O sol de todas as noites

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o Sol de todas as noites Claudio Parreira



O sol de todas as noites



o Sol de todas as noites Claudio Parreira



...e de nada adiantam os banhos frios, as orações, a entrega obstinada às palavras: por mais que fujamos, elas estarão sempre presentes. ~H. P. Bruesch, Aborto Celeste, 1521 p. 210~



Sumário Terceira Essa mulher que eu nao sei quem História de amor Pequeno ensaio sobre o tempo paralelo Malte clube Mulher no banquinho O sol de todas as noites Quimera Marianna Laura Fome Bach, suíte no 3 Além do espelho A relatividade das lágrimas A mulher perfeita A mão A geografia da paixão Os presentes de Alice Sem discussão Iguais Aquilo que sustenta o amor Z

11 17 23 27 31 39 43 47 57 61 67 71 77 93 97 103 109 113 119 123 127 133



Terceira



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passei a inventar mulheres. Não foi coisa de menino; depois de grande é que dei pra variar. Em pequeno fui responsável, o adulto que queriam pra mim. Muito juízo, eles diziam, mas eu sabia em silêncio que tudo era apenas uma questão de tempo. Pois então. A primeira mulher foi um susto: veio sem pernas. Mas o susto foi meu, só meu; ela falou serena, que era falta de prática. — Um pouco mais de paciência — ela falou, os dedos longos acariciando o joelho inexistente —, basta apontar bem o lápis, as pernas são resultado da técnica. Insiste. Continuei, portanto. O lápis criando a vida assim do nada. Mas faltava algo, eu sentia, faltava – e não era a técnica. Faltava, soube disso depois, o meu coração nas coisas. Foi uma das mulheres que me falou. Eu punha a mão no lápis, os olhos, mas nunca o coração. Daí o resultado incompleto. ão sei quando

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A primeira sem pernas, a segunda sem braços, a terceira completa exceto a voz. Um silêncio de manequim. Boneca móvel e silenciosa. Minha irmã. Daí que resolvi repensar. E não foi preciso muito: percebi que com as mulheres de verdade também tinha sido do mesmo jeito. Nenhuma delas teve o meu coração. Tiveram algumas uma lasca de coração, um fiapo de sonho, mas nunca tudo. Alguém que não se dá por inteiro não merece outro alguém por inteiro. As solidões consequentes. O hábito de beber sozinho com os olhos cravados na lua. Quando os sonhos se transformam em vasto vazio. A minha voz que secou. Falar com quem, para quem? O silêncio é muito pesado quando não se tem mais o que falar. Códigos, eu os conheço. Mas perdi o interesse. Não me interessava mais ouvir, falar muito menos, esse exercício doloroso e inútil da comunicação. Escuridão, essa é a verdade. O silêncio é a escuridão da alma. Foi aí que me percebi envolvido completamente nas trevas, mudo feito uma pedra. Eu devia sentir medo chorar lamentar meu destino. Não fiz nada disso. Não senti nada. Vaziez. Meu corpo flutuando no espaço negro. Um século assim. Dois? Enfim, um tempo sem números, ponteiros, impossível de contar. Só o contínuo flutuar no imenso útero negro da minha mãe. Até que a voz me atingiu, a voz improvável, impossível, a voz da muda: 14

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— Escreve e me faz viver! A terceira, a muda, minha irmã: falando comigo sem voz. Mas era inegável, era uma ordem. Escreve, escreve. — Já te criei com o lápis — falei, e minha voz, há muito silenciosa, era ferrugem e pó. — Você passou a viver quando o meu lápis te trouxe do nada. — Ainda estou no nada — falou a terceira. — Escreve o meu coração com o teu coração. Para que eu exista. Escreve o meu coração com o teu coração. Aí sim o medo, pela primeira vez. Nunca o meu coração, pra ninguém. Escrever, muito menos. O lápis me permitia desenhar, contornar a possibilidade de alguém, trazer à vida mulheres de sonho, mesmo que parcialmente. Mas escrever era um desafio; desafio maior era escrever com o coração. — Experimenta — disse a terceira. — Experimenta. Foi dessa maneira então que a luz surgiu. O que antes era escuro e silêncio subitamente brilhou. A terceira, minha irmã, minha invenção. Não mais incompleta: — Não falei? A voz era perfeita, natural. Ela falava como uma mulher de verdade. — Agora sou uma mulher de verdade — ela continuou. — Você me escreveu. Era isso o que eu precisava. Era isso o que você precisava. Escrevi com o coração? Não sabia. — Sim, sim, o coração — ela disse. — O coração, enfim! Um novo mundo, uma nova vida. Eu e a terceira, felizes. O sol de todas as noites

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Uma situação inteiramente nova pra mim: agora sol e luz no que antes era escuridão. A terceira também, uma menina sorridente e falante. Minha criação mais perfeita. Minha irmã, foi aí que eu me dei conta. Minha irmã? Não não não! Minha criação, sim; irmã jamais. A sombra do pecado se infiltrando sorrateiramente no meu coração, o mesmo coração que trouxera à vida plena a terceira, minha invenção. Meu amor. — Larga mão de bobagem — ela disse. — Isso de pecado é para os ignorantes, não se aplica à gente. Parecia simples: somos mesmo de outra natureza, dois seres ímpares. Mas a minha consciência, esse martelo em chamas, batendo sem parar. A mesma mão que procurava a terceira no aconchego da noite era a mesma que a afastava logo em seguida. O meu coração presente, sim, mas sofrendo como nunca. Esse o meu medo desde sempre: sofrer, sofrer. Eu via então a terceira ficando cada vez mais calada, distante. Não foi, portanto, nenhuma surpresa quando ela partiu. Minha criação agora era coisa do mundo. Fora do meu controle. Controlei algum dia? Já não sei de mais nada. Tenho aqui diante de mim o lápis, já aprendi a escrever com o coração. Mas sei que isso não é o suficiente. Ganhar e perder, a dor de perder. A escuridão, sempre ela, a escuridão.

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Essa mulher que eu nao sei quem



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ápido assim: eu vi a mulher, ela se percebeu sendo vista, entrou no espelho e desapareceu. Apaguei o cigarro antigo com as botas mais antigas ainda e fui atrás. O espelho permitiu a minha entrada sem perguntas. Os espelhos, afinal, nunca perguntam. Chovia peixes quando botei os pés pela primeira vez naquela terra escura. Uma única luzinha acesa lá longe. Uma casa, talvez um olho. E nada da mulher. Essa coisa dos peixes caindo do céu não é milagre porra nenhuma: dói pra cacete. E incomoda. A muito custo avancei alguns metros, sempre tirando os peixes do caminho, protegendo a cabeça dos peixes maiores, as botas esmagando os peixinhos. Mas a mulher, encontrá-la, é claro que sim. Com peixes e tudo. A grande boca escura do céu soprando espinhos no meu rosto. Soubesse das dificuldades, teria ficado na minha. Ou não, porque o que interessa mesmo é a aventura, e uma mulher que se deixa escapar por um espelho não é sempre que. O sol de todas as noites

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A terra molhada de peixes, a luz brilhando ao longe. Os meus passos. O coração aos solavancos. O nome disso é dor. E sem essa de pensar que a dor nos torna mais fortes. Isso é conversa de almanaque. A dor nos torna mais doloridos. Avanço, portanto, de dor em dor, a alma dolorida. Ao desaparecer pelo espelho a mulher deixou uma mensagem bem clara atrás de si: não me acompanhe. Mas eu não tenho mais nada a perder, já perdi. De tal maneira que li o não me acompanhe com as letras do vem meu amor. Eu, que apesar de tudo ainda procuro o amor. E é esse amor-peixe que me golpeia a cabeça, que me encharca a roupa de escuridão, o amor é essa luz que sei ao longe, mas nunca alcanço. Um caminho é feito de todos os outros caminhos: esquerda direita em frente tanto faz. O caminho é aquilo que se apanha pelo caminho: uma rosa, um sentimento, um monstro. Porque assim, enfim livre de uma vez por todas dos peixes e das dúvidas, fui em frente, o açoite dos espinhos cedendo lugar ao afago de mãos invisíveis. A mulher, sim, estava lá em algum lugar. Cheia de poesia e facas, a boca pronta para o beijo ou mordida. A mim só restava conferir. Fixar a cara do amor diante da minha, respirar o seu bafo, provar a sua cor. Porque ainda acredito, talvez minha única crença, essa, no amor. Agarrar o amor pelos ombros sacudi-lo até enchê-lo de pavor de mim; abrir os seus olhos para mim. Sim, 20

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eu existo! — gritaria para o amor, que tem me ignorado desde sempre. E de repente o amor nada mais é que essa mulher que eu não sei quem, que entra pelos espelhos como quem respira, que flutua entre a chuva de peixes. Uma mulher que me escapa. Subitamente percebo que encontrá-la, alcançá-la, seria a chave de todos os mistérios, a resposta das respostas. E também o fim, porque sem mais nada a esclarecer, pra quê? Parado no meio do caminho, a luz ao longe, um olho?, os peixes voltam a cair do céu com redobrada dedicação. Voltar pelo mesmo espelho não é uma alternativa, é covardia; permanecer aqui sob a chuva de cardumes inteiros é burrice. O quê, então? As dúvidas do amor, sempre.

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Hist贸ria de amor



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e fiz o presente mais belo. Um embrulho de sílabas cintilantes, dentro dele uma caixa, dentro da caixa todo o meu amor. Mas você não viu. Preferiu declamar horizontes distantes e desconhecidos, saltitar conhaques como quem filosofa todo o entendimento do mundo. De minha parte apunhalei margaridas em teu nome. Chicoteei borboletas. Mas teus olhos surdos jamais sentiram o perfume dos meus sentimentos. Loucura, eu sei. Porque você não vale poemas nem suspiros. Você não vale nada. Os laços da paixão em volta do meu pescoço, asfixia. Teu nome que a minha língua insiste em não esquecer. Minhas mãos cheias de nada. As meninas sorriem pra mim na rua. Outras chovem beijos e intenções. Tonto, dispenso a todas com a polidez das açucenas. Fidelidade é um tronco atravessado na garganta. Um dia hei de me vingar pelos meus desvarios em tua homenagem. E será um gozo enfim, o último gozo: O sol de todas as noites

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vais receber pelo correio o meu coração ensanguentado, arrancado do peito com minhas próprias mãos, prova mais-que-perfeita dessa história de amor que jamais aconteceu.

