permissão, aqui, a vós que dedicais o tempo em tomar conhecimento do que relata este pergaminho, para descrever o que me chamou a atenção naquelas paragens. Primeiro, uma quantidade enorme de borboletas, de matizes variegados ao extremo. Eram tantas que fomos obrigados a usar ramos para espantá-las e ver onde pisávamos. E, depois, em águas paradas às margens, um agrupamento de nenúfares13 como nunca vi. Quedamo-nos, a pedido meu, por ali, até que o sol se projetasse sobre elas, para vê-las se abrirem. Valeu à pena. Para quem não sabe, estes vegetais, para se manterem, fixam seus caules, através de um bulbo, de peso relativamente grande, ao fundo do lago, no caso, ao fundo do rio. Neste ponto a água era parada. Mas, a profundidade não pode ser superior a, mais ou menos, cinco palmos, no máximo sete, limite maior da dimensão da haste de sustentação. O mais notável, pelo menos para mim, era a coloração da planta, aberta sua coroa. Na minha terra, ela é de um branco fino, adornado por laterais azuis. Aqui, era igual, menos no centro da flor, que era de maravilhosa tonalidade rósea. E, ainda, com o avançar do astro-rei na órbita celeste, elas se fecham graciosamente. Fica, o róseo, oculto da canícula sob proteção de um magnífico adorno verde-escuro. Aí surgiram os jegues do demônio. É assim como os conheço. Da família dos odonatos, estes insetos são, certamente, os seres mais velozes do planeta. Com dois pares de asas eles fazem a festa. Transparentes estas, abdômen comprido e controlado ao bel prazer da espécie, dão, estes bichinhos, (libélulas) o maior espetáculo a quem se digne observá-los. Bem, vamos atravessar o rio e seguir viagem, que, na verdade, 13 - Nenúfares - planta aquática como a vitória régia ou flor de lotus.

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foi curta por aqui, porque logo notamos, lá pela nona hora, como diria o Alec, que iríamos nos encontrar com viajantes em sentido contrário ao nosso. E era comitiva de pequena, a julgar pelo número de cavalarias e dois escudeiros que guarneciam os seus membros à frente da caravana. Portavam eles, a exemplo de, talvez, seus mestres romanos, vistosos exemplares de legítimos gláudius hispanus14, e o faziam com galhardia15. No centro da coluna, vinham, em nossa direção, dois homens e suas montarias, flanqueados e guarnecidos por outros dois cavaleiros na retaguarda. Um total de seis, portanto. Colocamo-nos à esquerda 16 da via, aguardando o passar daquele séqüito . Aí aconteceu o inesperado. Alec saiu em disparada, a pé, e pôs-se a gritar em aramaico, correndo em direção ao centro da comitiva. Os dois escudeiros lançaram mãos às armas, e nós, de cá, nos precipitamos para o centro da aparente contenda, empunhando as nossas. O que acalmou os ânimos foi uma ordem curta e prontamente obedecida, proferida pelo jovem que os comandava. Graças, enfim, pensei. O meu cunhado e o tal personagem se abraçaram e se beijaram, como de costume. E entre risos e lagrimas foram feitas às apresentações: - Felipe Traconídes, meu amigo e senhor, eis aqui meu cunhado e amigo Belchior, de quem já lhe falei. Bel, este é o meu amigo e irmão, a quem também espero consideres da mesma forma. Interessante... - Esperava encontrar um homem corpulento, mas, era aquele jovem esguio, até mesmo belo, se me permitem dizê-lo. Não aparentava mais que vinte anos, e, no entanto, seu semblante permitia-me intuir uma nobreza rara, apesar de vir a ser descendente de um tirano de triste referência. Vamos ouvi-lo: - Meus amigos: apresento minhas escusas, que espero sejam aceitas, se levarem em consideração que meus guardas não falam o Aramaico. Aliás, por aqui, poucos usam este idioma mais completo; apenas o hebraico, como é natural. Que bons ventos te trazem, meu amigo? Será que o fazes viajando por causa de alguma luz? - Aí deu para perceber que o tal sabia da estrela, que, diga-se, teimava em aparecer-nos durante a noite, pulsando e brilhando, semelhante a um chamamento lamentoso e urgente. Alec se 14 - Gláudius hispanus - Espada adotada pelos romanos a partir do século 3 antes de Cristo. 15 - Galhardia - elegância, esforço, bravura. 16 - Séqüito - cortejo.

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apercebeu do fato e foi logo ao assunto: - Íamos a busca de ti, amigo, e já sabes do motivo. Foi bom, pois assim diminuir-se-á nossa espera para presenciarmos o evento para o qual, parece-me, somos convidados. Felipe me olhou de soslaio. - Ele não é judeu, Lec! - Revidou-lhe este: - não é judeu, mas é homem e amigo. E ele é de minha confiança, e sabe de tudo, pois fi-lo ciente. Aí fico cismando - não sou judeu, realmente. Em fim, o que sou? O que serei? Sou egípcio ou romano, africano, asiático ou simplesmente europeu? Fui criado como plebeu em meu país, entretanto tenho sangue nobre. Por duas linhagens. Minha mãe ostentava uma quarta unidade acrescida ao primeiro nome, da dinastia dos Ptolomeus, e meu pai foi general de Roma, e vi ce-rei. Mas, Felipe foi enfático: - Sei quem sois (e aí temi uma possível indiscrição do Alec) e o recebo e aceito como igual, e é com prazer que me coloco à vossa disposição, durante nossa aventura e pelo tempo que a vossa bondade me aceitar como amigo e irmão. - Aí se vê, não pude me furtar, se assim posso dizê-lo, ainda mais com tanta primazia colocada no tratamento que me fora outorgado. - Então, vamos descer o Jordão? Pela manhã do dia seguinte, fomos a Magdala, por sugestão do ex-anfitrião - pois já não nos encontrávamos em terras deste herdeiro, mas em domínios de seu irmão Antipas, a quem ele queria evitar. Compramos roupas leves até mesmo para a confecção de um turbante, já meu velho conhecido - ouro, incenso e mirra, que, segundo meus amigos, era usual em oferendas a um rei ainda nascituro. Esta expressão “REI” - pareceu-me inadequada e temerária, nas circunstâncias, mas foi como se referiram. Na volta, passamos outra vez pelo lago, ouvindo o linguajar ligeiro e cantado dos galileus, ofertando as mercadorias que portavam, enfim, catando algum dinheiro. Da mesma forma notada nas margens superiores ao lago, víamos árvores ciliares acompanhando o Jordão. Naquela noite, na fimbria17 divisória de Decápolis, após a 17 - Fimbria - orla, franja.

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fronteira com a Galileia, umas duas horas além do encontro das pouquíssimas águas do Yarmuk com a margem esquerda do Jordão, ouvi e temi, pela primeira vez, o urro do leão. Um bramido terrível, eis que a terra parecia tremer. E bem próximo a nós, pareceu-me. Segundo o Felipe (Majestade?), provavelmente, sendo primavera, estaria a fera procurando fêmea para acasalamento. Mas estávamos em numero respeitável, e o animal não nos causou maiores problemas. Também naquela noite, não sei, fiquei decepcionado, pelo que notei, e disso cientifiquei ao Alec; em relação à Estrela, digo. O céu se apresentava bastante nublado; nuvens baixas, e ela lá estava, maravilhosa, como de costume. Acontece que as nuvens encobriam o firmamento, e ela estava a não mais que sete estádios, pois a topografia assim o favorecia, em se tratando de um vale. Chamei o cunhado e mostrei-lhe a luz no céu. - Tudo bem, disse-me ele, você já a conhece. - Retruquei de imediato: pensei que conhecesse. Olha, o céu está escuro, e só ela aparece. Como já lhe falei, e é do seu conhecimento, as estrelas estão longe por demais, e aquela ali está quase ao alcance da mão. Acho que ele também ficou chocado, e sem poder explicar aquela verdade. - Mas olhe, continua ela a piscar e pulsar, parecendo nos chamar. Não o digas ao Felipe, mas vamos continuar em frente, pela manhã, já que não estamos tão longe de terminar nossa empreitada. Não creio estarmos enganados, pois, o fato é que aquele corpo luminoso nos tem acompanhado por muito tempo, e eu ainda acredito. Na manhã seguinte continuamos a viagem, percorrendo a trilha, pois aquilo não era uma estrada, pela margem direita do rio, e pela tardinha atingimos Jericó – multi-milenar Jericó, berço de civilizações passadas, terra pisada por homens e pisoteada por animais em guerra, desde priscas eras18. Tão ou mais antiga que a mais velha cidade de minha pátria. E a Estrela, ou a estrela, à noite, brilhava, nos chamando. Foi uma noite de uma expectativa exasperadora. Para mim, vontade de esclarecer logo a questão. Queria saber se era mesmo possível que uma luz que viajava no ar, nem sei e nem se sabe como, guiasse a quem, como nós, que se aventurasse por aquele sertão em busca de um sonho, baseados em 18 - Priscas eras - tempos antigos

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uma fé que não era minha, alicerçado apenas na curiosidade e amizade entre dois homens, agora três. Mas, amanhã seria novo dia, e o passaríamos em Jerusalém onde meus dois amigos visitariam o templo e fariam orações certamente pedindo orientação ao Adonai deles, o próprio Javé. Mas, dispunham eles da minha simpatia. De qualquer forma, tínhamos, por certo, deliberado seguir caminho a Belém pela tarde, já que aquela cidade, nossa meta, distava apenas uma hora e meia da Capital. E pretendíamos lá chegar à noite, porque não poderíamos abrir mão do auxilio da Estrela, na localização do evento de suma importância para toda a nação. Durante aquela penúltima parada, supúnhamos, antes de atingirmos a Cidade de Davi, nós, os três, em sigilo, traçamos planos que nos facilitassem a empreitada. Em primeiro lugar, continuaríamos viagem em anonimato, só revelando nossas identidades se absolutamente necessário. Ao Felipe, por que não interessava se bater com seus dois meio irmãos, de frente, e Arquelau era autoridade absoluta pelo território adiante a ser percorrido. Neste momento, fiz uma observação imprópria, percebi-o de imediato. - “Rei suserano”19, disse. Felipe se enrubesceu, afastando-se. João Alec, percebendo-o, pediu-me, educadamente, que não mais mencionasse o fato que, se ocorrido em presença do segundo Antipas, poderia me custar a própria vida. Fiquei envergonhado com o ocorrido e apresentei minhas escusas sinceras ao nosso nobre amigo. Mas, como não podíamos simplesmente tornarmo-nos invisíveis, e ocultar nossa evidente condição econômica em razão de nosso numero (dezesseis pessoas), mesmo se fosse considerada a grande quantidade de pessoas percorrendo a área em razão do recenseamento ordenado por Otávio. João teve a idéia: - Passaríamos por... Reis. Para os não iniciados: - A Mesopotâmia é um país fantástico. Há uns mil anos (e eu o li na biblioteca de minha Cidade), aquele povo instituiu o 19 - Rei suserano - Diz-se do soberano de um Estado com respeito aos de outros Estados que, subsistindo em condições de aparente autonomia, lhe rendem contudo vassalagem ou lhe pagam tributo.

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sistema de cidades-estados, como forma de facilitar a administração e o controle da economia e aí, já se viu, os ricos se tornaram reis. Este sistema de fragmentação se generalizou e se expandiu por todo o domínio posterior Helênico, e prevalecia ainda em nosso tempo. Qualquer um que tivesse em mãos o controle de uma cidade era rei. Mas minha pátria não adotou o sistema. Assim considerando, Filipe praticamente o era. Na manhã seguinte, apanhamos nossas montarias e fomos em frente. A vegetação a seguir me pareceu mais rasteira, tornando menores as sombras das arvores que cercavam o rio. Assim, deliberamos, para evitar contatos desagradáveis com alguma patrulha que, o mais que provável, estivesse em serviço na área, encher duas peles de cabras com água, já que daqui por diante esta seria mais salobra, cortar caminho abandonando o rio e evitar as pequenas povoações que se interpunham entre nós e a Capital, Jerusalém. Quando nos encontrássemos próximos, então subiríamos até ela. E assim foi feito. A despeito de nossas montarias terem sido trocadas em dia recente, notei que o nosso rendimento, na estrada, não era satisfatório. Alec contemporizou que a trilha era secundária, daí não esperasse eu um rendimento melhor. De qualquer forma, ao cair da tarde daquele dia, resolvemos parar para descanso próprio e dos animais, que o calor por aquelas paragens estava fazendo brotar água em nossos poros. Também a noite se propunha escura, porque era o segundo dia de lua nova. Convinha-nos evitar a trilha em circunstâncias tais. Víamos um céu cheio de estrelas e, no sudoeste, a nossa guia se mantinha firme. Calculei que minha cidade também se encontrasse naquela direção. Por todos estes dias, tenho pensado na minha estrela. A Minha. Nesta noite, a ausência dos olhos de minha amada trouxera-me orvalho doído aos meus. Mas, pensei, já, já eu a vejo. Havia, entre as pequenas elevações que nos rodeavam, uma certa quantidade de água de uma fugaz chuvinha daquela tarde, e nela nos saciamos e ali junto armamos nossas tendas. Durante a noite, perdemos um asinino20, picado que foi por uma víbora, e aí 20 - Asinino - asno, burro, jumento.

