gonzo DIÁRIO 1-A
Florianópolis, quinta-feira, 16 de junho de 2011 • Ano I • Edição I
gonzo DIÁRIO Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição Professor: Ricardo Barreto Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Rafaella Coury Serviços editoriais: A turma que não escrevia direito, de Marc Weingarten, Kotori Magazine, Gonzo - O filho bastardo do new journalism, de André Czarnobai Colaboração: Lucas Pasqual, Rodolfo Conceição, Rafael Canoba e Thiago Moreno Impressão: In Press Junho de 2011
Joanne O’Brien
Textos e drogas em Las Vegas A reportagem esquecida e a busca pelo Sonho Americano, nas palavras de Hunter Thompson sentir presente naqueles lugares, junto Thompson deixa de cobrir o evento e aos personagens. Os cenários dos cas� passa a participar da reportagem, mos� sinos, das ruas e os retratos da popula� trando o estilo literário criado por ele ção de Las Vegas são passados de uma mesmo dentro do novo jornalismo: o maneira fiel, o que faz qualquer um se estilo gonzo, que ficou mais conheci� sentir conhecedor do local. do nesse livro. Mas nada disso deixa Grande par� o livro ruim. Pelo te da história foi contrário. escrita sob influ� Mesmo que ência de drogas e em alguns mo� álcool, geralmen� mentos o leitor te misturados, o fique confuso, que pode tornar com certeza ele o livro bem con� se divertirá com fuso em algumas as frases irônicas páginas. Alguns de Thompson, trechos dele pre� sua acidez quan� cisam ser relidos. to ao mundo, a Além disso, des� Las Vegas e às de o começo o pessoas que habi� leitor é avisado tam esses lugares que a viagem a e, acima de tudo, Las Vegas acon� se espantará com teceu para que as situações nas o jornalista pu� quais o autor e desse cobrir a seu advogado corrida, mas o se encontram, e foco é esquecido com as maneiras e modificado, e a que eles conse� história passa a guem escapar ser um relato da delas. cidade, seus ha� A influência bitantes, a bus� Na capa, amostra do desenho de Steadman das drogas em ca pelo Sonho Thompson e no Americano e um retrato dos efeitos seu advogado é explícita. Ele chega a das drogas no corpo humano. descrever alucinações e se coloca em Isso torna Medo e delírio um livro situações nas quais não consegue ra� diferente do usual. Não é exatamente ciocinar nem se mexer, atrapalhando biográfico, mas também não é apenas o contato com outras pessoas. O autor ficção, nem romance. Mistura um muitas vezes também se mostra bravo pouco de cada uma dessas categorias. e impaciente com seu advogado, que
é mais suscetível a algumas substân� cias, prejudicando seu bom senso. Em algumas partes, o livro pode fazer o leitor querer experimentar certas situ� ações, pela maneira interessante com a qual são retratadas. Já em outras partes, suas consequências amedron� tam e assustam, e o livro se torna uma efetiva propaganda antidroga. O livro flui muito rápido. Sua lei� tura é facilitada pelo jeito que Thomp� son escreve e dificilmente o leitor fica entediado. A história, apesar das par� tes confusas, é bem construída, linear e retoma frequentemente assuntos, lugares e pessoas que já foram citados, como se o leitor fosse tão íntimo deles quanto o escritor. Thompson escreve livremente, utilizando palavrões e re� ticências. Além disso, ele escreve de maneira informal, menos fechada e mais coloquial, facilitando a leitura. Como complemento, o livro é ilustrado por Ralph Steadman, grande amigo de Thompson. As ilustrações combinam com o livro e são confusas e distorcidas como uma alucinação criada pelas drogas. Um dos pontos altos do livro são as várias referências citadas por Thompson. Ele fala de músicos como os Beatles, Jefferson Airplane, Bar� bra Streisand, Simon & Garfunkel e Bob Dylan. Cita autores como Ho� ratio Alger e personalidades como o presidente Nixon. E, ainda, ele fala sobre nazismo, política, movimentos estudantis, serial killers e cultura em geral, sendo uma obra completa para qualquer um que consiga entender e suportar seu estilo ácido e incomum.