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Pequeno ensaio sobre o tempo paralelo



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o meio da noite ouvi os gemidos de vovó. Como se atendendo a uma determinação superior, calcei os largos chinelos de veludo, acendi a luz do quarto e me dirigi até a sua cama. Aproximei-me mais e, nervoso, assisti então ao nascimento de mamãe. Anos mais tarde, eu e ela já corríamos pelo quintal como dois alucinados, experimentando todas as sensações que a nossa idade permitia. Dessa época lembro-me ainda dos sorvetes e da emoção inigualável da primeira bicicleta. Depois, quando nos esquecemos dos brinquedos e dos doces, começou a melhor fase de nossas vidas. Com frequência nos reuníamos à tarde na varanda da casa e traçávamos planos para o futuro. Eu sonhava com aviões e viagens ao redor do mundo, e mamãe, bem mais modesta que eu, impunha o portão como limite aos seus sonhos, imaginava-se apenas feliz e esperava por um bom marido. Costumava falar muito em casamento, mas eu só comecei a me preocupar de fato com essa possibilidade no dia em que papai passou diante O sol de todas as noites

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de casa dirigindo o seu primeiro automóvel. Desde então as tardes na varanda me esqueceram e passaram a ser de papai. Longe do olhar severo de vovó, ele e mamãe se entregavam à vertigem dos beijos e das carícias mais ousadas, mergulhando profundamente num mundo cada vez mais repleto de suspiros e desmaios. Pouco tempo depois de começado o namoro, um escândalo já previsto por mim abalou a vizinhança conservadora e antiquada: mamãe estava grávida. Vovó, com seu jeito prático e objetivo de resolver os problemas, tratou logo de punir os dois infratores com o casamento, que se realizou alguns dias depois. Os meses se passaram rapidamente e, um dia antes do parto, tornei a me encontrar com mamãe. Tranquilizei-a quanto ao futuro da criança, tomei em minhas mãos as suas mãos ansiosas e me despedi. — Quando voltarei a vê-lo? — perguntou ela. — Amanhã, com certeza — respondi e me afastei.

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Malte clube



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ena, esse o nome da zinha. Toda noite no Malte Clube, as botas escondendo as canelas, o vestidinho exibindo as coxonas, o cabelão quase na bunda. Mas perdia a viagem quem chegava com lero-lero e finalmente. Rena dançava com qualquer um que pagasse, bebia, jogava bilhar. Mas nada de ir para o quarto como as outras, ficar no bem-bom. Era mulher da patroa, dizia pra todo mundo ouvir – e quebrava a cara de quem se metia a besta. Conhecedor dos usos e costumes do Malte, eu ficava na minha. Pegava uma menina, outra, e assim ia levando. A patroa, monstra de tetas firmes, confiava em mim: — Você é o único que respeita a minha casa. Te considero como um filho. Um filho, sim, mas eu botava os olhos na sua mulher. Até um cego botaria. As outras meninas, sambadas, faziam o trivial. Bonita mesmo era Rena, os peitos olhando pra mim, os cabelos espalhando perfume no ar. Acho que é por isso que me foi crescendo um fogo aqui por dentro, um fogo bom. O sol de todas as noites

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Fiquei então meses e meses de conversa fiada, cercando. Tudo com muito respeito, é claro, porque não queria me estrepar nem perder a estima da patroa. — Você é um filho pra mim — repetia ela, toda noite. Rena, sabida, percebeu logo as minhas intenções. Numa noite de pouco movimento, ninguém pra dançar, ela me puxou prum canto mais retirado: — O que é que anda passando pela tua cabeça? Eu ia explicar, mas as palavras eram tantas que resolvi ir direto ao assunto: soquei-lhe um beijo daqueles, comprido, sufocante. Ela relutou, bateu com as mãos no meu peito, fez que ia me morder a língua. Eu segurei, forte, e ela acabou se entregando, o fim do beijo já com ela enroscada em mim. A mulher da patroa, a que batia e acontecia, cadê? Faltava alguém como eu na sua vida, um homem. — Loco? Tá loco, cara? — bufou ela. — Acho que te amo — foi o que eu consegui dizer. Por dois dias ela não me olhou na cara. Ficava de fuxico com uma e outra, cochichava com a patroa, sua mulher. Logo depois, porém, ela mesmo veio se chegando, mansa, gata macia. Eu, sabedor do perigo por ali, falava qualquer coisa e saía de perto, ia tomar cerveja, apertar os peitos das meninas solteiras. Pelo canto do olho eu via que Rena espumava. Isso era a minha garantia. No Malte não tinha jeito, e o jeito então era marcar os encontros onde dava: no mato, na beira do rio, no 34

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hotel da cidade, no meu quarto de pensão. Rena, corpinho lindo, pouco uso de homem, gemia embaixo de mim feito menina, baixinho, e eu sonhava: já via a mulher cuidando da casa, dos pirralhos, me esperando de noite pra comer, essas coisas. Só que o sonho durava pouco, ela precisava ir, voltar pro Malte antes da patroa acordar, manter as aparências. Isso me irritava mais que tudo, mas ela, esperta, falava eu te amo no meu ouvido e resolvia o assunto. No Malte, a mesma história de sempre: a patroa de conversa comigo, matraca velha: — Um filho pra mim, um filho. Eu não conseguia nem sentir vergonha de estar enganando a mulher. Sentia, isso sim, raiva dela, raiva por ela estar empatando o meu amor, raiva por ela dormir com a mulher que eu queria só pra mim. Mas fazer o quê? A patroa dava a Rena uma casa, cama, dinheiro, vestidos caros da cidade, tudo isso. E eu, o que eu dava? Dava só o meu corpo e sabia que isso não bastava. Era preciso mais e eu não sabia por onde conseguir. — O meu amor tá tão quieto hoje. O que foi? Não tá gostando da sua mulher? O cigarro aceso, eu olhando pro teto e vendo a fumaça subir. — Nada não. Tô aqui pensando numas coisas. Rena se vestindo novamente, ia voltar para a bruxa velha. — Rena... — O que foi? O sol de todas as noites

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— Nada não. Cabeça quente, naquela noite eu entrei no Malte decidido. Passei pela patroa sem cumprimentar, fui direto pra Rena. Ela me olhava como quem não via, e eu, nervoso, abri o jogo: — Quer casar comigo? Ela riu, a patroa riu, os homens e mulheres do clube riram. Fiquei ali perdido, sonso no meio daquela gente. A patroa, rindo ainda, se aproximou, abraçou Rena na minha frente e lhe deu um beijo daqueles. Eu quis apartar as duas, brigar, mas um homem me segurou por trás. — O sujeitinho aí quer casar com você, menina — falou a patroa. — O que você acha? — Acho que o otário caiu direitinho — respondeu Rena, seca. — Mas Rena — falei —, e nós? Riram de novo, todos. Ela, aproveitando que eu tava seguro, largou uma porrada na minha boca. Vi prazer em seus olhos — e cuspi sangue, dentes. — Filho, filho — falou a patroa. — Não sabia que mulher minha é mulher minha? Ou pensou que tava me enganando, eu, que fui criada na viração? Senti raiva: tudo armado desde o início, eu tinha sido o bobo, o palhaço de todo mundo. Rena veio, o golpe final: — Você é um tonto, cara. Homem nenhum vale a mulher que eu tenho. Ela é melhor que você em tudo, tudo mesmo. 36

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Ingênuo ainda, falei, despedaçado: — Mas Rena, e o meu amor? — Enfia o teu amor no cu! E some logo daqui, antes que eu te quebre o resto dos dentes. O homem me soltou os braços, me empurrou, quase fui de cara no chão. De cabeça baixa, atravessei o salão do Malte Clube como um cachorro sem dono. Na rua, ainda ouvia as risadas lá atrás. Devagar eu entrei na noite, devagar eu desapareci.

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Mulher no banquinho



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arde quente da porra, nenhum movimento. Ela simplesmente saiu pra rua e se sentou no banquinho em frente. Não era mais uma menina, a barriga empurrava o vestido e os peitos que antes miravam o sol agora observavam as pedras do calçamento. OK. Mas o banquinho era um outro universo. Ali ela era outra, plena, capaz, poderosa. Menina outra vez. No ar quente ela via de novo o seu príncipe, os príncipes, as promessas realizadas. O carro que nunca teve. A casa. Bastava fechar os olhos e tudo voltava, ali, no banquinho. Algumas coisas esquisitas também, piratas, cavalos verdes, navios flutuantes. Mas tudo aquilo cheirava melhor que o seu lençol. Como de outras vezes, ela costumava abrir as pernas e esperar. O gozo. Não havia ninguém mesmo ali pra ver. Inundasse a calçada e não haveria nenhuma testemunha. E as imagens se sucediam por detrás dos seus olhos fechados: aquele beijo desconhecido, os filhos O sol de todas as noites

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de sonho, o abanar de rabos dos cachorros inexistentes. Mas era sempre assim: quando o tremor começava, quando o vulcão estava prestes a explodir, sempre aparecia um vilão disposto a lhe trazer de volta. O homem veio, sorriu, segurou pelo braço. No seu bafo alcoólico, a fala objetiva, voz de dono: — Vem! Ela levantou, abaixou os olhos, deu dois passos de volta. Aí olhou o homem nos olhos, sorriu, e correu pro outro lado da rua. Havia um pirata sobre um cavalo verde, um navio flutuante à sua espera. Era mesmo uma tarde quente da porra.

