Saúde pública xix xx (josé rafael soares)

Os caminhos da nova medicina científica nos inícios do século XX: o contributo de Ricardo Jorge para o panorama da saúde portuguesa/ The paths of the new cientific medicine in early XXth century: Ricardo Jorge’s action on portuguese health panorama.

José Rafael Soares1

Resumo: A industrialização dos países europeus gerou, nos finais do século XIX, novos desafios para os agentes de saúde, nomeadamente com a elevada morbilidade das populações operárias e a emergência de doenças epidémicas. A insensibilidade da burguesia industriosa e proprietária para estes problemas e os avanços relativamente mais lentos na área da medicina contribuíram para o agudizar da situação. Foi necessária uma reconstrução do ideário médico consentâneo com a cientificidade e o progresso material. Mais tardiamente em relação aos seus pares europeus, a saúde pública portuguesa evolui firmemente na viragem para o século XX. Esta temática insere-se nos conteúdos programáticos do 11º ano, cujo Módulo 6 apela à compreensão da desigualdade de desenvolvimento entre os países, bem como aos desfasamentos entre a realidade nacional e internacional. Deste modo, mobilizar-se-ão os textos de Ricardo Jorge, que, denunciando a ineficácia das medidas políticas, projectam o campo científico da saúde de novecentos para a formação de higienistas e sanitaristas, em direcção à melhoria das condições básicas da vida portuguesa.

Palavras-chave: Ciência, medicina, saúde pública.

Abstract: The industrialization of European countries during the 19th

century has generated new challenges for the health agents, namely with the high morbidity of the working force and the emergence of epidemic

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Aluno do Mestrado em Ensino de História 1

diseases. Landlord and industrious bourgeoisie’s insensibility to answer these problems, and the slow progress on medicine, contributed to the turmoil. It was necessary a reconstruction of medical ideals linked with the scientism and material progress. Lately than its European pairs, Portuguese public health has firmly developed in the turning to 20th century. This theme is inserted within the schedule of the 11th grade, which 6th module calls to the comprehension of inequality among countries, has the disparity between national and international reality.

Thus, we will mobilize Ricardo Jorge’s text, which, denunciating the inefficiency of political measures, projects the health scientific field of nine hundred to the formation of hygienists and sanitarians, towards the amelioration of Portuguese life basic conditions.

Key words: Science, medicine, public health.

Claro que o Perigo é a origem dos métodos científicos mais eficazes.

Se o Homem fosse imortal ainda não teria inventado a roda (poderias dizer).

Gonçalo M. Tavares 1. Introdução Podemos entender a medicina como uma tecnologia aplicada que faz uso alargado de múltiplas ciências. É o médico que a torna mais ou menos humana. Das suas mãos ou das suas ordens dependem o bemestar, quando não a vida, do paciente. Mas este relacionamento não foi historicamente estável, quer entre médico e doente, quer entre o profissional e a administração central.

A historiografia, no geral, reconhece uma transição epidemiológica, de padrões pré-industriais de doenças infecciosas para padrões modernos de mortes por doenças crónicas degenerativas, como sustentam Cosme

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(2014) e Weindling (1994). O processo transitório está intimamente ligado com a nova regulamentação na área da saúde pública e com as inovações técnicas. Na primeira metade do século XIX, os reformadores apostaram no desenvolvimento da saúde pública em cidades europeias, colocando oficiais nos municípios e no estado, e criando também departamentos altamente especializados. Louis Pasteur, por exemplo, estava convencido que o avanço industrial lideraria os desenvolvimentos na saúde, ainda nos anos 60 do século XIX. Mas, perto do final do século, já muitos condenariam o liberalismo económico como factor perturbador para a saúde, porque estava na origem dos bairros precários, poluição e pobreza material (Weindling, 1994).

A perspectiva de que o capitalismo transformara o corpo numa força de produção e numa realidade biopolítica, entre os séculos XVIII e XIX, é relevante para o conhecimento daquilo que são as especificidades na construção de uma saúde pública em cada país. Para Michel Foucault (1989), a medicina moderna desenvolveu-se em três etapas: uma medicina de estado, germanófila, apoiada na ciência política; uma medicina social, francófila, com enfoque na urbanização; e uma medicina marginal, anglófila, vocacionada para os excluídos. Embora mantenha a ideia de que a medicina sofreu um processo de colectivização e estatização, com o poder sobre o próprio corpo a exteriorizar-se cada vez mais até se alienar do indivíduo, Foucault apresenta o médico como o grande conselheiro e o grande perito, se não na arte de governar, pelo menos na de observar, corrigir, melhorar o ‘corpo’ social e mantê-lo em um permanente estado de saúde. E é a sua função de higienista, mais que seus prestígios de terapeuta, que lhe assegura esta posição politicamente privilegiada no século XVIII, antes de sê-la economica e socialmente no século XIX. (1989, p.

203)

Mais do que os desenvolvimentos da governação e da arte de governar, interessa-nos a crescente importância da função do higienista.

