Reescrevendo apagando a história monet 146 maio2015

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por Henrique Januario, Lucas Alencar, Raquel Temistocles e Talita Mônaco

Conhecimento é poder, já diria o

filósofo inglês Francis Bacon. Não é de hoje que a informação é represada por razões políticas, morais ou religiosas. Sob sistemas A PARTIR DO DIA 24, autoritários, uma das principais vítimas é a cultura, que perde sua DOMINGOS, 21H, HBO, 171 E 671 (HD) função de servir como veículo de expressão e sensibilização das pessoas. Se engana quem pensa que as restrições começaram e terminaram no século 20. Por incrível que pareça, censura e democracia são filhos da mesma época, a Grécia Antiga. A partir do momento que surge um governo representando uma ideologia como verdade absoluta, vozes dissonantes são consideradas subversivas e passíveis de punição. Conceito defendido até por Platão como um meio de manter o sistema e que deu início a uma série de períodos na História em que o acesso à informação foi tratado com mãos de ferro. Magnífica 70

REAÇA TRANSGRESSOR > Um censor com alma de artista. Essa é uma das premissas do seriado Magnífica 70, que conta a história de Vicente, homem na casa dos 40 anos, casado com a filha de um general do Exército brasileiro, em pleno Regime Militar (1964-85), que trabalha censurando filmes para o governo. A vida regrada do censor vira do avesso quando assiste à atriz Dora na pornochanchada A Devassa da Estudante, que o faz reviver velhas e obscenas memórias enterradas em seu íntimo. Movido pelo estranho amor pela moça e pela reprimida paixão pela arte, Vicente irá encarar o dilema de censurar e dirigir filmes da famigerada Boca do Lixo, região no centro de São Paulo conhecida pela produção de cinema erótico e subversivo.

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Restrição de Conteúdo Quando o corte de informação foi personagem principal no cinema FAHRENHEIT 451 (1966) Os bombeiros causam incêndios em uma sociedade em que livros são proibidos, assim como opiniões e pensamentos próprios no filme dirigido por François Truffaut. Os combatentes do fogo são, na verdade, incineradores de conhecimento, cuja função primordial é dar cabo a todo e qualquer exemplar carregado por indivíduos transgressores.

DIA 14, QUINTA, 0H20, TC CULT, 166 E 666 (HD)

ESCOLA DO RISO (2004) No Japão pré-Segunda Guerra Mundial, um censor do governo tenta convencer o dramaturgo de uma trupe teatral a modificar o texto da comédia que está escrevendo. O embate entre a atividade criativa e a destrutiva é o que dá o tom da produção, no conflito entre um artista que faz humor e um funcionário burocrata praticamente incapaz de sorrir. JOGO DAS DECAPITAÇÕES (2013) Estudante de mestrado acaba se envolvendo com a história de um artista controverso que faleceu em um presídio, onde pagava pena pelo assassinato de sua esposa. O criminoso dirigiu um único filme em sua carreira e o material não só foi censurado pelo regime militar como também está desaparecido.

DIA 13, QUARTA, 22H, CANAL BRASIL, 150 E 650 (HD)

Vale a pena fazer de novo – Betty Faria e Lima Duarte na primeira versão de Roque Santeiro, em 1975, novela de Dias Gomes, que foi vetada após a Censura Federal descobrir que era uma adaptação de uma peça do mesmo autor que já havia sido censurada anteriormente. Dez anos depois, a novela foi liberada para exbição e foi feita uma nova versão com Regina Duarte

Outro momento histórico em que as pessoas precisavam medir o que diziam foi a Idade Média. No período em que a Igreja exercia grande influência, blasfemar ou ir contra os dogmas era um crime mortal. A entidade responsável pelo controle ideológico foi o Tribunal da Santa Inquisição, que prezava pela manutenção das doutrinas e da unidade da Igreja Católica. Para se ter uma ideia, os textos de Nostradamus ganharam um maior aspecto enigmático ao serem escritos em francês arcaico, grego, latim e provençal de maneira codificada e subjetiva para garantir que a aura mística passasse despercebida pelos fiscais religiosos. Já Galileu Galilei foi obrigado a admitir que sua teoria do heliocentrismo estava incorreta e que o planeta Terra era o centro do universo para não terminar na fogueira como tantos outros astrônomos. Séculos depois, a restrição de conteúdo também chegou à cultura de massa nos EUA e no Brasil. Nos anos 1920, Hollywood começou a formatar uma cartilha de bons costumes para limpar a imagem de Terra do Pecado que tinha com o resto do território americano. O texto passou a ser chamado de Código Hayes, em homenagem ao advogado que instituiu os princípios morais e a autocensura no cinema americano. No Brasil, durante a Era Vargas, o escritor baiano Jorge Amado teve seus livros censurados por serem considerados comunistas. Na mesma época, os sambistas da periferia carioca, como Noel Rosa, também sofreram interferência em suas obras na época. Parte deles tinha suas músicas vetadas, enquanto uma parcela de artistas era paga para versar sobre os costumes incentivados pelos governo. Mas foi durante o Regime Militar que os brasileiros sentiram toda a força da mordaça do autoritarismo. Em um primeiro momento as produções cinematográficas, por exemplo, sofriam interferência de ordem moral, precisando retirar cenas inteiras por causa de um simples abraço considerado inapropriado. Depois vieram as medi-

