Contos do Absurdo #7

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índice Capa André Martuscelli do Amaral

Edição 07

..........................Pág. 04 Copa dos Infernos..........................e: Daniel Vardi Art Roteiro: Alexandre Winck ............................Pág. 13 Teatro de Sombras.......................... e: Igor Santos Roteiro : Alexandre Winck - Art ............................Pág. 22 Estilhaços...........................................heco - Ilustrações: Gilberto Queiroz Pac tos Conto de George dos San ............................Pág. 37 Djinn .- Primeira Parte................. por Alexandre Winck Conto de Márcio Jung adaptadoaral Arte: André Martuscelli do Am

Necromancer......Pág. 43 Licantropia - Segunda Parte - - Arte-final: Simião Roteiro e arte: Luciano Oliveira ............................Pág. 50 Scarllet Sokolova (entrevista) .......Moonshadow Fotografia s: Foto Texto: Alexandre Winck

mia....................Pág. 56 A Morte do Menino que Não Dor ões: Wellington ichirou Conto de Raphael Vidigal - Ilustraç hos - Parte 3........Pág. 65 Somnium, O Destruidor de Son do por Alexandre Winck pta ada Conto de André Roméro e-final e capa: David Santos Arte: Ronílson Caetano Leal - Art ...............................Pág. 71 Rito de Passagem............................. trações: Lauro Winck Ilus ck Conto de Alexandre Win ...........................Pág. 78 A Vingança das Sereias..................... ões: Johanna Gyarfas Conto de Nena Medeiros - Ilustraç ...............................Pág. 85 Royalties.............................................e: Gabriel Sossai Art ck Roteiro: Alexandre Win te 4........................Pág. Anjo Industrial - A Origem - Par e: Daniel Lucávis Roteiro: Alexandre Winck - Art

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Pin Ups

36 Pág. 55 ............................................................. Súcubo - Luciano Oliveira.............. g. 64 ........................................................Pá Salomão Ventura - Giorgio Galli g. 77 .......................................................Pá Minotauro - Alex Genaro............... ........Pág. 84 Edgar Franco ...................................

.................................................Pág. Rato Mutante - Carlos Henry..........

Lúcifer - Texto e arte :

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F UT EBOL & TERROR

C

urioso que futebol e o gênero terror se misturem tão pouco na ficção brasileira.

Os dois têm tudo a ver. O torcedor fica tenso durante cerca de 90 minutos, leva vários sustos, vê o jogador adversário como um monstro, principalmente quando dá um carrinho no artilheiro do seu time, o juiz é um cientista maluco que brinca de Deus e dita as leis do gramado a seu bel prazer. É um filme de terror e suspense perfeito. A Copa do Mundo é um épico de terror, com nações inteiras sendo colocadas à prova, como se o destino de seus povos dependesse do resultado dos jogos. Para o brasileiro, sem dúvida a última Copa proporcionou um espetáculo de horrores inimagináveis. O torcedor fanático e o fã de terror também têm muito em comum. Enquanto o torcedor sabe de cor escalações do seu time do coração, tem camisetas pôsteres e diversas outras tranqueiras do time em casa, vai a estádio torcer. quem é apaixonado por um monstro clássico sabe de cor quem participou dos filmes, seriados, quadrinhos, etc., também enche a casa de camisetas, pôsteres e outros cacarecos e vai a convenções de terror e sci-fi. Só que no Brasil se costuma dizer que o primeiro é um torcedor apaixonado e o segundo, um nerd maluco. O Brasil é o pais do futebol - ou costumava ser -, e também o pais do terror. O terror da violência, da injustiça social, da miséria, da corrupção, da impunidade. Pelo menos o terror da fantasia nos dá a possibilidade de uma catarse para os terrores cotidianos, de experimentá-los num mundo controlado por nossa imaginação. E, talvez, nos darmos conta de que eles não são invencíveis e nos sentirmos mais à vontade para encará-los. Alexandre Winck - Editor do Absurdo contato@contosdoabsurdo.com.br

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Pô, esse estádio ficou da hora mesmo!

CARACA!!!

No meu tempo mal e mal tinha um cara vendendo espetinho em estádio!

Custou uma fortuna e atrasou pra cacete, mas valeu a pena!

EBA! Uma taça com 7 bolas de chocolate!!

COPA COPA DOS DOS INFERNOS INFERNOS Dizem que na sala VIP tem tudo que um homem precisa. Poltrona, amendoim, cerveja...e muito mais!!!

Agora sim aprendi a gostar de futebol...

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Texto ALEXANDRE WINCK Arte DANIEL VARDI

Nossa, tudo coberto! Pode cair um temporal de fim de tarde que não dá nada!


Essa voz parece familiar...

Bem amigos da rede Gold Devil! Ué, tem locutor no estádio agora?

Esse é um jogo que promete muito! Teste pra cardíaco, hipertenso e cagões em geral!

Nesse momento, entra em campo o time dos doentes que não conseguiram leito nos hospitais públicos!

Mas que pôrra é essa?!

Cadê a Seleção, caralho?! Eu não paguei ingresso caro pra caralho pra ver...

QU’SSO!!!

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Agora, vamos conhecer a escalação do escrete canarinho anêmico!

Amélia Gouveia

Sofre de diabetes e hipertensão. Precisa de um monte de remédios que estão em falta nas farmácias do SUS... Sofre de leucemia. Está há dois anos na fila pra transplante de medula e já foi Passado duas vezes pra trás por pacientes com grana que pagaram propina...

DEFESA pegou HIV de uma agulha contaminada durantetransfusão de sangue. Agora há um mês não consegue receber o coquetel antiviral...

Tiago Lima

Washington da Silva

LATERAL

MEIO CAMPO

Este tem Alzheimer avançado e precisa de atenção 24 horas. A família não tem condição de cuidar dele, mas não consegue vaga em asilo...

Arquimedes Heveraldo

ATAQUE 6

Agora, é hora de conhecer os adversários do Brasil!


Ogro, o galã da equipe... Ciclope, com sua inigualável visão de jogo...

... E Orc. Esse é matador!

Troll, muito simpático e querido pelos companheiros...

Mas que lambança, amigo! O Brasil está levando um no começo do jogo??? Nunca vi nada igual em 100 anos de seleção!!!

Olha isso! O jogo tá tão fácil que o adversário faz firula!

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Isso é partida de Copa do Mundo, meu amigo! Tem que colocar o coração na ponta da chuteira!

Ele errou o golpe e o técnico não gostou!

Bom, tem um na ponta da espada, se isso serve de consolo...

Preparem o animal para entrar em campo!

SUBSTUIÇÃO!!! E o Ogro não gostou nada!!!

ARGHHH! VAI SE FUDER, TÉCNICO CHIFRUDO DO CARALHO!!!!

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OLHA O TAMANHO DA ENCRENCA!!!


O adversário acaba de gastar suas substituições! Agora eu quero ver!

Mas o Brasil não está entregue ainda! O jogo só acaba quando o juiz apita!

Teve até jogada nova chamada “mordidinha no ombro!!!!

Os adversários, mesmo sem um olho, estão jogando melhor que os brasileiros!!!

É isso, amigos! O Brasil jogou com garra, com vontade, mas hoje não era o seu dia!

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AAAHHHHHHH!!!

Os torcedores que pagaram uma grana pelos ingressos vão sair com o uniforme manchado...de sangue!!! eh! eh! eh!

Não é porque nossos bravos operários morreram nas obras que eles deixaram de servir o público!

Aproveitem bem...

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:0

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... Pois já estamos nos acréscimos!

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Mas nem tudo é derrota! Todos podem aproveitar as maravilhosas instalações e serviços dessa majestoso estádio reformado!

raken ce que o K ..mas pareo não concorda midiátic com isso!!! muito

..não vai sobrar pedra sobre pedra!!!

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HULK

FELIPテグ

FRED NEYM

AR

Bom, pode nテ」o ser um hospital ou uma escola... ... Mas nテ」o custou um tostテ」o pro contribuinte e ficou pronto rapidinho!

FIM

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teatro de sombras

roteiro: alexandre winck arte: Igor Santos

Hhhhmgh... Hhhhhhmghh...

NNNNGH!!!

KREEEEKK!!!!

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Além do trauma emocional, ela está um pouco desidratada, mas vai se recuperar.

Graças a Deus, chegamos antes que o filho da puta estuprasse a coitada.

De jeito nenhum íamos resolver esse caso sem a tua ajuda, Sheide.. Como fez isso? Um interrogatório de cinco minutos e você sabia que era ele.

Conheço bem o tipo. Já vi muito.

Sei que eu sou polícia, vejo cada merda todo dia... Mas tem coisas que não dá pra explicar. Descartamos o Telles logo no início da investigação. O cara tinha uma das fundações assistenciais mais respeitadas do Brasil.

Nem era esquema pra sonegar imposto.

Como um sujeito desses é pedófilo e maníaco homicida?

Isso, meu caro delegado... ... Não é nem a ponta do iceberg.

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Quinze anos atrás.

Acorda, Lúcio! Acorda! Fala baixo! Mamãe e papai já foram dormir!

Uããã... Beleza!

Hmmm... Já vai, já vai...