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H

avia um sonho em mim antes de você, e subitamente você emprestou carne e voz à fina matéria inebriante desse mesmo sonho que eu achava só meu. Perplexo, indaguei o vazio, Deus, os silêncios que me preenchiam desde sempre. Um medo. O amor. Passei dias fugindo de mim, o nariz tentando esquecer o perfume que já estava gravado pra sempre na memória. A concretude da pele. Os seus olhos que me ofereciam frescor e abismos. Eu não acreditava mais. Minhas mulheres de sonho, sempre elas. Mas você se impunha como um a realidade incômoda. Peitos e bunda, os fluidos da nossa rasa experiência comum. Não me julgava merecedor de uma mulher de verdade. Eu, que sempre amara mulheres inventadas. Um dia, porém, resolvi fechar os olhos e abrir os braços. E a luz se fez. A felicidade é um fardo sorridente. E eu sorri, sorrimos. Experimentamos o sonho de viver de amor. O sol de todas as noites

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Agora existe um deserto entre nós. O sol de todas as noites. Mesmo com você ao meu lado, minhas mãos não te alcançam mais. Nossas palavras se perdem no vazio de um rancor amargo. Mais uma vez me volto para a intangibilidade das mulheres de sonho, agora certo de que a realidade não é suficiente. A solidão é uma doença que não se cura com abraços. Nunca te conheci de fato, percebo agora; você também nunca me conheceu. Seguimos apenas os dois, perdidos dentro da névoa.

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Quimera



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u vendia hipopótamos na feira quando vi a mulher pela primeira vez: linda, os cabelos louros esvoaçando do sovaco, dois metros e meio de pura tentação. Filhote, o meu cachorro filosófico, foi logo dando palpite: — Não entra nessa que é roubada. Pelo brilho do olho esquerdo, essa aí tem pra mais de quarenta filhos. Aceitei o conselho do Filhote com os ouvidos, mas o coração não quis saber: corri pra cima da mulher. Para impressioná-la, passei antes na biblioteca. Peguei meia dúzia de clássicos, que sempre dão melhor resultado. Quando ela me viu com os livros brotando feito flores das mãos, se abriu toda sorrisos. — Li todos eles pra você, meu amor — eu disse, os olhos faiscando sacanagem. — Que tal? O sorriso ganhou uma súbita expressão séria. Filhote, filosófico, arrematou: — Eta porra! — Não pense que me entrego por essa mera literatuO sol de todas as noites

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razinha — ela falou. — Pra me ganhar o buraco é mais embaixo! Disse isso e se virou, resoluta. Uma mulher que despreza os clássicos é maluca. Ou merece respeito e atenção. Por isso observei-lhe o rabo: três pontas descascadas. — É normal — sentenciou Filhote. — Graças a Deus — falei. — Vamos beber a isso! Filhote não gostou muito da idéia. — Mas é só gasolina, filho! — eu justifiquei. Ele abaixou as orelhas, enfiou o rabo entre as pernas e perguntou: — Você promete que é uma só? Uminha só? Saímos do posto de gasolina às quatro e meia da manhã, os arrotos potentíssimos lançando chamas a centenas de metros. Eu vendia, como já disse, pterodátilos no supermercado quando vi a mulher pela segunda vez: linda, os cabelos avermelhados esvoaçando das ventas, quase três metros de vertigem. Filhote, os bigodes ainda chamuscados pelas labaredas da noitada anterior, resolveu bancar a minha consciência: — Larga mão, sô! Isso aí não é mulher, é o diabo que veio pra te aporrinhar. Como ela mesma disse, o buraco é mais embaixo. Vai encarar? Mulheres difíceis é que valem a pena, pensei, principalmente quando precisamos usar uma escada para lhes alcançar o pescoço fino para um beijo fugaz. Assim era ela, com seus quarenta filhos ou não. E assim 50

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estava eu: torto, os quatro pneus e o torso arriados, a garganta seca implorando por mais gasolina. — Nem pensar! — protestou Filhote. — Ela não vale tamanha humilhação. Fiquei olhando o cachorro, penalizado: nem mesmo toda a filosofia do mundo o fizera mais sensível. Decerto mantinha um bloco de mármore no lugar do coração. E sua boca jamais provara a voltagem de um genuíno beijo de amor. Seus olhos eram incapazes de enxergar a paixão: em quem eu via céu ele só encontrava tempestade. — Ora, pois, meu querido Filhote — eu disse. — Enfia a tua filosofia no rabo que eu quero mesmo é pandegar! — Depois não diga que eu não avisei... A prudência, ah!, a prudência. Por isso é que o Filhote não passa de um cão filosófico solitário: prudência demais. Corresse um pouco mais de risco e viveria melhor. Mais feliz, pelo menos, que esse negócio de filosofia pura corrói o fígado e os miolos. É a cachaça da alma, um ácido do espírito. E ácido por ácido eu prefiro o LSD que o bafo dela exala. Ela é uma mulher envolvente, sim, e não digo isso pelo fato da moça ter quatro braços. Nem me abraçar ainda ela abraçou, porque o buraco, segundo suas próprias palavras, é mais embaixo. Mas eu sei que o momento do abraço vai ser sublime, o momento do beijo. É nisso que se baseia toda a minha vida hoje: nos momentos futuros que terei ao seu lado. Os carneiros O sol de todas as noites

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que trafico na igreja garantem a minha subsistência, mas o meu prazer vem de outras fontes. E agora cismei que a fonte primeira de todos os meus delírios gozosos é ela, que é linda, os cabelos amarelos cheirando a capim, três metros e meio de loucura. Os automóveis e crocodilos mostravam reverência e uma ponta de inveja à minha passagem: lá vai um apaixonado, eu pensava que eles pensavam. E decerto pensavam mesmo, porque tudo em mim cheirava como o jasmim da paixão: desde os cascos até o olhar, que iluminavam de cor as sombrias ruas em linha reta da vida comum. Pelos óculos que a minha condição de futuro amante me colocara sobre os olhos eu via agora um mundo todo novo: os edifícios circulares, as avenidas ascendendo em direção ao céu, as curvas azuis do vento. Mesmo as pessoas, que sempre me olhavam com reserva e desconfiança, ensaiavam sorrisos e acenos, exibiam um discreto menear de cabeça, o desconcertante sussurrar de palavras de apoio e incentivo que eu jamais ouvira antes. Houvesse no mundo mais apaixonados como eu e a vida seria bem melhor. Para que tudo isso se concretizasse, porém, faltava o principal: encontrá-la. O buraco mais embaixo, ou em cima, foda-se, isso era fácil. O Grande Arquivo Universal da Conquista Amorosa está aí há milênios e só não o consulta quem não quer. Navegando na mesma frequência dos meus pensamentos, um senhor baixo, cego, cuja boca era um acidente 52

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medonho na geografia do rosto, se apresentou com a solução dos meus problemas: — A mulher que você procura, cinco ou seis metros de beleza incomum, os pelos cubistas, sei muito bem onde ela está. Nunca vendi porra nenhuma na vida, como já disse. Por isso mesmo é que sei que na minha profissão o que mais se vê é picaretagem, gente desqualificada que abusa dos bons sentimentos dos incautos para conseguir vantagens pessoais. A mim impressionou muito o fato do homem surgir do vento e descrever quase à perfeição a minha amada. Para saber se o sujeito falava mesmo a verdade, perguntei ainda: — O que ela guarda às costas? — Um par de asas translúcidas — falou ele prontamente. Bati com a mão aberta à testa, uma pancada tão forte que por instantes a cidade mergulhou em trevas. Ninguém no mundo a não ser eu (e Filhote, minha testemunha particular) poderia descrevê-la tão bem! Quando as nuvens escuras se afastaram dos meus olhos eu fiz a pergunta óbvia. Os olhos vazios do homem derramaram a resposta, límpida e sonora: — Na biblioteca. Vai encontrá-la na biblioteca. Claro. Por que eu não tinha pensado nisso antes? Na escadaria da biblioteca encontrei Filhote escondido atrás de uma hiena, a pata direita estendida sobre um chapéu que pedia esmolas. — Porque filosofia alimenta o espírito, mas não enche a O sol de todas as noites

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barriga de ninguém — justificou enquanto eu entrava no meu sonho, o coração já aos trancos por antecipação. Intuí o seu endereço logo de cara: terceiro corredor, esquerda, prateleira de mitologia. Entre o Minotauro e o Dragão, coberta de poeira, lá estava ela, a Quimera. A minha Quimera. Embora estivesse diante de tudo o que eu sempre quis, me senti decepcionado. Era ela, sim, mas faltava-lhe algo. Faltava-lhe tudo. Faltava-lhe a materialidade. As carnes, os peitos. Algo concreto no qual eu pudesse descansar o meu esqueleto. Faltava-lhe a bunda, caramba, que desde sempre tem sido o porto seguro para os machos da minha espécie e de outras mais. A mulher que eu tinha diante dos olhos era só uma figura impressa, de cores desbotadas, uma ilha cercada de palavras por todos os lados. Pra me ganhar o buraco é mais embaixo, ela dissera, e agora eu sabia o quanto. Aliás, dissera mesmo? Em algum momento cheguei de fato a vê-la? Linda, mulher mesmo ou pura alucinação? Seres mitológicos não são dignos de crédito, eu sempre soube. Mas é o abismo entre o saber e o acreditar que os torna tão reais. — O senhor não pode permanecer neste recinto. Virei lentamente o torso, mantendo as patas fincadas com firmeza no chão. — Por que não? — perguntei, um segundo antes de constatar que quem me falava de maneira tão autoritária era o sujeito de boca murcha. 54

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— Seres imaginários não são admitidos nesta biblioteca — ele respondeu, os olhinhos sem brilho exibindo uma satisfação nem um pouco secreta. — Faça então o que deve — eu disse, o meu rabo balançando com um descompromisso admirável. Saímos os dois de volta à rua, deixando para trás a minha Quimera e os sonhos tantos que me ocuparam e justificaram de maneira gloriosa a minha existência. — Mulheres — eu disse —, jamais serão inteiramente nossas. Sempre isso: aparecem, acendem a chama da loucura e, quando mais as queremos, desaparecem no ar feito borboletas. Ou se metem entre as páginas dum livro que nunca poderemos ler. — Umas ingratas — filosofou acertadamente Filhote, que se juntara a nós. Quem nos via indo de encontro ao cinzento véu da noite1 só conseguia perceber o mistério. Um homem cego de boca murcha, um cão filosófico e um centauro esvaziado de quimeras como eu dão mesmo o que pensar.

