Ensino do fenômeno religioso na Escola Pública

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Faculdade de Comunicação, Educação e Humanidades Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

ENSINO DO FENÔMENO RELIGIOSO NA ESCOLA PÚBLICA: área de conhecimento necessária para uma sociedade secularizada

José Antonio Correa Lages

São Bernardo do Campo/SP – 2016



JOSÉ ANTONIO CORREA LAGES

ENSINO DO FENÔMENO RELIGIOSO NA ESCOLA PÚBLICA: área de conhecimento necessária para uma sociedade secularizada

Tese de doutorado apresentada em cumprimento parcial às exigências do programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo – Faculdade de Comunicação, Educação e Humanidades, para obtenção do grau de Doutor.

Orientador: Profº. Dr. Lauri Emílio Wirth

São Bernardo do Campo/SP – 2016


A tese de doutorado intitulada “ENSINO DO FENÔMENO RELIGIOSO NA ESCOLA PÚBLICA: ÁREA DE CONHECIMENTO NECESSÁRIA PARA UMA SOCIEDADE SECULARIZADA”, elaborada por JOSÉ ANTONIO CORREA LAGES, foi apresentada e aprovada em 14 de março de 2016, perante banca examinadora composta pelo Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Sérgio Rogério Azevedo Junqueira (Titular da PUC/PR), Profa. Dra. Elisa Rodrigues (Titular da UFJF), Prof. Dr. Jung Mo Sung (Titular da UMESP) e Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (Titular da UMESP).

_________________________________ Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth Orientador e Presidente da banca Examinadora

_________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders Coordenador do Programa de Pós-graduação

Programa: Pós-graduação em Ciências da Religião Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura Linha de pesquisa: Religião e dinâmicas socioculturais


AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, pelo dom da vida e por mais esta conquista

Agradeço a Lauri Emílio Wirth, pelos horizontes que me foram abertos, pela orientação rigorosa, pela partilha do saber

Agradeço a Philippe Portier, pela grande oportunidade no GSRL/EPHE, pela acolhida fraterna, pela co-orientação tão valiosa

Agradeço a Claudia Gondim Lages e Gabriela Débora Gondim Lages, pela cumplicidade e pelo companheirismo

Agradeço a Antonio de Jesus Silveira Leite (Faculdade Evangélica de Brasília), pelos caminhos que me levaram à Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)

Agradeço ao programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da UMESP, pela contribuição tão significativa na minha formação humana e acadêmica

Agradeço à CAPES, pelo apoio financeiro da bolsa flexibilizada para o doutorado e da bolsa sanduíche para o estágio na França, sem as quais não teria sido possível esta tese



“O meu povo é destruído por lhe faltar conhecimento.” Oséias 4:6

“A razão por que hoje privilegiamos uma determinada forma de conhecimento nada tem de científica. Trata-se apenas de um juízo de valor.” Boaventura de Sousa Santos



RESUMO Ao estudarmos a evolução histórica e o panorama atual do ensino religioso no Brasil, nos deparamos hoje com o problema da exclusão mútua de duas visões do seu tratamento na escola pública: ou deve existir o ensino religioso confessional ou não deve existir nenhum tipo de ensino religioso. Superando uma visão de laicidade de abstenção ao afirmar que o religioso, por definição, não nos diz respeito ou não diz respeito à ciência, e admitindo uma laicidade de inteligência ao defender que é nosso dever ou dever da ciência compreendê-lo como expressão humana e social, o ensino do fenômeno religioso pode superar essas duas visões, a partir de uma base epistemológica sólida para esta área de conhecimento, como já é prevista pela nossa legislação. Ele garante o respeito à diversidade e à pluralidade cultural da sociedade brasileira e contribui para a compreensão do fenômeno religioso como “objeto de cultura”. Ele é capaz de subsidiar práticas de ensino do fenômeno religioso no sistema de ensino laico, sem prejuízo de sua laicidade, mas a favor dela. A educação laica para a cidadania não pode ignorar as religiões pela sua forte presença e função na sociedade. É preciso decodificar criticamente as representações e práticas religiosas em nome da convivência mais construtiva entre as pessoas e extrair das tradições religiosas valores que contribuam para a vida humana na sua plenitude. Este modelo de ensinar a religião como fenômeno antropológico, social e cultural pode ainda cumprir uma função específica no que se refere ao conhecimento de si mesmo (identidade) e do outro para a aceitação do diferente (alteridade) apontando para a construção de valores éticos e de cidadania. Esta pesquisa se baseia em um grande levantamento bibliográfico e entrevistas com especialistas em laicidade e ensino do religioso a partir da proposta de Régis Debray adotada na França. Ela nos leva a concluir que o ensino do fenômeno religioso na escola pública do Brasil não é apenas necessário, mas até indispensável, se queremos uma educação que contribua para a formação dos nossos alunos e alunas para a convivência solidária. Palavras-chave: ensino do fenômeno religioso; secularização; laicidade; epistemologia para o ensino do religioso; educação para a solidariedade.


ABSTRACT Studying the historical evolution and taking an overview of the religious education in Brazil, we today face the problem of the exclusion of two different types of view on its treatment on public schools: or should it exist the "confessional" religious teaching, or it shouldn't exist at all. Overcoming the view of the laicity as an abstention when affirming that the religious, on its own definition, doesn't concern us nor even the science, and admitting a laicity of intelligence when we defend that is our duty or even the duty of science to understand it as a human and social expression, the teaching of the religious phenomenon can overcome these two views with the use of a strong epistemological basis for this area of knowledge, as fixed in our Constitution. It guarantees the respect to the diversity and the cultural plurality of the brazilian society and it contributes to the comprehension of the religious phenomenon as a "cultural object". It is capable of support practices of a teaching of the religious phenomenon in a secular education system, without prejudicing its laicity - on the contrary, it can actually go on its behalf. The secular education focusing on the formation of a citizen cannot ignore the existance of religions for its strong presence and for its role in a society. It is needed to critically decrypt the religions representations and its practices in name of a more constructive cohabitation between people and extract values from the religious traditions that can contribute with the human life on its plenitude. This model of teaching the religion as an anthropological, social and cultural phenomenon can even perform a specific role on what concerns the knowledge of oneself (identity) and also on what regards the acceptation of the different (alterity), pointing to the construction of ethic values and the notion of being a citizen. This research is based on a great bibliographic raising data and interviews with specialists on secularization, laicity and on religious teaching, all based on RĂŠgis Debray's proposal adopted in France. It leads us to conclude that the teaching of the religious phenomenon in Brazil's public schools is not only necessary, but indispensable if we want an education that contributes to the formation of our students in a solidary living. Keywords: teaching of the religious phenomenon; secularization; laicity; epistemology to the teaching of the religious fact; education for solidarity.


RESUMEN Al estudiar la evolución histórica y la situación actual de la enseñanza religiosa en Brasil, nos enfrentamos hoy con el problema de la exclusión mutua de los dos puntos de vista de su tratamiento en las escuelas públicas: que debe haber enseñanza religiosa confessional o no debería existir ninguna enseñanza religiosa. La superación de una visión de la abstención de la laicidad a afirmar que lo religioso, por definición, no nos concerne o no concerne a la ciencia, y admitiendo uma laicidade de inteligencia en sostener que es nuestro deber y el deber de la ciencia entenderla como expresión humana y social, la enseñanza del fenómeno religioso puede superar estos dos puntos de vista, desde una base epistemológica sólida para esta área del conocimiento, como ya está previsto por nuestra legislación. Así se asegura el respeto a la diversidad y la pluralidad cultural de la sociedad brasileña y contribuye a la comprensión del fenómeno religioso como "objeto de cultura". Ella es capaz de apoyar las prácticas de enseñanza del fenómeno religioso en el sistema de la educación laica, sin perjuicio de su laicidad, pero a favor de ella. La enseñanza laica para la ciudadanía no puede ignorar las religiones por su fuerte presencia y papel en la sociedad. Es necesario decodificar críticamente las representaciones y prácticas religiosas en nombre de la convivencia más constructiva entre las personas y tomar de las tradiciones religiosas los valores que contribuyen a la vida humana en su plenitud. Este modelo de enseñanza de la religión como fenómeno antropológico, social y cultural todavía puede cumplir un papel específico en relación con el conocimiento de si mismo (identidad) y también para la aceptación del diferente (la alteridad) que apunta a la construcción de valores éticos y la ciudadanía. Esta investigación académica se basa en una amplia revisión de la literatura y entrevistas con expertos del laicismo y la enseñanza religiosa de la propuesta de Régis Debray adoptada en Francia. Ella nos lleva a la conclusión de que el enseñanza del fenómeno religioso en la escuela pública del Brasil no sólo es necesario, sino también esencial si queremos una educación que contribuya a la formación de nuestros alumnos y alumnas para la convivencia solidaria. Palabras clave: enseñanza del fenómeno religioso; secularización; laicity; epistemología a la enseñanza del hecho religioso; educación para la solidaridad.


Siglas

SVD: Sociedade do Verbo Divino FHC: Formação Humana e Cristã PUC-MG: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais UFJF: Universidade Federal de Minas Gerais UMESP: Universidade Metodista de São Paulo GSRL: Groupe Sociétés, Religions, Laicités EPHE: École Pratique de Hautes Études ADI: Ação Direta de Inconstitucionalidade MPF: Ministério Público Federal IESR: Instituto Europeu de Ciência das Religiões LDB: Lei de Diretrizes e Bases LEC: Liga Eleitoral Católica ENER: Encontro Nacional de Ensino Religioso CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil SNER: Secretariado Nacional do Ensino Religioso GRERE: Grupo de Reflexão Nacional sobre o Ensino Religioso ENER: Encontro Nacional de Ensino Religioso PMDB: Partido do Movimento Democrático Brasileiro PSDB: Partido da Social Democracia Brasileira PFL; Partido da Frente Liberal PDT: Partido Democrático Trabalhista ASPER: Associação de Professores de Ensino Religioso do Distrito Federal FONAPER: Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso CONIC: Conselho nacional de Igrejas Cristãs AEC: Associação de Educação Católica (AEC),


CIER: Conselho de Igrejas para a Educação Religiosa (CIER) PT: Partido dos Trabalhadores PCNs: Parâmetros Curriculares Nacionais PCNER: Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso CNE: Conselho Nacional de Educação CEB: Câmara de Educação Básica STF: Supremo Tribunal Federal CONSED: Conselho Nacional de Secretários de Educação CNTE: Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação CONIB: Confederação Israelita do Brasil CBB: Convenção Batista Brasileira FEB: Federação Espírita Brasileira FAMBRAS: Federação das Associações Muçulmanas do Brasil FENACAB: Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro LIHS: Liga Humanista Secular do Brasil SBB: Sociedade Budista do Brasil AMICUS DH: Grupo de Atividade de Cultura e Extensão da Faculdade de Direito da USP ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero ANAJUBI - Associação Nacional de Advogados e Juristas Brasil-Israel ASSINTEC - Associação Inter- Religiosa de Educação e Cultura ANPTECRE: Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião IAB: Instituto dos Advogados Brasileiros


GT: Grupo de Trabalho SOTER, da ABHR e da ANPTECRE UFF: Universidade Federal Fluminense UFSC: Universidade Federal de Santa Catarina NMRs: Novos Movimentos Religiosos UNICAMP: Universidade Estadual de Campinas TEVER: Revista Estudos de Religião ARELC: Associação Religiões, Laicidade, Cidadania CNRS: Centre Nacional de la Recherche Scientifique CEIFR: Centro de Estudos Interdisciplinares dos Fatos Religiosos UNESCO: Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura


Sumário

INTRODUÇÃO CAPÍTULO I - Ensino Religioso no Brasil do período colonial à sua situação atual 1.1. Quando educação e catequese se confundiam 1.2. Ensino da religião e primeiros reflexos da secularização 1.3. Religião fora da escola no Estado laico, nem tão laico assim 1.4. Um período de transição: da Era Vargas à Ditadura Militar 1.5. A atuação do FONAPER e a nova LDB: a busca de novos caminhos 1.6. O panorama atual CAPÍTULO II - De uma laicidade de incompetência a uma laicidade de inteligência 2.1. Secularização: construção histórica e conceituação 2.2. A construção histórico-ideológica do conceito de laicidade 2.3. A emergência de um Estado laico e também mediador 2.4. Uma laicidade à brasileira: repensando suas bases teóricas CAPÍTULO III - O estudo da religião como área de conhecimento na escola pública, laica e democrática: em busca de uma base epistemológica 3.1. Relevância do conhecimento religioso para uma sociedade secularizada e para a escola laica 3.2 A necessidade de uma base epistemológica para o ensino do fenômeno religioso de acordo com uma laicidade de inteligência 3.3. O Relatório Debray como referência para o ensino do religioso na escola laica 3.4. A pertinência do fato religioso no contexto de uma nova laicidade mediadora aplicada ao contexto da escola pública CAPÍTULO IV - Uma perspectiva teleológica para o ensino do fenômeno religioso na escola pública: conhecer para conviver 4.1. Conhecer o outro significa também conhecer a religião do outro 4.2. Do patrimônio cultural ao vivre ensemble dos franceses 4.3. O ensino do religioso para o discernimento na busca de um sentido humanizador da vida 4.4. Ensinar o fenômeno religioso não é ensinar uma determinada moral CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA

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p. 79 p. 102 p. 132 p. 141 p. 153

p. 155 p. 165 p. 188 p. 217 p. 237 p. 243 p. 247 p. 254 p. 266 p. 277 p. 289



Introdução

Há necessidade do ensino religioso na escola pública? Sua presença nos currículos pode fornecer elementos que favoreçam o discernimento da religião como fenômeno por parte dos estudantes? Ele pode ser indispensável para uma educação comprometida com a formação de valores e de uma ética comuns? De que modo? O estudo científico das religiões poderá lançar os germes para opções religiosas críticas e maduras? Ou mesmo para opções críticas e maduras pelo agnosticismo e pelo ateísmo? Esta tese pretende responder estas questões, dentre outras. Um projeto de ensino religioso que busque realizar a leitura pedagógica da(s) Ciência(s) da Religião para a escola pública, poderá ter grande relevância para a educação e para a sociedade em geral. A educação laica para a cidadania não pode ignorar as religiões, pela sua forte presença e função na sociedade. É preciso decodificar criticamente as representações e práticas religiosas em nome da convivência sempre mais construtiva entre as pessoas, educar para a convivência social, assim como extrair das tradições religiosas valores que contribuam com a vida humana na sua plenitude. Tenho uma identificação pessoal com o tema do ensino religioso desde os tempos da minha primeira graduação, em Filosofia, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Lecionei a disciplina de ensino religioso no Colégio Cristo Redentor, pertencente à Sociedade do Verbo Divino (SVD), congregação religiosa católica, em Juiz de Fora. A disciplina tinha o nome de Formação Humana e Cristã (FHC). Aliás, aprendi a dar aulas lecionando esta disciplina. Até hoje ela se faz presente, com esta mesma denominação, nos currículos do Colégio Cristo Redentor. Eu trabalhava na perspectiva de um ensino religioso aconfessional, apesar da denominação da disciplina e de estar inserido em uma escola católica. Lembrome dos cursos de formação que fazíamos na Universidade Católica de Minas Gerais (hoje PUC-MG), em Belo Horizonte, e das conversas na UFJF com o nosso professor de Introdução ao Mundo Bíblico I e II, Wolgang Gruen, que contribuía com este diálogo já naquela época. Observo que existia naquele momento uma abertura muito grande para esta postura a partir dos próprios meios católicos, com os quais eu convivia. Tanto tempo

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se passou e não alcançamos até hoje uma diretriz segura nesta que é uma das questões educacionais não resolvidas em âmbito nacional. Mais recentemente, quando, no início da década passada, a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo e o Conselho Estadual de Educação iniciaram a regulamentação da oferta do ensino religioso nas escolas públicas paulistas, este tema veio à tona novamente. Naquele momento eu estava na direção de uma escola estadual em Ribeirão Preto (SP). Participei ativamente da discussão, tanto nos encontros de professores e diretores de escola, quanto em audiências públicas realizadas na Câmara Municipal da cidade, reunindo representantes dos sistemas de ensino e de confessionalidades locais. Já como aluno em regime especial em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), em dois encontros de teólogos e cientistas da religião de que participei em 2011, o tema do ensino religioso na escola pública fazia parte de mesas redondas e de várias comunicações de pesquisa nos grupos temáticos. Ainda em 2011, uma conferência do Prof. Dr. Daniel Sarmento na II Semana de Educação em Direitos Humanos da UMESP com o tema Religião, Estado e Educação, foi bastante elucidativa, de um ponto de vista jurídico. Ele colocou três possibilidades do ensino religioso na escola pública: a confessional, a interconfessional (chamada por ele também de ecumênica) e a aconfessional. Segundo o jurista, somente um ensino religioso aconfessional poderia, em tese, ao mesmo tempo atender ao dispositivo constitucional de previsão do ensino religioso na escola pública e respeitar a laicidade do Estado. A minha formação acadêmica em História, com graduação e mestrado nesta área, influenciou fortemente a minha pesquisa, o que pode ser notado em todo o texto. A partir da História, procurei abrir amplo diálogo com outras áreas do saber, mormente com a sociologia e a antropologia com foco na escolarização do conhecimento do religioso. Foi a partir de toda essa vivência que decidi pelo projeto inicial de pesquisa sobre o ensino religioso na escola pública no Brasil e o apresentei quando do ingresso no programa de pós-graduação da UMESP ao final de 2011. Todas as disciplinas cursadas no programa de pós-graduação da UMESP deram enorme contribuição à pesquisa, principalmente na abordagem de temas indispensáveis para esta tese: a religião como fenômeno de cultura, as relações entre religião, sociedade e cultura, educação e religião, secularização e laicidade, dentre outros. 2


Este projeto foi qualificado em outubro de 2014 sob o título Ensino Religioso na escola pública: área de conhecimento necessária para uma sociedade secularizada. A partir desta identificação e familiaridade com o tema, reuni os instrumentos de pesquisa iniciais para desenvolver o projeto que ora se apresenta como tese. Acredito que ela poderá dar uma grande contribuição tanto ao debate acadêmico quanto a várias instituições e grupos envolvidos nesta discussão, como escolas, sistemas de ensino e seus órgãos gestores, igrejas, sindicatos, juristas, parlamentares e outros. Mas o maior impulso para a minha pesquisa veio do estágio que realizei no Groupe Sociétés, Religions, Laicités (GSRL), na École Pratique de Hautes Études (EPHE), em Paris, entre janeiro e junho de 2015, com uma bolsa de estudos de doutorado sanduiche da CAPES. Neste estágio no GSRL, entrei em contato direto com os maiores especialistas nos estudos sobre laicidade como Jean-Baubérot, Jean-Paul Willaime, Philippe Portier, este último meu co-orientador. Foi essencial ainda o contato com os professores diretamente responsáveis pela condução dos programas de formação de professores do ensino dos fatos religiosos no Instituto Europeu de Ciência das Religiões (IESR), Isabelle de Saint-Martin e Philippe Gaudin. Assisti a várias conferências destes professores e com eles realizei entrevistas, as quais foram bastante esclarecedoras para o meu objeto de pesquisa. Além disso, o contato direto com outros pesquisadores do GSRL, doutorandos e pós-doutorandos, através de seminários e ateliers frequentes, me foi bastante útil. O acesso a muitas publicações sobre a minha temática de interesse em muito facilitou a continuidade da pesquisa no exterior. O eixo central deste trabalho é a possibilidade, combinada com a necessidade, de se estudar o fenômeno da religião, expressão da cultura, como área de conhecimento na escola pública do Brasil sem prejuízo para a laicidade do Estado. Tratase de uma questão complexa que historicamente tem envolvido vários interesses do Estado, das confissões religiosas e de vários outros grupos da sociedade. A laicidade, com a neutralidade do Estado em relação às confissões religiosas, tem sido o argumento sempre colocado para contestar a abordagem da(s) religião(ões) em sala de aula. Mesmo com o suporte de uma área de conhecimento, reconhecido por atos oficiais, permanece a fragilidade de uma base epistemológica para esta disciplina no Brasil e este problema está diretamente relacionado à discussão do respeito à diversidade cultural, pluralidade religiosa e laicidade do Estado, parâmetros previstos na própria Constituição e em outras leis. Este trabalho não tem a pretensão de elaborar essa base epistemológica para o ensino 3


religioso, mas sim argumentar no sentido da sua necessidade, se se quer adequá-lo com claras finalidades pedagógicas. A partir deste eixo central, este trabalho tem como objetivos: 1) demonstrar a evolução histórica do ensino religioso na escola pública do Brasil e suas perspectivas atuais, no contexto de uma sociedade cada vez mais secularizada e no contexto de Estado laico, frente à necessidade da compreensão da religião como ‘objeto de cultura’ e como tradicional instrumento de dominação cultural, social e política; 2) discutir a construção histórico-ideológica do conceito de Laicidade, com sua nova contextualização a partir dos grandes deslocamentos no e do campo religioso que dão ao Estado na contemporaneidade um papel mediador na preservação da cultura nacional, na superação de conflitos culturais e religiosos, e na integração de ações promotoras do bem comum, buscando garantir a liberdade e a igualdade em um clima de verdadeiro pluralismo para que cada homem e cada mulher possa dar sentido à sua vida como melhor lhe parecer; 3) explicitar a função epistemológica específica e autônoma do ensino do fenômeno religioso no currículo da escola pública e laica do Brasil, e sua necessidade para um projeto político-pedagógico, comprometido com a formação de sujeitos, crentes e não crentes, ao dar visibilidade e crédito aos saberes silenciados pela racionalidade ocidental e às experiências humanas com aquilo que os sujeitos religiosos denominam de transcendente; 4) esclarecer em que medida a inclusão dos saberes religiosos no currículo escolar poderá cumprir uma função específica, no conjunto das disciplinas, exatamente no que diz respeito à aceitação do diferente (alteridade) para uma formação baseada na solidariedade, com a construção de valores éticos e princípios de cidadania que possam apontar para um sentido último da vida humana. Para esta investigação, partiremos do grande horizonte teórico do pensamento social crítico, particularmente dos textos de Edgar Morin e Boaventura de Souza Santos. Ambos se insurgem contra o totalitarismo da racionalidade ocidental, que exclui o simbólico, o imaginário, os mitos e as espiritualidades dos cânones de verdade da ciência moderna e propõem a construção de outra racionalidade mais ampla e mais cosmopolita que abarque e credibilize todos os saberes da experiência humana, inclusive os saberes religiosos. Mesmo que a religião não seja o tema central destes autores, seus textos podem nos dar uma contribuição muito útil para a compreensão do lugar que ela continua a ocupar na segunda modernidade e que justifica a sua inclusão no rol dos conhecimentos acadêmicos e escolares. 4


Uma entrevista de Morin, pouco conhecida, à revista Voies Libres, de Lyon, em 1985, que foi traduzida por nós, foi de particular importância, já que trata diretamente da laicidade comprometida com a educação para a condição humana. Ela nos abre caminho para uma perfeita compreensão de uma laicidade de inteligência para justificar o ensino dos fatos religiosos na França, proposta por Debray mais de quinze anos depois. Já a obra A Gramática do Tempo, de Boaventura de Sousa Santos, principalmente os capítulos 2 e 3, será uma referência indispensável para compreendermos o processo de silenciamento das experiências humanas com o considerado transcendente, pela ciência ocidental moderna que, aliás, explica a emergência também da própria laicidade. Tentaremos estabelecer um diálogo entre estes autores do pensamento social crítico com vários outros pensadores, principalmente da França, que discutem hoje uma laicidade mais flexível, mediadora e inclusiva. Tarefa difícil, sem dúvida. Estes autores apontam para horizontes comuns, embora muitas vezes ignorem as elaborações e preocupações uns dos outros. Os dois lados, por vias transversas, apostam na construção de uma racionalidade mais ampla na busca de uma convivência para o bem viver. Como é urgente a conjugação de esforços, inclusive intelectuais, se quisermos apostar na construção da casa comum que nos garanta, para nós e para as futuras gerações, um outro mundo possível com mais tolerância e aceitação do diferente. Cabe aqui, sem dúvida, a proposta do trabalho de tradução proposta por Boaventura de Sousa Santos. O princípio da incompletude de todos os saberes, considerados científicos ou não, é a condição da possibilidade de diálogo e debate epistemológicos entre diferentes formas de conhecimento. Este é o caminho para criar inteligibilidade recíproca entre as experiências e saberes do mundo, tanto os disponíveis quanto os possíveis. Acreditamos que as condições estão dadas para este trabalho de tradução entre os autores do pensamento crítico e os propulsores de uma nova laicidade a partir da França. Dividimos este trabalho em quatro capítulos. No primeiro, faremos uma resenha histórica do ensino religioso no Brasil, focando particularmente a fase mais recente a partir da LDB em 1996. É muito importante conhecer a construção dos regimes de verdade em torno deste componente curricular no Brasil, até mesmo para compreendermos os desafios atuais para a eficácia da modalidade de ensino do religioso como fenômeno social e cultural. A herança católica é pesada e ainda induz, em grande parte, a visão de um ensino religioso confessional e mesmo como um instrumento para se 5


ensinar ética, valores e cidadania, em desconformidade com uma área de conhecimento, como podemos ver na Concordata Brasil-Vaticano. Mas, por outro lado, uma certa reação laicista que temos por aqui em nada colabora também para uma saída adequada para o impasse. A judicialização do problema apenas expõe as dificuldades que o ensino religioso tem pela frente no Brasil. No Capítulo II, abordaremos as questões da secularização e da laicidade em uma perspectiva que vai muito além de simples conceitos e sim como construção social e histórica da sociedade moderna ocidental. Não há como discutirmos a questão do ensino religioso na escola pública sem tratar da laicidade do Estado de maneira profunda. Não há como separar a construção deste conceito de laicidade da afirmação da racionalidade ocidental no mundo moderno, a partir do Renascimento e do Iluminismo. E como construção histórica, trataremos de suas mutações e adaptações, suas variações e seu amadurecimento acompanhando as grandes transformações por que passa a sociedade ocidental, a ponto de Baubérot lançar em 2015 uma obra intitulada As 7 Laicidades Francesas. É justamente na França que esta discussão segue mais avançada. Veremos que uma laicidade de desconhecimento do religioso já está totalmente ultrapassada não apenas na França, mas em todo o Ocidente. Para esta investigação, utilizaremos um conjunto de autores como Giacomo Marramao (1995; 1997), Fernando Catroga (1994; 2010), Roberto Blancarte (2006), Demetrio Velasco (2006), Néstor da Costa (2006), Émile Poulat (2003; 2004), Philippe Portier (2010; 2011a; 2011b; 2011c; 2012), Jean-Paul Willaime (2008a; 2008b; 2011a; 2011b; 2012; 2014), Danièle HervieuLéger (1966; 1990; 1997; 2008), Delumeau (2003), além de Baubérot (2005a; 2005b; 2011; 2012; 2015), dentre outros. Mas faremos questão de situar concretamente esta discussão também no nosso contexto nacional. Esta é uma temática que somente agora está dando seus primeiros passos acadêmicos no Brasil, mas já possuímos uma produção suficiente e importante que nos servirá de referência, vinda de Emerson Giumbelli (2002; 2004; 2009; 2011), Pedro Oro (2007; 2011), Joanildo Burity (2001), Ricardo Mariano (2001; 2006; 2011; 2014), Ranquetat Júnior (2008) e Elisa Rodrigues (2013; 2015), dentre outros. Um capítulo dedicado à laicidade do Estado e, por consequência, do ensino público, se justifica neste trabalho, à medida que no Brasil ela tem sido um fator recorrente para se exigir o banimento dos conteúdos religiosos dos currículos como ameaça à democracia e à liberdade de crença. 6


As questões da laicidade do Estado e da necessidade de uma epistemologia crível para o ensino religioso estão mútua e intrinsecamente implicadas. O que ensinar e como ensinar? Trataremos de responder estas questões no Capítulo III. Este é o capítulo central da tese quando focaremos a probabilidade da nossa hipótese. Se ficar bem clara a importância dos saberes e da experiência religiosos para a cultura, a sociedade e outras dimensões constitutivas do humano, o ensino do religioso torna-se imprescindível no ambiente escolar. Um conjunto de autores nos auxiliará nesta reflexão, de Mariátegui a Boaventura de Souza Santos, passando por Morin, Ricoeur e Debray, cujo relatório de 2002 é uma peça fundamental para o nosso argumento. Mas duas obras foram fundamentais para esta articulação entre laicidade, educação e religião: a) Enseigner les faits religieux: quels enjeux, obra coletiva de Dominique Borne e Jean-Paul Willaime, com prefácio de Règis Debray, publicado em 2007, e b) Vers une laicité d’intelligence? L’enseignement des faits religieux comme politique publique d’éducation depuis les années 1980, com prefácio de Philippe Portier e posfácio de Isabelle de SaintMartin, publicado em 2014. Na nossa hipótese, trabalhada no Capítulo III, o ensino religioso, como ensino do fenômeno religioso, supera as visões mutuamente excludentes, que o admitem como confessional ou que não o admitem de forma alguma. Esta superação somente será possível a partir de uma base epistemológica sólida para esta disciplina, tornando-a uma área de conhecimento necessária e até indispensável para uma sociedade secularizada, como a nossa, e perfeitamente admissível no contexto político do Estado laico. Na nossa hipótese, este modelo, como aplicação didática das Ciências da Religião, é o único que poderá garantir o respeito à diversidade e à pluralidade religiosa da sociedade brasileira e contribuir para a compreensão do fenômeno religioso como objeto de cultura, ao assumir uma função própria do conhecimento fenomenológico da religião como matriz geradora de todas as culturas e etnias. O Capítulo IV deverá responder a crucial questão: para que serve o ensino do religioso? Começaremos pela complexa discussão se o currículo escolar, além de garantir a instrução técnica, pode e deve formar também a consciência dos seus alunos e alunas, comprometida com uma mudança de postura diante do outro, da sociedade e da natureza. Trata-se evidentemente da formação de valores, da ética e da cidadania. Em um segundo passo, que papel necessário, específico e autônomo epistemologicamente falando, o ensino do religioso ocupa dentre as demais disciplinas escolares em relação 7


àquela teleologia. Veremos que o modelo não-confessional de ensino religioso poderá cumprir uma função específica no currículo escolar no que diz respeito à aceitação do diferente (alteridade) para uma formação que tenha a solidariedade como seu horizonte, mesmo sem inculcar nenhuma moralidade específica. Uma série de autores vão nos auxiliar neste percurso, tais como Philippe Perrenoud, Edgar Morin, Jung Mo Sung, Eulálio Figueira, Richard Rorty, Jean-Paul Willaime, Danilo Streck e Joerg Rieger, dentre outros.

A utilidade do ensino religioso na formação dos estudantes é uma questão que permanece inconclusa. Foi possível avançar nas suas perspectivas e desafios, mas uma janela permanece aberta para futuras pesquisas, à medida que o religioso tende a consolidar sua presença no espaço público com implicações sociais, culturais e, sobretudo, políticas relevantes. De qualquer forma, podemos ter a segurança de que o conhecimento deve ser a via para uma sociedade melhor, conhecimento que exija um compromisso ético com o outro para o viver juntos. Conhecer para conviver!

Capítulo I Ensino religioso no Brasil do período colonial à sua situação atual

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O ensino religioso em uma perspectiva histórica

O ensino religioso, entendido como ensino de uma religião, apareceu muito antes que as escolas e podemos dizer que ele tem a mesma idade que elas. Através dele se fazia a transmissão das tradições, das crenças e dos valores para instruir as novas gerações sobre a existência do mundo e do ser humano ou sobre a solução de seus problemas. O ancião, o sábio e o feiticeiro eram os guardiães e transmissores destes conhecimentos e já podemos encontrá-los nos rituais de ensino-aprendizagem das tradições mais antigas com o objetivo de garantir a organização do grupo e do próprio mundo. Com a invenção da escrita, surgiram os primeiros centros de arquivo e difusão das tradições desses povos. Podemos considerar estes lugares, de fato, como as primeiras escolas, onde eram sistematizadas estas tradições com a adoção de princípios lógicos. A teologia, em princípio, interpretou e sistematizou aqueles mitos ancestrais. Já as escolas filosóficas exerceram a função de abrir espaço para o processo dialético que vai operar na transmissão, mas também na ruptura com as tradições até então imitadas de geração a geração (PASSOS, 2007). Estas primeiras escolas se consolidaram exatamente no momento em que conseguem operar estas primeiras rupturas, apresentando uma explicação convincente e original sobre o mundo. Foram elas que lançaram as bases para a história do pensamento e das ciências que depois vieram a se desenvolver. Neste transcurso, as religiões muitas vezes aparecem como um elemento de conflito, fornecendo as categorias e matrizes que foram aperfeiçoadas pela razão e formando uma primeira base de conhecimento capaz de explicar o universo e o próprio conhecimento. “A busca de categorias universais, aptas a explicarem o universo e o ser humano, não só traduziram rupturas metodológicas na atividade de investigação e ensino, centrando, então, este último na autonomia da razão capaz de conhecer e transmitir, para além dos dogmas sociais e religiosos. A morte de Sócrates parece encenar dramaticamente essa ruptura em favor da razão.” (PASSOS, 2007, 86).

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Assim, a Filosofia vinculou o ensino à investigação racional, com o compromisso fundante de levar à verdade, mesmo com a possibilidade de superação e mudança. O palco original deste tipo de racionalidade foi o ocidente. É preciso voltar ás suas origens para compreender a primazia que ela conquistou nos dois últimos séculos. Boaventura de Sousa Santos1 e outros autores do pensamento social crítico já afirmaram que a matriz fundadora da civilização ocidental foi o Oriente. O Ocidente foi a parte trânsfuga daquela matriz original: “esta matriz fundadora [o Oriente] é verdadeiramente totalizante porque abrange uma multiplicidade de mundos terrenos e extra-terrenos e uma multiplicidade de tempos (passados, presentes, futuros, cíclicos, lineares, simultaneos). Como tal, ela não tem de reivindicar a totalidade, nem de subordinar a si as partes que a constituem. É uma matriz antidicotômica porque não tem de controlar nem de policiar limites. Pelo contrário, o Ocidente, consciente de sua excentricidade relativa a esta matriz, recupera dela apenas o que pode favorecer a expansão do capitalismo. Assim, a multiplicidade do mundo é reduzida ao mundo terreno e a multiplicidade dos tempos é reduzida ao tempo linear.” (SANTOS, 2010, 99).

Mas este foi um longo processo. Como muito bem notou Marramao (1995, 160), “a supremacia do Ocidente foi criada a partir das margens.” Nesta mesma linha, Jaspers (1951, 98) considera o período entre os anos 800 e 200 a.C. como aquele “que lançou os fundamentos que permitiram a humanidade subsistir ainda hoje.” Neste período, segundo ele, a maioria dos extraordinários acontecimentos que deram forma à humanidade, tal como a conhecemos hoje, não ocorreu no Ocidente, mas sim no Oriente – China, Índia, Pérsia, Palestina.2 Um desses extraordinários acontecimentos foi o cristianismo. As primeiras comunidades cristãs iniciaram a moldagem da tradição judaico-cristã (do

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Mesmo que a religião não seja o tema central de Boaventura de Sousa Santos e outros autores do pensamento crítico, seus textos contribuem muito ao nos fornecer argumentos úteis para a crítica à razão indolente que coloca hoje as experiências humanas com o transcendental como ignorância e como um saber residual, inferior, local e improdutivo. Assim a religião se revela como mais um campo da ecologia dos saberes trabalhada por Boaventura de Sousa Santos e outros autores. Iremos utilizá-los como referenciais teóricos em diálogo com outros pensadores que tratam dos temas que abordaremos nesta tese, como secularização e laicidade (e seus correlatos), epistemologia e objetivos do ensino dos fenômenos religiosos no ambiente escolar. O Ocidente se constrói a partir da Grécia e, como sabemos hoje, a antiguidade grega deve muito às suas raízes africanas e asiáticas. A Grécia se desenvolveu a partir das margens, das fronteiras do Oriente. Por isso o Ocidente nunca se transformou culturalmente de fato numa centralidade alternativa ao Oriente. 2

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Oriente) a uma explicação racional (do Ocidente). Daí, observamos pelos séculos seguintes, a dialética entre fé e razão. A pedagogia cristã, com este compromisso de ensinar a tradição, teve para isso necessariamente de fornecer também os instrumentos básicos da instrução da linguagem e dos números. As sete artes liberais como a lógica (ou dialética), a gramática e a retórica – o trivium -, e a aritmética (a teoria do número), a música (a aplicação da teoria do número), a geometria (a teoria do espaço) e a astronomia (a aplicação da teoria do espaço) – quadrivium -, tinham seu currículo originário na antiguidade clássica, foram ensinadas por toda Idade Média. Assim, na antiguidade cristã e na cristandade medieval, a educação era o próprio ensino da religião, pura catequese cristã, mas, ao mesmo tempo, diferenciavase dela, pois as escolas deveriam garantir a transmissão dos conhecimentos básicos para a vida material e social. Era a união da fé e da doutrina da Igreja com a tradição cultural e o letramento da vida em comunidade. As primeiras universidades, surgidas na Baixa Idade Média, ainda seguiram este mesmo modelo de fusão epistemológica que solidificou o edifício racional fé-razão. A Escolástica se incumbiu de promover esta grande síntese no campo da teologia cristã. “O ensino das ciências não só convive com as grandes questões teológicas advindas da teologia clássica, como está assentado sobre princípios metafísicos já teologizados tanto pelo cristianismo, quanto pelo judaísmo e pelo islamismo.” (PASSOS, 2007, 88). Vale ressaltar que esta naturalidade racional de Deus vai chegar até a filosofia e as ciências modernas e só se separará delas em definitivo a partir da crítica kantiana no século XVIII. A redução da multiplicidade dos vários mundos ao mundo terreno (somente) teve sua etapa final no processo de secularização e laicização, muito bem analisado por Max Weber e outros autores no decorrer do século XX, o que os levou a concluir pelo desencantamento do mundo ocidental na modernidade que se contrapunha à sedução improdutiva do mundo oriental. Por outro lado, a redução da multiplicidade dos tempos ao tempo linear se fez através dos conceitos de progresso e revolução que vieram substituir a idéia de salvação, que ligava a multiplicidade dos mundos, do terreno ao extraterreno (SANTOS, 2010). Assim, na modernidade, a secularização e laicização da sociedade, promovidas pela proposta iluminista da autonomia da razão, tiraram o ensino da religião da escola, depois de tirar a teologia da universidade. O próprio Rousseau não admitia que

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se devia dar uma educação religiosa às crianças. Isso teria sentido quando o indivíduo tivesse condições racionais de se fazer a pergunta sobre Deus (Cf. METTE, 1999, 94-96). Para Roberto Romano, “a secularização do Estado e da sociedade humana gira [...], ao redor do tempo. Em Dante, Marsílio de Pádua e Francis Bacon encontramos o testemunho cada vez mais eloquente entre o tempo humano e o divino [como já havia assinalado Boaventura de Sousa Santos]. Quem domina o eterno? A Igreja, e baseada nesta posse, ela defenderá com todas as suas forças, o poder indireto sobre o temporal, e o poder direto sobre as consciências. Dentro desse quadro, também se estabelece a luta pelo direito de ensinar e por a docência sob seu controle.” (ROMANO, 1986, 22).

Desde o final da Idade Média, Igreja e Estado vem se digladiando pelo controle do ensino. As primeiras universidades foram resultado do constante desequilíbrio de forças entre o papa e o imperador, entre a poderosa burocracia da cúria romana e os princípios seculares que afirmavam a sua autonomia. Com destaque para as faculdades de direito, tomando como exemplo a de Bolonha, que aceleraram as rupturas entre as instituições de mando, na luta pelo monopólio da educação. Roberto Romano (1986) discorre sobre as escaramuças teóricas do jesuíta Roberto Belarmino com Thomas Hobbes em torno das reivindicações da Igreja e do Estado pelo poder soberano sobre, de um lado, a consciência e os corpos de homens e mulheres e sobre, de outro, o corpo da sociedade civil. Para se firmar, estas definições exigiram séculos com forte impacto sobre a educação, o que levou Romano a concluir: “Enfatizei a ligação entre o poder docente e o poder civil: mesmo que a Igreja não possua de modo direto o segundo, ela é dona imediata do primeiro. O ensino e a religião se fundem num só ato. Este traço eclesiológico foi sempre rearticulado quando a Igreja precisou enfrentar o poder civil e sua postulação de mando sobre a escola.” (ROMANO, 1986, 26).

A religião foi, assim, sendo expurgada do código moderno da interpretação da natureza e da própria história e também das regras de organização social e política. A ciência moderna elaborou todo um aparato epistemológico para silenciar outros conhecimentos não-científicos, inclusive os conhecimentos religiosos. Este processo acabou levando à descredibilização de todos os conhecimentos não

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reconhecidos no âmbito da totalidade da razão ocidental, gerando, segundo Santos (2010), uma gigantesca experiência social desperdiçada de saberes e fazeres. A religião e tudo o que diz respeito ao transcendente passaram a ser considerados como não-existentes no campo real, mas o que a ciência ocidental moderna afirma que não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, ou seja, como alternativa não-credível ao que existe, seu objeto empírico não existe para a ciência social. As experiências humanas com o transcendente passaram a ser consideradas como ignorância, como um saber residual, inferior, local e improdutivo.3 Mas ainda segundo Santos (2010) e Santos & Menezes (2010), a ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer uma razão científica para considerá-la melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da arte ou da poesia. E por que não dizer da própria religião. A razão por que hoje privilegiamos uma determinada forma de conhecimento, e não outra, nada tem de científica. Trata-se apenas de um juízo de valor. Foi se consolidando com o tempo uma divisão racional de tarefas entre as esferas do político e do científico: a ciência moderna fornecia as bases para a constituição do Estado Moderno e de suas instituições, enquanto o Estado fornecia as bases para o desenvolvimento e reprodução das ciências e de suas instituições. Assim, para a razão ocidental, a religião passou a ser alguma coisa do passado e para o poder político uma instituição distinta do Estado. Mesmo a religião entendida como importante mecanismo de controle social acabou ocupando um lugar bastante instável nos sistemas de ensino. A partir do liberalismo, a religião civil de Rousseau e o catecismo positivista de Comte foram projetos para substituir as religiões tradicionais por expressões secularizadas que pudessem exercer aquela mesma função de fundamento e controle social, agora sem o poder da Igreja e do clero, desvinculados definitivamente do Estado. Também no Brasil, após a República, houve tentativas neste sentido.

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Para Santos (2010), o não existente o é por cinco razões lógicas: porque é ignorante pelo critério único de verdade da ciência moderna; porque é residual (ou primitivo, selvagem, pré-moderno, obsoleto, subdesenvolvido) já que a história tem um só sentido, um sentido linear; porque é inferior de acordo com a lógica da classificação social que torna esta inferioridade natural e insuperável; porque é local em contraposição à lógica da escala dominante que é global e universal; porque é improdutiva em contraposição à lógica produtivista do capitalismo.