FOTOS: DIVULGAÇÃO E REPRODUÇÃO

1984 (1984) Na adaptação do livro de George Orwell, Winston Smith (o ator John Hurt) trabalha reescrevendo o passado em um país regido por um governo totalitário que altera a forma como os acontecimentos são relatados. Restringe até mesmo o vocabulário, para reduzir as chances de um levante popular que deponha o status quo.

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das impositivas que acompanharam o advento do AI-5 e resultaram em artistas presos e exilados, novelas, filmes e peças teatrais proibidos e notícias ocultadas e manipuladas. Essa época é explorada na série Magnifica 70, protagonizada por Marcos Winter. Com a redemocratização, em 1985, a censura deixou de ser uma arma política contra a liberdade de expressão. O que não se esperava é que ela ainda estaria presente, só que de outras maneiras.

SÉCULO 21 Modernidade, tecnologia, liberdade para pensar, agir e contestar. No cinema, é a época de extrapolar em relação à sexualidade, às drogas e mostrar uma sociedade sem pudores. Quer dizer, desde que não pise no calo de grandes ditadores, como é o caso do filme A Entrevista. Em um ato de autocensura, o filme protagonizado por James Franco e Seth Rogen (saiba mais no boxe ao lado) teve sua distribuição cancelada após um ataque cibernético aos servidores da Sony Pictures. Depois de muita pressão popular – que chegou a colocar a inédita nota 10 em um site especializado antes mesmo do filme conseguir ser exibido – e até do presidente Barack Obama, o estúdio engoliu o medo e lançou a produção nos cinemas e em outros meios.

Seu mestre falou – Grande Otelo viveu o mais famoso anti-herói da literatura brasileira, Macunaíma (1969), no filme de Joaquim Pedro de Andrade, que teve diversas cenas alteradas por censores, como pode ser visto no documento ao lado

Além do medo, o dinheiro também é capaz de castrar ideias. No caso do filme Deadpool, que será lançado em 2016, os estúdios Marvel entraram em embate com o protagonista Ryan Reynolds porque queriam censurar o conteúdo a fim de diminuir a classificação indicativa e, assim, atrair mais público e conseguir mais bilheteria. O ator fez campanha e garantiu para os fãs que a indicação será, sim, de 18 anos e as cenas, consideradas impróprias, serão fieis às HQs. Pode até parecer que retrocedemos, mas, na verdade, a censura nunca saiu do nosso cotidiano. O governo não proíbe mais canções ou novelas, mas é só dar uma olhadinha nas redes sociais e perceber que não precisamos dele, agora somos censores de nós mesmos.

A comédia da discórdia A Entrevista, DISPONÍVEL NO NOW

S

eria mais uma comédia de Seth Rogen e James Franco, não fosse a recepção negativa por parte do governo norte-coreano, que gerou um incidente diplomático de proporções cinematográficas. Pudera, o mote de A Entrevista (2014), é a aventura de um jornalista sensacionalista e seu produtor em uma inédita oportunidade de gravar um bate-papo com o Líder Supremo da Coreia do Norte que acaba se transformando em uma missão secreta de assassinato da CIA. A produção acabou até virando arma de protesto. No início de abril, Lee Min-Bok, um ativista norte-coreano que saiu de seu país há 20 anos e vem lutando contra a ditadura vigente desde então, enviou balões de hélio para o território de Kin Jong-Un carregando DVDs do filme estrelado por Franco e Rogen, notas de dólar e panfletos contra o governo de Pyongyang. Lee recebeu um e-mail em represália, com ameaças do tipo “sua cabeça será esmagada pela clava de ferro da justiça” e “seus braços serão arrancados em pedaços pela adaga do julgamento”, caso continuasse com suas ações. Nunca uma comédia foi tão perigosa.

Bomba – O ditador norte-coreano finalmente encontra seu fim na cena mais polêmica do filme de Seth Rogen e James Franco

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