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tivemos que aumentar mais uns pesos no lombo dos restantes. Cedinho, lá pelas primeiras horas, pusemo-nos a caminho. Pela quinta hora avistamos, em uma elevação, a cidade símbolo e repositório da nacionalidade hebraica. Não sei se o Templo seria a maior edificação local, mas era evidente o destaque que seu construtor conseguira obter. De longe o avistamos, e de longe, também, percebemos uma enorme caravana que se aproximava em sentido contrario. Já a esta altura estávamos na via de acesso principal à Cidade. À frente da comitiva, contei seis guardas (a cavalo). Ao todo, deveriam ser umas quarenta pessoas. Só notei que o Felipe se adiantou, turbante nas mãos, em sinal de submissão, quando levantei o rosto do lombo do asno que me vedava à visão, pois me encontrava agachado apertando umas tiras ao lombo do animal. A caravana parou. E ali naquele momento assisti pela primeira e última vez ao encontro daqueles dois homens. Não ouvi o diálogo, pois estava distante do local. Fiquei sabendo que aquele pai interrogou ao filho do motivo de sua presença, incógnita, por ali. O herdeiro de Ituréia foi pego de surpresa e confessou que ali estava para reverenciar ao salvador de Israel, conseqüentemente um futuro rei. Recém-nascido. Onde? Belém! Mas, ponderou o velho tetrarca, reis tu és, filho, pelo menos nos domínios de que somos senhores. Mas, tenho de seguir. Só espero que tu e teus amigos (e eu fiquei ao longe) quando voltarem procurem-me, para que eu também vá prestar homenagens a tão ilustre personagem. Ainda mais que gostaria muito de oferecer-te, e aos teus amigos, uma pequena, porém, digna recepção. Despediram-se e, logo após, eis nós em plena Jerusalém. - Mas, antes, é preciso que o diga. Três anos depois deste encontro, gerador que foi de um pequeno genocídio - não em importância histórica, mas em números - e em que pese afirmações em contrário, este indivíduo foi posto para dormir junto aos seus ancestrais. Graças aos céus. Acredito que por quem de direito. - A minha esperança é que Thoth21 ignore-o totalmente. Passamos o resto da tarde por ali. Para mim não interessava visitar templo algum, e por isso fui extasiar-me com algumas 21 - Thoth - Deus egípcio, considerado uma dos mais importan¬tes divindades do panteão egípcio.

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belezas da Cidade, alem das obras do artífice escolhido pelo Rei Salomão, e que foram preservadas das destruições deixadas por guerras. Deixei os dois no templo e fui passear pelas redondezas da Cidade. Longe, ao sul, por entre espaços permitidos pela montanha, divisei pequena parte da massa liquida do mar Morto, e fiquei sabendo, por cidadãos locais, que este se iniciava logo à frente, circundado por enorme depressão acompanhando, pelo que me informaram, ao maciço de um tal monte Hebron. Achei maravilhoso. Admiro beleza natural, porque de coisas conseguidas pelo engenho humano nada supera meu Egito e isso me basta. Voltei à Cidade, arrumamos nossa tropa, e lá pela décima segunda hora, de acordo com o Alec, reencetamos nossa viagem, sua etapa final, segundo imaginava. Estava escurecendo e, até aquele momento, não havíamos percebido qualquer sinal de nossa luminosidade celeste. Isso até escurecer e, lá pelas tantas, deparamo-nos com um grupo de pessoas executando um trabalho, que consistia em manter agrupadas umas poucas ovelhas reunidas em um campo de parca vegetação. Pareceram-nos assustadas ao verem nosso grupo, mas permaneceram firmes em seus postos. Eram quatro nativos, que nos saudaram e interrogaram-nos sobre o motivo de nossa presença ali, por aquelas paragens. Sem que o quiséssemos, foram logo curvando a espinha em sinal de submissão, e ao tentarmos impedi-los disseram-se nossos vassalos, já que éramos Reis e seus senhores. Respondemo-lhes que ali estávamos à procura do Messias (isso foi dito pelo Felipe) que sabíamos nascido, que o queríamos honrar. As barreiras foram vencidas e logo nos indicaram uma elevação, distante uns quatro estádios de nossa posição de momento, na parte nordeste de Belém, bem próximo à lateral de um pequeno campo, junto a uma ruela. A elevação, revelou-se-nos, a seguir, ser apenas a cobertura vegetal de um abrigo, colocado ao pé de um pequeno morro. Disto nos apercebemos depois, porque tão logo nos encontramos a uns duzentos côvados do local, notamos no céu, vindo da direção norte, o que nos pareceu a calda de um cometa. Também a tal calda desapareceu e, em substituição, de imediato, aconteceu! - Pairando sobre o local da cobertura referida, a uma 27


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altura aproximada de oito estádios, de principio apresentando brilho opaco, que foi ganhando cores mais fortes, nossa conhecida guia espacial se apresentou, e como... - com uma formosura nunca antes vista. De início percebi que ela estava horizontalmente postada (se assim se pode dizer) lá em cima, mas logo a seguir mostrou-se-nos, na vertical, como se empinada, em um núcleo de 30 a 40 côvados de circunferência (aproximadamente) e pulsava adquirindo mais brilho. Um brilho que quase cegava, e, entretanto, continuou aumentando. Uma ponta para cada lado. Quatro ao todo, pois assim ela era. Duas horizontais e duas verticais, partindo do que seria seu núcleo reluzente. Em um dado momento, o brilho das pontas horizontais se contraiu e se agrupou às verticais, tornandoas (as verticais) mais espessas e brilhantes. Aí se deu o que eu considero o clímax. Jamais poderei me esquecer. - Deus infinito, por que me colocastes aqui, neste momento? Serei acaso merecedor de tal prêmio, ou estarei sonhando? Alucinação, de forma nenhuma, pois nada poderia ser mais belo. As duas pontas agora ganharam brilho e volume, e o brilho da ponta direcionada à terra iluminou, por uns momentos, o próprio interior da pretensa gruta - permitindo-nos, inclusive, distinguir vultos no seu interior. A parte superior expandiu-se, pareceu-me, até o infinito. Ali, naquele momento, tive a nítida impressão de uma espécie de união entre os dois mundos (céu e terra) como o cumprimento de algo há muito prometido e desejado. Em seguida, as partes se retraíram concentrando-se no núcleo e houve como que um “ploc” ou “gulp”, como uma explosão ao contrario, como se ela própria se engolisse. A nossa guia deixou de existir. Só nos restou a escuridão e a perplexidade. Para mim simbolizou um principio. Já não podia rir-me do Deus dos meus amigos. O que presenciara não era coisa corriqueira e, certamente, fora ação direta da manifestação de algo superior, e oculto até. Somente quem ou o que detivesse nas mãos um poder acima da condição humana poderia fazê-lo. Não quero e, ainda, me é penoso continuar neste comentário, pois sei o quanto fatos semelhantes parecem inacreditáveis para a maioria das pessoas.

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Ao nos recobrarmos da surpresa, nos aproximamos daquele local humilde. Lá notamos umas três pessoas, pois o cômodo era muito exíguo em suas dimensões e também não era do interesse delas abrigar outras almas. Ao redor, contidas por cordas de cânhamo, algumas ovelhas procuravam maneira de enroscarem-se umas às outras, porque fazia um friozinho matreiro. Não deu para distinguir o rosto do homem que se nos apresentou, de forma nítida, pois a luz frouxa que notamos apenas se concentrava, como deveria ser, no local de repouso do recém-nascido junto à sua Mãe. Ali não penetramos. Apresentamo-nos a José e falamos de nossos propósitos. Fizemos nossas doações, e ele ficou boquiaberto com nossas explicações, pois não poderiam imaginar ele e sua família serem visitados por pessoas tão importantes e após longa e exaustiva viagem. José, não vistes a Estrela? - Ocorreu-me perguntar-lhe! “Eu estava dormitando, respondeu-me, só tendo percebido os vossos passos ao se aproximarem e, antes, notei o brilho de um relâmpago''. Tivemos que esclarecer ao nobre homem que o que lhe parecera um clarão de anuncio de tempestade era, na verdade, o brilho do céu que garantia ser Ele, o menino e Ele somente, o prometido pelos profetas de Israel. Nossa assertiva emocionou-o deveras, pediu licença e se retirou para junto dos seus. Aparentava, então, ser mais velho que eu poucos anos. Conseguimos permissão (estávamos tratando -o com as devidas honras), para acamparmos por ali. Ficou muita gente próxima ao local, naquela noite, como se fossemos uma espécie de guarda de honra. Não destravamos toda nossa tralha, somente o necessário para retirar alimentos. E nisso refiro-me a uns nacos de peixes salgados, acompanhados de um parcimonioso vinho de uvas que trazíamos, pois a ocasião o exigia. Até mesmo o marido da senhora, educadamente, nos fez companhia. - A nossa vigília terminou tão logo o dia amanheceu. Na companhia de José, deparamo-nos com uma menina moça, de uns quinze anos, de uma altura aproximada de três côvados, mais dez vigésimos. Morena clara, cabelos levemente anelados e 29


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um rosto, céus, um rosto que faria qualquer Fídias ascender ao paraíso, ostentando acima dos lábios róseos e do nariz fino e delicado uns olhos verdes claros, com pupilas negras. Não tinha, ainda, desenvolvido suas formas de mulher, que agora o era, mas, ainda assim, uma soberba presença, demonstrando uma humildade consciente. Aí, após nos oferecer um pouco de leite de cabra e cobrir a cabeça com um manto rosa-claro, retirou-se para retornar com a criança que, nos disseram, estava completando oito dias de nascida. Uma criança linda, também, rechonchuda, de mãozinhas gorduchas e brancas, cabelos lisos e claros. Desculparam-se conosco, pois tinham de levá-la ao templo, em Jerusalém, para as apresentações devidas e de lei. E urgia o fizessem o mais rápido para aproveitar o frescor da manhã. Neste momento, chamei o José à parte e fiz relato de nosso encontro com o Herodes Magno (ele ainda não sabia quem era o Felipe) e do desejo pelo mesmo, manifestado no tocante a visitar o menino. Olhei de frente aquele homem e percebi o receio estampado em sua fisionomia. Confessou-me, sem maiores explicações, temer um encontro com esta pessoa, e pela segurança da criança e da mãe. Depois completou dizendo que havia sido, em sonho, advertido quanto ao risco que corriam e que procurassem se ocultar aos olhos do tirano, se possível retirando-se do país. Sugeri, então, como país hospedeiro minha pátria, ali próximo, e Alexandria como lar, podendo ficar seguro de que, dentro dos limites do possível daria minha palavra quanto à segurança sua e dos seus entes queridos. A comitiva que acompanhou aquele menino para a apresentação no Templo, se me permitem a imodéstia, era mesmo digna de um Rei. Todos da nossa aventurosa viagem, mais os três que estavam na gruta. O quarto era um rapaz jovem, quase 22 imberbe , se não me engano libanês ou armênio representante de uma empresa e que estava ali de passagem, que se sentira condoído com a situação de a criança estar com pouco agasalho na ocasião, o que o levou a doar-lhe uma manta vermelha, sem costura. Eu a vi e era linda. Também ele foi testemunha de tudo o que ocorreu nos recentes acontecimentos e nos próximos que se seguiriam. No 22 - Imberbe - Diz-se do ou aquele que ainda não tem barba.

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caminho conversei com o Alec quanto ao temor do pai da criança e ele compreendeu de pronto. Não mencionamos, até aquele momento, o fato ao nosso Felipe. Chegados que fomos, ainda pela manhã à capital, dirigimo-nos imediatamente ao templo para que nossos amigos, José e Maria, cumprissem o que para eles era de suma importância, um imperativo religioso. Tão logo a criança sentiu a dor do corte do prepúcio quando da circuncisão, aprontou um berreiro que só vendo. Bons pulmões... pensei. - Aconteceu, naquele momento, o que me pareceu tremenda indiscrição que me abalou e revoltou, momentaneamente. Um velho, bem velho, que se encontrava absorto em orações, levantou a enorme cabeça grisalha e, aos gritos, deu graças por estar ali presente quando da apresentação daquela criança, em especial, dizendo - mais ou menos - isso: - “Elevo aos vossos ouvidos, senhor Javé, meus agradecimentos, pois cumpristes a promessa que os meus ouvidos ouviriam, que os meus olhos teriam luz para ver o Salvador de Israel. Agora, podes levar em paz o teu servo”. Tudo bem que a fé foi manifestada, mas, tornou-se publico um fato que era de todo recomendável, dado as circunstâncias do nosso conhecimento, ser mantido em sigilo. Pelo menos naquela ocasião. E o templo estava repleto de pessoas, que logo procuraram se aproximar para tomar conhecimento do que teria originado aquele pequeno tumulto no local. Fomos saindo, as sim meio apressados, e logo, logo veio-nos um da nossa comitiva dar noticia de que um sacerdote antigo ali no templo, saíra à sorrelfa23, em atitude mais que suspeita. Não paramos para pensar. Pegamos a estrada. Já agora, o Felipe foi conscientizado do risco que representaria o velho Herodes tomar conhecimento do local aonde se encontrava a criança. Tomamos o caminho de Ascalon, onde nossas embarcações nos aguardavam. Ascalon já era cogitada por Roma para ser um porto livre, dado o interesse que a cidade suscitava, com boa movimentação portuária. Parece a todos nós, quando o perigo se nos avizinha, que intuímos imediatamente do fato. E agora todos 23 - À sorrelfa - dissimuladamente, sorrateiramente.