Teatrinho de sombras era nossa diversão favorita e secreta.

O Lúcio adorava, e eu era muito bom nisso.

Eu aprendia todas. Pesquisava na internet.

Engraçado é que eu mesmo quase não olhava pra elas. Curtia era ver a cara de embasbacado do meu irmão.

Procurava as mais complicadas.

Mas uma noite fiz uma muito difícil e não resisti.

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Até uns dois anos atrás, eu não dormia direito. Só agora entendo o porquê.

Não sei que sombra é essa. Não a criei.

Desde pequeno, eu ouvia uivos de fantasmas embaixo da cama.

Mas ela me revela a verdade.

Era meu irmão que os fazia escondido.

SEU FILHO DA PUTA!! SEU ESCROTO DA PÔRRA!!!

Ai, ai, ai! dO QUE CÊ TÁ FALANDO, PÔRRA?!

E voltava rapidi-

nho pra cama dele quando papai e mamãe vinham.

tÔ FALANDO DAQUILO AL...

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Que gritaria é essa aí no quarto?!

Foi só então que eu me toquei. Eu vi

mesmo? Ou foi só imaginação?

EU MIJAVA NA CAMA POR TUA CULPA!!!


Mas não. As visões ficaram cada vez mais frequentes.

Parece a cena perfeita de comercial de margarina, né?

Não pros meus olhos.

Meu pai tirou dinheiro demais da empresa. Vai botar fogo no prédio e dar golpe no seguro. Nosso pastor Eurípedes defende apaixonadamente a cura gay e abstinência sexual como única prevenção contra as DSTs.

Ele estupra meninos. Diz pra eles que a dor da penetração purifica o corpo.

Mamãe não sente mais nada por ele e tá de caso com o chefe e um colega. Dona Carlota completa a aposentadoria vendendo cocaína e ecstasy.

Já mandou matar clientes que não pagaram.

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Chega!! Não quero olhar!!

Me deixem em paz!!

Estou literalmente com medo da própria sombra.

Não aguento mais isso. Não quero ver ninguém. Nunca mais.

Tem mal e hipocrisia demais no mundo. Podridão demais. Ou sou eu que tô pirando.

Às vezes, parece que ando o dia inteiro na escuridão.

E se descobrir uma coisa horrível sobre mim mesmo? Algo que nem eu sabia?

Tudo preto? Meus olhos já não deviam estar acostumados com a escuridão?

Sim, o mundo está cheio de trevas, Sheide. É por isso que pessoas como você são necessárias. Mas que pôrra...

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Que-quem tá aí? Quem falou isso?


Você não está louco. O que você tem é um dom. Um talento muito raro.

Você é um leitor de sombras. Um agente da luz.

O dom de enxergar as trevas ocultas do ser humano. Aquelas que ele esconde dos outros, ou até de si mesmo.

Dom?!? Você chama de dom ter que ver todas essas coisas horríveis? Ouvir uma voz

que vem de lugar nenhum?!

A luz e as trevas não só fótons e matéria escura. São forças vivas e autoconscientes. Só não da forma como os seres humanos costumam perceber isso.

São a força bipolar que define o universo e precisa de equilíbrio.

Vocês não têm consciência disso, mas sentem. Sua mitologia está repleta de personificações da luz e das trevas.

Deus e o diabo. Anjos e demônios. Heróis e vilões.

Não quero ser agente de nada. Não quero esse talento horrível.

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“Lamento, garoto. Ter o dom não é uma escolha.” “Somente o que você decide fazer com ele.”

Assim, tornei-me um dos mais renomados especialistas mundiais em psicologia forense.

Meus resultados falam por si, mas meus métodos geram desconfiança entre policiais.

Como esse doido consegue?”

Precisou mesmo trocar essa lâmpada? Achei que a iluminação estivesse boa.

Técnica de interrogatório. Antiga, mas funciona.

“Quando interroga, sabe de cara quem é culpado. E ainda acha provas ocultas do nada!” “Não se iluda com o diploma. O cara é puro Só digo que observo detalhes: gestos instinto.” involuntários, linguagem corporal, inflexão da voz, expressões faciais.

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É uma meia-verdade.


Já meus relacionamentos são um desastre.

Perdi a conta de quantos namoros terminaram antes do primeiro encontro.

Pelo menos as mulheres dizem que sempre adivinho as fantasias delas e olho muito nos olhos.

Boa parte dos parentes e amigos com quem ainda falo são os que moram longe e só contato por internet e celular.

Pelo menos algumas sabem mentir com eles.

Aprendi a amar os dias nublados.

É uma vida difícil, mas tem seu lado bom.

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ESTILHAÇOS conto de george dos santos pacheco

ilustrações: gilberto queiroz

07 de outubro de 1976

A

casa estava abandonada havia alguns meses. A grama do jardim ia alta, e resvalaria nas canelas de quem ousasse caminhar sobre ela. Ninguém o faria. Toda a casa estava imunda, havia lixo, ratos e insetos que se alimentam de todo o tipo de porcaria, talvez atraídos pelo odor de carniça que empesteava o ambiente. As paredes de um dos quartos ainda apresentavam marcas de sangue. As folhas das árvores se acumulavam no interior ao entrar pelas janelas abertas. Por fora, o reboco caía e deixava mais feio ainda aquilo que um dia foi lar de alguém. Não era, de maneira alguma, um lugar agradável... A essência do que havia acontecido ali estava impregnada em tudo. As pessoas evitavam olhar para o local, sobretudo à noite. As mães que porventura passassem ali com seus filhos atravessavam a rua para o lado oposto. E não era para menos: aquela era a casa do maldito Jonas Barboza. Um homem de cerca de trinta anos, sozinho, não tinha família, nem filhos. Não era uma pessoa bonita. Seus dentes eram bastante tortos, as sobrancelhas grossas e suas orelhas possuíam um tamanho desproporcional ao de sua cabeça. Seus olhos eram tristonhos... Não era muito sociável, mas adorava crianças, sendo comum vê-lo dando balas para os pequeninos que por ali passavam. Não se sabia com o que trabalhava, mas saía lá pelas dez da manhã e só voltava às quatro da tarde, como muitos que trabalhavam no centro da cidade. A vila de Santa Margarida era a mais tranquila daquela cercania, de casas distantes umas das outras. Contudo, as coisas começaram a mudar por ali. Mulheres estavam desaparecendo, misteriosamente, e isso logo se tornou assunto de telejornal. Cartazes foram colocados nos postes, alguns ofereciam até recompensas, mas foram ineficazes. Não havia pista alguma do paradeiro das mulheres...

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Os próprios moradores, na ausência da força policial, começaram a procurar as mulheres, armados de espingardas, pela mata da região. Os corpos foram sendo encontrados, na medida em que mais mulheres desapareciam. Tinham marcas de tortura e, em todos os casos, notava-se o detalhe nefasto da ausência de seus olhos. Era terrivelmente macabro. Buscavam um culpado, um motivo, alguém para condenar... Certo dia, Jonas voltou para casa mais tarde do que de costume, umas seis horas da tarde. Uma multidão o esperava do lado de fora, na entrada de sua casa, com pedaços de madeira nas mãos, insultando-o. “Monstro!”, “Assassino!”, gritavam. Pouco antes, alguns haviam entrado em sua casa e descoberto o corpo de uma mulher, recém-assassinada. O povo estava ensandecido. A morte seria pouco para um monstro como Jonas Barboza...Tentou fugir, mas não o deixaram. Seguraram-no e amarraram suas mãos e pés, levando-o para o interior da casa.

do, implorava clemência, mas o povo não o escutou. Ele precisava pagar pelos seus atos e ia pagar ali mesmo; não havia a necessidade de polícia ou juiz. Eles mesmos julgariam. Homens e mulheres o lincharam com vergas de madeira. Ele não teve chance alguma. Rapidamente, seus gritos cessaram, mas foi bem depois que pararam de bater. A polícia chegou ao local, mas já era tarde. A multidão enfurecida havia matado o maldito Jonas Barboza... E era disso tudo que Miguel recordava ao observar a casa, pelo outro lado da rua. O dia em que sua esposa foi cruelmente assassinada, como gado para abate. Cachaça era muito pouco para esquecer. Todos os dias seus fantasmas o visitavam, lembranças que ele jamais gostaria de ter; desejava esquecer, mas era impossível. Uma criança sempre vinha lançar os braços em volta de seu pescoço, chamando-lhe por pai. Eles não tiveram tempo de ter filhos, estavam casados recentemente, mas ele cria com todas as suas forças que a mulher estava grávida. Esta lhe preparava a comida e depois vinha lhe recepcionar, com um carinho que ele não conhecia. Lembranças, sonhos... tudo destruído, estilhaçado por Jonas, o maldito!

Lembranças, sonhos... tudo destruído, estilhaçado por Jonas, o maldito!