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Barroco é que gostava de construções assim. Ou não.

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Marianna



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udo acontece ao contrário em Marianna: os galos cantam ao cair da noite, os carros avançam de marcha-à-ré e sempre chove pra cima. Quando chove. Apesar disso, a vida em Marianna é considerada normal por todo mundo. Os relojoeiros atrasam os relógios com naturalidade e as cenouras crescem todas com suas raízes voltadas para o sol, que no verão surge sempre à meia-noite. Quando nascem, os velhos não dão trabalho algum: sabem todos que em breve chegarão à idade adulta, e que depois disso uma adolescência repleta de surpresas e delícias lhes está reservada. Este, aliás, é o maior orgulho da cidade: o fim da velhice só traz alegrias em Marianna. O único problema da cidade são os descontentes. Sim, há descontentes em Marianna, aos milhares. Eles reclamam de tudo, não concordam com nada e acham que a vida de verdade está lá fora, além dos muros que cercam a cidade. Por conta disso, a cada ano, muitos O sol de todas as noites

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partem. E n茫o se d茫o conta do 贸bvio: partir de Marianna, por causa da pr贸pria natureza da cidade, significa voltar a ela.

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Laura



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ão importa, eu vou. Escalando as costas da tarde, que se precipita feito uma flecha em direção ao depois. Porque assim tem sido desde sempre: logo cedo a questão me abraçou: você escolhe entre voltar, permanecer ou seguir. Não aprendi a voltar; permanecer é doloroso. Seguir, portanto. É o que tenho feito. Cada segundo traz nos bolsos o mistério. A aspereza do oxigênio. O suor em chamas. O nome dela é Laura. Foi num sonho. Laura era um susto. Não pude ver o seu rosto, o seu corpo. Névoa de sono. Mas sim, os sentidos todos apontando pra ela, a mulher. Quando acordei toda a cama era um oceano. Peixes transparentes no ar. Na boca um gosto amargo de estrelas. Laura era fiapo de sonho, impalpável, mas já existia em mim. Daí todos os meus dissabores. — Laura, foi quando eu suava labaredas. No sonho, ela estava no sonho. Viu ela por aí? Riam de mim. Esse o mal das pessoas: ninguém acredita nos sonhos alheios. O sol de todas as noites

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Minha única certeza era uma só. Nunca no meu passado, no meu presente de maneira confusa. Só depois, talvez. Laura só no futuro. Por isso escalo os calendários com a determinação de um condenado. Não me cabe permanecer aqui. O desespero é hoje, nunca ontem. O sofrimento é agora. Longa a estrada. Os gatos no caminho. Uma conversa esclarecedora. — Não sei como ela é — dizem os gatos —, mas tenho amigos que moram lá, no depois. Falam de Laura, Lauras. Depois é cheio de Lauras. Suspeito, portanto, de que estou no caminho certo. Um homem que acredita na palavra dos gatos. Talvez por escrever. As primeiras letras também foram difíceis. Difícil subir ao caderno, acomodar-se às dobras das sílabas, domar consoantes. Porque no princípio toda palavra é vertigem. Como as mulheres. Desconhecido azul. O rigor. Porque as palavras fogem à falta de rigor. Precisam de um braço para contê-las. De maneira que o meu aprendizado com as mulheres começou com as palavras. Mas eis que agora me vejo aqui sem nenhuma delas. Há tempos não escrevo uma mulher. Laura é sabedora da minha condição. Por isso veio no sonho. Vapormulher, a direção que faltava aos meus pés. Quanto mais avanço menos gatos eu vejo. Os poucos que ainda restam temem falar. Depois é um território 64

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nebuloso, eu sinto. Só os gatos mais corajosos chegam lá. Só os homens mais corajosos se dispõem a chegar lá. Depois. Laura não está. Laura é lá. Econômica a minha paisagem. Uma estrada, só, uma tempestade de girassóis do lado direito, do esquerdo os cardumes: peixes azuis amarelos pretos, tantos peixes — e não dão a mínima para os gatos. — Não como os peixes sonhados pelos homens — diz um gato amarelo. — Não tenho essa capacidade. Sonhos particulares. Cai por terra a minha teoria de que os sonhos pertenciam a todos. Não pertencem aos gatos, pelo menos. — Os nossos são de outra natureza — dizem os gatos verdes. — Basta um sonho de gato para o seu mundo sair do eixo. O meu mundo saiu do eixo desde que sonhei com Laura. Seria o meu, então, um sonho de gato? — Só um gato sonha sonhos de gato — dizem os gatos azuis. — Eis aí uma questão a ser considerada. Vejo Laura pela primeira vez, finalmente. Está ao alcance da minha mão. E ela não é mais névoa, nem sonho. — Mas você não pode me tocar — ela diz, o sorriso tranquilo no rosto. Estendo meu braço e o que encontro na extremidade é uma pata de gato. Meu braço é um gato. Eu sou o gato. — É por isso? — protesto. — Não sou um gato, não era até há pouco. Estou gato, e isso é diferente! Laura sorri. Todo o meu trabalho foi inútil. A minha O sol de todas as noites

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caminhada. Malditos gatos! E agora de nada me adiantam as palavras, são vento. — Tanto faz pra mim se você está gato ou elefante — ela diz, a voz serena. — Você nunca vai me alcançar. A tempestade de girassóis. Os cardumes. Laura é o caos. — Agora — diz Laura, os lábios sorrindo sílaba por sílaba. — Você é agora. Percebe? Nenhum gato mais. Somos apenas eu e ela. — Eu sou agora. — E eu, depois — ela diz. — Por mais longe que eu vá, serei sempre agora. — Depois é a minha maldição. O universo tem essas cápsulas que separam as coisas, as pessoas. Não posso alcançar o ontem. Laura é névoa mais uma vez. Sempre será. Mas não aprendi a voltar; permanecer é doloroso. Sigo, portanto.

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Fome



O

s caras estão lá fora há três semanas. Eles se revezam, mas isso dá no mesmo: tanto faz se são gordos hoje e magros amanhã. O que importa mesmo é a atitude — e a atitude, esta sim, não muda. — Pra dentro! — foi o que eles falaram quando tentamos sair. Não protestamos, não queríamos confusão. Voltamos pra casa e ligamos a TV. Ajudaria a passar o tempo. Uma, duas semanas, três. A TV já não tem mais graça — nada mais tem graça, aliás. Minha mulher, percebo agora, é insuportável. Também eu devo parecer insuportável a ela. Mas somos tolerantes, fomos educados pra isso. Tolerância, porém, é um exercício desgastante quando se sente fome. Agora, neste exato momento em que escrevo, sei que eles ainda estão lá fora, que continuarão lá fora, e sei também que toda a comida da casa já se acabou. Não demorará muito para essa nossa tolerância educada se transformar em simples e primitivo apetite. Eu conheço a fúria da minha mulher O sol de todas as noites

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quando faminta: ela é capaz de qualquer coisa — qualquer coisa mesmo! Por isso já escondi as facas. E trago comigo, em segredo, um velho canivete que pertenceu ao meu pai. O amor é lindo, dizem, mas nunca se sabe.

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Bach, suĂ­te n 3 o



A

vagabunda acabou de chegar: abre as cortinas, depois a janela, olha pra mim e sorri, veja só. Eu murmuro um insulto e ela começa a tortura de todas as noites: senta-se na beirinha da cama, de pernas abertas. Tira um sapato, depois outro. Eu vejo tudo isso suando, a vertigem querendo me fazer despencar os treze andares. O Cristo que tenho na sala há meses cerrou os olhos, mas ainda assim percebo um leve rubor em suas faces. E não é pra menos: depois dos sapatos, ela arranca as meias quase com fúria, jogaas para além do alcance dos meus olhos. A calcinha ela desce até a altura dos joelhos — e se levanta e fica a passear pelo quarto, provocadora: quer mesmo que eu veja, a cadela. Por um breve momento ela desaparece, deixando atrás de si apenas um rastro de sombra. Meu coração dispara, não caibo em mim. Mas logo em seguida ela retorna, nuinha, sorridente. Seus pêlos são claros, abundantes, os bicos dos peitos fitam meus olhos. E ela sorri, e fala, alto, para que o som atravesse a distância de abismo que nos separa: O sol de todas as noites

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— Vem! Eu olho para a rua, treze andares abaixo: outras pessoas estarão vendo o que eu vejo? — Vem! — ela repete. — Tá frio aqui. Dizem que o prédio no qual ela mora tem fama de familiar. Se os outros moradores soubessem... Se eles soubessem que a vaquinha se exibe com frequência para o morador do prédio em frente, o que diriam, o que fariam? Reuniriam o Santo Ofício do condomínio e a condenariam à fogueira, à vala comum do desprezo conferida às vagabundas? “Vai lá e acaba com isso!” — vocifera o Cristo de olhos agora bem abertos. “Vai lá e acaba com ela!” Olho pela janela: nua, ainda sorrindo, ela dança, leio em seus lábios que ela me chama. A mão direita do Cristo aponta na direção do meu faqueiro. É assim que deve ser, compreendo. Desço os treze andares pela escada, com a impaciência do dever a cumprir. A faca de cortar carne dorme silenciosa no bolso do meu casaco. Na rua, uma confusão de luzes e cores, sons e gritos, apitos de trânsito. Diante do prédio dela arrisco uma olhada: na rua, de baixo, nada se percebe, nem mesmo o leve ir e vir da cortina. “Vai lá e acaba com ela!” — é o que eu ouço. Quando chego finalmente ao seu andar, noto a porta entreaberta e um raio de luz traz aos meus ouvidos a Suíte n.o 3 de Bach: ela me aguarda, com certeza. — Enfim, o amante! — ela diz sorrindo, à porta, sem74