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E agora todos estávamos como que energizados e firmes no propósito de alcançar a praia, ou porto, o mais rápido possível. Seriam necessárias trinta horas, mais ou menos, para conseguirmos nosso intento. Ainda assim, seria preciso atenção especial para com a nossa preciosa carga, para não dizer preciosas cargas. Asininos versus cavalos, não è uma disputa muito equilibrada. Daí a pouco, percebemos poeira em nossa retaguarda, em iminente ameaça. Enviei um mensageiro à nossa frente para avisar a Katiuschia e aos demais embarcados, sugerindo que, se possível, viessem ao nosso encontro. Antes de chegarmos ao mar, em plena planície que o antecede, fomos alcançados. Já, nesta altura, ainda em correrias, havia beijado os lábios da minha amada. Estava ela montada em um eqüino negro, que era um destaque, fazendo ornamento para a sua beleza. Muitos dos que se encontravam embarcados também se reuniram a nós, formando, assim, um número respeitável, não para um confronto, mas sugerindo resistência em potencial, pelo menos. Fomos alcançados por uma patrulha Judaica, acatando ordens, nos informaram, do Herodes filho, mas concorde com o pai. Nestas alturas haviam passado pelo Felipe, sem o perceberem, pois o objetivo era barrar o avanço de nossa aparente tropa de frente. A minha estrela, parecendo ciente do que fazia, tomou dos braços de Maria a criança e procurou passar à frente de todos, no que foi barrada por um jovem guarda moreno e forte. Este levou o punho direito em direção à minha esposa, e eu gritei, me aproximando: - Não toques nela. Estava próximo a mim o João, que me alertou: é ele guarda romano! - Diabos, o que estaria fazendo um tal patrício ali? Devia ser para completar determinado número de legionários, se tal fosse, e tornar legal o que quer que acontecesse durante a empreitada. Certamente receberia bela propina para o que se prestava. O assecla romano do Herodes conseguiu agarrar o pulso de quem não devia. Ignorou meu aviso. Parti para cima dele, empunhando minha arma de preferência, a turca arqueada e larga. O gláudius do legionário não seria páreo para o peso da minha. Poderia ele ser bom o quanto lhe fosse

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possível, mas eu também tinha meus anos de prática. Meti-lhe a cimitarra no topo da cabeça; mas ele não era de todo inocente. Protegeu a cabeça usando a arma com a mão esquerda, soltando o punho a que se tinha agarrado, mas não conseguiu salvar a orelha direita, pois que a teve decepada. Blasfemou e xingou, mais ao Alec, que no momento se encontrava próximo: - “Bárbaros!” Alec João foi direto à questão.- “Bárbaros, nós, bastardo? Quando os heróis de sua pátria, seus fundadores, antes ainda de haverem provado das tetas da loba sarnenta, já éramos um povo com leis e sociedades vigentes e milenares”. Isso foi dito de supetão, de um fôlego, em latim. O que melhorou a situação foi a chegada do Felipe. Foi ele chegando, mesmo ridiculamente em desabalada carreira, e gritando para o comandante da tropa: - “Adelmo, do que se trata, afinal? Por que toda essa algazarra?” - Foi mais que interessante a atitude do militar (tu meu caro leitor, já vistes, alguma vez, galinha de pinto topar com um gavião?) - O tal de Adelmo não sabia o que fazer. Gritou para a tropa. Estacar! Bem, deu resultado. O guarda romano ficou me ameaçando, mas, ainda que infelizmente, a morte de um de nossos homens, ajudou a serenar os ânimos. Este fato lamentável contribuiu para arrefecer a situação. Depois, tomamos conhecimento de que era comum a troca de comandantes entre os herdeiros dos Herodes, em suas respectivas bases familiares, daí o conhecimento do nosso amigo para com o comandante. Ainda bem, pensei. Só nos interrogaram, para terminar, quanto àquele pequeno judeu junto de nós. “Judeu? - Que criança aqui é judia? - Meu filho, por acaso?” respondeu a minha amada, em nossa língua, abraçando-se à criança, nosso pretenso filho. Nossos amigos, os pais legítimos, prudentemente ficaram de lado, como de fato a melhor atitude a tomar. Ufa! - seguimos em frente. Antes de embarcarmos procedi às apresentações, e notei que a Katiuschia estava feliz ante a oportunidade de hospedarmos em nossa casa tão agradáveis pessoas, e ainda mais, uma criança tão bela e formosa. Ate aquele momento não sabia ela que aquela criança era a concretização de

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uma promessa de milênios. De qualquer forma, tomamos nossas embarcações, menos o Felipe e seus homens, que tornaram às suas casas por terra. Alec voltou ao Bosforo. Muito tempo depois assisti a um outro decepar de orelha, estou me lembrando, com resultados mais inusitados ainda. Devo acrescentar que os acontecimentos acima referidos deram-se após a décima sexta hora do dia posterior à nossa chegada ao Templo, e à cerimônia de circuncisão. - Quando do embarque, houve um pequeno problema com o controlador do porto, ou pretenso porto. Mas, logo entendemos que aquele bajulador pretendia mesmo era arrancar-nos em pouco de nossos estáteres24, e o que nos pareceu mais prudente era que aquiescêssemos às pretensões do biltre25. Todavia, não foi uma extorsão muito dolorosa. - A travessia, até o Egito foi feita em um mar agitado e tivemos que enfrentar vento contrário, durante metade do percurso. Lá pela 3ª hora daquela manhã, avistamos terras que compõem as costas norte de nosso país. Contornamos, com a habilidade de Fero, um grande monturo de terra de aluvião, carregadas pelas águas do Nilo, que se fixavam por ali, e que formariam, no futuro, talvez uma enseada, ou lagoa, na área do encontro daquelas massas líquidas. - Instalamos nossos hóspedes, provisoriamente, em nossa residência e, posteriormente, conseguimos uma pequena casa nas proximidades onde se fixaram. José era habilidoso e trabalhador, o que facilitou as coisas para todos nós. Conseguiu boa clientela para sua arte de carpinteiro, e, com o passar do tempo, foi-lhe mesmo possível economizar um bom capital. A criança já agora um lindo peralta de quase três anos, tinha os cabelos não tão claros e encaracolados, como outrora. Uma tarde, recebendo as visitas de nossos amigos judeus, e a minha princesa havia se retirado para outro cômodo da casa junto à Maria. O menino (até então evitava chamá-lo pelo nome, pois sabia o que significava), estava na mesma sala que eu e brincava 24 - Estáteres - valor e moeda instituída e fixada como base no sistema monetário grego. Foi encontrado no interior do peixe que Pedro pegou com anzol, a mando de Jesus, a fim de pagar o tributo de ambos (Mt 17:27). 25 - Biltre - pessoa desprezível.


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rabiscando o chão com um pedaço de telha. Tomado de um impulso, disse, e ele se encontrava de costas para mim: “Amiguinho já há algum tempo creio que realmente és o enviado de um poder que vem das profundezas do céu, e, para mim, constitui-se um mistério tudo o que Te cerca, pois, Te afirmo, eu vi a estrela que Te anunciou. Não sei se na vida - mas no Teu nascimento, ela Te precedeu. Intercedas por mim, junto ao teu Pai, no tocante à saúde de minha mulher - para que não sofra ela mais de dores de cabeça e faça desaparecer algum maligno que porventura exista em seu cérebro, e que possa ela dar-me filhos. Não estou propondo uma troca, mas afirmo que se for isso possível, representaria mais uma força para esta fé que sinto nascer no meu coração.” - O menino virou-se, como se, apesar de brincando, estivesse com a atenção voltada para mim e sorriu. Logo após, a sua Mãe e a Katiuschia tornaram à sala. Então o garoto, de quase três anos, ao invés de dirigir-se à mãe, correu para a dona da casa. Esta tomou-O nos braços, acariciando-O. Ele então, sorrindo, pregou-lhe um belo ósculo26 acima dos olhos. Um mês após eles partiram. José, de inicio, queria retornar a Belém, sua terra, já que soubemos da morte de Herodes Pai. Depois considerou que sendo o provável sucessor outro Herodes, seria melhor tornar a Nazaré, onde inclusive já residira. Para evitar que aquela família cruzasse de sul a norte o território de Judá, e encontrasse possíveis dificuldades, coloquei-os a bordo de minha nau com destino a (agora já o sei) Ptelomaída da Galiléia. Retornando, garantiu-me o Fero tê-los deixado em segurança naquela cidade. Logo após a partida desta ilustre família, minha esposa referiuse, de passagem, à uma recordação que nossa amiga Maria deixara conosco em nossa propriedade em agradecimento à nossa amizade. Não atentei para o fato, até o dia em que percebi um arbusto diferente estar germinando em nosso jardim; não conhecia a sua espécie. Ele cresceu, já maior que os seus colegas de ambiente, e ultimamente, nas primaveras apresenta em seu cume 26 - Ósculo - beijo.

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uns anéis de flores amarelas. Folhas medianas, ostentando a parte de baixo uma cor clara e porosa. Poroso também é o seu tronco. Pelas manhãs e tardinhas, quase sempre, noto um pássaro de tamanho médio, arroxeado, ali, a cantar. Ele pareceu-me gostar do ambiente. Mostrei-o à Katiuschia que encheu os olhos de lágrimas. - “Olha, querido, foi ali que a senhora depositou na terra e nos presenteou com a recordação de que lhe falei. Ali está guardado o umbiguinho do Menino”. Depois disso, percebi que o meu amor não mais reclamava dores de cabeça, apresentando aumento de peso. Com ótima saúde, foi até natural, não considerando os antecedentes, que uma bela manhã ela me revelou uma gravidez. Imaginem! Grávida! Neste dia o mundo foi radiante. E a vida sorriu para mim. Estas lembranças que revelo em meus papiros prensados, ocorreram-me após um amigo haver-me interrogado o nome do médico que executara uma trepanação27 tão hábil em minha esposa, a ponto de não se notar a menor cicatriz. Respondi-lhe não saber se o responsável estava aqui na terra, ou no céu. Só e apenas isso. Nos anos seguintes - um ano após, de cada vez, ao nascimento de meus dois filhos, fazia uma viagem a Nazaré para que eles fossem mostrar suas carinhas ao Jesus e aos seus pais. Sempre fomos bem recebidos lá. Solicito vênia28 para uma colocação: pode parecer estranho encontrarmos o Herodes II, durante o meu relato, em plena Judeia. Acontecia ser intenção do velho pai estabelecer este filho no domínio absoluto desses dois Estados, Judéia e Samaria, dado a importância dos mesmos, pois ali esta situada a capital dos hebreus, com o que não concordava Roma. Sendo Arquelau o preferido dos Cabeleiras e Antipas, do pai, houve controvérsia. Roma considerava Arquelau mais maleável. Prevaleceu o interesse romano. Não adiantaram os encontros políticos que os dois Herodes mantiveram por ali. Os meus cabelos ruivo-cobre se pratearam de neve. Às vezes a memória me trai, mas não neste caso. Em agradecimento, e 27 - Trepanação - abertura de um ou mais buracos no crânio. Há relatos de cirurgias desse porte no Egito e na Mesopotâmia. 28 - Vênia - Permissão, licença.


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homenagem, passei a assinar Marco Belchior El Nazário. Todos os meus descendentes conservarão este sobrenome. - E a vida continuou, os anos foram deixando marcas em nossos rostos e emoções foram-se acumulando nos corações. O João juntou-se aos justos do Senhor para o merecido descanso. Minha irmã veio para perto de nós, após o ocorrido, porque Simão, desencantado com a vida depois da morte do pai, partiu, junto ao seu irmão de criação, de nome André - acho que para a Galileia. No entanto sabe ele que a metade de tudo que tenho pertence-lhe. Eu que já fui Rei (?) Quantas aventuras vivi. Faço estas anotações por instância do meu amigo e irmão João Alec, que julgava necessário o seu registro. Mas, outro dia, ouvi maravilhas a respeito de prodígios que um certo nazareno realiza e, pasmem, em plena Galileia. Faz tanto tempo (21 anos) que lá não vou. Lembro-me uns olhos cor de avelãs de um certo jovem, enérgico defensor da Lei. E, bem, isso é outra história...

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A ENCARNAÇÃO DO VERBO E A REMOÇÃO DO QUERUBIM - Parte II O Retorno



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o Retorno O que nos moveria para determinadas circunstâncias ou para situações em que, se dependesse de lógica ou vontade racional, nos levariam a evitá-las e nem sonhar em executá-las, por um mínimo que seja de bom senso? - Será que de alguma forma, às vezes, algo além da nossa imaginação nos conduz a proceder de forma aparentemente leviana? Eu creio como absolutamente certo em uma resposta positiva! Se não como explicar que eu esteja, neste exato momento, e após vinte e um anos, retornando ao palco da aventura maior por mim vivida. Mas por lógica não poderia fazêlo, respeitando os meus sessenta e cinco anos e sabedor que sou dos percalços por que provavelmente irei passar. Israel, com certeza, hoje e sempre não seria o local mais aprazível para que um velho se arrisque, mesmo que em boa companhia. Mas as saudades de velhas situações e emoções me levaram a aceitar como uma atitude minha, embora cá no fundo, bem no fundo mesmo, algo me dizia que eu estava era sendo conduzido - por que motivo, eu ignorava. Quais eram as saudades eu bem o sabia. Lembro-me do meu belo barco quilhado, cujo nome representava uma homenagem de minha estrela a sua terra natal e ao rio de sua despedida (Dnper), e do naufrágio, na costa oeste da África em missão comercial, que me levou, além do prejuízo material, a vida de Fero, o homem de minha confiança e, assim, à perda realmente irreparável, abrindo, por conseguinte, mais um compartimento em minha memória, onde guardo minhas mais aprazíveis recordações. Com relação às indesejáveis, simplesmente sufoco-as, por não desejá-las. É assim que eu sou, não posso mudar. E do João Alec, o Alec, cunhado e irmão, o que poderei dizer? O rosto deste companheiro nunca me saiu da memória. Preciso conhecer mais do Adonai dele, para tentar entender melhor o mistério da vida, e acreditar como ele acreditou - que este Deus que se faz presente nos escritos que ele me emprestou realmente existe, e que o que Moisés testemunhou não foi uma ilusão, ou um sonho. Se Ele for um sonho apenas, que seja bendito; porque é por Ele e através dele que existe toda a nação, tanto Judá quanto o Reino de

