Ciclo de Cinema 40 anos 25 de Abril - Folhas de sala - mês de Junho

Sessão de 5 de Junho de 2014 CONVIDADO: NUNO PORTAS, URBANISTA E ARQUITECTO CÓPIA 35MM GENTILMENTE CEDIDA PELA CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA

CONTINUAR A VIVER-OS ÍNDIOS DA MEIA PRAIA /1976 António da Cunha Telles

Sinopse A Meia-Praia, comunidade piscatória próxima de Lagos vive com o 25 de Abril de 1974 uma experiência original e exemplar. As velhas casas são substituídas por moradias de pedra erguidas pela população e nasce a esperança de constituição de uma cooperativa de pesca. Surgem dúvidas, contradições, desgaste.

Assiste-se ao primeiro acto eleitoral livre. Filmado na linha dos grandes clássicos russos, as personagens ganham uma dignidade e uma nobreza ímpar, iluminados pelo sol do Algarve.

Realização e Argumento António da Cunha Telles Direcção de Fotografia Acácio de Almeida Música José Afonso Som João Diogo Montagem Gizela da Conceição e António da Cunha Telles Participação Arqº José Veloso, José Romão, Fernando Romão, José Agostinho, Francisco Agostinho, Manuel António, José Espada, Francisco Albino, David Oliveira, Zélia Correia, e pescadores da Meia-Praia.

Produção Animatógrafo Cópia CINEMATECA PORTUGUESA – MUSEU DO CINEMA, 35mm, colorida, falada em português, 108 minutos Ante-Estreia Cinema Império (Lagos), a 25 de Abril de 1977.

Um filme como Continuar a Viver – Os Índios da Meia-Praia terá sempre garantida a sua importância. Realizado durante um período muito específico da história portuguesa recente, e por extensão durante um período muito específico da história do cinema português, o filme de António da Cunha Telles é daqueles que atiram para segundo plano a necessidade de análises estéticas ou formais individualizadas, e que relativizam mesmo a importância de uma discussão ao nível temático. O que parece ser importante num filme assim (como em vários outros do período imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 1974) é o modo como Continuar a Viver nos aparece hoje não tanto como um documentário mas, sobretudo, como um documento. Ou seja, menos um filme sobre a sua época (e sobre situações específicas dessa época) do que um filme que é, ele próprio, um produto dessa época, um vestígio, uma marca de um tempo que já não é o nosso mas que é fundamental para compreender o nosso tempo. Um sinal claro dessa singular fusão entre o filme e o tempo em que foi feito surge mesmo no fim, nas legendas finais em que é explicado o que aconteceu depois ao SAAL e à comunidade piscatória da Meia-Praia – o sinal é aquela pequena frase que nos vem avisar que a revolução não pára, que a revolução segue o seu caminho. Visto de hoje, não há melhor indício para confirmar a que ponto Continuar a Viver, menos do que um filme sobre a “revolução”, se pretendia (e se assume, aos olhos contemporâneos) como uma peça, uma parte integrante dessa mesma “revolução”.

Um filme datado, portanto? Claro que sim, datadíssimo, mas datadíssimo no mesmo sentido em que qualquer documento histórico o é, como algo umbilicalmente ligado a um determinado tempo. Continuar a Viver é um filme que contém o seu próprio teste de carbono 14: não engana ninguém, oferece-se em toda a sua vulnerabilidade, em todo o seu idealismo. É uma palavra-chave do filme de Cunha Telles, a palavra “idealismo”. Nem podia deixar de ser, num filme plenamente integrado no idealismo “revolucionário” da época. Mas é também por isso que Continuar a Viver, num visionamento contemporâneo, impressiona pela sua profunda ligação afectiva aos lugares e às pessoas. O “povo”, aqui, não é uma massa anónima e cinzenta, não é sequer um conceito político mais ou menos abstracto, mas faz-se de indivíduos, de rostos e de vozes – coisa que nem por isso era muito comum no discurso (e nas suas manifestações em imagens) “revolucionário” da época imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Assim como não se trata de um filme “doutrinário”: dir-se-ia que, mais do que falar, interessa-lhe ouvir.