Jurava inocência o tempo todo e esta foi uma das poucas vezes em que se ouviu sua voz. Derrubaram-no ao chão e lhe amarraram um saco de pano na cabeça, o nó comprimia violentamente sua As lágrimas minavam com forgarganta. Ele se debatia, sufocan- ça, por mais que tentasse contê-

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las, não conseguia. Nãohavia participado do linchamento e a vontade de fazer justiça ainda pulsava em suas veias. Saiu dali e foi até em casa buscar um machado, com o qual pretendia destruir toda lembrança do que houve ali, não restaria pedra sobre pedra.

que ela se abrisse ao meio, entretanto, revelando as trevas em que seu interior estava imerso, contra as quais a lua cheia ousava lutar. O vento frio e forte agredia a pele de Miguel e espalhava as folhas secas depositadas no interior da casa. Diminutas contas vermelhas brilhavam na penumbra, os Assim como o arcanjo, expulsaria roedores lhe faziam companhia. aquele demônio dali! Algumas pedras eram atiradas na Caminhou passos precisos e deci- casa em forma de protesto, e os didos em direção à casa do mons- cacos de vidro estalavam sob seus tro. Ninguém o viu, já passava das pés enquanto caminhava. O cheidez, e gente de bem a essa hora já ro nauseabundo impregnou-lhe tinha se recolhido. A grama bei- as narinas e ele sentiu necessijava-lhe as pernas de uma forma dade de cuspir, como reação pela quase libidinosa e a marca de seus fedentina. pés, e do machado, que arrastava, deixaram um rastro estranho no – Seu merda! – esbravejou ao dar uma mato, cujas folhas pareciam de- machadada na parede, soluçando de dos buscando agarrá-los... Parou chorar. ofegante em frente à – Foi muito hoporta da casa, com os mem pra fazer o olhos embotados, que ele tentava limpar, sem que fez e onde está você agora? sucesso, com as No Inferno! É lá costas da mão. que você está, seu – Desgraçado! – grimaldito! Pois agotou ao golpear violenra eu vou destruir tamente o machado na tudo isso aqui e porta. Foi necessário será como se nunum segundo golpe para ca tivesse existido!

Assim como o arcanjo, expulsaria aquele demônio dali!

“Foi muito homem pra fazer o que fez e onde está você agora? No inferno!”

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Você e essa casa nojenta... Se quiser, venha aqui e me impeça, seu filho da puta! – concluiu, aplicando outro golpe, dessa vez em uma das janelas, ou o que restara dela. Ergueu o machado outra vez, mas foi derrubado ao chão com uma forte pancada nas costas. A ferramenta caiu também e escorregou pelo solo, parando em um canto da sala. Levantou-se com muito esforço, gemendo de dor. Mesmo à meia luz, p^ôde ver a silhueta de um homem, que se aproximava lentamente dele. Uma nesga de luar iluminou seu rosto, coberto por um saco de pano, manchado numa cor parecida com borra de café. Seus olhos brilhavam brasis como duas fornalhas, e o tecido, rasgado em parte, deixava à mostra alguns vermes que devoravam sofregamente sua face. - Cristo, senhor... Não! – gritou Miguel, tentando afastar-se, mas levou outro golpe. Escorou-se na parede e olhou na direção do machado, ele não estava mais lá. Levantou-se com dificuldade e foi o mais rápido que podia caminhar em direção da saída, mas a cria-

tura apareceu em frente à porta com o machado nas mãos. Tornou-se um sentimento cada vez mais sombrio, que apesar de fazer oposição ao amor, rivalizava com este em obsessão. Maria do Carmo jurou não ser sua jamais, e o homem passou a persegui-la, à espreitá-la, buscando o melhor momento para estar perto dela, sentir seu cheiro, encarar aqueles grandes olhos de profundo verde. O dia finalmente chegara. Do Carmo cuidava da horta, como todos os dias, entretanto, hoje não havia ninguém em sua casa, que distava cerca de 40 metros de onde ela estava, uma plantação de quiabos, em que desaparecia de tempos em tempos em meio as folhagens. Assustou-se quando percebeu Armênio, já bem próximo. – Ai meu Deus, que susto! O que faz aqui? - perguntou, pousando a mão sobre o peito. – Eu disse que te amava... - respondeu-lhe com um sorriso macabro, dando-lhe um violento soco na boca, derrubando-a ao chão com a força do golpe. – Pelo amor de Deus, o que você vai

O sangue de outro inocente fora derramado naquela noite, como meses atrás. Cordeiros. Mas Jonas havia sido invocado, e retornou. 27


fazer? - perguntou com dificuldaTornou-se um esentimento cada vez de, chorando tentando afastarmais sombrio, que apesar de fazer -se. O homem atirou-se sobre ela, oposição ao amor, rivalizava com rasgando seu vestido com facilieste em obsessão. Maria do Cardade. Mordia e beijava seus seios mo jurou não Maria ser sua do jamais, e o avidamente. Carmo homem passou a persegui-la, à estentou se desvencilhar, mas ele preitá-la, buscando o melhor modeu-lhe outro soco, retardando-a. mento para estar perto dela, sentir Sacou seu membro intumescido e seu cheiro, encarar aqueles granenfiou na mulher com a brutalides de profundo verde. com dadeolhos de um animal, mesmo os apelos da moça, que esperneaO finalmente chegara. Do Carva,dia tentando se proteger. mo cuidava da horta, como todos os dias, entretanto, não havia – Socorro! - gritou ahoje mulher, e ele ninguém em sua casa, que distasegurou fortemente em seu pescova ço. cerca de 40 metros de onde ela estava, uma plantação de quiabos, em de temposele, em – Euque te desaparecia amo... - murmurava tempos em meio as folhagens. Ase ela tentava, em vão, arfar o ar. sustou-se deleitava-se quando percebeu ArmêArmênio enquanto a nio, já bem próximo. mulher desfalecia, entrava em colapso. Sentia aquele corpo esguio – Ai meu susto! O que tremer sobDeus, o seu,que o suor pingava faz aqui? perguntou, pousando no rosto delicado que o encaravaa sobre o peito. com terror, e ele sentia cada vez mais mão prazer. As conjuntivas da mulher foram migrando para um vermelho vivo, e os cantos de sua boca espu– mavam Eu dissesaliva que tee amava... - respondeu-lhe com macabro, dansangue, no exato momento emum quesorriso o homem atingia o do-lhe um violento soco na boca, derrubando-a ao chão com a força do orgasmo, de forma animalesca e cruel. golpe.

Soltou-se dela, ainda ofegante, e sentou-se próximo. Observava-a – Pelo amor de Deus, o que você vai fazer? - perguntou com dificuldade, ainda em espasmos, até ficar completamente imóvel. Profundas marchorando e tentando afastar-se. O homem atirou-se sobre ela, rasgando cas roxas marcavam seu pescoço, assim como as feridas feitas por seu vestido com facilidade. Mordia e beijava seus seios avidamente. Maria mordidas em seus seios, e a boca maltratada por socos, completado Carmo tentou se desvencilhar, mas ele deu-lhe outro soco, retardandomente ensanguentada. Seu prazer deu lugar ao desespero, precisava -a. Sacou seu membro intumescido e enfiou na mulher com a brutalidade fugir dali, alguém poderia tê-lo visto, iam pegá-lo! Antes, porém, de um animal, mesmo com os apelos da moça, que esperneava, tentando seprecisava proteger. de algo para ter de recordação da mulher que jurou não ser dele. Num impulso, puxou um pequeno canivete que os homens interior costumavam carregar e aproximou-se seu rosto. Desde – do Socorro! - gritou a mulher, e ele segurou fortementedeem seu pescoço. o começo, foram seus olhos que lhe chamaram a atenção, foi por eles Armênio apaixonara. fortemente olho como os – que Eu te amo... -se murmurava ele,Puxou e ela tentava, em o vão, arfar ar. dedos Armêbrutos e, tendo dificuldade em desprendê-lo, enfiou o canivete na nio deleitava-se enquanto a mulher desfalecia, entrava em colapso. Sentia órbitacorpo até retirá-lo completamente. mesmo no com o outro, olhou aquele esguio tremer sob o seu, o Fez suoropingava rosto delicado que para trás, e seguiu furtivamente por entre a plantação. o encarava com terror, e ele sentia cada vez mais prazer. As conjuntivas da mulher foram migrando para um vermelho vivo, e os cantos de sua boca espumavam saliva e sangue, no exato momento em que o homem atingia o orgasmo, de forma animalesca e cruel. 28


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Foi um de seus irmãos que encontrou o corpo da moça. Houve choro, ranger de dentes, uma angústia nunca experimentada pela família e pelos amigos. Não encontravam nenhum suspeito, não havia pistas suficientes, e as investigações eram muito difíceis, mas então outros corpos foram surgindo. Aquele animal gostou do que fizera e passou a espreitar todas as mulheres da cercania. Seguia o mesmo padrão: violência, sexo, os olhos como recordação. Quanto mais prazer, entretanto, maior seu desespero. A polícia não tardaria a encontrá-lo, ele precisava fazer algo. Fugir? Não, ele não desejava isso. Pensou em imputar a culpa em outra pessoa. Um homem havia se mudado para ali há algum tempo, um sujeito feio, calado e de hábitos suspeitos. Seria perfeito. Começou a planejar como faria para que ele fosse sacrificado em seu lugar. Depois, talvez, fugiria. Mas somente depois. Miguel, o filho mais mazém, casara-se com Guilhermina, sa, de seios pequeSeu rosto era decílios, e algumas por grandes cabeEla era linda e Arpassou a procurar

“Aquele animal gostou do que fizera e passou a espreitar todas as mulheres.

velho do dono do arhá menos de um ano uma mocinha formonos e quadris largos. lineado por grandes sardas, emoldurado los cor de caramelo. mênio a desejava. E o melhor momento.