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Para Passos (2007), a problemática do ensino religioso tem, pois, a modernidade como marco político e epistemológico e, de certa forma, ela se estende até nossos dias. Antes, a força política da cristandade e uma cultura predominantemente cristã haviam permitido um lugar institucional seguro ao ensino dos conhecimentos religiosos dentre os demais conhecimentos. A modernidade ocidental significou uma ruptura progressiva com o domínio social, político e cultural da religião, ainda que não tenha sido um processo hegemônico no tempo e no espaço. O ponto culminante desse processo foi a separação entre Igreja e Estado já na contemporaneidade. Resistindo ou negociando, as instituições religiosas sobreviveram a este novo ambiente e produziram novas formas de interpretação da realidade ou novas formas de associação religiosa. Esta relação entre modernidade e religião é bastante complexa, assumiu muitas e variáveis configurações. Na América Latina, por exemplo, as instituições religiosas ainda permanecem como a referência muito importante para a interpretação da realidade para boa parte de suas populações. Para Passos (2007), a modernidade passou a ver a religião de quatro formas. Primeiramente, como um assunto do passado, cientificamente superado e sem espaço na comunidade científica. Em segundo lugar, como um dado cientificamente provado que, mesmo tendo sido rechaçado do âmbito das ciências, tem condições de justificar-se cientificamente. Foi um esforço de adaptação por parte de alguns sistemas religiosos dentro dos parâmetros epistemológicos modernos, como tentam fazer o espiritismo e outras filosofias religiosas que se veem como ciências. Em terceiro lugar, como um tema de estudo, possível de análise enquanto dado antropológico, sociológico ou psicológico, como fenômeno humano e histórico, sem condições de demonstrar seus fundamentos sobrenaturais. E, por último, como tradição reproduzida e produzida pelas instituições, segundo suas regras metodológicas e pedagógicas. É o caso das igrejas cristãs históricas que continuam ensinando suas teologias, preservando e criando novas regras em diálogo com o pensamento e a ciência modernos. É aí que surge o ensino religioso como um problema. Dentro deste quadro geral ditado pela modernidade é que ele constrói seus diversos modelos que temos hoje. O Estado negociou com as igrejas a possibilidade de ver a religião como alguma coisa superada e fora do sistema científico. A possibilidade de vê-la como um tema de estudo, mesmo com todo o acúmulo teórico-metodológico já alcançado, não foi ainda 14


capaz de fornecer fundamentos para o ensino religioso escolar e, por isso, ele não se viabilizou institucionalmente. Este é, em síntese, o panorama que temos hoje no Brasil. “Portanto, mesmo que a modernidade tenha criado condições epistemológicas para o estudo e o ensino da religião, a opção política tem preponderado nas práticas de ensino religioso, o que reproduz por um lado, cultura científica hegemônica nas instituições modernas e, por outro, as tradições religiosas em suas endogenias doutrinárias.” (PASSOS, 2007, 92).

O Estado segue cuidando das instituições e da ciência e a Igreja cuidando da divulgação de suas doutrinas. Do ponto de vista histórico, é mais simples e cômodo conservar do que mudar.

A crise civilizacional que ora atravessamos atinge duramente a instituição escolar, especialmente no Brasil. Um dos componentes desta crise na educação é que a era da comunicação tem desafiado o modelo escolar e pedagógico centrado na ideia da informação. A escola perdeu sua centralidade social e cultural como lugar clássico de informação. O ensino religioso participa desta crise e da busca pela identidade perdida da escola. Muitos o veem como possibilidade de resgatar valores éticos também em crise e, talvez, ele possa ser a saída da crise da própria escola.

1.1. Quando educação e catequese se confundiam

O ensino religioso no Brasil, praticamente até a República (1889), reproduziu o mesmo padrão herdado da cristandade europeia. Ele se confunde com a própria cristianização levada a efeito por delegação pontifícia para justificar ideologicamente o poder estabelecido, pois o ensino da religião era parte do projeto de dominação e formação do quadro cultural (JUNQUEIRA, 2004, 2007, 2008, 2013). Podemos afirmar que esta perspectiva de ensino religioso como o ensino de uma determinada religião, e por isso chamado de “instrução religiosa” até 1930, praticamente se estendeu de forma intacta da chegada dos portugueses até a Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1996. 15


A visão de que a escola deve ensinar uma religião aos seus alunos remonta, pois, à época colonial. Um dos exemplos ainda presentes desta visão na nossa sociedade é a insistência em tornar a escola pública um espaço de missão religiosa. As diversas visões sobre o ensino religioso que temos hoje não surgem de simples opiniões, mas da história desta disciplina na educação brasileira. As leis, decretos e instruções em geral punham em primeiríssimo plano a evangelização dos gentios (JUNQUEIRA, 2004, 2013). A Carta de Pero Vaz Caminha já afirmava que “o maior compromisso do governante [do rei de Portugal] seria salválos – provavelmente dos costumes diferentes dos reconhecidos pelos europeus como adequados e corretos, numa perspectiva moral apoiada nos conceitos aceitos sobre o que consistia pecado e virtude para a época.” (OLIVEIRA & OUTROS, 2007, 49).

Walter Mignolo esquadrinha a construção ideológica da modernidade e da colonialidade, dois lados do sistema mundial moderno, a partir da colonização da América. Para ele “é bastante sintomática a denominação de Índias Ocidentais dada ao novo continente, o que acabou sendo compreendido como o extremo do ocidente, não sua alteridade. A América, ao contrário da Ásia e da África, incluía-se como parte da extensão da Europa e não como sua diferença.” (MIGNOLO, 2003, 91).

Isto talvez explique porque as escolas jesuíticas no Brasil colônia deveriam, a princípio, ser destinadas apenas aos indígenas4 e de forma alguma aos escravos africanos. “As populações dominadas, nas novas identidades que lhes haviam sido atribuídas, foram também submetidas à hegemonia eurocêntrica como maneira de conhecer.” (QUIJANO, 2005, 19). Com o tempo, a educação jesuítica passou a ser reivindicada também pelos colonos portugueses para os seus filhos. Foi quando a Coroa ofereceu aos jesuítas,

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A expulsão definitiva dos mouros da área do Mediterrâneo neste momento vinha se ajustar com a necessidade de encontrar um lugar para os ameríndios na ordem planetária e cristã da existência. Nesta nova ordem não lhes cabia legalmente a escravidão. Daí a exportação para a América dos escravos africanos para desempenhar as tarefas que os ameríndios – como vassalos cristãos de um rei cristão e servos de Deus – não poderiam legalmente assumir.

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em caráter permanente, a dotação da redízima de todos os dízimos para manter seu trabalho de educação, amparada pelo padroado régio (FISCHMANN, 2008, 13). Podemos afirmar que, a partir deste momento, a escola dos jesuítas assumiu o caráter de um serviço gratuito e público.5 Percebe-se que eram verdadeiras escolas públicas, mas com objetivo de evangelizar, através de uma identificação nem sempre harmoniosa de interesses entre Estado e Igreja, numa época de definições acerca de suas prerrogativas, como já pudemos assinalar anteriormente. Assim, o caráter disciplinador de toda educação catequética dos jesuítas concorreu para a transmissão de uma cultura que visava a adesão a um novo modo de vida estendido do velho ao novo continente e aqui ressignificado. Desta forma, a instrução religiosa foi uma das ferramentas para a promoção da ocidentalização da população local, dos que já se encontravam aqui, dos que vieram livremente e dos que para esta nova terra foram obrigados a vir. A evangelização e catequização dessas populações foram de alguma maneira uma espécie de ensino religioso, de educação e formação religiosas de acordo com os princípios da moral e da doutrina católicas.

Todo um arcabouço institucional garantia este projeto conjunto do Estado e da Igreja. A instituição do padroado, por exemplo, previa que a nomeação dos bispos dependia da autoridade real e os clérigos seculares eram, de fato, funcionários públicos que recebiam as côngruas pagas pelo governo. O rei provia os cargos eclesiásticos usando os recursos dos dízimos recolhidos ao erário e uma série de cargos públicos requeria como pré-condição de investidura o juramento de fé (JUNQUEIRA, 2013). Entre estes cargos, estava o de professores, especialmente aqueles que assumiam o ensino em estabelecimentos oficiais, de maneira que também eles deveriam fazer o juramento à fé católica. Esta obrigatoriedade se estendeu até a Reforma Leôncio de Carvalho, de 1879. (PERES, 2005, 15). Assim, o regalismo6 deu à Igreja Católica muitos privilégios vinculados à Coroa, como o monopólio das instituições de ensino, quase todas sob o comando dos 5

Vários autores defendem que as escolas dos jesuítas tinham caráter público, porque eram mantidas pelos dízimos, sendo estes tomados como parte do que lhes facultava o direito do padroado, ou seja, eram impostos recolhidos pelo direito divino. Estes dízimos, porém, eram arrecadados e administrados pela Coroa. A décima parte deles – chamada de redízima – era utilizada na obra de educação dos jesuítas. Ora, se eram verbas públicas, era pública a educação oferecida, segundo aqueles autores. 6 Regalismo é a teoria ou sistema político que permitia aos monarcas interferir de diversas maneiras na organização interna da Igreja.

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jesuítas7 nos dois primeiros séculos e meio da colonização, mas também de outras ordens religiosas, como a dos beneditinos, carmelitas e franciscanos, que abriram escolas para a instrução dos gentios e colonos e para a formação dos seus sacerdotes. É, pois, neste contexto colonial que estão as raízes do pensamento que vê o ensino da religião como exigência de evangelização para o bem dos homens e das mulheres. Enquanto a educação religiosa se caracterizava como catequese dirigida aos índios e aos brancos pobres, a elite colonial era educada nas escolas da metrópole, principalmente em Coimbra. Esta orientação foi proposta no Sínodo de Salvador, de junho de 1707, e posteriormente assumida pelo episcopado da colônia por meio das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que manifestavam, logo no primeiro capítulo, grande cuidado pela formação religiosa e cristã da população, até mesmo dos escravos (JUNQUEIRA, 2004). Com a expulsão dos jesuítas em 1759, o Estado assumiu praticamente sozinho o lugar da Igreja no que se refere à educação colonial. Podemos considerar que este foi o início do Ensino Público no Brasil, ainda no período colonial. As reformas introduzidas pelo Marquês de Pombal buscaram criar na metrópole e na colônia uma escola útil aos fins do Estado, abandonando progressivamente a educação clássica herdada da cristandade. Ela instaura agora um modelo impregnado pelo racionalismo ilustrado da periferia da Europa. Chegam entre nós, ainda que com algum atraso, e mesmo assim permeados por diversos compromissos com a velha ordem, os primeiros lampejos da autonomia da razão. Mas consequências teóricas e pedagógicas desse passo secularizante são enormes. Estava sendo balizada, de forma radical para aquele contexto, a autonomia do poder secular para instruir e formar homens e mulheres a seu serviço e para fins puramente finitos. A escola foi o locus de seu primeiro impacto: a religião não saiu da escola, mas a escola e a religião agora passaram ao controle direto do Estado. Houve até um primeiro concurso público para a seleção de professores leigos, quando foram aprovados 19 deles. Foram criadas 17 aulas de leitura e escrita e para pagar os professores leigos, foi criado um novo imposto, o subsidio literário 7

Toda a obra educacional dos jesuítas baseava-se na Ratio Studiorum, um plano de estudos, verdadeira sistematização da pedagogia jesuítica contendo 467 regras cobrindo todas as atividades dos agentes diretamente ligados ao ensino. Tinha sua referência na filosofia de Aristóteles e na teologia de Tomás de Aquino.

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(JUNQUEIRA, 2013), arrecadado sobre a circulação de alguns produtos como a carne, o vinho e o azeite. Estas reformas seguiam uma nova filosofia da educação, de cunho nacionalista, reformista e modernizante, mas ainda com o catolicismo da Contra-Reforma como o seu substrato ideológico. Com a chegada da família real em 1808, mudanças foram necessárias para a formação dos novos grupos de elite que deveriam assumir funções culturais e burocráticas no Brasil. Mas não houve interesse de se estruturar um sistema nacional de ensino que integrasse graus e modalidades. Algumas escolas superiores foram criadas 8 e para o acesso a elas, exames de ingresso e cursos secundários.

1.2. Ensino da religião e primeiros reflexos da secularização

A educação no Império, por suas peculiaridades, integra o segundo período da História da Educação Brasileira, que se inicia, propriamente, em 1759, com a expulsão dos jesuítas, e que finda com a República em 1889. Embora permaneçam unidos Igreja e Estado, nesse longo período se desenvolve um lento processo de secularização do ensino, a partir das reformas pombalinas, assumindo o Estado a responsabilidade cada vez maior de cuidar da instrução pública.

Após a independência, no âmbito da Comissão de Instrução Pública da Assembleia Constituinte que então foi eleita em 1823, não teve êxito a ideia de um sistema nacional de educação. Conforme projetos apresentados e discutidos, o ensino superior e a educação popular foram tratados como estruturas paralelas, refletindo preocupações e interesses distintos: de um lado, a formação das elites; de outro, a instrução popular. Assim, o projeto constitucional de 1823, que acabou não vingando devido à dissolução da Constituinte, previa para os brancos uma educação escolar formal, para os índios, haveria catequese e civilização e, para os negros, que seriam emancipados lentamente, haveria educação religiosa e industrial (SILVA, 1977). 8

Progressivamente, o Estado, então ainda monárquico, amplia o pequeno sistema educacional com a criação de cursos de ensino superior (Medicina e Cirurgia). São criadas também a Academia Real Militar, a Academia da Marinha e a Escola de Comércio, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios bem como a Academia de Belas Artes. Não há, porém, significativa evolução no ensino para as camadas populares, enquanto para as elites criam-se bibliotecas, imprensa, teatros, escolas especializadas, etc.

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Na Carta outorgada de 1824 estava expressa a ideia da educação como um direito do cidadão e como um dever do Estado. Referente aos direitos e garantias civis, o seu artigo 179 postulava que a instrução primária fosse gratuita para todos os cidadãos. A ideia de um sistema nacional de educação aparece de modo muito vago e ainda ficou prevista a liberdade de ensino ou permissão para abrir escolas. A Assembleia Legislativa do I Reinado tentou regulamentar a gratuidade do ensino primário, aprovando a Lei Complementar de 15 de outubro de 1827 que tinha por objetivo regulamentar o inciso 32 do artigo 179 da Constituição Imperial. Determinava essa lei que, em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos, deveriam existir, desde que necessárias, escolas de primeiras letras (PERES, 2005, 7; JUNQUEIRA, 2013, 606); além das escolas para meninos, deveriam existir também escolas para meninas com um currículo diferente; os professores seriam vitalícios, ingressando no magistério por concurso público.

Nesta Lei Complementar, encontramos um primeiro esforço de escolarização da religião no seu artigo 6º que descrevia as tarefas dos professores: “Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais, proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e a apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História do Brasil.” (PERES, 2005, 8).

O método a ser utilizado deveria ser o do ensino mútuo posteriormente abandonado. Este método, também chamado monitorial, surgiu na Inglaterra com Bell e Lancaster, nos fins do século XVIII, expandindo-se, depois, para numerosos países, sobretudo, França e Estados Unidos, com êxito até meados do século XIX. Foi principalmente Lancaster quem deu um caráter sistemático à velha prática escolar de utilizar monitores, isto é, alunos mais adiantados como auxiliares do professor. Esta lei fracassou totalmente em sua aplicação por motivos econômicos, técnicos e políticos. Pelo método de ensino mútuo, que quase dispensava o professor,

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foram criadas poucas escolas. Em 1832 elas não passavam de vinte em todo o Império, de acordo com Lino Coutinho, Ministro do Império (AZEVEDO, 1958).

Por aquela Lei Complementar de 1827, quanto ao ensino público secundário, o poder central supervisionaria diretamente as aulas avulsas da Corte, extintas em fins de 1857, as aulas preparatórias anexas aos cursos jurídicos de São Paulo e Olinda e, até certo ponto, o ensino ministrado nos seminários da Igreja. Tendo o monopólio do ensino superior, o poder central exerceria indiretamente o controle do ensino secundário de todo o Império, por meio dos chamados “exames preparatórios”. Tais exames habilitavam para a matrícula nos cursos superiores (HAIDAR, 1972).

Por volta de 1834, o ensino público secundário encontrava-se segmentado em aulas avulsas de latim, retórica, filosofia, geometria, francês e comércio, espalhadas por todo o Império. Na Corte e nas províncias, as aulas públicas providas somavam uma centena ou pouco mais. A organização dos estudos secundários havia somente em poucos seminários, de tradição jesuítica, e no Colégio criado, em 1820, pelos lazaristas na Serra do Caraça, em Minas Gerais (PERES, 2005, 10).

O Ato Adicional de 1834, que trouxe alterações profundas à Constituição Imperial, determinou que o ensino primário e o secundário ficariam a cargo das províncias, e o superior a cargo do poder central, representado pelas faculdades de Medicina e de Direito. O primário não era pré-requisito na sequência da escolarização e os cursos secundários eram quase todos avulsos, de frequência livre, sem uma hierarquização das matérias e das séries, enfatizando-se muito ainda as disciplinas clássicas. Era ainda bastante pesada a herança da educação jesuítica.

A partir do período regencial (1831-1840), o panorama de educação secundária começou a modificar-se, surgindo os primeiros liceus provinciais graças à reunião de disciplinas avulsas, mas sem alcançar o mesmo desenvolvimento dos colégios particulares de ensino secundário que floresceram como decorrência do Ato Adicional. “No período do Império, a educação permanece humanística e literária, e tem a finalidade de reproduzir a estrutura de classes. É notável a distância entre a classe dominante e a grande massa analfabeta. Esse caráter elitista ficou muito bem demonstrado com a criação do Colégio 21


Dom Pedro II em 1837, que passou a ter uma dupla função: bacharelar em Letras e habilitar os alunos à matrícula nas faculdades do país; formar humanistas e candidatos às profissões liberais.” (JUNQUEIRA, 2013, 606).

Em âmbito nacional, em 24 de outubro de 1857, é lançado o Decreto nº. 2006, que regulamenta os colégios de instrução secundária no Município da Corte. O artigo 12 estabelece: “O ensino da doutrina cristã [...] e o da história sagrada compete ao capelão; o qual, além disso, no internato explicará o evangelho nos domingos e dias santos de guarda, na hora, e pelo tempo que for determinado pelo reitor, sendo suas funções reguladas, em geral pelo mesmo reitor”. (CURY, 1993, 22).

O II Reinado (1840-1889) foi palco de grandes transformações econômicas e sociais. Após a Guerra do Paraguai (1864-1870), cresceram as ideias abolicionistas e republicanas. A Questão Religiosa9 na década de 1870 colocou a Igreja em sério conflito com o Estado. Para Vieira (1998), teve início neste momento a separação entre a Igreja e o Estado no Brasil. A Igreja reagia, ao mesmo tempo, ao espírito científico e à própria modernidade. Cresceu a ideia de uma Igreja independente do Estado, sobretudo em razão das reformas do Concílio Vaticano I (1869-1870) que oficializou a romanização da igreja brasileira. “Nas três últimas décadas do século XIX, essa simbiose Igreja-Estado começou a incomodar aos dois lados da parceria. De um lado, o papado pretendia aumentar o controle sobre a igreja brasileira, de modo a desenvolver uma atividade religiosa sem as limitações existentes. De outro lado, as forças políticas emergentes (liberais e positivistas) pretendia que o Estado brasileiro fosse sintonizado com os seus contemporâneos e adotasse uma completa neutralidade em matéria de crença religiosa. A contradição entre estas novas orientações e as antigas práticas produziu conflitos que contribuíram para a queda do regime monárquico.” (CUNHA, 2009, 345).

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A Questão Religiosa foi um conflito ocorrido no Brasil na década de 1870 que, tendo iniciado como um enfrentamento entre a Igreja Católica Romana e a Maçonaria, evoluiu rapidamente para uma grave questão de Estado. Suas causas mais remotas podem ser identificadas muito tempo antes, fundadas em divergências irreconciliáveis entre o regime de padroado e o ultramontanismo católico, agravado pelo processo mais recente da romanização da Igreja, após o Concílio Vaticano I. A questão acabou se centrando na atuação de dois bispos, Dom Vital e Dom Macedo Costa, ardentes defensores da romanização do catolicismo, que acabaram processados e presos pelo governo imperial, se bem que logo anistiados pelo imperador.

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O catolicismo continuava como religião oficial, mas ao longo desta última fase do Império, nasceu a ideia do respeito à diversidade cultural e religiosa da população. Afinal, já não se podia mais ignorar a presença entre nós do protestantismo de missão.10 Já em 1882, em pareceres que deu sobre o ensino primário, e depois, nas discussões em torno do texto da Constituição de 1891, Rui Barbosa tratou da permissão do ensino religioso, ainda entendido como ensino de uma religião, fora do horário normal de aulas e ministrado por pessoa estranha ao corpo docente da escola pública. Em pleno regime imperial, ele propunha que nas escolas mantidas pelo Estado, não deveria ser imposta uma crença religiosa. Nota-se, pois, já nesta época a presença de tendências secularizantes. Foram diversas as iniciativas oficiais ou não, travadas no cenário político da época, em torno de adoção de medidas liberalizantes em relação à religião. Às vésperas da República, as religiões não católicas desfrutavam de uma espécie de liberdade sem igualdade (GIUMBELLI, 2002, 245), mas também é importante lembrar que a essa época nem todas as religiões eram reconhecidas como religião (MONTERO, 2006). Cabe aqui destacar o projeto nº 7247/1879, da reforma da instrução pública de Leôncio de Carvalho, de abrangência nacional, que mantinha o ensino religioso; porém, o § 1º do artigo 4º dizia que “os alunos acatólicos não são obrigados a frequentar a aula de instrução religiosa que por isso deverá efetuar-se em dias determinados da semana sempre antes ou depois das horas destinadas ao ensino das outras disciplinas” (CURY, 1993, 22).

No final do Império, o ensino religioso perde espaço e foi substituído em vários lugares pela disciplina de Educação Moral e Cívica. Outra mudança que acontece neste período foi a exclusão de alunos não-católicos da obrigatoriedade de assistir aulas de ensino religioso de orientação católica. A disciplina de Educação Moral e Cívica visava, principalmente, transmitir às novas gerações os valores seculares, as chamadas virtudes cívicas. Esta ganha força nos primeiros momentos do regime republicano, pois se torna um instrumento para a formação de uma nova identidade

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Em 1859, época em que as primeiras missões protestantes estrangeiras começavam a atuar no país de maneira sistemática, um parecer oficial da Assembleia Nacional derrubou o argumento que tentava impugná-las com a alegação de que faziam “propaganda de doutrinas contrárias à religião do Estado”. Dois anos depois, um decreto permitia as atividades de grupos não católicos desde que não tentassem contra as leis do Império.

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nacional desvinculada do catolicismo. Os positivistas, maçons e republicanos são os principais preconizadores e incentivadores dessa disciplina.

De qualquer forma, em suas linhas gerais, o ensino religioso do período do Império permaneceu como ensino da religião católica, de forte caráter doutrinário, sob a proteção da lei e com claros objetivos de reprodução ideológica da organização social vigente.

1.3. Religião fora da escola no Estado laico, nem tão laico assim

O novo regime republicano instalado em 15 de novembro de 1889 no Brasil foi seguido pela separação entre a Igreja e Estado. O Estado laico brasileiro foi oficializado pelo decreto nº 119-A do Governo Provisório, em 7 de janeiro de 1890, antes mesmo da promulgação da nova Constituição: “O Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório da Republica dos Estados Unidos do Brasil, constituído pelo Exercito e Armada, em nome da Nação, DECRETA: Art. 1º E' prohido à autoridade federal, assim como à dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões filosóficas ou religiosas.11 Art. 2º A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos atos particulares ou públicos, que interessem o exercício deste decreto. Art. 3º A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos nos atos individuais, se não também as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público. Art. 4º Fica extinto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerrogativas.

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Nota-se que a primeira parte deste artigo é praticamente uma tradução da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América.

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Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade jurídica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes à propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o domínio de seus haveres atuais, bem como dos seus edifícios de culto. Art. 6º O Governo Federal continua a prover a sustentação dos atuais serventuários do culto católico e subvencionará por um ano as cadeiras dos seminários; ficando livre a cada Estado o arbítrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes. Art. 7º Revogam-se as disposições em contrario. (REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Decreto n] 119-A [7 de janeiro de 1890]. Presidência da república. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www;planalto.gov.br/civil_03/decreto/1851-1899/d119a.htm>).

A separação que foi instaurada projetou-se como diferenciação de esferas, do que concernia ao Estado e do que ficava a cargo da Igreja Católica (majoritária naquele período). Grosso modo, isso significava que: (a) as paróquias não mais corresponderiam a unidades administrativas (vilas, distritos, bairros), (b) as eleições seriam realizadas fora das igrejas, (c) a educação e as escolas passavam a ser responsabilidade do Estado, (d) não mais haveria religião oficial e, por fim, (e) foram criados hospitais e cemitérios públicos além de cartórios para registros de nascimento, casamento e óbito (MONTERO, 2006).

Assim, a partir do decreto nº 119-A, várias esferas da vida social até então ligadas à Igreja Católica se secularizam.12 Logo depois, a Constituição de 1891 institui o casamento civil, a secularização dos cemitérios e o fim da subvenção estatal a qualquer culto religioso (MARIANO, 2003).

A Constituição de 1891, ao dissolver o vínculo entre Igreja e Estado, suprimiu as subvenções oficiais, mas autorizou toda confissão religiosa a associar-se para 12

Segundo Giumbelli (2002), A lei de Separação Igreja-Estado da França, de 1905 compreende sobretudo disposições circunscritas e práticas centrada na regulamentação das Associations Cultuelles e no estabelecimento de um regime de transição. A lei brasileira é basicamente uma lei de princípios, preocupada em inaugurar um novo regime global entre Estado e religião. No entanto, é exatamente em suas raras disposições práticas que se revelam os vínculos e as dependências com o passado.

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este fim e adquirir bens. Impediu, no entanto, a institucionalização de associações religiosas em templos ou igrejas, atribuindo-lhes o mesmo estatuto de outras entidades da sociedade civil (MONTERO, 2006, 52). Esta primeira constituição é absolutamente fundamental para a definição dos temas em função dos quais se considerou juridicamente a religião no Brasil e foi sobre ela que se efetivaram diversos acréscimos e qualificações. Um documento do Apostolado Positivista de 1893 afirmava que nos Estados Unidos a separação não teria desbancado a oficialidade da teologia cristã, resultando de uma solução de compromisso diante da impossibilidade de estabelecer uma denominação única e consensual como religião de estado. No Brasil, pelo contrário, a separação teria sido sistemática, eliminando-se completamente toda teologia de Estado, a ponto de podermos nos considerar a nação ocidental mais adiantada neste quesito. (GIUMBELLI, 2002, 243). Todos, até os bispos católicos, a muito contragosto, admitiam que se tinha inaugurado um regime radicalmente novo. Enfim, como afirma Giumbelli, “nossa república parece ter isso mais republicana que a francesa, configurando aqui um processo abrangente e concentrado de laicização” (GIUMBELLI, 2002, 243). Se as leis de laicização eram boas, sua aplicação na prática era bastante duvidosa. São constantes as reclamações e denúncias de grupos acatólicos dos abusos e mistificações da Constituição, traduzidos na proteção escandalosa das autoridades ao culto católico. São arrolados casos concretos que, anos mais tarde, reapareceriam nas denúncias de uma conferência realizada no Centro Republicano Brasileiro. Diversos documentos de lideranças católicas da época confirmam as regalias e proteção escancarada do oficialismo aos interesses da Igreja Romana. Parece que em nosso regime de separação pululavam os vínculos, compromissos, contatos, cumplicidade entre autoridades e aparatos estatais e representantes e instituições católicas (GIUMBELLI, 2002, 246). De qualquer forma, a implantação da República marcou uma nova concepção de educação escolar.13 Benjamin Constant, novo ministro da Instrução, Correios e Telégrafos, foi o responsável por uma profunda reforma de ensino que envolveu alterações no currículo, reestruturação dos conteúdos, de acordo com a organização das ciências e dos princípios positivistas de Auguste Comte (JUNQUEIRA, 13

Tal posicionamento dos constituintes de 1891 pelo caráter laico da educação pública era intencional, visto tratar-se do rompimento de um dos liames com o padroado, já extinto pelo decreto nº 119-A do Governo Provisório.

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2007, 17). Copiando o modelo francês da III República, em substituição ao ensino da religião, foi criada a disciplina “Moral”, algumas vezes seguida por “e Cívica” e que alguns mais radicais gostariam que fosse “religião da humanidade” (FISCHMANN, 2008, 14), mas foi uma iniciativa fadada ao fracasso. O laicismo14 era uma das bandeiras dos positivistas e dos liberais. Fernando de Azevedo afirma que: “Com a separação da Igreja e do Estado e a laicização do ensino administrado nos estabelecimentos públicos (art. 72, nº. 6, da Constituição de 91) e, portanto, com o agnosticismo da constituição republicana, a política escolar da Igreja, que até então exercera quase o monopólio de direção espiritual, sofria os primeiros golpes que a orientação comtista das reformas educacionais, no governo provisório, não fez senão acentuar, deslocando a influência clerical para um plano secundário. A reação contra a ideologia leiga consagrada pela Constituição e a intervenção dos positivistas na moldagem da nova ordem educacional, ainda levaria algum tempo para se organizar, e relativamente à supressão da escola pública confessional, não se tornou eficiente senão cerca de 40 anos depois, quando novamente obteve o restabelecimento do ensino religioso nas escolas.” (AZEVEDO, 1958, 126).

A Igreja Católica, já enfraquecida com a Questão Religiosa do final do Império, foi incapaz de negociar um novo pacto que viesse a substituir o regime de padroado e sua situação de religião oficial do país (JUNQUEIRA, 2008, 22). Quando Rui Barbosa elaborou o texto da Constituição Brasileira de 1891, partiu da proposta estadunidense que defendia ‘uma Igreja livre em um Estado livre’. A partir deste princípio, o jurista baiano interpretava o texto de 1891 como não proibitivo da instrução religiosa fora do horário das aulas, mas apenas à sua expressão curricular, na grade normal de horários. No seu famoso discurso de 1909, no Colégio Anchieta, em Petrópolis, durante sua campanha à presidência da República, ele aproxima seu entendimento da laicidade da concepção presente na Constituição estadunidense: “Nas escolas neutras, enfim, o horário profano abre espaço ao ensino religioso, distribuídos pelos ministros dos vários cultos nos próprios recintos escolares. Ali [nos Estados Unidos da América] não se divisa nestes fatos o mínimo agravo à secularidade legal das instituições. O que lá se não toleraria, nem a nossa Constituição tolera, é estabelecer distinções legais entre confissões religiosas, sustentar a instrução ou o 14

Os conceitos de laicidade e de laicismo ainda serão tratados com mais detalhes no capítulo seguinte. Por ora, podemos entender laicismo como doutrina ou uma plataforma política que advoga a separação entre a Igreja e o Estado ou, pelo menos, era assim entendida no contexto do novo regime de 1889.

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culto religioso à custa de impostos, obrigar a frequência dos templos ou à assiduidade dos deveres da fé, criar embaraços de qualquer natureza ao exercício da religião, contrariar de algum modo a liberdade de consciência, a expressão das crenças, ou a manifestação da incredulidade, nos limites do respeito às crenças e à liberdade alheias.” (RUI BARBOSA, 1909. In OLIVEIRA, 2008, 112).

Entre adversários e defensores do ensino religioso na escola pública, a própria visão do que foi a postura da 1ª República em relação á religião apresenta profundas diferenças. Para alguns, naquele momento, “de maneira geral, argumenta-se a favor de uma laicidade à americana, em que se propugna o Estado neutro em matéria religiosa, bem menos radical que uma laicidade à francesa em que o Estado nega papel público relevante à instituição clerical, reduzindo a opção religiosa a tema de foro íntimo.” (OLIVEIRA, 2008, 113-114).

Foi por este tipo de argumento que muitos estados reintroduziram, com o tempo, o ensino da religião nas suas escolas, sendo o primeiro deles Sergipe em 1923. Seguiu-se Minas Gerais que o reintroduziu em 1924 fora do horário escolar15. Este Estado acabou introduzindo o próprio catecismo católico em 1928 nas escolas primárias e em 1929 o ensino da religião na grade de horários nas escolas primárias, secundárias e normais. Mas, para outros autores, a compreensão que o Estado brasileiro assumiu na prática, nos primeiros anos da República, foi a de negar a presença religiosa, proveniente da interpretação da laicidade francesa: “Isto porque existe uma diferença entre o Estado laicista e o Estado laico: a primeira expressão assume a perspectiva do ateísmo e nega realmente a presença do elemento transcendente, enquanto a segunda expressão simplesmente afirma que o Estado não assume uma confissão religiosa, mas permite a liberdade de seus cidadãos professarem suas crenças. Portanto, ao Estado compete garantir a liberdade religiosa da população, reflexão esta que está presente nos discursos de Rui Barbosa e também de Mário de Lima.” (JUNQUEIRA, 2008, 25).

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A Lei 1092/28, do governo de Minas, reintroduziu o ensino religioso nas escolas oficiais do Estado. Foi resultado da forte pressão da Igreja neste estado contra as medidas laicizantes da federação, mas também expressou o reconhecimento do prestígio e influência da Igreja neste Estado e principalmente da sua importante contribuição na solução dos conflitos sociais.

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O ensino laico foi oficialmente instituído sob uma forte inspiração da “neutralidade escolar”, entendida como ausência de qualquer tipo de informação religiosa na escola. Mas este ensino laico foi recebido à época, inclusive por muitos legisladores, mas principalmente pela própria hierarquia católica, como um ensino irreligioso, ateu e laicista, como afirma Junqueira (2007, 2008). As aulas de religião foram eliminadas das escolas públicas, o que foi veementemente criticada pela Igreja Católica. Ela condenou as escolas neutras, mistas (que reunia numa mesma classe alunos e alunas) e leigas. Argumentou que a população brasileira era católica e que, por isso, a instrução escolar deveria ser católica. Para ela, o ensino leigo era o mesmo que ateu e irreligioso, pois para os crentes de qualquer confissão, a indiferença religiosa trazia profundos males à sociedade como um todo.

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Destacavam-se, no começo da República, os pensadores católicos de tendência tradicionalista como Eduardo Prado, Carlos de Laet, Felício dos Santos, Afonso Celso, Joaquim Nabuco, dentre outros (MOOG, 1981). Esses pensadores criticavam duramente o laicismo do regime republicano. O partido católico afirmava em seu programa, em 1890: “supressão imediata nas escolas públicas dos programas ateus e positivistas, e a reintegração e nova promulgação de regulamentos mais conformes à fé dos cidadãos brasileiros” (TAMBARA, 1991, 495). Em 1914, o Centro Católico do Brasil defendia o ensino religioso nos estabelecimentos públicos e a subvenção estatal às escolas particulares católicas (TAMBARA, 1991). A Igreja continuava invocando assim, influência nas orientações políticas do Brasil (LUSTOSA, 1992, 25-27).

Os atores religiosos envolvidos na polêmica discutiam duas posições básicas. A primeira era a própria concepção da educação, revelando uma oscilação entre a influência humanística clássica e a realista ou científica, ou seja, a necessidade de uma abordagem religiosa do currículo, com a informação católica sobre ele. 17 Dois aspectos, por exemplo, desta abordagem, que chegam até nossos dias, se referem às questões do

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A educação foi uma importante preocupação do episcopado e era vista como um caminho para se alcançar a integralidade humana, considerada como fundamental para o desenvolvimento da família, através do conhecimento moral e religioso. 17 Esta posição se inspirava no Direito Canônico da Igreja Católica e ficou claramente definida mais tarde com a encíclica Divinis Illius Magistri, do papa Pio XI, em 31 de Dezembro de 1929.

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criacionismo e do comportamento sexual, geralmente tratadas pelos professores nas aulas de Ciências. Nos Estados Unidos, esta posição é o fator de maior relevância ainda hoje (OLIVEIRA, 2008, 111). No Brasil, pela Constituição de 1891, também por este tipo de argumento, muitos entendiam que estava proibida uma abordagem religiosa do currículo escolar, mas não a existência de uma disciplina de ensino da religião. A segunda posição básica era a existência da aula de religião na escola pública. Diferentemente dos Estados Unidos da América, no Brasil foi esta posição que prevaleceu. Segundo Oliveira (2008, 115), movida talvez por um senso de realismo político, no período posterior à República, a posição majoritária do episcopado brasileiro seria no sentido de confluir para esta segunda posição, o que se mantém posteriormente. Assim, durante a Primeira República, enquanto o novo regime deixava plena liberdade de ação para a Igreja, os setores mais conservadores se esforçaram para reduzir os dispositivos laicizantes do Estado. Não foi à toa que nos primeiros anos da República, foram criados importantes colégios católicos e protestantes, muitos dos quais chegam até os nossos dias. Dentre as diversas reformas do ensino no início do regime republicano, destaca-se a Reforma de Rivadávia Corrêa de 1911 (JUNQUEIRA, 2004, 2007). De forte inspiração positivista, tentou dar um sentido técnico e prático ás disciplinas, ampliou a liberdade de ensino, aboliu o diploma, substituído por um certificado de assistência e aproveitamento, passou às faculdades a incumbência de exames de ingresso no ensino superior (origem do nosso vestibular) e reforçou a concepção de que o nível secundário deveria formar o cidadão e não apenas o candidato ao nível seguinte do ensino (FISCHMANN, 2008, 15). Outro momento em que a questão do ensino da religião veio à tona foi nos debates em torno da tentativa da reforma constitucional de 1925/1926. O ensino da religião acabou não sendo reintroduzido nas escolas públicas em nível nacional, mas a militância católica divulgou ardorosamente o fato de que ele já era realidade em seis estados da federação. Andrade Bezerra, intelectual católico, escreveu, em 20 de setembro de 1925, sobre as emendas Plínio Marques – que pretendiam introduzir cláusulas favoráveis ao ensino religioso nas escolas públicas - nesta reforma constitucional. Andrade Bezerra defendia que emendas de Plínio Marques não tinham como objetivo restabelecer a união entre Igreja e Estado, mas permitir o ensino da religião da maioria 30


dos brasileiros na escola pública sem impô-lo como disciplina obrigatória; seria uma disciplina facultativa. Para Bezerra: “A escola é um desses terrenos de onde não se pode excluir a religião, porque é nela que se forma a alma da juventude, problema de estrita competência da igreja. Em quase todo o mundo se debate hoje a questão escolar. E, qualquer que seja a orientação dos que desse assunto cogitam, reconhecem todos que a escola será por Deus ou contra Deus; indiferente nunca. A escola leiga é um mito, em que ninguém mais acredita”. (MOOG, 1981, 112).

Para os prelados brasileiros e para os intelectuais católicos conservadores da Primeira República, a ideia de uma escola pública laica, neutra e indiferente em matéria religiosa era um mito perigoso. A escola neutra era, na verdade, para eles uma escola de ateísmo e irreligião, não era justo que a religião da maioria dos brasileiros, o Catolicismo, não tivesse seu espaço na escola pública através do ensino religioso. Além da simples instrução, as crianças e adolescentes necessitavam da educação católica para formar sua alma, sua personalidade de acordo com os princípios da religião cristã. A ausência do ensino religioso nas escolas públicas era percebida pela intelligentsia católica, como um instrumento de descristianização do povo brasileiro, como um produto do preconceito laicista contra a religião católica.

Entre 1910 e 1930, a Igreja, sob a liderança do Cardeal Sebastião Leme, fez enorme esforço para a retomada da influência direta da Igreja Católica sobre o Estado, enfrentando forte reação dos positivistas e da Maçonaria. Foi nesta época que se organizou a Liga Eleitoral Católica (JUNQUEIRA, 2007, 20), mais tarde com forte presença nos processos constituintes de 1934 e 1946. Ela orientava o voto católico para candidatos que pudessem se comprometer com um programa político de seus interesses, dentre os quais, o ensino da religião católica nas escolas públicas. Buscava-se a restauração católica na sociedade brasileira.

1.4. Um período de transição: da Era Vargas à Ditadura Militar

A Revolução de 1930 trouxe uma nova configuração política ao Brasil, inclusive nas relações entre a Igreja e o Estado com importantes reflexos na educação e 31


no agora denominado oficialmente ensino religioso na escola pública. O ideal republicano de uma “escola para todos” foi agora assumida pelo Estado e concretizada posteriormente pela Constituição de 1934 com a edição de um Plano Nacional de Educação e com a expansão da rede de ensino. Ainda durante o governo provisório de Vargas (1930-1934), o ensino religioso foi regulamentado através do decreto 19.941, de 30 de abril de 1931, de autoria do Ministro da Educação e Saúde Pública, Francisco Campos18: “O Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil decreta: Art. 1º Fica facultado, nos estabelecimentos de instrução primária, secundária e normal, o ensino da religião. Art. 2º Da assistência às aulas de religião, haverá dispensa para os alunos cujos pais ou tutores, no ato da matrícula, a requererem. Art. 3º Para que o ensino religioso seja ministrado nos estabelecimentos oficiais de ensino, é necessário que um grupo de, pelo menos vinte alunos, se proponha a recebê-lo. Art. 4º A organização dos programas de ensino religioso e a escolha dos livros de texto ficam a cargo dos ministros dos respectivos cultos, cujas comunicações, a este respeito, serão transmitidas às autoridades escolares interessadas. Art. 5º A inspeção e a vigilância do ensino religioso pertencem ao Estado, no que respeita à disciplina escolar, e às autoridades religiosas, no que se refere à doutrina e à moral dos professores. Art. 6º Os professores de instrução religiosa serão designados pelas autoridades do culto a que se referir o ensino ministrado. Art. 7º os horários escolares deverão ser organizados de modo que permitam os alunos o cumprimento exato de seus deveres religiosos. Art. 8º A instrução religiosa deverá ser ministrada de maneira a não prejudicar o horário das aulas das demais matérias do curso. Art. 9º Não é permitido aos professores de outras disciplinas impugnar os ensinamentos religiosos ou, de qualquer outro modo, ofender os direitos de consciência dos alunos que lhe são confiados. Art. 10 Qualquer dúvida que possa surgir a respeito da interpretação deste decreto deverá ser resolvida de comum acordo entre as 18

No Governo Provisório (1930-1934) que se seguiu à Revolução, Francisco Campos assumiu a direção do recém-criado Ministério da Educação e Saúde, credenciado pela reforma que promovera no ensino de Minas Gerais, em que o ensino religioso era disciplina obrigatória nas escolas públicas. A justificativa do governo mineiro era de que a religião impediria a rebeldia e levaria à obediência às leis e à ordem. Foi essa a mesma justificativa do governo provisório de Vargas para o decreto que instituiu o ensino religioso em todo o país, conforme o modelo mineiro.

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autoridades civis e religiosas, a fim de dar à consciência da família todas as garantias de autenticidade e segurança do ensino religioso ministrado nas escolas oficiais. Art. 11 O Governo poderá, por simples aviso do Ministério da Educação e saúde Pública, suspender o ensino religioso nos estabelecimentos oficiais de instrução, quando assim o exigirem os interesses da ordem pública e a disciplina escolar.” (CÂMARA DOS DEPUTADOS. Legislação. Decreto 19.941 [30 abril 1931]. Disponível em: <http://www2.camara.leg.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto19941-30-abril-1931-518529-norma-pe.html>).