Quando muito, no que é um aspecto curioso, assume a forma de um bizarro diálogo socrático, procurando que os pescadores cheguem, por si próprios, às conclusões tidas como as mais indicadas – o modo como os pescadores chegam à ideia de formação de uma cooperativa (ou de uma “comprativa”...), a partir de algo que, como um deles diz, tinha sido mencionado pelo “Sr. António” (presumindo-se que este “Sr. António” fosse Cunha Telles), parece ser um sinal do tipo de relação que se estabeleceu entre o filme e o seu objecto, ou sobre a relação que se estabeleceu entre aqueles que estavam por detrás da câmara e os que estavam à frente dela.

Poder-se-á dizer, até por isso, que Continuar a Viver tem qualquer coisa de “paternalista”.

Poder, pode, mas no fundo é bem capaz de nunca ter havido nenhuma revolução que não contivesse alguns elementos de paternalismo. Aqui, esse “paternalismo” talvez seja mesmo a expressão de um idealismo: ajudar os outros a viver melhor – e vem bem a propósito citar o provérbio chinês sobre se é melhor oferecer a um pobre um peixe ou uma cana de pesca.

Continuar a Viver é um filme que pretende oferecer uma cana de pesca, e essa ideia assim consubstanciada, que é afinal a ideia de que um filme pode intervir na realidade sem se limitar a ser um simples espectador dela, acaba por ser a derradeira expressão da sua convicção de que o cinema pode ser uma coisa pelo menos tão importante como a vida. ~ Luís Miguel Oliveira (‘‘folhas’’ da Cinemateca)

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Sessão de 19 de Junho de 2014 CONVIDADO: INÊS DE MEDEIROS, ACTRIZ E REALIZADORA CÓPIA 35MM GENTILMENTE CEDIDA PELA CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA

A CULPA/1980

António Victorino d’Almeida

Sinopse Escrito, realizado e produzido por António Victorino d’Almeida, que é também autor da música original do seu filme, A CULPA é um dos primeiros filmes portugueses de ficção, depois do 25 de abril, a fazer da guerra colonial e das suas consequências a sua matéria narrativa. A história segue a personagem de um ex-combatente na Guiné, regressado a Lisboa com os fantasmas das experiências aí vividas. Segundo palavras do próprio realizador: “o filme joga em cores berrantes, numa linguagem berrante, e tudo isso é característico da minha maneira de trabalhar em música. Por isso, o aspecto mais musical do filme não está na música, esta é apenas um estofo, está nele próprio”.

Realização e Argumento António Victorino d’Almeida Fotografia (Cor) Hanus Polak Montagem Daniela Klein Música original António Victorino d’Almeida Som Hans Haunold Cenários e Guarda-roupa Françoise Ariel Caracterização Luís Matos Efeitos Especiais Luís Matos, António Maria Rocha Interpretação Sinde Filipe (Mário), Mário Viegas (Adriano), Marília Gama (Margarida), Estrela Novais (Marta), Paula Guedes (Suzana, a criada), Miguel Franco (deputado Caeiro), Adelaide João (Dª Celeste Caeiro), Hugo Casaes (Froelisch), Maria Ramos (Dª Ermelinda), Rui Mendes (Jerónimo), Elisa de Guisette (Mme Lacerda), Luis Pignatelli (PIDE Velez), Inês de Medeiros (Joana).

Produção Vibdobona Filmproducktion, António Victorino d’Almeida (Portugal, 1980) Produtor António Victorino d’Almeida Director de Produção João Franco Cópia CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA, 35mm, Cor, 117minutos (cópia preservada em 2007) Anteestreia Festival Internacional da Figueira da Foz 1980 Estreia Comercial 7 de Maio de 1981, nos cinemas City Cine e Pathé (Lisboa).

De 1980, A CULPA, primeiro filme para cinema de António Victorino d’Almeida, recua até 1973 para compor um retrato do Portugal da época, um retrato bastante duro do país fechado, reprimido e absurdo da época. Victorino d’Almeida filmou-o, palavras dele, “em cores berrantes” e estruturou-o “intencional e visceralmente como uma sinfonia”: “o tratamento musical do filme, a utilização do contraponto, do leit-motiv, de muitas formas de chamar a atenção através de acordes gritantes.

O filme joga em cores berrantes, numa linguagem berrante, e tudo isso é característico da minha maneira de trabalhar em música. Por isso, o aspecto mais musical do filme não está na música, esta é apenas um estofo, está nele próprio”.

