






Esta história é um início, um desafio e uma tentativa de alguém que nunca escreveu um livro colocar suas ideias no papel. Desde sempre, fui cativada pelo encanto das histórias fantasmagóricas, especialmente aquelas que habitam o universo infantil, e hoje decidi desafiarme a trazer uma dessas narrativas à vida.
No entanto, este livro não é inteiramente meu, ele também foi concebido a partir das ideias de Raquel Gomes Ferreira e Letícia Lopes Briseno, duas artistas brilhantes que tenho o prazer de conhecer durante minha vida inteira. Meninas, eu sinceramente espero que vocês tenham gostado deste trabalho. Amo vocês!
Em um salão imponente, porém um tanto peculiar, havia um candelabro de cristal reluzindo no teto alto, paredes decoradas com tapeçarias e retratos antigos, e uma sensação de que o assoalho guardava segredos. No centro do salão, um grupo dançava em um movimento fluido, porém desprovido de alegria ou prazer. Uma angústia pairava no ar, uma névoa densa de desilusão que não se dissipava.
Os presentes naquele salão não tinham a menor lembrança de como o baile havia começado, nem o motivo para prosseguirem. Em silêncio, moviam-se em uma coreografia majestosamente coordenada, como se estivessem sob o efeito de um poderoso encanto. Pois estavam, temo dizer, presos em um transe inexplicável que os mantinha cativos naquela dança sem fim.
Enquanto isso, duas crianças corriam pelo salão, alheias ao que as cercava, sem se dar conta da atmosfera sombria. Elas riam e brincavam, perseguindo-se pelo espaço vazio. Os fantasmas dos antigos moradores do casarão soltavam tristonhos lamentos de protesto, tentando chamar a atenção das meninas, mas em vão. Presos àquele lugar por um motivo desconhecido, os espíritos nunca haviam partido, e agora observavam com esperança aquelas duas crianças.
Enquanto o som da música desafinada ecoava pelo salão, Maria e Joaquina corriam incansavelmente, ignorando o som que os fantasmas evocavam. Inocentes e corajosas, elas se tornaram uma luz brilhante naquela escuridão, a única esperança de que a dança medonha pudesse, enfim, chegar ao seu desfecho.
Nos arredores do vilarejo, havia uma pequena e estranha casa que despertava muita curiosidade. Ela era antiga e estava sempre fechada, mas todos na vila sabiam que ali morava a Sra. Gonzaga, uma senhora que tinha fama de ser uma feiticeira. Os rumores que eram contados sobre ela eram assustadores, mas muito pouco confiáveis.
Certo dia, dois lenhadores chegaram ao vilarejo e alegaram ter visto duas crianças na casa da Sra. Gonzaga, o que deixou todos perplexos. Os boatos começaram a se espalhar rapidamente pela vila, e muitos acreditavam que a velha senhora havia sequestrado as meninas. Afinal, todos sabiam que a Sra. Gonzaga não tinha filhos.
No entanto, todos estavam equivocados, pois eram as meninas que haviam se apropriado daquela antiga casa. Maria e Joaquina foram enviadas para a residência de sua tia-avó após a perda dos pais. No início, sentiram-se assustadas com a reputação dela, mas logo descobriram que ela era apenas uma senhora excêntrica!
As meninas se adaptaram bem à vida no campo. Elas plantavam e colhiam somente o que lhes interessava, costuravam exclusivamente para suas bonecas, dançavam e cantavam terrivelmente mal e, quando lhes convinha, aprendiam sobre os velhos contos e praticavam bruxaria, tudo por pura diversão. A Sra. Gonzaga as ensinava tudo o que sabia sobre ervas, poções e feitiços, e as meninas adoravam aprender com ela.
E foi assim, durante anos...
Com o passar das estações, a Sra. Gonzaga caiu enferma e mesmo com seus vastos conhecimentos medicinais, não conseguia identificar a doença que a atormentava. Assombrada, ela decidiu procurar um médico que lhe informou sobre as dificuldades enfrentadas pelo hospital local e aconselhou-a a buscar tratamento na capital. No entanto, o doutor temia que os custos e cuidados fossem inalcançáveis para a Sra. Gonzaga.