Percebe-se, pelo texto do decreto, que um conjunto de questões polêmicas passou a pautar o debate sobre o ensino religioso nos anos seguintes chegando até os dias de hoje: a abrangência em termos de níveis de ensino, o formato da facultatividade por parte do aluno, os critérios para a formação das classes, a liberdade de consciência e a liberdade de cátedra por parte dos professores de carreira, a relação com as autoridades de cada denominação religiosa e a definição de conteúdos. Quanto à abrangência, definiu-se que ela seria ampla, mas com prioridade para o ensino primário, já que a disciplina revestia-se de um caráter essencialmente catequético para a faixa etária correspondente às crianças e adolescentes. Quanto ao formato da facultatividade, todos eram matriculados, a menos que as famílias se manifestassem ao contrário, constituindo-se esta norma, a nosso ver, em violação da expressão da vontade individual, já que, ao contrário de termos a explicitação da vontade de matricular o filho, tal desejo se manifesta pela solicitação da dispensa. Uma questão crucial se coloca para as escolas com os alunos que solicitarem dispensa das aulas de ensino religioso, se estas forem oferecidas dentro da grande de horários, já que esta questão não ficou definida. Em nenhum documento aparece o que fazer com estes alunos. Questão que permanece ainda hoje. Em relação à docência e à relação com as autoridades religiosas, fica clara a interferência destas no âmbito escolar na medida em que os professores de ensino religioso serão credenciados e descrendenciados por elas e não pelo poder público, sendo eles professores ou não da escola. Outra omissão providencial do decreto se refere à remuneração dos professores. O pagamento dos professores seria mais que estímulo, já expresso pela 33


cessão do espaço e horários, seria, na verdade, financiamento de um projeto da própria denominação religiosa, com clara afronta à laicidade do Estado Federal. Essa omissão abriria espaço para a aprovação de leis próprias pelos estados definindo o pagamento dos professores, como ocorreu com Minas Gerais. Na definição dos conteúdos, novamente o poder público se abdica de sua soberania e a transfere para autoridades religiosas. Todas estas alterações a favor dos interesses da Igreja tinham uma clara intenção política: visava o seu apoio ao novo governo que se impunha através de um movimento armado e se encontrava ainda longe de alcançar uma sólida hegemonia política no seio da sociedade. Entretanto esta dimensão política não esgota todo o significado deste ato. Existe aqui uma clara dimensão ideológica. Ao identificar “formação moral” com a educação religiosa e transferir para a Igreja a formação moral do cidadão, o Estado não apenas responde às exigências dos educadores católicos, mas demonstra claramente sua concepção autoritária ao estabelecer mecanismos para reforçar a disciplina e a autoridade. A disciplina, nos dois sentidos, tomou o nome de ensino religioso, mas a concepção continuou sendo de aulas de religião. Assim, o ensino religioso foi moeda de barganha entre Vargas e a Igreja. Para muitos autores, como Junqueira, este projeto se inspirou na aliança entre Mussolini e o Papa Pio XI, à época do Tratado de Latrão que criou o Estado do Vaticano em 1929 (JUNQUEIRA, 2008, 26). A Igreja Católica se aproxima do governo de Getúlio Vargas, dando legitimidade, respaldo ao novo governo desde que este restabelecesse certos privilégios, direitos e espaços que a Igreja Católica havia perdido com as medidas jurídicas secularizantes da Constituição de 1891. Dentre tais privilégios, o ensino religioso nas escolas públicas era um dos mais importantes; ao lado do reconhecimento dos efeitos civis do casamento religioso; o direito dos sacerdotes de servirem ao exército como capelães; a liberação de verbas públicas para obras sociais da Igreja e a introdução do nome de Deus no preâmbulo da Constituição eram exigências feitas por parte da Igreja Católica para apoiar o regime (SCHWARTZMANN, 1986).

Por ocasião da inauguração da estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, em 1931, o cardeal Leme assim se pronunciou: “ou o Estado reconhece o Deus do povo ou o povo não reconhecerá o Estado” (DELLA CAVA,1975, 15).

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Muitas foram as discussões ocorridas na década de 30, entre os laicistas que advogavam um ensino laico e os grupos religiosos, principalmente a Igreja Católica que defendia o ensino religioso nas escolas públicas. Eram os católicos que queriam o retorno do ensino religioso. “Como os americanos, nos assiste a nós o ‘jus’ de considerar o princípio cristão como elemento essencial e fundamental no direito brasileiro, escreveu em 1931 o pensador católico Tristão de Athayde, citando Rui Barbosa” (GIUMBELLI, 2002, 122).

Outros grupos religiosos se aliaram aos laicistas. Exemplo disso foi a atuação do deputado Guaraci Silveira19, representante das igrejas protestantes que combatia o ensino religioso e defendia o ensino laico. A mesma situação se deu na França, onde os protestantes e judeus opunham-se ao ensino religioso nas escolas públicas, apoiando a causa laicista de uma escola pública laica, obrigatória e gratuita (CATROGA, 2006).

Em reação à reintrodução do ensino religioso nas escolas públicas, foi lançada ainda em 1931 a “Coligação Nacional Pró-Estado laico” liderada por Arthur Lins de Vasconcelos Lopes, líder espírita do Rio de Janeiro, e composta por denominações protestantes, como luteranos e metodistas, além de anarquistas, maçons e diversas correntes de intelectuais. A “Coligação”, como ficou conhecida, reuniu uma pluralidade de representações ideológicas e religiosas, formando comitês e ligas nos estados (FISCHMANN, 2008, 15). Cecília Meirelles era uma das expoentes deste movimento. Ela tinha uma Página da Educação no jornal Diário de Notícias, onde fazia veemente defesa do Estado laico. Cecília Meirelles chamava o Decreto [nº 19.941, de 30 de abril de 1931] de antipedagógico e anti-social, considerando a assinatura de Getúlio Vargas um grave erro. Para ela, a escola moderna deveria ser laica, termo que corresponderia a uma isenção de preocupações religiosas. “Entretanto, existia um lado positivo, identificado por Meirelles, é o fato de protestantes, espíritas, positivistas e livres-pensadores se unirem para derrubar o decreto. Afinal, cada um poderia egoisticamente aplaudir, visando fazer prevalecer a sua crença, e servindo-se desta oportunidade para uma intensificação de propaganda.” (MEIRELLES, Cecília, 10/5/1931. In MORAES, J. D. A Cultura liberta, o catolicismo escraviza: Cecília Meirelles e o ensino religioso nos anos 1930. GT 19

Guaraci Silveira era metodista e filiado ao Partido Comunista, foi o primeiro pastor protestante eleito deputado federal em 1933 e foi um ferrenho defensor da laicidade do Estado.

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História da Educação/m. 2, PPBIG/UNICAMP, s/d. Disponível em: <http://30reuniao.anped.org.br/trabalhos/GT02-3209--Int.pdf>).

Durante a chamada Era Vargas foram duros também os embates entre os segmentos mais conservadores da sociedade e a Escola Nova que representava uma visão liberal na educação. Chamada também de Escola Ativa ou Escola Progressiva, foi um movimento de renovação do ensino, que surgiu no fim do século XIX e ganhou força na primeira metade do século XX. Nascida na Europa e nos EUA, chegou ao Brasil em 1922, pelas mãos de Rui Barbosa, e exerceu grande influência nas mudanças promovidas no ensino a partir da década de 1920, quando o país passava por uma série de transformações sociais, políticas e econômicas (JUNQUEIRA, 2004, 2008). No novo contexto de crescimento industrial e de expansão urbana, um grupo de intelectuais brasileiros sentiu necessidade de preparar o país para acompanhar esse desenvolvimento. A educação era por eles percebida como o elemento-chave para promover a remodelação desejada. Inspirados nas ideias político-filosóficas de igualdade entre os homens e do direito de todos à educação, esses intelectuais viam num sistema estatal de ensino público, livre e aberto, o único meio efetivo de combate às desigualdades sociais do país. Para Junqueira, a educação defendida pela Escola Nova era essencialmente “um processo de reconstrução da experiência em que liberdade, interesse e diálogo indicavam princípios básicos de relações democrático-liberais no interior da escola e da sala de aula. A ação educativa deveria ser realizada seguindo os interesses da infância e para a vida. A escola deveria preparar os jovens para o trabalho, para a atividade prática e para o exercício da competição. O aprender a aprender consubstanciou uma espécie de lema escolanovista que referendou não só o princípio liberal do individualismo, mas também a ideia de autonomia por parte do aluno como condição para inserir-se no universo urbano-industrial.” (JUNQUEIRA, 2007, 23).

Em 1932, um grupo de 26 personalidades lançou o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Este documento consolidava a visão de um segmento da elite intelectual ligado à Escola Nova os quais, embora com diferentes posições ideológicas, vislumbravam a possibilidade de interferir na organização da sociedade brasileira do ponto de vista da educação. Redigido por Fernando de Azevedo (18941974), foi assinado por 26 intelectuais, dentre os quais Anísio Teixeira (1900-1971), Afrânio Peixoto (1876-1947), Lourenço Filho (1897-1970), Roquete Pinto (1884-1954), 36


Delgado de Carvalho (1884-1980), Hermes Lima (1902-1978), Paschoal Lemme (19041997) e Cecília Meireles (1901-1964). 20

Durante toda a década de 30, destacaram na defesa dos interesses da Igreja frente o Estado Antônio Augusto de Lima e o padre jesuíta Leonel Franca, que teve sua proposta sobre ensino religioso incorporado ao texto da Constituição de 1934, ao instituir o ensino religioso com frequência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis e como disciplina dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias e normais. Desde então, o ensino religioso foi utilizado como argumento políticoideológico, com destaque em plataformas e programas ou como objeto de debates e de contestação: “Sob este enfoque, [o ensino religioso] fez parte de acertos e articulações político-partidárias, transformou-se em material de manipulação nos jogos de poder entre governantes e próceres de diferentes tendências ideológicas e políticas, envolvendo também lideranças de denominações religiosas, especialmente a Igreja Católica. Ficou notório tal uso político da religião, ressaltando o Ensino Religioso em momentos de mudanças de governo ou de golpes institucionais, como o foram a instauração da República e a Revolução de 30 e anos subsequentes.” (RUEDELL, 2007, 24).

O ensino religioso passou, a partir de 1934, a ser facultativo para o aluno e com oferta obrigatória pela escola. Observa-se aqui a primeira vez que se estabelece um dispositivo legal semelhante ao que diz a Constituição de 1988. Mas há aqui uma diferença a ser destacada. A “frequência” é que é facultativa e não a “matrícula” que seria a expressão clara da não obrigatoriedade. Alguns autores, como Moreira (2008, 119) interpretam esta cláusula como uma forma de burlar a facultatividade por parte do aluno, já que outras obrigações, como as avaliações, poderiam dele ser cobradas, mesmo com a dispensa às aulas.

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Ao ser lançado, em meio ao processo de reordenação política resultante da Revolução de 30, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova se tornou o marco inaugural do projeto de renovação educacional do país. Além de constatar a desorganização do aparelho escolar, propunha que o Estado organizasse um plano geral de educação e defendia a bandeira de uma escola única, pública, laica, obrigatória e gratuita. O movimento reformador foi alvo da crítica forte e continuada da Igreja Católica, que naquela conjuntura era forte concorrente do Estado na expectativa de educar a população, e tinha sob seu controle a propriedade e a orientação de parcela expressiva das escolas da rede privada.

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Enfim, podemos considerar que o período que permeia as duas primeiras constituições republicanas no Brasil, 1891 e 1934, foi quando os aspectos centrais do debate contemporâneo acerca da regulamentação do ensino religioso foram construídos. Foi neste período que se avançou na perspectiva de aumentar o grau de apoio do poder público ao proselitismo religioso e, portanto, violando cada vez mais o princípio da laicidade do Estado (OLIVEIRA, 2008, 110). Com o golpe do Estado Novo em 1937 e a nova constituição outorgada, retiram-se do texto constitucional diversos dispositivos referentes à Igreja. Assim, a Constituição de 37 voltou à posição muito parecida com aquela de 1891. O ensino religioso poderia ser contemplado como matéria do curso ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderia, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de frequência compulsória por parte dos alunos. Em 1942, porém, surgiu a Lei Orgânica do Ensino Secundário, de Gustavo Capanema, que incluiu o ensino religioso entre as disciplinas de educação geral. Dizia a justificativa do projeto de lei: “A religião terá que ser ensinada em aula e praticada na conformidade de seus mandamentos (confissão, comunhão, missa, exercícios religiosos). A escola entrará aqui em entendimento com a Igreja e a família [...] O ensino religioso não se confunde, entretanto, com a prática, culto ou devoção religiosa. O ensino deve ser instituído pelas escolas [...], reservando-se para ele certo período do horário semanal. O professor será um sacerdote ou leigo, conforme a maior conveniência do estabelecimento.” (CAPANEMA, G., 2007, 24).

Nas suas primeiras versões, este projeto de Lei Orgânica do Ensino Secundário não tornava o ensino religioso como matéria obrigatória. Lideranças católicas reagiram fortemente. Entre elas, Pe. Leonel Franca e Alceu Amoroso Lima que chegou a dizer que não era possível deixar opcional esta disciplina por fazer parte da formação das novas gerações. A versão final levou em conta esta preocupação e por isso, previu que o ensino da religião constituiria parte integrante da educação da adolescência. Assim, os estabelecimentos de ensino secundário poderiam incluí-lo nos estudos do primeiro e do secundo ciclos, sendo o programa de religião e seu regime didático fixado pela autoridade eclesiástica.

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Os programas de ensino religioso foram encaminhados pouco depois pelo arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara, ao Ministro da Educação. Foram acompanhados das instruções metodológicas para a sua execução. Fica explícito que seu objetivo era formar o cristão católico. Seus conteúdos previam as principais verdades da fé, a moral cristã, o culto e os sacramentos (JUNQUEIRA, 2007, 25). Em outras palavras, o ensino religioso continuava a ser entendido como ensino de uma religião. Ao final da II Guerra (1939-1945) e com o fim do Estado Novo (19371945), restabeleceu-se um regime político mais democrático. A nova Constituição manteve os princípios gerais do Estado laico, com a separação entre Igreja e Estado e, ao mesmo tempo, garantia plena liberdade de consciência e de culto. Vejamos estes dispositivos no próprio texto da Constituição de 1946. No capítulo sobre a Educação da Constituição de 1946, restabeleceramse alguns princípios que haviam sido suprimidos pela carta outorgada de 1937: a educação como direito universal, a obrigatoriedade do curso primário, a assistência aos estudantes e a gratuidade do ensino oficial para todos no primário e mesmo para os níveis posteriores se o aluno provasse insuficiência de recursos. Esta foi uma fase de profundas transformações no Brasil, com a transição de uma sociedade agrária para uma sociedade urbano-industrial, forte êxodo rural, de uma sociedade homogênea para uma sociedade pluralista e diversificada em todos os sentidos. De certa forma, a Constituição de 1946 refletiu aquelas transformações. Ainda no processo constituinte de 46, surgiu, mais uma vez, a polêmica sobre a presença ou não do ensino religioso na escola pública, tanto que membros da comissão de Educação na Constituinte chegaram a afirmar que esta disciplina era um constrangimento no cotidiano escolar (JUNQUEIRA, 2008, 27). A Liga Eleitoral Católica (LEC) fez forte pressão pela inclusão do ensino religioso na grade de horários. Houve uma primeira proposta de colocá-lo fora do horário das aulas e sem ônus para o Estado, o que foi aceito pela LEC, com a justificativa de que sempre fora ministrado gratuitamente e seria interessante que assim permanecesse (JUNQUEIRA, 2008, 28). “esse embate entre diferentes forças sociais, situadas no embate político, fosse ele partidário ou não, a debater o tema do ensino religioso na escola pública, foi retomado a cada processo constituinte por que 39


passou o Brasil, sempre de forma intensa e conflituosa. A redação pouco variou de uma Constituição para outra, indicando a persistência de lobbies nas constituintes e nos processos de elaboração da legislação complementar, a denotar atitude não propriamente religiosa, mas política, de cunho anti-laico, anti-republicano e antidemocrático.” (FISCHMANN, 2008, 16-17).

Gustavo Capanema, ex-ministro da Educação de Vargas, foi o responsável pelo texto sobre Educação na nova Constituição, inclusive do dispositivo sobre o ensino religioso. As famílias teriam de indicar desde a matrícula a participação ou não de seus filhos nas aulas de ensino religioso (cf. Fávero, 1996, 164-175). Ao final, o texto sobre o ensino religioso ficou com a redação seguinte: Art. 168 da Constituição de 1946. A legislação do ensino adotará os seguintes princípios V – O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável. (REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil [18 setembro 1946]. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de assuntos Jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3% A7ao46.htm>).

Ainda com a vigência da Constituição de 1946, a primeira Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 4.024 de 1961, homologou o modelo de ensino religioso mais antigo do país: o confessional. Mas houve manifestações e pressões de vários grupos contrários desde a Constituinte de 1946. Duas questões continuavam em pauta: se a disciplina deveria ser incluída dentro do horário de aulas e se haveria pagamento aos professores. Eram questões diretamente relacionadas à discussão da laicidade do Estado e de difícil equação frente aos interesses de todos os atores envolvidos. Muitos o viam como um corpo estranho na escola: possuía caráter facultativo e o registro de docentes cabia à autoridade religiosa e não ao sistema de ensino. Outro desafio operacional era a divisão de turmas segundo o credo. Vejamos como ficou o texto da LDB de 1961 no que se refere ao ensino religioso: 40


“Art. 97. O Ensino Religioso constitui disciplina dos horários normais das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado sem ônus para os cofres públicos, de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou por seu representante legal ou responsável. Parágrafo 1º A formação de classe para o ensino religioso independe do número mínimo de alunos. Parágrafo 2º O registro dos professores de ensino religioso será realizado perante a autoridade religiosa respectiva.” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – 4.024/67. In: SAVIANI, Demerval. Política e educação no Brasil. 66. Ed. Campinas: Autores Associados, 1996, 3).

Sem existir um programa específico, os estados reproduziram em suas constituições esta orientação geral da LDB de 1961, verdadeira catequese na escola. Com exceção de Minas Gerais, os professores não foram remunerados. Mas pode-se considerar que o texto desta lei apenas ratificou uma realidade já existente até então. (JUNQUEIRA, 2007, 33). A efervescência política do início da década de 60 foi violentamente podada pelo golpe militar e pela ditadura civil-militar que se seguiu. A constituição de 1946 é retalhada por inúmeras emendas e totalmente desfigurada pelos Atos Institucionais e Complementares. Em 24 de janeiro de 1967, é promulgada uma nova Constituição por um Congresso eivado de inúmeras cassações e outras arbitrariedades. Com o recrudescimento do regime ditatorial a partir de 1968, a Junta Militar, que assumiu o poder após o afastamento do Presidente Costa e Silva, impôs a Emenda Constitucional nº 1, em 17 de outubro de 1969. Pela Constituição de 1967 e pela Emenda Constitucional nº 1 de 1969, as relações entre o Estado e as religiões praticamente não foram alteradas em relação à Constituição de 1946. No que se refere ao ensino religioso, a Emenda nº 1 em nada modificou o texto da Constituição de 1967. Na década de 70, a racionalidade técnica se tornou bandeira do ensino público para todos voltado agora para a formação para o mercado de trabalho e, portanto, para a subserviência aos interesses do capital industrial em expansão. Foi abandonado um percurso entre uma educação clássica e as primeiras experiências de uma proposta 41


progressista. Foi neste contexto que se fizeram as reformas da educação nesta década, do Ensino Superior com clara conotação política, e do ensino de 1º e 2º graus, de viés marcadamente econômico (JUNQUEIRA, 2007, 33). A segunda LDB, Lei 5692 de 11 de agosto de 1971, já no período da Ditadura Militar, foi publicada pelo então ministro da Educação, Coronel Jarbas Passarinho, e contemplou o ensino religioso, de matrícula facultativa e com horários normais nos estabelecimentos oficiais de 1º e 2º graus, como um elemento que colaboraria na formação moral das gerações, ao lado da disciplina de Educação Moral e Cívica. A escola passou a ser responsável por organizar o processo de aquisição das habilidades, atitudes e conhecimentos específicos, úteis e necessários para que os alunos fossem integrados ao sistema social. Uma formação conteudista com base em informações, princípios e leis estabelecidos de forma lógica por técnicos e especialistas do governo. Com isso, aumentou o número de disciplinas obrigatórias do núcleo comum, mas o ensino religioso permaneceu facultativo para os alunos. Disciplinas da área de Humanas de cunho crítico como a Filosofia e a Sociologia, praticamente desapareceram do currículo escolar. Os defensores do ensino religioso na escola pública veem a década de 1970 como um momento importante de articulação em nível nacional dos diversos grupos que nos estados iniciavam discussões mais aprofundadas sobre esta disciplina21. Uma das figuras de maior referência na época foi o padre salesiano Wolfgang Gruen na defesa da proposta de uma educação da religiosidade, na perspectiva interconfessional, tendo como base o pensamento de Paul Tillich. “Nos estados da federação, o ensino religioso passou a ser uma presença reconhecida nos sistemas de ensino [...] A novidade estava, então, na formação de um novo quadro nacional. Foi notório o esforço de articulação do ensino religioso no país, com certeza um movimento enriquecedor, pois as experiências regionais na década de 1970 foram fortalecidas com os Encontros Nacionais de Ensino Religioso (ENERs), promovidos pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mas com forte participação de leigos [...].” (JUNQUEIRA, 2008, 31).

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Não há como negar que todo este movimento, orientado pela cúpula da Igreja Católica, mas com forte participação de suas bases leigas, foi diretamente influenciado por alguns grupos ligados à Teologia da Libertação.

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Esta percepção da década de 70 como um momento importante do empoderamento das articulações em torno do ensino religioso em nível nacional, apesar da ditadura militar, tinha as suas razões de ser. Depois da II Guerra Mundial, tiveram início grandes mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais que ganharam ritmo e intensidade após a reconstrução europeia, com o auge do desenvolvimento do hemisfério norte e com a difusão de ideias e ações que caracterizavam o surgimento de um novo paradigma sociocultural chamado de pós-modernidade. Para Pedro Ruedell, no campo católico e protestante tradicional “tais mudanças também se fizeram sentir no campo religioso. É no bojo das reflexões a partir desse novo paradigma que podemos assinalar a afinidade da religião e do ensino religioso com o pensamento de Paul Tillich.” (RUEDELL, 2007, 21-22). Nos anos 1960, Tillich discutia a situação do homem e da mulher na sociedade moderna, chamando a atenção para a religião. Ao contextualizar as suas ideias, referiu-se a duas manifestações aparentemente opostas: o grande despertar para as questões religiosas e, simultaneamente, um esvaziamento dos símbolos religiosos tradicionais ligados às religiões tradicionais do Ocidente. Ele busca responder ao questionamento de tais expressões, fazendo a seguinte afirmação: “O elemento decisivo na situação do homem ocidental é a perda da dimensão de profundidade” (TILLICH, 1962, 8). Esta dimensão de “profundidade” é uma metáfora que, quando aplicada à perda ou à carência de vida espiritual, significa que o homem e a mulher não perguntam mais sobre o sentido da vida e sobre outras questões existenciais. Numa acepção positiva, “dimensão de profundidade” refere-se à dimensão religiosa.22 “Ser religioso significa perguntar-se de modo apaixonado pelo sentido da vida e estar aberto à resposta, ainda que nos abale profundamente” (TILLICH, 1962, 8). A religião, como dimensão de profundidade, é o “o ser do homem e da mulher enquanto comprometidos com o sentido da vida e da existência como tal” (TILLICH, 1962, 9). Corroborando este pensamento de

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É importante lembrar aqui que, para Tillich, a dimensão religiosa pode ser dotada de outras formas de dar significado à vida, formas não-teológicas, apreendidas da cultura. Isso é importante porque ao empregar fenômeno religioso e dimensão religiosa referindo-se ao ser humano, por exemplo, nos textos do FONAPER, não se observa cuidado rigoroso com os pressupostos conceituais que estão por trás dessas expressões. E, por conta disso, popularizou-se uma forma de emprega-las que soa um tanto essencialista.

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Tillich, Wolfgang Gruen fez naquela época a defesa da proposta de uma educação da religiosidade, na perspectiva interconfessional, como afirma Ruedell: “É tarefa da educação desenvolver esta realidade espiritual profunda, ajudando os humanos a orientar sua vida para aquilo que os realize de maneira duradoura, dando respostas aos desejos que brotam de seu íntimo e se efetivam no encontro de amor.” (RUEDELL, 2007, 42).

Outra razão que distingue a década de 70 foram os reflexos do Concílio Vaticano II no Brasil, também no campo católico. É ainda Pedro Ruedell que nos informa: “A Igreja propôs-se estar atenta aos sinais dos tempos, às necessidades e possibilidades emergentes no contexto atual, e ser co-agente na história contemporânea, no sentido de uma maior humanização das atividades humanas, de valorização das culturas, de promoção do diálogo, do desenvolvimento integral de todos os povos e da construção da paz com base na justiça social. As outras confissões cristãs ocidentais também seguiram por um caminho de renovação.” (RUEDELL, 2007, 22).

A década de 80 foi marcada pelos movimentos que exigiam a redemocratização do país. O povo voltou às ruas para cobrar direitos de cidadania. Restabeleceram-se progressivamente as liberdades democráticas e a chamada “sociedade civil organizada” assume papel de interlocutora legítima com o Estado. Foi com esse novo quadro social e político que chegamos ao processo constituinte iniciado em 1986.

1.5. A atuação do FONAPER e a nova LDB: a busca de novos caminhos

Todo este processo desembocou na Constituinte e na Constituição de 1988 que foi a mais democrática da nossa história, dando amplo destaque aos direitos sociais. Este entendimento do ponto de vista da Constituição é importante para compreender o seu caráter amplamente democrático em que está inserido o ensino religioso construído a partir de então no Brasil, de acordo com os seus defensores. Em relação ao ensino religioso, a Constituição de 1988 previa o seguinte:

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“Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. Parágrafo 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.” (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil [8 outubro 1988]. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>).

A liderança da mobilização para garantir o ensino religioso na Constituição esteve em grande parte com os próprios professores da disciplina, dentre os quais muitos padres e freiras, atuantes nos estados onde possuíam maior organização. O que antes era feito somente pela cúpula da Igreja Católica, agora foi assumido, de modo especial, pelos próprios educadores23, incentivados por ela a assumir seus direitos de cidadania, dentre os quais o da garantia do ensino religioso na escola pública, na visão de seus defensores (CARON, 1998, 16). Vale lembrar também que algumas poucas lideranças protestantes, em especial luteranas dos estados do sul, também participaram deste movimento. Assim, durante o 6º Encontro Nacional de Ensino Religioso (ENER), ocorrido em Brasília em 1987, os coordenadores estaduais desta disciplina, marcando presença maciça, durante a Assembleia Nacional Constituinte 1987-1988, tiveram um dos seus momentos altos de participação ao reivindicar a garantia da disciplina na nova Carta, através da Comissão de Educação e Cultura (CARON, 1998, 17). Dentre as 83 emendas populares que tramitaram na Constituinte, o projeto para o ensino religioso foi a segunda maior em número de assinaturas, protocolada no prazo do primeiro período aberto à participação popular, pois obteve mais de 68 mil

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A CNBB, continuou atuante na discussão sobre o ensino religioso através do SNER (Secretariado Nacional do Ensino Religioso) e do GRERE (Grupo de Reflexão Nacional sobre o Ensino Religioso), que mobilizava os grupos de professores através dos Encontros Nacionais de Ensino Religioso (ENERs). O documento nº 49 da Coleção Estudos da CNBB, de 1987, traz novas posições que passaram a considerar o ensino religioso não tanto a partir das denominações religiosas, como doutrinação, mas antes como um componente escolar e como elemento de educação. É possível perceber aí uma certa mudança de ótica vinda da própria cúpula da Igreja Católica. Para maior aprofundamento nesta questão, ver RUEDELL, Pedro. Educação Religiosa: fundamentação antropológico-cultural da religião segundo Paul Tillich. São Paulo: Paulinas, 2007, pp 29-30.

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assinaturas, sendo superada naquele momento apenas pelo projeto popular da Reforma Agrária (JUNQUEIRA, 2004, 26). Eis o texto desta emenda popular pró-ensino religioso: “A educação religiosa será mantida pelo Estado no ensino de 1º e 2º graus, como elemento integrante da oferta curricular, respeitando a pluralidade cultural e a liberdade religiosa.” (cf. RUEDELL, 2007, 31). Não são poucas as vozes que àquela época se levantaram contra a introdução do ensino religioso na escola pública. Muitas arguiram e continuam denunciando a própria inconstitucionalidade do artigo 210, como, por exemplo, Romualdo Portella Oliveira, ao afirmar: “Em diversas ocasiões [...] manifestei minha compreensão da inconstitucionalidade desse dispositivo. O ensino religioso na escola pública fere o art. 19 da Constituição Federal e viola o princípio da separação Igreja-Estado, na medida em que representa estímulo e subsídio financeiro do poder público a um ou mais cultos religiosos. A inclusão desta disciplina como obrigatória no texto constitucional viola o princípio acima, tornando-se, portanto, inconstitucional, ainda que isso mereça um debate mais detalhado, uma vez que há uma argumentação jurídica razoavelmente embasada em sentido contrário.” (OLIVEIRA, 2008, 109).

Para Sueli Carneiro, o texto da Constituição de 1988, em termos gerais, “parte de uma posição laica republicana, proclamada pelo Estado brasileiro, mas negada por ele próprio, na legislação e na prática educacional.” (CARNEIRO, 2008, 143). Para esta autora, são incoerências que denunciam as dificuldades do Estado brasileiro para romper com sua tradição de amálgama entre os interesses do Estado e da Igreja. Percebe-se, com toda clareza, que, na visão dos seus críticos, o ensino religioso continua a ser visto como o ensino de uma religião, o que não deixa de se ter razão se focalizamos alguns sistemas de ensino que adotam abertamente o ensino religioso confessional, como o do estado do Rio de Janeiro. Estes mesmos críticos apontam ainda o pagamento dos professores desta disciplina como a mais explícita forma de se ferir o dispositivo constitucional que veda o estabelecimento, o patrocínio e a subvenção pelo Estado de cultos religiosos ou igrejas, se este ensino for considerado de caráter confessional. Por outro lado, tem razão boa parte desta crítica quando a própria Constituição e a LDB ainda permanecem distantes de um ensino religioso como área de conhecimento, dando vazão a diversos outros modelos confessionais e interconfessionais, 46


que além de excludentes em relação a outros cultos de tradição africana e indígena, ferem dispositivos garantidores da liberdade religiosa. Após a promulgação da Constituição de 1988, o deputado Octávio Elísio (PMDB-MG) apresentou na Câmara Federal um projeto fixando as diretrizes e bases nacionais frente à nova realidade da educação e da sociedade brasileira, de acordo com os parâmetros da nova Constituição. Para a elaboração do texto final da proposta, o deputado Jorge Hage (PSDB/BA) foi escolhido como relator do projeto.

Com emendas e projetos anexados à proposta original, tiveram início as negociações, com a formação de um grupo de parlamentares na defesa da ampliação dos recursos para a educação pública, de um modelo democrático de gestão escolar, de uma maior abrangência do sistema público de educação, com a regulamentação da educação infantil e avanços curriculares para o ensino médio.

Até que o substitutivo de Jorge Hage (PSDB/BA) fosse aprovado, mais de 40 entidades e instituições foram ouvidas em audiências públicas e foram promovidos debates e seminários temáticos com especialistas para discutir os pontos polêmicos do substitutivo que o relator vinha construindo. Diversos setores ligados aos interesses da escola privada opunham-se a alguns dos pontos da proposta e tinham o apoio de parlamentares que resistiam às iniciativas mais democráticas.

Esses debates e negociações deram origem a duas novas versões do texto do deputado Otávio Elísio, sendo a última votada na Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados, e com aprovação final na sessão de 13 de maio de 1993. Tal projeto, ao dar entrada no Senado, foi protocolado como PLC (Projeto de Lei da Câmara) nº 101 de 1993, tramitando ali durante três anos e tendo como relator na Comissão de Educação o Senador Cid Saboia (PMDB/CE).

Uma vez aprovado no Senado o projeto da LDB retornou a Câmara dos Deputados na forma do substitutivo Darcy Ribeiro e o deputado José Jorge (PFL/PE) foi designado relator. O Governo Federal pressionou por uma aprovação rápida e, assim, em sessão realizada em 17 de dezembro de 1996, foi aprovado na Câmara o relatório final e sancionado três dias depois pelo Presidente da República. 47


Desta forma, oito anos após Constituição, foi sancionada a terceira e atual LDB, Lei nº 9.394, denominada também Lei Darcy Ribeiro24. Ela passava a orientar os sistemas de ensino de todo o país e pretendia favorecer a diversidade nacional e a pluralidade cultural brasileira. Implicou uma nova compreensão para a educação nacional, com princípios e fins mais amplos (JUNQUEIRA, 2007, 36). Na verdade, o texto aprovado em 1996 foi resultado de um longo embate, que durou cerca de seis anos, entre duas propostas bastante distintas. A primeira conhecida como Projeto Jorge Hage (PSDB/BA), da Câmara dos Deputados, foi o resultado de uma série de debates abertos com a sociedade, organizados pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. A segunda, do Senado, foi elaborada pelos senadores Darcy Ribeiro (PDT/RJ), Marco Maciel, (PFL/PE) e Maurício Correa (PDT/DF) em articulação com o poder executivo através do Ministério da Educação e Cultura. A principal divergência entre aqueles dois projetos era em relação ao papel do Estado e da Educação. Enquanto a proposta dos setores organizados da sociedade civil apresentava uma grande preocupação com mecanismos de controle social do sistema de ensino, a proposta dos senadores previa uma estrutura de poder mais centrada nas mãos do governo. Apesar de conter alguns elementos levantados na Câmara, o texto final da LDB se aproxima mais das ideias levantadas no Senado, que contou com forte apoio do governo Fernando Henrique nos últimos anos da tramitação. A regulamentação do ensino religioso pela LDB motivou uma grande mobilização em todo o país entre abril de 1995 e dezembro de 1996 por aqueles diversos grupos que, de alguma forma, já vinham engajados nesta discussão desde a constituinte e mesmo antes dela. Na visão desses grupos25, a inserção do ensino religioso no contexto global da educação visava tornar as relações do saber mais solidárias e participativas, ajudando a descobrir instrumentos eficazes para a compreensão e a ação transformadora 24

De acordo com Dalton José Alves (2002), a lei aprovada é o cumprimento de um programa tornando-se um marco simbólico de uma guinada neoconservadora da educação no Brasil na década de 90, nos moldes do ideário neoliberal. Esse programa começou a ser implementado no Brasil de forma mais sistemática e incisiva no governo de Collor e de Fernando Henrique Cardoso; ainda assim, a lei permanece ambígua porque conceitua, mas não assegura o próprio cumprimento. 25 Entre estes grupos, podemos citar a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Associação de Professores de Ensino Religioso do Distrito Federal (ASPER), o FONAPER, o Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (CONIC), a Associação de Educação Católica (AEC), dentre outros.

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da realidade social, através dos valores fundamentais da vida. Reconhecer o ensino religioso no espaço público era, para esses grupos, uma questão de democracia e do reconhecimento das diferenças e da pluralidade da sociedade brasileira: “[...] tinha por objetivo contribuir com o caráter democrático que a sociedade brasileira começava a incorporar, na medida em que suas diferenças e pluralidades culturais pudessem ser manifestadas e legitimadas em espaços de relações com o conhecimento, como é a escola.” (JUNQUEIRA, 2007, 37).

Nos discursos desses grupos é praticamente ausente qualquer menção à laicidade do Estado. O reconhecimento da pluralidade cultural e religiosa é tomado como justificativa de uma necessidade prática de ampliar politicamente o espaço dessa disciplina no âmbito escolar. Estavam em jogo a amplitude e o alcance do ensino religioso, já previsto na Constituição, mas totalmente carente de uma base epistemológica que justificasse do ponto de vista pedagógico a sua inclusão no currículo escolar. Naquele momento, não se falava ainda de um ensino religioso como área de conhecimento para o estudo científico das religiões. Prevalecia uma prática inter-confessional, com predomínio claro das confissões cristãs e com uma nebulosa proposta de educação para valores e cidadania. Em abril de 1996, a 34ª Assembleia Geral dos Bispos do Brasil, reunida em Itaici (SP), dedicou um tempo específico para refletir sobre o ensino religioso. Ela encaminhou, a seguir, um documento assinado primeiramente pela Presidência da CNBB, e depois por todos os bispos, a todos os deputados e deputadas federais, solicitando apoio e atenção ao artigo sobre o ensino religioso na futura LDB, no sentido de se garantir a remuneração aos professores desta disciplina, pois este era, sabidamente, o principal ponto de controvérsia. A mobilização nacional se intensificou com a atuação dos participantes do 11º Encontro Nacional de Ensino Religioso (11º ENER), promovido pela CNBB, em agosto de 1996. Mas a redação final dada pelo Senado à LDB de 1996 frustrou as expectativas dos defensores do ensino religioso na escola pública, ao estabelecer que esta disciplina seria ministrada “sem ônus para os cofres públicos”, sendo que seus professores deveriam trabalhar de forma voluntária ou financiados pelas instituições religiosas:

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“Art. 33 [...] Parágrafo 3º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de educação básica, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter I – confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas, ou II – interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa. Parágrafo 4º Os sistemas de ensino atuarão de forma articulada com as entidades religiosas para efeito da oferta do ensino religioso e do credenciamento dos professores ou orientadores. Parágrafo 5º - Aos alunos que não optarem pelo ensino religioso será assegurada atividade alternativa que desenvolva os valores éticos, o sentimento de justiça, a solidariedade humana, o respeito à lei e o amor à liberdade.” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DESPORTO. Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 9.394/96 [20 dezembro 1996]. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/leis/lein9394.pdf>).

Resta informar que os parágrafos 4º e 5º foram vetados pelo presidente da República ao sancionar o projeto aprovado pelo Senado que, então, foi transformado na Lei 9394/96, em 20 de dezembro de 1996. Combinando o artigo 210 da Constituição de 1988 e a LDB de 1996, o ensino religioso se regia, então, pela seguinte estrutura: matrícula facultativa, inserção nos quadro de horário normal das escolas públicas, sem ônus para os cofres públicos, oferecida de acordo com as preferências do aluno e da sua família, portanto, com caráter confessional ou interconfessional. Ficou estabelecido que os sistemas de ensino seriam responsáveis pelo credenciamento dos docentes das escolas. Mais uma vez, chama atenção a total omissão sobre o que fazer com os alunos que não optarem pela disciplina. Este sempre será um gargalo operacional, de forte resistência por parte das escolas, seus gestores e professores.

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Podemos resumir a posição crítica em relação ao parágrafo 3º do artigo 33 da lei por parte dos defensores do ensino religioso na escola pública com o seguinte argumento de Sérgio Junqueira: “Nenhum cidadão deve ser discriminado por motivo de crença e todos devem ter assegurada uma educação integral, incluindo o desenvolvimento de todas as dimensões do seu ser, inclusive a religiosa, independentemente das concepções e crenças religiosas pessoais”. (JUNQUEIRA, 2007, 39).

Percebe-se, por esta argumentação, que ainda estava embutida no conceito de ensino religioso a crença religiosa do aluno e da aluna, seja ela qual fosse, e que a educação deveria abranger a religiosidade como se esta fosse uma premissa na formação educacional de todo ser humano. O escudo para esta assertiva era a não discriminação. Este parágrafo 3º ensejou a partir de agora novos debates, além da questão da remuneração ou não dos professores. Afinal, o grande questionamento que agora se impunha era justamente: de que ensino religioso se trata? A necessidade do ensino religioso na escola pública se baseava em um raciocínio enviesado de que deveriam ser salvaguardados os princípios da liberdade religiosa e do direito do cidadão que frequenta a escola pública. Para seus defensores nenhum cidadão pode ser discriminado por motivo de crença, por isso é direito de todos o acesso a uma educação integral que inclua o desenvolvimento de todas as dimensões de seu ser, inclusive a religiosa (JUNQUEIRA, 2007, 32-35). Partia-se do pressuposto de que todo ser humano possui uma dimensão religiosa em seu ser e isso seria o bastante para justificar a inclusão do ensino religioso na escola pública. Se para uns, a remuneração dos professores de ensino religioso garantiria direitos de cidadania e a não discriminação a uma educação integral, para outros, isso poderia significar exatamente o contrário. Para Sueli Carneiro, se o ensino religioso é compreendido como “parte integrante da formação básica do cidadão, essa assertiva põe em questão a plena cidadania de ateus, agnósticos, pagãos e outros grupos, na medida em que ao recusarem ou qualquer filiação religiosa ou simplesmente o ensino religioso (embora facultativo) estariam assumindo uma espécie de sub-cidadania ou uma cidadania inferior

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àquela destinada aos que professam alguma religião.” (CARNEIRO, 2008, 134).

Por isso, a autora denuncia o lobby de entidades ligadas à Igreja Católica que resultou na introdução do ensino religioso na Constituição de 1988 e, principalmente, o lobby do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER)

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na sua regulamentação pela LDB em 1996 e, no ano seguinte, na sua

modificação que resultaria na remuneração dos professores. Na opinião dos defensores do ensino religioso na escola pública, prevaleceu naquele momento aquela visão laicista do conhecimento religioso como um corpo estranho dentro da escola. Mas que poderia ser entendida, a nosso ver, como uma reação a um modelo de ensino religioso que não conseguia ainda claramente se desvencilhar de suas raízes histórico-confessionais, e não adquirira até aquele momento uma mínima base epistemológica que o justificasse no currículo escolar. Imediatamente entraram em ação várias organizações com a finalidade de alterarem o parágrafo 3º do artigo 33 da LDB. Entre elas a CNBB, a Associação de Professores de Ensino Religioso do Distrito Federal (ASPER), o FONAPER, o Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (CONIC), a Associação de Educação Católica (AEC) e outras entidades. Foi enorme a mobilização nacional, envolvendo professores e outros leigos ligados à Igreja Católica para que o ensino religioso tivesse um tratamento de disciplina, como as demais, no currículo escolar e, assim, os professores pudessem ser remunerados. Durante a 35ª Assembleia Geral da CNBB, em Itaici (SP), entre 9 a 18 de abril de 1997, o próprio presidente da CNBB, Dom Lucas Moreira Neves, redigiu um fax ao presidente da República, dizendo-se surpreso com a aprovação do inciso “sem ônus para o Estado” e pediu a sua modificação. Durante esta assembleia, discutiu-se

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O Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER) foi fundado em 26 de setembro de 1995, em Florianópolis, por ensejo da comemoração dos 25 anos do Conselho de Igrejas para a Educação Religiosa (CIER) em Santa Catarina. Denomina-se uma associação civil de direito privado, sem vínculo confessional e que congrega pessoas físicas e jurídicas identificadas com o ensino religioso. Cabe destacar que as coordenações do Fórum, desde a sua fundação, sempre foram marcadas pela forte vinculação religiosa de seus membros, a maioria ligada às Igrejas Católica, Luterana, Metodista e de outros segmentos cristãos. Durante quase 20 anos de existência, o FONAPER vem buscando acompanhar e subsidiar os professores de ensino religioso, organizando encontros, seminários e cursos, publicando textos e atuando junto a organismos oficiais de ensino.