De facto, as doenças epidémicas do final do século XVIII tinham trazido o tema da saúde da comunidade — cujo crescimento exponencial da

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densidade populacional consistia já num problema — para a arena da política europeia (Fee & Porter, 1994). O papel da higiene, enquanto novo campo que ligava a fisiologia, a química e a história natural, reforçou o do médico. Elementos como a promoção do sabão, a conquista espacial da casa de banho ou o duche sanitário foram fenómenos que assumiram, já no século XIX, plena legitimidade. Como sintetizou Vigarello (1988: p.175), “esta higiene do fim do século XIX (...) incide nitidamente sobre o invisível do corpo, apoia-se largamente em sensações íntimas, dispõe de uma racionalização científica já desenvolvida”.

Em todo o caso, Porter sustenta que as relações individuais com o corpo conviviam com a gradual percepção de que a industrialização provocara, na urbe, efeitos sem precedentes, a começar pelas directas implicações do crescimento demográfico: Nenhum desenvolvimento urbano poderia possivelmente acomodar tal explosão

demográfica,

que

resultou

num

amontoamento

populacional,

residenciais inadequadas, acumulação dramática de lixo humano, animal e industrial, juntamente com níveis crescentes de poluição atmosférica industrial e doméstica, e poluição mortífera do fornecimento insuficiente de água potável. As condições grotescamente esquálidas impostas sobre um proletariado residente em bairros foi revelado por um conjunto de observadores, desde reformadores sociais a jornalistas investigadores, e cedo produziram crescimentos dramáticos de mortalidade infantil, níveis crescentes de doenças epidémicas, como a febre (tifoide e tifo), e níveis crescentes de dependência criada pela doença. (1994, p.

1238)

2. Ciência e medicina no século XIX A ciência médica do século XVIII introduziu novidades, com a sistematização

das

descrições

dos

pacientes,

notas

sobre

os

comportamentos, a percepção do pulso e as observações a fazer (a urina, as fezes, a expectoração e o pus). O uso cada vez mais alargado dos sentidos dependia de um aumento na captação de informações, algo que foi possibilitado aquando do surgimento das primeiras invenções clínicas.

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Mas o desenvolvimento da profissão médica tinha um constrangimento, que passava pela desconstrução da base de dados, milenar, das doenças humanas. Era o discurso do doente, a sua dor, a sua indisposição, a sua vontade que concluíam o diagnóstico do especialista. Como conclui Reiser, a história do paciente, uma biografia médica, (...) continha os seus sentimentos produzidos no corpo por uma doença, e as suas suposições sobre acontecimentos na vida implicados na sua causa. (1993, p. 263)

É preciso ter em conta que o modo dominante da medicina do século XVIII foi a prática privada por um preço negociado. Sob essas circunstâncias, o paciente era autónomo e autoritário. Repare-se como Bernard Shaw trata o dilema médico, escrevendo, em 1911, que perante a representatividade do doente, o mercado da medicina desenvolveu uma competição inter-pessoal: O doutor que tem de viver ao agradar os seus pacientes em competição com toda a gente que tenha passado pelos hospitais, passeado pelos exames, e comprado uma placa de bronze, cedo se encontra a prescrever água a abstinentes e geleia de brandy ou de champanhe a bêbados; bifes de carne e cerveja numa casa, e dieta vegetariana ‘livre de ácido úrico’ pelo caminho; janelas fechadas, grandes lareiras, e pesados casacos a antigos Coronéis, e ar livre e tanta nudez quanto for compatível com decência a novos modistas, nunca por uma vez ousando dizer ‘eu não sei’, ou ‘eu não concordo’. (citado em Porter, 1996, p. 118)

Nos finais do século XIX, a medicina do laboratório tinha já ganho algum espaço. Em primeiro lugar, pelo aperfeiçoamento das ligações institucionais que protegiam a profissão médica e a incorporavam nos grandes projectos governamentais dos hospitais públicos. Em segundo lugar, pela aposta cada vez mais extensiva em programas lectivos que recorressem às ferramentas do laboratório. As universidades foram os redutos desta ideia, criando para o efeito um mercado de circulação de bens laboratoriais, como o Cambridge Scientific Instrument Company ou o Harvard Apparatus Company. O investimento na colecção de informação

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desvirtuou o paciente como primeiro e soberano transmissor. O raciocínio exacto vencia a intuição (Borell, 1993).

Mas a tecnologia não aboliu o uso dos sentidos. O doutor continuaria a ser um detective. São abordados, comummente, cinco características significativas desta interligação que manter-se-á pelo século XX: a objectividade da informação colhida, sem passar pelo filtro do doente; o tempo, aproveitado por uma nova mecânica laboral que dispensava

a

visualização

colegial

do

paciente,

remetendo

para

investigação, individualmente, a terapêutica; a estandardização, que possibilitou o rompimento de fronteiras científicas e aproximou as descobertas; a comunicação, facilitada pela uniformização do que era visto e analisado, favorecendo a apresentação do conhecimento através de gráficos numéricos e evidências pictóricas; e, finalmente, a interação com o paciente que era agora legitimada pelo recurso a uma realidade que desvalorizava a descrição que tinha de si mesmo. Apenas a interacção humana mantém uma barreira clara para com o poder da tecnologia (Reiser, 1993).