Maria e Joaquina ouviram as perturbadoras notícias sobre a saúde da sua tia-avó e temeram perder a única figura familiar que lhes restava e serem entregues a um orfanato. Determinadas a salvar sua tia-avó, as meninas engendraram um plano para conseguir o dinheiro necessário para pagar o médico. Então, com corações determinados, as jovens decidiram arquitetar sua volta ao pequeno palácio azul.
Há pouco mais de cem anos, a família Salazar era reconhecida como uma das mais prósperas e abastadas da alta sociedade brasileira. Entretanto, ao longo dos anos, devido à irresponsabilidade e corrupção de seus patriarcas, Maria de Lourdes e sua irmã Joaquina eram as últimas herdeiras de uma família que estava prestes a desaparecer. O pequeno casarão em que viviam já havia sido habitado por sua avó Valquíria, que segundo a mãe das meninas, havia desatinado. Por disso, a Sra. Salazar se recusou a deixar a casa, fazendo com que as meninas morassem lá por alguns anos.
Todavia, a imponente mansão da família Salazar era conhecida por ser assombrada. Acredita-se que, em tempos remotos, a casa ostentava uma fachada verde esmeralda, símbolo do poder e da fortuna da família. Contudo, à medida que os anos passaram e a família entrou em declínio, a casa pareceu adoecer e sua cor se transformou em um azul pálido, refletindo a tristeza e a amargura de seus antigos moradores.
Após a partida das meninas, inúmeros rumores começaram a circular sobre o destino da antiga mansão Salazar. Alguns alegavam que ladrões e malfeitores haviam invadido a casa em busca de tesouros, mas que jamais haviam sido vistos novamente. As explicações para tal mistério eram divergentes: alguns acreditavam que a casa era um labirinto sem fim, outros que os fantasmas da família Salazar caçavam qualquer um que ousasse invadir sua propriedade. No entanto, o boato mais intrigante afirmava que aqueles que entravam na casa ficavam tão encantados com a beleza e grandiosidade do palácio que nunca mais queriam deixá-lo.
Embora estivessem aterrorizadas, Maria e Joaquina estavam decididas a encontrar uma forma de pagar pelo tratamento médico de sua tia. Mesmo com medo, elas precisavam procurar pelas jóias que a família Salazar supostamente havia deixado para trás.
Elas planejaram invadir o pequeno palácio azul no domingo à noite, para pegar algumas jóias ou qualquer objeto de valor que pudesse ser usado para quitar as dívidas médicas da Sra. Gonzaga. Se não lhes falhava a memória, a casa tinha uma tradição enraizada em suas paredes. Todo segundo domingo as portas do palacete abriam-se para receber toda a burguesia da redondeza, isto começava no pôr do sol e terminava à meia-noite, quando as portas eram magicamente trancadas novamente. Sem terem a chave da casa, as meninas enxergaram nessa tradição a única oportunidade de adentrar o casarão.
Maria vestiu suas roupas mais quentes e buscou alguns itens essenciais, incluindo sua lamparina favorita, velas, um relógio, algum pedaço de bolo e um bocado de leite. Mas o que mais chamava a atenção era o colar de sua mãe, feito de turmalina negra, que funcionava tanto como amuleto quanto como uma lembrança preciosa. O presente foi dado por seu pai, despretensiosamente, como forma de cortejar sua mãe. Ele não acreditava que Fátima Salazar aceitaria, mas ela o fez. Agora, Maria carregava consigo esse modesto colar, lembrando-se das palavras de sua mãe: "quando vivemos cercados de tesouros, esquecemo-nos das coisas que têm valor, meu bem".
Inicialmente, as irmãs queriam embarcar juntas nessa aventura, porém, temendo que sua tia-avó pudesse sofrer algum episódio durante sua ausência, Joaquina optou por ficar em casa com ela.
temendo que sua tia-avó pudesse sofrer algum episódio durante sua ausência, Joaquina optou por ficar em casa com ela. Além disso, alguém precisaria encobrir temporariamente a partida de Maria. Desse modo, após envolver sua irmã em um abraço apertado, Maria partiu para sua aventura!
Foi estranhamente fácil chegar à mansão.
Maria havia se esquecido do trajeto, mas a casa situava-se a algumas ruas depois da praça da Matriz. E como hoje era dia de procissão, as ruas estavam todas enfeitadas com guirlandas de três Marias e fitas coloridas. Havia centenas de pessoas conversando na calçada e indo e vindo da igreja. Era um dia agradável de primavera, nada apropriado para uma aventura numa mansão mal-assombrada.