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intensamente a identidade do ensino religioso frente o processo de transformações que esta disciplina estava sofrendo ou pelas quais deveria passar em um futuro próximo. Paulo Renato de Souza, então Ministro da Educação do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), afirmou que este era um ponto ainda em discussão. Propôs-se a enviar um novo projeto modificando este artigo. Ele chamava a atenção para a diferença entre o texto da lei e a Constituição, já que os professores, principalmente os da modalidade confessional, seriam elementos estranhos ao sistema de ensino (JUNQUEIRA, 2007, 39). Da parte de muitos dos envolvidos neste debate, vislumbrava-se naquele momento a possibilidade de dar uma nova concepção à disciplina, tirando-lhe o caráter doutrinário e vendo a religião como fenômeno voltado à formação da pessoa humana e aos valores éticos. Observa-se agora neste argumento uma evolução da concepção de Ensino Religioso para a escola pública, mas ainda longe de sua concepção como área de conhecimento. Para os seus defensores, tratava-se de colaboração de interesse público, que satisfazia plenamente os dispositivos da Constituição, com base no seu art. 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil [8 outubro 1988]. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>)

Dava-se ao ensino religioso um objetivo de formação ética e de cidadania sem esclarecer se somente ele teria este objetivo no currículo escolar. Esta argumentação se prendia ainda à necessidade do ensino religioso para o pleno desenvolvimento da pessoa, sem o esclarecimento de que se a opção pelo ateísmo ou pelo agnosticismo seria uma falha ou falta nesse desenvolvimento da pessoa e, por conseguinte, de toda a sociedade. Observa-se, então, um afunilamento das discussões, colocadas agora de forma mais clara e direta.

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Refletindo as pressões dos grupos interessados naquele momento, foram apresentadas no Congresso três proposições de mudanças (JUNQUEIRA, 2007, 40-44): 1) Projeto de Lei nº 2757/97, do deputado Nelson Marchesan (PSDB-RS), propondo a retirada da expressão “sem ônus para os cofres públicos”. A justificativa se baseava na ideia de que o ensino religioso é componente curricular da educação básica e importante para a formação do cidadão e para seu pleno desenvolvimento como pessoa humana, sendo, pois, dever constitucional do Estado em garanti-lo plenamente.

2) Projeto 2997/97, do deputado Maurício Requião (PMDB-PR), alterando significativamente a redação do art. 33 da LDB. Pretendia que o ensino religioso fosse parte integrante da formação básica do cidadão, com conteúdos que respeitassem a diversidade cultural brasileira, a serem definidos segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), de comum acordo com diversas denominações religiosas ou entidades que as representam, além de vedar qualquer forma de proselitismo.

3) Projeto de Lei 3043/97, de autoria do Poder Executivo tratava da possibilidade de não se aplicar o disposto do art. 33 da LDB, quando o ensino religioso favorecesse modalidade de caráter ecumênico, desse acesso a conhecimentos que promovessem a educação do senso religioso, respeitasse as diferentes culturas e fosse sem proselitismo. Conteúdos, admissão, recrutamento e remuneração dos docentes ficavam por conta de cada sistema de ensino, estaduais e municipais.

Nenhuma das proposições recebeu emendas. Os três projetos possuíam convergências: a) ensino religioso considerado como parte integrante da formação do ser humano; b) obrigação do Estado de prever espaço, tempo e custeio do ensino religioso (quando não tivesse caráter proselitista); c) possibilidade dos educandos e educandas de conhecer o fenômeno religioso e suas manifestações nas diferentes denominações religiosas. Observa-se, de qualquer forma, uma perspectiva de transição entre modelos: não se afastava completamente de modelos anteriores, confessionais, mas já se 54


vislumbrava o conhecimento da religião entendida como fenômeno social, cultural e histórico, ou seja, humano. O deputado padre Roque Zimmermann (PT/RS), da Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados, foi o relator do processo e encaminhou um substitutivo, que, na prática, era o texto desejado pelo FONAPER, ou melhor, fora elaborado pelo próprio FONAPER: “O ensino religioso, conforme o art. 210, parágrafo 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, será oferecido pelo Estado a todo educando da rede pública estatal, gratuitamente, na forma de ensino inter-religioso, de modo a não suscitar proselitismo ou privilegiar instituições religiosas no interior da escola. Parágrafo 1º. Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso serão norteadores da ação pedagógica deste ensino. Parágrafo 2º. Os professores de ensino religioso serão do quadro próprio do magistério, devidamente habilitados. Parágrafo 3º. As denominações religiosas poderão se reunir, constituindo-se em entidade própria para supervisionar o cumprimento da lei, credenciar os profissionais do ensino religioso e participar na construção dos parâmetros deste ensino. Parágrafo 4º. A regulamentação desta lei far-se-á pelos órgãos competentes de cada unidade da Federação, consideradas as realidades já existentes. Parágrafo 5º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.” (ZIMMERMANN, Roque. Minuta do projeto para regulamentação do art. 33 da LDB. Brasília: Câmara dos Deputados, 1997. In JUNQUEIRA, 2007, 43).

O FONAPER teve papel decisivo nesse momento. Agindo como uma forte organização em defesa dos interesses dos professores de ensino religioso, ela passou a colocar não apenas a questão mais imediata, a remuneração paga pelo Estado. Rapidamente, ela percebeu, diante dos embates travados, a necessidade de se começar, também e urgentemente, a discutir a grave questão da formação dos professores, se quisesse continuar defendendo a compreensão do ensino religioso como um componente do currículo. E isso, necessariamente, remeteria à necessidade de uma sólida base epistemológica para essa disciplina.

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De 12 a 14 de março de 1997, ocorreu a 3ª Sessão do FONAPER, na Universidade Metodista de Piracicaba (SP), com a presença de 75 participantes de diversas denominações religiosas e de 18 estados da federação. O debate girou em torno dos PCNs para o ensino religioso, capacitação de professores e articulação com o Poder Legislativo. Encaminhou-se uma proposta para os PCNER (Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso)27 e para a alteração do art. 33 da LDB. Em 20 de maio de 1997, o FONAPER organizou o I Seminário de Capacitação Docente em Ensino Religioso na Universidade São Francisco, em São Paulo, em parceria com a Associação Brasileira de Escolas Católicas, com a presença de 15 universidades. Deste seminário saiu a proposta do FONAPER para as alterações do art. 33 da LDB, e que foram levadas ao deputado Pe. Roque Zimmermann (PT/RS) que, então, elaborou um substitutivo que acabou sofrendo alterações na votação final (RUEDELL, 2007, 32-36; JUNQUEIRA, 2008, 34-38; 2004, 29-30). Os debates na Câmara dos Deputados permitiram perceber as diversas concepções existentes sobre o ensino religioso na escola pública. Ainda persistiam visões do ensino religioso como aula de religião para ensinar honestidade e valores. A visão pedagógica, ou seja, de disciplina, ainda não era, ou melhor, ainda não é percebida pela grande maioria dos legisladores. Vê-se, de forma muito límpida, em todo este processo, que a implementação do ensino religioso na escola pública constitui uma questão política bastante polêmica. Nos embates parlamentares na Constituinte e posteriormente na discussão da LDB, principalmente agora na sua modificação em 1997, é possível perceber que, além da questão epistemológica traduzida para o contexto pedagógico, o ensino religioso dividia a sociedade, os meios acadêmicos e os parlamentares em posições políticas divergentes. O próprio Junqueira, na sua tese de doutorado, afirma: “Um desafio foi neutralizar a esquerda e contrapor o Partido dos Trabalhadores que mantinha seu voto contrário à mudança do texto. Finalmente, para o projeto ser aprovado, alguns elementos tiveram de ser retirados, entre estes a questão da matrícula. Foi proposto que esta assumisse um caráter de normalidade, desta forma omitindo a questão do facultativo, entretanto permaneceu como na Constituição”. 27

Os Parâmetros curriculares nacionais para o ensino religioso que norteiam atualmente boa parte dos projetos de ensino religioso no Brasil foram elaborados pelo próprio FONAPER e, diferentemente dos PCNs de outras disciplinas, não são de elaboração dos órgãos oficiais de educação do país. Esta é uma das críticas mais severas de diversos grupos laicos que apontam no currículo das escolas públicas no Brasil uma área com inexplicável autonomia em relação à política geral de educação do Brasil.

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(JUNQUEIRA, Sérgio Rogério Azevedo. O Ensino Religioso no Brasil: estudo do seu processo de escolarização. Tese de doutorado. Universidade Pontifícia Salesiana, Roma, Itália, 2000, 207-208. Disponível em <http://www.gper.com.br/index.php?sec=biber&secaoId=4&categoria Id=36# >. Acessado em 2 de fevereiro de 2014).

Em 17 de junho de 1997, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou por quase unanimidade o novo texto do art. 33 da LDB. Depois, o texto foi aprovado no Senado, no dia 9 de julho, e sancionado pelo Presidente da República, no dia 22 de julho do mesmo ano, com a seguinte redação: “Art 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão, e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de educação básica, assegurado o respeito à diversidade cultural do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. Parágrafo 1º. Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. Parágrafo 2º. Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.” (JUSBRASIL. Lei 9475/1997 – LDB [22 julho 1997]. Disponível em: <http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/127108/lei-9475-97>).

Como foi entendida esta nova versão da lei pelos defensores do ensino religioso na escola pública? Exatamente como uma conquista da sociedade civil organizada e que prima pela diversidade cultural e religiosa, princípio democrático presente em vários outros pontos da própria Constituição.28 A partir de agora, para os defensores do ensino religioso, este independe do credo religioso dos alunos e respeita 28

Os grupos religiosos que advogam o ensino religioso nas escolas públicas o concebem como algo positivo, cujo objetivo é educar a dimensão religiosa do ser humano, transmitindo às novas gerações valores de fundo religioso para formar um bom cidadão, homens e mulheres virtuosos. Percebem o religioso como uma manifestação cultural, como algo sempre presente nas sociedades humanas, que precisa ser estudado e compreendido. Entendem a religião como um conjunto de princípios morais necessários à manutenção da sociedade. Não aceitam uma moral laica, autônoma e desvinculada da religião. O que subjaz a esse debate é, por um lado, a defesa de uma ordem social e, em especial, do espaço e dos poderes públicos, completamente secularizada, laica, por parte dos grupos secularistas; e, por outro lado, a reivindicação, por parte de organizações religiosas, de uma presença mais efetiva do religioso na vida pública, principalmente na educação – área estratégica – na medida em que está vinculada à formação das novas gerações e à transmissão da cultura, do conhecimento e de padrões éticos.

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todos eles: “A nova redação do art. 33 focaliza o ensino religioso como disciplina escolar, entendendo-o como uma área de conhecimento, com a finalidade de reler e compreender o fenômeno religioso, colocando-o como objeto da disciplina.” (JUNQUEIRA, 2007, 45). Ou, como quer Ruedell, “deduzimos que sua fundamentação e seu conteúdo não se referem mais, de forma preferencial, ao saber teológico, mas, sim, ao saber antropológico e às expressões culturais portadoras de religiosidade.” (RUEDELL, 2007, 34). Mas, em uma sociedade marcada por um grande predomínio das igrejas cristãs, quase um monopólio, há de se indagar como esta nova perspectiva de tratamento da religião acontece no chão da escola. As relações de poder, neste caso, continuam a definir muitas questões, e, na ausência de uma clara base epistemológica para esta disciplina, é possível admitir que pouca coisa tenha mudado. Mas não é possível ter o entendimento de que a lei, neste momento, passou a considerar o ensino religioso explicitamente como uma área de conhecimento. Se assim fosse, não haveria porque a matrícula ser facultativa pela Constituição ou, pelo menos se percebe, uma contradição entre o que diz a Constituição e a LDB. Esta advertência faz sentido enquanto o ensino religioso tiver caráter confessional. A afirmação de que o ensino religioso é parte da formação básica do cidadão é pouco esclarecedora do papel que ele pode ter para ateus e agnósticos. A previsão expressa do respeito à diversidade cultural do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo, supõe ainda uma possibilidade contrária que não teria razão de ser para uma área de conhecimento, colocada em posição de igualdade ao lado de outras no currículo escolar. Quando a lei afirma que os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso, abre-se uma porta para a interferência das confessionalidades sobre uma disciplina da qual se espera ser a aplicação didática de uma determinada ciência. Vê-se que foi feito um enorme esforço no sentido de levar o ensino religioso para ser entendido e aceito como área de conhecimento, mas é como se este esforço tivesse ficado pelo meio do caminho. É o próprio Ruedell que afirma: “Esta acepção de ensino religioso [inaugurada pela nova redação do art. 33 da LDB] está ainda em processo de ser devidamente compreendida e de receber a correspondente aplicação.” (RUEDELL, 2007, 35). E nós acrescentaríamos: pode ter sido inaugurada uma nova concepção, mas a Constituição e a LDB ainda ficam a dever um texto mais claro e

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definitivo sobre o ensino religioso como componente curricular, área de conhecimento como aplicação didática do estudo científico e fenomenológico da religião. Por tudo isso, não faltaram críticas a este desfecho de uma verdadeira luta política em torno do art. 33 da LDB: “A relação estabelecida pela lei entre a responsabilidade do Estado, o não proselitismo e a existência de uma entidade civil que atue como consultora sobre os conteúdos é, ao mesmo tempo, o substantivo que legitima o ensino religioso e problematiza sua realização. Realização essa dependente da interpretação da lei que vai obedecer a um jogo de poder entre o Estado e ‘a religião’ [...]. É importante assinalar que o FONAPER estimulou a criação, nos diferentes estados, de Conselhos para o Ensino Religioso (CONERs), que assumiram ser a “entidade civil” considerada pela lei como assessora das Secretarias de Educação para os conteúdos do ensino religioso.” (DICKIE & LUI, 2007).

Percebe-se que os críticos do ensino religioso na escola pública, com esta formatação final dada Lei 9.475/97 (LDB), ora em vigor, continuam entendendo o ensino religioso como ensino da religião e a religião como alguma coisa restrita tão somente à esfera privada. É o que se depreende de um dos seus críticos mais ferrenhos, Luiz Antonio Cunha: “Mas antes de qualquer outra coisa, quero deixar claro que não busco travar aqui alguma ‘guerra santa’ contra o ensino da religião, menos ainda contra a liberdade de culto, princípios esses que fazem parte do ideário democrático. O que não faz parte deste ideário é a existência de práticas religiosas na escola pública, nem o ensino da religião (qualquer religião), já que esta é uma questão de esfera privada.” (CUNHA, 2009, 344-345).

A partir da aprovação da Lei 9.475/97 (LDB), o Conselho Nacional de Educação (CNE) vem sinalizando que o ensino religioso é, de fato, uma área de conhecimento. Mas é apenas uma sinalização que não encontra respaldo definitivo na Constituição e menos ainda na LDB. De qualquer forma, o próximo passo que foi dado pelo próprio CNE na articulação do ensino religioso, na perspectiva de sua escolarização, foi o fato desse Conselho confirmar esta disciplina como uma das dez áreas do conhecimento que orientam o currículo das escolas, mas, contraditoriamente, denominando ainda esta disciplina de educação religiosa:

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Resolução 02/Câmara de Educação Básica/27 de março de 1998: “[...] IV- Em todas as escolas deverá ser garantida a igualdade de acesso para alunos a uma base nacional comum, de maneira a legitimar a unidade e a qualidade da ação pedagógica na diversidade nacional. A base comum nacional e a sua parte diversificada deverão integrar-se em torno do paradigma curricular, que vise a estabelecer a relação entre a educação fundamental e: a) A vida cidadã através da articulação entre vários dos seus aspectos, como a saúde, a sexualidade, a vida familiar e social, o meio ambiente, o trabalho, a ciência e a tecnologia, a cultura, as linguagens, as áreas de conhecimento: Língua Portuguesa; Língua Materna para as populações indígenas e migrantes; Matemática; Ciências; Geografia; História; Língua Estrangeira; Educação Artística; Educação Religiosa – conforme o art. 33 da Lei 9394/96. [...].” (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO/CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. Resolução 02 – Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental [27 março 1998]. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/resolucao_ceb_0298.pdf>).

Outro ponto que gerou à época muitas discussões foi se o ensino religioso se inseria ou não dentro das 800 horas do calendário anual. O Parecer 12/97 do CNE/CEB tenta esclarecer a questão: “Ensino religioso e carga horária mínima. Também se tem perguntado se o ensino religioso é computado para a totalização do mínimo de 800 horas e a resposta é não. Por um motivo fácil de ser explicado. Carga horária mínima é aquela a que todos os alunos estão obrigados. Desde o art. 210 da Constituição federal está definido: ‘O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental’. O art. 33 da Lei 9394/96, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei 9475, de 22de julho de 1997, como não poderia deixar de ser, embora regulamentando o dispositivo constitucional mencionado, o faz mantendo facultativa a matrícula. Ora, se o aluno pode optar por freqüentar, ou não, a referida disciplina, haverá quem optará por não fazê-lo. E quem assim decidir, terá menos de oitocentas horas por ano, na hipótese de a escola se ater ao mínimo exigido por lei, o que o art. 24, inciso I não admite.” (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Parecer 12/97 [8 outubro 1997]. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/1997/pceb012_97.pdf>).

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A responsabilidade pela formação dos professores, passada aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios pela LDB, tem sido, desde então, outra problemática amplamente discutida nos congressos de ensino religioso do FONAPER. Se a Câmara de Educação Básica (CEB) do CNE, ao interpretar as leis, definiu o ensino religioso como área de conhecimento a constar nos planos de estudo da educação básica, procedimento semelhante não ocorreu na Câmara de Educação Superior (CES/CNE) que se posicionou de forma desfavorável à formação de docentes desta área por cursos de licenciatura.29 As considerações dos relatores ainda estão presas a uma compreensão tradicional de ensino religioso, como algo próprio das confissões religiosas. Ou melhor, continuam a refletir ainda as contradições da Constituição e da LDB. Assim, o CNE tem resistido, em diversas consultas recebidas, em definir uma diretriz geral para a formação dos docentes nesta área indicando-lhe uma graduação/licenciatura específica. A lei delega esta função aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios. Em consequência dessas orientações, o ensino religioso foi ao mesmo tempo estadualizado e municipalizado. O único esclarecimento até hoje foi de que qualquer professor das diferentes áreas de conhecimento, licenciado, pode assumir essa disciplina (JUNQUEIRA, 2007, 48-51). Percebe-se a dificuldade de se resolver uma questão que vem se arrastando há anos, qual seja, a formação que se deve garantir ao professor de ensino religioso como quer a CEB/CNE, ou seja, como uma área de conhecimento. Afinal, está aí o verdadeiro nó górdio de toda a questão envolvendo os fundamentos epistemológicos do ensino religioso: de que ensino religioso se trata!

1.6. O panorama atual

Por estar implicada na formação da consciência das crianças e adolescentes, bem como com o exercício desses e de vários outros direitos, o ensino religioso nas escolas públicas continua sendo um dos temas mais sensíveis na defesa da laicidade do Estado brasileiro e dos direitos fundamentais da cidadania brasileira, bem 29

O FONAPER, através de inúmeros congressos e seminários nacionais, com a participação de professores universitários e especialistas da área de Ciências da Religião, chegou a elaborar as Diretrizes Curriculares dos Cursos Superiores na Área de Ensino Religioso que vêm sendo aplicadas, sobretudo, nos cursos de especialização em diversas instituições de ensino superior. Nesta perspectiva, foram definidas cinco áreas de conhecimento: fundamentos epistemológicos do ensino religioso; culturas e tradições religiosas; teologias; textos sagrados, orais e escritos, e ethos.

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como dos próprios direitos humanos. Mas, afinal, qual é a realidade hoje do ensino religioso no Brasil? Sintetizando este debate que envolve organismos do Estado, gestores e órgãos da área de educação, confissões religiosas e setores acadêmicos, podemos estabelecer três grandes vertentes para esta discussão: 1ª) os que não admitem, em hipótese alguma, o ensino religioso na escola pública, escudados na defesa da laicidade do Estado; 2ª) os que advogam o ensino religioso claramente confessional, utilizando as brechas originadas da ambiguidade e das contradições da própria lei, que prevê, como já vimos, a matrícula facultativa, a religião como parte da formação básica do cidadão e um órgão colegiado integrado pelas confissões religiosas que será ouvido na definição de conteúdos a serem ministrados; 3ª) os que admitem o ensino religioso na escola pública como área de conhecimento do fenômeno religioso, privilegiando a escolarização e não os interesses das confissões religiosas, como uma aplicação didática da(s) Ciência(s) da Religião. Aqueles que são contrários a qualquer modelo de ensino religioso na Escola Pública justificam a sua posição focados no caráter laico do Estado previsto na Constituição e nas leis. É uma posição presa a um forte viés jurídico-político. Ela pode ser encontrada não apenas nos meios acadêmicos, mas em vários outros segmentos da sociedade, em alguns partidos de esquerda ou em tendências deles, em alguns movimentos sociais e sindicatos. Trata-se de uma postura encontrada em alguns setores da sociedade flagrantemente impermeáveis a qualquer crença religiosa e principalmente à sua presença no âmbito público, como nas escolas.

Talvez seja um resquício de uma tradição marxista ortodoxa escudada no entendimento tradicional, mas hoje já bastante questionável, da religião como ópio do povo. Não podemos esquecer também da forte tradição positivista da universidade brasileira, o que provoca um impacto importante sobre a não receptividade ao tema do ensino religioso. Mas diversos outros setores, até mesmo ligados a confissões religiosas, permanecem contrários a qualquer tipo de ensino religioso nas escolas públicas, seja porque não acreditam em uma postura de neutralidade necessária, seja porque só aceitam qualquer transmissão de conhecimento religioso no âmbito das famílias e das igrejas. Assim, a discussão permanece quase sempre no âmbito constitucional e legal, envolvendo interesses políticos do Estado e das confessionalidades, mormente a 62


hegemônica em nosso país, e não abrange a contextualização do ensino religioso na Escola Pública no âmbito educacional e pedagógico, na perspectiva de um processo histórico de escolarização. Diante disso, podemos perceber que existem duas visões que se excluem mutuamente, ao ponto da discussão ser levada às barras dos tribunais: ou existe o ensino religioso confessional ou não existe nenhum tipo de ensino religioso nas escolas públicas.

Ainda não foram julgadas pelo Supremo Tribunal Federal duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) sobre o ensino religioso na Escola Pública: a ADI 4439, focada na questão do Acordo Brasil-Vaticano, já aprovado pelo Congresso (que tem força constitucional)30 e a ADI 3268 contra a Lei 3.459/2000 do Estado do Rio de Janeiro que, na prática, instituiu o ensino religioso confessional nas escolas públicas desse estado. Mas cabe ao STF julgar a inconstitucionalidade das leis e interpretar a Constituição, nunca revogar um dispositivo da Constituição. Em 15 de junho de 2015 aconteceu uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal para a discussão da ADI 4439, proposta pela Procuradoria-Geral da República, que tem como objeto o artigo 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), e o artigo 11, § 1º do “Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé”, aprovado por meio do Decreto Legislativo nº 698/2009 e promulgado por meio do Decreto nº 7.107/2010. Esta audiência foi convocada pelo Ministro Luiz Roberto Barroso, relator do processo, e destinou-se a ouvir representantes do sistema público de ensino, de grupos religiosos e não-religiosos e de outras entidades da sociedade civil, bem como de especialistas com reconhecida autoridade no tema. Os expositores, representando 31 entidades credenciadas 31, puderam 30

O Acordo Brasil-Vaticano provocou a reação imediata da bancada evangélica. Na noite de 17 de agosto de 2009, o Congresso Nacional aprovou a chamada Lei Geral das Religiões, estendendo o acordo católico, com alguns retoques, a todos os grupos religiosos. Se, de um lado, esta lei cria a relação jurídica privilegiada do Estado com a Igreja Católica em relação às outras religiões, por outro lado, escancara ainda mais a violação do dispositivo legal que veda as relações de dependência ou aliança do Estado com as Igrejas. 31 Participaram desta audiência as seguintes entidades civis e instituições públicas: 1) Conselho Nacional de Secretários de Educação – CONSED (Eduardo Deschamps); 2) Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE (Roberto Franklin de Leão); 3) Confederação Israelita do Brasil – CONIB (Roseli Fischmann); 4) Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB (Antonio Carlos Biscaia); 5) Convenção Batista Brasileira – CBB (Vanderlei Batista Marins); 6) Federação Espírita Brasileira – FEB (Alvaro Chrispino); 7) Federação das Associações Muçulmanas do Brasil – FAMBRAS (Ali Zoghbi); 8) Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro - FENACAB em conjunto com Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno (Antônio Gomes da Costa Neto); 9) Igreja Assembleia de Deus - Ministério de Belém (Abiezer Apolinário da Silva); 10) Convenção Nacional das Assembleias de Deus - Ministério de Madureira (Bispo Manoel Ferreira); 11) Liga Humanista Secular do Brasil – LIHS

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se manifestar sobre as seguintes questões propostas pelo Ministro: 1- as relações entre o princípio da laicidade do Estado e o ensino religioso nas escolas públicas; 2- as diferentes posições a respeito dos modelos confessional, interconfessional e não-confessional e do impacto de sua adoção sobre os sistemas públicos de ensino e sobre as diversas confissões religiosas e posições não-religiosas, e 3- as diferentes experiências dos sistemas estaduais de educação com o ensino religioso.

Seja qual for a decisão do STF ao final deste processo, a previsão constitucional do ensino religioso será mantida, a não ser que ela seja revogada por emenda do Congresso Nacional, o que, no momento, está totalmente fora de cogitação. Mas o STF pode julgar o ensino religioso na Escola Pública como constitucional e estabelecer aditivos, ou seja, normas e limites para o seu funcionamento.

O modelo questionado pelas ADIs citadas separa os alunos em classes de acordo com as suas confissões religiosas, os conteúdos ministrados pertencem às teologias das mesmas, os concursos de ingresso de professores supõem também a definição de uma confessionalidade e seu credenciamento e descredenciamento pela autoridade religiosa. Não há dúvida que se trata de um modelo que fere frontalmente vários artigos da Constituição, principalmente os que tratam da laicidade do Estado, bem como as próprias leis n.º 9394/96 e 9.475/97/LDB que asseguram o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo:

(Thiago Gomes Viana); 12) Sociedade Budista do Brasil – SBB (João Nery Rafael); 13) Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (Salomão Barros Ximenes); 14) AMICUS DH – Grupo de Atividade de Cultura e Extensão da Faculdade de Direito da USP (Virgílio Afonso da Silva); 15) Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Debora Diniz); 16) ANAJUBI - Associação Nacional de Advogados e Juristas Brasil-Israel (Carlos Roberto Schlesinger); 17) Arquidiocese do Rio de Janeiro (Luiz Felipe de Seixas Corrêa); 18) ASSINTEC - Associação Inter- Religiosa de Educação e Cultura (Elói Correa dos Santos); 19) Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião – ANPTECRE (Wilhelm Wachholz); 20) Centro de Raja Yoga Brahma Kumaris (Cleunice Matos Rehem); 21) Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ (Daniel Sarmento); 22) Deputado Marco Feliciano (Deputado Federal, membro da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, da Comissão de Direitos Humanos e Minorias e da Frente Parlamentar Evangélica); 23) Comissão Permanente de Combate às Discriminações e Preconceitos de Cor, Raça, Etnia, Religiões e Procedência Nacional (Carlos Minc Baumfeld); 24) Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (Gilbraz Aragão); 25) Conectas Direitos Humanos (Oscar Vilhena Vieira); 26) Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação (Luiz Roberto Alves); 27) Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso – FONAPER (Leonel Piovezana); 28) Frente Parlamentar Mista Permanente em Defesa da Família (Senador Magno Malta); 29) Igreja Universal do Reino de Deus (Renato Gugliano Herani); 30) Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB (Gilberto Garcia); 31) Observatório da Laicidade na Educação, em conjunto com o Centro de Estudos Educação & Sociedade (Luiz Antônio Cunha).

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“Art. 1º. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade e cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.” (JUSBRASIL. Lei 9475/1997 – LDB [22 julho 1997]. Disponível em: <http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/127108/lei-9475-97>).

Entendemos a negação do ensino religioso na escola pública como a negação desse modelo de ensino religioso. A ambiguidade do dispositivo constitucional e da própria LDB, ao deixar em aberto definições cruciais sobre essa disciplina, conduziu a soluções particulares em estados e municípios, flagrantemente ilegais. Ao prever o ensino religioso no currículo escolar, mas sem a previsão de uma área de conhecimento correspondente e sem apontar-lhe uma base epistemológica, permitiu a proliferação de modelos que não levam em conta a diversidade e pluralidade cultural e religiosa da sociedade e que acaba se afirmando como proselitista e doutrinária, abrindo o espaço público das escolas à pregação catequética das instituições religiosas. Vários críticos do ensino religioso nas escolas públicas têm focado sua análise nas visões de mundo que esta disciplina pode passar para crianças e adolescentes e que seriam extremamente danosos à sua formação como cidadãos e cidadãs livres, conscientes e responsáveis. Tomemos como exemplo o contexto de um dos movimentos sociais, onde esta questão é das mais sensíveis: os movimentos feministas. Aqui é bastante dura esta crítica à posição das igrejas em relação aos direitos sexuais reprodutivos das mulheres (como o aborto, por exemplo) e à homossexualidade, consideradas por elas como práticas de sentido contrário à natureza e à normalidade, e que informaria os conteúdos do ensino religioso repassados pelos professores em sala de aula. Sueli Carneiro, por exemplo, chama a atenção para “as dificuldades de conciliação, do ponto de vista normativo público, entre as teses e proposições que decorrem da antropologia bíblica e as teses e proposições que são defendidas por mulheres feministas que operam para a promoção dos direitos humanos das mulheres de uma perspectiva igualitária em relação aos gêneros.” (CARNEIRO, 2008, 123).

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Em um interessante artigo intitulado Estado laico, feminismo e ensino religioso nas escolas públicas, Sueli Carneiro estabelece um paralelo entre o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, de 2008, e a Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo, de 2004, apontando contradições inconciliáveis, segundo ela, entre a doutrina e valores cristãos e as reivindicações dos movimentos feministas. Segundo esta autora, “dentre os fatores que ameaçam as conquistas das mulheres no Brasil tem lugar privilegiado as ambiguidades que cercam a laicidade do Estado brasileiro, presente na própria Constituição-cidadã de 1988. Uma dimensão fundamental do Estado laico [...], além da separação entre esfera política e vida religiosa e do reconhecimento público do direito à liberdade de consciência, de opinião e de crença, é o entendimento de que o Estado laico é produção essencialmente humana, marcada pela autonomia do poder temporal.” (CARNEIRO, 2008, 132).

Para os movimentos feministas, há, portanto, um conjunto de valores e princípios incompatíveis entre os que conformam a cidadania e os que são derivados de convicções religiosas no que diz respeito às relações e atribuições de gênero, e a muitas outras. Então, o que está em causa para eles é, se o princípio da desigualdade natural entre os sexos é um dos fundamentos dos valores religiosos, qual a possibilidade de ensino religioso nas escolas públicas ser conduzido, de maneira efetiva, pelo respeito à igualdade na diferença? (CARNEIRO, 2008, 138). Não se vislumbra nenhuma possibilidade, talvez pela própria visão que muitos movimentos sociais possuem da própria religião. É Sueli Carneiro que conclui: “[...] é impossível incorrer na ingenuidade de supor que esta prática no cotidiano escolar possa acontecer dissociada dos valores que alicerçam os dogmas religiosos particularmente em relação à mulher.” (CARNEIRO, 2008, 141). Essas posições de Sueli Carneiro merecem algumas considerações. Sabemos que as correntes fundamentalistas, alojadas, sobretudo, nas igrejas pentecostais e neopentecostais, são totalmente avessas a se integrarem nos projetos de ensino religioso nas escolas públicas. Este trabalho é levado principalmente pelas igrejas protestantes tradicionais, onde estes posicionamentos fundamentalistas são menos comuns. Os exemplos citados pela autora envolvem, sobretudo, os meios católicos, mas chamamos aqui a atenção para a heterogeneidade da aplicação de uma teologia prática (pastoral) entre os católicos. E, em se tratando do ensino religioso nas escolas públicas, observamos que não são estas posições mais conservadoras que prevalecem naqueles setores e grupos 66


ligados ao FONAPER. É possível perceber isso nos Congressos Nacionais de Ensino Religioso (CONERs) promovidos pelo FONAPER, como também em comunicações de pesquisas nos GTs de Educação e Religião em encontros acadêmicos. Mas que panorama geral podemos descrever sobre o ensino religioso nas escolas públicas atualmente no Brasil? Além daqueles estados da federação, que adotam explicitamente o ensino confessional, nos demais o ensino religioso apresenta muitas variantes, indo do inter-confessional ao ensino religioso como área de conhecimento. Levantamento realizado por Débora Diniz (2008, 6) que interpretou diversos documentos legais e regulamentações, encontrou os seguintes modelos:

Confessional

Ceará (2002); Espírito Santo (2002); Bahia (2001); Rio de Janeiro (2000); Acre (1999).

História das Religiões São Paulo (2002). Interconfessional

Amapá (2006); Roraima (2006); Pernambuco (2006); Paraná (2006); Distrito Federal (2005); Goiás (2005); Piauí (2005); Minas Gerais (2005); Santa Catarina (2005); Mato Grosso do Sul (2004); Maranhão (2004); Tocantins (2004); Paraíba (2004); Sergipe (2003); Rondônia (2003); Alagoas (2002); Ceará (2002); Amazonas (2001); Mato Grosso (2000); Rio Grande do Norte (2000); Acre (1999).

Resultado semelhante

foi encontrado por

Giumbelli

(2009),

reafirmando a predominância de modalidades de ensino inter-confessional. Da mesma época, um levantamento realizado pelo FONAPER teve como resultado:

Interconfessional ecumênico

Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins,

Alagoas,

Maranhão, Paraíba,

Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina Confessional

Acre, Bahia, Ceará, Espírito Santo e Rio de Janeiro 67


Supra-confessional

(Ciências

da Paraná e Rio Grande do Sul

Religião) História das Religiões

São Paulo

João Décio Passos, em sua obra Ensino Religioso: construção de uma proposta (2007), aponta a existência de três modalidades de ensino religioso seguidos atualmente pelos diversos sistemas de ensino do Brasil. São eles. Cosmovisão Contexto político

Fonte

UNIRRELIGIOSA Aliança IgrejaEstado Conteúdos doutrinais

Doutrinação Escola tradicional Expansão das igrejas Responsabilidade Confissões religiosas Proselitismo e Riscos intolerância Método Afinidade Objetivo

PLURIRRELIGIOSA Sociedade secularizada Antropologia e Teologia do pluralismo Indução Escola nova Formação religiosa dos cidadãos Confissões religiosas

Catequese disfarçada

TRANSRELIGIOSA Sociedade secularizada Ciência da religião

Indução Epistemologia atual Educação do cidadão Comunidade científica do Estado Neutralidade científica

Frederido Pieper Pires (2015) faz algumas observações sobre cada um deles: 1) Catequético-doutrinal. Nesse caso, utiliza-se o espaço público para fins de proselitismo religioso, que pode ser sutil ou mais escancarado. Como já vimos, é o modelo que perdurou por mais tempo na história brasileira, remetendo ao período colonial. Esse modelo é o que permite a promoção de posturas religiosas mais dogmáticas, abrindo possibilidade de se acentuar a intolerância religiosa. 2) Teológico-ecumênico. Esse modelo passou a vigorar na segunda metade do século XX, especialmente com a aproximação entre protestantes e católicos. Há, claramente, um avanço em relação ao modelo anterior: trata-se do modelo que se coloca como mais disposto ao diálogo com a sociedade secularizada e plural. Por mais que essa proposta avance em relação à anterior, é evidente que ele ainda permite a intervenção das instituições religiosas nos conteúdos e práticas de ensino das escolas públicas, aliás, como de certa forma, é previsto na própria LDB. Isso ainda assume maior complexidade, 68


quando se atenta para o crescente número dos sem-religião no Brasil, 8% da população no último censo em 2010. Nessa categoria, incluem-se ateus e agnósticos, mas também aqueles que não possuem nenhuma filiação religiosa. Considerando essa crescente parcela da população, notam-se os limites de uma compreensão do Ensino Religioso como área de conhecimento a partir dessa proposta.

3) Por fim, especialmente a partir de 2006, há a consolidação do modelo que defende a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) como área de formação para o professor de Ensino Religioso. Em poucas palavras, defende-se que, uma vez que a(s) Ciência(s) da(s) Religião (ões), pautada em referenciais mais acadêmicos e científicos, poderia fornecer ao professor os instrumentos adequados para que não se caia numa abordagem reducionista da religião bem como se evite posturas apologéticas e proselitistas.

Já existem também diversos estudos acadêmicos que analisam esses diversos modelos adotados no Brasil. Um dos mais recentes e completos é o de Marislei Sousa Espíndula Brasileiro, na sua tese de doutorado apresentada em 2010 ao programa de pós-graduação strictu sensu em Ciências da Religião na Universidade Católica de Goiás, em Goiânia. Segundo esta pesquisadora, o ensino religioso inter-confessional ecumênico, um dos modelos encontrados, diz respeito ao mundo religioso cristão, mas com abertura ao diálogo com as demais religiões abraâmicas. Este foi o modelo que se desenhou na maioria dos sistemas de ensino logo após a aprovação da LDB em 1997.

Para Brasileiro (2010), já o ensino religioso supra-confessional tem abordagem de natureza científica ao invés de se fundamentar em doutrinas de determinadas religiões. Segundo ela, os Estados do Paraná e do Rio Grande do Sul adotam este modelo, enfatizando a preocupação de se trabalhar o ensino religioso a partir de conhecimentos científicos sobre as religiões e não a partir das doutrinas e teologias adotadas pelas mesmas. Este modelo é capaz, por exemplo, segundo ela, de incorporar ao seu programa as religiões indígenas e as de origem africana, como o candomblé. Percebese que a perspectiva supra-confessional é a que mais atende ao princípio da laicidade. Além disso, ainda segundo a pesquisadora, busca se articular com os demais aspectos da formação para a cidadania, como, aliás, já prevê o projeto político-pedagógico da escola para todas as áreas do conhecimento.

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Existem também certas nuances entre estes modelos, o que dificulta muitas vezes uma classificação mais rigorosa. Por outro lado, em anos mais recentes, foi possível perceber uma clara tendência de evolução da maioria deles para o ensino religioso como área de conhecimento, principalmente nos estados do Norte e Nordeste, sob os auspícios do FONAPER e de algumas poucas instituições públicas de ensino superior que oferecem cursos de Ciências da Religião em nível de graduação, com ênfase na formação de professores de ensino religioso. Nos Grupos de Trabalho de Educação e Religião dos congressos, seminários e simpósios mais recentes da SOTER, da ABHR e da ANPTECRE, foi possível perceber claramente aquela tendência. Mais recentemente, dois documentos oficiais dos órgãos federais de educação não deixaram dúvida ao considerarem o ensino religioso como um componente curricular, reforçando a sua visão como área de conhecimento. O primeiro foi o Parecer nº 7/2010 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, aprovado em 7 de abril de 201032, e o segundo, a Resolução nº 4 do mesmo Conselho 33, aprovada em 13 de julho do mesmo ano. Ambos os documentos tratam das Novas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Na base nacional comum, o ensino religioso é o VI e último dos componentes curriculares elencados, ao lado da Língua Portuguesa; da Matemática; do conhecimento do mundo físico, natural, da realidade social e política, especialmente do Brasil, incluindo-se o estudo da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena; da Arte em suas diferentes formas de expressão, incluindo-se a música e da Educação Física. O mais interessante é o entendimento que expressam este parecer e esta resolução sobre a base nacional comum na educação básica, que inclui o ensino religioso. 32

Resolução CNE 07, 2010, art. 14: O currículo da base nacional comum do Ensino Fundamental deve abranger, obrigatoriamente, conforme o art. 26 da Lei nº 9.394/96, o estudo da Língua Portuguesa e da Matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente a do Brasil, bem como o ensino da Arte, a Educação Física e o Ensino Religioso. Art. 15 Os componentes curriculares obrigatórios do Ensino Fundamental serão assim organizados em relação às áreas de conhecimento: I – Linguagens: a) Língua Portuguesa; b) Língua Materna, para populações indígenas; c) Língua Estrangeira moderna; d) Arte; e e) Educação Física; II – Matemática; III – Ciências da Natureza; IV – Ciências Humanas: a) História; b) Geografia; V – Ensino Religioso. 33 Art. 14. A base nacional comum na Educação Básica constitui-se de conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente, expressos nas políticas públicas e gerados nas instituições produtoras do conhecimento científico e tecnológico; no mundo do trabalho; no desenvolvimento das linguagens; nas atividades desportivas e corporais; na produção artística; nas formas diversas de exercício da cidadania; e nos movimentos sociais. § 1º Integram a base nacional comum nacional: a) a Língua Portuguesa; b) a Matemática; c) o conhecimento do mundo físico, natural, da realidade social e política, especialmente do Brasil, incluindo-se o estudo da História e das Culturas Afro-Brasileira e Indígena, d) a Arte, em suas diferentes formas de expressão, incluindo-se a música; e) a Educação Física; f) o Ensino Religioso.