Na segunda metade do século XIX, era notório o orgulho particular da sociedade burguesa na ciência. As duas orientações predominantes eram o positivismo francês e o empiricismo britânico. Entretanto, nas academias, a Física, mais do que a Química, era a disciplina a investir-se por excelência. Foi das ciências naturais que emergiu também o conceito mais poderoso e transformador, o da evolução humana, causando sensação por ser o espelho da economia liberal e do mercado livre competitivo (Hobsbawm, 1979).

Mas a Química com aplicações industriais revelou ser uma disciplina de maior utilidade, desenvolvendo-se através do comércio de tintas, corantes, fertilizantes, produtos farmacêuticos e explosivos, e o número

de

profissionais

nessas

áreas

é

disso

exemplo.

Mais

concretamente, era a Química Orgânica que despontava, revelando uma matriz organizativa (a Tabela Periódica dos Elementos, em 1869, é o culminar de uma época de estandardizações e medições) e funcional (por

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quem Pasteur é o seu máximo expoente). A Biologia atrasou-se devido ao conservadorismo dos profissionais que a praticavam. Nem da Botânica se pode dizer ter advindo algum tipo de evolução. A farmacopeia, desenvolvida por indivíduos à margem da profissão médica reconhecida, estagnou-se com as potentes drogas já conhecidas antes do século XIX, como o ópio ou as folhas de coca. Seria preciso esperar pelo final da centúria para que a produção de anestésicos, analgésicos ou hipnóticos se desenvolvesse, estimulada por uma indústria farmacêutica diligente.

Como Weatherall assinalou, a descoberta não esteve intimamente ligada com o progresso médico: O século XIX viu a introdução de drogas parcialmente purificadas, alguns princípios activos (especialmente os alcaloides puros), e um número de drogas sintéticas de potência duvidosa. A sua descoberta foi empírica: nenhum dos compostos originais foi feito em primeiro lugar com um propósito médico como objectivo. Mas eles foram o signo de uma onda inesperada de novos remédios, cada vez mais desenhados com propósitos, e nunca seriamente testados durante os próximos oitenta anos. (2001, p. 924)

A investigação científica, no entanto, adquirindo os conhecimentos de todas as áreas, enrobusteceu a prática da medicina. Para Hobsbawm: As técnicas da bacteriologia — o microscópio, a preparação de culturas e de lâminas, etc — e a sua aplicabilidade imediata no combate às doenças dos animais e dos homens — contribuíram para que a nova disciplina fosse acessível, compreensível e sedutora. Técnicas como a antissepsia — desenvolvida por Lister (1827-1912) por volta de 1865 —, a ‘pasteurização’ e outros métodos de protecção dos produtos orgânicos contra a intrusão dos micróbios, e a inoculação apresentavam resultados suficientemente palpáveis, que acabaram por vencer a hostilidade dos membros da profissão médica. (1979, p. 344)

O fenómeno da investigação laboratorial conheceu na Europa a sua versão mais produtiva e abrangente, e rapidamente se espalhou a todo o globo. Salienta Booth que A subscrição popular estabeleceu institutos de pesquisa para Pasteur em Paris, e na Alemanha o governo forneceu laboratórios especiais para Koch, e para o grande patologista Paul Ehrlich (1854-1915). Em Inglaterra, um instituto foi

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depois nomeado Joseph Lister (1827-1912), o pioneiro da cirurgia antisséptica, e no Japão instalações foram ofertadas a Shibasaburo Kitisato (1852-1931), codescobridor da antitoxina da difteria juntamente com o alemão Emil von Behring (1854-1917). (...) Na parte final do século, jovens americanos amontoaram-se nos laboratórios e clínicas das escolas médicas alemãs e nos institutos de pesquisa, como quando no início do século tinham visitado as clínicas de Paris.

(2001, p. 208)

O

seu

progresso

não

foi

linear,

fruto

de

contradições

administrativas e tensões hierárquicas. A ciência não podia resistir à revolução social ou à religião tradicional, e os seus cientistas dependiam da conjuntura política e ideológica do seu país. No caso das ciências com aplicabilidade directa na medicina, como a Antropologia Física ou a Etnografia, a relação estreitou-se profundamente com o ambiente político ao tempo da partilha imperial. O que uniu o imperialismo a ciências como a bacteriologia ou a imunologia, foi a vontade em dominar a produtividade do homem europeu, posta em causa no plano colonial pelo recrudescimento das doenças tropicais, das quais a malária e a febre amarela são os seus melhores exemplos (Hobsbawm, 1990).