Descobriu todos os seus movimentos, quando saía de casa, por que, quanto tempo demorava em retornar. Almoçava com a mãe viúva quase todos os dias, enquanto Miguel trabalhava no mercado, mesmo com o perigo ao derredor. Voltava por volta das 14 horas. Naquele dia, Armênio ficou espiando à distância, no atalho que levava à casa da mulher. Ela caminhava tranquilamente, seus cabelos esvoaçavam ao vento, ela era linda. Ele prendeu a respiração quando ela já estava bem próxima, manteve-se imóvel, tentando se confundir com a vegetação. Ela não o viu, e ele avançou com velocidade sobre ela, dando um murro em sua têmpora esquerda, desmaiando-a. Não teria sido mais fácil. Pôs o pequeno corpo sobre o ombro e o carregou até os fundos da propriedade de Jonas. Há dois dias havia conseguido entrar lá, o es-

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tranho deixava a casa totalmente aberta. Foi neste dia que ele descobriu, vasculhando os documentos de uma gaveta, em uma carta de sua mãe, que o reitor do Seminário o havia convidado a se afastar por dois anos, a fim de descobrir se essa era realmente sua vocação. Ele não teria tempo de saber se seus planos dessem certo. Entrou pelo lado oeste da casa, pela falha na cerca que ele mesmo tinha feito dois dias antes. Deitou a mulher no vermelhão e rasgou seu vestido. Ela permanecia desmaiada, mas o chão frio arrepiou seu corpo, seus mamilos enrijeceram. Ele se aproximou mais e fungou, ela tinha um cheiro acre de suor que o excitou. Tirou seu membro da calça e o agitou com força, enquanto a observava. Guilhermina estava totalmente vulnerável, ele já poderia abusar dela, se quisesse, mas ele precisava do olhar apavorado, do medo, do choro desesperado. Como não pudesse esperar mais, começou a dar-lhe tapas no rosto sardento, até que ela acordasse. Dor, medo, lágrimas. Ela o reconheceu, já o tinha visto por ali antes, apesar de nunca terem trocado uma só palavra. E entendeu o que estava acontecendo: era ele o assassino das mulheres de Santa Margarida, e ela seria a próxima! Chutou seu escroto, conseguindo ganhar algum tempo enquanto ele se retorcia de dor. – Vagabundinha... – murmurou agachado. Ela corria com dificuldade até a porta da cozinha, mas ele a alcançou, dando um forte soco em suas costas, derrubando-a. A mulher tossia com vigor, com grande dificuldade em respirar. Armênio a virou com o pé e a encarou, 31


sorrindo de forma nefasta, enquanto sacudia sua genitália novamente. – Por favor... – disse ela com as lágrimas brotando de seus olhos, procurando se afastar, sem forças. O estuprador da Vila Santa Margarida debruçou-se sobre ela e a penetrou, ela chorava desesperadamente, seus olhos grandes de medo o excitavam mais ainda.. Guilhermina tateava algo por perto para acertar-lhe, mas não havia nada por perto que pudesse servir. Cravava fortemente as unhas em seu dorso, ela sentia dor, medo e nojo. – Por favor, não... não faça isso... - balbuciou. – Fique quietinha, pois vai ser rápido... - murmurou em seu ouvido, e ela gritou por socorro, debatia-se mais tentando se salvar. O monstro alcançou sue pescoço com as mãos e a esganou, gargalhando e ouvindo seus gemidos, enquanto a penetrava. Seus olhos saltavam das órbitas à medida que lhe faltava o ar, ele ria com mais vigor, divertia-se. Ela esboçou uma reação, tentou esbofetear Armênio, mas suas forças esvaíam-se, seus braços desabaram ao chão, e então, seu corpo foi tomado pelo tremor, seu organismo estava entrando em colapso, seu coração parando, seus órgãos falhando, seu olhar perdeu-se em qualquer lugar. Armênio, entretanto, permaneceu apertando sua garganta até que gozasse, e não restasse à mulher nenhum sopro de vida. Levantou-se, e com o pequeno canivete extraiu seus olhos e fugiu. Caminhando furtivamente pela mata, seguiu até sua casa para guardar seus souvenires e por uma roupa limpa. Saiu de lá o mais breve que pode, seu rosto adquirira uma expressão deurgência, preocupação. Enquanto caminhava, começou a gritar por ajuda, conseguindo chamara a atenção de uns poucos que por ali passavam, e outros que surgiam nas varandas das casas. – Pelo amor de Deus! Vocês precisam me ajudar! Ouvi gritos de mulher na direção da casa do tal Jonas! - gritava a plenos pulmões. Em pouquíssimo tempo uma multidão cercou a casa dos horrores, e a invadiu, armados de tacos de madeira. Encontraram Guilhermina morta, e agora tinha a prova, além de ódio e sede de justiça. Jonas chegou cerca de uma hora depois, deparando-se abismado com

O smonstro alcançaou seu pescoço com as mãos e a esganou, gargalhando, ouvindo seus gemidos enquanto a penetrava. Seus olhos saltavam das órbitas à medida que lhe faltava o ar.


aquela confusão. Armênio tomou a frente de todos. – Seu desgraçado! - gritou ao esbofetear-lhe. Ele sabia que bastasse que alguém começasse o massacre para que todos os seguissem. Então outros homens se juntarem a ele, e levaram o seminarista para dentro da casa. – Meu Deus! O que está acontecendo? - perguntou ao ser carregado à força. – Não diga o santo nome de Deus em vão, seu demônio! - esbravejou uma das poucas mulheres do grupo. Derrubaram-no ao chão e Armênio amarrou suas mãos e pés. Tirou um saco de pano do bolso, e com a ajuda de outros homens, cobriu-lhe a cabeça, amarrando fortemente em seu pescoço, sufocando Jonas, que insistia em sua inocência. Os golpes começaram, cada vez mais fortes. A vítima gritava em vão, jurava, implorava, mas sua voz foi ficando abafada até sumir completamente. Armênio afastou-se à francesa, tinha sido muito melhor do que imaginara. Não havia mais nada a fazer ali, precisava agora pensar no que faria dali para frente. Foi muita gentileza do aprendiz de padre ter assumido a culpa em seu lugar, mas agora precisava voltar para casa, para a compa-

nhia de suas mulheres...

08 de outubro de 1976 Armênio acordou suado e ofegante. Teria sido um sonho? Não, ele tinha sim, ouvido um grito medonho ecoar na madrugada. Não podia mais abreviar sua partida, fazia meses que tudo aquilo tinha acontecido, mas sentia-se cada vez mais ameaçado, vigiado, apesar da necessidade de mais mulheres. Ele não podia parar, precisava sentir novamente o desespero daquelas faces delicadas. Mas acreditava estar na iminência de ser encontrado, dia e noite aqueles olhos conservados em cachaça o acusavam pela transparência dos vasilhames de vidro. O melhor a fazer era fugir agora, na calada da noite. Estava arrumando uma pequena mala, não tinha muito que levar, quando a lâmpada incandescente piscou três vezes antes de apagar completamente. Ele teve um sobressalto, mas logo acendeu uma lamparina sobre a mesa de cabeceira, as quedas de luz eram comuns naquele lugar. Então, ouviu sua porta bater, mas não poderia, pois estava trancada. Apanhou sua espingarda cartucheira que

“Foi muita gentileza do aprendiz de padre ter assumido a culpa em seu lugar.

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guardava em cima do guarda roupa, muito usada em seus tempos de caça. – Quem está aí? – gritou para a escuridão, com a espingarda em punho, mas não houve resposta. Era possível, apenas, ouvir grilos e outros animais da noite, nada mais. Armênio vasculhava a casa lentamente, a arma tremia em suas mãos. Vultos começaram a persegui-lo, então se virou desesperado. Grandes olhos brasis o observavam por trás de um saco de pano surrado, cujas formas arremedavam um sorriso maquiavélico. – Ah! – gritou Armênio e disparou ao mesmo tempo em que recuava. O tiro acertou em cheio a barriga da criatura abrindo um enorme buraco que o atravessava de um lado a outro. Jonas deixou o machado cair e tocou a barriga com as mãos. Subitamente uma grande quantidade de vermes começou a se derramar e ele grunhiu fortemente. Puxou o saco de pano da cabeça de uma só vez, reve-

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lando o rosto deformado e apodrecido, em cujo centro brilhava dois grandes olhos como lagos de fogo. Avançou novamente sobre Armênio e gritou novamente, derrubando o maldito assassino, traído por um frágil coração humano que parara de bater. Jonas olhou para cima, e uma forte luz branca surgiu de seu peito, cobrindo-lhe todo o corpo. Seu rosto adquiriu outra vez a forma humana, e ele desapareceu em meio ao clarão. No dia seguinte, a polícia encontrou o corpo de Miguel, morto a machadadas. E com a informação de gritos durante a madrugada, chegou à casa destruída de Armênio, encontrado morto, sem sinal de violência, entretanto. Pela casa havia, ainda, uma pequena mala aberta, uma espingarda cartucheira carregada, e uma série de vidros de maionese com globos oculares. Foi o bastante para ligá-lo aos crimes, e inocentar Jonas, o ex-seminarista imolado em vão.