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Ele se refere aos conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente, expressos nas políticas públicas e que são gerados nas instituições produtoras do conhecimento científico e tecnológico; no mundo do trabalho; no desenvolvimento das linguagens; nas atividades desportivas e corporais; na produção artística; nas formas diversas de exercício da cidadania e nos movimentos sociais. A defesa do ensino religioso como uma área de conhecimento, com base no estudo da religião como fenômeno humano, encontra pleno respaldo naquele parecer e naquela resolução do Conselho Nacional de Educação. Os componentes curriculares da base nacional comum são organizados pelos sistemas de ensino, em forma de áreas de conhecimento, disciplinas, eixos temáticos, preservando-se a especificidade dos diferentes campos do conhecimento, por meio dos quais se desenvolvem as habilidades indispensáveis ao exercício da cidadania, em ritmo compatível com as etapas do desenvolvimento integral do cidadão. A condenação de qualquer modalidade de ensino religioso na escola pública continua sendo feita por vários acadêmicos. Esta posição, mesmo apresentando visões diferenciadas, também vem sendo debatida por parte de diversos outros autores que pesquisam e publicam sobre direitos humanos, questões de gênero, educação, democracia e laicidade do Estado34. Quando ela avança nas críticas de certas experiências concretas desenvolvidas em alguns sistemas de ensino, sua crítica enfoca particularmente o que há de notório e fragrante descumprimento da lei e de grave ofensa aos direitos fundamentais, no caso mais emblemático do estado do Rio de Janeiro. Outras experiências com perspectivas diferentes como a dos estados do sul e da proposta mais recente do FONAPER, não são muito focalizadas, ou são simplesmente silenciadas. Este debate possui algumas nuances interessantes. As duas vertentes acadêmicas que reconhecem a laicidade do Estado brasileiro e não admitem o ensino religioso confessional na escola pública têm um difícil diálogo entre si e este é um dos fatores que tem aberto grande espaço para a vertente do ensino religioso confessional. Em nível de encontros, simpósios ou congressos acadêmicos que reúnem teólogos e cientistas da religião, não se observa os representantes daquelas duas vertentes participando de mesas ou debates comuns em defesa de suas posições35. Apenas um dos lados se faz 34

Dentre estes autores, destacamos Roseli Fischmannn, da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), Sueli Carneiro, da USP, Luiz Antonio Cunha, da Universidade Federal Fluminense (UFF), Débora Dibniz, da Universidade de Brasília, Maria Amelia Schmidt Dickie, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Janayna Lui, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dentre outros. 35 Ao participar dos congressos, simpósios e seminários promovidos nos últimos cinco anos pela SOTER, ANPTECRE, ABHR, pude perceber claramente que nuca se fazia presente o debate a partir do antagonismo

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presente, o que, talvez, possa ser explicado pelo pressuposto do silêncio/fala ausente da religião no âmbito acadêmico. Existe, na verdade, um diálogo de surdos. Uma vertente procede como se a outra não existisse. Em alguns momentos em que parecem fazer certa concessão ao ensino religioso não confessional na escola pública, os contrários a ele chegam a admitir o estudo da religião como uma história das religiões, como é a modalidade adotada pelo sistema estadual de ensino do estado de São Paulo. Mas permanece a dúvida: a disciplina de História já não trata da história das religiões em seu programa? Onde está a especificidade de uma outra disciplina para tratar do mesmo assunto? Outros imaginam o ensino religioso como um momento de se falar sobre ética e cidadania no âmbito escolar, função que deve estar presente em todas as disciplinas, sendo, portanto, desnecessária uma disciplina específica para isso, com o nome de ensino religioso. De qualquer forma, até o momento, observam-se posições inconciliáveis, ao ponto de os críticos do ensino religioso na escola pública proporem abertamente a revogação do dispositivo constitucional que o prevê, de acordo com Sueli Carneiro: “O antídoto a esse rol de ambiguidades presentes em diferentes dispositivos que regulam o Estado brasileiro, sobretudo, no que tange à incompatibilidade do Estado laico com o ensino religioso nas escolas públicas, seria a supressão do referido inciso do artigo 210 da Constituição, por meio de emenda constitucional de forma a reafirmar o dispositivo expresso em seu art. 19, inciso 1, do Título III – Da organização do Estado – que veda à União, Estados, Distrito Federal e municípios ‘estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, [...]’ ” (CARNEIRO, 2008, 138).

Assim, de um lado, temos os segmentos defensores do Estado laico – a apregoar a retirada do ensino religioso das escolas como processo que comunga no caminho da construção de uma sociedade secularizada – e, do outro, temos aqueles que defendem o ensino religioso como componente curricular, reconhecendo a não secularização da nossa sociedade e, com isso, a necessidade do ensino religioso como maior entre os contrários a qualquer modalidade de ensino religioso na escola pública e os favoráveis ao ensino religioso como área de conhecimento, melhor entendido como ensino do fenômeno religioso. Observei sempre a presença apenas do segundo grupo, o que se explica possivelmente por se tratar de encontros de teólogos e cientistas da religião e não de outras áreas científicas da Academia.

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componente curricular importante na formação humana, indispensável para a construção cidadã e moral dos brasileiros.

Existe ainda o grupo daqueles que buscam a integração de ambas as perspectivas (GIUMBELLI, 2008). Nesse aspecto, é que, para Pierucci (2005), o ensino religioso nas escolas públicas, em sua nova configuração legal e em sua atual proposta curricular, reflete a desmonopolização do campo religioso brasileiro. Já, para Dickie (2003, 15), a presença do ensino religioso nas escolas públicas representa a tentativa de recuperação para as religiões de alguma influência no espaço público, por meio da legitimação de sua autoridade sobre a vida cotidiana e cultural, vistas como dilaceradas pelo individualismo e pela falta de valores. Para Oliveira, “tal tentativa, no entanto, se faz sobre novas bases em relação ao período ecumênico e pré-ecumênico do país, pois se revela mais democrática e preocupada em respeitar as individualidades presentes no esforço conjunto de grupos estratégicos” (OLIVEIRA, 2011, 143).

Capítulo II De uma laicidade de abstenção ou de incompetência a uma laicidade de inteligência

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Como vimos no Capítulo I, o ensino religioso nas escolas públicas no Brasil está previsto na Constituição Federal de 1988, no §1º do Art. 210: § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

Vimos, pois, que a Constituição Federal de 1988 prevê o ensino religioso como um princípio geral, sendo de oferta obrigatória pelas escolas públicas de ensino fundamental, inclusive como disciplina com horários previstos na grade curricular, mas de matrícula facultativa por parte da família do aluno e da aluna. De saída, já se percebe, pela própria Constituição, que o fato de ser de matrícula facultativa expressa um caráter diferenciado desta disciplina no conjunto das demais. Não é difícil perceber que este caráter diferenciado está diretamente relacionado com a questão da liberdade religiosa e da laicidade do Estado que têm dispositivos previstos em vários outros artigos da Constituição, como a separação entre Estado e cultos religiosos ou igrejas (art. 19), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, 3º e 4º), a igualdade de todos perante a lei (art. 5º) e o dever da família, da sociedade e do Estado em relação a crianças e adolescentes (art. 227). Percebe-se que a preocupação é com a liberdade de consciência, de crença e de culto relacionada à laicidade do Estado. É sobre esta questão que trataremos neste Capítulo II. O Brasil possui, hoje, uma considerável pluralidade de modelos de ensino religioso, espalhados por diversos estados e municípios, o que se desenha em função de iniciativas locais e não de uma diretriz comum, capaz de produzir uma prática pedagógica consistente para esta disciplina em âmbito nacional. Isso decorre do parágrafo 1º do art. 1º da Lei 9475/97 que modificou o art. 33 da Lei 9394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB: § 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.

Assim, a partir da obrigatoriedade da oferta na rede pública combinada com a facultatividade da matrícula por parte da família, a legislação infraconstitucional repassou para os sistemas estaduais e municipais de ensino uma série de 74


responsabilidades sobre esta disciplina, particularmente a definição de conteúdos, a formação e a admissão de seus professores. Ao longo da nossa história nacional, como já foi visto no Capítulo I, esta área de estudo esteve quase sempre sob o controle da Igreja Católica, enquanto instituição religiosa hegemônica. Seguiu, pois, parâmetros catequéticos, teológicos e pedagógicos ditados pela Igreja. Foi um modelo que evoluiu depois da LDB para o que podemos denominar de interconfessional, levando em conta as diferenças religiosas existentes no interior das escolas, sendo adotado durante algum tempo pelo FONAPER. Também

nesse

caso,

esta

linha

parece

não

ter

conseguido

justificar-se

epistemologicamente como área de conhecimento perante as demais, superar politicamente a linha de tolerância às diferenças e, pedagogicamente, construir uma metodologia capaz de incluir a diversidade de experiências religiosas e até mesmo nãoreligiosas. Sem entrar de imediato no mérito político e eclesiológico da separação Igreja-Estado, este parece ter sido o problema subjacente às questões que se mostraram e se mostram ainda hoje, imediatamente, na discussão e nos encaminhamentos práticos do ensino religioso. Sob o entendimento de que o assunto religião é de propriedade das confissões religiosas, não poderá, a rigor, sair desse âmbito, mesmo quando se tornar disciplina escolar. É o que parece estabelecer a mesma LDB, no parágrafo 2º do mesmo artigo 1º: Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.

A legislação estabelece que os conteúdos do ensino religioso na Escola Pública, via de regra, devem provir dos próprios sistemas de ensino. Mas não deixa de gerar certa ambiguidade quando se estabelece a necessidade de se ouvir as denominações religiosas para a definição dos conteúdos. Até que ponto estas instituições, através de entidade civil que as reúna, terão ou não o controle da definição destes conteúdos? A nosso ver, o ensino da religião como área de conhecimento dispensaria tal parágrafo da LDB. Trata-se de uma ambiguidade da lei que vem gerando as práticas hoje visíveis no tocante à docência do ensino religioso: ou é reivindicado e assumido explicitamente por 75


agentes confessionais ligados às instituições eclesiais, é oferecido pelo Estado nas escolas públicas sob a égide da laicidade, ou ainda assumido por sistemas de ensino, considerados a princípio laicos, mas que reproduzem nos seus currículos as teologias confessionais. Na verdade, a proposta organizada pelo FONAPER, logo após a LDB de 1996/97, não conseguiu se institucionalizar como norma comum, talvez, sobretudo, por falta de condições políticas, apesar de anos de aprofundamento teórico-metodológico. O convencimento sobre a conveniência do ensino religioso na Escola Pública se dá, pois, no âmbito mais amplo e profundo de duas grandes questões, de que trataremos a seguir. A primeira, solidamente cristalizada, é a da laicidade do Estado e do ensino público que excluem os conteúdos religiosos como ameaça aos princípios fundantes do Estado Moderno. A segunda, fragilmente constituída, é a fundamentação epistemológica do ensino religioso como área de conhecimento. O convencimento sobre a primeira questão, sem levar em conta a segunda, acaba por abrir espaço para as confissões religiosas assumirem a condução do ensino religioso, uma vez que são detentoras, segundo dá a entender a própria concepção legal do Estado, através da LDB, dos conhecimentos religiosos. Todos os esforços historicamente realizados no sentido de se construir uma prática minimamente coerente dessa disciplina gravitou sempre em torno da questão da confessionalidade religiosa e da laicidade do Estado. É possível hoje pensar um modelo que supere este impasse em nome da autonomia dos estudos de religião e da própria educação em relação às confessionalidades? É necessário, em primeiro lugar, aprofundar o debate conceitual sobre a laicidade do Estado, sob o ponto de vista de sua construção histórica e diante dos importantes deslocamentos verificados recentemente no campo religioso em todo mundo em nossos dias e, em particular, no Brasil. É o que trataremos neste capítulo, pois acreditamos que a discussão do Estado laico frente ao ensino religioso na escola pública é a porta de entrada do problema. Em seguida, o convencimento a ser feito é fundamentalmente de ordem epistemológica, ou seja, a demonstração de que o estudo da religião como área de conhecimento pode gozar de autonomia teórica e metodológica diante de outras áreas de conhecimento, sendo capaz de subsidiar práticas de ensino de religião dentro dos sistemas de ensino laicos, sem nenhum prejuízo de sua laicidade, ao contrário, a favor dela. Nesta 76


perspectiva, o ensino religioso é, além de tudo, uma maneira de praticar a laicidade, porque abordar os fatos religiosos com a mesma deontologia e com os mesmos métodos de outros fatos sociais e culturais é, sem dúvida, uma maneira de praticar a laicidade (WILLAIME, 2014, 10). De fato, o estudo científico das religiões é tão laico quanto qualquer outro inscrito na esfera das ciências que são ensinadas nas escolas, o que não significa que todo ensino não traga em seus objetivos a formação de valores nos educandos e educandas. É o que trataremos no capítulo seguinte. Abordaremos a questão da laicidade em uma perspectiva que vai muito além de um simples conceito e sim como construção social e histórica da sociedade moderna ocidental. Não há como separar a construção deste conceito de laicidade da afirmação da racionalidade ocidental na modernidade, a partir do Renascimento e do Iluminismo. Este mesmo processo determinou a progressiva marginalização e descredibilização de todos os saberes não reconhecidos no âmbito da razão ocidental totalizante, entre eles os saberes religiosos. De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2010), trata-se de uma razão metonímica (porque se reivindica como a única forma de racionalidade), reducionista e dualista, chamada por ele também de indolente, pois não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para torná-los matéria-prima ou suporte ideológico para os seus próprios interesses hegemônicos, particularmente a expansão do mundo capitalista. Disso decorre um imenso desperdício da experiência social, incluindo as experiências no campo religioso. Por aqui se percebe que as questões da laicidade do Estado e da necessidade de uma epistemologia crível para o ensino religioso estão mútua e intrinsecamente implicadas desde a sua origem36. De saída, percebe-se que existe uma grande confusão na utilização dos conceitos de secularização e laicidade. O senso comum e boa parte dos estudiosos tratam ambos como termos sinônimos que supostamente fariam referência a um mesmo fenômeno social e histórico. Também nas traduções, nos deparamos com esta confusão. Mas secularização e laicidade são processos sociais distintos, conceitos heterogêneos, mesmo com sua ocorrência no contexto da modernidade e se relacionando

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Não é por acaso que John Locke (1632-1704) é considerado por muitos como sendo responsável por lançar as primeiras ideias matrizes do que viria a ser conhecido mais tarde como laicidade com a sua obra Letter concerning on Tolerance de 1689, e também ser o primeiro fundador da Epistemologia com a sua obra An Essay Concerning Human Understanding de 1690.

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fundamentalmente com a autonomização das diversas esferas da vida social do controle e tutela da religião. Catroga (2013) alerta que será importante correlacionar as distinções conceituais com as especificidades das experiências históricas que elas denotam, tanto mais que nem toda a secularização implicou uma laicidade e muito menos um laicismo, embora toda a laicidade pretendesse acelerar a secularização. Para este autor, “muito do que caracteriza a secularização e laicidade está indissociavelmente ligado, quer à área geocultural que Émile Poulat, há algum tempo, definiu como cristianitude, quer aos seus preconceitos eurocêntricos e ocidentalocêntricos” (Catroga, 2013, 10). Baubérot e Milot (2011) sugerem que secularização seja um termo reservado para a abordagem de dimensões sociais e culturais do retraimento do domínio religioso; já laicidade, dotado de autonomia em relação à secularização, é entendido como um modo de organização ou regulação política, incluindo seus aspectos jurídicos.

2.1. Secularização: construção histórica e conceituação

A noção de que a religião se constitui como fenômeno socioantropológico no processo histórico de modernização ocidental já foi exaustivamente estudada e podemos considerá-la consensual. O paradigma weberiano sobre a secularização deu a esta ideia sua formulação mais analítica. Por este paradigma de interpretação, a objetivação da religião como uma esfera diferenciada da vida social é resultado de um movimento histórico iniciado pela modernidade e exponencialmente estimulado pelo ascetismo protestante. Weber afirmou que as religiões éticas, caracterizadas pela sua concepção abstrata da salvação, foram diretamente responsáveis pela racionalização da imagem de um mundo sem Deus (WEBER, 1982, 325).

Nesta perspectiva, a religião deixou há muito tempo de ser o elemento estruturador da ordem social. A religião perdeu o seu lugar já na Europa do Século das Luzes e desde então sua posição na sociedade ocidental não parou de se retrair, mesmo sabendo que de forma não linear. Os valores e as normas que orientam o nosso comportamento são cada vez mais isentas de qualquer referência ao sagrado. Na

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modernidade, a religião se desloca da esfera pública para a esfera privada37. Este é o processo que denominamos de secularização. “O direito, a arte, a cultura, a ciência, a educação, a medicina e outros campos da vida social moderna se baseiam em valores seculares, ou seja, não religiosos. As bases filosóficas da modernidade ocidental revelam uma concepção de mundo e de homem dessacralizadora, profana, que contrasta com o universo permeado de forças mágicas, divinas das sociedades tradicionais e primitivas”. (RANQUETAT JUNIOR, 2008, 61).

O desenvolvimento da ciência, da técnica e do racionalismo faz recuar as concepções sacrais e religiosas do ser humano e do mundo: “Um aspecto importante dos câmbios externos que afetaram o papel da religião na sociedade do século XIX foi o desenvolvimento de uma weltanschaung pragmática A expansão da ciência e o fato de que as operações científicas ‘se provam por si mesmas’ aos olhos do homem da rua conduziram a um novo procedimento, comprovador e pragmático, de todo sistema ideológico. A ciência não somente passa a explicar muitas facetas da vida e de seu entorno material de um modo mais satisfatório que a religião, mas também passa a oferecer a confirmação de suas explicações mediante o resultado prático destas.” (WILSON, 1969, 55).

Para Rodrigues (2013), o processo de secularização caracteriza-se pela ruptura com a lógica patrimonial e tradicional, presente no discurso centralizador da Igreja, em direção à lógica burocrática e moderna, própria dos Estados de direito, na qual o indivíduo toma para si a responsabilidade de significar suas ações, o que antes ficava a cargo do discurso religioso. Mas a construção do conceito de secularização guarda toda uma genealogia que precisa ser explicitada se quisermos apreender corretamente seu significado para a sociedade ocidental moderna. Do ponto de vista histórico, secularização tem sua origem no Direito Canônico da Igreja Católica, significando a

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Nesse sentido, público e privado não são esferas completamente distintas, mas lugares pelos quais a sociedade se move, compõe discursos, se articula e se rearticula. A relação que se estabelece é, portanto, de mutualidade. Arendt (2007, 55-56) propôs que a esfera pública se desenvolveu com a admissão das atividades e da economia doméstica à esfera pública que caracteriza certa tendência ao crescimento e à absorção das esferas do político e do privado, bem como a da intimidade. Um crescimento notado no movimento das sociedades modernas em deslocar a vida privada para essa esfera pública. Ainda voltaremos a esta questão mais adiante. Ver Rodrigues, 2012, 160-165.

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passagem de um religioso regular ao estado secular. Assim foi utilizado pela primeira vez no final do século XVI nas disputas canônicas francesas por juristas como Jean Papon e Pierre Grégoire (MARRAMAO, 1997, 17). Colocado pela primeira vez no campo jurídico-político, o conceito também se referia ao ato de expropriação dos domínios da Igreja Católica que passavam para os príncipes dos Estados protestantes ou das igrejas reformadas, durante o processo da Reforma e, no século XIX, à expropriação dessas mesmas propriedades fixada por decreto de Napoleão Bonaparte de 1803. Neste sentido, pode ter sido utilizado pela primeira vez em 1643 pelo delegado francês Longueville (MARRAMAO, 1997). Mas no sentido de defesa do ensino não confessional, Blancarte (2006) aponta que aparece pela primeira vez no século XIX, em um voto contrário que o Conselho Geral de Seine, na França, proferiu em relação à instrução religiosa na escola pública. Para além da origem histórica do conceito, no entanto, vários autores chamam a atenção para o fato de que secularização tem suas raízes em um longo processo que se inicia ainda na Antiguidade oriental-semítica e que se confunde com as origens remotas da própria laicidade. Na linha da filosofia alemã e da sociologia de Max Weber, Peter Berger (2003) considera o monoteísmo o principal desencadeador do processo de secularização. Ele implica uma transcendentalização de Deus que é, então, colocado fora do cosmos e não é mais capaz de agir sobre o mundo senão por meio de ações pontuais. Para Bobineau e Tank-Storper (2011), isto fica evidente com o Deus dos hebreus, ao instaurar uma aliança com os homens e colocar sua relação com o divino sob a chancela de um contrato. O ciclo histórico da fusão do poder da fé cristã, herdeira do judaísmo, com a estrutura social e política no Ocidente tem início justamente em 313 com o Edito de Milão, do imperador Constantino. A Teoria das Duas Espadas, formulada pelo papa Gelásio I em 494, consolida por séculos a “diarquia hierárquica” formada pelas esferas espiritual e temporal, passando pela “luta das investiduras” na Baixa Idade Média e chegando até as guerras confessionais na Europa no século XVII. Estas se encerraram em 1648 com a Paz de Westphalia, criando uma nova situação que inverteu, definitivamente, a lógica daquele processo, “destruindo o ideal universalista da república cristã fundado no plurissecular conúbio entre Céu e Terra [...] A Igreja perde o seu papel de custódio essencial do poder político, enquanto este último se vê livre das responsabilidades inerentes diretamente à esfera religiosa” (MARRAMAO, 1997, 21). 80


A partir de então, a separação entre o poder espiritual da Igreja e o poder temporal do Estado moderno foi um processo histórico muito complexo que assumiu diferentes formas em diferentes países, regiões do mundo e períodos históricos. “Não impediu, por exemplo, que a religião fosse posta a serviço do colonialismo como parte integrante da missão civilizadora” (SANTOS, 2014, 99). Aquele processo de tanscendentalização, que o cristianismo fez adormecer por meio de sua obra de síntese entre o monoteísmo bíblico e as concepções cosmológicas não-bíblicas – é encerrado pelo protestantismo. “O protestantismo pode ser descrito como uma gigantesca retração do alcance sagrado na realidade” (BERGER, 2001, 111). Como afirma Montero, “O viés do legado protestante implícito no paradigma da secularização faz da emergência da sociedade civil uma extensão da lógica secularizadora do próprio protestantismo” (MONTERO, 2006, 48). Com isso, a secularização se dissemina de forma viral, notadamente através do capitalismo. “O cristianismo foi seu próprio coveiro”, diz Peter Berger (2011), enquanto Marcel Gauchet (1985), defendendo a mesma tese, qualifica o cristianismo como “religião da saída da religião”. Como a dualidade conceitual do secular e do espiritual é de elaboração cristã, a própria autonomização do secular pode ser compreendida como o desenvolvimento de uma “lógica interna” do cristianismo. Voltando ao conceito de secularização, tanto no sentido do Direito Canônico quanto no do Direito do Estado, ele recebe seu significado essencial da oposição espiritual/secular. O contexto histórico-cultural desta antítese deve ser compreendido à luz da doutrina agostiniana das Duas Cidades, que, em meio a variadas transformações, estruturou a cultura do ocidente medieval e moderno. Mas aqui já estamos na dimensão filosófica do termo, para além da sua acepção político-jurídica. A partir do final do século XVIII, a categoria secularização se historiciza e assume uma extraordinária extensão semântica. Do campo jurídico-político passa pelo campo da filosofia (e teologia) da história, e acaba chegando ao campo da ética e da sociologia. Já agora, ela se encontra cercada por outras coordenadas simbólicas da modernidade: emancipação e progresso, liberação e revolução.38 Produzem-se radicais A teologia dialética ou “teologia da crise” (Barth, Gogarten e outros) também promoveu uma crescente relação entre religião e cultura, um crescente historicizar-se e mundanizar-se da religiosidade. Assim, por um lado, a secularização é teologicamente legitimada como função de compreensão da autonomia do mundo moderno profano, emancipado do equívoco da “civilização cristã”; por outro, a liberação do mundo, 38

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redefinições e deslocamentos de significado do binário espiritual/humano. Com estes deslocamentos, o conceito de secularização acabou por sintetizar ou expressar unitariamente o desenvolvimento histórico da sociedade ocidental-moderna, a partir de suas raízes judaico-cristãs. Trata-se, pois, de um conceito genuinamente ocidental, que só tem sentido nos marcos histórico-culturais do Ocidente. Para Weber, o aspecto mais importante da secularização como a entendemos hoje, estaria ligado ao domínio de um modo de agir racional e calculista com respeito ao objetivo que encontrou sua específica expressão histórica e social na ética da renúncia e da ascese intramundana, próprio do protestantismo calvinista. Por meio tanto da doutrina da graça, quanto da ratificação que se manifesta nas obras e em seu sucesso, a atitude protestante dá lugar àquela peculiar união de rigorismo religioso e aderência ao mundo que – constituindo o espírito do capitalismo – induz nas relações sociais um poderoso efeito de dessacralização. Para Marramao, “pela amplitude de perspectiva e pela riqueza de conteúdo analítico, a expansão weberiana do tema da secularização representa um verdadeiro divisor de águas, [...] constitui para a filosofia, não menos que para as ciências da cultura no século XX, um ineludível ponto de referência.” (MARRAMAO, 1997, 53).

Assim, secularização é – sabidamente – uma das expressões-chave do debate político, ético, filosófico e teológico contemporâneo. Por seu caráter ubiquitário, ela foi progressivamente assumindo uma variedade cada vez maior de acepções e atributos semânticos. “No âmbito ético-filosófico é usualmente utilizada para denotar a perda de modelos tradicionais de valor e de autoridade, isto é, o fenômeno sociocultural de vasta dimensão que, a partir da Reforma Protestante, consistiu na ruptura do monopólio da interpretação. Já no debate filosófico, ela figura – seja na corrente analítica seja na hermenêutica – como sinônimo da progressiva erosão dos fundamentos teológicometafísicos e da abertura à contingência: e, portanto, abertura à dimensão da escolha, da responsabilidade e do agir humanos no mundo.” (MARRAMAO, 1997, 9-10).

que assim pode voltar a ser apenas mundo, torna-se ao mesmo tempo liberação da fé em relação ao mundo, verdadeiro resgate da religião em relação à prisão do mundo.

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Ocupando um lugar central no campo da sociologia e, em especial, da sociologia das religiões, as teorias da secularização constituem uma referência obrigatória para todo o pesquisador que se proponha a pensar nas relações entre religiões e modernidade. Alguns autores, como Olivier Tschannen, falam até de um ‘paradigma da secularização’ como “um conjunto de ideias, talvez de conceitos, que permitem pensar o problema da religião no mundo moderno de determinada maneira, como se todos os autores que compartilham esse paradigma usassem de algum modo os mesmos óculos para analisar a religião” (TSCHANNEN, 2001, 308). A partir dos anos 1960, principalmente no mundo anglo-saxão, é que o tema da secularização ganhou sua formulação sistemática e se impôs como tema dominante na sociologia das religiões. 39 A maioria dos autores vê hoje a secularização como declínio da religião, a perda de sua posição de eixo da sociedade, com a autonomização das diversas esferas da vida social do controle da autoridade religiosa. A religião no mundo moderno perde força e autoridade sobre a vida privada e cotidiana. Por isso indaga Pierucci 40: “Que soluções ou respostas inovadoras e criativas as religiões têm sido capazes de produzir em benefício de seu próprio prestígio que não sejam acomodatícias e condescendentes com a própria modernidade?” (PIERUCCI, 1997, 107). Para Peter Berger, a secularização é um processo “pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos” (BERGER, 2003, 119). Para Daniele Hervieu-Léger, trata-se da situação em que “a religião cessa de fornecer aos indivíduos e aos grupos o conjunto de referências, de normas, de valores e de símbolos que lhes permitem dar sentido às situações em que eles vivem e às experiências que eles têm: a religião não constitui mais o código de sentido global que se impõe a todos” (HERVIER-LÉGER, 1966, 13) ou ainda

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Os principais autores que, a partir de então, passaram a ser referências nesta discussão foram Talcott Parsons, Thomas Luckmann, Peter Berger, Bryan Wilson, David Martin, Robert Bellah, Richard Fenn, N. Luhmann e Karel Dobbelaere. 40 Em toda a sua argumentação, Pierucci recorre ao conceito weberiano de secularização que necessariamente invade o terreno da conceituação de legitimidade, do tratamento teórico dos problemas da legitimação da autoridade no Estado moderno. Também não se pode discutir a legitimidade do Estado moderno e constitucional e da própria democracia sem esbarrar no tema da secularização. Mas a experiência de várias sociedades muçulmanas com o secularismo é uma experiência com o autoritarismo político. Isto significa que o valor democrático atribuído ao secularismo deve ser relativizado e contextualizado (Santos, 2014).

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“A secularização não é, pois, a perda da religião, mas o conjunto dos processos de reconfiguração das crenças que se produzem em uma sociedade onde o motor é a não satisfação das expectativas que ela suscita, e onde a condição cotidiana é a incerteza ligada à busca interminável de meios para satisfazê-las.” (HERVIEU-LÉGER, 2008, 41).

Olivier Bobineau e Sébastien Tank-Storper, (2011), nos traz uma síntese muito interessante do processo de secularização entendido nos seus cinco aspectos principais:

1º) Secularização como processo de diferenciação institucional que nada mais é do que a autonomização e especialização das diferentes instituições sociais, o que diz respeito tanto ás instituições profanas quanto às instituições religiosas. Deus, que estava presente em todas as relações humanas, agora abandona o mundo aos homens e às suas querelas. Talcott Parsons faz desta diferenciação institucional, que ele prefere chamar de funcional, o principal motor do processo de secularização. Assim, a política, a educação, a saúde, etc. são transferidas para instituições seculares especializadas. Cabe, agora, às instituições religiosas se refugiarem nos “interstícios” do sistema social, se ocupando do ético, do espiritual, da morte, etc. É por aqui que se confunde muitas vezes o conceito de secularização com o conceito de laicidade.

2º) Secularização como processo de pluralização da oferta religiosa, resultando no surgimento de um mercado religioso competitivo. A tradição religiosa vai agora ao mercado, ela deve ser vendida a uma clientela que só compra se quiser, dentro da lógica da oferta e procura. Esta lógica padroniza as ofertas religiosas, empobrece os conteúdos teológicos e desqualifica as grandes tradições religiosas em proveito de slogans facilmente assimiláveis no contexto de uma sociedade de massas. Peter Berger chega a afirmar: “A situação pluralista mergulha a religião em uma crise de credibilidade” (BERGER, 2003, 151).

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3º) Secularização como processo de privatização e individualização da crença, já que a religião, agora separada da política e não mais imposta a toda a sociedade, se retira para a esfera privada. A crença se torna subjetiva, dando lugar a uma interpretação pessoal. É a individualização da crença. Como diz Thomas Luckmann, “já que se trata de uma questão privada, o indivíduo pode escolher uma dentre várias da coleção das significações últimas como bem lhe agradar – agora guiado unicamente por preferências que são determinadas pela sua biografia social” (LUCKMANN, 1967, 99).

4º) Secularização como processo de racionalização, que consiste em certos domínios da vida social, até então organizados sobre uma base religiosa, começarem a funcionar segundo os critérios da racionalidade instrumental. Passa-se da comunidade para a sociedade. Na comunidade, com fortes vínculos afetivos, a religião, além de garantir a salvação, garantia também controle e integração social, interpretação do mundo, canalização das emoções, etc. À medida que as orientações científicas e técnicas se ampliam, os modos de organização social e os comportamentos individuais se racionalizam, quebrando deste modo o antigo consenso moral e a força comunitária. A partir da filiação weberiana, é sem dúvida Bryan Wilson quem mais insiste neste aspecto, como será apontado por Pierucci (2013).

5º) Secularização como processo de mundanização quando a sociedade deixa de se interessar pelo mundo sobrenatural ou espiritual para interessar-se pelas questões do saeculum 41, deste mundo aqui e agora. Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (2004), já coloca isso muito bem na ética calvinista que incita os fiéis a procurarem os sinais de sua salvação em seu sucesso profissional e econômico,

desviando-os

progressivamente

das

preocupações

A palavra “secularização” é oriunda do latim clássico – saeculum -, significando “século”; porém, poderia significar também “idade”, “época”. Com o tempo foi adquirindo outros significados como “mundo”, “vida mundana”, “espírito do mundo”. 41

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religiosas até que o mundo constitua seu principal horizonte. Bryan Wilson e Thomas Luckmann (1967; 1987) seguem nesta direção.

Ainda no campo conceitual, alguns autores chamam a atenção para a diferença entre secularização e secularismo. Como já vimos, a secularização, a grosso modo, é o deslocamento da religião da esfera pública para a esfera privada, mas admitindo a presença de instâncias não seculares na esfera pública, enquanto o secularismo representa a própria personificação da esfera pública e a única fonte oficial de razão pública, não deixando, deste modo, nenhum espaço para as instâncias não seculares no espaço público (SANTOS, 2014, 99-100, nota 77).

No início do século XX, palavra secularismo ainda tinha um sentido muito pesado porque era rico de sentido - porque ela era ‘negativo’. Negativo quase no sentido hegeliano: uma energia que se opunha a algo que tinha a intenção de destruir. Mas destruir o quê? Morin nos responde: “Mais exatamente a hegemonia do pensamento teológico sobre o conjunto do saber hegemônico iniciado no século XVIII, ou melhor, a presença de um pensamento muito forte, doutrinal, dogmático, tendo como pano de fundo as verdades reveladas: as da Igreja. Portanto Secularismo tinha o poder do negativo no sentido hegeliano - liberdade - ou seja, ele negava as determinações impostas, as restrições, os dogmas. A força do secularismo era a luta, se não contra o monopólio, pelo menos contra o que restava dele, e a vontade de substitui-lo por qualquer coisa que não representasse mais um pensamento monopolista, doutrinário.” (MORIN, 1985).

Para vários autores, enquanto a secularização é “a consequência necessária e legítima da fé cristã”, o secularismo constitui, ao invés, uma sua expressão degenerada: “Secularismo é a postura que pretende “invadir o campo pertinente à fé”, uma atitude que – olhando bem – nada tem de profana, na medida em que, alimentada pela crença no caráter “omni-decisório” dos critérios políticos ou culturais, eleva o mundo à dignidade do absoluto. Em uma palavra: sacraliza-o.” (MARRAMAO, 1997, 73).

Para Santos (2014), nos anos mais recentes, vários autores vêm questionando o secularismo pela sua incapacidade de dar conta da ‘plurivocidade do ser’, 86


para usar uma expressão de William Connolly (1999), ou seja, de evitar que outras crenças para além da crença secularista se expressem na esfera pública. Este debate, reconhecido ou não, segundo Santos (2014), tem sido sustentado pela crescente visibilidade do ‘outro’ dentro do ocidente, no contexto de uma transição paradigmática vivida pelo nosso tempo. Se para o Iluminismo, a religião institucional foi considerada um anacronismo, sendo o seu retorno ao espaço privado entendido como uma fase de transição para o seu total desaparecimento, o poder do Estado moderno constitui-se através de um complexo jogo de espelhos com o poder sagrado da Igreja, assumindo muitas de suas características sacramentais e rituais (MARRAMAO, 1997, 23). Carl Shmitt (2006) defendeu na sua obra Teologia Política que todos os conceitos significativos do poder do Estado eram versões secularizadas de conceitos teológicos. A modernidade política é um processo de teologização do Estado: “o Estado moderno, que se autodenomina laico, está povoado de fanáticos religiosos disfarçados de extremistas políticos. Um Deus que se serve do Estado para proteger os povos dos perigos deste mundo” (GASDA, 2015, 40).

Então, podemos afirmar que, a partir do Estado, tivemos também uma crença, um dogma ou uma ideologia secularista. Ela embasou fortemente a luta dos defensores da escola laica na França a partir de 1870. Como dizia Alphonse Aulard em 1903: “Nós queremos arrancar a religião da consciência humana, pois temos algo muito superior a colocar em seu lugar, a filosofia secular, fruto do conhecimento e experiência da humanidade. Nós vamos apagar as luzes do céu que nunca mais serão acesas”. Ou René Raphaël Viviani em 1906: “A neutralidade da escola sempre foi uma mentira, nunca tivemos qualquer outro propósito além de fazer uma obra militante, universal, belicosa, de modo ativo contra a religião. Estamos empenhados em uma obra de irreligião que arrancou a consciência humana da crença e do controle da Igreja”. Ou ainda León Gambetta na mesma época: “Eu quero, com todo o desejo da minha alma, não só a separação das igrejas em relação ao Estado, mas que se separem as escolas da Igreja. Isto é para mim uma necessidade política, e eu acrescentaria, também de ordem social” (cf. PEISER, 1995).

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Mas para Santos (2014), de uma perspectiva não cristã e não ocidental, o secularismo é tão constitutivo do Cristianismo quanto a própria religião cristã. O secularismo e a religião cristã fizeram parte do mesmo pacote colonial: “Foram também parceiros próximos na imposição da monocultura do conhecimento científico ocidental, através do qual foram suprimidos os conhecimentos indígenas, locais, camponeses e outros conhecimentos rivais, não ocidentais” (SANTOS, 2014, 100).

Como ainda

veremos, outros autores comungam com esta tese de Santos: “Pelo menos no mundo cristão, a religião institucionalizada fez as pazes com as estruturas de poder existentes, por mais injustas, sequestrou a força motivadora contida na espiritualidade e transformou os crentes em indivíduos da salvação individual noutro mundo além da morte. Foi este tipo de religião que Marx tão acertadamente criticou.” (SANTOS, 2014, 141).

Toda esta problemática em torno da secularização nos impõe necessariamente outra discussão que não é nada recente: o futuro das religiões. Vários autores tratam desta questão, como Thomas Luckmann e Peter Berger. Apesar do fundo teórico comum, eles não fazem a mesma leitura da religião no mundo moderno. Para Luckmann (1967), a secularização consiste em um duplo processo de declínio das religiões institucionais e de generalização das funções religiosas para o conjunto da sociedade. Para Berger (2003), ela consiste mais radicalmente em uma perda de significação global dos signos e símbolos religiosos em um mundo dominado pela racionalidade técnica e científica. Estas diferentes visões não proveem, no essencial, de desacordos importantes quanto à análise do impacto do processo de secularização na sociedade, mas se originam da definição que cada um deles faz da religião. Para Luckmann (1987), a religião faz parte da própria humanidade do homem e da mulher. É ela que permite aos seres humanos transcender sua natureza biológica. Existiria, pois, uma ‘função antropológica geral da religião’ que consistiria em “moldar os organismos humanos para fazer deles pessoas” e permitiria “socializar os seres humanos em ordens sociais históricas” (LUCKMANN, 1987, 76). Para ele, essa função religiosa que constitui a própria essência da humanidade não pode desaparecer. A secularização, segundo essa lógica, consiste por um lado em um movimento de privatização que burila as formas historicamente instituídas de religiões e, por outro, em

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um processo de generalização das funções antropológicas da religião em uma religião invisível, difusa e não especializada.

Refutando essas definições funcionalistas da religião, os defensores das definições substantivas, como Peter Berger (2003), propõem que a religião seja entendida pelos seus conteúdos e não pelas suas funções sociais. Para estes, a religião é um empreendimento humano que criou um cosmos sagrado e que se inscreve em realidades sociais objetivas (instituições, papéis, identidades) que se impõem a cada indivíduo e lhe fornecem uma visão do mundo ordenada. Estas visões tendem a assimilar a religião a suas formas institucionais que sofrem o impacto do processo de secularização que, assim, significa o fim da própria religião, ou ao menos, a sua marginalização.

Percebe-se, então, que as hesitações quanto ao futuro das religiões indicam o caráter complexo do processo de secularização. Ele não é um processo linear, nem um processo unidimensional. Ele não atua do mesmo modo, nem com a mesma intensidade, quer do ponto de vista do Estado, quer da sociedade, quer das instituições religiosas, ou do ponto de vista das práticas religiosas individuais. Karel Dobbelaere propõe que essas dificuldades sejam superadas, compreendendo o processo de secularização de um ponto de vista tridimensional: “A primeira dimensão é a da laicização, que é um processo de diferenciação estrutural e funcional das instituições [...], não prejulga as práticas e as instituições religiosas; a segunda refere-se a mudanças nos universos culturais e religiosos, tanto as crenças como os comportamentos [...]; o terceiro nível, por fim, diz respeito mais diretamente ao declínio das práticas religiosas individuais.” (DOBBELAERE, 1999, 236).

Concluindo, podemos definir secularização como um processo quase espontâneo, de longa duração, sem autor, e que se refere ao caminho percorrido pela cultura ocidental, desde a interpretação sacro-metafísica da realidade, até àquela em que o mundo histórico, social, finito passou a desenhar, dominantemente, mas não exclusivamente o horizonte da responsabilidade e da explicação do destino humano (CATROGA, 2013). E temos igualmente como certo, na linha de Danièle Hervieu-Léger (1997; 2008), que a sua consolidação foi inseparável do impacto das transformações provocadas pela Modernidade, nos seus diferentes níveis (econômico, político,

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intelectual, simbólico), sobre a religião, ou, de um modo mais exato, sobre a configuração tradicional dos elos entre a religião e a sociedade.

Enfim, a secularização é uma realidade concreta em boa parte das sociedades ocidentais. Para Ernst Gellner: “[...] em termos gerais, a tese da secularização mantém-se, de fato, firme. Alguns regimes políticos estão abertamente associados a ideologias secularistas e anti-religiosas, enquanto outros estão oficialmente desvinculados da religião, praticando o secularismo mais por defeito do que por afirmação ativa. No entanto, poucos são os Estados formalmente ligados à religião e, se o estão, trata-se de uma ligação frágil que não é levada muito a sério. A observância e a prática religiosa são reduzidas e os seus eventuais níveis elevados ficam a dever-se, com frequência, ao cariz eminentemente social e não transcendente dos conteúdos religiosos.” (GELLNER, 1994, 16).

Outro conceito, criado por Max Weber, que muitas vezes é confundido com secularização, é o conceito de desencantamento do mundo42. Eles possuem significados diferentes, mesmo que pareça apenas uma sutileza. Desencantamento não foi um termo cunhado por Weber, nem adotado ipsis litteris do poeta Shiller, como muitos afirmam, e sim por ele adaptado a partir de um sintagma similar que expressava a ideia de um “mecanismo desdivinizado do mundo”. Conforme Pierucci: “[...] desencantamento, em sentido técnico, não significa perda para a religião nem perda de religião, como a secularização, do mesmo modo que o eventual incremento da religiosidade não implica automaticamente o conceito de reencantamento, já que desencantamento em Weber significa um triunfo da racionalização religiosa [...].” (PIERUCCI, 2013, 120).

Por isso, este conceito de desencantamento do mundo43 deve ser entendido como “desmagificação” do mundo, ou seja, a perda do sentido mágico do O termo “desencantamento do mundo” possui grande poder de sugestividade, possui inúmeras possibilidades de metaforização. Ele é propenso à diluição dos seus contornos lógicos e, ao mesmo tempo, ao adensamento filosófico de seus conteúdos no trabalho de reflexão sobre os grandes dilemas existenciais postos pelo processo de racionalização especificamente ocidental (Pierucci, 2013, 45). 43 Philippe Gaudin traz uma discussão muito interessante da ideia de desencantamento do mundo a partir das obras de Michel Gauchet Le désenchantement du monde (Gallimard, 1985), Um monde désenchanté (Éditions de l’Atelier, 2004) e seu livro de entrevistas com Luc Ferry, Le religieux après la religion (Grasset, 2004), traduzido para o português como Depois da Religião. Ver GAUDIN, Philippe. Vers une laicité d’intelligence? L’enseignement des faits religieux comme politique publique d’éducation depuis les 42

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mundo a partir da luta secular da religião eticizada, racionalizada contra a magia. Este processo transcorreu em um longo período marcado pela racionalização religiosa por que passou a religiosidade ocidental em virtude da hegemonia cultural alcançada por essa forma de religião ética e desencantadora que é o judeo-cristianismo.