Este esforço não era, contudo, completamente coordenado, como assinalam os interesses dos vários intervenientes, fossem os governos nacionais ou a indústria privada. Este factor não impediu que o cientista estivesse conscientemente relacionado com uma missão patriótica, como se depreende desde o caso da negação da ordem prussiana por parte de Pasteur, até ao manifesto dos 93 cientistas alemães no pré-Guerra — assinado por tantos investigadores de diversas áreas, demonstrava, em seis tópicos, a defesa intransigente da missão imperialista do II Reich alemão, acusando de mentirosos os que apontavam à sua nação o selo do crime de guerra: Tenham crença em nós. Acreditem que nós suportaremos esta guerra como uma nação civilizada, para quem o legado de um Goethe, um Beethoven, e um Kant é tão sagrado como os seus corações e os seus lares. (Professors of Germany, 1919, p. 285)

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A medicina tropical viveu da intensificação de rivalidades imperiais e da sua capacidade técnica para em legitimar o processo civilizador. Mas não

é

seguro

dizer

que

o

seu

desenvolvimento

tenha

sido

verdadeiramente compensatório, como Kiple aponta: A medicina tropical foi um braço importante deste esforço, mas mais no sentido de preservar a saúde dos colonizadores do que dos colonizados. E, ainda que difícil de se mensurar, os colonizadores aumentaram as condições de vida de um certo número de portadores de doenças e vectores ao transformarem a paisagem africana em cultivo para o lucro. (2001, p. 374)

E se a saúde pública tinha por objectivo suster a ecologia urbana de uma epidemia, as doenças tropicais alteraram o papel da medicina nesta luta. A maior parte das descobertas dos vectores destas enfermidades situam-se na época imperialista, entre a década de 70 do século XIX e a Primeira Guerra Mundial. Foi talvez o primeiro laço de união evidente entre institutos de pesquisa, cientistas e política científica, que então alargava o seu espectro de influência ao todos os continentes, catapultando a saúde pública para uma nova dimensão, e o especialista para a internacionalização, como Worboys refere: O Império Colonial Francês foi rapidamente incorporado na rede do Instituto Pasteur, com laboratórios em Saigão (1891), Tunis (1893), Algiers (1894), e Nha Trang (1895). Do mesmo modo, o bacteriologista alemão Robert Koch (1843-1910) viu o mundo como uma sua província, trabalhando no Egipto, na Índia, África do Sul, na África Oriental Alemã e na África Oriental Britânica, e nas Índias Orientais Holandesas, sem mencionar a visita a Itália para investigar a malária. (2001, p. 519)

A divisão do trabalho dentro da área da saúde constituiu-se um dos factores que melhor exemplificam a explosão dos métodos e dos conhecimentos médicos. E, segundo Maggs, mesmo a temática da industrialização está conectada, por exemplo, com o aparecimento da enfermagem:

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Em primeiro lugar, o crescimento geral da população não só criou mais pessoas doentes mas também forneceu uma fonte de trabalho para cuidar delas.

Em segundo lugar, a industrialização trouxe com ela uma ênfase no trabalho assalariado dentro de uma nova forma de organização. (...) Em terceiro lugar, a industrialização forçou a separação crescente entre trabalho e o lar, que contribuiu para a ampliação do cuidado institucional dos doentes. Em quarto lugar, o industrialismo realizou uma nova estrutura de classe, uma sociedade dividida entre os proletários e a classe média, cujas experiências e valores foram radicalmente diferentes. (...) Finalmente, embora as guerras sejam parte da história, as guerras e as campanhas do período da industrialização e posteriores resultaram numa grande crise dos cuidados de saúde pelos quais o tradicional sistema foi incapaz de atender. (2001, p. 1315).

3. A estatização da saúde pública Bynum (1994) argumenta que a medicina do início do século XX era mais próxima do público, mas esta presença foi construída pelas respostas dos reformadores sociais que operavam nas grandes cidades europeias, como Chadwick ou Villermé. No caso do francês Louis Villermé (1782-1863), é de notar um dos primeiros esforços de sistematização do ambiente higiénico de um habitat urbano. Num relatório de 1826, a pedido da Academia de Medicina francesa, eram já estudados factores como as condições meteorológicas e o estatuto financeiro dos seus moradores. Concluía a exposição que era nos mais pobres que a taxa de mortalidade era mais elevada, mas não se previa a actuação do Estado para complementar o defeito. Ao invés, pedia-se ao patronato que investisse na formação moral dos seus trabalhadores.

Seria preciso esperar por um grupo de trabalho britânico para a questão ver introduzida novas variáveis. Foi William Farr (1807-1883) que apontou a falta de saneamento como causa primária da elevada taxa de mortalidade, e assim os britânicos desenvolveram a ideia de que a prevenção seria menos onerosa do que grandes campanhas de assistência financeira aos pobres. Juntamente com T. Lister (1800-1842)

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e E. Chadwick (1800-1890), Farr viveu na era vitoriana de filantropia e princípios utilitaristas.