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pre sorrindo. — Por que demorou tanto? Certifico-me se a faca ainda descansa no mesmo lugar, e falo: — São as escadas, muitos andares. — Já inventaram os elevadores, sabia? O apartamento é nada mais que um quarto amplo: a cama ocupa um terço do espaço e o resto são um pequeno armário embutido, uma pia e um fogão minúsculos, pilhas e pilhas de discos e livros. Nenhuma mesa ou cadeiras, um banheirinho inenarrável e paredes tão nuas quanto ela. — Eu ou a casa? —? — Você veio aqui por mim ou veio apreciar a casa? “Vai lá e acaba com ela!” — Nem uma coisa, nem outra. — O quê, então? Sento-me na beira da cama, no mesmo lugar onde ela estivera sentada há pouco — e de lá vejo perfeitamente o meu apartamento, e um Cristo não mais crucificado, mas exultante. — Isto — digo eu, exibindo a faca que dormia em meu bolso. Ela se afasta de mim, cautelosa. Seu corpo perde um pouco de luz, seu rosto ganha contornos de máscara, seu sorriso se apaga como numa morte antecipada. — É assim que você gosta? — ela diz finalmente. — Então vem, me corta, eu juro que não grito. O sol de todas as noites

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Com o fim da Suíte n.o 3 de Bach deu-se também por encerrada a minha missão. O vermelho predomina agora no silêncio que nenhum sorriso mais abriga. Estendidos na cama, lado a lado, um corpo vazio e a faca. E no meu apartamento, nenhum Cristo: apenas a figura nua do diabo dançando e sorrindo.

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AlĂŠm do espelho



00:02:58,892 00:03:03,226 Uma lenda pode estar além do tempo e lugar Jean Cocteau, Orphée 1950

RUA AUGUSTA

T

alvez a noite já tivesse chegado, mas ele não tinha certeza. Estava na padaria há pelo menos oito cervejas, ou quatro conhaques, vai saber. Difícil determinar o tempo nessas condições. A única coisa que sabia de fato, que sentia como um prego nas costas, era sobre a solidão. A sua solidão. Tão sólida quanto o balcão repleto de garrafas. Não foi sempre assim. Houve tempos, pensava, em que a solidão era apenas uma imagem distante pendurada na parede, um sonho sonhado por outro. Havia a muO sol de todas as noites

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lher, a pequena e confortadora felicidade dos abraços e dos sorrisos. Mas agora não, a história era outra, uma história apenas retrospectiva, sem registro do presente e de futuro improvável. Uma história vazia, como as garrafas. — Se cachaça fosse remédio, Zé, vendia na farmácia! A voz vinda de lugar algum. De quem a voz? Ele não sabia. Mas estava firmemente ancorado no balcão, e era isso o que importava. A padaria, ela sim um barco bêbado, rodopiando ao sabor das ondas alcoólicas. Quando enfim deixou seu porto seguro, a Rua Augusta parecia um deserto negro, pontuado aqui e ali por postes de luz esquálida. Postes tortos, distorcidos, flutuantes às vezes. Mas concretos, ele confirmou, plantados com firmeza no chão. Estranhas árvores cinzentas. Agora sim sabia da noite. Madrugada — e tinha certeza, apesar dos fartos conhaques. O cheiro inconfundível da cidade adormecida, os sons cegos da metrópole. — Aonde meus pés me levarão? Houve um tempo de casa e endereço, cama e banho quente. Seu lar agora era o mundo. Ainda tinha casa, sim, endereço também. Mas não queria voltar. Pra quê? As lembranças são flechas que envenenam a alma, e em casa elas doem mais. A Rua Augusta, portanto, seu abrigo mais seguro. O asfalto antigo, as calçadas esburacadas. A liberdade dos pés.

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A DAMA DE NEGRO — Vai mais uma? Ele abriu os olhos e se percebeu voltando de longe, muito longe. — Manda. A vida secreta da padaria: as moscas zunindo, as baratas antiquíssimas sonhando pães, um cachorro velho que observa um frango assado desde sempre. A cerveja vem quente, um gosto de isopor, os postes da Rua Augusta. Árvores cinzentas. Um sonho? — Desde quando estou aqui? — ele pergunta. O anão da caixa registradora sobe numa cadeira para responder à altura: — Faz setenta cervejas, acho, que você encostou aí nesse balcão. — Setenta? — É. Um tempo líquido e gelado. — Os conhaques esquentam um pouco. — É isso aí. Mas não são suficientes, você sabe. Foi no quase calor dos conhaques que ele percebeu a carruagem entrando lentamente no seu campo de visão. Quatro cavalos negros puxando a carruagem igualmente negra, um ônibus atrás, outros carros na frente, o trânsito insuportável de todas as noites, sem sustos ou tumultos. — Olha só isso! — admira-se o anão. Da carruagem sem condutor ela desce, também de O sol de todas as noites

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preto, seu corpo numa leveza incomum. Os olhos objetivos grudados nele, cegos para o entorno. Um vento gelado atinge o balcão em silêncio e derruba o anão da cadeira. — Vamos, Rien — ela ordena. — Não temos tempo a perder. — Meu nome é Zé — ele retruca. — Vamos – ela repete. — Você tem que me devolver Eurídice. — Vamos! A luz amarelada dos postes caindo sobre o interior da carruagem. Os dois em silêncio. O trotar ritmado dos cavalos. A Rua Augusta subitamente virando névoa. — Aonde vamos? — As palavras — ela fala —, as palavras inúteis. Vamos para o silêncio. O silêncio, ele se lembrou. Suas palavras também silenciosas. Um poeta agora mudo. Poeta? — Minha poesia desapareceu junto com Eurídice. Um deserto aqui por dentro. Ela sorriu. Um poeta, é claro que sim. Tinha o poder de calar um poeta. Não pôde se conter e sorriu mais e abertamente. Poderosa. Foi quando seus olhos encontraram os dele. Vazios. Uma tristeza que ela mesma desconhecia. Sentiu um calor já conhecido no peito, pela primeira vez em séculos. — Feche os olhos, Rien — ela ordenou. — Onde estamos indo? — ele perguntou novamente. 82

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— Pra minha casa — ela respondeu. — Feche os olhos. Ele não obedeceu. Pela janela da carruagem ele se percebeu entrando pelas largas portas de uma casa sem paredes. — Que inferno é este lugar? — Aqui não é o inferno. Ainda não se deu conta do que está acontecendo, Rien? — Rien, Rien... Esse não é o meu nome! — Pra mim, agora, você é Rien. Aliás, sou Rien também. Muito prazer, se é que se pode falar assim em tais circunstâncias. Ele olhou à sua volta. Nada. Os olhos dela emitiam um brilho tênue na escuridão. — Rien — ele falou finalmente. — Por que eu, você também Rien? — Por nada — ela respondeu com naturalidade. — Porque Rien é nada. Mais uma vez ela fitou os seus olhos. Toda uma história contida ali. — Eurídice. Você a amava muito, não é? Ele sorriu. Seus lábios se moveram, mas ele não conseguiu falar. Ao invés disso se ajoelhou, e de seus olhos as lágrimas brotaram com força. À sua frente, no chão poeirento, uma poça começou a se formar. — Que espetáculo deprimente, Rien! — ela falou. Estava, no entanto, comovida — mesmo que não quisesse, não pudesse admitir. Uma eternidade se passou até que a última lágrima caO sol de todas as noites

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ísse no chão. Quando isso aconteceu, do brilho líquido da poça se ergueu um espelho alto e largo, robusto, um espelho antigo. — Agora! — ela disse. — Vamos, Rien. Ela pegou a sua mão e entraram no espelho. Ele se sentiu como se estivesse mergulhando no vazio. INFERNO — Acorda aí, bebum! — gritou o anão. — Tá pensando que aqui é hotel? — Cadê ela? E o espelho? — A breja táqui. Mas que espelho é esse que você tá falando? Rien, ele se lembrou. Atravessaram o espelho. Mas pra onde? As paredes da padaria se dissolvendo. Da fumaça escura e quente surgiu ela, Rien, as mãos estendidas em sua direção. — Vem — ela disse. — Meu amor. Seus pés se moveram contra a sua vontade. O abraço súbito, o beijo ácido, repleto de urgências. — Por quê? — ele perguntou enfim. — Porque. — Eurídice, ela está aqui? Os olhos dela faiscaram. — Não sou capaz de fazer você esquecer, não é? — Ninguém é. 84

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Três homens surgiram ao fim de um longo corredor. Aproximaram-se depressa. — Vejo que você o trouxe — falou o mais jovem dos homens. — Eu não falho jamais — ela respondeu, serena. — Não é mesmo? — Leve-o para a sala de sentença — falou outro homem, os cabelos e o cavanhaque vermelhos. O terceiro homem apenas sorriu, virou as costas e voltou para o corredor, deixando para trás um rastro de fumaça escura. Os demais o seguiram, em silêncio. — Quem são esses aí? — ele perguntou. — Gente sem importância. — Sala de sentença? Vão me condenar, é? — Você já está condenado. Mas não agora. Os olhos dele alcançaram os dela, passearam por seu corpo. Uma bela mulher, enfim. Por que não? E ela, afinal, sabia de Eurídice. — Eu tenho uma proposta — ele disse. — Você me deixa ver Eurídice, uma única, uma última vez. Ela sorriu. — A troco de quê? Ele imaginou o futuro: uma vez com Eurídice, fugiria com ela para longe, para além do espelho. Rien — ou fosse ela quem fosse – não poderia detê-lo. Ninguém poderia. — Minha alma — ele respondeu. — A mim não interessam as almas de ninguém — ela O sol de todas as noites