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nte M u ta Rato

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Djinn Primeira parte

João Vicente, arqueólogo, mora em São Paulo, mas na maior parte do tempo está trabalhando no exterior, envolvido em pesquisas no Oriente Médio.

Conto de Márcio Jung   Adaptado por Alexandre Winck  Arte de André M. Do Amaral

Nesse momento, ele está na Jordânia..

<1.500 dinars.>** <Quanto é?>*

*Traduzido do àrabe.

**Cerca de dois mil reais.

<É o único exemplar.>

<”Você é o entendido.”.>

<É absurdo.>

<Você é o vendedor.>

<”Tudo bem, tudo bem.”.>

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<Se minhas fontes estão corretas, com certeza vamos encontrar algo de valor neste templo.>

<Achei algo!.>

<NÃO!! Alá proteja-nos da maldição!>

<Que foi? Passe logo pra cá!>

<Esse livro... Esse livro é...>

<Ficou louco?! O que é isto?> <Isto é só um livro, homem!>

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<Senhor? Tudo bem com o senhor?>

<Sim... Sim, tudo bem... Acho que o calor do deserto me fez mal...>

<O Djinn!! É o Djinn!> <Djinn? Do que está falando, Muhabi?>

<Nunca ouvi falar. E faz anos que coleciono livros antigos daqui da região.>

<Alá proteja-nos!>

<Isso mesmo! É o livro proibido de Muhamad Ibn Allef Alnasser.>

<Ele é uma lenda por aqui. Todo árabe teme-o a pois ele ensina aavelh por lend é uma egião <El sabe e contém reli i. Todo árabe teme-o aqu gas doria popular ea anti velha ensina pois ele lend as.> religião e contém sabedoria popular e antigas segurás que as.> <Isso lend é uma maldição! Precisamos rás segu o queruí-l <Issdest o!> é uma maldição! Precisamos destruí-lo!>

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<NÃO!!!>

Esse livro é exatamente o que eu precisava encontrar.

Se eu não conseguir logo um artefato que possa ser exposto num museu, vão cortar toda minha verba...

Vai ser o fim do meu projeto!

<Este livro... tem valor cultural e histórico. Deve ir para um museu.>

<Este manuscrito guarda maldições, senhor!.>

<Não sabia que você era supersticioso, Muhabi..>

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<<Essa foi uma busca longa e árdua. Todos nós estamos cansados e estressados.>

<Venho de um país sem memória e aqui estou, ajudando a preservar a do seu povo.>

<Com uma boa noite de sono, amanhã vamos estar descansados e encarar tudo isso de cabeça fria..>


<Estou Ă s suas ordens, amo!.>

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GAAAAAAHHH!!!!

Continua... 42


13º departamento de polícia... Lembra do que disse na tv sobre o assassinato dos moleques? Ganhou um fã... O assassino de Campo Limpo quer falar com você., sem câmera.

Você tá querendo dizer que ele só vai falar comigo...

“O pessoal da floresta achou que fosse ataque biológico. Os corpos mutilados e derretidos.”

“Bem nesse caso, ele está meio impaciente, quer falar antes das 20h... Diz que não quer atrapalhar...” Ele disse isso... E eu tenho mesmo que ficar na sala só com ele? ‘Além de ser encontrado perto da cabeça do filho do prefeito... Lógico que eram doze corpos, mas incomum a situação!”

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Você foi escolhido. Leia os dados da chacina com atenção. Talvez o incriminem.

Doze mortos, corpos despedaçados, incinerados e perfurados... Dilacerações... Tudo isso está correto?

Boa sorte! Acompanho o caso à distância. Sei que os assassinos não foram encontrados.

A quantidade de armas e as datas precisam de revisão... Como uma semi-automática com sete balas mata doze?

Ala sul, contenção três... Alguém tá querendo tirar uma com a minha cara!

“O suspeito tem 82 anos.”!

Vamos acabar logo com isso!

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Grite alto se precisar de ajuda... Hehehe...

Legal, eu mereço... Até você, Celso?

Pois bem, senhor, vamos... Minha nossa!


“Sabia que falar com um senhor de 82 anos, possível suspeito de causar doze mortes, seria estranho, mas isso?”

... Ser verdade! Não pode...

“Essa noite vai ficar na história...”

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Aqui estou, como foi solicitado. Nada de câmeras, gravadores, só o pessoal olhando o interrogatório! O que deseja de mim?

Que me deixe sair daqui, na condição que sou... Inocente de tudo!

Saiba que eu sou o dono da área onde houve a chacina. Infelizmente, não pude evitar o que ocorreu. Me deixou muito triste!

“Era costume daquele pessoal fazer uma reunião familiar por lá. Por vezes eu aparecia e participava.”

“Mas, da última vez... Dois rapazes que apareceram não estavam de bem com a família e a presença de outro rapaz não foi bem vista por eles.” “Eles saíram revoltados, voltaram com o caminhão e mais um rapaz. Após intimidar a família, descobriram que o “paquerador” era gay.”

Os caras se desentenderam, brigaram e mataram todos... Qual é, você é o sobrevivente!?

Quem vai engolir essa?

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“Houve uma brincadeira do rapaz com uma das moças... Nada exagerado, mas foi o suficiente...”

Não foi o suficiente...


“Assassinaram o rapaz e as moças após estupro...” “...Quando finalmente sobraram os familiares...”

“... Eu tive de agir rápido...”

“... Minha necromancia...”

“... Aqueles inocentes tinham que revidar...” “... Partiram pra cima dos algozes e, à medida que matavam...” “... Então os despertei, mas perdi o controle da situação..”

“... Despedaçaram-se...”

“... Mutilaram-se...”

“... Vingaram-se...”

... E eu estava esgotado!

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E quanto aos corpos derretidos, incinerados...

“Após algumas horas, os corpos começam a se decompor por energização, uma necromancia reativa...”

E você foi capturado...

“Pra ser sincero, tentei esconder os corpos inicialmente. Só que tinha gastado muita energia e mal conseguia me manter de pé. A última coisa de que me lembro foi de me apoiar no cabo da enxada, após ver o que deveria encobrir....” “... Muitos corpos, as crianças, o doutor, caíram mortos e foram absorvidos pela minha maldição...”

E você acredita em milagres, senhor necromancer?

“... Não percebi que havia desmaiado. Quando acordei, a polícia já estava no local.”

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Eu posso fazer coisas sobrenaturais e...


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Rainha dos Condenados Texto: Alexandre Winck Fotos: Moonshadow Fotografia

“F

raulein” em alemão significa “senhorita”. No caso, Fraulein Scarllet Sokolova já mudou de nome duas vezes em seu perfil do Facebook. Já foi Sunny Lilly e também Fraulein Lilly Scarllet e explica que mudou por motivos profissionais. Ela já vinha há anos trabalhando com performance, incluindo shows de pole dance em casas noturnas de São Paulo, até que recebeu o convite do organizador do Gothic Fest para participar da equipe. Atualmente, é uma das organizadoras do Libertine Festival & SM Project e do Dark SP, dois importantes eventos do cenário underground da noite paulistana.

O último Libertine foi realizado em maio deste ano no 80 Club, com diversos DJs e, claro, muito couro, correntes e fetichismo em geral. Já o Dark SP terá lugar no dia nove de agosto, no Addams Club, com performances de gótico, dark electro, pós-punk, anos 80 e GBM. Fraulein explica que o Libertine é um evento totalmente voltado ao tema sensua,tocando a fundo na busca dos prazeres mais secretos de um púlblico libertino e bastante exótico. O Dark SP é direcionado ao púlblico Góticoe tem como igrediente a arte unida à balada, com músicas e apresentações performáticas mesclada com teatro e danças. “Seleciono as apresentações da noite, fecho com os artistas que participarão, e também com as pessoas que montarão seus stands de acessórios nos eventos. E claro, também faço minhas performances nesses eventos sempre explorando meu lado sensual, exótico, libertino”, lembra Fraulein. Apesar das dificuldades inevitáveis de realizar eventos no Brasil, principalmente os voltados para um público mais underground Diferente de outros jovens, cuja entrada no universo das tribos muitas vezes surge como um ato de rebeldia contra os pais ou é mal recebida por eles, no caso dela o interesse pela cultura gótica surgiu na infância, por causa de sua mãe, que curtia na época músicas góticas dos anos 80.

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“Apenas tenho uma maneira diferente de ver a vida. Uma filosofia de vida, sempre tive atração pelo sombrio, o macabro, o grotesco.”