Para Pierucci (2000), o importante a perceber é que Weber realmente distingue os diferentes processos. Para ele, o desencantamento do mundo fala da ancestral luta da religião contra a magia, vale dizer, a repressão político-religiosa da magia, como, por exemplo, a perseguição aos feiticeiros e bruxas por profetas e inquisidores. Uma passagem bíblica que ilustra muito bem esta tese de Weber é a destruição dos profetas de Baal pelo profeta Elias (1 Reis, 18, 36-40). Para Weber, os profetas44 de Israel foram os primeiros desencantadores do mundo, conjugados com o pensamento científico grego, dois fatores originariamente constitutivos do racionalismo ocidental. 45

O desencantamento se traduz numa recusa de todos os meios mágicosacramentais de busca de salvação. Mais tarde, as seitas puritanas,46 na época pioneira de criação histórica da moderna civilização do trabalho, foram o seu ponto de chegada religioso, depois do qual então se transitou até a primazia da ciência moderna que reduz o mundo a um simples mecanismo causal e linear. Já a secularização, para Weber (2004), nos remete à luta da modernidade cultural contra a religião, tendo como manifestação empírica no mundo moderno o declínio da religião como poder temporal, sua separação do Estado, a depressão do seu valor cultural e sua demissão/liberação da função de integração social.

années 1980. Aix-en-Provence: Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2014, pp 37-55. Para Gaudin, Gauchet não fala de forma alguma no desaparecimento puro e simples da religião, mas sim claramente de sua recomposição em um modo profano, no sentido de que ela permanece possível como opção individual, mas não determina mais a organização coletiva nem a estruturação do espaço social (p. 38). 44 Weber faz decisiva diferenciação entre sacerdote e profeta e neste identifica o lugar original da dinâmica secularizante. O sacerdote é porta-voz legitimado da salvação, a serviço de uma tradição sagrada; já o profeta atua exclusivamente pelos seus dons pessoais e carismáticos, com base em doutrinas, revelações e imperativos divinos. 45 Nesta mesma linha, Karl Jaspers considera o período entre os anos 800 e 200 a.C. que ele chama de período axial como aquele “que lançou os fundamentos que permitiram a humanidade subsistir ainda hoje.” (JASPERS, 1951, 98). E podemos balizar este período exatamente entre a atividade dos profetas de Israel e a definição da filosofia grega. 46 Uma longa tradição intelectual e filosófica que vai de Hegel a Weber, passando por Feuerbach e Nietsche, situa a origem da secularização no próprio universo religioso, mais precisamente na história do cristianismo, como já foi dito.

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Neste sentido, na concepção weberiana, a secularização é consequência, de certa maneira, um ponto de chegada, uma conclusão lógica do processo histórico-religioso de desencantamento do mundo. Para ela, o processo de racionalização é mais amplo e mais abrangente que o desencantamento do mundo e, por isso, o abarca; o desencantamento do mundo, por sua vez, tem a duração histórica mais longa, mais extensa que a secularização e por isso a compreende. Para Santos (2010), no entanto, este processo de desmagificação foi muito mais profundo e radical. Este mundo mágico e sedutor de Weber, que Santos localiza no Oriente, foi a verdadeira matriz fundadora e totalizante do Ocidente, chamado por ele de ‘parte trânsfuga’ (SANTOS, 2010). Como já foi dito no Capítulo I, “a supremacia do Ocidente foi criada a partir das margens” (MARRAMAO, 1995, 160) O Ocidente se construiu a partir da Grécia e, como sabemos hoje, a antiguidade grega deve muito às suas raízes africanas e asiáticas. Assim, a força da razão metonímica ocidental é minada pela sua fraqueza e, paradoxalmente, é o que explica a razão de sua força no mundo. Foi com esta concepção truncada da totalidade oriental, exatamente porque truncada, que o Ocidente se firmou autoritariamente como totalidade a partir do final da Idade Média e impôs a sua homogeneidade sobre as partes que o compõem (SANTOS, 2010). O Ocidente, consciente de sua excentricidade relativa àquela matriz, aproveitou dela apenas o que pôde favorecer a expansão do capitalismo através de um processo reducionista: a multiplicidade dos mundos (terreno e extraterreno) foi reduzida ao mundo terreno e a multiplicidade dos tempos (passados, presentes, futuros, cíclicos, lineares, simultâneos) foi reduzida ao tempo linear. A redução da multiplicidade dos tempos ao tempo linear somente se fez através de conceitos, como progresso e revolução, que vieram substituir a ideia de salvação que ligava a multiplicidade dos mundos (do terreno ao extraterreno). Este processo reducionista foi a própria secularização e laicização do mundo ocidental. Para Santos, “foi esta concepção parcial e truncada da totalidade oriental que Weber contrapôs à sedução improdutiva do Oriente o desencantamento do mundo ocidental” (SANTOS, 2010, 99). Embaralhando-se ambos os processos no processo paralelo de modernização, o efeito do desencantamento do mundo sobre a religião foi evidentemente negativo, já que o consolida e faz avançar através de uma crescente racionalização da 92


dominação política que é inevitavelmente laicizadora.47 Mesmo assim, tornou-se comum e corrente nos dias atuais confundir os dois conceitos. Durante pelo menos 40 anos, produziu-se o consenso generalizado entre os sociólogos de que a modernização conduziria a uma inevitável secularização em âmbito global. Para Rodrigues (2013), antes dos anos 1980, o único a discordar dessa tese foi Martin (2005) para quem a secularização teria diferentes raízes dentro dos diversos contextos e seria necessário ver a modernidade como capaz de tomar formas religiosas. Nesta mesma linha de raciocínio, Casanova (2011), posteriormente, se destacou ao considerar como um mito a teoria clássica e por se interessar pela variação histórica. Casanova conclui bem esta discussão, ao distinguir três proposições diferentes e não conexas para a construção histórica da secularização, que irão formatar o modelo de laicidade na Europa:

“1) secularização como diferenciação e emancipação das esferas seculares diante das normas e instituições religiosas; 2) secularização como diminuição das crenças e práticas religiosas até seu total desaparecimento; 3) secularização como marginalização da religião encerrando-a na esfera privada.” (CASANOVA, 2011, 55).

Como em vários lugares esses três processos foram simultâneos, as teorias sociológicas dominantes falam de sua conexão histórica e estrutural. Mas, na verdade, este processo foi muito mais complexo, tanto na Europa quanto fora dela. Daquelas três teorias, Casanova (2011) continua sustentando apenas a primeira48, dado que o fenômeno da pluralidade religiosa e da recomposição das religiões em face da emancipação das esferas sociais dos Estados modernos seria o inverso da completa separação entre a religião, destinada à esfera privada, e o Estado, na atribuição de gerente do público49.

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Max Weber concebeu a separação entre religião e política como um elemento do processo de diferenciação entre os valores culturais e a formação das instituições. O desencantamento do mundo possibilitou a dessacralização do direito e instituiu o estado laico como referência da ordem jurídica. Esta conjunção de fatores viabilizou a retirada do Estado dos assuntos da religião ao mesmo tempo em que impôs à religião a neutralidade em assuntos de Estado. A desarticulação entre a religião e o Direito consolidou o moderno estado de Direito de forma definitiva como laico. 48 Casanova fez uma revisão crítica de sua tese, publicada em 2008 sob o título Public Religions Revisited. 49 Uma das diferenciações mais importantes para a compreensão da ordem social moderna, para além da separação entre Igreja e Estado, é a distinção entre a esfera pública do Estado e a esfera privada da sociedade. É neste sentido que a religião se torna uma questão privada: ela é excluída da esfera do Estado.

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Para Rodrigues (2013), em consequência dessa recomposição das religiões, já não se poderia afirmar o declínio progressivo das crenças e práticas religiosas, mas certo processo de desconfessionalização das crenças que lhes conduziu à rearticulação do discurso, em função do enfraquecimento da veia normativa. Nesse sentido, “a teoria da secularização, o discurso do secular e o secularismo, entendidos como ideologia, passaram a ser questionados quanto ao seu viés universalista e teleológico. As críticas reconheceram que o processo de secularização e o conceito de diferenciação das esferas sociais têm desenvolvimentos diferentes, conforme aspectos específicos de cada sociedade, sua cultura e relacionamento entre Estado e religião. Para compreender esses diferentes desenvolvimentos, caberia uma análise dos processos de secularização desencadeados em cada Estado.” (RODRIGUES, 2013, 155-156).

No entanto, a teoria da secularização vem sendo fortemente questionada por outros estudiosos da religião.50 Diante dos Novos Movimentos Religiosos (NMRs)51, do revigoramento dos fundamentalismos religiosos e da crescente inserção do religioso no espaço público, muitos pesquisadores chegam a afirmar que estamos assistindo a um retorno do sagrado, um reencantamento do mundo, um processo de dessecularização global. Outros chegaram a falar de pós-secularização.52 Uma série de publicações defendem que a secularização nunca teria acontecido ou que se estaria vivendo uma revitalização do sagrado. Dentre estas, encontramos produções da década de 1970, como o texto de Leszek Kolakowski, A Revanche de Sagrado, publicado em 197453. Aliás, revanche doi o mesmo termo utilizado anos mais tarde por Gilles Kepel para se referir ao que se convencionou chamar entre alguns estudiosos da religião, de retorno do sagrado. O título do livro de Kepel dispensa explicações: A revanche de Deus: cristãos, judeus e

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Dentre outros podemos citar Bryan Wilson, Rodney Stark, David Martin e Karel Dobbelaere. Como exemplos destas manifestações e formações eclesiais, paraeclesiais e não-eclesiais que vem surgindo e proliferando a partir da década de 1970, nas sociedades mais modernas do ocidente, Pierucci cita a recuperação da imagem do papado, o impacto televisivo dos televangélicos de forte viés fundamentalista ou tradicionalista e o próprio fundamentalismo islâmico com suas repúblicas teocráticas. 52 Para Pierucci, o termo pós-secularização apareceu pela primeira vez na Itália em 1990 no livro de Luigi Berzano, Differenziazzone e religione negli anni 80, quando este autor identifica na pós-modernidade, entendida como crise globalizada da modernidade, o momento ideal para a reformulação das teorias sociológicas da religião, uma vez que elas seriam majoritariamente tributárias do doutrinarismo da teoria weberiana da secularização. Para uma sociedade dita pós-secular, muitos autores, como Berzano, pretendem uma sociologia da religião pós-weberiana. 53 O texto foi publicado em francês, com o título La revanche du sacré dans la culture profane, na Le besoin religieux (Recontres Internationales de Genève), Neuchâtel, La Baconnière, em 1974, e foi traduzido e publicado na revista Religião e Sociedade em 1997. 51

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muçulmanos na conquista do mundo (1991) que reivindica de forma bastante triunfalista a vitória do sagrado sobre o profano. Pierucci critica mordazmente alguns destes pesquisadores, a maior parte no campo da sociologia, que aplaudem o fim do processo de secularização, como uma reviravolta anti-iluminista, como quer Hervieu-Léger (1997). Pierucci procura mostrar que não há sentido algum em falar de reencantamento do mundo se a religião jamais voltou, e nada indica que voltará, a ocupar a posição de “matriz cultural totalizante”.

“O sagrado revigorado tem sido apresentado como um fenômeno que só surpreenderia aqueles que por ideologia embarcaram nos prognósticos equivocados, agora frustrados, dos racionalistas, iluministas, positivistas e materialistas de todos as matizes, que não só prediziam como pretendiam o fim histórico do sagrado (inclusive os pais fundadores da sociologia).” (PIERUCCI, 1997, 101).

A emergência dos NMRs levou vários sociólogos da religião a verem inconsistência ou superficialidade na teoria da secularização, como se o ser humano moderno fosse “não-secular”. Para eles, a secularização é que está em crise, não a religião, o sagrado está sempre vigente, é necessário rever o chamado processo irreversível da secularização. Pierucci (1997, 110) vê nesta posição a incongruência de quem festeja o “retorno do sagrado” e ao mesmo tempo dá de barato que ele nunca se foi. Os NMRs situam-se neste contexto, simultaneamente ao declínio dos movimentos tradicionais, mas com a necessidade do sagrado como invariante da condição humana e se expressando de formas variáveis. Por isso, alguns sociólogos da religião atribuem à secularização um processo auto-limitador. Mas para Pierucci, este é um tipo de argumento traiçoeiro, pois acaba também funcionando como um argumento a favor da secularização, já que esta ocorre, sim, só que num processo irregular e não linear, descontínuo e cíclico, não apenas individualmente, na consciência dos sujeitos, mas também coletivamente, em toda a sociedade. “A secularização consistiria assim em momentos em que os limites do campo religioso (arbitrárias, pois que são cambiantes) alternadamente se contraem e se expandem. Se entre a dedicação à esfera pública e a imersão total na vida privada, entre o ativismo político e o mergulho no privado, entre o cidadão arregimentado e o consumidor egocentrado 95


[...], o mesmo se pode dizer do envolvimento com a religião.” (PIERUCCI, 1997, 111).

O processo de secularização é, pois, bem mais oscilante quando se toma períodos de longa duração. No curto prazo, a secularização se processa de modo irregular, o que, entretanto, não o impede de realizar-se de modo linear e irreversível durante um longo curso histórico. Observamos na era da globalização, até com maior frequência do que antes, processos locais mistos de secularização e de mobilização religiosa. Uma não impede a outra; pelo contrário, combinam-se, alimentam-se e se fortalecem. Marramao (1997) afirma que esta reciprocidade de efeitos nos traz um conceito específico da ‘secularização como problema teológico’, discussão já feita antes por Paul Tillich, Karl Barth, Friedrich Gorgaten e vários outros. A relação entre secularização e fé mostra-se aqui de tal modo íntima que não pode haver fé sem a secularização do crente para com o mundo. Em outros termos: “longe de representar um obstáculo ou impedimento à fé, a secularização, na verdade, representa sua premissa necessária, o seu imprescindível pressuposto” (MARRAMAO, 1997, 70), como já também apontou Boaventura de Sousa Santos (2014). Santos (2014) chama a atenção ainda para a emergência das teologias políticas nas décadas de 1970 e 1980, tanto as conservadoras quanto as progressistas, em relação ao processo de secularização já em curso. Para ele, as teologias políticas partem da separação entre a esfera pública e a esfera privada pra reclamar a presença maior ou menor da religião na esfera pública. Elas postulam que a dignidade humana consiste em cumprir a vontade de Deus, um mandato que não pode se circunscrever somente à esfera privada. A exigência da religião como elemento constitutivo da vida pública é um elemento que tem ganhado relevância nas últimas décadas em todo o mundo. De uma forma mais ou menos radical, todas as teologias políticas têm questionado a distinção moderna entre o público e o privado e reivindicam a intervenção da religião na esfera pública. Percebe-se ainda que a secularização é uma realidade histórica paradoxal. Pierucci afirma que a melhor teorização sobre a secularização é a de Bryan

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Wilson que vê a secularização da sociedade como uma explicação da emergência atual de expressões não tradicionais: “Assim é a secularização que causa e, portanto, explica a fermentação religiosa a que se assiste recentemente e, por conseguinte, o chamado retorno do sagrado nas mais diferentes formas. O processo de secularização como declínio sem a volta do significado sociocultural das instituições religiosas tradicionais ou convencionais é uma realidade histórica, está longe de ser um mito. O crescimento dos NMRs significa a perda estrutural de posição da religião cristã hegemônica antes que sinal de reversão ou desmentido desse processo de declínio.” (PIERUCCI, 1997, 112).

Crescem os NMRs e também o impacto da secularização, na medida em que esta implica declínio geral do compromisso religioso. A secularização relativiza esses compromissos abrindo a possibilidade de que sejam passageiros. Sendo a sociedade moderna caracterizada pela vigência generalizada de padrões burocráticos e impessoais de controle social, fica praticamente impossível algo semelhante a um Grande Despertar ou a um Avivamento capaz de transformar a sociedade e a cultura. Os NMRs já encontram a religião reduzida a um item de consumo, como uma oferta de serviços espirituais, e só fazem aprofundar este processo. Eles não têm consequências reais para outras instituições, para a estrutura do poder político, para as leis e para os controles tecnológicos. A escolha desses serviços religiosos é livre e não é direcionada mais por nenhuma instituição religiosa. E estas escolhas não têm consequência relevante para as instituições sociais dominantes, para a dinâmica do poder político, para os processos tecno-econômicos, para a administração pública e a condução dos negócios (PIERUCCI, 1997). Weber é claro quando diz que o nosso mundo é marcado pelo desencantamento, ou seja, os valores últimos e mais sublimes se retiraram da vida pública e se refugiaram ou no reino transcendente da vida mística ou na fraternidade das relações humanas diretas e pessoais. A racionalização secularizante causa ou explica a vitalidade do sagrado na esfera privada. Definitivamente, secularização não significa o fim da religião. “[...] Weber jamais previu o fim das religiões, como alguns apressados de seus intérpretes foram logo afirmando. Ele sempre foi 97


metateoricamente avesso a previsões fechadas com pretensão monológica no formato teleológico-hegeliano tipo filosofia da história. Para Weber, a secularização é a saída da religião da esfera pública e seu decorrente refúgio na esfera privada, talvez até com o seu revigoramento individual.” (PIERUCCI, 2000, 113).

Falar do fim das religiões supõe várias coisas. Para Vicent Delecroix (2006), a filosofia tem de se confrontar com a época contemporânea em que o fenômeno religioso tem tomado várias formas determinadas que não são as de séculos atrás. 54 O problema então se coloca na pertinência dos paradigmas para pensar no que se costuma chamar de “fim da religião”, paradigmas que possuem longa gênese histórica e pode ter se originado em contextos sócio-históricos bem diferente dos de hoje. Algumas perguntas se colocam então: a ideia de “fim da religião” não seria uma ideia obsoleta? De qual ou religiões está se falando? Não estamos esquecendo de que o conceito de religião é um conceito iminentemente ocidental? O que, de fato, desaparece? Delecroix nos alerta:

“O paradigma contemporâneo do fim da religião nos informa ao mesmo tempo a respeito do que a filosofia pode pensar ainda sobre este objeto chamado religião e, por seus instrumentos e métodos, se ela tem ainda os meios para pensá-lo ou se deve simplesmente abandoná-lo, passando a incumbência para as ciências sociais.” (DELECROIX, 2006, 37).

Pelo menos, este estado de coisas a obriga a precisar melhor seu campo de investigação ou relativizar o seu alcance, quer dizer, o alcance do conceito do “fim da religião” que parece (ou pode?) ser útil na hora de pensar a modernidade e o lugar da religião na modernidade55. Para Giumbelli, “[...] de todo modo, parecemos estar longe do horizonte que se associava ao modelo consolidado na modernidade, o horizonte do 54

Para Vicent Delecroix (2006) também no campo da filosofia, são precisamente as formas de sobrevivência ou a fenomenalidade do religioso, na era da decadência da religião, o que mais interessa. A propósito, o termo sobrevivência é inadequado para a religião, não se trata de um resíduo histórico, mas seguramente de um fenômeno novo. 55 Se muitas vezes se viu na religião a fonte de uma moralidade socialmente útil, foi para nela encontrar um apoio e um sustento para uma ordem cujos fundamentos estavam em outro lugar. Ou seja, mesmo a liberdade religiosa deriva de um ideal de conceber a sociedade sem religião. É isso que torna inerentemente ambígua a convivência entre modernidade e religião. Podemos dizer que segue esta linha alguns grupos declaradamente agnósticos e ateus que chegam a admitir o ensino religioso na escola pública, sem definir muito bem o que ele seja.

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‘fim da religião’. Se muito se pode discutir acerca do estatuto e do significado do ‘religioso’ atual, é difícil negar que a atualidade está repleta de ‘religião’” (GIUMBELLI, 2004, 48). Por outro lado, a mobilização recente dos NMRs não significa, de modo algum, o fim do processo de secularização. Antes, pelo contrário, ajuda-o, acelera-o. Para Pierucci, secularização tem de ser vista como desenraizamento dos indivíduos e é isso que significa a dessacralização da cultura: “Hoje, mobilizar religiosamente um indivíduo significa fazê-lo duvidar da sua tradição religiosa. É uma espécie de variação do cogito cartesiano, entendido como corajosa recusa da cultura circundante e herdada” (PIERUCCI, 1997, 114). Quanto maior a oferta de religiões, sua diversificação e sua concorrência pela salvação das almas, maior será o avanço da sociedade no sentido de produzir para si, não o reencantamento do mundo, mas a dessacralização da própria cultura como condição de possibilidade do trânsito religioso legítimo dos indivíduos e grupos e, por conseguinte, da apostasia religiosa como conduta socialmente aceitável e individualmente reiterável, sem culpa. Em outras palavras: liberdade religiosa implica em grau mínimo de pluralização religiosa; e pluralismo religioso não é apenas resultado, mas fator de secularização crescente. O processo peculiar de secularização na América Latina e do Brasil, em particular, não significou o incremento linear e ascendente da não-crença, mas sim, fundamentalmente, com pluralismo religioso. Para Pierucci, entender a secularização como passagem de uma situação de hegemonia de uma única religião para um cenário diversificado de pluralismo religioso plenamente aceito e definitivamente instalado: “eis o pulo-do-gato para exorcizar eficazmente o enganoso diagnóstico da crise de paradigma na sociologia da religião” (PIERUCCI, 1997, 116). Já outros autores, como Montero (2006), a partir de uma análise que privilegia a presença dos cultos africanos desde o período colonial, chegam a afirmar, em face das disputas históricas que marcaram as distinções entre o religioso e o mágico no Brasil, que a ideia weberiana de ‘secularização’ é insuficiente para explicar a construção no espaço público entre nós: “A instauração de um Estado secular produziu ao mesmo tempo um espaço civil e novas religiões. A demarcação das fronteiras religiosas 99


foi resultado de um processo histórico de diferenciação entre magia e religião, e seus limites se deslocam continuamente em função dos consensos produzidos a cada momento. O pluralismo religioso, convencionalmente compreendido como tolerância com a diversidade de cultos e como respeito à liberdade de consciência, se constitui às avessas no Brasil: não foi fundamento do Estado moderno, mas seu produto.” (MONTERO, 2006, 63).

Toda a discussão sobre a religião ou sobre o que permanece dela após a secularização, notadamente a religião cristã no ocidente, nos leva a esclarecer, neste momento, a preferência de boa parte das análises científicas, principalmente no campo da sociologia, pelo termo o religioso em detrimento de a religião, e que estaremos também adotando neste trabalho. O religioso passa a ser uma referência ao fenômeno religioso, passível de análise, de estudo, de pesquisa, enquanto a religião permanece como referência ao que os sujeitos religiosos consideram como transcendência e todos os seus correlatos, como o divino, o sagrado, o espiritual e que, de certa forma, estaria indisponível para a observação. Não se trata de uma demarcação simples e tranquila, ela é por demais complexa, e veremos isso em todo o decorrer deste trabalho. Utilizaremo-la mais como uma questão de método, sabendo de suas limitações. Uma obra de referência interessante para esta discussão é Le Religieux après da religion, título este que aparece na tradução portuguesa apenas como Depois da religião. Trata-se de um diálogo bastante profundo entre Marcel Gauchet e Luc Ferry sobre a nova realidade deste campo, após o duplo processo da saída da religião e da individualização do crer (termos cunhados pelo próprio Marcel Gauchet). De início, há sem dúvida uma diferença entre esses autores na definição do que seja o religioso. Para Gauchet, trata-se da heteronomia estruturante da sociedade e, por consequência, do indivíduo. Para Ferry, trata-se muito mais de uma aspiração ao absoluto, de uma busca de sentido, de uma interrogação sobre a vida e sobre a morte. Como se o sentido que Luc Ferry dá à religião correspondesse mais ao que Marcel Gauchet chama de o religioso após a religião (GAUDIN, 2014, 52). Esta necessária abordagem sociológica do processo de secularização é um pré-requisito para a discussão do conceito de laicidade que faremos a seguir e, na sequência, também para uma compreensão mais profunda da importância ou não da religião como área de conhecimento nos currículos das nossas escolas públicas. Além

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disso, uma adequada noção da secularização e da laicidade, contextualizada histórica, social e culturalmente, é indispensável para se perceber que função a religião como área de conhecimento poderá exercer nos projetos político-pedagógicos das escolas públicas.

2.2. A construção histórico-ideológica do conceito de laicidade

Vem de longe a discussão sobre a necessidade de um Estado laico, de uma escola pública laica, sem que se saiba exatamente que significado tem a expressão laicidade. A grosso modo, por este termo entende-se o princípio da autonomia das atividades humanas, ou seja, a exigência de que tais atividades se desenvolvam segundo regras próprias, que não lhes sejam impostas de fora, com fins ou interesses diferentes dos que as inspiram. Como ainda veremos, a laicidade é um processo social estreita e estritamente relacionado à esfera política e se refere, em uma concepção mais específica, à formação de um Estado sem vínculo com nenhum grupo religioso e de um espaço público neutro em matéria religiosa. “Secularização e laicização são processos heterogênicos, multifacetados, dinâmicos, agonísticos, que não podem ser tomados então como algo dado e que ocorrem de modo linear e irreversível” (RANQUETAT JÚNIOR, 2008, 63). Definitivamente, não podem ser entendidos como sinônimos.

A expressão laicidade vem do termo laico, leigo. Etimologicamente, laico se origina do grego antigo laós, que significa povo ou gente do povo. De laós deriva a palavra grega laikós de onde surgiu o termo latino laicus. Demos também significa povo, mas é um termo mais restrito, para a parte da população livre das poleis gregas que possuía direitos políticos (os cidadãos). Já laós é o povo no sentido lato, abrangente, sem exceção. Os termos atuais laico e leigo exprimem uma oposição ao religioso, à instituição sagrada, àquilo que é clerical. Blancarte (2006) registra que o termo latino laicus não passou diretamente para as línguas anglo-saxônicas. Mas a questão conceitual aqui não se resume a uma dificuldade linguística, há uma questão cultural envolvida no termo Estado laico, no contexto europeu, onde laicidade é entendida como algo que tem a ver com a França

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e não corresponde a outros países.

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O termo somente aparece na França na década de

1870, mas somente em 1887, em seu Novo Dicionário de Pedagogia e Instrução Primária, Ferdinand Buisson assinalou o surgimento do substantivo laicidade.57 Até então, o termo não existia como substantivo, mas como um adjetivo sempre ligado a outro substantivo: Estado laico, Escola laica, Moral laica, etc. Buisson apresentava, no verbete ‘laicidade’, a justificativa para essa criação: “Esta palavra é nova e, mesmo que formada corretamente, não é ainda de uso geral. No entanto, o neologismo é necessário, não havendo nenhum outro termo que permita exprimir sem perífrase a mesma ideia na sua amplitude” (BUISSON, 1911). Para Velasco (2006), já a evolução semântica do conceito de laicidade carrega em si a sua complexa historicidade, de acordo com a polissemia existente nas sociedades modernas e seculares. É a confusão que se costuma fazer entre conceito e fenômeno de laicidade. Será necessário então observar, fora da França, casos em que poderíamos perceber a ideia de laicidade. Os EUA, por exemplo, são um país laico, mas não se fala assim. E laicity, em inglês, é um termo criado artificialmente. É preciso, então, explicá-lo. Concluímos, assim, que o termo ‘laicidade’ possui uma grande imprecisão e ressonância em vários países do mundo. A origem de sua utilização recente, sem dúvida, é francesa – “laicité” – mas, como já foi dito, não encontra um correspondente nos países de língua inglesa. Trata-se de um termo intraduzível e incongruente, principalmente nas relações internacionais, confundida muitas vezes com combate à religião numa sociedade que se deseja democrática e pluralista. Para Blancarte (2006) é necessário distinguir entre o conceito laicidade e o fenômeno laicidade. Conceitos como este, utilizados na vida cotidiana, se referem a

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Catroga (2013) nos esclarece que hoje, quando se quer traduzir, para o inglês, expressões como laicisme e laicization é comum recorrer-se a derivados de “século”, e não de “laico”, prova de que a terminologia esgrimida na guerra religiosa à francesa acabou por não ter sucesso nos países de cultura anglo-saxônica. 57 Na verdade, o substantivo “laicidade” é um neologismo que apareceu em 1871, em um artigo sobre educação no jornal La Patrie, antes de ser tomado por Buisson em seu Dicionário. O adjetivo “laico” foi, no entanto, comumente usado durante o Segundo Império, sendo popularizado por Edgar Quinet e Jean Mace, fundador da Liga de Educação em 1866 (PORTIER, Seminaire national “Enseigner les faits religieux dans ume école laique”, Paris, 21 et 22 juillet 2011).

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experiências históricas construídas e podem ser estranhos a outras sociedades e a outras experiências e conjunturas. 58 Historicamente, como já vimos, o primeiro a reivindicar a laicidade a favor da própria Igreja, foi o papa Gelásio I (492-496), com a bula Summa Decretorum.59 . Muitos séculos depois, esta posição foi defendida por outros, com o sinal invertido, como Giovanni de Parigi, Dante Aligheri e Marsilio de Pádua. Estes empreenderam a batalha oposta em defesa da autonomia do poder político frente a supremacia do poder eclesiástico. Guilherme de Ocham (1285-1347), frei e teólogo franciscano, ao final da Idade Média, reivindicava a autonomia da filosofia diante da teologia. Ele dizia: “As asserções, principalmente filosóficas, que não concernem à teologia, não devem ser condenadas ou proibidas, pois nelas qualquer um deve ser livre para dizer o que lhe apraz” (Dialogus inter magistrum et discipulum de imperatorum et pontificium potestate, II, 22). Alguns situam em Guilherme de Ocham as bases da filosofia política que impulsionou o espírito laico ao considerar a necessidade de separar as relações entre o papado e o império: “No contexto do fenômeno das cidades europeias, desempenhou um papel importante na história das ideias políticas ao final da Idade Média e na época Moderna. Ele marcou, com seus escritos e com sua vida, as primeiras incursões na separação entre o espaço da autonomia do poder terreno frente o poder espiritual sem negar a fé cristã nem a Igreja.” (ABAIGAR, 2001, 15-16).

Marsílio de Pádua (1275-1343) foi além de Guilherme de Ocham. Com sua tese sobre a necessidade não somente de uma autonomia completa do Estado, mas também do predomínio deste sobre a Igreja, ele sustentava a ideia do Estado como sociedade perfeita e suficiente por si mesma, até ao ponto de fazê-la depender do Direito Natural (ABAIGAR, 2001, 16).

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Em ciências sociais nunca se deve esquecer que é imprescindível a referência histórica, geográfica e cultural nas experiências históricas coletivamente construídas, assim como dos termos que dão conta delas. 59 Nesta perspectiva, existe a tendência em ver a doutrina de Gelásio uma espécie de arquétipo da separação entre o Estado e a Igreja, que se transformaria no objetivo medular da cultura política laica em seu apogeu no século XIX. Esta reconstrução genealógica é privilegiada por aqueles que redefinem o laicismo como reivindicação da autonomia recíproca das diversas esferas da atividade humana (Abbagnano, 1998) e excluem por isso de suas características a distinção e a contraposição com a religião.

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Galileu (1564-1642), mais tarde, afirmou que a ciência, a natureza e a sagrada escritura vêm da mesma fonte. Para ele, a ciência muda, nossas concepções mudam, a natureza não muda. Galileu pedia, com este argumento, proteção à pesquisa científica quando esta investiga a natureza, mesmo se fosse contrária às Escrituras. Para ele, não se deve suprimir o estudo da natureza, pois esta é inexorável, nem sempre ela contraria as Escrituras, até porque sempre houve interpretações diferentes das Escrituras, já que existem teologias diferentes. Galileu reivindicava autonomia da ciência nos mesmos termos que Ocham reivindicava autonomia da filosofia. No entanto, as teses-chaves da laicidade na modernidade, como já foi colocado na nota 32, podem ser encontradas na Ilustração inglesa e de forma expressa na Carta sobre a Tolerância (1689) de John Locke: “Ninguém, nem um indivíduo, nem igrejas, nem mesmo comunidades têm algum título apropriado para invadir os direitos civis e os bens terrenos dos outros, sob a desculpa da religião” (LOCKE, 2011, 44). Nesta obra, Locke proclama a necessidade da neutralidade religiosa do Estado como condição e garantia da paz civil e a defesa da liberdade de crença em amplo sentido com a separação total dos poderes político e religioso.

Locke defende a autonomia da sociedade frente à religião, e a liberdade de religião frente ao Estado. O Estado de Direito se define como instituição política soberana. Sua legitimidade descansa na participação democrática dos seus cidadãos. O poder emana do povo e não de divindades metafísicas. Para a época, em que pessoas ainda podiam ser queimadas por causa da crença religiosa, tais ideias eram revolucionárias. Locke considerava que as guerras, torturas e execuções, em nome da religião, ocorriam, na verdade, por causa da intervenção indevida de crenças religiosas no mundo político, e não do cristianismo em si mesmo.

Antes de tudo, é preciso destacar que a laicidade é um fenômeno político e não um problema religioso ou apenas social. É o Estado que se afirma e pode até impor a laicidade (BRACHO, 2005). Baubérot esclarece que a iniciativa de se impor a laicidade em dada sociedade pode ter como ponto de partida setores da sociedade civil, mas de um modo geral o que ocorre é “uma mobilização e mediação do político para que as intenções laicizadoras se operacionalizem e se realizem empiricamente” (BAUBÉROT, 2005, 8). 104


Percebe-se que laicidade é uma noção que possui caráter negativo, restritivo. Em linhas gerais, pode ser compreendida como a exclusão ou ausência da religião da esfera pública, implicando a neutralidade do Estado em matéria religiosa. Esta neutralidade apresenta dois sentidos diferentes, o primeiro já foi destacado: exclusão da religião do Estado e da esfera pública. Pode-se falar, então, de neutralidade-exclusão. Foi neste sentido que sempre se argumentou contra a inclusão do ensino religioso nos currículos das escolas públicas. Em um segundo sentido refere-se à imparcialidade do Estado com respeito às religiões, o que resulta na necessidade do Estado em tratar com igualdade as religiões. Trata-se neste caso da neutralidade-imparcialidade (BARBIER, 2005 apud RANQUETAT, 2008, 63-64).

Baubérot (2005) sintetiza bem a questão, quando afirma que só se pode falar em laicidade quando o poder político não é mais legitimado pelo sagrado e quando não há a dominação da religião sobre o Estado e a sociedade, implicando a autonomia do Estado, dos poderes e das instituições públicas em relação às autoridades religiosas e a dissociação da lei civil das normas religiosas.

A laicidade não deve ser confundida com a liberdade religiosa, o pluralismo e a tolerância. Podemos encontrar liberdade religiosa, pluralismo e tolerância sem que haja laicidade, como é o caso da Grã-Bretanha, da Suécia e da Noruega. A Constituição imperial do Brasil já garantia também o direito à liberdade a outras religiões além do catolicismo romano. Apesar da união entre Estado e Igreja Católica, sendo esta a religião oficial do Império, já existia neste período um determinado grau de liberdade religiosa (MARIANO, 2005).

É necessário frisar que a laicização assim como a secularização são processos sociais que não podem ser generalizados e universalizados, devendo ser contextualizados histórica e socialmente. Estes fenômenos não ocorrem de forma idêntica e única nos mais diversos países. Cada país possui um conjunto de características e circunstâncias sociais e culturais que possibilitam formas variadas e peculiares de laicidade e secularização. Desta maneira podemos falar em uma laicidade francesa, de uma laicidade norte-americana, brasileira, etc. Para Mariano, “é necessário desnaturalizar tais conceitos e processos, percebendo-os como construções sociais realizadas ao acaso 105


das lutas” (MARIANO, 2006, 10). E ainda “os usos, os significados, os lugares, os papeis e as fronteiras da religião estão em constante transformação e são, efetivamente, objeto de contestatação, conflito e negociação.” São em suma, contingentes (MARIANO, 2013, 233).

Disto conclui-se que assim como os processos de secularização não se dão da mesma forma em todas as partes do mundo, os modelos de laicidade também podem variar segundo os processos históricos e políticos específicos de formação dos Estados.

A laicização não é, de forma alguma, um processo linear ou irreversível. Exemplo disto se deu na Espanha. Após um violento processo de laicização nos anos 30, com a Revolução Republicana, que levou a perda dos privilégios que a Igreja Católica possuía, ocorre a volta de uma situação de confessionalidade de Estado, de monopólio religioso, com a concordata de 1953 que define o catolicismo como a única verdadeira religião e faz retornar o ensino religioso confessional católico nas escolas públicas (BAUBÉROT, 2005).

Para reforçar o exemplo colocado acima, vejamos os casos dos EUA e da França. Enquanto no primeiro, o processo de laicização ocorreu de forma quase pacífica e rapidamente com a separação entre o Estado e as igrejas na primeira emenda de 1791, no segundo, o processo foi progressivo, tortuoso e conflitivo. “Os Estados Unidos tiveram uma situação inversa à da França do Antigo Regime. Na França, o catolicismo era a religião de Estado. Portanto, era o Estado e as pessoas que queriam se livrar da tutela da Igreja. Nos Estados Unidos, pelo contrário, as colônias foram todas fundadas por grupos religiosos dissidentes, até mesmo a Maryland católica. Então, quando elas criaram uma federação política, seu problema era o de limitar o poder do jovem Estado. Por outro lado, na França era limitar o poder da velha Igreja. Estamos, portanto, diante de duas tradições históricas diferentes.” (POULAT, 2004).

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O processo de laicização, na França, inicia-se em 1789 com a Revolução Francesa, que afirma a liberdade de consciência60 e a liberdade de cultos.61 Depois de um século de regime concordatário, firmado entre Napoleão e a Igreja Católica, em 1804, a separação se dá finalmente em 9 de dezembro de 1905, após muitas lutas, tensões e discussões. A Catolicidade francesa era um regime de exclusão, a laicidade francesa foi a saída desta catolicidade (POULAT, 2004).

Para uma compreensão maior das diferenças entre os casos americano e francês, vejamos o que diz Casanova (2011) a respeito. Ele fala em duas dinâmicas de secularização. A primeira dinâmica diz respeito ao processo que levou a vida religiosa de perfeição de dentro dos monastérios para o mundo secular, possibilitando a qualquer pessoa tornar-se “um monge asceta secular” ou um cristão no saeculum. Dessa forma, as fronteiras entre religioso e secular foram borradas e o dualismo superado pela constituição do religioso secular e do secular religioso. Esse movimento de reforma foi iniciado por grupos cristãos medievais e radicalizado pela Reforma Protestante, que tem no calvinismo anglo-saxão e, particularmente, nos EUA, a sua expressão mais paradigmática. A segunda dinâmica de secularização tomou a forma da laicização e buscou emancipar todas as esferas do controle clérigo-eclesiástico. Diferente da forma protestante, na laicização do mundo católico, tomando o caso francês como exemplar, “as fronteiras são empurradas para as margens, visando conter, privatizar e marginalizar tudo o que for religioso, enquanto o exclui de qualquer presença visível na esfera pública secular” (CASANOVA, 2011, 56-57).

Na mesma linha de argumentação, para Champion (1999), os processos de laicização e secularização, de emancipação das diversas esferas da vida social frente a religião, apresentam-se de forma diferenciada nos países católicos e nos países protestantes. Para ele, nos países católicos, a emancipação é marcada pelo conflito entre 60

A liberdade de consciência e a o direito à privacidade são, segundo Casanova (2011), os direitos fundadores e legitimadores do Estado liberal moderno. 61 Poulat (2004) chama a atenção para o fato de que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), documento fundamental da Revolução Francesa, tem no seu preâmbulo: “Na presença e sob os auspícios do Ser Supremo”. Percebe-se que no próprio nascedouro da laicidade não se negava a existência e os favores de Deus. Mas este importante documento apresenta os primeiros princípios do indício de laicidade ao declarar no seu art. X: Ninguém deve ser incomodado devido às suas opiniões, mesmo religiosas, contanto que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida em lei; e, no seu art. XI: A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais importantes do homem, todo cidadão pode falar, escrever e imprimir livremente, salvo quando tiver que responder pelo abuso dessa liberdade, nos casos previstos em lei.

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grupos clericais, religiosos, e grupos laicistas, anti-clericais. Segundo ele, a lógica que prevaleceu nos países católicos, onde havia a hegemonia da Igreja Católica, é uma lógica de laicização, “o poder político foi mobilizado para subtrair, completa ou parcialmente, as pessoas e as diferentes esferas da atividade social da influência da Igreja” (CHAMPION, 1999, 8). Desta forma, a religião foi relegada à esfera privada. Nos países protestantes, não se configurou a oposição entre dois campos irredutíveis, o religioso contra o laicista, a emancipação da religião ocorreu segundo uma lógica de secularização, de forma menos conflitiva que a lógica de laicização. A Igreja Protestante, em suas diversas ramificações, se torna subordinada ao Estado. Nestes países, a Igreja não é uma potência em concorrência com o Estado, tal como é a Igreja Católica, mas uma instituição ligada ao Estado, assumindo responsabilidades particulares (CHAMPION, 1999).

Assim, para Blancarte, a laicidade pode, então, ser assim definida: “Como um regime social de convivência, cujas instituições políticas estão legitimadas principalmente pela soberania popular e não mais por elementos religiosos. Por isso, o Estado laico surge realmente quando a origem desta soberania já não é sagrada, mas sim popular.” (BLANCARTE, 2006, 6).

Ou para Baubérot, ela pode corresponder a “um arranjo do político no qual a liberdade de consciência se encontra, em conformidade com uma vontade de igual justiça para todos, garantida por um Estado neutro em relação a diferentes concepções da vida ideal que coexistem na sociedade” (2012, 80). Esta definição está composta por quatro elementos, configurados como fins e meios: primeiro, a liberdade de consciência e a igualdade entre convicções religiosas e filosóficas; segundo, a neutralidade estatal e a autonomia do político, atingidas seja por uma separação declarada entre Estado e igrejas, seja por outras medidas mais graduais. O foco, portanto, incide sobre a liberdade de consciência e a igualdade como princípios e sobre as formas e configurações que permitem atingi-las.

Nisto consiste o domínio da laïcité, uma esfera sociopolítica livre dos símbolos religiosos e do controle clerical. Esse foi o caminho tomado pela França, países latinos, católicos, embora as expressões de laicidade sejam diversas no interior de cada um deles. Essa especificidade serve como a “metáfora básica para todas narrativas de 108


subtração da modernidade secular, que tendem a entender o secular como meramente o espaço deixado para trás quando essa realidade mundana é livre da religião” (CASANOVA, 2011, 57).

Há que se enfatizar mais uma vez que laicidade e secularização são termos que não se referem a idênticos processos históricos e sociais. Segundo Catroga (2010), observam-se em diversos países europeus, sociedades altamente secularizadas como a Inglaterra e a Dinamarca, onde as práticas, os comportamentos religiosos estão em franco declínio, mas que, entretanto não são Estados laicos. O historiador português ainda aponta para a existência de uma semi-laicidade em países como Alemanha, Bélgica e Holanda, que são Estados não confessionais, mas que apoiam e subsidiam as religiões, e uma quase laicidade em países como Portugal, Espanha e Itália. Nestes países, o Estado é laico juridicamente, mas celebrou diversos tratados concordatários que acabaram por privilegiar o grupo religioso majoritário. Estas últimas são sociedades altamente religiosas, portanto não secularizadas ou menos secularizadas, porém o Estado, do ponto de vista jurídico e constitucional, é laico.