Crítico do modo como a industrialização se tinha sedimentado no tecido social, a sua análise mudou a ênfase das causas morais da pobreza (a preguiça, a dissipação) para as de tipo ambiental, já que as doenças relevantes da pobreza (febres, cólera, tuberculose, diarreia infantil) julgaram-se serem causadas por factores ambientais. (Bynum, 1994, p. 72)

É do seu grupo de trabalho, composto por homens de vertente liberal, a maior parte deles discípulos de Jeremy Bentham, que surge a proposta de um sistema arterio-venoso de abastecimento de águas. O relatório das condições de vida da população da Grã-Bretanha, apresentado em 1842, recomendava a célere implementação de uma ideia sanitária generalizada, em que conselhos de saúde seriam criados para supervisionar a drenagem, limpeza, pavimentação e acesso a água potável. Sugeria-se também a rápida substituição dos antigos esgotos por novos com água pressurizada (Porter, 1997).

A relação entre o movimento pela saúde pública e o quadrante político não é irrelevante, tendo em conta o ambiente que se vivia no Reino Unido com o desenvolvimento do cartismo e da Anti-Corn Law League. A atenção do público era evidente. A cólera, que se alastrara por toda a ilha durante os anos 30, levou a um encalhamento do comércio e dos transportes. O Anatomy Act, de 1832, permitia, finalmente, que um aluno de medicina procedesse legalmente à dissecação de corpos mortos.

Para a compreensão do que isto significava, não é de somenos lembrar a revolta de Bristol do mesmo ano, em que os amotinados acreditavam que a cólera era um pretexto usado pela profissão médica para o açambarcamento de cadáveres (Porter, 2001). Os conflitos internos e, principalmente, os lobbies parlamentares das companhias das águas, resistiram fortemente ao controlo central da saúde pública. Os ‘radicais

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metropolitanos’ não foram a única barreira encontrada. Mesmo a imprensa da época revelava ser contrária à sensação paternalista que enviesava a propriedade privada. O jornal “The Herald” referia que “um pouco de sujidade e liberdade podem ser, afinal de contas, mais desejáveis do que nenhuma sujidade e escravatura” (Porter, 2001, p.

1245).

Na

década

seguinte,

as

regiões

britânicas

conhecem

um

movimento associativo muito importante que desloca a consciência da matéria de saúde a todos os níveis da hierarquia política. Estava aberta a porta à medicina e aos seus doutores para a intervenção social, enquanto que o projecto de uma engenharia sanitária apoiada em reformadores terminava nos anos 50 do século XIX. Os novos oficiais sanitaristas, aproveitariam o que Chadwick, entre outros, demonstrara. De facto, eles estabeleceram uma plataforma (...). Recorrendo a inspecção, inquéritos e estatística, demonstraram a extensão pela qual a sociedade urbana e industrial criara os seus problemas de saúde específicos e se havia fixado às tensões entre a ideologia individualista do laissez-faire da primeira industrialização com os assuntos comunais de morte prematura e debilidade. (Bynum, 1994, p. 91)

A reforma médica da segunda metade do século XIX prosseguiu com Jules Guérin (1801-1886) e Rudolf Virchow (1821-1902), que identificavam, definitivamente, uma medicina social como redentora da urbanidade contaminada por epidemias. John Simon (1816-1904) continuou o trabalho de Chadwick, vencendo algumas batalhas e perdendo outras, mas ao tempo da sua resignação, em 1877, o médico especialista estava já estabelecido no serviço governamental.

A

Química,

o

microscópio

e,

sobretudo,

a

bacteriologia

transfigurariam a prática inicial. As análises químicas atingiram níveis inéditos de sofisticação e de precisão, e elevaram a competição internacional no avanço científico. Bynum identifica que

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Pasteur gostava de cultivar microorganismos em frascos e (...) Koch preferia a técnica em placa, por onde a bactéria crescia num meio sólido em pequenos pratos circulares. Isto permitia o crescimento de colónias de organismos e permitiu a avaliação quantitativa. Era também mais fácil de manter este equipamento asséptico. (1994, p. 129)

Como assinala Weindling, O desenvolvimento da bacteriologia e da microbiologia pasteuriana possibilitou descobertas e debates sobre os mecanismos de imunidade. Estudos sobre a fermentação levaram Louis Pasteur (1822-1895) em 1857 à visão que o meio de cultura de um fermento poderia acelerar ou inibir o crescimento de micro-organismos. Por analogia, poderia ser possível inibir o alastramento de organismos invasivos responsáveis por doenças. (1997, p. 192)

Pasteur tornar-se-á num cientista mitológico para a França, no século XIX. Ele agregava as qualidades recém-adquiridas do laboratório, um patriotismo consciente e militante, e uma total predisposição para o desenvolvimento da medicina social. Podemos identificar três fases do seu trabalho: uma primeira, individualista, em que contacta com os saberes da mineralogia; uma segunda em que afronta os poderes locais e o profundo tecido camponês, resolvendo a crise económica que pairava naquela região ao decifrar o porquê da prematura morte dos bichos da seda; e uma terceira, com repercussões internacionais, que versa sobre os achados na cura da raiva: Aos sessenta e três anos, Louis Pasteur é ilustre desde há muito.