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Fraulein também assistia muitos filmes de terror. “Aquilo me fascinava. Como sempre amei leitura,na adolescência me identifiquei muito com poemas góticos que lia e com a forma que eles conseguiam passar para o papel todos os meus sentimentos”. Cita Byron e Álvares de Azevedo como autores favoritos. Também leu quadrinhos de terror, incluindo a clássica Calafrio.

oportunidades. E seria uma honra.” Aliás, leitores mais atentos da Contos do Absurdo vão notar que a imagem dela serviu de inspiração para o quadrinhista André Martuscelli do Amaral criar a misteriosa e sensual mulher que serve de guia para o protagonista da história “Sang Canin”, publicada na nossa ediç~ão especial “Maldição Da Lua Cheia”, voltada aos lobisomens.

Ela conta que, na escola, andava Apesar de todo o seu envolvimento com um grupinho de amigos com com essa cultura, Fraulein garanos mesmos gostos. “Visitavamos te que ser gótica para ela é simfrequentemente cemitéplesmente mais um rórios, por serem lugares tulo. “Apenas tenho uma quietos, ideais para remaneira diferente de ver flexão, lindos e mistea vida. Uma filosofia de riosos, sem falar de suas vida, sempre tive atração arquiteturas magnificas”. pelo sombrio, o macabro, Também ama dragões, o grotesco... Foi o   que zumbis, vampiros, bruescolhi para mim. E sou o xas, lobisomens e afins. que sou”. “Me fascinam”. Mesmo tendo tido inspiração em sua família, não Vendo seu perfil no Facebook, é fácil deixou de enfrentar os preconceiobservar sua paixão pelos filmes do tos que a sociedade costuma nutrir cineasta Tim Burton, um ídolo en- em relação a essa e outras cultutre o público gótico. “Amo de paixão ras fora do padrão convencional. todos os filmes que ele produz enão Diferente de outros, ela garante consigo enxergar defeito algum em não sentir que as pessoas estejam suas obras, amo o mundo bizarro mais tolerantes do que anos atrás. e assustador dele e sua maluqui- “Preconceito,sempre existiu e semce poética me fascina”. Entre seus pre existirá. Tenho notado ao longo filmes favoritos estão “O Estranho dos anos que só tem aumentado”. Mundo de Jack”, “Frankenweenie”, “Edward Mãos de Tesoura” “Elvira, Conta que não tem muito contato A Rainha das Trevas”,”Fome de Vi- com sua familia, também por se ver”, “Entrevista com o Vampiro”, ver dentro de um preconceito mui“Drácula de Bram Stoker”,entre ou- to grande. “Mas aprenderam a me tros. E ela pensa em também ser respeitar,pois sou uma mulher de atriz de alguma produção do gé- personalidade forte e independennero. “Estou empre aberta a novas te.“

“Eu jamais mudarei meus gostos para agradar    ninguém.”

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“Preconceito sempre existiu e sempre existirá. Tenho notado ao longo dos anos que só tem aumentado.”

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“Não importa o que falam ou pensam sobre mim, jamais seguirei os conceitos padronizados que a sociedade impõe. Gosto de causar e observar certas reações nas pessoas. Então, não ligo”. Esse interesse se estende ao campo das crenças místicas. Esse, aliás, é um dos principais aspectos da cultura gótica que os tornam vítimas do preconceito da sociedade, principalmente de religiosos que confundem o interesse artístico e estético pelo universo do sombrio e do macabro com servirem de fato a forças malignas.

“Acredito no sobrenatural e gosto de ler tudo a respeito também.Sou bem mente aberta, mas não tenho nenhuma religião,sempre estou questionando algo.”

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o

Súcub

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A morte do menino que não dormia Conto de Raphael Vidigal               Ilustrações: Wellington Ichirou Era um menino, tinha uns 13 anos, cabelos cacheados negros, bochechas magricelas e brancas, olhos castanhos sem muita expressão, uma boca meio sem cor, dentes amarelados e quase sempre um pouco sujos, mãos compridas, dedos longos, pés lambidos e unhas cortadas. Era judeu e circuncidado. O resto não era muito interessante, não que essas coisas fossem, mas servem para dizer como ele se assemelhava aos outros. A todos os outros ou a algum pelo menos. À bem da verdade não tinha nada de diferente, nem de perto, nem de longe. Não gostava de brócolis, fazia pirraça quando a mãe não fazia o que ele queria e àquela altura só havia beijado uma menina. Essas coisas normais que a maioria das pessoas normais são e fazem nessa idade. Na verdade havia só uma coisa, mas uma coisa que ninguém via, nunca, nem nunca veria: ele não dormia. Nunca havia dormido. Desde que nascera passara todo o tempo de sua vida acordado. E ninguém nunca percebia. Não que ninguém se importasse com ele, pelo contrário, era até muito amado, pela mãe, pelo pai, pelos cachorros, pela empregada, pelas meninas da escola. Apesar de ser igual aos outros era bonito, até muito. Acontece que desde cedo desenvolvera um truque: ficava quieto, quase imóvel, e fechava os olhos. Essa coisa que todos fazemos quando estamos realmente dormindo ou quando estamos com medo. No caso dele não sabia dizer se era medo, nem sabia direito o que era ter medo, tinha apenas 13 anos e sempre fora muito protegido, se tivesse tido medo não sabia que se chamava assim. De qualquer forma, era assim que ele fazia. E nunca falhara, pelo contrário, funcionava muito bem, ele era um especialista e ás vezes até se gabava daquilo, quando a mãe à noite ia a seu quarto e o comparava a um anjinho. Pensava diabolicamente como era divertido saber enganar a mãe. Depois de um tempo, passou a enganar também os outros: quando a

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empregada o obrigava a comer brócolis também, quando um amigo o chamava para algo que ele não queria, a mesma coisa. E assim estava sempre acordado quando dormia. A especialidade começou a se desenvolver quando a enfermeira o tirou do seio de sua mãe e o levou para dormir pela primeira vez. Foi só ouvir aquela cantiga de ninar que ele logo fechou os olhos e imobilizou-se. Como fora a primeira vez não sabia dizer hoje em dia se fizera pensado ou por puro instinto. Na verdade, até hoje não sabia se fazia aquilo premeditadamente ou se estava condicionado àquilo. Pensou que talvez não dormisse para se proteger. E até aí continuava podendo ser instinto ou premeditação. Mas como? Se não tinha medo? Se proteger de quê? De quem? Ninguém o faria mal, não havia motivo, ele era igual a todos os outros e até era bonito.

espiava pela fechadura do banheiro de empregada e via a água escorrer sobre seus seios morenos fartos, percorrendo a barriga lisa, passando pelo umbigo até chegar aos pêlos que ele julgava macios da boceta, ás vezes pensava nas vezes que brincava com seus cachorros que pulavam em cima dele e o lambiam felizes. Pensava que nenhum animal do mundo era mais feliz que os cachorros. E que eles eram também extremamente burros. E que talvez a burrice fosse fundamental para a felicidade. Então pensava se era feliz. E não sabia. E ás vezes achava que sim e ás vezes achava que não e muitas vezes achava que só ás vezes era feliz mas em outras muitas era infeliz. E não sabia porque, se tinha cabelos bonitos, era bonito, os outros o achavam bonito e ele era exatamente igual aos outros, tanto os feios quanto os bonitos.

Na verdade, não sabia por que não dormia. Não tinha medo e também não fazia nada nesses momentos. Apenas fechava os olhos e ficava imóvel, nunca se mexia, esperava até a hora de se levantar exatamente na mesma posição sempre, meio de lado, agarrando com a mão um pedaço do travesseiro. Ás vezes pensava na morte, ás vezes pensava na vida. Ás vezes pensava na mãe quando o amamentava, ás vezes pensava no pai quando o ensinava a jogar bola. Ás vezes pensava na empregada,

Só que tinha aquela diferença, aquela diferença que ninguém via: ele não dormia. Então começava a se perguntar para quê ter aquela diferença se ninguém via, para quê ter aquela diferença se ela não aparecia, se para os outros ele era exatamente igual aos outros só que bonito. E ser bonito não era na verdade nenhuma diferença, porque haviam muitos outros bonitos e os feios também tinham quem os achassem bonitos. Então resolveu que esconder aquela diferença era uma burrice e nunca deveria ter

Na verdade não sabia por que não dormia. Não dormia e também não fazia nada nesses momentos. Apenas fechava os olhos e ficava imóvel.