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falou, um brilho vermelho nos olhos. — A mim só interessam os corpos. O seu corpo, Rien. — Pois terá o seu corpo e tudo o mais que quiser. Mas quero ver Eurídice agora. Ela se sentou no vazio, acendeu um cigarro e ficou em silêncio por um longo tempo, ao fim do qual falou: — Trarei Eurídice de volta e vou colocá-la nos seus braços. Mas imponho uma condição. Os olhos dele perguntaram. — Você não poderá, nem por um momento, olhar para ela. Daqui em diante – e para sempre —, você só terá olhos para mim. Ele concordou sem pensar. — E aqueles homens? — Eu cuido deles — falou ela. — Não podem fazer absolutamente nada sem mim. O calor se tornava cada vez mais insuportável, mas foi pensando em Eurídice que ele adormeceu, um sono como há muito não experimentava, apesar da garganta seca. A VOLTA O som dos automóveis, ônibus, murmúrio de vozes, a voz que finalmente o acordou: — Essa é a mais gelada que temos. Ele percebeu que o anão ria. Do quê? — Eu estou condenado, sabia? — falou. 86

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— Todos nós estamos — respondeu o anão. — E daí? — E daí que eu enganei Rien. Vou fugir com Eurídice. O anão gargalhou. Dois rinocerontes se debruçaram no balcão e pediram café com leite. Lançaram um olhar reprovador para o volume de garrafas de cerveja. — A idiota me fez prometer que só terei olhos pra ela — ele continuou. — Pode um negócio desses? — Está tentando me enganar, Rien? Toda a padaria, também o anão, tudo isso apenas uma impressão dependurada na memória. Só os rinocerontes, reais de fato, os rinocerontes gargalharam alto. A luz dos olhos dela iluminando o corredor deserto. — Eu? Eu só tenho olhos pra você, minha querida — ele respondeu. Os rinocerontes saltitaram, alegres, em direção ao sol. Um calor dos diabos, mas ela não demonstrava incômodo. Só indignação: — Não sou idiota, Rien, sei que você está tramando algo. — Jamais te enganaria, meu amor. Ela, é claro, percebeu a mentira, mas ao mesmo tempo avaliou a situação. Correria, sim, o risco. Ele representava um pingo de luz na sua eterna miséria. — Você não pode ficar aqui — ela disse enfim. — Precisa voltar. — E Eurídice? Você me prometeu. — Terá sua amada, meu amor. Nas minhas condições. Mas não aqui, é perigoso. O sol de todas as noites

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Ele sorriu. Em breve estariam outra vez juntos, ele e Eurídice. E longe daquele inferno, bem longe. Num piscar de olhos voltou pelo espelho, seu corpo jogado com força contra um céu de estrelas negras. EURÍDICE A névoa espessa foi se dissipando e dela surgiu primeiro o brilho ensebado do balcão. Depois, uma garrafa, duas, cem garrafas de cerveja, outros tantos copos de conhaque, a maioria vazios. — Limpa isso aqui, anão! — ele ordenou. — Não quero que Eurídice veja que estou bebendo. — Ela não vai ver. Mas o difícil vai ser disfarçar o bafo. E quem é essa aí? Ele sorriu. — Minha mulher. Não falei que ela ia voltar? — Falou? — A minha aparência, como estou? — Parece que foi atropelado por um trem. Mas, se ela não for muito exigente, até que dá pro gasto. Quer mais uma cerveja? — Champanhe! — Se liga, Zé! Pensa que tá onde? Aqui é um buteco, quase uma padaria. No máximo, com muita sorte, te consigo um vinho branco. Vagabundo e sem gelo. — Aqueles rinocerontes de ontem tomavam champanhe. Por que pra mim não tem? 88

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— Absurdo, Zé. Os rinocerontes tomaram café com leite, porra. Acho bom você parar com os conhaques. Tão te cozinhando os miolos. Um rato cruzou o chão da padaria em direção à rua. A luz amarelada do poste tremeu, apagou, tornou a acender. O vento frio atingiu o balcão um segundo antes da sua entrada. Eurídice. O anão se calou e desapareceu. Por artes de sabe-se lá qual deus ou demônio as luzes da padaria diminuíram. Ele bem que tentou, mas não conseguiu enxergar o rosto da amada, que falou: — Agora feche os olhos. Esse é o acordo. O futuro imaginado anteriormente em ruínas: não conseguiria fugir com Eurídice, levá-la para longe. Nunca. Melhor atender, fechar os olhos para tê-la entre os braços, pelo menos. Assim então ele avançou, as mãos tateando no escuro. Sentiu um frio intenso quando seus dedos tocaram o corpo de Eurídice. Mas era ela, sim, o mesmo perfume de antes, a maciez dos cabelos. — Tanto tempo... ele disse. Eurídice permaneceu em silêncio. Seus lábios procurando os dele, o abraço mais forte. Ele se deixava conduzir feito um menino, calado, respondendo aos beijos com obediência e entrega. Horas mais tarde, ou dias, ele despertou, feliz, seu corpo nu entre lençóis transparentes. Aí então resolveu abrir os olhos. Ao seu lado não estava Eurídice. O sol de todas as noites

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— Maldita! — gritou. — Não era Eurídice, nunca foi! Rien sentou-se na cama, o sorriso largo. A fumaça do cigarro desenhando caracóis azuis no ar. — Esqueceu o trato, Rien? Enquanto permanecesse de olhos fechados, Eurídice seria sua para sempre. Mas você os abriu. Olhos, só para mim, lembra? Ele saiu correndo para dentro da noite, as pernas desgovernadas tropeçando no próprio grito. A luz amarelada dos postes tremia, apagava, tornava a acender. RUA AUGUSTA — Toma aqui esta cerveja — falou o anão. — É por conta da casa. Rien acendeu outro cigarro, encheu lentamente o copo. Cumprimentou os rinocerontes que bebiam champanhe com um meneio de cabeça e foi se sentar ao lado de um homem de cabelos e cavanhaque vermelhos. Afastou a fumaça escura com as mãos e sorriu. — Pensei que você fosse falhar desta vez — falou o homem. — A morte não falha nunca, senhor — ela respondeu. — Falha, sim — ele disse, a mão direita acariciando uma bengala antiga. — Não conseguiu conquistar o seu amor. — Não se pode ter tudo. Mas o importante é que ele agora está morto. — Tem certeza? Agora mesmo o vi correndo pela rua, aos gritos. 90

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— Está morto, sim. Só que não sabe disso ainda. Chamas saltaram dos cabelos do homem, que deu o braço esquerdo para Rien segurar. Atravessaram a padaria sorrindo, em direção à carruagem negra que os aguardava lá fora. Quando partiram, o último poste da Rua Augusta se apagou definitivamente, mergulhando a cidade numa sombra densa e sem fim.

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A relatividade das lรกgrimas



E

la já desperta com o rosto banhado em lágrimas. Desolada, a família lamenta: — Ó, minha filha — diz a mãe. — Ó, minha filha — diz o pai. — Ó, minha irmã — dizem os irmãos. Os tios, avós, et cetera também se desesperam com o desespero da menina, também se lamentam: — Ó, minha menina — dizem. A menina, no entanto, pouco se ocupa dos lamentos da família. Tem seus próprios interesses — e por isso chora. Antes de mais nada, agrada-lhe profundamente o sabor das lágrimas, o tempero balanceado do sal que lhe escorre pelo rosto. Ela é, sem que ninguém suspeite, uma artista, uma alminha dotada de extremo senso poético. Que coisa mais linda amanhecer e anoitecer aos prantos!, pensa ela, que alegria inigualável é chorar! A sua família, contudo, pouco vai além das aparências: quem chora sofre, pensam, categóricos, os pais irmãos et cetera. À noite, no escondido dos seus lençóis, choram de verdade, preocupados, enquanto a menina descansa tranquilamente para mais um dia de lágrimas. O sol de todas as noites

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A mulher perfeita



—U

m par de coxas bem robustas — pede o freguês ao açougueiro. — Pois não, senhor. Algo mais? — As pernas, como estão as pernas? — Frescas e depiladas. Foram abatidas ainda esta manhã. — Bom, quero duas também. E pés, o senhor tem pés? — Os meus são 44! — Não me referi aos seus, imbecil. Quero pés delicados, piquininhos, número 32. — Ah, claro, mas 32 não tem. — Quiéqui tem? — 30, 36, 37, 42. — 42? — É. — Como vieram parar aqui? — Não sei, senhor. A ética não me permite questionar a procedência dos meus produtos. Só posso lhe garantir que são de primeira. Vai 42? — Me dá o 30 mesmo. Estão mais de acordo com os meus propósitos. O sol de todas as noites

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— Aqui está: um par de 30. Nádegas? — Tem aquelas parecidas com um pêssego? — Tem sim. Com pelinhos macios e tudo. — Então eu quero, mas quero a peça completa. — Nádegas e vagina? — Bunda e buça! — Aí já é mais caro. — Tem? — Tem. — Então me dá, porra! Não estou discutindo preço. — O senhor quer a vagina apertadinha ou largona? — Tem virgem? — Tá em falta. Mas tenho umas apertadinhas que são quase. — Uma dessas serve. — Barriguinha? Tenho umas, ó, daqui... — Quero uma sem marcas, umbiguinho redondinho piquininho. — Tenho uma que nasceu pro senhor. Que tal? — Ótima, ótima, levo essa. E peitos? O que é que tem aí? — Tem de tudo: grandes, pequenos, médios, duros, moles, com leite, siliconados... Só não trabalho com os despencados, porque eles encalham e espantam a freguesia. O senhor pode escolher. — Ah... bão, quero médios, duros — e com leite! — Com leite, senhor? Não acha que já passou da idade? — Isso não é da sua conta! 100