Ralph Steadman/L&PM Editores
“O
ne toke over the line, Sweet Jesus... One toke over the line...�������������������� ”. Na terceira pági� na da história, logo no início do livro, a música de Brewer & Shipley é citada pela primeira vez e Daniel Pellizzari, o tradutor de Medo e delírio em Las Vegas – Uma jornada selvagem ao coração do Sonho Americano, de Hunter Thompson, conta, em nota, que a tradução literal para ela seria: “Uma tragada sobre a linha do trem, meu doce Jesus...uma tragada sobre a li� nha do trem...”. Mas acrescenta que há um duplo sentido nesse caso, pois “one toke over the line” pode significar, coloquialmente, algo como “fui longe demais”. Essa frase resume a história, pois seus personagens ultrapassam to� dos os limites. No início do livro, o leitor pega carona em um conversível vermelho da Chevrolet, apelidado Grande Tu� barão Vermelho, que está a caminho de Las Vegas, levando Raoul Duke (al� terego de Thompson), Doutor Gonzo (seu advogado) e quase 300 dólares em drogas e bebidas alcoólicas. A ida à cidade é motivada pelo Mint 400, uma famosa corrida de motos e bu� ggies pelo deserto da região, que o jornalista deve cobrir para a revista de Nova York Sports Illustrated. O texto de Thompson transporta qualquer um para dentro do livro, tornando o leitor o terceiro participante daquela louca viagem. Thompson é muito detalhista, tanto no que ele conhece e presencia, quanto no que ele imagina. Assim, é fácil se identificar com as situações e se
Adaptação é menor, mas tem seu mérito Divulgação: Rhino Films
E
xistem livros que não deveriam ser adaptados para o cinema. Medo e delírio em Las Vegas tal� vez seja um desses. O filme de Terry Gilliam, lançado em 1998, é muito fiel à história contada por Thompson, com as mesmas cenas e falas idênticas. O filme segue a mesma linha do livro e é bem feito à sua maneira, renden� do ao diretor a indicação à Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1998. O problema do filme talvez seja exatamente essa fidelidade. O livro é muito diferente, algumas cenas são confusas e distorcidas, mas, por ser literatura, não fica ruim. No caso do filme, essas cenas são exageradas e di� ficilmente agradarão a todos. Pessoas mais conservadoras, por exemplo, le� rão o livro e não se importarão com a bagunça, pois é o jeito do Thompson de ser e escrever. O filme é exagerado, como se quisesse ser engraçado e al� ternativo demais e forçasse a barra. Mesmo que seja um problema, a semelhança com o livro é legal para aqueles que leram e não conseguiram imaginar algumas cenas. Em uma par� te da história, Duke e seu advogado vão a um cassino chamado Circus-Circus, que o autor descreve bem. Neste local, eles vão a um bar-carrossel que, mesmo com as explicações do autor, é difícil de ser visualizado; já no filme,
Personagens de Depp (à frente) e Del Toro, a caminho de Vegas no Grande Tubarão Vermelho
quem conhecia a cena consegue final� mente entender onde eles estavam e o que exatamente estava acontecendo. A descrição detalhada de Thompson no livro ajuda o diretor do filme a recriar as cenas e os locais, fazendo o ambiente ficar igual ao que foi visto (ou imaginado) pelo autor. O filme inteiro foi gravado de ma� neira a reproduzir as sensações causa� das pelas drogas. Muitas cores e câ� meras confusas, tortas e sem sentido
fazem o espectador se aproximar do que o autor sentia quando escreveu o livro. Há uma revoada de morcegos em pleno deserto, o tapete de um bar ataca o protagonista, e os clientes des� te mesmo bar se tornam répteis que bebem coquetéis. Algumas cenas são estranhas, e ficam melhores na imagi� nação do leitor. Assistir a elas, como dito anteriormente, parece exagero. Assim como o livro, o filme é nar� rado, tornando as cenas mais ricas e
compreensíveis, na medida do pos� sível, mas também é fiel ao original, com as mesmas falas. Johnny Depp interpreta Raoul Duke e traz para a tela todos os tiques e estranhezas que o autor mostra no livro. O ator faz isso tão bem que também parece exa� gero e não fica bom em um filme. Seu entrosamento com Benício Del Toro, que faz seu advogado, é perfeito, ge� rando várias cenas engraçadas, princi� palmente as que Del Toro fala “como seu advogado, te aconselho...”, com� pletando com alguma frase estranha. O elenco é o ponto alto do filme. Personalidades do cinema america� no têm participações pequenas, mas memoráveis, como Tobey Maguire, que faz o garoto que pega carona no Tubarão Vermelho no início do filme. Tais atuações destacam ainda mais o trabalho dos intérpretes de Duke e seu advogado, que se mostram verda� deiros camaleões diante das telas. O filme só é realmente bom para quem já leu o livro. Ele apresenta um pouco mais dos personagens e mostra bem suas características, além de tor� nar cenas impossíveis reais, ajudando o leitor a entender cenários e situações. Ainda assim, para quem quer entrar no mundo de Thompson, o recomen� dável é que se comece pelo livro que, com certeza, é muito melhor.
Steadman e a caricatura dele mesmo
As mãos por trás de monstros e desenhos famosos Ralph Steadman conheceu Hunter Thompson em 1970, em sua primeira viagem aos Estados Unidos, feita a mando da revista Scalan’s para cobrir, junto ao escritor, a Kentucky Derby, famosa corrida de cavalos da cidade. Thompson queria escrever sobre a perversidade dos que assistem à corrida, e precisava de ilustrações que conseguissem capturar a humanidade em seu momento mais feio e assustador. Para isso, ele precisava do estilo de Steadman. Na época, o ilustrador nascido na Inglaterra, em 1936, trabalhava como cartunista para duas publicações britânicase já tinha lançado um livro. As imagens da reportagem de Thompson, The Kentucky Derby is Decadent & Depraved, eram um deboche que pretendia acabar com a farsa do Sonho Americano. O resultado foi o primeiro sinal do que seria o jornalismo gonzo. Steadman afirma que esse estilo já fazia parte dele e não foi criado com Thompson. O ilustrador estava apenas esperando o momento certo para que todas as coisas estranhas que passavam pela sua cabeça fossem divulgadas. Ele havia notado os traços esquizofrênicos do gonzo em seus desenhos e sabia que um dia eles seriam menos discretos. Tudo o que ele fazia vinha de seu subconsciente, mas com uma aparência de conformidade, escondendo o espírito gonzo que já estava ali. A cobertura da corrida foi o primeiro resultado da parceria Steadman-Thompson, que durou 35 anos. Grande parte de seus trabalhos foram artigos para revistas, que, como Medo e delírio em Las Vegas, viraram livro. Steadman ficou muito conhecido após sua participação nas publicações de Thompson, mas é famoso por muito mais. Steadman ilustrou várias edições das revistas Rolling Stone e Vanity Fair e livros como A revolução dos bichos, de George Orwell, Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol e A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, além dos livros de sua autoria, como The Joke’s Over, memórias de sua relação com Thompson, após sua morte.
“Numa cidade repleta de loucos de pedra, ninguém percebe quando alguém está louco de ácido”