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cima, Galileia, Itureia e etc.. Muito tenho lido e aprendido sobre este povo. Suas desditas e vitórias. Mais sofrimentos que gozos. Mas que continuam alimentando a esperança. E a esperança, na realidade, é o único e legítimo alimento moral dos povos de todas as nações - malgrado a atuação de inúmeros (se não todos) dirigentes que usam os inocentes cidadãos para auferir proventos para as suas locupletações gananciosas e imorais. Sejam Reis ou o que forem. E, ainda assim, os cidadãos esperam. Que força movimenta a multidão? - A fé. Ainda que os tiranos tentem entendê-lo, jamais conseguirão uma interpretação que se lhes pareça lógica, porque carecem da inocência dos humildes, e é exatamente na inocência que o Ser Supremo se move. Ela é o palco preferido onde Ele executa sua melhor performance. Junto aos pequeninos. Ali, onde a esperança se refaz. Sempre. Bem, eis-nos chegados à Ptelomaída, com meu filho (o meu querido e já não pequeno núbio) moreno claro de olhos azuis como os da sua mãe. Entendi ser melhor alugar um bom barco para o que pretendia, e oferecer conforto aos nossos acompanhantes. Novamente viajamos em nove pessoas; de novo vou deixar três homens de guarda aqui no porto e eu mais Antônio, alem de quatro, digamos, seguranças vamos passar outra vez por Nazaré, aliás, chegar a Nazaré e passar ao lago que os nativos chamam de Yam, onde penso encontrar meu sobrinho Simão e, quem sabe, perscrutar o tal galileu operador de maravilhas de que ouvira falar lá em Alexandria. Se bem que eu apostaria bom dinheiro saber, ou intuir, quem ele seria. Se confirmado o que eu presumia, seria uma glória. Poderia talvez ser eu a única pessoa viva (não sei do Felipe), fora do circulo local, a ter testemunhado o surgimento da Estrela e o nascimento do Menino. Não creio ser possível haver alguém com credencial adequada melhor que Ele, nem com tantos e inconfundíveis atributos ostentados pelo mago nazareno, na consecução dos milagres realizados junto ao povo, segundo estava informado. Tal homem tem de ser único e inconfundível. A situação por aqui era a mesma dos passados anos após minha última visita: o Mediterrâneo era o mesmo; as dunas das praias as

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mesmas e o leve ondular das terras de além areias era o mesmo; a inclinação que se nos apresentava para o interior era a mesma. Só com relação aos viventes estava tudo diferente, aqui e no mundo. Augusto já se foi e Tibério reina absoluto e esperto; em Israel, particularmente em Judá e Samaria, Arquelau há muito fora destronado (lá se vão vinte e sete anos) contrariando, de certa forma, a aposta de Roma em sua gestão - contrária que foi ao desejo de Herodes, o Grande. Por ali (Região de Jerusalém) um donatário dos cabeleiras comanda a organização dos interesses patrícios. Antipas anda senhor das províncias em que estou pondo os pés neste momento. Pelo menos, soube-se manter sob as graças dos Césares que vêm surgindo. Outros, certamente, virão no curso da vida. E eu, talvez testemunha atenta de certa história, também mudei. O meu problema, como o de todos, acredito, que rompe a barreira dos sessenta anos, consiste na adaptação do espírito à realidade do corpo. Porque o corpo envelhece, o espírito não. Não é que tentei fazer, como no passado, subir correndo por uma parte menos inclinada do monte à minha frente? Perdi o fôlego, e demorei-me a recuperar a respiração. Meu núbio, que está com vinte e oito anos, já casado e pai de meus dois netinhos, foi a maior vítima do meu alheamento, coitado. Pediu-me contenção de meus arroubos; mas é difícil segurar o coração ante a beleza. Olhe para trás, filho, e veja o azul daquele mar; sinta a brisa que de lá vem, goze do calor deste sol e o esmagar da macega que pisamos. O canto das aves do céu e o marulho do mediterrâneo ouvido até por aqui. Isso tudo eu disse a ele. Só nunca falarei, para ele e ninguém, da beleza do azul dos olhos de Katiuschia estendidos ao seu rosto, sob a guarda de suas pálpebras. Ah, meu querido, tu não percebes, graças aos céus, que esta é a última vez que por aqui passo. No futuro, espero faça-o por mim. Isso fica cá dentro do meu coração. É particular. Então tudo mudou. Tudo muda, pois a vida é um pulsar fremente, na busca de um objetivo ignorado em seu todo por nós, mas que certamente existe e que é preciso cumprir. E nós estamos neste roldão, que não tem saída. Temos de conseguir rápida

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adaptação ou ficaremos para trás. O problema que eu percebo é que somos levados, parece, a uma melhor aceitação da vida na juventude o que, convenhamos, é muito natural. E é como jovens que insistimos em viver. Vamos parar com o filosofar e passemos ao real, momentâneo. Solicitei ao filho que me conseguisse, para montaria, um eqüineo, onde me sentisse mais à vontade; ele pensou da mesma forma, por isso compramos dois cavalos de boa estatura e macios no andar. Para nossos acompanhantes, muares mesmo. Mas de bom porte físico. Tínhamos apenas que segurar nas rédeas nossos animais, para viajarmos juntos. Nazaré crescera muito, desordenadamente, sem planejamento. A casa daquela cidade que nos interessava visitar, estava fechada. Compramos suprimentos de que necessitávamos e continuamos viagem rumo ao mar da Galiléia. Lá esperava encontrar o sobrinho Simão. O pescador investigado por mim só podia ser ele. Interessava-me fazer com que ele mudasse de opinião e profissão, voltando ao seio de nossa família, assessorando meu filho em nossos negócios, que afinal também são dele, e assistindo à velhice de sua mãe, a minha irmã Miriam. Durante aquela tarde, após passarmos por Nazaré, fomos admirando a beleza do monte Tabor a sudeste, quase leste, se elevando acima daquele altiplano. À medida que seguíamos, ele se deslocava para o sul. Ao cair da tarde armamos acampamento ao norte do monte em referência; muitos galileus passaram próximos a nós, alegres em sua conversação gutural. Bandos de cinco ou seis. À noite notamos pequenos focos de luzes lá no cume e nem poderíamos suspeitar o que lá ocorria. Na quinta hora da manhã seguinte, chegamos ao lago de Betsaré. Extasiei-me, mais uma vez, com aquela beleza de mar interior. Vontade me deu de voltar a ver os nenúfares perto da estrada que vai a Cesaréia, mas algo me impulsionava para ir chegando à Jerusalém, onde o sobrinho parecia estar. Não era nada que me arrastasse, como quando aqui estive pela primeira vez - e o resultado daquela aventura foi tão lindo. Comprei alguns peixes salgados (estes apresentavam espinhos no dorso) para completar

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nossa alimentação. Suspeitava que ia comer muito pão, o que pode ser muito saudável, mas eu adoro um peixe assado - pode ser com pão; tínhamos água, vinho, azeite de oliva e...pão. Meus quatro quadrilheiros portavam arco e flecha para alguma oportunidade de abatermos qualquer caça que se apresentasse. Isso teria que ocorrer às ocultas, mas quem não aprecia uma carne nova na brasa? Da mesma forma que há trinta e três anos, o terreno à nossa frente ia apresentando declives, e o rio Jordão dava vazão às suas águas com maior rapidez. Estamos em um vale, claro, e a parte esquerda é mais plana, pelo menos por aqui. À esquerda do rio, quero dizer; pela tarde pudemos notar, do lado de lá, a embocadura do yarmuk - e me lembrei do leão daquela noite. Preparamo-nos para o pernoite e, sentado em um tronco me alimentando com um naco de peixe, fiquei ruminando sobre as coincidências da vida. Será mesmo obra do acaso? Desta vez não vi leão algum, mas, vamos ver, quero dizer, vamos analisar a situação: - novamente estamos na época do Nisan hebraico - plena primavera - e durante os dias o sol ajuda ao Grande Arquiteto no despertar carnal das criaturas, e no refazer da vida; novos seres serão formados e o Seu reino aumentado, e seria melhor se melhorado. Mas isso é obrigação nossa. Não podemos é dispensar ajuda, fracos que somos. E a páscoa está bem próxima, para os hebreus. Tempo de festividades e louvores, quando comemoram a libertação do jugo dos Grandes em meu país. E o fazem lindamente, com muita fé. Falando em beleza, lembrei-me da estrela. Sem querer, olhei para o céu que estava repleto de lume, mas aquele fulgor nunca mais eu vi. Apenas a lua querendo tornar-se crescente; amanhã, por certo, ela o será. Fui dormir saudoso dos tempos idos, embalado pelo murmúrio das águas e pelo calor da pequena fogueira que fizemos; acordei de mansinho com o Marco Antônio puxando a manta que me cobria, para me agasalhar, e voltei a dormir. Agradeci apenas no meu coração. Pela manhã, um dos homens apanhou um cervídeo, que seria usado no nosso próximo almoço. Foi muito agradável nosso repasto do dia seguinte.

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Ao segundo dia após o yarmuk, pela tardezinha, chegamos à região de Jericó. Meu núbio deslumbrou-se com a beleza das palmeiras que circundavam o rio e extasiou-se com a exuberância daquelas terras. Não é para menos. Lindo, lindo. Parece que aqui o vale se faz mais baixo ainda, atingindo o máximo possível da depressão do terreno. Quando da última vez em que aqui estive não o percebi, pois me preocupava com outras coisas, mas agora pareceu-me ter as têmporas comprimidas, e sinto zumbidos nos ouvidos. Coisas da idade, pois não? Na entrada da cidade atirei uma moeda que me fora pedida por um esmoler cego; apeamo-nos para tomar água e apertar as arriatas dos animais, quando nos apercebemos de um burburinho de gente que também estava chegando por ali, caminhando a pé. E eram muitas pessoas. E vinham alegres e cantando, uma farra boa e sadia. Tudo de maneira ordeira. Estava quase escuro. Ali, meia hora para a décima segunda. E davam vivas, sorrindo, que o reino estava próximo, e o Rabi se fazia presente, dentre eles e com eles. O cego tinha ficado um quarto de estádio para trás de nós, e o ouvíamos e víamos com perfeição. Então eu notei, não sei se os outros também, no centro daquela comitiva um grupo de homens vestidos de túnicas brancas, em silêncio e parecendo em oração. Contei treze homens. Um deles, no centro daquele grupo, era alto, quase um gigante. Da altura do meu filho, imagino. Naquele momento não me foi possível distinguir-lhe as feições, mas, ouvi o bradar do cego -”Jesus, filho de Davi, tende piedade de mim!”. Muitos da comitiva, que iam adiante, se voltaram e pediram àquele pobre que se calasse. Mas ele insistiu: “Jesus, filho de Davi, tende piedade de mim!” E eu vi, todos nós vimos, o Gigante se deteve próximo àquela criatura e indagou com voz de homem, sem aspereza, doce e complacente: “Que queres que te faça, filho?” Que eu veja, foi a resposta. “Eu quero VER!” – Ouviu-se, então, um grito lancinante: - Ai...ai... que pairou no ar como se fora dito com a boca fechada, pela surpresa. E o pobre homem saiu em disparada, caindo dentro do ribeirinho; passou para o outro lado,

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atolou-se no barro, e se esqueceu do guia, garoto de uns onze anos, loiro, que gritava: “Volta, Bartmeu. Tua mãe quer te ver.” Pelo visto, ao perceber a luz da lua, o ex-cego se desnorteou e perdeu o rumo de casa.. Tirei o turbante da cabeça sem o perceber, enquanto a comitiva passava e apressamo-nos para acompanhá-la. Além de estar arrepiado e abismado com o que vira - era ÊLE, e eu estava aqui e agora, e vou estar com Ele, tenho a certeza, e o que presenciara não tinha explicação. Mas outro fato, além deste, me despertou. Refiro-me à visão que tive ao ver um homem moreno, de barba espessa, altura mediana, parecendo me destacar no seu olhar, dentre todos os que ali estavam. Naquele momento, naquele homem, eu vi o Alec. Êle era louro, ao contrario daquele, mas as feições eram idênticas. Tive certeza: era o Simão. Ah, meu sobrinho querido, pensei, quanto anseio abraçar-te. Foi preciso esperar mais um pouco, já que junto àquelas pessoas continuamos jornada até ultrapassarmos a cidade por um bom pedaço de chão. Eles se instalaram por ali e nos mantivemos à parte, aguardando uma oportunidade de nos apresentarmos. O Antonio estava mais afoito, impaciente, quando lhe falei que o seu primo era aquele junto ao filho de Maria. Ele sabe de quase tudo. Quero dizer, quase tudo que se refira a Jesus. Mais ou menos uma hora e meia após o cair da noite, fomos nos aproximando, evitando tropeçar em alguém que estivesse procurando acomodação junto ao fogo que fizeram. Aguardei uma oportunidade em que o Simão se afastasse dos demais para uma abordagem. Quando a ocasião se me ofereceu, me aproximei chamando-o pelo nome: Simão Alec, tu me conheces? Pareceu não entender e olhou-me como faria o João, olhando dentro de mim! Repeti a pergunta: Tu me conheces, Simão? - Por um momento pensei ter cometido um engano. Ele ficou indeciso, apenas me olhando encabulado. Depois me abraçou e chorou. Tirou-me o turbante da cabeça, mirou os meus cabelos brancos, encostou a sua barba hirsuta em meu rosto e me beijou.”- Perdoa, meu irmão, mas 47