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para o amigo que queria que ele dormisse em sua casa.

começado a escondê-la, e pensou em quando nasceu e enganou a enfermeira, e depois a mãe, o pai, a empregada, a professora, os cachorros, os amigos. E resolveu que aquilo iria acabar e ele iria mostrar a sua diferença. Chamou primeiro um amigo, porque embora gostasse de sua mãe não confiava tanto nela a ponto disso. E tinha medo. Gos tava mais dela do que do amigo. Então disse

Então quando chegou a hora lá estava ele acordado, mais de meia-noite, e dessa vez sem os olhos fechados nem imóvel, ele se mexia, tinha os olhos abertos e olhava para o seu amigo, dizendo que provaria que não dormia. Mas o seu amigo primeiro achou graça, depois uma loucura, depois uma bobagem. E não quis saber e dormiu. E ele ficou lá acordado, mais uma vez imóvel, olhos fechados, sem dormir, e ninguém via. Desistiu do amigo, ele era muito idiota e jamais entenderia. Resolveu mostrar à empregada. No início ela achou estranho, desconfiou que o menino a espiava e queria outra coisa quando ele disse que tinha medo e não queria que sua mãe pensasse que ele era um maricas. Então quando ela entrou em seu quarto à noite ele contou tudo. Não foi difícil, gostava na medida certa daquela mulata e confiava nela. Desde cedo ela o alimentara quando a mãe saía para trabalhar. Então ele observou que ela também achava graça, mas de um jeito diferente do seu amigo, achava graça com aquele sorriso largo de 59


mulata que ela tinha, e mandou ele ir dormir logo e essas histórias de maluco deviam ser porque ele andava assistindo muita televisão ou comendo besteira à noite. E disse que dormiria lá com ele essa noite mas amanhã não dormiria. E que se ele continuasse com essas histórias malucas teria que falar com a patroa para levá-lo a um psicólogo. E então depois de falar muito achando graça e dando sermão ela dormiu.

pai era sua última esperança antes dos loucos. E seu pai falou: vai dormir meu filho, que seu pai está cansado e amanhã trabalha e amanhã conversamos e já está tarde e amanhã você tem aula e acorda cedo. Mas ele não acordava. Ele nunca acordara na vida. Ele nascera acordado e assim morreria. Porque só acordava quem dormia. E ele nunca dormia nem dormiria.

E ele então mudou de idéia e resolveu procurar sua mãe antes de E ele ali, com os olhos fechados, ir ao hospício. E tomou muita coimóvel, sem dormir. E ninguém ragem porque sua mãe era quem via. Ninguém acreditava. Che- mais gostava dele, talvez por ser igual a todos os outros e bonito. maior bobagem e que talvez tudo fosse um delírio e que talvez ele dormisse mas não percebesse e fosse louco e esquizofrênico e as pessoas não lhe contavam. Mas depois percebeu que não era nada disso. Que não podia ser. Que não tinha sentido porque ele conhecia outros loucos e esquizofrênicos e sabia como eles eram. E embora ele fosse igual a todos, igual a eles ele não era. E desejou então ser como eles. E queria ser um deles. E decidiu que provaria aquilo nem que fosse para um deles. E na noite seguinte ele chamou seu pai. E contou toda a história e disse a seu pai que se ele não acreditasse ele chamaria um louco para lhe contar tudo. E que seu

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E tinha medo de decepcioná-la e não queria decepcioná-la mas não tinha escolha e aquilo tinha que ser feito, tinha que ser mostrado. Cansara de viver acordado escondido. Queria que todos vissem que nunca sonhava nem tinha pesadelos pois sua vida era só a realidade e não existia fantasia boa ou má. E quando sua mãe ouviu que ele não dormia, sorriu um sorriso complacente e disse também que houve uma época em que ela não dormia. E que talvez fosse genético e que ele não tinha culpa de ter herdado aquilo e era uma herança maldita. Então ela lhe trouxe um comprimido e ele tomou e então achou que estava tudo resolvido, que sua mãe sabia e o entendia e ele dormiria. Então continuou deitado imóvel e fechou os olhos e não dormiu. E quando amanheceu ficou desesperado e contou à mãe. E ela lhe deu dois comprimidos, disse que tomasse os dois, que seria mais forte e então resolveria. E então ele tomou e perguntou à mãe porque ela não dormia. E ela disse que detestava a vida e se casou obrigada com seu pai e nunca o amou e gostava de mulheres e só o teve para se disfarçar das vizinhas que a chamavam de lésbica. E ele viu que sua mãe não gostava dele e não ligou porque tomou dois comprimidos e mesmo assim não dormia. E viu que era igual à sua mãe e não gostava dela, nem da empregada, nem dos cachorros, nem do pai, nem da professora, nem do amigo. Porque ele não dormia e ninguém via. Então saiu dali e foi até o hospício e tentou entrar mas não conseguiu porque o moço da porta disse que ele era igual e ali era o lugar dos diferentes.

E desistiu de tudo e de todos e do mundo e da morte e da vida e da empregada e seus seios e os cachorros e as lambidas e sua mãe e a comida e seu pai e os remédios e o amigo e a amiga e a professora e o beijo e o travesseiro e pensou em voltar pra casa mas não voltou e ficou na rua e deitou no chão e as pessoas passavam por cima dele e não o viam e pisavam em sua cabeça e não o viam e escorria sangue e escorria lixo e escorriam ossos e escorria carne e escorria sêmen e escorria o mundo e escorria morte e escorria vida e ele não dormiu. E morreu acordado, que é a pior forma de estar morto. 61


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Nunca havia dormido. Desde que nascera, passara todo o tempo de sua vida acordado. E ninguĂŠm nunca percebia. NĂŁo que ninguĂŠm se importasse. inas da


Ele n茫o acordava. Ele nunca acordara na vida. Nascera acordado e assim morreria. Porque s贸 acordava quem dormia. E ele nunca dormia nem dormiria.

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Sal om

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SOMNIUM - O destruidor de sonhos - parte 3 Conto de Abdré Roméro Adaptado por Alexandre Winck

Desenhos: Ronílson Caetano Leal Capa e arte-final: David Santos

Guilherme quer desesperadamente salvar sua mãe e seu irmão recém-nascido. Recebe uma proposta de um misterioso ser que habita e manipula os sonhos, chamado Somnium. Precisa destruir seis corações que contêm chaves. Mas ele acorda em seu quarto, sua mãe grávida está bem e tudo parece ter sido apenas um pesadelo...


Tá tudo bem, Guilherme.

Um sonho pode ser muito realista, muito assustador. Mas ainda é só um sonho.

É... Você tem razão.

Agora, que tal dar uma volta? Você precisa pegar um ar fresco e descansar depois desse tal sonho.

E se isto for um sonho? Será que ela é realmente minha mãe?


Mãe... Quantos meses faltam pra o Gilberto nascer?

Filho, daqui a duas semanas eu entro em trabalho de parto. Aí você já vai poder ver o Gilberto! Tenha paciência!

Todo o lugar parece estar pegando fogo.

De repente, sinto toda a pressão do ar contra minha cabeça.

Sim?

O que é aquilo?

Mãe?


aquilo o qAAAAAAAGHHH!!!

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parece que eu vou ter bastante trabalho pela fr...

Preciso mesmo escolher melhor as palavras por aqui. Mas que diabo...

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“Você deve destruir seis corações.”

Continua

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tauro

Mino

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A Vingança das Sereias

Conto de Nena Medeiros Ilustrações: Johanna Gyarfas 79


A

pele queimada de sal e sol dava-lhe uma aparência cansada, agravada pelo sorriso raro e penoso. Difícil precisar sua idade, qualquer palpite entre 30 e 60 seria igualmente válido. A voz mansa, meio rouca, era quase um sussurro. Falava baixo, como se temesse ser ouvido por um caçador à espreita, embora alguns acreditassem que ele agia assim para não espantar a própria caça. De qualquer modo, caça ou caçador, era um homem fascinante. Passara grande parte de sua vida no mar, onde vivera as mais incríveis aventuras e, vez em quando, reunia os aldeões para contar a eles suas histórias no pequeno bar do vilarejo. Não o fazia com prazer. Ao contrário, costumava fazê-lo somente após muita insistência dos presentes, que se amontoavam à sua volta para não perderem nenhum dos detalhes relatados. E só quando todos silenciavam, ele começava, quase como quem partilha um segredo:

cava, ensimesmado, só voltando a se levantar após o último gole. Deixava a paga pelo consumo e saia. Embora todos ali no vilarejo se conhecessem, o pescador vivia isolado, pescava para o próprio sustento, bem como era apenas de subsistência a pequena horta no fundo do quintal. Não se lhe conhecia esposa ou filhos e, mesmo sua origem era um mistério. Ele simplesmente aparecera ali. Adonara-se do pedaço de terra em que vivia e lá erguera, sozinho, a sua tapera...

Mesmo sua origem era um mistério. Ele simplesmente

isolado, pescava para o próprio sustento, bem como era apenas de subsistência a pequena horta no fundo do quintal. Não se lhe conhecia esposa ou filhos e, mesmo sua origem era um mistério. Ele simplesmente aparecera ali. Adonara-se do pedaço de terra em que vivia e lá erguera, sozinho, a sua tapera...

aparecera.

Sua vida eremita atraia todo o tipo de lucubração e, sempre que ele entrava no bar, tornava-se o alvo das conversas vãs. Ignorava educadamente os que tentavam uma aproximação.