Maria se sentou na rua empoeirada, observando os pedestres apreensivos que passavam pela casa. Aqueles que ousavam falar com ela a advertiram para sair antes das seis, já que era o segundo domingo do mês. Mas, Maria permanecia firme, alegando que apenas descansava os pés antes de continuar sua jornada. Embora ninguém acreditasse em suas palavras, todos sabiam que era impossível persuadir uma criança determinada.
E quando o sol começou a se pôr e a escuridão tomou conta da rua, Maria não se moveu. Assim que os sinos da matriz bateram, as portas da casa se abriram. O ranger das madeiras era tão familiar que o primeiro sentimento que arrebatou seu corpo não foi medo, mas saudade. Saudade de sua mãe e de seu pai, que já não estavam ali para recebê-la.
Entretanto, quando o som das madeiras cessou e começou a tocar aquela estranha música de vitrola, o segundo sentimento que se alastrou por seu corpo como um veneno, foi o medo.
Ela sabia que estava sozinha naquela casa assombrada e que precisaria encontrar coragem para enfrentar o desconhecido à frente.
Maria já havia se perdido inúmeras vezes naqueles corredores sem fim. Por preocupação, ou superstição, seu pai havia desenhado junto com as meninas algumas instruções nas paredes e pilastras. Alguns diziam quais corredores entrar ou não entrar, como voltar para o salão principal, onde encontrar a escada para a cozinha, o que fazer para chegar ao quarto da vovó Valquíria ou à suíte de seus pais.
Apesar dos anos passados, Maria entendia bem aquelas instruções e ficou grata por seu pai ter usado as tintas a óleo que pertenciam à sua mãe. As lembranças da mãe ainda estavam presentes naquela casa e ajudariam a confrontar aquele labirinto.
Maria caminhava em direção ao antigo quarto de sua avó Valquíria, em passos cuidadosos e lentos. O casarão, outrora grandioso, agora estava em ruínas e os corredores ecoavam com sua respiração pesada.
Ao adentrar o grande salão principal, Maria se deparou com uma cena que a fez parar de supetão. Fantasmas moviam-se incansavelmente ao som de uma música fúnebre, rodopiando majestosamente em um ritmo tão fluido que hipnotizou a jovem. Ela não pôde deixar de se sentir atraída pelo encanto macabro daqueles seres que, mesmo após a morte, ainda possuíam tamanha elegância e graciosidade. Mas, para sua sorte, seu estômago roncou alto, interrompendo o encanto momentâneo. Maria se deu conta de que estava faminta e pegou um pedaço de bolo que havia guardado na bolsa.
Maria continuava sua jornada pelos corredores do castelo, passando por diferentes cenas fantasmagóricas. Ao se aproximar da escada que levava aos quartos, avistou dois fantasmas enamorados, cabisbaixos e tristes. Sua presença não parecia ser notada pelos dois, que continuavam a se lamentar em silêncio. No primeiro quarto à esquerda, ela deparou-se com outro fantasma, contando tostões imaginários em um canto escuro. Já no segundo quarto à direita, acabou trombando com outros fantasmas, que discutiam guerras que sequer vieram a existir. Todos pareciam melancólicos e esquecidos, presos a uma vida que já não mais existia.
Mas, o que verdadeiramente preocupava Maria era a falta de riquezas que pudessem ajudá-la a pagar as despesas hospitalares.
Ela revistou cada canto dos quartos em busca de algo de valor, mas nada encontrou além de objetos empoeirados e móveis velhos. A jovem sabia que precisaria buscar outras alternativas para conseguir o dinheiro necessário e, com isso em mente, seguiu adiante.
Ao adentrar o último aposento do corredor, Maria se deparou com sua avó, sentada em uma cadeira de balanço, costurando um vestido de noiva. Era peculiar, os fantasmas não tinham uma forma muito clara, mas ainda era possível diferenciar um do outro. A jovem sentou-se ao lado da cama, trocou a vela de sua lamparina e abriu sua sacola para comer um pão de queijo. Ao oferecer um pouco de leite para sua avó, recebeu um lento balançar de cabeça em recusa.