A citação vem de uma entrevista dada por Victorino d’Almeida a Maria Regina Louro para o Celulóide de Junho de 1981 e nela outra das suas referências dirige-se ao fundo surrealista também tomado por A CULPA: “Portugal é um país surrealista, profundamente surrealista (…) com muitos aspectos surrealistas: um certo destrambelhamento das pessoas, que as conduz a reacções excessivas, que torna certos períodos excessivos”. No filme “não é cada história em si que é excessiva, cada história em si é uma historieta, um melodramazito. O excesso está naquele contraponto, em termos musicais, de várias histórias simultâneas e na existência de um clima social que era um campo aberto à invenção, à mentira, à denuncia, à suposição, à superstição, a tudo o que se quiser. E um campo aberto também à realização de crimes como o que se passa no filme”.

A CULPA é um filme de muitas personagens e outras tantas pequenas histórias, através das quais se mergulha de facto num determinado (e pardo) clima social e humano, indissociável da vivência de uma ditadura em estertor simultaneamente anunciado e adiado, de uma Guerra Colonial mal seguida à distância imposta pela geografia e pelo discurso oficial. Esse cinzentismo pardo assume no filme os tons garridos citados por Victorino d’Almeida, uma inflexão para o grotesco (a sequência do primeiro jantar da família Caeiro; as cenas íntimas entre a Madame Lacerda e Adriano, para concretizar dois exemplos) e o acentuar do delírio, fazendo da figura do lobisomem a última das personagens a entrar na galeria do filme que pode ver-se como uma farsa colorida em retrato da farsa desbotada desses tempos.

A realidade narrativa em causa gira em torno de Mário, recém-chegado da frente da Guerra na Guiné e que se dirige ao Norte do país, de onde é originário, para pedir emprego na quinta de uma família onde o pai fora trabalhador. Essa família, nela incluída a criada interna interpretada por Paula Guedes, fornece um elenco de personagens para retratos individuais e de grupo da burguesia portuguesa da época. São um dos grupos de pessoas periféricas a Mário, como as mulheres que conhece quando desembarca em Lisboa e os amigos e conhecidos que reencontra no Norte, e onde não podem deixar de destacar-se a de Mário Viegas (Adriano), excêntrico acompanhante de uma excêntrica Madame Lacerda, e da família que dá guarida a Mário, junto de cuja filha, a miúda interpretada por Inês de Medeiros na sua estreia, aos 12 anos, no cinema, encontra uma cumplicidade que ambos prezam: a cena em que a miúda lhe conta uma história a meio da noite quando ele acorda sobressaltado por um pesadelo, levando-o a adormecer sossegado numa troca de papeis que funciona a favor do filme, é o momento de tranquilidade de A CULPA, como de tranquilidade parecem todos os restantes momentos em que os dois contracenam.

O reparo faz sentido como faz sentido notar essa estreia cinematográfica de Inês de Medeiros (no genérico é Inês Victorino d’Almeida), cuja aparição em A CULPA é refrescante em vários sentidos, sem dúvida pelos traços da sua personagem e pelo lugar que ocupa na narrativa, mas também, certamente, pelas suas próprias e posteriormente confirmadas características de actriz. No filme, a criança funciona como o reverso da personagem atormentada de Mário.

Quanto a este, é a culpa que carrega que dá o título e o sentido ao filme. A culpa de Mário começa por ser a culpa sentida pela morte de dois homens na Guerra, rapidamente replicada numa série de outras situações desde o momento em que ele chega a Lisboa. Mas essa culpa da personagem, uma culpa que o acossa em várias frentes e repetidas vezes sem apelo nem agravo, até mesmo no desfecho em que uma caça ao lobo e uma caça ao homem se confundem, não esgota a culpa como elemento chave do filme, em que é claramente o sentimento colectivo da culpa o fenómeno que se encara: “No fundo é uma figura plural, representa todo um conjunto de pessoas. Nos primeiros tempos do salazarismo, eram os comunistas que eram culpados de tudo, depois passaram a ser as pessoas de esquerda e por fim já nem sequer se dizia que a culpa era dos comunistas ou dos esquerdistas: era deles. Nunca se explicava quem eram eles. Eu transformei esses eles num ele”. A CULPA é um filme indissociável do momento histórico e social do seu tempo, próximo e reflexivo sobre os anos anteriores ao 25 de Abril de 1974 e aos últimos anos de Guerra Colonial. Foi, como provavelmente se esperaria, polémico por altura da sua estreia. Entre outras manifestações de apreço, conquistou o prémio Cólon d’Oro no Festival de Cinema Ibero-Americano em Huelva. ~ Maria João Madeira (‘‘folhas’’ da Cinemateca)