O caso brasileiro se assemelha com o que ocorreu com os países do sul da Europa de influência católica, configurando-se uma ‘quase laicidade’ (CATROGA, 2010) ou uma ‘laicidade de reconhecimento’ (RODRIGUES, 2013), pois, ao longo da história brasileira, mesmo com a separação formal entre o poder político e a organização religiosa majoritária, sempre houve compromissos e cumplicidades entre governantes e instituições católicas (GIUMBELLI, 2002, 246).

É justamente por isso que o tratamento dado ao ensino religioso nos diferentes currículos nacionais apresenta uma variedade tão grande. Pois sua admissão ou não, ou o seu grau de admissão, seus conteúdos e seus objetivos, tudo isso decorre de todo um processo histórico e social, por vezes determinante. Como este processo é dinâmico e não linear, podemos observar grandes alterações neste debate acadêmico na atualidade, como ainda veremos. Mas, antes de avançarmos nesta direção, aprofundemos ainda os graus diferenciados de entendimento do próprio conceito de laicidade.

Laicidade e laicismo

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Kant centra sua ética no imperativo categórico em agir por pura consciência do dever, exigindo implicitamente um marco de convivência social de permissões e liberdades. É o que justamente ele reivindica em seu Tratado sobre a Paz Perpétua, escrita em 1795. Trata-se de uma moral muito exigente, “[uma moral] de auto-exigência, cuja lógica requer uma esfera pública não coercitiva, em que cada um aplica rigorosamente para si mesmo a distinção entre moralidade e legalidade e sabe escolher, dentre tudo o que é legalmente consentido, aquilo que dele exige a sua própria consciência do dever, sua boa vontade" (GÓMES LLORENTE, 2004, 11).

Esta trajetória apresenta uma laicidade que inclui o religioso.

Mas vão aparecendo, ao longo do século XIX, diferentes formas de laicidade anti-religiosa no âmbito do positivismo francês. Este é o caso de Auguste Comte (1798-1857), que cunhou a ideia de progresso da humanidade e que compreende, em sua visão, a religião como um obstáculo a ser superado por esse progresso. Aí encontramos historicamente a origem do laicismo. Ainda hoje certos grupos têm como sinal daquele progresso o desprezo pela religião. No contexto desta filosofia do Modernismo que considera o progresso científico, técnico e cultural como um desenvolvimento inexorável da humanidade, não podemos esquecer que esta foi a ideologia de uma burguesia poderosa e hegemônica, que estava deslocando rapidamente a Igreja do controle do pensamento ocidental (ABAIGAR, 2001). As ciências naturais, a partir do Renascimento, passam a ditar os parâmetros científicos como ponto de referência para as demais formas de conhecimento, se pretendentes a ser reconhecidas como tal (SANTOS, 2006). Elas passam a presidir a redução da complexidade do mundo em um processo crescente de simplificação, posto que, afastando as condições iniciais, onde residiria a tal complexidade, permite agora à razão humana apreender a realidade. “A divisão primordial é a que distingue entre condições iniciais e leis da natureza. As condições iniciais são o reino da complicação, do acidente e onde é necessário selecionar as que estabelecem as condições relevantes dos fatos a observar; as leis da natureza são o reino da simplicidade e da regularidade onde é possível observar e medir com rigor.” (SANTOS, 2006, 50).

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Dotados o homem e a mulher das condições necessárias para formular as leis da natureza, ou seja, basicamente a razão, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade. No século XVIII, com o Iluminismo, geram-se as condições para o surgimento das ciências sociais no século XIX. Estas se propõem a fazer exatamente isso: descobrir e estabelecer as leis da sociedade. O determinismo mecanicista próprio das ciências da natureza, orientado pela racionalidade totalitária do Ocidente, acabou por ser difundido e aplicado também no estudo da sociedade humana, haja vista que as ciências sociais nasceram à luz dessa concepção mecanicista, conforme expõe Santos ao afirmar que

“[...] a consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-se no positivismo oitocentista. Dado que, segundo este, só há duas formas de conhecimento científico – as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências empíricas segundo o modelo mecanicista das ciências naturais – as ciências sociais nasceram para ser empíricas.” (SANTOS, 2006, 33).

Catroga (2010) lembra que laicidade, laicismo e outros termos correlatos sempre tiveram um sentido de luta, de oposição ao eclesial e ao religioso. São expressões que se impuseram historicamente como instrumentos de tensão, resistência e luta contra a influência do clero e da Igreja Católica, e nas suas versões mais radicais, contra a própria religião. Norberto Bobbio e outros autores chegam a estabelecer uma distinção entre laicidade e laicismo. Para Bobbio, laicidade ou espírito laico “não é em si mesmo uma nova cultura, mas sim a condição de convivência de todas as possíveis culturas. A laicidade expressa melhor um método que um conceito. Por sua vez o laicismo necessita se armar e se organizar, corre o risco de se converter em uma igreja enfrentando outras igrejas.” (BOBBIO, 1999, 2).

Na mesma linha de argumentação, Rafael Cifuentes afirma que há uma legítima laicidade e um laicismo indiferente ao fator religioso: “Existe, portanto, entre Igreja e Estado, entre religião e política, uma separação lícita e necessária, ‘a laicidade’, 111


e uma separação indiferentista e insustentável: o laicismo” (CIFUENTES, 1989, 157). Para este autor, a laicidade é uma “prerrogativa consubstancial à ordem autonômica do Estado e o laicismo supõe a ruptura arbitrária e artificial do elo essencial que une toda a atividade com a ordem teonômica” (CIFUENTES, 1989, 158).

Alguns cientistas sociais franceses (BRÉCHON, 1995; PEISER, 1995; WILLAIME, 2003), também estabelecem uma diferença entre uma “laicidade de combate”, agressiva, que busca lutar contra a influência da religião e do clero, a qual podemos identificar como laicismo, e uma laicidade de coabitação, de tolerância e flexível que permite um maior espaço para o religioso na esfera pública. Na “laicidade de combate” a religião é totalmente excluída do universo escolar, por exemplo. Em relação a esta laicidade de combate, afirma Pierre Bréchon: “[...] exterminar a religião, fazer desaparecer da vida social e erradicála das consciências individuais. Daí a importância da laicização da escola. Esta laicidade de combate substitui a religião divina por uma religião secular, com os seus grupos de pensamento e seus rituais. Certas crenças são enaltecidas: a razão, o progresso, o bem da humanidade, a livre discussão [...].” (BRÉCHON, 1995, 5).

Destacamos ainda a definição de Pierre Bréchon, sobre o laicismo, relacionada à educação, fazendo remissão ao caso francês: “Trata-se de uma ideologia, portadora de mobilização, caracterizada pela defesa dos valores da República e de uma luta contra todos os obscurantismos religiosos, notadamente no sistema escolar. Esta versão militante de laicidade, forjada nos combates políticos da metade do século XIX até a metade do século XX, não é a única.” (BRÉCHON, 1995, 1).

O liberalismo clássico desvinculou o poder político de qualquer confissão religiosa, defendendo uma liberdade absoluta para todas as religiões, inclusive para as ideias anti-religiosas e o tratamento igualitário para todos os credos e grupos religiosos, inclusive a liberdade absoluta para toda espécie de propaganda, tanto religiosa, quanto anti-religiosa.

Para Burity (2001), o pensamento liberal se articulava em torno de três eixos em relação à religião: a) a premissa de que as convicções e práticas religiosas se 112


referem à esfera privada; b) a neutralidade do Estado em matéria religiosa; c) separação entre Igreja e Estado. Para este liberalismo clássico, a religião ocupa uma função subordinada, sendo a esfera política autônoma e independente em relação àquela. As outras esferas da vida social, como a educação, também devem ser autônomas e livres da influência religiosa, devem estar a serviço dos valores cívicos e seculares e não devem fazer qualquer referência ao religioso. A religião é concebida como algo reservado ao foro íntimo de cada indivíduo.

Mas esta neutralidade do Estado proposta pelo ideário liberal jamais se concretizou na maior parte das sociedades ocidentais. O projeto laicizador tornou-se, em muitos países, uma fé laica, “as necessidades de reprodução do contrato social e de justificação do papel histórico da Nação também sacralizarão o profano, pondo em prática uma certa fé laica [...]” (CATROGA, 2010, 143). As religiões civis (baseadas em uma fé laica) plasmam-se em práticas simbólicas que visam na expressão de Rousseau, santificar o contrato social. De fato, a virtude da laicidade está no pluralismo, ela destrói esta ideia que a identifica com o monopolismo. No âmbito do disfarce da laicidade emergiu muitas vezes uma nova doutrina dogmática, alegando apenas ser a ciência que detém as leis da história e da sociedade, e isto é na verdade um novo monopólio (MORIN, 1985). É impossível a laicidade se expressar como uma simples neutralidade, pois ela se revela também como uma visão de mundo, um conjunto de crenças. Segundo Catroga, o projeto laicizador tem na escola e no ensino um dos seus vetores principais: “[...] o processo laicizador afirmar-se á, prioritariamente, no terreno da educação e do ensino, sinal inequívoco de que se ele visava separar as Igrejas da Escola e do Estado, também o fazia para socializar e interiorizar ideias, valores e expectativas. Daí que as suas facetas jurídico-políticas apareçam sobredeterminadas, em última análise, por finalidades de cariz mundividencial.” (CATROGA, 2010, 275).

A encíclica Quanta Cura (1864), do papa Pio IX, e seu famoso Syllabus dos “80 erros do nosso tempo” condenam o racionalismo, o liberalismo e especificamente o laicismo. Acompanhando o processo de romanização da Igreja, o Catolicismo se radicalizou e reforçou suas posturas tradicionalistas:

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“Durante toda a história posterior, a Igreja discutirá o pensamento laico, ora maçom, ora liberal, ora positivista, sobre a manutenção pública da fé como símbolo de poder. A existência de uma palavra, de um gesto, de uma imagem posta em lugar visível (como a figura do crucificado nos tribunais) representava para ela a certeza de que ainda não tinha sido reduzida à particularidade, exigida pelo discurso leigo e racionalista.” (ROMANO, 1979, 89).

Em nenhum momento a Igreja Católica aceitará de bom grado a concepção liberal e republicana que a torna uma mera associação entre outras, como fizeram os franceses, um grupo social como qualquer outro despido de todos os privilégios. Na verdade, foi preciso esperar por Leão XIII, no final do século XIX, mas principalmente pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) para que Roma reconhecesse que a laicidade não atentava contra o preceito evangélico que convida à não confusão ente o Reino de Deus e o Reino de César (CATROGA, 2013).

Se a construção história e ideológica do conceito de laicidade foi tão complexa, o conceito de laicismo, então, nos remete igualmente a dificuldades com certeza ainda maiores. Como se trata de uma questão política de porte, os posicionamentos aqui são ainda mais díspares. Discordando dos autores que citamos, os quais estabelecem campos diferentes para os dois conceitos, há muitos outros autores que veem neste procedimento uma certa confusão nada ingênua: “Na realidade, com a distinção entre laicidade e laicismo, o que se pretende é deslindar o grau de laicização das instituições que a Igreja Católica está disposta a aceitar hoje, e estigmatizar os laicistas ou partidários do laicismo, ancorados em elementos preconceituosos e ultrapassados em relação à religião no século XIX.” (GÓMEZ LLORENTE, 2004, 2).

De qualquer forma, a distinção entre estes dois conceitos continua até hoje bastante polêmica. Vários autores chegam a afirmar que esta distinção é de interesse das igrejas, principalmente da Igreja Católica onde ela continua hegemônica, com o objetivo de defender privilégios e preservar sua presença no âmbito público sob a proteção de um conceito de laicidade que aceite esses privilégios e essa presença. De acordo com Bovero: “A mesma separação entre Igreja e Estado é interpretada de modo redutivo, como a independência da esfera religiosa no que respeita à prática dos cultos, mas não como autonomia da esfera civil e política 114


no desenvolvimento de padrões de comportamento individual e coletivo, sobre a qual a Igreja também reivindica o direito do magistério moral com a finalidade até mesmo de influenciar o ordenamento jurídico.” (BOVERO, 2013, 14).

Outros autores ainda veem no conceito de laicismo um sentido positivo, um passo além da laicidade do Estado, sem querer propor apenas uma solução para a difícil questão das relações entre Religião e Estado. Segundo Gasda (2015), laicismo seria uma forma determinada de entender o estado verdadeiramente democrático regido pelo único critério das liberdades civis e políticas. O laicismo fundamenta-se na igualdade universal entre todos os seres humanos. Com este entendimento, todos os cidadãos são definidos exclusivamente por sua participação na formação e na expressão da vontade geral da nação, cujas características não políticas (religiosas, étnicas, sexuais, hereditárias, etc.) não são levadas em consideração pelo Estado. Desse modo, “o laicismo está unido a uma visão mais republicana de governo. Nessa perspectiva, não existem grupos de interesse religiosos que precisam ser mais escutados que outros, mas uma nação de cidadãos iguais em direitos e obrigações fundamentais, mais universais que sua religião.” (GASDA, 2015, 42).

Enfim, para certos autores como Gasda (2015), a laicidade seria uma predisposição para o laicismo, ou melhor, a condição para a convivência de todas as pessoas em sua natureza primordial de pessoas. Trata-se mais de um processo, um método para se alcançar um grande objetivo da humanidade: fraternidade em torno do gênero humano, nada mais.

Laicidade e seu paradigma francês

No início da Idade Moderna, na Europa, foi a secularização das pertenças religiosas e uma relativização das consequências derivadas de suas formulações dogmáticas que permitiram, em nome da Nação, conviver pessoas de crenças diferentes e assumir progressivamente o pluralismo social que, depois, se converteu no núcleo duro da sociedade moderna (VELASCO, 2006). No caso da França, durante as guerras de religião (séculos XVI e XVII), a priorização de pertença nacional levou, com o Edito de 115


Nantes de 1598, a uma instável convivência e tolerância62. Depois, a unificação nacional, realizada pela monarquia absolutista, empreendeu um projeto de inclusão excludente e sacralizado, com a revogação daquele edito por Luís XIV. Só depois da Revolução de 1789, quando o nacionalismo cívico evoca a cidadania igualitária acima de pertenças particularistas e inclusive religiosas, é que foi possível a emergência de uma cidadania laica. Assim, para Demétrio Velasco, laicidade não tem relação apenas com a religião institucionalizada, mas também com a questão do nacionalismo. Para ele, vêm justamente do nacionalismo as ameaças mais sérias à laicidade: “Por isso, quando o nacionalismo se afirma de forma historicamente regressiva e mostra a sua dimensão etnicista e excludente, quando destrona a religião dogmática e intolerante e se autoconsagra como o deus da modernidade que impõe sua verdade e a salvação da sociedade, então se converte na maior ameaça à laicidade.” (VELASCO, 2006, 14).

Na Idade Moderna, a França foi, de fato, um lugar inóspito para o progresso do espírito laico, devido ao absolutismo real, ao galicanismo63, à intransigência católica por parte dos jansenistas64. O movimento iluminista chegou mais tarde à França em comparação com a Inglaterra, fator que pode explicar a radicalização da Revolução Francesa, que, a princípio não era antimonárquica, nem anticatólica, mas tomou um rumo cada vez mais laicista e descristianizador (VELASCO, 2006). O poder revolucionário se legitimava somente pela vontade soberana dos cidadãos e por sua proclamação de direitos e liberdade, e não pela referência a valores religiosos e, menos ainda, pelas autoridades sagradas segundo o direito divino.

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A tolerância e a liberdade de consciência, pilares de um nascente espírito laico, aparecem no Edito de Nantes, em 1598, pela primeira vez, de forma provisória e imperfeita. 63 Galicanismo foi uma doutrina religiosa e política que sustentou a organização de uma Igreja Católica da França autônoma em relação ao papa. Mesmo reconhecendo o papa com uma primazia de honra e de jurisdição, ele contestava sua onipotência, em benefício dos concílios gerais da Igreja e dos soberanos dos seus Estados. 64 Os jansenistas eram adeptos de uma doutrina religiosa inspirada nas ideias do bispo de Ypres, Cornelius Jansen. Como movimento teve caráter dogmático, moral e disciplinar, que assumiu também contornos políticos, que se desenvolveu principalmente na França e na Bélgica, nos séculos XVII e XVIII, no seio da Igreja Católica e cujas teorias acabaram por ser consideradas heréticas pela mesma, em 16 de Outubro 1656, através da bula Ad sacram subscrita pelo Papa Alexandre VII. Defende uma interpretação das teorias de Santo Agostinho sobre a predestinação contra as teses tomistas do racionalismo aristotélico e do livre arbítrio.

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Mas a história posterior foi bastante cíclica. A concordata bonapartista de 1804, com a reação do ultramontanismo católico65, e a condução da Revolução por forças conservadoras colocaram em difícil situação, em verdadeiro fogo cruzado, quem defendia um Estado laico mais coerente: galicanismo – contra a autonomia da Igreja x clericalismo – uso dos serviços públicos, como a educação, para fins religiosos. O destino da laicidade francesa, a partir de agora, foi determinado por uma complexa correlação de forças entre quem buscava socializar o conjunto da população francesa no marco juridicamente reconhecido de um catolicismo majoritário na sociedade e quem buscava impor o ideal, formalmente aceito por todos do constitucionalismo revolucionário, em nome do pluralismo e das liberdades fundamentais. Estas duas Franças66 pareceram inconciliáveis até o século passado, conhecendo o equilíbrio de forma instável algumas vezes. Para muitos, uma forma paradigmática de se entender a laicidade a partir da França passou por um tríplice processo: a) a distinção de domínios que assegura a liberdade e a soberania respectivas do Estado, das Igrejas e dos cidadãos, cada um em seu espaço, o que se traduz, quanto ao Estado pela sua incompetência em matéria religiosa e quanto à Igreja, sua incompetência em matéria política, de acordo com o “dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus, o que é de Deus”; b) a subtração da influência da Igreja sobre o Estado e o indivíduo, com o desmantelamento do regime de cristandade e impedindo que a Igreja influa na vida e costumes da sociedade; e, finalmente, c) a exclusão por substituição, ao tratar de generalizar um combate contra a religião que passa a ser considerada superstição, em nome de uma nova e verdadeira fé laica ou religião civil, racionalista e emancipada de toda tutela autoritária. Com a III República (1870), inicia-se na França o segundo limiar da laicidade, com a imposição de uma escola e de uma moral laicas. Condorcet (1743-1794) foi o primeiro a explicitar uma concepção laica da educação ao afirmar que era rigorosamente necessário separar da moral da sociedade os princípios de todas as religiões 65

Ultramontanismo, do latim ultramontanus, que significa "além das montanhas", especificamente para além dos Alpes por parte de quem está na França ou na Alemanha, refere-se à doutrina política católica que busca em Roma a sua principal referência. Este movimento surgiu na França na primeira metade do século XIX. Ele reforça e defende o poder e as prerrogativas do papa em matéria de disciplinae fé. Destacaramse como líderes deste pensamento Joseph de Maistre, Louis Veuillot, Lamennais e Emmanuel d'Alzon, dentre outros. Este movimento católico pretendia fazer frente ao Galicanismo. 66 A Guerra das Duas Franças é uma expressão cunhada por Émile Poulat na sua obra Liberté, laicité: la guerre des deux France et le príncipe de la modernité, Paris: Ed. Du Cerf, 1988.

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particulares e de não admitir na instrução pública o ensino de nenhum culto religioso. Mas será Jules Ferry (1832-1896), considerado o principal fundador da escola laica francesa, que a partir de 1879 envidará todos os esforços para arrancar as crianças e a juventude da influência da Igreja. Como Ministro da Instrução Pública e de Belas Artes, ele nomeou protestantes liberais, como Ferdinand Buisson, Félix Pécaut, Jules Steig, dentre outros, para colocar essa escola laica em funcionamento. Ferry vai propor uma moral laica, ou independente das Igrejas, possibilidade por ele considerada viável e extremamente necessária. Jules Ferry instituiu a educação pública gratuita e obrigatória, bem como o ensino religioso como sendo restrito à esfera privada, devendo ocorrer em dias de folga da escola. As políticas de Ferry em favor de uma escola laica sofreram severas represálias por parte da Igreja Católica, predominante no controle das instituições de ensino. Ele foi acusado de ser antirreligioso, a que se contrapunha dizendo: “Não sou contra a religião, mas contra os clérigos que procuram dominar o ensino” (WEREBE, 2004, 192).

A partir de 1880, o Estado laico francês radicaliza suas posições: os crucifixos são retirados das salas de aula, os programas de ensino passam a ter caráter laico e todos os professores tornam-se leigos. Contudo, essas medidas não foram suficientes para suprimir o ensino privado e confessional neste país (ORO, 2007, 84-85), sobretudo porque, como afirma Jean-Paul Willaime, “o Estado é laico, a sociedade não. A sociedade permanece mais ou menos secularizada, mais ou menos impregnada por uma cultura religiosa majoritária e por culturas religiosas minoritárias que marcaram sua história e sua relação com o mundo” (WILLAIME, 2011b, 317). A Lei de 7 de julho de 1904, pouco antes da separação oficial entre Igreja e Estado, proíbe o ensino das congregações religiosas, determinando que estas não podem mais possuir escolas no país, como também suprime – no prazo máximo de 10 anos – todas aquelas [congregações] que têm como única atividade o ensino. A determinação para o fechamento das escolas virá, no entanto, já em fevereiro de 1905, fixando o final do ano letivo como período de supressão. No início do ano letivo, 1º de setembro, estas escolas já deveriam estar fechadas. Esta foi a trajetória tensa e conflituosa da laicização do ensino público na França.

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A separação entre Igreja e Estado, com a ruptura unilateral do Estado francês com a Concordata de 1804 e o rompimento de relações com o papado será um ponto sem retorno. Passou-se da anterior distinção de domínio para a subtração e substituição. Eram duas visões incompatíveis em vários campos, que ficou conhecida popularmente como as duas Franças, mas é bom lembrar que nunca esteve em questão a crença em Deus nem o direito à existência das Igrejas. Blancarte nos alerta que a noção de laicidade aparece na França em 1870, mas ela já existe muito antes disso em outras sociedades. O México é um exemplo. É preciso assim isolar o caso francês como método para a sua compreensão. Para ele, “Não é preciso identificar laicidade com a separação Igreja-Estado nem com a República. Os franceses assim o fizeram, por uma questão de sua própria experiência histórica, e esta sua experiência virou um paradigma. A partir daí os franceses construíram o conceito de laicidade. A laicidade se estabelece ali com a separação e é criada pela República. Fala-se de Laicidade e República, não de Laicidade e Democracia, nem de Laicidade e Direitos Humanos.” (BLANCARTE, 2006, 33).

Mas, pelo menos, é bom enfatizar, como já foi aqui demonstrado, que uma laicidade no ensino público já existia na França durante a III República, portanto, antes da separação Igreja-Estado em 1905. Pode-se, então, constatar que não se requer um regime de separação para que haja elementos de laicidade. Blancarte, então, propôs aquela definição inicial de que já falamos: “a laicidade é um regime social de convivência, cujas instituições políticas estão legitimadas principalmente pela soberania popular e não por elementos religiosos” (BLANCARTE, 2006, 33). Em suma, a laicidade francesa tenta articular três princípios: 1) unidade republicana, 2) respeito ao pluralismo das tradições filosóficas e religiosas, 3) liberdade de consciência. Mas o consenso sobre eles não evita o debate, sua interpretação e alcance, como ocorre ainda hoje. 67 Mas quando passamos a falar de um Estado laico? Este Estado laico pode ter a ver ou não com separação, pode ter a ver ou não com tolerância religiosa. O

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A laicidade estadunidense, por sua vez, é expressão da secularização da vida social, entendida como emancipação e diferenciação estrutural das esferas seculares (política, economia, ciência) diante da esfera religiosa. Isso nada tem a ver com a privatização da religião e sua falta de significado para a vida pública. Não há aqui um laicismo secularista e adversário da religião, como na França.

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próprio caso francês mostra que pode haver um regime de cultos públicos reconhecidos sem haver laicidade neste momento. Então, qual é o ponto de ruptura? Voltemos a Blancarte: “quando se passa de um regime cujas instituições políticas estão legitimadas pelo sagrado a um regime cujas instituições políticas – o Estado, não apenas o governo – já não tem uma forma de legitimidade sagrada” (BLANCARTE, 2006, 35).

Finalmente, é preciso então descobrir elementos de validez universal que, além do conceito de laicidade, permitem explicar o fenômeno laicidade, inclusive para o caso do Brasil, se quisermos admitir o conhecimento científico da religião ou das religiões no currículo das escolas públicas. Para Blancarte esses elementos são “o progresso da liberdade de consciência e a autonomia em relação ao político – que significa um regime de separação necessariamente – a respeito das formas de legitimação” (BLANCARTE, 2006, 24). Isto acontece em uma sociedade plural68. A própria liberdade de crença depende da laicidade. Falemos, pois, em liberdades laicas em vez de liberdades religiosas.

Quais as vantagens desta definição de Blancarte?

São quatro

principalmente a nosso ver: 1ª) Democracia e laicidade são uma construção social e não aparecem por decreto, são processos em construção e, portanto, sempre inacabados; 2ª) Se são processos inacabados, trata-se de uma transição, pois existem muitas formas de democracia e o Estado permanece com muitos elementos de sacralidade, ou substituição de sacralidade69; 3ª) Em países que passaram pela substituição da legitimidade, se desconhece a palavra laicidade. Na Dinamarca, nunca houve separação Igreja-Estado, e as formas de legitimação política dependem cada vez menos das instituições religiosas. Nos três modelos europeus (católico, protestante, ortodoxo) temos formas distintas de construção da laicidade, pois há dependência diferente em cada um deles das instituições religiosas às formas de legitimação política; 4ª) a laicidade na América Latina aparece em graus variados e tem diferentes desafios para se construir. Diante da crise de modernidade que atravessamos, nesse continente as instituições políticas vão elas 68

Na América Latina, a laicidade surgiu não como resultado do pluralismo religioso, mas produto de uma determinação política para construir formas de legitimação diversas. Isto explica porque a laicidade se converte em luta política e anticlericalismo, mas originalmente não é bem assim, ou pode ser diferente no percurso de um determinado processo histórico. 69 Existe uma forma de sacralidade da laicidade; daí se fala que é necessário laicizar a laicidade. Por quê? O Estado laico vem carregando muitas formas de sacralidade e é necessário que se laicize sua própria sacralidade.

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mesmas minando suas bases democráticas e se recorre novamente a formas de legitimação sagrada e eclesiais, buscando uma nova forma de consolidar a sua hegemonia política.70 A intransigência do papado à separação Igreja-Estado na França em 1905 criou uma situação paradoxal com o Estado que, assim, se viu obrigado a financiar o culto devido ao vazio jurídico que se criou. Assim, a teórica separação radical, de princípio, além de incompleta, se faz inaplicável na prática e se chega a um compromisso equilibrado entre os dois atores. Nos anos 1920 houve uma reaproximação por diversos motivos, depois da grande divergência em relação ao estatuto das congregações católicas e em relação às escolas. Em 1945, o episcopado aceita finalmente a laicidade. Enfim, Baubérot resume assim os pontos essenciais da laicidade francesa: “o Estado conhece as Igrejas (cultos) sem reconhecê-las, se reconhece a igualdade jurídica do agnosticismo diante das crenças, a ajuda do Estado aos diferentes cultos é indireta (deduções de impostos e subvenções), não existe ensino público confessional da religião, pleno reconhecimento da liberdade de consciência e de culto, e para participar dos debates públicos, comitês, etc.” (BAUBÉROT, apud Costa, 2006, 20).

Na França o termo laicidade só aparece na Constituição de 27 de outubro de 1946 quando no seu artigo 1º se afirma que a França é “uma república indivisível, laica, democrática e social”. A lei da separação Igreja-Estado de 1905, não utilizava este termo. Emile Poulat (2004) chama atenção para o fato de que a Constituição de 1946 usa o adjetivo e não o substantivo. A palavra laicidade nunca aparece. Então, o adjetivo é traduzido como se fosse um substantivo, faz-se uma abstração. Na busca de uma explicação para esta definição tardia, Demétrio Velasco afirma que “[...] intransigências políticas a vincularam a uma história de clericalismo x anticlericalismo que impediu um uso não-partidarista do termo. A auto-compreensão de uma França laica somente será compartilhada quando a sociedade, em seu conjunto, aceitar a laicidade como uma fórmula inclusiva que garanta a convivência plural.” (VELASCO, 2006, 20). 70

São os casos do recente Acordo Brasil-Vaticano em 2008, a santificação popular de Hugo Chaves após a sua morte na Venezuela e a utilização de rituais sagrados por Evo Morales na Bolívia, só para ficar em alguns exemplos. “As instituições políticas que, em seu conjunto, configuram o Estado, voltam-se cada vez mais à religião como elemento de legitimação e integração social, apesar de ser evidente que esta não pode ser mais um fator de unidade nacional, nem muito menos a expressão de soberania. Curiosamente, a ameaça à laicidade não vem das igrejas, mas do próprio Estado que recorre, crescentemente nos últimos anos, às organizações religiosas, em busca de legitimidade, sem ter clareza do que está provocando”. (Blancarte, 2000, 13-14).

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E isso ocorreu em definitivo somente depois da II Guerra (1939-1945). Por isso diferentes etapas do processo de secularização têm levado a noções diferentes de laicidade na França71 e, por extensão, mesmo fora da França, inclusive no Brasil.

Mas esta forma francesa não é a única para se entender a laicidade, nem sequer reflete exatamente o que foi a laicidade na história da França. Aqui realmente os processos se confundem. A laicidade tem a ver não somente com formas jurídicas e políticas de organizar as relações entre religião e sociedade, ou entre Igrejas e Estado, mas, sobretudo, com formas de pensar e viver a liberdade e a fé, o pluralismo e a convivência. Poulat, por exemplo, afirma que o coração da nossa laicidade não está no Estado, mas sim na consciência. Para ele a laicidade é inseparável da liberdade de consciência (POULAT, 2004). Para Portier (2008) fica também muito claro que o modelo de laicidade francês representa uma exceção até mesmo em relação ao resto Europa. No que se refere aos regimes de separação Igreja/Estado, diferentemente do que ocorreu em certos países europeus em que a igreja persiste como instituição regulada pelos Estados ou em regime de cooperação com o Estado72, a separação na França ocorreu como uma separação rígida que não admite o reconhecimento do fato religioso. Conforme essa concepção de laicidade, o regime se caracteriza pela exterioridade, contrária ao confessionalismo. O Estado não tem controle sobre a religião e rejeita a diferença no tratamento das religiões. As religiões passam a ter total autonomia de funcionamento.

Assim, a laicidade para Portier (2008) compreende duas formas de regime de separação: a) separação rígida, marcada por uma atitude centralizadora e assimilacionista

do Estado, que abstrai a diferença e centraliza em si mesmo as diferenças, em nome do cidadão universal. Essa forma de laicidade é imposta de cima para baixo, uniformizando 71

É bastante sintomático o título do último livro de Jean Baubérot: Las 7 laicités françaises, publicado em 2015. 72 Alemanha, Áustria, Bélgica e Holanda adotaram um regime de separação identificado como de separação flexível em que a distinção Estado/religião não exclui um sistema de cooperação entre instituições religiosas e o Estado. O Estado se mostra “benevolente para com as instituições eclesiásticas, às quais concede às vezes, com base em um dispositivo de tipo concordatário ou ao menos em acordos contratuais – por exemplo, na Itália, na Áustria e na Alemanha –, uma dimensão propriamente pública” (PORTIER, 2011a, 15-16).

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os cidadãos (WILLAIME, 2008); b) separação flexível, que adota a atitude de intervenção do Estado num processo de desconfessionalização que se inicia com o reconhecimento do fato religioso, permite a todos os cidadãos que expressem suas crenças e convicções religiosas (pluralismo) e exige das confissões que exerçam direitos e deveres. Na Comunidade Europeia verifica-se uma tendência à desconfessionalização.

A separação rígida se refere a um modelo de vida pública vazia quando, segundo Carlos Pereda (2006), a existência de convicções religiosas e os costumes próprios de uma religião não devem ser levados em conta na hora de se resolver problemas de convivência. A vida pública deve ser regida apenas pelas leis do Estado e, nos Estados democráticos, pelas leis que organizam os direitos humanos e suas exigências. Já a separação flexível se refere a uma vida pública cheia que valoriza os pertencimentos religiosos, considerando-os importantes na formação da identidade dos indivíduos. Neste último caso, um Estado genuinamente independente e laico deve ocupar uma postura pluriconfessional na vida pública, ou seja, não deve se declarar adepto de nenhum credo, mas permitindo um convívio pacífico e harmonioso entre as diversas crenças existentes na esfera pública. “Assim, o modelo de vida pública vazia corresponde ao modelo liberal, vinculado ao pensamento kantiano e, num contexto mais moderno, a John Rawls; neste tipo de modelo, o Estado não professa nenhuma crença religiosa ou eclesiástica, devendo tais manifestações restringirem-se à esfera privada, sendo a esfera pública necessariamente neutra. Em contrapartida, o modelo de vida pública cheia, diz respeito ao modelo multiculturalista, vinculado ao pensamento hegeliano e, contemporaneamente à doutrina comunitarista; o Estado deve preservar e permitir um preenchimento da esfera pública por diferentes credos, mas sem declarar um posicionamento estatal religioso.” (RINCK, 2004, 294).

Portanto, este modelo de separação flexível a que Habermas chama também de um modelo de laicidade compartilhada, como ainda discutiremos, tem emergido progressivamente como algo que corresponde aos critérios de igualdade e publicidade dos pertencimentos, como transformação dos regimes de regulação da crença, próprio dos países que repudiaram o monoteísmo religioso para tendencialmente abriremse ao pluralismo igualitário. (PORTIER, 2011a, 18).

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A crise da laicidade republicana

Já ouvimos falar que a laicidade está em crise. Por tudo o que foi dito aqui sobre a laicidade, com certeza trata-se de uma afirmação pelo menos inadequada, mas que está presente nos meios acadêmicos e na mídia. Os grandes deslocamentos no campo religioso nos últimos trinta ou quarenta anos afetaram as relações entre política e religião no Ocidente e, por conseguinte, impactaram também o Estado laico. Nas sociedades que seguem mais de perto o paradigma francês, estes impactos são mais visíveis. Aqueles deslocamentos refletem, antes de tudo, uma crise profunda da sociedade ocidental e, porque não dizer, da sua própria civilização, e não apenas uma crise das relações dos grupos religiosos com o Estado. Na própria França a questão religiosa sempre foi uma questão séria da agenda política da sociedade. A República organizou historicamente a coexistência das diferentes confissões religiosas segundo o modelo católico tradicional. Confrontado com a desinstitucionalização e enfraquecimento das grandes religiões, com a desprivatização da religião mais recente, com o surgimento de novas crenças, com a proliferação das seitas e dos comunitarismos, o Estado perde seus interlocutores institucionais habituais. A questão do véu das estudantes muçulmanas nas escolas francesas na década de 90 acendeu a luz vermelha, recolocando a discussão sobre a laicidade novamente na ordem do dia. Os atentados de janeiro de 2015, que provocaram uma coesão social jamais vista em torno da defesa da liberdade de expressão, descredibilizando outras questões, econômicas, sociais e políticas de fundo, e mesmo os mais recentes, de novembro do mesmo ano, mostram uma face cruenta desta agenda na França. Diante disso o binômio educação/laicidade voltou com força aos programas oficiais de educação moral e cívica nas escolas públicas do país, a partir do momento que muitos estudantes se recusaram a guardar um minuto de silêncio em memória das vítimas do Charlie Hebdo. Mais uma vez, a escola pública está no centro dos debates, como sempre esteve nesse país desde o final do século XIX. Mas, afinal, que crise é esta, se assim podemos dizer? Onde estão suas raízes sociológicas?

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Na primeira década do século XXI, os debates sobre a laicização do espaço público, principalmente nas escolas e liceus, ressurgem nos meios intelectuais, educacionais e religiosos da França, sobretudo entre os anos de 2003 e 2004, com a Lei de 15 de março de 2004. Esta lei teve origem a partir de considerações e sugestões da ‘Comissão de Reflexão na Aplicação do Princípio da Laicidade na República’ (Commission de reflexion sur l’application du príncipe de laïcité dans la Republique), que ficou mais conhecida como Comissão Stasi, por ser presidida por Bernard Stasi, expressas no ‘Relatório ao Presidente da República’ (Rapport au Président de la République), enviado ao presidente Jacques Chirac em 11 de dezembro de 2003, conforme solicitação da própria presidência. No caso específico dos signos religiosos portados pelos estudantes, o mesmo relatório afirmou que o caráter visível de um sinal religioso era sentido por muitos como contrário à missão da escola, que deve ser um espaço de neutralidade e um lugar para o despertar da consciência crítica. Também seria contrário a princípios e valores que a escola deve ensinar, notadamente a igualdade entre os homens e mulheres.73 Este pode ser considerado um documento balizador para uma compreensão mais profunda da crise da laicidade republicana. Vinte personalidades renomadas fizeram parte desta comissão, dentre as quais Alain Touraine, Jean Baubérot, Régis Debray e Gilles Kepel, que promoveram, em seis meses de trabalho, muitas conferências, audiências e debates. À comissão foi solicitado um conjunto de sugestões que servissem para orientar o Poder Executivo no tratamento das relações entre o Estado e as religiões.

Analisado por Giumbelli (2004), o documento possui três pontos fundamentais: a) a constatação do pluralismo do campo religioso e espiritual; b) o reconhecimento de grande desigualdade no modo como essas diferentes expressões religiosas e espirituais estão presentes na sociedade francesa; c) a existência dos

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A lei 228, de 15 de março de 2004, que passou avigorar a partir de 01 de setembro do mesmo ano, impôs a laicidade absoluta nas escolas e liceus públicos do país, ao determinar que ficava proibido o porte ostensivo de sinais pelos alunos e alunas que mostrassem uma certa imposição de aderência religiosa sobre os demais. O espaço público, no caso as escolas públicas, não poderia estar vinculado a quaisquer símbolos religiosos oriundos daqueles que o ocupam. Ao analisar a lei francesa, a Corte Europeia de Direitos Humanos se manifestou favorável à norma em 2008, argumentando que a limitação no exercício da liberdade religiosa pode ser necessária, às vezes, para uma sociedade democrática. Entretanto, ao jugar os crucifixos nas escolas italianas, a mesma Corte se manifestou favorável a sua manutenção e exibição. Assim, conclui-se, que para Corte o traje islâmico não se compreende como identidade cultural, mas a cruz cristã sim.

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“comunitarismos”74, termo que pretende designar dinâmicas sociais que exacerbam a identidade cultural.

Para uma compreensão maior das propostas da comissão, precisamos discutir o entendimento que se teve da laicidade, tema geral do relatório. Diz o documento que a laicidade é a “pedra angular do pacto republicano e descansa em três valores indissociáveis: liberdade de consciência, igualdade de direito de opção espiritual e neutralidade do poder político” (GIUMBELLI, 2004, 51). Três princípios básicos norteiam esta laicidade, princípios estes que funcionam ao mesmo tempo para garantir e para limitar a religião: a) princípio da separação, que o relatório se recusa a reduzir à exigência da neutralidade do Estado. Se a separação assegura que as opções religiosas não envolvam o Estado e que este não se envolva com aquelas, ela requer também que o Estado cuide de possibilidades de expressão religiosa, assim como postula a renúncia, por parte das religiões, à sua dimensão política. A laicidade solicita a cada uma das religiões um esforço de adaptação e de conciliação de seus dogmas com as leis que regem toda a sociedade.

b) princípio da igualdade, que comanda um tratamento isonômico por parte do Estado, mas exige das religiões que não façam demandas particularistas. Por exemplo, no serviço público, nega-se firmemente a possibilidade de recusa de atendimento ou de subordinação por razões religiosas. c) princípio da liberdade de consciência. A laicidade afirma a ‘liberdade de consciência’, mas impõe, ao mesmo tempo, as limitações exigidas pela ‘ordem pública’ – por exemplo, as condições necessárias para o funcionamento normal de uma 74

O comunitarismo é visto no relatório como uma ameaça e duas definições resumem o ideal a ser trilhado frente o problema: a coexistência e a convivência em um território de indivíduos que não compartilham as mesmas convicções versus a justaposição de um mosaico de comunidades fechadas sobre elas mesmas e mutuamente exclusivistas. Mesmo explicitando uma realidade francesa, podemos considera-lo também como um dos fatores explicativos de ações de intolerância e discriminação entre grupos religiosos e espirituais no Brasil.

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instituição. De modo semelhante, se é a liberdade de consciência que funda o direito à livre expressão religiosa no espaço e no debate públicos, é ela também que impele o Estado a proteger o indivíduo contra toda imposição religiosa.

Para Giumbelli (2004), o diagnóstico da situação religiosa, os entendimentos da laicidade e as recomendações concretas presentes no documento produzido por uma comissão oficial do governo francês não seguem uma linha única. Oscilam entre referenciais modernos de restrição do religioso e o reconhecimento de sua incontornabilidade atual. Sugere-se, ao mesmo tempo, que a religião esteja fora, como signo

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e dentro como fato a ser estudado na escola. Estando no centro deste debate a

noção de laicidade – noção que literal e tradicionalmente implica uma oposição ao religioso, como já vimos – deve ser tomado como um poderoso sinal de que entre modernidade e religião existem relações positivas. Recusa e reconhecimento podem vir juntos! Esse relatório nos impele a aceitar a crescente afirmação do pluralismo social que, por sua vez, torna cada vez mais aguda a complexidade do real, nos obrigando a esclarecer e mesmo rever boa parte das nossas teorias, entre elas as da secularização das nossas sociedades e, portanto, os discursos sobre o significado e o alcance da laicidade republicana. Esta está historicamente vinculada a um conceito de autonomia excessivamente individualista (à identidade tudo, à alteridade nada) e a um Estado-nação excessivamente centralista e uniformizador, hoje não mais aceitável. A forma como religiões, ideologias e humanismos estão abordando as questões relacionadas com o sentido da vida humana em sociedade nos nossos dias tem posto em crise o sentido emancipatório da razão, da ciência e do progresso, que o Estado moderno, em boa medida, havia tomado a seu cargo (SANTOS, 2000), tal como foi entendido o discurso laico e republicano francês. Este é o paradoxo que enfrentamos no mundo contemporâneo: de um lado, ele pode ser caracterizado pela perda de sentido que se expressa pela ampliação das

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Em relação, por exemplo, ao uso de signos religiosos pelos estudantes nas escolas, este relatório referendou uma decisão da Assembleia Nacional que proibiu o uso daqueles signos de forma ostensiva, o que tem provocado reações e críticas principalmente de grupos islâmicos.

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crises existenciais e de orientação; de outro lado, ele aparece como um mundo em que, cada vez mais, indivíduos têm oportunidade de se libertar de opressões coletivas tradicionais (SANTOS, 1995). Este paradoxo se expressa, ou nas tentativas de um retorno às raízes, ou nas buscas de novas configurações identitárias para aqueles que procuram encontrar novos sistemas interpretativos que os orientem. Diante disso, a razão, a ciência e o progresso, sob a ótica do paradigma tradicional, têm muito pouco a dizer. O Estado, menos ainda. Toda a discussão sobre a laicidade que estamos fazendo neste capítulo é impactada tremendamente por tudo isso. “Fala-se até da morte metafísica da República, questionando o ideal laico que a tem inspirado. É uma crise explícita da laicidade. Ela não está mais ameaçada pelo catolicismo ultramontano ou pelo fundamentalismo religioso, mas pelo papel que deve cumprir a laicidade republicana em sociedades seculares e plurais, cujo principal problema é a anemia ética e o clima de indiferença que contaminam seus sistemas democráticos. Paradoxalmente, é este clima que tem provocado o retorno de fundamentalismos e dogmatismos que assumem senhas identitárias e se projetam com políticas da mesma forma.” (VELASCO, 2006, 26).