Professor na Faculdade de Ciências de Estrasburgo, depois em Lille, onde foi reitor, enfim na Sorbonne, é paralelamente, desde 1867, director do laboratório de química fisiológica da Escola Normal, de que fora aluno. É também um sábio reconhecido pelos seus pares: membro da Academia Francesa desde 1882, pertence igualmente à das Ciências (desde 1862) e à de Medicina (desde 1873).

E está coberto de honrarias. (Le Goff, 1991, p. 324)

O sucesso na inoculação da raiva, em 1885, não é só a confirmação de Pasteur enquanto cientista-tipo da nova vaga. É a definitiva vitória da

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imunologia, muito criticada pelos meios que suscita. Nunca mais a bactéria e o micróbio deixarão de estarem ligados aos maiores avanços da medicina e, mais concretamente, da saúde pública.

4. Ricardo Jorge e a política sanitarista em Portugal Como vimos, a política científica e, mais concretamente, a política sanitarista,

foram

historicamente

conduzidas

pela

crítica

à

industrialização e às suas consequências socio-económicas. E em Portugal? Pretendemos expor as vicissitudes do sistema implementado no país e as medidas para corrigir as suas deficiências, e situá-las na internacionalização científica de inícios do século XX. As patologias dominantes em Portugal, até ao século XIX, foram as doenças

infecciosas,

as

carências

alimentares

e

perturbações

relacionadas com a expansão industrial. A realidade portuguesa é, no entanto, distinta dos países europeus anteriormente analisados. De facto, como sintetiza Ferreira, Portugal não foi rápido na organização de medidas de protecção da saúde e de luta contra a doença no desenvolvimento da sua industrialização, pois ainda no “Relatório acerca do Estado Público de Portugal”, apresentado às Cortes por Fernandes Tomás em 1821, se dizia apenas que ‘as cortes farão e dotarão estabelecimentos de caridade e instrução pública’, e D. João VI acrescentava em 1825, a propósito da criação da escola médico-cirúrgica, que se vivia ‘num sensível atrasamento’ de conservação da saúde do nosso povo e de educação de cirurgiões. (1990, p. 258)

Pese

esta

relação

distanciada

para

com

os

efeitos

da

industrialização — um indício, talvez, do quão tímido foi este processo para o país na primeira metade do século XIX —, Portugal detinha, ainda assim, uma rede de instituições que se moldavam à visão preocupada com os problemas de saúde, como os hospitais (já desenvolvidos desde o século XVIII, fundados pela Misericórdia ou pelo Estado), sanatórios (zonas afastadas da urbe, construções do final do século XIX), laboratórios (municipalizados, sendo que o de Lisboa, fundado em 1881, funcionava apenas para análises químicas, e o do Porto, fundado em

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1882, especializou-se em análises bacteriólogicas), dispensários ou institutos (Instituto Bacteriológico, de 1892 e o Instituto Central de Higiene, fundado em 1899).

Como Alves e Carneiro (2014) demonstram, apenas o decreto de 24 de Dezembro de 1901 institui um ensino sanitário capaz de formar quadros de saúde pública: os médicos sanitaristas e os engenheiros sanitários. O decreto, preparado desde 1899 por Ricardo Jorge, ficou-se como a mais ambiciosa reforma de saúde do período entre a dissolução da Monarquia Constitucional e a implantação do República. Segundo Ferreira, Foi reorganizada a anterior Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública e criada a Inspecção Geral Sanitária, o Conselho Superior de Higiene Pública e o Instituto Central de Higiene, como órgãos centrais de estudo e coordenação, mas o mecanismo sanitário assenta no médico facultativo de partido, equivalente ao então ‘medical officer of health’ inglês, cuja intervenção sanitária é apoiada na parte executiva por engenheiros sanitários e fiscais da salubridade, constituindo uma equipa. São autoridades de saúde ao nível do distrito os delegados de saúde e, ao nível dos concelhos, os subdelegados de saúde, aos quais competia a elaboração das estatísticas. (1990, p. 337)

Em 1926 procedem-se a novas alterações, com vista a melhorar as condições de saúde da população que o decreto de 1901 não havia ainda conseguido. Mas, o papel de Ricardo Jorge legitimou o médico e cientista como operador junto da arte de governar. Como refere Costa, Propagandeando a validade do higienismo como ferramenta médicosocial de controlo sanitário, Ricardo Jorge passou a corporizá-lo, inscrevendo-o na letra da lei. Deu assim forma a um paradigma que se iria manter durante mais de meio século. Não viveu o suficiente para ver a revolução antibiótica tomar de assalto e tornar obsoletos muitos dos pilares da «ciência higiénica», mas viveu o suficiente para se impor como um dos paladinos da reforma científica operada em Portugal entre os finais do século XIX e o primeiro quartel do século XX. (2014, p. 263)

A

ciência

portuguesa

acompanhava

com

razoabilidade

as

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tendências experimentadas no estrangeiro. A desenvoltura literária de Ricardo Jorge, marcada por um impressionante registo encomiástico, permite-nos perceber o ambiente que o rodeava, as figuras que mais se sobressaíam e os acontecimentos mais importantes daquela particular época da saúde portuguesa. A sua vida (Costa, 2014) eleva-o a uma das personalidades mais importantes para a ciência portuguesa.