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— Perdão, perdão. Não queria ofendê-lo. Como diz o ditado: o freguês tem sempre et cetera, não é mesmo? Vai querer braços? — Não quero ninguém me segurando. Sou um homem livre. — Então só falta a cabeça, não é? — Deus me livre! Quer estragar a minha mulher perfeita com uma cabeça pensante e falante? — Tenho aqui uma cabeça muda e bem burrinha. Que tal? — Ela é cega também? — Tem uns belos olhos verdes, mas a gente pode dar um jeito. — A boca, pelo menos, é bonita? — Ouvi dizer que a língua dela era uma sensação. — Eu quero! — Aqui está. Mais alguma coisa? — Não. É o suficiente para a semana. Quanto é? — 500 paus. — 500? — Material de primeira, senhor. Nada igual no mercado. — Entrega em casa? — Como o senhor preferir. Já quer ela montada? — Prontinha pra comer. — Assim será. — Gostei daqui. Vou virar freguês. — Será um prazer, senhor. — O prazer será todo meu... O sol de todas as noites

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A m達o



A

mesma coisa. Seis e meia, levantar, o café, o cigarro, o banho, a gravata. Sete horas, o ônibus, o sono. Oito horas, o escritório, a rotina. O Sono. Eu digito das oito às seis, vinte minutos para o almoço. As vinte pessoas à minha volta também. O dia inteiro, todo dia. Quilômetros de papel, cartas, relatórios. A mesma coisa. A mesma coisa, até o dia em que uma digitadora quebrou a mão direita num acidente doméstico. Não ficasse boa em dois dias estaria na rua. Pobre menina. Pobre de mim: no mesmo dia recebi a proposta: — Que tal ceder sua mão? — Não — eu respondi, e continuei a digitar. — Mas você é tão rápido! Não vai fazer diferença. — Já disse que não. À noite, em casa. O macarrão instantâneo, as salsichas, a televisão. A mesma coisa. Meia-noite, o sono. Seis e meia. Oito. Sono. O sol de todas as noites

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— Pelamordedeus! Se amanhã eu não estiver com a mão boa eles me mandam embora — ela disse. — E eu com isso? — Seja humano, porra! — Isso não é ser humano, é ser idiota. — Vai se foder! Quilômetros de cartas, papel, relatórios. A mesma coisa. À noite, em casa. O macarrão instantâneo, as salsichas, a televisão. A campainha da porta. — Já falei que não — eu disse. — Mas olha: minha mão vai cair e amanhã é o último dia. — Problema seu. — Gosta do meu corpo? — Não. — Eu faço o que você quiser. Oito horas. O escritório, a rotina. O sono. — Estou pronta. — Pra quê? — Pra quê? Você prometeu ontem! — Ontem. Hoje não prometi nada. — Filho da puta! O chefe do escritório. Um machado na mão direita. — Promessa é divida — ele falou. — Não prometi nada, ela deu porque quis. — Quis nada! — ela falou. — Estica a mão — o chefe mandou. Eu estiquei. À noite, em casa, a mesma coisa. 106

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A geografia da paix達o



A

tortura dos beijos-mordida. As carícias que me queimavam a pele. Os sopapos de amor. Porque ela só entendia o amor assim: quando sangrasse, quando doesse. O meu corpo era um mapa: cada cicatriz exibia em vermelho a vasta geografia da paixão. Nada de bombons ou chocolates: apenas chicotes e lâminas, instrumentos de tortura. A minha dor era o seu prazer. — Você não é capaz de me ferir — ela me desafiou um dia. — Não tem culhões pra isso. Foi assim que lhe enfiei um punhal de orquídeas no peito e encerrei o assunto.

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Os presentes de Alice



A

lice. Mulherão essa alice. E vivia querendo coisas: — Compra um apartamento pra mim, bem? Eu comprava. Porque ela, sorrindo, isso não tinha preço. Alice era dada a excentricidades. Poucas, mas ainda assim: — Compra a lua pra mim, bem? Eu comprava. E colocava um punhado de estrelas no papel de presente. Vez ou outra ela emburrava. Não de ficar burra, que ela nunca foi assim, mas emburrar de entristecer, vocês me entendem. Eu fazia caretas, alugava elefantes, tudo pra ela melhorar. Mas ela só melhorava daquele jeito: — Compra o charme da Gisele Bündchen pra mim? Eu comprava. Um exagero, concordo, Alice era charmosa o suficiente, mas fazer o quê? *** Alice também era uma mulher de muito bom gosto. Sabia apreciar as coisas boas da vida, as belas coisas: — Compra um Picasso, um Van Gogh e um Warhol pra mim, bem? O sol de todas as noites

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Eclética, como vocês puderam perceber. E eu, é claro, comprava. *** Um dia Alice foi ao cinema e viu uma sereia no filme. Voltou da sessão radiante. E pediu: — Eu quero uma sereia, bem! Parti no dia seguinte numa expedição em busca da tal sereia. Fui encontrá-la 30 dias depois no mar gelado da Finlândia. Quando entreguei o presente a Alice, ela desatou a chorar. Eu perguntei: — Não é a sereia que você quer? — É a sereia que eu queria — ela disse. — Mas agora não quero mais. — O que é que você quer agora? Alice enxugou as lágrimas e um sorriso brotou no seu rostinho lindo: — Agora eu quero uma caravela, bem! Uma caravelinha! Uma caravelinha. Como as caravelas deixaram de ser fabricadas há muito tempo, mandei fazer. Ficou uma beleza. Mas Alice só desembrulhou o presente. Havia um brilho estranho em seus olhos. — E agora, o que é que você quer? — eu perguntei. — Pede. — Eu não quero nada, bem. Não quero nada. *** Mas a quietude durou pouco. Logo Alice estava pedindo de novo. E eu, pronto a atender. Quer dizer, mais ou menos. 116

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— Bem, diz que me ama! Esquisitice. Bem típico de uma mulher como ela. Não que o seu pedido fosse caro demais, longe disso. Não iria me custar um tostão. Mas eu senti que precisava manter a integridade: — Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano! — Mitômano? — É. Ela me olhou com aquele olhar inteligente que só ela tem. E pediu: — Me compra um dicionário, bem? *** Depois disso Alice passou quatro anos deprimida, largadona, engordando no sofá francês do século XIX. Sem pedir nada. Até que, numa bela manhã de carnaval, ela se levantou, emagreceu e pediu: — Bem, eu quero amor! Eu caminhei em direção a ela, dei- lhe um demorado beijo na testa e saí para a rua. Não voltei nunca mais. Seria muito doloroso explicar que tem coisas que o dinheiro não compra.

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Sem discuss達o



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quilos, era o peso dela quando a conheci. Não pensei duas vezes e a levei pra casa. Três meses depois ela já pesava quase 100. Fiquei satisfeito por ter podido ajudá-la a superar a fome. Desde então ela desenvolveu um apetite daqueles. Por isso não me impressionei quando ela almoçou os móveis da casa. Numa tarde de março, enfim, ela começou a comer as paredes. — Que tal? — eu perguntei. — Falta molho — ela respondeu. Hoje pela manhã, depois de lanchar o último tijolo da nossa casa, ela me lançou um olhar cheio de desejo. Sei o que ela quer. Falar que estou magro, isso & aquilo, não vai adiantar. Ao conhecê-la, compreendi imediatamente que com uma mulher faminta não se discute.

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Iguais



V

ocê descreve a mulher para o seu melhor amigo, e a sua descrição já não é mais aquela de quem apenas viu, mas outra, de quem se apaixonou: olhos dum verde oceânico, cabelos dourados de sol, corpo escultura divina. O seu amigo comenta a descrição, acrescenta e subtrai, e grava na memória não a imagem de uma mulher, mas uma metáfora da natureza. O seu poder de descrição, porém, não é suficiente para expressar nem a mulher nem a metáfora, de maneira que, ao conversar com um parente sobre o assunto, nele imprime a idéia de que o objeto do qual se fala não passa de uma caixa de linhas disformes, com fiapos de tecido flutuando ao vento e pontilhada de orifícios aqui e ali. Este parente, por fim, que por vício ou virtude costuma torcer até mesmo os conceitos mais elementares, numa noite de calor e cerveja se encontra com você, e num tom de confidência decide se exercitar: à caixa quase abstrata acrescenta contornos femininos, olhos dum verde oceânico e cabelos dourados de sol, corpo escultura divina. A tudo isso você ouve com atenção e respeito, maravilhado pelo fato de haver no mundo duas mulheres tão iguais. O sol de todas as noites

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Aquilo que sustenta o amor



E

la tem três olhos, mas isso não me incomoda nem um pouco. Pelo contrário: são três olhos belíssimos, um deles um pouco torto, é verdade, mas ainda assim. Tem também uma cauda enorme, na qual tropeço de vez em sempre, mas isso pouco me importa. Às vezes, quando furiosa por coisas mínimas ou máximas, dependendo da posição dos astros ou do resultado das loterias, ela costuma me chicotear a bunda com a ponta espinhuda da caudalheira — mas eu até que curto isso. E dizer aos outros que ela tem o maior rabo do mundo me enche de orgulho. Essa mulher aí, com seus 300 quilos e escamas de navalha, pra mim, não tem defeito algum. Os maldosos de plantão, que estão por aí feito piranhas alucinadas, costumam dizer que o seu hálito venenoso e suas quatro mãos frias configuram, sim, graves defeitos. Eu não ligo. Sei do seu coração direito, aquele que fica logo abaixo dos outros dois. Conheço essa mulher desde que a arranquei das páginas de um livro antigo. Lembro como se fosse hoje: O sol de todas as noites

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ela tava lá, imóvel e triste figura, esperando por mim. Quando abri o livro (era uma feira, acho, ou Bienal, ou ainda no buteco do Zé, que servia cachaça com torresmo & clássicos literários no balcão), o destino já estava traçado: bati os olhos nela, ela sorriu pra mim com o primeiro dos seus maxilares. Amor à primeira vista, caralho, é claro que sim. Depois desse encontro digno de filme, nos transformamos em alvo de preconceito de toda espécie: os meus não a aceitaram (não aceitam até hoje), os dela não me aceitaram (e não mudaram de opinião). Tentamos, é claro, convencê-los de qualquer forma, argumentar religiosamente, oferecemos um dinheirinho por fora, et cetera, mas não teve jeito. Acabamos mandando todo mundo sifudê. Tínhamos um ao outro e a promessa de um amor eterno enquanto duro pela frente. Hoje, portanto, estamos aí pro que der e vier. Às vezes ela pisa em mim com uma de suas 12 patas, mas eu, cristão, ofereço a outra face (ou a outra costela, dependendo da fratura). É o amor, gente, o amor. A única coisa que me incomoda um pouco nessa história natural e edificante é a sensação de que ela não me leva muito a sério. Nunca falou nada a respeito, é claro, mas tenho cá as minhas dúvidas. É como se eu desconfiasse de chifres. Uma grande bobagem — afinal, quem tem chifres é ela, oito, de várias formas e tamanhos.