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é que já me acostumei com o meu novo nome. Ha muito não me chamam Simão; quem são estes que estão te acompanhando, Tio?” Este é o meu núbio, Marco Antonio, teu primo. Os demais estão comigo nesta empreitada, são meus amigos. Foi uma delícia assistir aos dois primos se abraçarem. A última vez em que os dois se viram, Marco era criancinha e Simão ainda morava na sua casa da família, na entrada do bósforo. Bem longe daqui. Mas, uma voz forte e meiga ao mesmo tempo - será isso possível? - interrompeu nossa fugaz reunião de parentes: - “Marco Belchior, filho de Marco Antonio, o defensor de Roma, e seu mais digno Triúnviro; meu irmão e tio do coração, eu vos saúdo e não dispenso o vosso amplexo que se fez esperar por tempo demasiado. Chegai-vos a Mim, eleito de meu pai”. - Quase desmaiei. Mas me controlei. Então, na claridade mortiça do braseiro que ardia debaixo daquele céu, pude perceber os cabelos claros e queimados de sol - partidos ao meio à moda de Samaria. Então, vi-Lhe os olhos. Os mesmos olhos que tanto me impressionaram desde a sua infância; agora não mais cor de avelãs, mas azuis radiantes. Radiantes sim, porque emitiam luz. E luz cortante. Deus Onipotente, este homem de beleza tão marcante é aquele mesmo menino que eu, um dia, levei para Alexandria junto a seus pais, e depois de haver feito funcionar a minha cimitarra? Fiquei sem voz. Apenas nos abraçamos. Hoje eu penso: não devia tê-lo deixado escapar-me dos meus braços. Mas, eu nem sequer imaginava o que o futuro nos reservava. De qualquer forma, somos todos imprevidentes. Ao menos um tufo de cabelo d'Ele precisava ter sido guardado. A conclusão é óbvia: não atinamos com nada! Como eu continuava mudo, falava mais Ele, e sorria ao me indagar : “Senhor, ainda ouves em tua casa ao Rouxinol?”- Não sei como, mas consegui responder - Senhor da minha vida, o que é um rouxinol? - Um pássaro?- Suponho! Mas não é natural de minha pátria, presumo que o seja da terra mais ao norte de onde estamos, sob domínio de Roma. ”Dize-o com propriedade, quando afirmais não ser ele natural de onde vens, mas pela vontade do Pai, tivestes musicadas manhãs e tardes, lá onde moras.” Aí eu me lembrei do nosso jardim e, quem sabe, mais que isso, a quem devia eu o 48


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milagre do nascimento dos meus filhos. Apresentei-Lhe o meu Núbio, e Ele apoiando os braços sobre os ombros do Marco, foi-Se afastando em conversação de amigos. Fiquei emocionado vendo os dois gigantes que se entendiam. Muita gente passou a me olhar de maneira diferente daquela hora em diante. Imaginem, um egiptano ser tão distinguido. Procurei me aproximar de Simão e o interroguei: Como O conhecestes?- indicando-O com um movimento de cabeça. Indicando-lhe Jesus, quero dizer. Ouvi, então, o fato que se tornou lenda, uma bela passagem de fé e amizade. Estava o meu sobrinho voltando de uma pescaria nada boa, quando avistou, já na praia, um Homem que parecia conhecê-lo, chamando-o pelo nome: “Simão, filho de João, vinde comigo e Eu vos farei pescador de almas”! Raios, como esta pessoa que nunca vi me chama pelo nome e me convida para pescar almas? Jamais ouvi referência que fosse a uma tal pescaria! E ainda, depois, fala em Daniel. Como Ele sabe dessas coisas? Nem eu ou meu irmão jamais fizéramos referência sobre nosso passado por aqui. Se nossos pais vivem ou não. E sorrindo nos faz convite tão estranho. Bem, tio, ele me cativou num torvelinho em que sobressai o amor ao próximo, para uma vida que não ouvira ainda ser mencionada, sem nenhuma promessa de recompensa aqui no nosso mundo. Somente para agradar ao Pai. E agradecer, pela oportunidade de servir. E ainda me chamou, de início, Kephas. Depois usou o grego, e passei a ser Cefás. Portanto, querido tio, sou Pedro, masculino de pedra. E pretendo ser até o fim da minha vida o Pedro, discípulo do Cristo de Deus, o Jesus de Maria e José. O Nazareno. Sei o que pretendes de mim. Peço-te não insistas no teu propósito, pois não serei capaz de deixar a causa que abracei. Fiques mais um pouco conosco, e me darás razão. Fale-me de tua irmã, minha mãe. - Eu falei. Longamente, sem falsidade e sem pieguismo. Não demoveria aquele homem de sua resolução usando subterfúgios. Mas, vou continuar por aqui e ver no que isso vai dar. Só que quem falou ali foi o Pedro, e o Simão não tinha mais voz.

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Não posso me alongar muito nestes relatos, pois, pelo que aconteceu dali em diante eu, modesta e honestamente, me considero pequeno para relatar na íntegra. Só acrescento que o Pedro (quase incrível Simão) me afirmou que o Mestre sabia antecipadamente da minha presença já naquela noite e que ele, Pedro, me estava esperando. O Rabi, disse-me, sabia que estávamos próximos, quando a comitiva deles se encontrava lá no monte Tabor e nós ao norte acampados. Não chegamos juntos a Jericó por acaso, pressinto. Eles se atrasaram pelo caminho, que era outro, porque estavam à pé. Mas, e nós? Quantas borboletas nos distraíram na viagem? Quanto cantar de pássaros ficamos a ouvir? - Pois é, chegamos quase na mesma hora a Jericó. E daqui para a frente? - Vamos ver. Os meus sonhos no apreciar a natureza é que operou o milagre da Coincidência do momento daquele encontro. Eu queria descansar, mas o Messias convidou-me para ficarmos à parte. Foi atendido e assim afastamo-Nos (maiúscula em homenagem a Ele) e ouvi mais que falei : Falou-me do Reino do Pai, fez uma parábola que me tocou profundamente, pois entendi qual era o alvo. Versava a parábola a respeito da historia de um lobo que almejava subtrair determinada ovelha do aprisco; mas o pastor não aceitava a exclusão daquela ovelha, que julgava a principal daquele rebanho. Precisava ser mais claro? Entendi a mensagem, não se fala mais sobre o assunto. Falou-me mais, e quem falava sabia o que dizia e era senhor de absoluta autoridade. Muito do futuro dos homens dependia dos fatos que ocorreriam proximamente, e Ele precisava de minha ajuda. Que não me preocupasse; No momento aprazado eu saberia o que fazer. Eu era testemunha dos eventos ligados à Sua vida, quisesse ou não. Mas, eu deveria aceitar este fato e entendê-lo. Era imprescindível que eu aceitasse. Que fazer? - Aceitei. Também, era tudo verdade. Já estou mais que comprometido, a propósito; desde a minha mocidade. O Pai já tem por liberado um certo jardim, só faltando abrir os portões para os convidados; e os convivas são todos os homens de qualquer raça ou cor. A senha de abertura estava ali conversando comigo. O futuro se delineava a partir deste momento, agora. O agora da história, digo. O homem ainda lutará muito até atingir os seus

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objetivos, que são os objetivos do Pai. Mesmo sem que o soubéssemos, a culminância de uma longa espera estava tendo início nos dias que se seguiriam. Contava o Mestre comigo. Outros relatariam, no futuro, sobre o sacrifício do cordeiro; mas seria uma visão de outro ângulo. A minha história irá falar de particularidades que só eu conheço. Do início e do fim. Deixei-O falar. Não estava entendendo nada do queria dizer sobre cordeiro, sacrifício e etc. Éramos, apenas, dois homens conversando. Sobre os propósitos do nosso Pai.-: Nosso Pai, senhor? Indaguei. Por acaso o meu pai é o mesmo Vosso? “Bel, meu amigo, todos temos o mesmo Pai; refiro-Me ao Pai do nosso espírito. Quando nascemos, no ventre de nossas mães ainda, ele nos acolhe como filhos. Por isso é que Ele doa de Si uma parcela do Seu Santo Espírito, transforma-a em nossa alma e a coloca dentro de nós; somos irmãos, portanto, e pelo espírito que é o nosso elo de ligação com Ele; nada conseguiremos fazer às escondidas. Ele está inserido em nós, e nós não o sabemos reconhecer. Ainda. E se o mal toma conta da herança que recebemos, é por culpa nossa. Mas Ele nos respeita e perdoa, sempre, ou quase. Se o pecado é por demais grave, nós é que nos condenamos, afastando-nos de quem nos concedeu a vida. A quantidade de almas que são doadas ao mundo reflete, apenas, a Sua generosidade no doar-nos de Si, por puro amor. E o afastamento do Santo dos Santos é que é o inferno. Assim como se fora possível à garganta seca recusar água pura e cristalina. Apenas aumenta o sofrimento.” Terminou com a seguinte comparação, ante a uma eventual dúvida existente em meu coração: -”Já deves ter percebido a chuva no mar; o líquido emanado do céu, mesmo sendo apercebido como doçura, pela nossa boca, é bem recebido pela água salgada, fundindo-se num mesmo amplexo, já que são compostas dos mesmos elementos.” Senhor, por que não o dizes a todos os homens? - “Porque, Belchior, não sou uma imposição dos céus; sou a mão estendida do Pai. Mas nem todos os homens têm acesso a Mim; não por

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vontade minha. Entretanto, tu poderás e deverás ajudar. É a tua missão e a confio a ti. Mas, veja, tudo a seu tempo, e os homens ainda demorarão a descobrir muitos dos segredos da vida; ser-lhesão revelados na hora propícia. Não é interesse do Pai manter incógnitas aos herdeiros. Não as da terra.” Terminamos a nossa conversa, quase um monólogo, que a noite avançava e amanhã estaríamos em Jerusalém, a antiga Jébus de mil e tantos anos atrás. Fomos dormir. Eu quase não o consegui. Assimilar o que ocorria, estava sendo de muita dificuldade. Mas, eu o faria. Ou Deus o faria por mim. Por um motivo qualquer, levantamos acampamento bem cedinho, ainda escuro; deixando o magote de homens que acompanhavam a comitiva do Mestre. Nunca gostei muito das multidões. Elas me deixam aturdido. Não confio em aglomerações humanas; o futuro me daria razão, conforme veremos. Detivemonos à entrada da Capital da Judéia e pudemos assistir à recepção empolgante com que o povo acolheu ao meu Menino; vinha Ele, magnífico, embora montado em um humilde asno. Ramos e flores que foram colocadas à Sua passagem, pelo chão, se tornaram testemunhas mudas do alarido dos povos que O saudavam. Tudo por ali eram Hosanas e mais Hosanas ao filho de Davi. E eu acreditei naquilo, imagine. Nos homens, quero dizer. O apóstolo, encarregado do recebimento das oferendas, está à frente da comitiva, com muita pompa, portando uma bolsa de couro de cabra, de cor marrom, com alças que passam pelo seu peito. Cabelos negros, olhos escamoteadores, sorriso nos lábios, o esbelto Judas Iscariótes. Hoje eu penso: - Por que aquelas correias não esmagaram o peito daquele homem? - Por que eu nada intuí? Mesmo sendo levado a amar aos homens, como Ele o quer, amor por amor eu preferiria o de Jesus. A minha turca estava sempre ao alcance da minha mão. Não teria nenhum remorso em aliviar a carga do canalha. Ainda sou de opinião que o que tem de ser feito, tem de ser feito. E deve ser feito. Já desde o inicio, atendendo às instâncias de Katiuschia em trazer meu filho (com certeza para tomar conta de mim), era meu

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desejo levá-lo a conhecer Jerusalém; seria bom para ele conhecer os templos e a beleza da capital dos hebreus. Afinal, o núbio viera a passeio, pois não? Sabedor que era da possibilidade de assistirmos às festividades da páscoa, empenhamo-nos em conseguir albergue que nos acolhesse, a nós e aos homens que nos acompanhavam, e abrigo para os animais. Isso feito, procuramos descanso em camas mais civilizadas. Visitamos lugares que eu não via de longas datas. Vimos, ao longe, a luz do sol se refletindo nas águas do mar morto. Vou passar por cima no relato dos fatos que se seguiram à traição sofrida pelo Mestre; da vergonha de ser homem, de ser carne como aquela que traiu por preço vil. De ter conversado com aquela criatura e não ter sentido asco. Da minha revolta quando o soube; a ponto de empenhar quase todo o nosso numerário contratando marginais, na tentativa de arrancar da unha de Caifás o Gigante da galiléia. Custou-me, a tentativa, um capital de duzentos áureos de que não poderia dispor, pois era dedicado à nossa sobrevivência por ali. Foi uma loucura, mas foi o que fiz. Eu sabia que de Pôncio o resgate seria impossível por causa dos pretorianos. Do Sinédrio seria mais fácil. Mas não o consegui. Os marginais falharam no intento, embora me houvessem garantido o poder fazê-lo. Três foram mortos na empreitada; o sumo sacerdote não deixaria passar tal ofensa ao templo tão facilmente. Ofendido mais ficaria se soubesse que um negro, natural do Egito, tentara fazê-lo. Embora ilegalmente, pois não era sua atribuição, enganara ao próprio Pilatos, escamoteando a custódia de sete homens que estavam sob seu domínio, às ocultas nos porões do Sinédrio. Ainda assim, e apesar de tudo, vi Maria no local do sacrifício, em pranto pela morte do filho. Ainda me lembro de haver ouvido as palavras do Filho da Luz, últimas, que foram uma oração: - “Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” - Fê-lo em aramaico; eu entendi as palavras, não o que significariam para Ele, no que queria expressar, pois não era seu natural falar por falar. Não era próprio pela autoridade que emanava de Sua pessoa. Não havendo eclipse, por ser dia de lua cheia e nenhum corpo