- Foi assim que aconteceu... Nem sempre foi assim. No início, ele chegava taciturno, cumprimentava a todos com um aceno de cabeça, pedia meia garrafa de pinga e um copo e ia sentar-se em uma mesa ao canto. Lá fi-

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Em dia de jogo os homens desinteressavam-se dele, os olhos grudados na velha televisão em que um pedaço de Bombril fazia mal - as vezes de antena. Do mesmo modo, quando havia eventos mais frescos, uma moça fugida,


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tempestades recentes, naufrágios ou jangadas vazias devolvidas à areia, permitiam-lhe restar sossegado em seu canto, alheio a toda a agitação. Uma noite, porém, uma palavra conseguiu retirá-lo de seu transe melancólico e fazê-lo juntar-se aos outros para ouvir o ocorrido: sereias. Dezenas delas, contava o marinheiro. O barco fora cercado e todos os marujos quedaram enfeitiçados com a cantoria. Alguns chegaram a saltar na água. Os outros foram salvos pela chegada de uma enorme baleia que assustou as mulheres-peixe, fazendo-as desaparecer nas águas turvas da baía. Ao ouvir aquilo, o ermitão sussurrou: - Elas me acharam... Alguns ali jamais haviam escutado sua voz e o olharam surpresos. - As sereias? - alguém perguntou. Confirmou sorumbático, antes de voltar ao seu canto. Esta pequena intromissão foi o fim de sua paz. Foi logo cercado pelos demais pescadores e marinheiros. Depois de muito insistirem, ele finalmente empurrou o copo para o lado e começou, com voz pausada e suave: - Foi assim que aconteceu... Há alguns anos, encontrei uma delas. Ela cantou, cantou, gemeu,

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chorou mas eu não a ouvia. - Não? Mas, como? - Era minha primeira viagem como um homem casado. A única voz que me enfeitiçava era a de minha Maria. - Que sorte a sua! - Sorte? Aquilo foi a minha desgraça!! - Por quê? - Uma sereia morre se um homem ouve seu canto e não se queda enfeitiçado. - Ela morreu? Sim. Ela havia morrido, ele confirmou, quase num lamento. E continuou: - As sereias vivem em bandos... Logo, os seus vieram à procura de vingança. - Sua esposa!! - adivinhou um dos presentes. Uma lágrima correu no rosto do homem. Alguém ainda perguntou se agora elas estariam ali à procura dele, porém, ele não respondeu mais nada. Levantou-se e saiu, deixando ainda uns bons goles de sua pinga sobre a mesa. Por alguns dias, ele não apareceu. Porém, uma noite, talvez atraído pelo vício da cachaça, lá estava ele, sentado em sua mesa no canto.


Foi logo cercado pelos aldeões, ávidos por notícias. Ele não estava muito disposto a conversar, mas, como os outros insistissem muito, começou outra história:

baram! - acrescentou ele, sem vaidade, como quem fala do tempo. E contou as muitas peripécias que fez para escapar a um ataque deles.

- Foi assim que aconteceu... Esta não falava de sereias, mas de piratas. - Piratas? Neste século? - perguntaram.

Apesar de seu tom quase monocórdio, a riqueza de suas histórias ia encantando a todos na cidade e logo até as mulheres e crianças vinham ao bar para ouvi-las.

O homem tornou-se a novela do local e só perdia interesse em dia de jogo ou quando havia eventos mais frescos... Nessas noites, ele parecia sinceramente agradecido em poder aproveitar da paz e do sabor de sua pinga. Estranha- Mas o meu barco eles não rou- mente, essas noites tornavam-se Ele ignorou a interrupção e contou a história de piratas que atacavam outras embarcações, pilhando tudo o que pudessem encontrar, inclusive o pescado do dia.

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cada vez mais frequentes, pois um fenômeno vinha intrigando os aldeões: o sumiço de moças. Sendo um vilarejo pequeno e atrasado, era natural que os jovens da cidade desejassem novos destinos e, no caso das meninas, muitas acabavam mesmo fugindo, pois seus pais raramente concordavam que saíssem de casa senão pelas mãos de um marido, sob as bênçãos de Deus, nosso Senhor. Porém, as ocorrências aumentaram de uma a duas por ano, para o dobro disso por mês!! E mais: não apenas as jovens solteiras, mas também algumas casadas simplesmente esvaeciam. Quando restavam na cidade apenas mulheres idosas, o contador de histórias desapareceu também, do mesmo modo como havia aparecido. Logo pensaram que ele finalmente teria sido encontrado pelas vinga-

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tivas sereias e lamentavam sua sorte, até que um outro marinheiro, de passagem por ali, contou ter se deparado com um grupo delas a algumas milhas da costa: - Para nossa sorte - disse ele - elas nos ignoraram, mais interessadas estavam em partilhar o banquete oferecido por um navio maior, atacado horas antes. Um espetáculo terrível! As feras devorando pedaços humanos, pernas, braços, enquanto o homem observava... - Homem!? - Sim! Um homem e, sabe de uma coisa? Fez lembrar muito aquele contador de histórias que havia por aqui. Onde anda ele? Depois do primeiro choque, contaram ao marinheiro tudo o que acontecera. O homem então se admirou: - Mas, vocês não sabem? Quando um homem mata uma sereia torna-se escravo do bando, obrigado a recrutar mulheres até encontrar uma para o lugar daquela que matou. - Recrutar?? Como? - Ele seduz as mulheres e leva pra rainha ver. Sua missão só termina quando ele encontra uma mulher à altura da sereia que matou. - E as outras? - A rainha devora. Provavelmente a tal Maria foi a primeira de suas vítimas. Enquanto os aldeões se desesperavam ante o terrível destino de suas mulheres, num outro vilarejo não muito longe dali, um homem estranho e calado, de idade imprecisa e gosto pelo álcool levantava uma pequena tapera.

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Lúcifer é belo, é luminoso como um sol, é aquele que teve a coragem de questionar, e tornou-se seu próprio deus, sem amarras, sem dogmas. Essa imagem asquerosa que os dogmáticos usam para retratá-lo nada mais é do que o reflexo daquilo que vive em seus corações e sai de suas bocas!

(Ciberpajé)            Edgar Franco

ER

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F LUCÍ


ROYALTIES

roteiro: alexandre winck arte|: gabriel sossai

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Num futuro em que as cidades estão inundadas de lixo, uma menina diferente e solitária invadiu uma fábrica abandonada procurando refúgio da poluição. Foi salva de ser estuprada por uma gangue pelo misterioso Anjo Industrial, que agora revela sua história...

Doutor Marcos, isso é... Ainda não consigo acreditar nem entender! Essa criatura não tem pais, não foi inseminada nem clonada!

“À toda a merda infestada de porcarias processadas cheias de produtos químicos.”

anjo industrial - a origem parte 4

Roteiro: Alexandre Winck Desenhos: Daniel Lucávis

Como essa aberração ganhou vida?

“À toda a pôrra contaminada e masturbada esgoto abaixo.”

Bom, acho que agora posso contar tudo.

Agradeça à imundície que o mundo virou, Lila...

“A todos os fetos abortados, mas já maculados por doenças e pelas drogas consumidas pelos pais.”

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Toda essa infinidade de componentes químicos e orgânicos se acumulou e misturou de tal maneira que, de alguma forma, evoluiu... Quase um novo caldo original. Foi capaz de produzir uma forma de vida complexa. Um ser único.

Um ser muito mais forte, ágil e resistente do que nós. Muito melhor que esses outros experimentos. Esses fracassos!

Com a mente de uma fera selvagem.

Feras selvagens podem ser treinadas e usadas. Os romanos sabiam fazer bom uso delas.

Apliquem o sedativo.

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Semanas depois... O que é isso, doutor? O que esse mendigo está fazendo aqui?

Uma breve de,monstração do que eu disse no outro dia.

s

.

Descobrimos que, além de ter muito mais força que um ser humano, nosso amigo com boca de metal tem um grande apetite. Apetite por carne humana. Por que desperdiçar essa poderosa combinação?

O que o senhor quer dizer com isso?

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Já viu quantos mendigos, drogados, bêbados, putas e loucos estão infestando as ruas? Os números são recorde. Nem são mais afetados pelo mau cheiro.

Ruas cheias de lixo. Lixo humano.

Agora imagine uma infestação de clones dessas criaturas varrendo as ruas que nem gafanhotos. Limpando toda essa sujeira.

Nunca vão nos deixar fazer isso. Direitos humanos, blá blá blá.

Não somos responsáveis. A praga aconteceu naturalmente.

Coitado.

Oficialmente, aqui é só uma fábrica. O governo nunca vai admitir que esse laboratório existe.

Ele é preto, pobre, analfabeto e brasileiro. Não ia muito longe mesmo.

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Sabe de uma coisa?

Sabe de uma coisa?

Isso tudo tá me deixando louco de tesão...

Isso tudo tá me deixando louco de tesão...

Mahat mamut masset!

Mahat mamut masset!

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Mahat mamut masset!

Mahat mamut masset!


eu... Eu sou praticamente seu pai!! Pa-parado!! Parado aí!! Hã... Quando foi que você o adestrou mesmo?

Ativem o gAAAAAHHHí!!

Mahat mamut masset!


NinguĂŠm serve o filho do pai LĂşcifer de tira-gosto, fiadaputas...

Continua


Publisher Daniel Vardi Editor-chefe Alexandre Winck Criador Mario Mancuso Diagrmação e letras: PUBLIGIBI Projeto Gráfico: Publigibi sob projeto inicial de Isabella Sarkis Todos os direitos autorais pertencem aos respectivos autores, não podendo ser reproduzida sob quaisquer aspectos sem a devida autorização dos mesmos. As opiniões e fatos aqui expressos são totalmente de responsabilidades dos autores, não significando necessariamente a opinião da revista. www.contosdoabsurdo.com.br

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