Sobre Sousa Martins (1843-1897), destacado médico, por exemplo, diz-nos que assimila de chofre toda essa ciência novíssima dos Charcots e dos KraftEbings. (...) Que ombreasse em eloquência médica com um Paget ou um Virchow, não é pouco; mas ele era quase como um Stahl ou um Boerhaave, que no seu tempo abrangiam uma Faculdade inteira. (...) Ponham um Voltaire, inscrito num Galeno, a fazer clínica, tal me parecia ele. (Jorge, 1925, p. 17)

Tal como Pasteur, percebera que o Império Alemão se havia entrincheirado com os seus cientistas e tomado uma posição que não era consentânea com aquela cultura. A influência do francês é notória: à mão de Pasteur cabe empunhar esse ceptro de comando científico, porque simboliza a força que mais alto pujou e mais fundo cavou a gleba médica – a Concepção da Microbia e da Patogenia Animada. (Jorge, 1925, p. 188)

No entanto, nada demove o médico sanitarista de reverenciar os feitos de Koch, o mítico cientista alemão equiparável, em génio e legado, a Pasteur: Quando os destinos de higienista me levaram ao aprendizado da bacteriologia, era Koch o pontífice da patologia inficciosa. (...) Evangelizou a ciência recém-nada e liberalizou a todos o seu catecismo didáctico do laboratório. (Jorge, s.d., p. 142)

De facto, nada era na época comparável ao laboratório alemão. A ‘Alemanha sábia e laboratorial’ deslumbrou-o quanto à organização e ao funcionamento, onde professavam os maiores especialistas de áreas como a anatomia, a fisiologia ou a clínica (Jorge, 1924). Em Portugal, as reformas que introduziram os ensinamentos mais avançados ao nível do

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laboratório foram recebidas com entusiasmo e surpresa nos anos 80 do século XIX: O uso do microscópio era quase desconhecido; ignorávamos as bactérias de Pasteur, como ignorávamos as próprias células de Virchow. (...) Não admire que, mal compreendido ainda o pastorismo como doutrina, à ciência e à técnica dos micróbios se não abrisse logo lugar no ensino. A nova patologia infecciosa desconcertava as inteligências; conheci lentes e médicos de real talento, saber e capacidade que não havia meio de a abrangerem. (...) Ainda hoje, volvidos tantos anos de divulgação sobre a doutrina pastoriana, quantas vezes se sentem ainda na matéria os despercebimentos e as cincadilhas de conceito. (Jorge, 1925, p.

196)

As relações entre os poderes municipais, os cientistas, o saber estrangeiro e o poder central indiciavam uma vontade de agir, mas sem a coordenação necessária: A miséria reinante na esfera docente, quase abandonada dos poderes públicos, apesar da veemência dos protestos repetidos, não dava quartel à Bacteriologia. Despontam no horizonte o bacilo de Koch em 1882 e o vibrião do mesmo em 1884, trazendo a chave causal de duas pragas homicidíssimas – a tuberculose e a cólera. O Portugal oficial olhou para essa descoberta como boi para palácio. (Jorge, 1925, p. 197)

À

falta

de

estruturas

físicas,

somavam-se

os

atrasos

administrativos, por vezes compensados com o esforço de um ou de outro ministro: “O primeiro passo decisivo dava-o o Ministro António Cândido (...) E o laboratório surdia (...) graças à economia do Ministro Dias Ferreira” (Jorge, 1925, p. 201). Estes factores não eram condizentes com o prestígio granjeado por algumas personalidades dentro dos vários grupos de trabalho que reuniam sanitaristas e higienistas de todo o mundo. Para a rede internacional, composta por diversas entidades, contribuíam médicos e investigadores de todos os países, sendo que Ricardo Jorge era uma presença assídua. Como nos refere, Estabeleceu-se com um império progressivo o internacionalismo sanitário — os povos, a começar pelos mais independentes e avançados, estão ensaiando uma solidariedade cada vez mais íntima (...) [e] um intercâmbio de médicos

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sanitários de país para país (...) subvencionados pela Sociedade das Nações, à custa do Fundo Rockefeller, vão às turmas visitar os serviços estranhos e junto deles instruir-se. (Jorge, 1925, p. 210)

O internacionalismo sanitário já era conhecido desde 1851, aquando da primeira Conferência Sanitária, mas as primeiras edições ficaram marcadas pela incapacidade do acordo quanto às regulações de quarentenas e suas implicações nas fronteiras nacionais. Estas reuniões mantiveram-se, com algumas interrupções, até 1938. Comuns também passaram a ser as reuniões das especialidades médicas. A Cruz Vermelha surgiu como organização em 1863, ramificando-se depois em sociedades nacionais. Em 1907 é criado o Office International d’Higyene Publique. Com o advento da Sociedade das Nações no pós-Guerra, é igualmente criado um secretariado para a Saúde. Facilmente se depreende que a rede institucional era vasta, com ambições de chegar a todos os países associados e para combater os mais prementes problemas de saúde pública (Roemer, 2001).