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celeste fosse percebido cruzando os céus daquela tarde, ainda assim a natureza nos escondeu a luz; eu vi relâmpagos amenos clareando o dia-tarde e, não sei de onde, eu e todos os habitantes locais ouvimos o gemer do planeta. Foi o que pude perceber. O que percebemos, afinal, todos nos. Acertei as contas da hospedaria e do curral; pegamos a estrada de volta a Jericó. Conseguimos informações sobre como chegar ao monte Tabor, e nos apressamos em sua direção. Chegamos no outro dia pela tarde, e nos preparamos para o pernoite. Ainda estava claro e eu pedi ao Marco que me conseguisse um abrigo por ali um pouco mais isolado, pois, era a minha intenção manter-me afastado naquele momento de angustia. Fui atendido, sem maiores perguntas. De onde estava, mesmo com o coração apertado pelas emoções, ante o acontecido, fiquei deslumbrado com a beleza da paisagem que se descortinava em todas as direções. Foi a noite mais longa de minha vida, creio. No fim da madrugada, na penumbra do alvorecer, pareceu-me ouvir um suave balir, vindo de uma parte mais alta à que eu me encontrava; Sem fazer ruído para não acordar aos companheiros, subi a pequena rampa que dava acesso a uns arbustos que escondiam uma reentrância do terreno. Algo insuspeitado me conduzia àquele local. Não mais ouvi o balido sutil. Não sei como, mas não me surpreendi com um pequenino relâmpago azulado que ali se produziu, e nem com uma névoa fina e branca que se emanou dali. E então eu O vi. De pé, parecendo flutuar sobre as flores de um arbusto, sorria para mim. Assim, com toda a naturalidade. E havia Nele um brilho lindo, radiante. Não me amedrontei, como sóe acontecer em momentos semelhantes, presumo. Falou-me com a maior calma: - “Meu irmão, a paz esteja contigo. Vim ver-te, para uma despedida devida a um amigo. E agradecer-te pela generosidade da doação que fizestes dos paramentos que acolheram minha carne na gruta do Gólgota. Tanto o linho como a lã que receberam a Mim foram elaboradas de maneira inconsútil, dignas da tua bondade. Em verdade, em verdade, digo-te, da mesma forma será o selo da amizade entre nós. O teu filho fará uma

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pergunta ao tornares ao lugar de teu pernoite, e então, Bel, entenderás que muito do que sabem os homens constitui patrimônio moral de suas almas, e revelá-lo é opção de cada qual. Para o Pai, que é para onde vou, a revelação em referencia é arbítrio de santidade, no caso, só o pode o Paráclito. Afianço-te, Eu sou a luz do mundo! Mas a luz que emana da vontade do Pai e que rege as massas dos corpos do cosmo, não é captada pela pupila do homem e, no entanto, é substância que determina os limites do universo. Mas a Mim podeis ver e, vendo-Me, podeis ver ao Pai. “Convido-te a uma pequena viagem. Queres vir?” - Aquiesci com a cabeça, não querendo exercer a fala para não quebrar o sublime daquele momento. Também não me garantiria se falasse. Não sei. Ele se abaixou da posição em que se encontrava e pousou a mão em minha cabeça. Pois é, pousou a mão em mim. E eu senti que a Sua mão era quente, em cujo interior o sangue pulsava. Ele estava vivo, portanto. Fui apanhado em um espiral, onde imagens apareciam e sumiam, em profusão. Como se eu estivesse vendo através de uma roda em movimento e os seus raios, assim sendo, tornavam as imagens fluídas, quase irreais. E a roda foi parando, e as imagens ficaram mais nítidas. Falou Ele mais uma vez - “Um dos motivos pelos quais passamos, pelo que vim, é esta casa que vedes. Ela apesar de importante, não se compara à importância de que desfruta o homem ante nosso Pai, e sabes do motivo. A casa será sempre abrigo e local de união. Mesmo que hajam dissensões, Eu estarei nela”. O que eu vi e que me foi indicado era uma construção enorme, com muitas torres altas apontadas para o céu. Estava, com certeza, erigida em local que eu ignoro. Mas o tempo, certamente, era o futuro. Se não como explicar o ter notado, além do Templo, um estranho tipo de gafanhoto, enorme, cuspindo fogo de seu interior sobre homens, e estranhas carruagens se movimentando sem um animal a puxá-las? E uma multidão enorme lá embaixo. Nós estávamos acima daquilo. Não gostei muito do que vi. Pedi para voltarmos. Ele riu e aquiesceu.

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Voltamos a nosso ponto de partida; o ungido de Deus foi-Se diluindo na neblina, acenando com a mão direita um adeus em minha direção e falando pela ultima vez: -“A paz esteja contigo, agora e sempre; voltarei para os meus filhinhos.” Nunca mais O vi. Nem tampouco O esqueci. Nem pareceu uma despedida. Apenas um até logo. Desci para o meu pouso abaixo e logo o meu núbio chegou, e me interrogou de pronto, assustado: Pai, o que é isso? Por que o senhor está brilhando tanto?- Até a tua roupa brilha! Apenas fiz sinal para que se calasse, com o dedo nos meus lábios. Não posso contar-lhe. Como o faria? - Mas posso dizê-lo aos meus escritos, que só serão abertos quando eu me for. Então, se alguém estiver lendo sobre estas passagens, certo é que já me fui. Entretanto, ainda, um registro quero fazer:- Houve época em que me supus enganado, de que algo não se coadunava e era isso: Por que quando estive pela vez primeira junto aos hebreus, eu fui praticamente arrastado, e o final foi soberbo e enaltecedor; e da segunda em atendimento a um convite que me parecera gentil, ter tido a desdita de presenciar a pusilanimidade dos homens e crimes tão brutais? Sentia-me como se fora enganado. Como que os seres humanos podem agir de forma tão fingida, entregando à morte quem curou-lhes tantas feridas e só lhes fez o bem? Logo após estender tapetes para que aqueles pés benditos passassem por ele? Afinal, será o homem digno de tamanho sacrifício? Um dia Ele mo dirá, espero. Uma coisa é certa: vi muita beleza na terra dos herdeiros de Abraão, mas jamais tornarei a pisar por ali. Termino contando que o templo erigido por mim em Alexandria em homenagem e para os caminheiros, que tenho certeza aqui virão um dia, é dirigido aos seguidores daquele que nos garante, sempre, que “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Entendo, assim, e testemunho, que todos os que crerem, como eu, que Ele é o caminho, não têm outra opção que se tornarem , também, caminheiros. Pelas vidas. Esta de agora e a que virá. A inscrição que gravei na pedra à entrada reflete o meu pensar. –“Esta casa foi 56


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erigida por e para o amor e presta, ainda, homenagem a Simão, que resgatou para o bem a memória de seus maiores. Da vida, nada pleiteou e dela nada herdou, porem se tornou doador e mentor da esperança de um Reino cuja fronteira só os justos reconhecem”. E, já que somos irmãos, que a Paz do Senhor esteja conosco. Assim seja.

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A ENCARNAÇÃO DO VERBO E A REMOÇÃO DO QUERUBIM - Parte III Reminiscências, Testemunho final



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Reminiscências, Testemunho final Estou aproveitando esta bela manhã de inverno aqui no meu reduto, sentindo-me seguro pelo anonimato de meu lar, com o intuito exclusivo de colocar os pensamentos em ordem e agilizar um ponto final aos assentamentos a que me propus, com respeito às aventuras relativas ao nascimento e sacrifício do menino de Belém. Dado a importância dos acontecimentos por mim presenciados, a responsabilidade dos relatos em referência exige acuidade severa de minha parte, pois imagino que a efeméride irá provocar mudanças radicais no comportamento da humanidade no futuro; e o futuro é, todo ele, intenção e razão da vida, em si, e pelas perspectivas de progresso dos habitantes do planeta. Em conseqüência das exposições que farei, notará o sacrificado leitor que digressões ocorrerão em seu decurso. Vamos aos fatos: - Registro há, seja em letra de forma ou por tradição oral, ou mesmo por artes pictóricas, das atividades humanas em nosso habitat. E, em conseqüência de determinados fatos ou ações desenvolvidos, naturalmente em considerações às importâncias a elas atribuídas é que foram surgindo lendas, ilusões – em fim – a própria história. E o relato daí resultante é tomado como verdade absoluta, parece-nos, pelo homem. E o homem, eu, você e correlatos, aceitamos a ideia de sermos os únicos seres pensantes aqui radicados; mas esses registros a que chamamos “história” são selecionados pelos poderosos. Ou os mais presumidamente pensantes. Só que pensar apenas não basta: é preciso saber comunicar, e comunicar como, se não nos é comum termos auditório próprio? – Então é imprescindível dispor da arte de transmitir ideias, de trazê-las para a escrita – dando-lhes forma, vida e testemunho. É o que estou tentando fazer. Por sorte, ou destino, sei lá, consegui aprender bastante, ou o suficiente, para entender e sentir na pele, mesmo que a grande maioria dos povos continua sem o aprendizado citado. E, não tendo conhecimento deste fato (da leitura), só atinam com o que se lhes permite o que vivenciam e aí ficam limitados. Pergunto-me: haverá um dia na historia humana,

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em que a luz deste conhecimento será levada a todos ou o presumido direito continuará sendo usado como privilégio das elites? – por quê? – E por que quem redige não o faz com decência, respeitando o intelecto do eventual leitor? Aqui em Alexandria, para quem pode (?) é fácil tomar conhecimento de fatos que a biblioteca local nos apresenta. Esta nossa Capital abriga uns 500.000 cidadãos – sendo que apenas uma pequena minoria faz uso dos + ou – 200.000 volumes pertencentes ao erário público. Herança do Grande Alexandre. Assim sendo, como terá real conhecimento, a plebe, de dados relacionados à história da humanidade ou mesmo do seu país? Como conceberão ter sido possível as construções das pirâmides? Serão capazes de perceber que o elemento de suma importância utilizado foi e é o que ali existe em abundância? Afinal a matéria prima dos desertos é areia. – Como poderei falar do Nazareno? – Como poderemos trazer à turba a informação sobre a evolução dos conhecimentos de que goza a elite composta de indivíduos denominados “príncipes”, quer no tocante ao fazer uso do saber para viver melhor; conhecer, pelo menos em parte, por exemplo, como se movimenta o sistema sideral de que o nosso planeta é parceiro, como as estrelas emitem luz, como gira a terra? Enfim, o que e como o sabemos, quer dizer, como interpreta nossa inteligência o mistério do cosmo; que vantagens poderemos auferir destas leituras, tais como fazer uso apropriado das variações climáticas para nosso beneficio, já que elas se repetem anualmente e com uma justeza notável, aqui em nosso meio ambiente? Será verdade que o que se passa lá fora exerça realmente modificações aqui no nosso dia a dia? Se a interpretação em apreço for demais desinteressante, que tal se meus patrícios soubessem que nossos ancestrais faraós são considerados descendentes diretos dos deuses, que aqui aportaram como uma deferência dos céus para conosco, tendo trazido, portanto, um conhecimento além estrelas? – Um benefício que resultou em um crescimento maior do Egito e a garantia de dinastia para os Ramsés de antanho; inclusive para o Rei Sol que assistiu ao nascimento do menino Moises, sem o saber, um dos maiores heróis

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hebraicos. Entretanto, o conhecimento não era um mérito ou exclusividade dos adoradores do deus Anúbis, pois que, já que naquela época (distantes 1300 anos), recebíamos visitas e informações, sobre o comportamento dos céus, inclusive, de cidadãos de uma ilha notável de nome Creta, que aqui aportavam em suas elegantes naves, vindos dos confins do norte, lá das ilhas de Heleno. Das maravilhas que nos deram a conhecer ressalto uma: sabe-se, hoje, que a terra tem a forma esferoidal e que a matéria que dá forma aos corpos, de um modo geral, resulta de um aglomerado de, pasmem, átomos. Mais eu não sei. Como é que determinadas, eu disse “determinadas” pessoas adquirem certos conhecimentos? – E mais: coisa de uns 600 anos, como foi possível a um cidadão de uma cidade chamada Mileto, também lá por aqueles lados de origem dos Jônios – saber, com precisão, a data em que ocorreria um eclipse? – Baseado em quê? Só pode ser por informação privilegiada! Quem a teria fornecido? – E porque àquela pessoa? – Acredito que o que realmente importa chega ao nosso conhecimento por uma deferência. De Deus! Só pode! Entretanto, o homem, por efeito do raciocínio, chega a conclusões fantásticas. Por exemplo: encontra-se, diariamente, consultando escritos em nossas salas de leituras, um cidadão de nome Azir que garante a quem quiser ouvir, por observação, lógica e conhecimento, que a circunferência do nosso planeta é igual a mil duzentos e oitenta vezes a distancia relativa a duzentos estádios, no equador da terra. E duzentos estádios é o limite de observação para quem se colocar na praia buscando ver um barco no horizonte. E que este fato pode ser facilmente comprovado. E que através desta verdade conclui que poderemos obter os mesmos valores, observando o giro do sol. Em vinte quatro horas, nossa estrela se mostrará praticamente na mesma posição do dia anterior. Em assim sendo, se não for heresia o que ele diz, se a terra girar em torno de um eixo imaginário, próprio, terá nosso planeta percorrido distancia relativa a 256.000 estádios, no período. Será que o eventual leitor concordará com o exposto? – Tem muita gente esclarecida aqui que se dispõe na defesa da tese. Em contrario à quase certeza de que a Terra é o centro do universo. 63


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Com relação à curvatura não pode haver dúvidas para mim, que tenho conhecimento do “Enunciado de Eratóstenes”, que comprova a declinação de 7.20 graus no reflexo do sol entre Syene e Alexandria, distantes 5.000 estádios e enquadradas quase no mesmo meridiano, evidencia o óbvio: 50 vezes os 7.20 de graduação obtidos completam um circulo, também significa que a distância entre as duas cidades representa a qüinquagésima parte da circunferência do planeta. Claro como água filtrada. Se me permitem, de cisterna mesmo! Considero o Azir um gênio! Tenho certeza não ter ele conhecimento da existência sequer do sábio Grego. Os “sábios” astrônomos contemporâneos mantêm sigilo completo da obra. Medo de que afinal? – Convulsão pública, ou manifesta vontade de manter as populações na ignorância? Gastei muito para obter uma cópia do “enunciado”; ninguém no Egito sabe da sua existência, tenho certeza. Então, o 6.000 estádios de diferença entre a hipótese de Azir e a comprovação do astrônomo grego nada são na verdade. Só entristece saber que este fato do enunciado, conseguido dois séculos depois de o grande Conquistador haver-nos doado a nossa biblioteca, permaneça em segredo. Até quando? Se não bastasse a obra mencionada acima, existe a afirmação de minha estrela baseada em experiência de seus bisavós, que se deslocaram para o norte, em uma aventura que resultou em atingirem, após muito viajar, uma região que denominaram Deserto Branco – tal a quantidade de gelo encontrada, e desértica. E, o que é notável, a sombra de um homem normal, durante todo período em que ali se mantiveram, umas vinte e quatro luas, nunca era inferior a 36 côvados. E muito frio. Mais que o costumeiro. E que o sol se apresentava sempre baixo, ao sul. Isso confirma a certeza de que o planeta é redondo. E sendo assim, recebendo ali, em menor quantidade os raios solares é o que enseja a existência daquele frio cortante. Só estou para entender porque a visão noturna é sempre a mesma. As mesmas estrelas. Será que a terra gira no universo ao mesmo compasso das luzes celestes?