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Mesmo assim, eu tenho cá as minhas convicções. Ela pode até não acreditar em mim, achar que sou imaginário, mas eu acredito nela do jeito que ela é ou possa vir a ser. Isso é o suficiente, é o que sustenta e suporta o nosso amor.

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Z



1 AGORA ESTOU NO CENTRO DO QUARTO, exatamente. Não há móveis nem tampouco uma cama: durmo no chão, coberto pela noite. Tenho alguns livros mas já não os leio. Desisti das palavras alheias; as palavras têm um sabor acre. Poupei apenas a letra Z. Assim eu me chamo. As paredes do meu quarto são o meu mundo. Mudo. Já não falo há séculos e a minha língua é um objeto verde. Não posso afirmar que as minhas pernas existem. Sequer posso afirmar que eu existo. Apenas meus dedos, às vezes, desenham um nome no ar. Eu sorrio por isso, e por isso me vêm as recordações. A memória é um instrumento da dor. E as recordações são flechas que atravessam a alma. Tenho muitas. 2 No meio da rua. Os rostos à minha volta eram todos e um só. Devoravam-se. A pergunta, inevitável: algum nome? A resposta, inevitável: multidão. O sol de todas as noites

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Ana me surgiu do meio desse hospício. Seu rosto descolou-se dos outros apenas para que eu o visse. Sua boca derramou um sorriso e depois naufragou nas ondas daquele oceano mudo e célere. Guardei seus traços no coração. Marianna, Virgínia, Bruna, Thaís. Conheci todas elas. Nenhuma delas me conheceu. Bebi o segredo de todas elas. Nenhuma saciou minha sede. Ana. Por que Ana? Por que seu rosto surgiu de uma massa informe onde os rostos não existem, não são admitidos? Arrastei essas perguntas pelas ruas onde a procurei. Inútil esforço: fui encontrá-la num lugar tão improvável quanto o primeiro: em meu quarto. — Curioso? — perguntou ela. Trazia um livro, tão delicado quanto suas mãos. Ofereci-lhe um chá. Ela recusou. Sentei-me então para ouvir. Ver. Para acreditar. — Isto é pra você — disse ela colocando o livro num canto. — Mas não deve lê-lo nem tocá-lo. É a condição que imponho pra ser sua. Concordei com a cabeça. Ana sorriu: era minha. — Eu tenho todos os vícios — continuou ela. — O pior deles é crer nos homens reais. — Meu nome é Z — falei. — Eu não sou real. Ela riu. — Eu era o único em casa a comer carne na sexta-feira santa – continuei. — Nos outros dias do ano isso era 136

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insuportável para mim. Mas nesse dia era importante: mamãe insistia em dizer que era o corpo de Cristo. Eu adorava cometer esses pequenos crimes em família. — Eu — falou Ana —, eu costumo cortar os meus pulsos quando estou feliz. Preciso de um homem para beber o meu sangue. Foi a minha vez de rir. — Já li isso num livro — falei. Ana agarrou minha mão. Trazia cicatrizes vermelhas no braço. Fomos então para a rua. Um bar. Ela acariciava minhas pernas sob a mesa. — Nasci num pequeno quarto e sou antiga — falou ela. — Meu pai me criou e depois entregou meu corpo ao mundo. Conheci muito cedo os homens e os conflitos. Viajei pela terra, vendi minhas pernas e minha alma nos portos onde permaneci algum tempo. Comi poeira. Matei. Morri mil vezes. Apaixonei-me por uma menina e por um padre. Tive dois cães. Li e amei ardorosamente alguns poetas. Fiz de mim o mundo. E chorei e sorri. A figura do meu pai, porém, sempre me pareceu próxima demais. Ela me persegue, é o castigo quando ouso ser feliz. Fui rica algumas vezes, amante de presidentes e esposa de imperadores. No entanto, neles eu encontrava sempre algum traço do meu pai: queriam me usar e exibir, guardar meu corpo num armário para que ele permanecesse jovem e pronto para outra festa. Não eram homens de verdade. Conhaque? O sol de todas as noites

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Sua mão estava dentro da minha calça. O garçom nos olhava como se nada visse. — Não — respondi. — Eu gostava do álcool porque ele me fazia esquecer. Passou o tempo: esqueci-me dele. Frase inútil. Ana disfarçou com um sorriso mil anos ensaiado. — Ana. Por que Ana? — Como sabe? — Sorte. Acaso, talvez. Aprendi que aqui tudo é possível. Mas agora conheço sua história. Gostaria de conhecer o seu avesso. O copo encobriu rapidamente os seus lábios. A luz brilhou no cristal. — Você já conhece. O avesso de Ana é anA. Sorrimos. As carícias sob a mesa despertaram o rubor em algumas senhoras. O bar então tremeu: um escritor conhecido entrou. Cumprimentou a todos com ironia disfarçada e ocupou uma mesa ao nosso lado. — Meu pai era dessa espécie — falou Ana. — O meu também — confessei. Nossos olhares se cruzaram no ar. Ana e eu. Como nos conhecíamos tanto e há tão pouco tempo? Seríamos verdadeiros ou falsos? Eternos? Nomes escritos num caderno e apagados por uma lágrima? — E por que o seu nome é Z? — perguntou ela. — Economiza letras. E desgostos. Uma letra só não tem sentido.

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Em sua mesa, o escritor sorriu. — Ou tem muitos — falou Ana. Deixei algumas moedas sobre a mesa e fomos para a rua. O escritor nos lançou um olhar e uma despedida silenciosa. Algumas senhoras suspiraram, aliviadas. O garçom instalou outro casal em nossa mesa. Contornamos uma praça e em seguida subimos ao meu quarto. Ana sentou-se à janela e a lua se acendeu, amarela e redonda. Eu estava feliz: uma mulher, Ana, e a lua. — Você existe? — perguntei, rompendo o silêncio. Ana sorriu, trepidante. Seus seios balançaram com fúria. — Por que destruir o que pode ser belo com palavras tão estúpidas? — falou, irritada. Palavras. Abracei-a e bebi os seus lábios. Gosto de papel. Calor. Na cama, entre os lençóis, a lua: um convite. Na madrugada, o livro saltou-me dos sonhos. Por que eu não poderia lê-lo nem tocá-lo? Encontrei-o esquecido no chão. Ana ainda dormia. Lembrei-me das suas palavras, mas não pude resistir à minha curiosidade. Procurei então a última página e li: Ana já sabia, já esperava. Conhecia os homens. Mesmo assim, sentiu-se ferida pela traição de Z e partiu. Nenhuma lágrima, só dor. Uma dor antiga. A multidão então devorou seu rosto. Mais uma vez.

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3 Estou no centro do quarto, exatamente. Sozinho. Um livro morto em minhas mãos. As paredes, que são o meu mundo, me ignoram. O mundo dos homens reais me ignora. Porque eu só existo nestas páginas. Porque eu sou Z. Porque eu sou Ana. Porque eu sou nada.

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Claudio Parreira

é escritor

e jornalista. Foi colaborador da revista Bundas,

do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos Online, Agência Carta

Maior, entre outras publicações, como outros sites e blogs. Participou das coletâneas Contos de Algibeira,

Fiat Voluntas Tua, Dimensões.Br, Portal 2001 e também na Fantástica Literatura Queer e lançou em 2012 Gabriel, seu primeiro romance Bloga em: www.blogppc.blogger.com.br Tuíta verozmente em: @ClaudioParreira Facebook: http://on.fb.me/cparreira


O sol de todas as noites Copyright © 2012 por Claudio Parreira Este livro foi licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Brasil.

RapaDura Edições www.revistarapadura.com revistarapadura@gmail.com

Capa Lady Godiva, John Collier, c1898, óleo sobre tela. Cortesia de Herbert Art Gallery and Museum, Inglaterra. Os personagens e as situações descritas nessa obra fazem parte do domínio da ficção, não se referindo, assim, a pessoas e/ou fatos do âmbito da realidade. eBook em formato .pdf

CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Parreira, Claudio O sol de todas as noites / Claudio Parreira Rio de Janeiro : Edições RapaDura, 2012. ISBN 978-85-1441-8587-1 1. Ficção. 2. Contos

CDD 813 CDU 821.111(73)-3


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A tipolgia utilizada em O sol de todas as noites ĂŠ Mrs. Eaves, corpo 12/15. Projetada por Zuzana Licko em 1996 e inspirada nos trabalhos de John Baskerville, no sĂŠculo XVIII, foi batizada em homenagem a Sarah Eaves, amante, governanta e colaboradora de Baskerville. O casal viveu junto por dezesseis anos atĂŠ se casarem em 1764.

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O sol de todas as noites

“N

passei a inventar mulheres. Não foi coisa de menino; depois de grande é que dei pra variar. Em pequeno fui responsável, o adulto que queriam pra mim. Muito juízo, eles diziam, mas eu sabia em silêncio que tudo era apenas uma questão de tempo. Pois então.” ão sei quando


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