Curiosa, Maria questionou o que estava sendo costurado e a resposta de sua avó a surpreendeu. "O vestido de casamento da sua mãe", disse ela, deixando a jovem confusa. "Mas mamãe já se casou", retrucou Maria. "Com algum barão da redondeza?", perguntou Valquíria. "Não, papai era carpinteiro", esclareceu a jovem, sem entender aonde a avó queria chegar.
Então, Maria decidiu pedir ajuda à sua avó. "Vó, a senhora tem alguma jóia para me emprestar? A tia avó está muito doente e precisamos de algumas jóias para pagar as despesas médicas", disse ela. Mas a resposta de Valquíria não foi a esperada. "Querida, nossa família não tem posse alguma. Seu avô sumiu com o dote de sua mãe e a única coisa que restou foi a casa", revelou ela. Ao perguntar se havia algo de valor na casa, a resposta foi negativa mais uma vez. "Não, não há nada. Todos os ladrões que invadiram essa casa saíram descontentes e insatisfeitos. Há algumas gerações nossa família vive só de nome e aparência...", explicou Valquíria. Maria caiu em lágrimas. A jovem sentiu-se completamente desamparada, como se a última esperança tivesse sido esvaziada de sua alma. Chorou copiosamente, como se todas as suas lágrimas fossem inundar a casa, sem saber o que poderia fazer para salvar sua tia.
No meio desse tempo, a avó de Maria acariciava sua cabeça. Não era possível sentir o toque, mas Maria ficou grata pelo gesto. Quando o décimo sino ecoou, a menina se ergueu de sobressalto.
"Preciso partir. Não posso perder mais tempo. Tenho de encontrar outra maneira de salvar a Sra. Gonzaga", disse Maria ao levantar-se. Sua avó ajustou sua postura e por um momento parou em um pensamento antes de dizer: "É curioso como aqueles com menos são frequentemente os mais inclinados a dar mais, não é mesmo? Venha, criança, venha ver o que podemos fazer para ajudá-la."
A avó Valquíria levantou-se e dirigiu-se ao salão principal. Para acompanhá-la, Maria teve que apressar-se, pois, mesmo flutuando suavemente, sua avó atravessava paredes. Enquanto seguia, Valquíria chamava a atenção de todos os fantasmas que cruzava, instigando-os a descer até o salão. A ação deixou todos um tanto perplexos, mas eles obedeceram às ordens sem hesitar.
Ao chegarem ao salão, Valquíria parou a música que saía da vitrola. Todos foram surpreendidos, inclusive Maria, que estava absorta observando os desenhos nas paredes.
"Já chega!", berrou sua avó. "Estamos cansados de sustentar essa triste ilusão de nobreza. Poucos de nós foram genuinamente nobres em vida. Poucos lutaram por causas dignas e justas. Poucos de nós se arriscaram por amor. E essa criança está fazendo isso agora! Portanto, exijo que todos os presentes aqui me auxiliem a encontrar qualquer objeto de valor que possa ajudá-la a custear as despesas médicas de Iracema", disse ela, batendo ou tentando bater seus pés fantasmagóricos no chão.
valor que possa ajudá-la a custear as despesas médicas de Iracema", disse ela, batendo ou tentando bater seus pés fantasmagóricos no chão.
Eles não alcançavam, todavia. Mas Maria olhou para ela confusa ao dizer: "Quem é Iracema?" Valquíria se abaixou quando disse: "Sua tiaavó, Iracema Gonzaga, minha querida! Vamos, despertem, pois esta menina tem pouco tempo para sair daqui".
Os fantasmas começaram a flutuar freneticamente pelo pequeno palácio azul. Vasculharam gavetas, exploraram o telhado, percorreram os antigos encanamentos da casa e inspecionaram cada canto do jardim em busca de algo. Maria também correu de um lado para o outro, determinada a encontrar algo de valor que pudesse contribuir.
Pouco tempo depois, diversos fantasmas retornaram ao salão, todos igualmente descontentes, pois nenhum deles havia encontrado algo de valor para ajudar a menina. Com a cabeça baixa, Maria saboreou seu último pedaço de bolo enquanto contemplava as tintas deixadas por sua mãe, que encontrara durante a busca. No entanto, quando menos esperava, um dos fantasmas, um senhor pequenino, não muito maior do que ela, apareceu com uma pilha de papéis antigos.