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Voltemos ao Azir. Dito cidadão garante, em defesa de suas verdades, que é inconcebível tenham, os astros e estrelas visíveis, condições de efetuar tamanho giro espacial para proporcionar-nos o dia e a noite. Seria impossível tal velocidade. Então, faz-se presente a interrogação: seria o conhecimento do Azir fruto de lucubrações próprias, pesquisas, ou advindas por informações privilegiadas, de uma esfera superior? Reveladas por quem? Por Deus? Novamente ele, o Onipotente! Assiste-nos o direito de negá-LO, ou ignoráLO? Por que falar em Deus? – Por que não falar? – conhece, por ventura, o homem, o que seja mais importante do que falar a propósito de Deus? – Torçam os narizes os sabichões e os incrédulos. Mas, eu conheci-O. E ainda O conheço. Quem me levou até Ele nunca precisou freqüentar bibliotecas, nem ter preceptores excepcionais em forma humana; foi tão-somente um simples carpinteiro, na sua forma de gente. Mas no espírito... Quem haveria de imaginar que naquela figura maravilhosa, bela e modesta, se fizesse presente o mais notável homem que pisou o planeta? – Pois foi Ele, entre uns poucos momentos de tranqüilidade que a Sua missão Lhe propiciava, me fez conhecedor do Altíssimo. E é por base daquilo por mim apreendido, e vivido, que pretendo dar por terminado, nas linhas que se seguem, ao meu testemunho. Ainda ressalto, a bem da verdade, e por oportuno, que este conhecimento de inicio foi adquirido através de uma criança, imberbe de doze de anos de idade! Pois aconteceu em uma hora de dor, de procurar uma justificativa para o ocorrido, uma quase revolta. Minha! Por instâncias de Katiuschia, naquele momento negro, aluguei um pequeno barco e procurei ausentar-me do meu ambiente diário em busca, talvez, de um local adequado para dar vazão ao meu ódio pela vida e de uma explicação para o inexplicável. Mas, entretanto, foi com uma esperança de que nunca me julgara capaz, que cheguei à Galiléia; Nazaré, precisamente. Jesus por aqueles dias estava se desligando da tutela da Mãe, conforme o costume de seu povo, e passando a receber

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conhecimento como adolescente masculino, obrigação do Pai, José. O que aquele garoto me mostrou, e a confiança como o fez, deume a certeza de que falava Ele de um saber maior, além, muito além, do conhecimento apenas humano; não seria o caso, assim, de tê-lo adquirido através de seus Pais, imagino. Então, não me restou alternativa outra que fosse encarar a minha dor com mais humildade e confiança. O que, afinal, conseguiu Ele dizer-me que mudou o meu pensamento e abrandou meu coração? – Não o direi! – Como o Rabi mesmo o disse, um dia, o que ali apreendi constitui patrimônio moral para mim, e me recuso a revelá-lo. Com constrangimento, mas por necessário, direi em poucas linhas, a razão da minha dor. Fui pai de uma beldade morena, da cor da minha pele. E que recebeu, em homenagem à minha mãe e à minha pátria, o nome de Cleonila. Desfrutei por poucos anos os carinhos daquela filha. Ela se foi, como todos irão, um dia. Mas tinha ela, apenas, quatro aninhos! Andorinhas. Sempre elas que não me deixam esquecer. E aqui no meu Egito elas existem aos milhares. Notadamente uma espécie, azul brilhante, vestidinho branco. Gostam de farrear quando encontram um bando de pequenas formigas, de tamanho médio, achatadas e cinzas, quase negras, emaranhadas entre as ramas de um capim rasteiro, muito comum durante as primaveras – pasto preferido por eqüinos. Aí é de se ver: Brincam e parecem conversar, entre si. E então, emitem o som maravilhoso do gorjeio. Suavemente rouco e doce. Para mim um som que deveria ser de uso particular dos anjos do céu. Lá entre eles, os anjos, é que a minha princesinha Cleonila Núbia El Nazário deve estar ministrando aulas de canto. Porque eu sempre soube. A minha menina, de olhos da cor do mármara, era especial. Tão especial que o meu coração dizia, sempre, para minha alma – quando ela chora, canta, e quando ri, gorjeia. Até então havia lido e ouvido falar no culto a Javé; e, ainda, e mais, em Adonai. Mas pelo menino de Nazaré, naqueles dias e

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sempre, o que marcou a minha vida foi o conhecimento do Pai. Também nunca ouvi Jesus adulto falar com amor e confiança de ninguém maior do que o Pai. E nisso coloco minha vida e esperança. Fui adepto de Osíris, como já foi dito. Até que é uma bela história. Mas não poderei jamais negar a lógica da explanação que me foi passada. Mesmo quem não queira fazer deste conhecimento motivo religioso, poderá negar a absoluta justeza desta verdade: Deus se desdobra em nós. E se faz presente conosco em nossas vidas. Pelo menos depois da vinda do seu Cristo. O Pai já andou aborrecido com a humanidade, e com sobejas razões, sem dúvida. Lembram-se do dilúvio? – Ali tivemos fechadas as portas do Paraíso. Daquela passagem até certa época da existência dos filhos de Noé, um Serafim guarnecia à sua entrada. Passaram-se muitos séculos. Alguns vultos exponenciais dos hebreus, já que foram eles os escolhidos para representar a humanidade perante o Senhor, recebiam ordem e informações para o conhecimento do povo, no preparo da vinda do Messias. Sim, recebiam. Todos eles, os Profetas, recebiam a palavra diretamente da boca do ser que se dizia Javé, ou Deus. Seria mentira o que nos legaram estes homens? – Mas como, se tudo o que profetizaram foi confirmado no futuro? E isso é a pura verdade! – Quanta coisa Jesus permitiu que eu soubesse. Ele que é a própria personalização do saber absoluto do Eterno. E, no entanto, aparentemente não teria ele se equivocado, em um quesito? Refiro-me à escolha dos discípulos. Simão era o único que eu conhecia, além do Daniel; aos outros somente aquela noite perto da fogueira. Eram homens sem realce algum, comuns mesmo. Não eram letrados. Na maioria, denominados pescadores. E nascidos na Galileia, a escória de Judá! – quantas vezes eles questionaram ao mestre? E duvidaram das Suas verdades. E chegaram a negá-LO! Gostaria de dizer que quem o teria feito fora o Pedro e não o Simão, pelo que soube posteriormente. Mas, se for como imagino, manifestação da vontade de Deus (ou Pai, conforme Ele diria), sobre os ombros destes homens repousa a responsabilidade de levar a palavra do Mestre a todos os cantos do mundo, conforme solicitação própria. 67


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Parece-me que nesta hora se principia a formação de uma doutrina religiosa nova e espero que perene. Se isto vier a acontecer, ficará mais que evidente que a santidade do Pai se fez presente nos onze, já agora doze apóstolos. Somente pela graça do criador é que acredito possível a consecução desse milagre. Aí, então, o mundo não poderá negar a santidade do filho da Luz. E por extensão também não será crível que a humanidade possa ignorar que os seguidores d'Ele, e donatários no poder até de perdoar os pecados, como forma de legado, sejam santos. – Não tão santos que deixem transparecer tanta luz, pois que a parcela que Jesus recebeu, no espírito, em doação do Senhor Absoluto, e como filho, jamais terá, nem nunca teve, semelhança entre os filhos do homem. Daí eu saber que a verdade é que, se conseguir o indivíduo, um dia, ver o semblante de Deus, só o poderá através de Jesus. Porque Deus não é um ser individual. Ele é um Todo. Para nos entender e resgatar, é que enviou o Mestre. E Ele foi pregado na cruz, como um criminoso. Entretanto, Roma não tinha o menor interesse no sacrifício do Nazareno: Ele foi sacrificado por motivos diversos. Medo, fanatismo religioso da parte de Caifás; política de quem apenas se apressou em lavar as mãos, falta de responsabilidade e uso do populacho insuflado. Aliás, a massa humana sempre será usada para conferir autenticidade, pelos detentores do poder. Isoladamente o individuo poderá apresentar qualidades, mas na multidão torna-se um carneiro, indo pela maioria. Só os heróis, sendo superiores, conseguem se posicionar de forma diferente. Só não aceito a forma como aconteceu. Se a morte do Cordeiro fosse um imperativo para a coroação, epílogo, um cruciante arremate de uma ordem emanada dos céus, perdoa-me Pai, mas por que a cruz? – Existem formas mais dignas de morrer um homem, não preciso citar muitas. Basta-me uma: Pela espada. Mesmo não sendo o filho de Deus um combatente pelas armas, averso que sempre foi à violência, ainda assim, existiria a possibilidade de evitar-se o escárnio. Por que tanta humilhação? – Qualquer hebreu sabe do estigma de quem é pendurado no madeiro. E, quem

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solicitou o sacrifício, sabia-o. Quem o ordenou, não! E, ainda sim, colocou-se à disposição de responsabilizar-se, e a seus filhos, e aos filhos de seus filhos acaso estivesse sendo perpretada alguma injustiça. Um comprometimento enorme, em nome de inocentes. Vou parar por aqui. Não consigo aceitar o fato, e nem entendê-lo. Antes do último suspiro, alento derradeiro do Mártir, ao passar próximo à cruz, ouví que Ele balbuciava meu nome. Levantei os olhos e notei Seu semblante alterado. Rosto coberto de sangue, olho esquerdo intumescido, pé esquerdo cobrindo o direito, ambos vazados por um cravo. O odor de sangue misturado a urina de cães que por ali vadiavam. Moscas ávidas em saciar os seus instintos no que restasse dos três homens que estavam em exposição. - “Bel, meu amigo, chegue-se mais para a frente, para que eu o veja” – Movi-me para a direita, dando-lhe melhor campo de visão. Isso se passou como em um pesadelo, pois não me sentia em meu estado normal. A cena era por demais chocante. – “Agora que minha mãe saiu um pouco, traga-me aqui o jovem João”. – Foi o que fiz. Antes, porém, achei de bom alvitre oferecer pequena propina ao centurião, que se afastou alguma distância para proporcionar maior privacidade ao que pretendia o Mestre. O que se seguiu, foi simplesmente notável. – “João, meu irmão, estou para partir. Minha mãe esta viúva há dezessete anos. Não existe possibilidade de algum varão da família tomá-la em casamento, por inexistência ou vocação dela, para ampará-la. Sendo que, também, verdade ser Eu seu único filho, não existe a hipótese de alguém requerer o direito e obrigação da aplicabilidade da Lei. Assim, o quarto mandamento de Moises não encontra respaldo no caso. Gostaria de confiá-la, se aceitares, aos teus cuidados.” – Não era minha intenção participar daquela conversa. Mas não me contive – “Rabi, não serei eu, acaso, digno de Tua confiança? – O mais sensato seria levá-la comigo para Alexandria, onde ela já residiu!”. “A caridosa oferta, foi a resposta, evidencia, de fato, a nobreza de teu coração; não me esquecerei. Todavia, urge que partas, eis que o lobo logo estará em teu encalço. Pois que Anás incita ao