Segundo Ricardo Jorge, a participação dos cientistas portugueses nestas organizações era satisfatória. Numa das Conferências Sanitárias do pós-guerra, a diligência nacional “foi tão activa que foi a ela, à inglesa e à americana, que mais deve o protocolo formulado” (Jorge, 1925, p.

211). Mas a dificuldade para acompanhar futuros avanços também foi diagnosticada.

A

excessiva

burocracia

e

a

falta

de

funcionários

especializados continuariam a ser dois dos principais problemas da saúde pública portuguesa. O profilático português demonstraria ainda a sua angústia para com o excessivo número de escolas de medicina no país, que reduzia a sua qualidade, bem como a dissolução do papel da Física na formação dos futuros profissionais médicos. Era a emigração científica que mantinha ainda um corpo sólido de excelência: Repare-se que o avanço da medicina portuguesa actual se fez à custa das peregrinações dos clínicos que foram lá fora adquirir o treino de aperfeiçoamento

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para as necessidades da sua prática. A medicina é o que é, pela devoção meritória dos seus profissionais. (Jorge, 1925, p. 222)

5. Conclusões Como vimos, o estudo da saúde pública cruza todos os níveis de uma sociedade: afere-lhe as condicionantes socio-económicas, mede-lhe o pulso político, verifica o estado da população.

Nos seus inícios, a industrialização revolveu o tecido social. O século XIX testemunhou a reprodução de doenças infecciosas, sintoma do baixo nível de vida das comunidades urbanas e rurais. A classe médica, que lentamente foi ganhando um estatuto corporativo definido, foi legitimada com a presença do tema da saúde pública na arte de governar.

A ciência então desenvolvida forneceu-lhe níveis inigualáveis de precisão.

Aos sentidos e à simples inquirição dos pacientes adicionaram-se-lhes as descobertas laboratoriais e as firmes apostas institucionais. A medicina tropical permaneceu como um dos mais vívidos exemplos destas mudanças, na transição para o século XX. Do ponto de vista da política, a Inglaterra vitoriana foi o melhor exemplo das tensões que a área da saúde pública poderia suscitar, ao enfrentar grupos de pressão e ao necessitar de novas profissões que competissem com outros interesses corporativos. Do ponto de vista científico, o trajecto de Pasteur é uma evidência da crescente importância de disciplinas que transfiguraram a medicina para sempre. A vida do sábio mantém-se, ainda durante o século XX, como a estória de sucesso do cientista engajado com o poder.

Aproveitando o legado reformador de Chadwick e o legado científico de Pasteur, os vários países europeus desenvolveram enormemente a área da saúde pública. No caso português, a demora na introdução da superior investigação e da formação de higienistas retardou este processo. Ricardo Jorge é o expoente destas dificuldades. Médico higienista e sanitarista de grande qualidade, coordenou o seu trabalho de ponta com a reforma do país. Influenciado pelas visitas às outras nações

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alinhadas na luta pela profilaxia e medicina sociais, deixou-nos o diagnóstico de uma sociedade com um longo caminho a percorrer. Mas a validade da higiene pública era agora inquestionável: Exercer a medicina preventiva pela aplicação dos métodos da higiene geral específica é hoje uma função suprema da assistência militar em pé de guerra. Depois do cirurgião, depois do médico, o higienista conquista também o seu posto de honra nas fileiras. (...) O General Micróbio também está urdindo a maranha da sua fatal estratégia. (Jorge, 1925, p. 76)

Como resume Ferreira: os progressos da medicina, tanto nos aspectos preventivos de doenças como de tratamento, reabilitação e investigação, vão desenvolver-se e aumentar de eficácia na melhoria da saúde na passagem do século XIX para o século XX, ainda que de forma pouco coordenada. (1990, p. 199)

A

reforma

de

1901,

se

insuficiente,

produziu

quadros

especializados e introduziu, definitivamente, a medicina ao serviço das comunidades e do Estado português. Mas esta medicina, já articulada com as novas sensações tecnológicas, é devedora de um passado moribundo em que a mole humana assistiu, incapaz, à sua prórpia degeneração.

Retomando a epígrafe inicial, dir-se-ia que o perigo não é só o criador do método eficaz. É também o motor da diligência pela vida e pela fraternidade entre os povos.

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