Jornal Plural N.11 | 2015

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OLhAR NOVO É iNVENçãO

O novo constitucionalismo Por José Luiz Quadros de Magalhães Da América Latina surge uma construção jurídica e política que pode representar uma alternativa real à crise do estado e do direito modernos: o estado plurinacional. O atual sistema mundo, construído a partir da invasão da “América” (nome dado pelos invasores) se encontra em momento de crise final. Nascido para viabilizar o desenvolvimento da economia moderna (capitalista) tornou-se insustentável diante dos limites ambientais e cada vez mais injustificável diante da enorme desigualdade sócio-econômica. A crise europeia e norte-americana levou a um aumento da acumulação de riquezas por parcela cada vez menor de pessoas. A concentração dos meios de comunicação permite, provisoriamente, que toda uma representação falsa e gravemente distorcida da realidade, sustente o insustentável. Entretanto, a capacidade de manipulação das informações e de ocultamento dos reais jogos de poder tem limites, e mesmo com todo o esforço radical, a mídia popular encontra brechas para questionar e revelar alternativas que surgem em diversos lugares do mundo. Dessas alternativas uma chama especial atenção: o novo constitucionalismo latino-americano expresso nas experiências constitucionais da Venezuela, Equador e Bolívia. A constituição da Venezuela inaugura um novo momento de transformação social e de forte questionamento do projeto neoliberal com resultados surpreendentes de redução da desigualdade social e econômica, extinção do analfabetismo, superação da fome, e expansão da educação superior. A Constituição do Equador cria o primeiro Estado Plurinacional em 2008, seguido imediatamente pela Constituição da Bolívia. O constitucionalismo equatoriano, entre várias conquistas, traz uma nova concepção jurídica não

mais antropocêntrica, mas que dialoga com perspectivas biocêntricas e ecocêntricas, compreendendo a vida como um sistema complexo, plural e interdependente. Toda vida se relaciona, e cada singularidade coletiva integra outro sistema, e assim sucessivamente. A superação da lógica antropocêntrica e da herança moderna de um “individuo” separado da natureza, com uma racionalidade separada do corpo e do espirito, marca da modernidade, é superada por esta nova compreensão. Esta nova percepção da vida e do pluriverso, permite superar uma forma de estar no mundo que levou a destruição sistemática da natureza e do outro subalternizado, diferente do padrão que se tornou hegemônico nos últimos quinhentos anos de modernidade. O constitucionalismo boliviano, construído sobre um processo de revolução social, radicalmente democrática, apresenta, entre outras ideias, a diversidade e a complementaridade como base de sua compreensão. O direito a diversidade supera os princípios jurídicos de igualdade e diferença. A igualdade parte do pressuposto do desejo do excluído, subalternizado, fazer parte do sistema, de ser incluído, e para isto ser igualado, ou seja, igualdade para os igualados. A diferença representa mais um passo dentro de um direito e estado modernos que têm como função histórica normalizar, uniformizar, padronizar. O problema do direito à diferença é que, o diferente, é diferente do padrão. No reconhecimento do direito de ser diferente uma pergunta permanecerá: diferente de quem? Do padrão hegemônico moderno branco e masculino. Já, no reconhecimento da diversidade, seja como direito individual (de cada pessoa) ou coletivo (de cada grupo étnico ou social), não há mais padrão hegemônico. Todos têm direito de se apresentarem e falarem a partir de seu lugar. Não é necessário ser igualado para ser reconhecido, nem ser estranho em um mundo

padronizado. Cada um, cada grupo se apresenta como deseja, para ser conhecido em sua diversidade, e não enquadrado para ser reconhecido. O pressuposto é o respeito a alteridade. Não haverá, portanto, espaço para a intolerância, para o fundamentalismo, para o fascismo. A complementaridade pressupõe que o outro, que os outros, não mais representem o subalterno ou o medo, o perigo, a ameaça. A modernidade colonial fundou-se em uma concepção linear da história, que sustenta que há um único caminho a ser seguido e as várias culturas estariam em estágios distintos de evolução, e no auge, como grande modelo a ser seguindo, estaria a civilização germânica do homem branco padrão. Logo, o outro, o diferente, é aquele não civilizado, aquele que não se iguala com o padrão hegemônico, e nunca se igualará, pois não é possível ser o “outro” hegemônico, no máximo copiá-lo. Logo, o “outro” subalterno se justifica permanentemente como forma de afirmar o projeto narcisista moderno. A postura menos violenta em relação a este “outro” subalterno é de, “bondosamente” transformá-lo em algo o mais próximo possível do padrão hegemônico. A perspectiva da complementaridade rompe com isto. O outro não é mais aquele subalterno, que nada tem a oferecer, e para o qual só resta deixar der ser o que é para copiar o padrão. O outro, na lógica da complementaridade, é aquele que tem algo que eu não tenho. Cada outro tem algo que só ele tem. Logo, o outro no lugar de uma ameaça será, sempre, uma possibilidade de aprendizado de algo novo. A complementaridade fundamenta a busca do diálogo intercultural em busca de um conhecimento transcultural, plural e radicalmente novo, pois do diálogo não surgirá apenas um somatório de experiências e conhecimentos, mas sim uma nova compreensão da vida.


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