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genro esmero e rapidez na descoberta do responsável pelo atentado ao templo. Tu me entendes. – Mas minha mãe estará presente no testemunhar a gloria do filho do Homem; não poderá ser mudado o terceiro dia. No entanto, tu serás sempre o meu primeiro Paulo”. Então, ele sabia sobre a minha tentativa. Como? – O que poderia ser-Lhe ocultado? – Não parei, naquele momento, para refletir sobre o fato. Percebi e gravei que fui merecedor de um cuidado Seu. Mais uma vez. Daí a pouco, Maria chegou, acompanhada da irmã, e entre lagrimas ouviu: “Mulher eis aí teu filho; filho, eis aí, tua mãe”. Fiquei sabendo, faz pouco, que João reside atualmente com a Mãe em Éfeso, na bela e grega Trácia, pregando para os gentios a palavra. ooo O ooo Entretanto foi uma cruz, conforme veremos adiante, o objeto que me restou como lembrança de tudo o que presenciei. E por ela entendi o que Ele me dizia sobre o cordeiro. E porque a face do cordeiro está gravada no patíbulo, simbolicamente aquela sustentada pelos ombros daquele Homem. Mas a razão principal do sacrifício prende-se à obediência aos desígnios celestes, e aí está presente o cumprimento das profecias – como assertiva final da retidão a que o Verbo se prendia e obedecia. E a doação se fez como corolário do amor perfeito pelo Pai, e pelos homens. A estes resta tentar, pequena que seja, retribuição. Um dia o homem entenderá que o criador não nos criou e destinou almas por uma brincadeira. Seria terrível e sem razão; ele quer que sejamos felizes, por isso nos deu o paraíso. Ou criou um paraíso para nós. Entretanto, parece-me, espera o senhor da vida e do universo que nos incorporemos a ELE, juntando-nos aos Seres imateriais, espíritos superiores e que O compõem e nos esperam para a apoteose prevista, quando nos encontraremos com o seu Cristo, na formação do Reino que não terá fim, e onde o Pai se

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completará e se realizará. Nós seremos parte do seu exercito, que é regido pelo amor e dignidade. E o mal não prevalecerá. Mas enquanto matéria, o homem nunca deixará de evoluir. Por isso devemos ser alegres e confiantes. Um dia pela Graça, no futuro poderá um nascido no planeta vir a ser tripulante de uma estrela, como aquela percebida por Moises acima de sua cabeça no Sinai. E que o herói considerou morada (casa) do Senhor, trombeteando acima das nuvens e atemorizando aos viajantes do êxodo; ou, quem sabe compondo a tripulação de uma tão linda e reluzente como a de Belém, de luz fria e suave e tão querida. oooOooo Mas não restou, sequer, um fio de cabelo do Homem de Nazaré aqui na terra. O corpo, ressuscitado que foi, conforme relatei e dou fé, estava vivo na última vez em que eu O vi. Glória minha! Entretanto, o Deus que Ele apresenta ao mundo tem a doçura no semblante, semelhante a um pai – pois que nos chama de filhos. Não faz cobranças, mas há um fato discordante se levarmos ao pé da letra, como se diz, as tradições. Presumo que aí entra o que mencionei no inicio sobre lendas ou mal entendidos. Pois que as esperanças dos hebreus estavam ligadas a um salvador e guerreiro. Um libertador pelas armas. E isso não se confirmou. Não até o momento, pelo menos. O Messias que reverencio e que acredito legítimo, é tão-somente amor e doçura. Averso a toda forma de violência. E então, não seria Ele o legitimo? – Se isso se der talvez que Israel não encontre jamais o seu salvador, nem terá mais profetas no futuro. Mas o futuro, sendo uma etapa de tempo que somente ao Pai compete prever ou determinar, jamais deverá ser fixado pelo derramamento de sangue. Desta forma não haveria justiça, já que o mais forte tripudiaria e se imporia ao fraco. E haveria imparcialidade. E a idéia de um pai requer acolhimento igual para com todos os filhos. Não requeira homem algum nem raça alguma uma primazia indevida; todos os filhos de Deus sabem raciocinar, sejam nascidos em qualquer quadrante do planeta. Se 71


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alguns são mais evoluídos, deve-se ao fato de terem obtidos maiores oportunidades na vida. Os realmente bem dotados em questão de discernimento, tendo conhecimento exato do fato, não se vangloriam de uma possível vantagem pessoal, já que ela existindo não constitui mérito próprio, mas doação recebida. Independe de raça, pois o gênio e a graça vêem de Deus. Da mesma forma, a graça da salvação foi estendida a todos. Não apenas para os descendentes de Abraão, o que é mais justo. E o fato foi-nos garantido pelo Cordeiro: ah, o Cordeiro. Demorei-me muito, mas entendi sobre docilidade e aceitação no fazer a vontade do Pai a que o Mestre se referia. E é pelo Homem de Nazaré, por sua palavra e doação, que remidos, nos tornamos dignos de chegarmos ao pai celeste. Nada restou em forma de matéria do homem de Nazaré; do Menino acreditei ser o destinatário de um tesouro e, às ocultas, na calada da noite, ousei colocar as mãos em uma caixinha de pedra sabão que eu sabia estar guardada e enterrada em determinada parte do jardim de minha casa. Julgava-me digno de possuir aquela relíquia, só para mim, com toda a certeza, e pela fé que já tinha iria guardá-la às ocultas do mundo. Ainda estava magoado com o que fizeram os homens com o Messias, e me julguei senhor de poder escamotear aquele presente que Maria nos dera, e ficar de posse dele, só para nós. Foi com a maior reverência que dei inicio à escavação, modesta na verdade, para obter o tesouro almejado. E que, para mim, digo-o com toda a certeza, seria algo que guardaria com desvelo e amor. Da mesma forma com que soube guardar a vida que o Criador colocou em minhas mãos. Vidas, afinal, pois foram três. – Eu fui guardião da Criança e de seus pais. E tivemos amizade. E eu O segui, e vou ainda segui-Lo, enquanto viver. Então, julguei-me no direito de apropriar-me da relíquia. Tive a pequena caixa em minhas mãos. Que pareciam transmitir uma ardência; eu senti sintomas de queimação. Não pude abri-la. Minhas mãos e pernas tremeram. Era noite, eu estava só, pois não queria o testemunho de ninguém. Nem de Katiuschia. E, então, percebi o adejar de asas. Bem mais fortes que de borboletas. E um

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canto de pássaro, o mesmo de trinta e hum anos atrás. Suavemente. E uma luz me envolveu, tirando-me a luz dos olhos. Não ousei gritar, mas tive medo. Não deveria dizê-lo, mas senti assim como que, a palavra é nova, como um sentimento de dor por fazer algo errado. Remorso? – Não vi ninguém naquela noite. Cheguei à minha cama tateando. Mas ouvi uma voz. Mansamente me dizia que o que eu poderia reter comigo como lembrança seria encontrado no dia seguinte, no mesmo local da escavação; foi o que fiz, logo amanheceu o dia. Estava enxergando! Encontrei uma peça de ônix retangular, de uma dimensão de meio côvado de comprido por um quarto de largura; dentro, uma cruz de marfim. Da maior simplicidade, mas, cheirando a rosas – que lindeza. Mas a beleza maior reside na efígie estampada, se posso assim referirme: em alto relevo, dourado, a figura de um cordeiro onde as travas se encontram. Pequena e delicada, de uma polegada. Existirá formula mais linda de assinar uma dedicatória? Aí, eu acordei. Então era isso!... Deus compassivo, aonde andei eu? O Cordeiro daquela cruz representa a face do crucificado! De Jesus! Então Ele é o Cristo de Deus. E isto foi revelado com maior autenticidade aos humildes discípulos. No entanto eu era o homem de letras, mas não o identifiquei. A revelação foi feita aos puros de coração. Por omina seculum seculorum. Amém. Simão já mo houvera dito, mas eu não o entendi; ou não acreditei. Então nada mesmo, deverá restar DELE como recordação material; porque, para mim Ele era o homem-menino de Nazaré; para o Pai, o Enviado. Ele próprio mo disse. Mas a estulta soberba, que se origina na vaidade de quem se julga intelectual, é que me fez o não acreditar , como devido, naquela verdade. O meu raciocínio sempre me levou a ver, no meu menino, alguém que desfrutasse de informações privilegiadas, apenas. Como justificativas, se é que as tenho, acrescento o fato de haver lido, tempos idos, nos livros-dogmas da fé hebraica, sobre o anjo que viria para aplainar os caminhos do Cristo de Deus. No meu pensamento esse seria Jesus, pois nunca soube ter havido quem 73


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quem tornasse ditos caminhos mais amenos para o nazareno. Salta aos olhos que quem dispunha de informações privilegiadas fui e sou eu, inegavelmente. Alem de havê-las vivido. Só que custou-me aperceber. Pena, poderia ter sido mais prazeroso e melhor aproveitado por mim. Além da fé no menino Salvador, ficou-nos a expectativa da construção da Casa de Simão Pedro, mais os agradecimentos a Deus e à vida pela oportunidade de participarmos, se possível, no futuro, como componentes do Reino que nos é prometido. E a esperança de que a luz do Menino envolva toda a humanidade, obtendo propósitos de amor e paz para o nosso futuro. Para o futuro de todo o planeta terrestre. Espero que a humanidade tenha a decência de resguardar a integridade da Casa de Simão Pedro pelo que se segue: Por não encontrar local mais apropriado, depositei a cruz dentro de caixa, e esta na coluna de sustentação da casa reservada aos caminheiros, que são minha esperança. E meu sonho. Sob o altar. Onde se realizarão as ceias com que iremos relembrá-lo. Em comunhão. Em decorrência de uma observação de Katiuschia [qual observação?], permito-me voltar ao final do volume “2”, a fim de tornar clara a expressão por mim ali usada ao referir-me ao resgate efetuado, por Simão, de seus ancestrais. E que eu não apresentara, ate então, justificativa plausível que me permitisse afirmar tal fato. Solicito escusas pelo lapso e licença para retornar ao passado daquela tarde em Jerusalém, onde foi, pela primeira vez, em meio à turba ululante, colocada sobre os ombros da vítima inocente a peça do martírio e da ignomínia. Isso em pleno palácio de Pilatos, o crápula representante de César. Por mais homem que fosse Jesus, não lhe seria possível levar ao destino final a incumbência da Lei, pois que ali Ele era um Homem, e todo homem tem limitações, e o fardo era-Lhe por demais pesado. Tão logo o sinistro cortejo ganhou as ruas, posteime no meio da multidão ensandecida, uns vinte côvados atrás do Rabi, sem ser percebido por Ele.

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Tão logo saímos dos limites da Cidade, no início de uma trilha, o Mestre tombou. E a cruz saltou-Lhe dos ombros ao chão, para delírio da turba. Então o Centurião, de nome Menessés, acorreu ao local, tentando alevantar o condenado. Quando se apercebeu da fraqueza daquela criatura, viu que seria impossível conseguisse Ela levar a bom termo o planejado. Retirou, após certo trabalho, a parte que serviria como sustentáculo do patíbulo ao conjunto olhando em torno procurando alguém que se dispusesse a ajudar dentre a multidão. Foi aí que ele me notou. O centurião, quero dizer. Porque o Cristo, com o patíbulo nos ombros, havia retomado a caminhada. “Homem, de onde és tu?” Não sei porque, mas meus lábios se abriram e saiu a mentira que não me é comum: Sou de Scyene. Por que não disse Alexandria? Não sou capaz de responder a essa pergunta. Voltou à carga : “Cirene,” onde fica isso?” Não é Cirene, excelência, é Scyene. Sou cidadão Egípcio. “Ah, temos, então, entre nós um Egipitano”, e escarnecia da minha nacionalidade. Voltei a afirmar “SOU EGIPCIO”. Só adiantou para exasperá-lo. “Sendo de onde dizes, também sois súdito de César. Apanhe esta madeira e ajude a este homem. È uma ordem!” Não esperei por segunda ordem e apanhando o madeiro pus-me a andar. Mantendo certa distância d'Aquele que ia à frente. Mas, o Centurião não estava satisfeito, tornando à carga enquanto iniciava a desdobrar a chibata. Era visível que a arma iría trabalhar. “Como te chamas, majestade?” Como sabia ele escarnecer! Mas, de onde tirei o que respondi?: - Meu nome é Simão. “Fales mais alto“. Meu nome é Simão, gritei. O Homem de Nazaré parou ao ouvir aquele grito, voltando-se para o meu lado, na retaguarda. Jamais conseguirei relatar com a devida clareza a expressão dos Seus olhos. Esperança, surpresa e interrogação, sem uma palavra. Por um momento houve assim como que um hiato de tempo, é o que posso dizer. Naquele átimo de segundo em que o tempo parou entendi, pelo seu olhar, o perdão de gerações passadas e presentes que ali se consumavam. Apanhou a parte que lhe era imposta do madeiro e recomeçou a andar.

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Ao desenrolar a chibata, perguntou-me a autoridade militar: “Tu o conheces?” A resposta veio do fundo de minha alma – Sim, e sob certa forma, sou filho Dele. Como poderia aquele bruto entender ao que me referia? “È cada uma que me acontece”! Foi o que disse. Já a chibata estava desenrolada, e o estalido do látego de couro cru fendeu os ares, afugentando a plebe do caminho, como se fosse o grito do relâmpago após seca prolongada, atemorizando aos circunstantes. E os seus olhos cinzas e frios, iguais aos da áspide do deserto varriam desafiadoramente a multidão. Retomamos, assim, a caminhada rumo ao caveira, a dor nos acompanhando. Fim Em Alexandria 36 anos após o nascimento do carpinteiro de Nazaré

Marco Belchior El Nazário

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Berosi, Benedicto Rodrigues da Silva, nascido em 34 na cidade de Estrela de Indaiá MG. Sétimo filho de Zé Caixeiro e D. Lilia. Muda para Dores de Indaiá MG em 1940. Onde vive o final de sua infância e parte de sua adolescência. Em 1949 vai morar na capital mineira, onde foi bancário e mais tarde topografo. Através desta profissão passa a conhecer as várias diversidades culturais das regiões das Minas e dos Gerais. Casa em 1965 com Neusa Maria, o amor de sua vida. Juliana, Marco, Mariana e Fernanda são os frutos dessa união.

versão e-book: www.issuu.com/encarnaçãodoverbo

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