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Sessão de 26 de Junho de 2014 CONVIDADOS: ADRIANA ANDRINGA, JORNALISTA OTELO SARAIVA DE CARVALHO, CAPITÃO DE ABRIL CÓPIA 35MM GENTILMENTE CEDIDA PELA CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA

GESTOS & FRAGMENTOS/1981-82 Alberto Seixas Santos

Sinopse “Ensaio sobre os militares e o poder”, frase que também pertence ao título de GESTOS E FRAGMENTOS, resume o espírito do filme, assente em três pontos de vista sobre o mesmo tema: os de Otelo Saraiva de Carvalho e de Eduardo Lourenço, nos seus próprios papéis, e o protagonizado por Robert Kramer, como um jornalista americano embrenhado na procura de explicações para o processo tomado pela Revolução portuguesa.

“Certeiro e mortífero”. Um dos mais impressionantes olhares cinematográficos sobre a revolução de Abril.

Realização Alberto Seixas Santos Textos Otelo Saraiva de Carvalho, Eduardo Lourenço, Robert Kramer, Nuno Júdice Fotografia Acácio de Almeida, José Luís Carvalhosa Som Maria Paola Porru Música Ldwing Van Beethoven Montagem Manuela Viegas, Teresa Caldas.

Produção Grupo Zero, Cooperativa de Cinema Direcção de Produção Henrique Espírito Santo, Maria Paola Porru Cópia da CINEMATECA PORTUGUESA – MUSEU DO CINEMA, em 35mm, cor e preto e branco, com legendas em português, 87 minutos / Inédito comercialmente em Portugal.

Apresentado pela primeira vez em sessão publica, a 28 de Abril de 1984, na Sala Dr. Félix Ribeiro da Cinemateca Portuguesa.

“Sabes quem chega hoje ao aeroporto?... É o Álvaro Cunhal!

“Mas quem é o Álvaro Cunhal? ~ Otelo Saraiva de Carvalho in “Gestos & Fragmentos” Saber o que é que cada plano esconde, saber a diferença entre um plano e uma imagem, saber que inscrever não é necessariamente expor, saber furtar-se à espectacularização dominante: destes princípios poderia eventualmente ter surgido uma teoria para o “cinema militante” que se seguiu ao 25 de Abril. Retrospectivamente pode hoje concluir-se que o “cinema militante” português não teve uma teoria mínima para a inscrição do que por comodidade chamamos “25 de Abril”. Dois filmes, Que Farei Eu Com Esta Espada? de João César Monteiro e Gestos & Fragmentos, de Alberto Seixas Santos, se destacam – e são bem distintos os caminhos prosseguidos por cada um deles – dos restantes, na medida, afinal, em que organizam e propõe uma teoria da inscrição do “25 de Abril” ou do que pode ser a memória dele.

O conteúdo de Gestos & Fragmentos é aquilo que ele não mostra. É mesmo aquilo que ele esconde: o 25 de Abril, expressão que resume um Poder em aberto, e a movimentação das figuras, os Militares, que para ele convergem. Sete anos depois de 1974 (o filme é de 1981) a organização de um saber sobre Abril passa essencialmente pela disposição de diferentes pontos de vista que estabelecem o seu discurso sobre imagens das imagens (Kramer), ou sobre a ausência penosa dessas imagens (Otelo), ou sobre a transliteração delas (Eduardo Lourenço).

O primeiro som do filme (e não é curioso que a primeira “imagem”, seja um som?), acompanhando o genérico, é o rumor da água. Metáfora da fluidez, dir-se-ia, mas também metáfora da horizontalidade, do movimento em frente, esse som que se cumpre no primeiro plano do filme (plano geral do mar, junto à costa) introduz dois discursos que também procedem na “horizontal”: o de Kramer e o de Otelo. O primeiro corte com essa horizontalidade surge na primeira intervenção de Eduardo Lourenço: o seu discurso não procura formular um alinhamento dos factos, o que o seu discurso visa é a fractura instantânea dos factos, como um ponteiro que fracturasse a pedra. Especulação, dir-se-á. E, contudo, lá está no filme o primeiro movimento de câmara dedicado a Kramer que evolui frente ao puzzle cronológico que desenhou num placard.