Joaquim Salazar, trisavô de Maria e Joaquina, foi quem os trouxe. "Talvez isso seja útil!" afirmou o fantasma. Maria e Valquíria perguntaram simultaneamente: "O que é isso?" Sr. Joaquim disse: "São os documentos da casa!" Valquíria estranhou e olhou os papéis desconfiada: "Eu acreditava que meu marido os tivesse levado consigo quando fugiu com o dote de minha filha." Antônio Salazar, tetravô de Maria, apareceu nessa hora. Ele também era um fantasma de uma aparência peculiar, "Eu os escondi", disse ainda contando as moedas com fervor. Três outros fantasmas, igualmente curiosos, afirmaram: "Ele planejava vender a casa por algumas moedas, não podíamos permitir isso."
Maria tentou abraçá-los, mas, lamentavelmente, acabou caindo de rosto no chão.
Maria não conseguia expressar sua alegria em palavras, mas tentou: "Muito, muito, muito obrigada pela ajuda", disse a menina, com os olhos marejados. "Isso certamente auxiliará a pagar as despesas da minha tia", agradeceu novamente, com voz emocionada.
Todos os fantasmas ali presentes disseram em conjunto: "Não há necessidade de agradecer, criança. Esperamos que tudo corra bem para sua tia Iracema".
Maria voltou-se para sua avó Valquíria, com os olhos ainda úmidos de lágrimas, e agradeceu novamente. Quando o sino soou meia-noite, Maria apressou-se em direção à porta que se fechava lentamente. Ao sair correndo, acabou rolando pelo chão. Ao olhar novamente para a casa, notou um tom de azul intrigante refletido nas janelas, lembrando as luzes das velas, embora tão pálido que não poderia ser isso.
Quando virou o olhar para trás, deparou-se com sua tia-avó e sua irmã, ambas olhando para ela com um misto de desespero, raiva e preocupação. No entanto, antes que pudessem começar a repreensão, Maria correu até elas, abraçando-as com força, e exclamou: "Eles me ajudaram... eu... eles conseguiram os documentos da casa!
O acordo estabelecido com o prefeito da cidade e o doutor previa que a casa da família Salazar seria transformada em um hospital para toda a região; em contrapartida, a Senhora Gonzaga recebia tratamento ali mesmo, sem gastar um único tostão.
O tratamento foi muito bem-sucedido, e a Sra. Salazar viveu muitos anos, onde continuou seus estudos, dançou muito e contou centenas de histórias, algumas que as meninas acreditavam ser invencionices, mas não tinham como provar. Tanto Maria quanto Joaquina cresceram para se tornarem mulheres tão excêntricas quanto sua tia-avó; ambas foram trabalhar no hospital quando atingiram a vida adulta. E mesmo que os pacientes as vissem conversar com as paredes constantemente, ninguém as estranhava.
Pois muitos acreditavam que a casa, ou melhor, o hospital, ainda estava assombrado, mas ninguém mais tinha medo de frequentá-lo. As pálidas paredes azuis ganharam um tom lilás, e as buganvílias que aparentemente estavam mortas na entrada agora floresciam, cada vez mais vibrantes e belas. As portas do casarão ainda se abriam nos segundos domingos, e todos eram convidados a entrar no salão principal e dançar; porém, desta vez, era por puro e sincero prazer. A atmosfera sombria deu lugar a uma aura de esperança e renovação, enquanto a casa, outrora assombrada, tornou-se um lugar de cura e alegria para todos na região.
A decadência dos homens acontece ao se esquecerem do que realmente tem valor...
A família de Maria de Lourdes Salazar sabia disso muito bem. Há quase cem anos, os Salazar eram uma das famílias mais proeminentes e ricas da alta sociedade brasileira. Contudo, ao longo do tempo, devido às ações irresponsáveis e corruptas de seus patriarcas, Maria de Lourdes e sua irmã Joaquina tornaram-se as últimas representantes de uma família à beira do esquecimento. Seus pais faleceram há alguns anos, deixando-as sob os cuidados de sua tia-avó.
No entanto, por mais tranquilas que as coisas parecessem estar, infortúnios ainda iriam assombrar as últimas remanescentes desta família.