Horizontalidade da câmara para a horizontalidade de Kramer. Ao contrário o primeiro ângulo muito marcado da câmara, um plongé acentuado, é para Eduardo Lourenço que lê em paisagem mineral: verticalidade.

Há, aliás, outra diferença que poucas excepções encontra ao longo de todo o filme: Otelo e Kramer estão fechados em interiores – dentro de um cubo, com a câmara (só uma vez, a câmara se cindirá do seu objecto humano, no plano de Kramer à janela, entre os estores, antes dos dois planos com a bandeira americana) – enquanto Eduardo Lourenço discursa em exteriores onde a marca vegetal e a luz natural, sinais óbvios de Straub, são presença soberba.

Sublinhe-se aqui, a par do que têm em comum, Otelo e Kramer se distinguem, no tratamento fílmico, de forma clara.

Kramer evolui no quarto típico de um thriller: lembremo-nos no plano com a luz forte do candeeiro da secretária produzindo um círculo branco que apanha meio-corpo do personagem, enquanto o rosto, excluído dessa halo de luminosidade, permanece na penumbra (é onde há menos luz que se vê melhor, não é?), prestes a ser atingido pela ligeira coluna de fumo que sobe do cinzeiro. Kramer é um herói de Raymond Chandler, é o Marlowe do 25 de Novembro.

E, tal como acontece a Marlowe, a Kramer chegam – de fora – as pontas do novelo: logo na sua primeira aparição, sentado à mesa do bar, com as grades de coca-cola atrás, há uma misteriosa mão que, num movimento rápido e furtivo, lhe põe uma chave em cima da mesa, assim como é nos planos dele que as vozes off sobretudo irrompem (leitura da carta, telefonema, viagem de Kramer ao rio, seu único exterior, com o fabuloso remate: “there’s no way to say ouvrier in America”).

Todo o décor à volta de Otelo sublinha o lado doméstico: mesa, jarras, sofás, estante com a enciclopédia, o prato de louça chinesa. Tudo é familiar, o que demonstra inexcedível ternura pelo personagem, mas tudo é também inequivocamente pequeno-burguês, o que de algum modo o trai. Mais ainda: nenhum mistério vem ornamentar o personagem. Os planos de Otelo são em geral luminosos, com luz aparentemente natural (as grandes janelas), só num dos planos, com Otelo de costas para a câmara (por sinal em plongé), a luz é baixa (com os estores marcados nas costas do major denunciando a inquietação do momento): a sinceridade, o confessional – Otelo refere a ordem que recebera para mandar cortar as cabeças dos guerrilheiros – pedem o estatismo, a rigorosa distribuição de luz e sombras.

Nada até agora parece justificar a escolha do dito de Otelo em epígrafe. Ora, não é por mera provocação – ou seja, não é só – que ele lá está. Na verdade, Gestos & Fragmentos, visita maior ao 25 de Novembro, peregrina igualmente pelo processo político que lhe deu origem, recuando mesmo à questão da guerra colonial, sem que uma só vez os militares saiam da ribalta.

Ao contrário de um filme americano, os secundários não são para aqui achados (e ouvidos muito menos). É por isso que a epígrafe está certa. Depois de vermos Gestos & Fragmentos pode perguntar-se: quem é Cunhal? quem é Soares?

Dir-se-ia que, por fim, a imagem (fílmica) do Poder ganha alguma profundidade, dispensando por isso as suas instâncias especulares: Cunhal, Soares, outros políticos podem ser os espelhos que nos reenviam a imagem do Poder, mas esse espelho é também um túmulo onde morre a nossa possibilidade de o compreendermos. Os militares são (foram), e daí a sua intangibilidade, a encarnação desse Poder, a Tábua onde a lei se inscreveu.

Razão pela qual é em Otelo que podemos ler a Lei – e em Otelo é que a Lei é familiar – ao contrário do que sucede com Kramer cujo mistério resulta da sua evidente ilegalidade, ou com Eduardo Lourenço, mero intérprete do espírito da Lei, mas a quem a Lei mesma silencia (Lourenço é um ouvinte de Otelo, no final do filme).

Poucos filmes – talvez nenhum outro – terão em Portugal afrontado tão friamente a face da Lei. Poucos nos terão tão familiarmente aproximado do Poder e da vontade dele.. ~ M.S Fonseca (‘‘folhas’’ da Cinemateca)

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