Tudo indica que o laicismo republicano atingiu o limite de suas contradições internas. Com o advento da era das identidades, vemos um processo de liquidação parcial do projeto identitário-emancipador-republicano que exigia para a realização individual desprender-se do estigma dos particularismos geradores de dependência e exploração e alcançar a maioridade somente garantida mediante a participação como cidadão na vida pública. Para adiante, importa muito mais cultivar a identidade como expressão de uma diferença e de uma forma particular de ser valiosa por si mesma e de se relacionar que não se pode compartilhar com os demais a não ser somente com aqueles com quem eu quero, porque isso é precisamente o que dá identidade. A esfera pública tende a ser mais um biombo amplificador das identidades originais e irredutíveis e perde a sua capacidade socializadora e emancipadora dos indivíduos. O sagrado social tem patente civil e privada, enquanto o Estado e a esfera pública se reduzem a um papel instrumental, importante porquanto seja imprescindível para garantir a coexistência num mundo cada vez mais plural e diverso.

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Nesta nova fase, as crenças se convertem em identidades e por isso são relativizadas até intimamente na cabeça do crente. Chega-se a um consentimento tácito de que a sua comunidade é apenas uma dentre outras e se deve banir o proselitismo já que se reconhece a legítima pluralidade de comunidades. Hoje importa a demanda subjetiva de sentido mais que a oferta objetiva de ortodoxia, daí que as Igrejas vão sendo esquecidas. A laicidade enfrenta um novo cenário: não é a oposição da Igreja que negava o ideal emancipador, também não é o Estado emancipador que tomou para si o trabalho socializador dos indivíduos no projeto da república laica. Não servem as formas nascidas das revoluções, nem o modelo francês do Estado magisterial e normativo, nem o americano que passa para a esfera pública a religião civil. Não podemos aplicar os modelos decaídos do passado para articular adequadamente as relações entre religião e sociedade: nem a cristandade, nem as duas cidades de Agostinho, nem a concordata compartilhada, nem nenhuma das outras fórmulas que tem a ver com a negação da autonomia e a liberdade do sujeito humano concreto, são, hoje, uma resposta adequadamente laica. É preciso pensar na relação entre o espiritual e o temporal a partir de uma nova lógica que não a confusão, disjunção ou conjunção entre estes poderes, pois em todos eles prevalece o primado da relação jurídico-político da relação, negando a perspectiva de busca axiológica própria do ideal laico moderno. A laicidade tem pela frente um duplo desafio que deve ser enfrentado não com polêmica, mas com diálogo: deve perseguir uma maioridade responsável para cada ser humano diante dos poderes e ideologias liberticidas e, por outro, garantir a liberdade e a igualdade num clima de verdadeiro pluralismo para que cada ser humano possa dar sentido à sua vida como melhor lhe pareça. Ninguém pode agora pretender impor o sentido de sua vida a ninguém, nem o Estado com o seu laicismo de combate (o indivíduo como o santo laico da cidadania roussoniana), nem a Igreja com sua ortodoxia salvadora (em busca da sociedade perfeita) estão legitimados para intervir nos processos de socialização dos indivíduos. “A laicidade pública não é tudo a Cesar e nada a Deus, mas tudo à consciência e a liberdade dos homens chamados a viver juntos, apesar de tudo o que os separa, os opõe e os divide” (POULAT, 2003, 16). 129


Se a laicidade é, como temos falado, por um lado, uma expressão singular dos processos de secularização das sociedades modernas que se traduzem em uma forma concreta de entender e organizar as relações entre a sociedade e a religião, ou entre o Estado e as Igrejas, e, por outro, como acabamos de ver, é um espaço de liberdade pública, aberta a todos e a cada um, quaisquer que sejam suas convicções e crenças que nos obriga a passar do paradigma dos poderes ao paradigma das liberdades públicas, o desafio principal é o sentido último da secularização de um lado, e, de outro, os limites do exercício das liberdades públicas. Muitos se interrogaram, como já vimos, se o devir da secularização não eliminaria o sagrado social, sem o que é impossível garantir uma vida humana carregada de sentido. Mas disso não nasceria novamente a intolerância? Estamos obrigados a afirmar uma cultura da liberdade que não pode aprovar tudo o que se faz em nome da mesma liberdade. A sociedade laica está dinamizada por energias que são mais fáceis de desencadear que de controlar, mas que é imprescindível saber canalizar. Como afirma Morin, “não somos apenas possuidores de ideias, somos também possuídos por elas, capazes de morrer ou matar por elas” (MORIN, 2002, 53-54).

O Estado, obrigado pelos direitos individuais a não se imiscuir na consciência dos indivíduos, não estará obrigado em nome destes mesmos direitos, a intervir e controlar a vida das Igrejas e associações constituídas em nome da liberdade religiosa, quando estas exercem práticas antidemocráticas? O Estado tem a obrigação de controlar o exercício das liberdades religiosas e das liberdades públicas para que não se instrumentalizem de forma perversa a ponto de serem penalizadas por critérios democráticos. Pablo Silveira (2006, 48-49) acredita que a questão da laicidade gira em torno deste problema. Qualquer indivíduo tem o direito de ter as práticas religiosas que considere as mais adequadas ou não ter nenhuma, como também o direito de recrutar outras pessoas para as suas crenças. Estes direitos religiosos individuais se equiparam ao conjunto de direitos reconhecidos para todos. O indivíduo, em nome destes seus direitos, poderá violar direitos de outro indivíduo e será penalizado por isso. Mas o que é uma religião e uma crença religiosa? A resposta disso em muitos países pode ser difícil. Qual a distinção entre seita e religião? Isso é extremamente polêmico. Muitas denúncias de 130


discriminação têm a ver com as respostas a estas perguntas. Colocar o centro da liberdade religiosa nos indivíduos nos poupa de vários problemas acima, nos permite respeitar uma esfera de liberdades que é extremamente importante, nos impede de ter um Estado que avassale estas liberdades e não compromete o Estado com nenhuma religião estabelecida.

2.3. A emergência de um Estado laico e também mediador

Então, podemos afirmar que a laicidade está mudando? Exatamente isso. O modelo francês de laicidade, entendido como o Estado forte que garante a universalidade da cidadania igual para todos e que busca sua soberania em função da sua própria razão, da moral natural que sustenta a separação estrita e que basta para a ética da nação, estaria mudando a partir da crítica ao universalismo e ao modelo de pensamento moderno. Em um contexto mais amplo, esta crítica faz parte da crise de transição paradigmática apontada por Santos (2010) a partir dos anos 70 e 80, quando surgem outras epistemologias que passam a questionar cada vez mais a totalidade e o universalismo da razão ocidental que tem na laicidade absoluta um dos seus pilares. Para ele, até os anos 1970 a razão metonímica ainda se considerava a si própria como uma totalidade, mas a partir de agora não mais tão monolítica.76 Mas ela continuou a presidir os debates mesmo quando se introduziu neles o tema do multiculturalismo e a ciência passou a se ver como multicultural. Os outros saberes, não científicos nem filosóficos, e, sobretudo, os outros saberes exteriores ao cânone ocidental, continuaram até hoje, em grande medida, fora do debate. Verificamos isso também na crítica ao pensamento moderno totalizante em Foucault (PORTIER, 2011a), entre outros, quando destaca que o elemento particular e a singularidade, quando suprimidas pelo universalismo, servem para a 76

Esta razão totalitária que Santos (2002) chama de proléptica, pois não se aplica a pensar o futuro porque julga que sabe tudo sobre ele e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente, formulou a planificação da história que dominou os debates sobre idealismo e materialismo dialéticos, sobre historicismo e pragmatismo. A partir dos anos 70 e 80, ela começa a ser contestada, sobretudo, com as teorias da complexidade e as teorias do caos. A razão proléptica que se assentava na ideia linear do progresso, viu-se, então, confrontada, com as ideias de entropia e catástrofe, embora deste confronto não tenha resultado até agora nenhuma alternativa.

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construção ideológica da disciplinarização do corpo, que escamoteia diferenças e desigualdades socioeconômicas. Refletindo esta transição mais ampla, verificamos na atualidade a tendência da separação flexível entre o Estado e as religiões assumir contornos próprios em países da Europa mediterrânica e mesmo em outros, marcados pelo reconhecimento público do fato religioso e pelo movimento do Estado em validá-lo. Para Rodrigues “Tal reconhecimento compreende a individualidade expressa na ideia de memória, enraizamento e etnicidade que ao serem acionadas servem à construção da noção de identidade. Essa nova concepção de sujeito alia-se ao novo significado de Estado, agora, não assimilacionista, mas a serviço das singularidades que emergem da sociedade.” (RODRIGUES, 2013, 159).

Esse duplo movimento indica que as crenças não são simplesmente relegadas à esfera privada dos indivíduos e que a pluralidade abarca ainda os direitos dos não-crentes. Isto se deve ao que Portier (2011b, 36) denominou desconfessionalização e reassociação. A desconfessionalização remete-nos à discussão sobre a desregulação da crença e o processo de desinstitucionalização das religiões operado na pós-modernidade com as religiões perdendo a força institucional/normativa sobre os fieis. As famílias confessionais passam por profundo abalo que resulta na perda de poder das instituições e na consequente recomposição sob novas formas de religiosidade (Hervieu-Lèger, 1996, 15-16). Já a reassociação aponta o esforço desses fieis em formular novas formas de vivência da religião por meio do agrupamento e da reunião em multidões que partilham fé e demandas sociais sem se submeterem ao imperativo da exclusividade. Essa abertura configurada pela “nova situação sociológica (a expansão do pluralismo religioso e das convicções pessoais na sociedade) e institucional (a ponderação performativa do Direito das organizações internacionais) favorece a emergência da laicidade de reconhecimento” (PORTIER, 2011a, 22).

Segundo a tendência apontada por Portier (2011a), a laicidade caracterizada pelo regime de separação flexível admite o reconhecimento do fenômeno religioso e seu papel público complementar ao Estado, a serviço da construção de identidades, como elemento cultural. É com base nesta premissa que Debray propõe o estudo do fenômeno religioso nas escolas públicas da França. Ele se ressente da 132


“incultura religiosa” dos estudantes, decorrente principalmente da ruptura das identidades religiosas herdadas, o que dificulta, sem dúvida, a sua formação geral. Sempre existiram crises de transmissão que hoje assumem, no entanto, uma mudança profunda de natureza. Hoje elas são lacunas que representam verdadeiras rupturas culturais que atingem a identidade social, a relação com o mundo e a capacidade de comunicação dos indivíduos. Observa-se um remanejamento global das referências coletivas, rupturas da memória (as sociedades atuais são cada vez menos sociedades de memória e cada vez mais sociedades do imediatez), reorganização de valores que questionam os próprios fundamentos dos laços sociais. E a religião, por mais que não seja percebida, está no centro de todo este processo que é social, religioso, mas, sobretudo, existencial.

Este novo papel público do fato religioso admite a inserção da religião no espaço público e sua contribuição à coesão social, engajando-se na ideia de coletivo integrado ao projeto comum do Estado, sem negar os enraizamentos regionais, culturais, étnicos. “Articula assim o uno ao múltiplo, a igualdade com a diferença” (RODRIGUES, 2013, 159).

Essa nova perspectiva de laicidade vai ao encontro do pensamento mais recente de Jürgen Habermas77, muito bem analisada por Portier (2012). Segundo este pensamento, a modernidade pressupõe um modelo de convivência razoável que permita a coexistência dos estilos de vida pela integração dos cidadãos nos marcos de uma cultura constitucional compartilhada (HABERMAS, 2007).

Nessa linha de raciocínio, que busca refletir sobre a relação entre religião e Estado secular/laico e o lugar das religiões na esfera pública das sociedades modernas, compreende-se a afirmação de Habermas de que os secularizados não devem negar potencial de verdade a visões de mundo religiosas. 78 Trata-se, portanto, de refletir que assim como o modelo de laicidade tem passado por mudanças devidas às transformações socioculturais, frente a esse quadro também as religiões se recompõem e

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Este pensamento de Habermas pode ser encontrado em O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal?, publicado em 2004, e Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos, publicado em 2007. 78 Folha de São Paulo, São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005.

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esses processos são mútuos e interdependentes. 79 Ao atualizarmos, então, o debate sobre a laicidade para os nossos dias, é necessário repensar as grandes transformações sociais e culturais, particularmente as religiosas dos últimos 30 anos em todo o mundo, o que tem levado a mudanças na construção de conceitos como público, estatal e privado.

Temos neste início de século o pluralismo e a diversidade como valores de convivência com importantes consequências para a vida da humanidade. “A imaginação epistemológica do início do século XX era dominada pela ideia de unidade. Hoje ela perdeu a unanimidade e hoje é confrontada pela premissa da pluralidade, diversidade, fragmentação e da heterogeneidade” (SANTOS, 2006, 144).

Neste novo marco, é necessário reformular o conceito de laicidade que se impõe cada vez mais como uma nova forma de organizar a convivência e as relações entre os grupos religiosos e o Estado. O objetivo final dessa nova forma não é alcançar a supremacia de um sobre o outro, mas sim reconhecer a dignidade e a autonomia das pessoas e garantir o exercício de sua liberdade. O foco agora são as pessoas e não mais o Estado nem as Igrejas.

A diversidade, outrora combatida, hoje assume um valor que vale a pena desejar, um valor de construção coletiva da convivência, mas sem abandonar os sinais de identidade e as formas de viver que as pessoas querem para as suas vidas. Combinam bem agora a promoção da liberdade e a autonomia do ser humano. Cabe às ciências sociais elaborar um pensamento crítico/desmitificador que permita às sociedades, mesmo diante de dogmas seculares e do imaginário coletivo, explorar, investigar, encontrar tendências, novas capacidades explicativas e enfoques. Hervieu-Léger (2008) faz interessante relação entre modernidade e reconfiguração do campo religioso para poder discutir a questão da laicidade em novos termos. Ela afirma que as crises sócio-culturais costumam acompanhar os desequilíbrios econômicos ou até antecipá-los, como ocorreu em 1968 e agora, na Europa, sacudida pela crise financeira internacional. Nesses períodos, os sistemas religiosos tradicionais cedem

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Também os paradigmas de esfera pública e privada necessitam ser redimensionados para se compreender o lugar que a religião ocupa, transitando muitas vezes entre as fronteiras borradas pela pós-modernidade.

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lugar a novas formas de religiosidade com um grande poder de atração sobre os indivíduos e sobre a sociedade. Ela não está falando do “retorno do religioso” ou da “revanche divina”, mas são fenômenos que, pelo contrário, trazem à luz o caráter paradoxal da modernidade do ponto de vista da crença. De um lado, a perda do controle das crenças e práticas pelas instituições religiosas; por outro, a própria modernidade secularizada, geradora de utopia e opacidade, cria condições favoráveis à expansão da crença. Com uma preocupação semelhante à de Pierucci, ela afirma que compete a uma sociologia da modernidade religiosa compreender como a modernidade continua a solapar a credibilidade de todos os sistemas religiosos e o movimento pelo qual, ao mesmo tempo, ela faz surgir novas formas de crença. 80 O panorama atual da França é exemplar para percebermos estes novos tempos da laicidade. A crise da educação e a diversificação e reconfiguração do espaço religioso, principalmente devido ao crescimento da população muçulmana, o desenvolvimento de novas crenças, além das mudanças internas em cada confissão religiosa, tudo isso tem contribuído para desestabilizar o modelo de laicidade à francesa, além da evolução política, cultural e econômica que atingem em seu princípio os valores sobre os quais esse modelo repousou há mais de um século. É exatamente em função desta nova realidade que Jean Delumeau pôde afirmar: “Hoje, para a maioria dos nossos concidadãos, a palavra laicidade não tem mais aquele sentido polêmico de outrora. Ela significa, com certeza, que a religião não deve procurar controlar o Estado, que a escolha de uma religião ou uma não-religião é livre, mas também que o Estado deve criar as condições que permitam às religiões e à nãoreligião de se exprimir politicamente na vida cotidiana e no espaço público.” (DELUMEAU, 2003, 36).

Assim, para fazer frente a esta profunda crise, Velasco (2006) defende que as Igrejas devem assumir como horizonte hermenêutico de seu exercício dos direitos públicos o dos direitos fundamentais, tal como os interpreta a lógica da democracia, em consonância com o conceito de liberdade republicana, assumida pelo Estado na perspectiva da liberdade como não dominação. Para ele,

Exemplo disso é o crescimento dos sem religião, dos “evangélicos não praticantes” e/ou dos evangélicos sem pertença” no Brasil, de acordo com os dados do censo de 2010. 80

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“a laicidade bem entendida não pode se confundir com a neutralidade do Estado. Ele deve intervir sempre quando ocorrerem situações de dominação, seja no público, seja no privado, já que esta não é legítima em nenhum caso. Por que isso? Porque necessitamos de todas as fontes de recursos morais para construir sociedades mais livres e iguais.” (VELASCO, 2006, 26).

Roberto Cipriani (2006) sintetiza bem toda esta discussão afirmando que “a distância entre a política e a religião é uma útil garantia para a manutenção de uma laicidade não conflitiva que reconheça a cada um o devido e pague o tributo a Cesar, mas não deva necessariamente enfatizar a própria aversão por escolhas alternativas e não escolhas em matéria religiosa.” (CIPRIANI, 2006, 11).

Que papel pode ter esta discussão com o relativismo cultural ou o multiculturalismo do nosso tempo? Trata-se de uma realidade complexa, qualquer simplificação é inútil. A religião tem sofrido fortemente este impacto. Já se falou muito de “religião civil”, “religião de laicidade”, mas que não se atende à necessidade de uma visão geral entre as várias expressões e distintas experiências dos sujeitos religiosos. Sabemos que existe relativismo até no interior das crenças. O progressista cardeal Milani, ao final de uma polêmica com o conservador Ratzinger, futuro papa Bento XVI, justamente em torno do relativismo cultural do nosso tempo, chegou a afirmar: “o que necessitamos é saber viver juntos a diversidade, respeitando-nos, não nos destruindo reciprocamente, não nos fechando em guetos, não nos desprezando. Sem a pretensão de converter os outros, o que com frequência cria barreiras difíceis de ser superadas. Nem sequer nos limitamos à tolerância: a tolerância não basta.” (cf. CIPRIANI, 2006, 12).

No campo da política, esta questão tem maior visibilidade. Não adianta muito dizer da necessidade de desmontar a secular tentação do uso da religião como instrumento de divisão ideológica e política nem reivindicar novas formas de multiculturalismo que coloquem o poder a serviço dos direitos humanos ou subtraiam os direitos humanos do arbítrio das maiorias. De qualquer forma, isso ainda compromete a política com a religião. E o modelo tradicional de laicidade à francesa pouco tem a dizer 136


para estas novas realidades. E é novamente Debray, ao defender o ensino do fenômeno religioso nas escolas públicas da França, que afirma: “Agora, parece ter chegado o tempo de passar de uma laicidade de incompetência (o religioso, por definição, não nos diz respeito) a uma laicidade de inteligência (é nosso dever compreendê-lo). Isto é tão verdade como não haver tabu nem zona de interdito para um laico. A observação calma e metódica do fenômeno religioso, recusando qualquer ligação confessional, não seria, em última análise, para esta ascese intelectual, a pedra de toque e a prova de verdade?” (DEBRAY, 2002).

Hervieu-Léger (2008) segue este mesmo caminho. Suas análises se referem, sobretudo, à França, especialmente ao Catolicismo Romano, mas podemos tirar delas várias conclusões para outras sociedades, inclusive para o Brasil. Para ela estamos num momento crucial para o Estado laico. Observa-se uma “virada” nas relações entre as famílias espirituais e o Estado. Existe uma flutuação generalizada dos dispositivos reguladores, de um lado, da laicidade, e de outro, das instituições religiosas: “A República laica tende a incorporar explicitamente a memória religiosa nacional na formação e na celebração da continuidade cultural da nação. Os fatos recentes na França demonstram isso. O debate sobre a incultura religiosa dos alunos, os debates éticos sobre o futuro da sociedade e da humanidade – tudo isso marca uma virada cooperativa na relação entre as diferentes famílias do pensamento, inclusive do pensamento religioso.” (HERVIEU-LÉGER, 2008, 112).

Comum em muitos países, essa mútua legitimação da ação social do Estado e dos grupos religiosos constitui um elemento novo no contexto francês e na de vários outros países também. Não é um processo pacífico, principalmente quando se colocam questões relacionadas aos direitos reprodutivos e à homossexualidade. Mas não se trata mais de uma relação apenas entre a Igreja Católica e o Estado. São movimentos de tensão que se observam no seio da própria sociedade. No caso brasileiro, não vislumbramos, em curto espaço de tempo, uma relação crescentemente pacífica, tal a polarização recente, sobretudo, entre alguns segmentos pentecostais e neopentecostais, de um lado, e grupos laicistas, de outro. De qualquer forma, em nível internacional, e mesmo no Brasil em algumas áreas, já existe grande contribuição comum para a prática cidadã que substituiu o enfrentamento de posições irreconciliáveis do passado, por questões diferentes das 137


atuais. Não se deixa de observar que as relações entre a República laica e as religiões podem se deslocar, e mesmo passar de um regime de neutralidade/desconhecimento relativamente pacífico (que podemos chamar de laicidade de incompetência ou de ignorância) ao de uma cooperação razoável em matéria de produção de referências éticas, de preservação da memória e da construção de vínculo social (a que podemos chamar de laicidade do conhecimento, de inteligência ou de compreensão). Seriam mudanças significativas na esfera religiosa e no espaço público que na França podem ser uma novidade, mas que em outros países, como o Brasil, de certa forma, já ocorrem e devem ser compreendidas melhor. Para Hervieu-Léger (2008), a laicidade é a própria garantia da liberdade de crença dos indivíduos e dos grupos religiosos, mas ao mesmo tempo, cabe ao Estado um papel mediador, não de neutralidade e de desconhecimento do fenômeno religioso, mas de construção comum de uma sociedade comprometida com valores éticos e com vínculos sociais comprometidos com a paz e a solidariedade entre todos os homens. As religiões são expressões legítimas da pluralidade das identidades nacionais que compõem a cidadania. Não podemos negar isso. Assim, o Estado só é democrático se for laico. Para que nele caibam todos. “Ninguém é dono da verdade e sempre haverá divergências. Dessa maneira, um Estado imparcial pode exercer um papel mediador entre as confissões religiosas [e mesmo entre estas e grupos não religiosos] e favorecer a convivência pacífica entre elas” (GASDA, 2015, 52). Este papel mediador do Estado, no contexto da nova visão de laicidade, coloca em cheque a sua antiga neutralidade. Para Buriry (2001), o Estado, diante de várias situações, não pode ser neutro, mas precisa definir os limites de sua tolerância fundamentalmente em termos da gramática de conduta que prescreve liberdade e igualdade para todos. Para Michael Walzer, “a separação entre igrejas e Estado, fundamental para assegurar o caráter político do pluralismo, não requer que a religião seja relegada à esfera privada e que os símbolos religiosos devam ser excluídos da esfera pública” (WALZER apud BURITY, 2001, 36-37). O que está realmente em questão na separação entre igrejas e Estado é a separação entre religião e poder estatal. Mouffe ainda arremata, "na medida em que atuem nos limites constitucionais, não há nenhuma razão por que os grupos religiosos não devam poder intervir na arena política para debaterem a favor de ou contra certas causas" (MOUFFE, apud BURITY, 2001, 37). E ainda: 138


"certamente, em países onde a religião é central na constituição das identidades pessoais, seria anti-democrático proibir certas questões que são importantes para os crentes de entrarem na agenda democrática" (MOUFFE, apud BURITY, 2001, 38). Naturalmente, a formulação de Mouffe não resolve todos os problemas. A visibilidade pública da questão da identidade - no nosso caso, das identidades religiosas - num contexto pluralista traz consigo uma série de dificuldades a equacionar. Embora possamos concordar que, ao final, a solução será política, pressuporá o conflito e manterá a divisão (isto é, a nãototalização das soluções alcançadas em relação ao conjunto das demandas ou das formas de identificação existentes na sociedade), os desafios concretos podem representar enormes obstáculos para o avanço do pluralismo. Hoje, para a maioria das pessoas, a palavra laicidade não tem mais aquele sentido polêmico do passado. Para Delumeau: “(a laicidade) significa certamente que a religião não deve procurar controlar o Estado, que a escolha de uma religião ou de uma não-religião (pelas pessoas) é livre, mas também que o Estado deve criar as condições que permitam às religiões e à nãoreligião de se exprimirem pacificamente na vida cotidiana e no espaço público.[...] Neste espírito, a laicidade favorece a liberdade de crer e de não crer.” (DELUMEAU, 2002, 36). O debate adequado sobre a laicidade deveria focar as mudanças culturais recentes, à nova presença do religioso, à pluralidade e diversidade religiosa, percebendo de vez que o fim da religião não dispõe de nenhuma base empírica. Os debates sobre laicidade devem refletir a situação atual e não situações do passado. Não é um conceito imutável. Tem um correlato fático. Deve sacudir a Academia que se encontra mais disposta a repetir conceitos e se enquadrar dentro deles. Podemos concluir, tomando as palavras de Néstor Costa: “Assumir um conceito de laicidade atual, plural, inteligente é imprescindível para viver o mundo atual, que deseja ser homogêneo (se alguma vez o foi). Implica reafirmar o que todos aceitamos como valor, a diferença secular entre o político e o religioso, e a independência do Estado frente os grupos religiosos e vice-versa. Também implica avançar na distinção do público, do privado e do estatal. A expressão pública das diferentes formas de viver e crer, [...] são parte da totalidade diversa [...] e que longe de simplifica-la, refletem sua realidade complexa e diversa.” (Costa, 2006, 136).

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Já em 1985, Edgar Morin apresentava uma opinião muito semelhante a estes autores: “A laicidade não pode ser vista como uma ‘boa’ doutrina se opondo a uma doutrina má: ela carrega em si, se levada a sério, a destruição do doutrinarismo. Eu não quero dizer com isso que ele implica na destruição de crenças a partir de um ceticismo generalizado. A laicidade, do meu ponto de vista, foi baseada no princípio de que as várias ideias expressas nele, ao nível da escola, nunca deveriam ter um caráter doutrinário. Foi uma ideia complementar; pelo menos em termos de educação, a partir da ideia da república e democracia que significa regra do jogo pluralista.” (MORIN, 1985).

2.4. Uma laicidade à brasileira: repensando suas bases teóricas

No Brasil, a produção teórica sobre a secularização e a laicidade está em franco crescimento. Sem dúvida, é um tema emergente da pauta social e política do país. Observamos que quase sempre este debate na Academia e as publicações dele decorrentes partem de temáticas específicas que exigem necessariamente a discussão sobre a secularização da sociedade e a laicidade do Estado, como os direitos reprodutivos, a união civil de pessoas do mesmo sexo (casamento gay) e, como não poderia deixar de ser, o ensino religioso na escola pública. Mais recentemente, com a formação das denominadas bancadas evangélicas no Congresso Nacional, é possível perceber outro importante viés desta questão na intervenção direta de grupos religiosos na esfera político-legislativa, o que ficou bastante evidenciado nas duas últimas eleições presidenciais e na atual legislatura com a eleição de Eduardo Cunha como presidente da Câmara dos Deputados. De qualquer forma, como já dissemos no Capítulo I, ao analisarmos o panorama atual deste debate no Brasil, parte desta produção está presa a um forte viés jurídico-político e pode ser encontrada não apenas nos meios acadêmicos, mas em vários outros segmentos da sociedade, em alguns partidos de esquerda ou em tendências deles, sindicatos e em alguns movimentos sociais, dentre os quais principalmente os grupos feministas, os de reivindicação dos direitos dos homossexuais e os de defesa e promoção da cultura africana ou afro-brasileira. Podemos observar que muita coisa que se escreve e se publica no Brasil neste sentido tem um caráter mais reativo do que propositivo, diante 140


do avanço de tendências religiosas fundamentalistas e outros movimentos mais conservadoras na esfera pública. Boa parte desta produção tem sido feita mais no fragor dos embates sociais e políticos da contemporaneidade nacional, deixando de se referenciar em autores consagrados, principalmente europeus, que tem se debruçado sobre esta questão há décadas. Giumbelli, falando da ‘liberdade religiosa’ e da ‘liberdade de culto’ em discussões jurídicas mais específicas no Brasil, faz as seguintes considerações: “Os levantamentos que realizei junto a bancos de bibliografia jurídica [...] resultaram em um número escasso de registros [...] os registros oscilam entre exegeses constitucionais e comentários casuísticos ou restritos a aspectos bem circunscritos. Passa-se do extremamente genérico ao demasiadamente particular, quando se trata de religião nas discussões jurídicas.” (GIUMBELLI, 2002, 232).

O mesmo autor, tratando da liberdade religiosa e do mercado religioso no Brasil, chama a atenção para a falta de estudos sobre a dimensão propriamente jurídica do lugar da religião na sociedade brasileira. Mas ele se refere, na verdade, à pouca relevância que os cientistas sociais dão às definições que leis ou juristas oferecem a este tema. Esta recusa, mais do que uma escassez, tem, na verdade, para ele, uma perspectiva que despreza, exterioriza ou anacroniza o papel do Estado na conformação do campo religioso brasileiro: “Têm-se abordagens que, ao tratar do campo religioso, ou sentem-se à vontade para jamais mencionar o envolvimento do Estado, ou, ocupando-se deste, associam-no a configurações ou fatores que perdem (ou deveriam perder) espaço ou hegemonia. Em um caso, as análises recorrem a conceitos e categorias que formam campos semânticos em retorno de noções de “individualismo religioso” e “mercado de bens de salvação”. No outro, são novamente as relações privilegiadas entre o Estado e a Igreja Católica que ocupam o centro da cena.” (GIUMBELLI, 2002, 233).

Observamos que o Estado brasileiro reconhece a presença do fato religioso como realidade social, seja pelas instituições que o representam, seja pela vivência da religião por boa parte de seus cidadãos-crentes. Esta é uma das razões que podem explicar porque, desde 1990, outros autores vêm dando importante contribuição ao debate no campo da sociologia e da antropologia e mesmo em outros campos da

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ciência, tentando restabelecer um vínculo plausível com os teóricos europeus, usando expressões como laicidade à brasileira para descrever a relação do Estado com o fenômeno religioso entre nós.81 Podemos citar, dentre outros, Giumbelli (2002, 2004, 2011), Ari Pedro Oro (2007, 2011), Ricardo Mariano (2001, 2005, 2006, 2011), Paula Montero (2006), Júlia Miranda (2011), Raquentat Júnior (2008), Elisa Rodrigues (2013), além do próprio Flávio Pierucci (1997, 2000, 2013).

Sempre que colocamos na pauta da sociedade brasileira a questão do ensino religioso na escola pública, surgem de forma generalizada as mais diferentes posições utilizando expressões como laico e seus correlatos, assim como secularização, esfera pública e privada. Muitas vezes, estas posições são alinhadas a uma concepção restritiva da modernidade que a entende como favorável à ciência, orientada pelo tangível, protegida do dogmatismo e marcada pela universalidade, e avessa à religião, presa ao intangível, suscetível à manipulação das consciências, assunto de foro íntimo (RODRIGUES, 2013). Mesmo que se aceite a relevância da religião como “referencial de vida”, observamos que se destaca a natureza subjetivo-emotiva inadequada à laicidade e à esfera pública. Diante disso, Rodrigues (2013) indaga: de que laicidade nós estamos falando? Aquela perspectiva vê o par público-privado em termos de uma evolução linear, do tempo da Igreja para o tempo do Mercado: “a transição para a compreensão de que o espaço religioso tem referencial próprio que o fiel carrega consigo, por escolha subjetiva, enquanto o espaço público é o espaço de todos, como direito e dever, sem exclusão” (FISCHMANN, 2006). Ou ainda: “Considerando que a educação é um bem público e a religião é objeto de foro privado, doutrinas, crenças e valores religiosos deveriam ser ensinados somente nas comunidades morais, ficando alheia às escolas públicas” (DINIZ, 2010, 19).

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Mas Giumbelli (2002) chama a atenção para a década de 1970 que foi um importante período de produção acadêmica sobre as relações entre política e religião no Brasil. São dessa época uma série de trabalhos, vários escritos por estrangeiros, cujas análises nos legaram não só abordagens, mas também temas concentrados na temática da política na e da Igreja Católica e seu papel na construção de uma sociedade democrática. Ressaltamos a relação desta produção com o desenvolvimento da Teologia da Libertação no contexto da Ditadura Militar.

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Esta relação dualista e excludente entre o público e o privado tem sido utilizada com frequência por aqueles que são contrários a qualquer tipo de ensino religioso na escola pública. Para eles, o destino da religião seria a esfera doméstica/privada, como se as fronteiras entre uma esfera e outra fossem inflexíveis82. Neste sentido, é impensável, por exemplo, imaginar a esfera privada fora da relação com a esfera pública, ou, melhor ainda, da esfera pública fora da relação com a esfera estatal. Nenhuma destas partes poderia ter vida própria, fora da sua relação dualista e dicotômica. Esta concepção é criticada por Santos (2010) que a considera bem própria da racionalidade ocidental que acaba promovendo uma compreensão do mundo parcial e seletiva. Para ele, há necessidade de pensar os termos das dicotomias fora das articulações e relações de poder que os unem como primeiro passo para se os libertar dessas relações, e para revelar outras relações alternativas que têm estado ofuscadas pelas dicotomias hegemônicas. Outra insuficiência dessa perspectiva diz respeito a uma compreensão do processo de secularização que se baseia nas teorias clássicas tranquilamente aceitas até os anos 70 e que desconsidera o seu desenvolvimento posterior, isto é, a recomposição das religiões, o pluralismo religioso-cultural, a emergência das teologias políticas83 e de novas formas de vivência da religião e a tendência à desinstitucionalização das confissões religiosas que têm sido objeto dos estudos de religião e de que tanto já falamos aqui (CAMURÇA, 2010; HERVIEU-LÉGER, 2008; WILLAIME, 2008, 2011a, b; PORTIER, 2010, 2011a, b, 2012) e que desqualificam as noções da privatização da religião e da sua tendência ao declínio. “A presença do elemento religioso na esfera pública não pode ser interpretada com esquemas ultrapassados ou reducionistas herdados da modernidade” (GASDA, 2015, 45). Santos (2014) ressalta que a distinção entre o espaço público e o espaço privado e o confinamento da religião a este último é hoje um elemento central do imaginário político de raiz ocidental, tanto no plano da regulação social como da emancipação social. Mas tudo aponta hoje para uma configuração do religioso que opera uma lógica de deslocamento de fronteiras e ressignificação das práticas (BURITY, 2001). 82

Ver Rodrigues, 2012, 165-169. Segundo as teologias progressistas cristãs, a separação do espaço público e privado funcionou sempre como uma forma de domesticar ou neutralizar o potencial emancipador da religião, um processo que contou com a cumplicidade e mesmo com a participação ativa das teologias conservadoras. Ver SANTOS, 2014, 47-54. 83

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A desconstrução da fronteira público/privado é o resultado de processos que em muitos casos não estavam previstos e nem mesmo tinham como objetivo alcançá-la. Processos onde a resistência, a insatisfação ou a frustração/desilusão face às formas concretas assumidas pela modernização encontraram no espaço e na linguagem da religião uma de suas superfícies de inscrição, embora aqui seja preciso especificar contextualmente qual (definição ou forma institucional de) religião. Na opinião de Burity, “não há nem apagamento da fronteira nem uma mera inversão da posição hegemônica. Há um deslocamento da mesma” (BURITY, 2001, 32). O efeito contraditório mais marcante destes dois processos é o de que o aprofundamento da experiência religiosa como algo pessoal, individual, íntimo se dá ao par com uma desprivatização ou publicização do religioso. As mudanças históricas, ocorridas principalmente a partir dos anos 80, contribuíram para redefinir a fronteira público/privado de modo a alterar ou provocar um realinhamento na relação entre política e religião. “O processo de desprivatização mais uma vez questiona a posição do secularismo como conteúdo exclusivo, ou pelo menos predominante, do Estado e das estruturas sociais. A ideia de que o espaço público deve estar totalmente destituído de conotações religiosas, como pré-requisito para a igualdade e a liberdade de seus cidadãos, parece mais frágil hoje do que alguns anos atrás.” (FERRARI, 1999, 14).

No plano teórico, a partir dos anos 70, foi possível separar a secularização de suas origens ideológicas na crítica da religião pelo Iluminismo, diferenciando-a como uma teoria autônoma em relação ás esferas religiosa e privada, e separando-a da linha de raciocínio que levava ao fim da religião. Nos anos 80, percebeuse que a perda de suas funções sociais não supunha necessariamente a sua privatização (COSTA, 2006).

Montero (2006, 49) lembra Habermas, quando este aponta que, a partir do século XVIII, emerge uma outra distinção entre as esferas pública e privada da sociedade, representada pela esfera das pessoas privadas reunidas em um público, a esfera pública burguesa ou sociedade civil, que tem como consequência mais expressiva a interiorização da família no espaço privado. Ainda que, segundo Habermas, a sociedade de massas tenha fragilizado os fundamentos da esfera pública, turvando as distinções entre o público e o privado, parece que se tomarmos essa concepção tripartite – 144


Estado/sociedade civil/esfera privada – como intrínseca à ordem social moderna, o problema das relações entre religião e sociedade pode ser proposto em termos analíticos mais adequados e não normativos: em vez de admitir como um pressuposto a privatização da prática religiosa – seu confinamento à esfera familiar – trata-se de identificar as configurações específicas que as formas religiosas assumem em cada sociedade em função de seus modos particulares de produzir historicamente a diferenciação dessas esferas e articulá-las.

No Brasil, o processo que levou à separação entre Estado e Igreja alocou a religião na sociedade civil, e não na esfera privada (MONTERO, 2006). É possível arrolar os mais diversos exemplos históricos para demonstrar que a emergência de estados laicos não tem como decorrência necessária e mecânica a privatização da religião na esfera doméstica. Não é fácil resolver esta ideia moderna de privatização religiosa e reconhecer, ao mesmo tempo, as dimensões comunitárias e sociais que todo fenômeno religioso evidentemente comporta.

Muitos autores chamam ainda a nossa atenção para o caso particular dos países da América Latina, cujas trajetórias históricas configurariam sociedade e culturas detentoras de uma outra lógica, de um outro tipo de modernidade, em que a religião e as religiosidades continuariam a retirar a sua energia na sociedade, ao lado de outras instâncias mobilizadoras e instituintes do social (PARKER, 1996; CORTEN, 2001; SANCHIS, 2003), contribuindo para a coesão social e interagindo com o político.

Dadas as peculiaridades do caso brasileiro, Rodrigues (2013) propõe que a relação entre religião, laicidade e esfera pública deve ser pensada com base na noção de reconhecimento, que desde o início da República, deu-se em alguns momentos na forma de demanda, inicialmente, da Igreja Católica, noutros, como estratégia de governança dos políticos a frente da administração pública. Com os católicos, o esforço pelo reconhecimento identifica-se no projeto de recatolização da sociedade empreendida pela hierarquia após a Revolução de 30, como já vimos no Capítulo I. Vem daí o esforço de recomposição da religião frente à separação com o Estado e, em consequência, a institucionalização de grupos religiosos que tampouco prescindiram da presença na esfera pública (MIRANDA, 2011, 48-49).

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Embora a concepção de laicidade exigida pelos secularistas reivindique o regime de separação rígida, no caso brasileiro permanece a tradição histórico-cultural como dispositivo que favorece a presença da religião na esfera pública. Mesmo que constitucionalmente as religiões não sejam subvencionadas ou assumidas pelo Estado, permanece muito forte sua presença histórica numa cultura que, diria Sanchis (1994, 1995), caracteriza-se por ser religiosa. “No Brasil, laicidade e separação significam que é constitucionalmente interdito ao Estado pronunciar-se a respeito de qualquer confissão religiosa, mas isso não significa a saída da religião da esfera pública” (RODRIGUES, 2013, 167). Exatamente como vê Giumbelli (2004, 50), quando destaca os três princípios que constituem o conceito de laicidade: 1) O princípio da separação, que requer do Estado que não se envolva no que tange às opções espirituais e religiosas individuais, mas cuide de possibilitar a expressão religiosa, que deve renunciar à dimensão política. 2) O princípio da igualdade cujo sentido remete à igualdade política perante a lei (isonomia) por parte do Estado, mas exige das religiões que não imponham demandas particularistas. 3) O princípio da liberdade de consciência que é afirmado pela laicidade brasileira, mas lhe impõe como limitação as regras estabelecidas pela ordem pública. Assim, simultaneamente, esse princípio garante a participação e expressão religiosa nos debates e espaços públicos e lhe impõe limites a fim de proteger a sociedade de imposições religiosas. Aprofundando a compreensão que se pode ter das expressões ‘todos são iguais’, ‘direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade’ presentes em nossa Constituição, percebemos, de pronto, que são revestidas de princípios filosóficos ligados ao processo histórico que alicerça a doutrina liberal. Essas influências foram determinantes para o processo de formação do Estado brasileiro. Mas entre a laïcité conquistada pela França iluminista em 1789 e a construção da Constituição Brasileira em 1988, passaram-se pelo menos dois séculos, tempo em que a laicidade à francesa conheceu importantes ressignificações, como já vimos, e a formação secular do Estado brasileiro procedeu segundo peculiaridades específicas de nossa história, bem diferentes do modelo conflitivo francês, pelo menos neste aspecto específico (Rodrigues, 2013).

Assim, de forma diferente da laicidade francesa, que recusa a religião, ou da laicidade estadunidense, que admite plenamente a liberdade religiosa, no Brasil

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secular, a separação poderia ser considerada flexível porque reconhece o fato religioso84. O esforço dos laicistas em combater o fato religioso, nesse sentido, inscreve-se no antigo comportamento de combate ao interesse católico de hegemonia (MIRANDA, 2011), seja da moral privada ou da educação pública. Rodrigues (2013) afirma que se trata de uma interpretação positivista da Constituição de 1988 aquele sentido de laicidade/laico em sua acepção de regime de separação rígida, desprezando o passado histórico e os deslocamentos do religioso na sociedade brasileira. Para ela “Seria prudente precisar o sentido de nossa laicidade que, diferentemente da referência francesa de conflito radical com o catolicismo [já superada nos dias de hoje], tem por matriz a família patriarcal, o centralismo do Estado católico-português e o pessoalismo nas relações como noções que migraram da esfera privada para a pública [como afirma Sérgio Buarque de Holanda]. Essas evidências indicam que convém repensar as bases teóricas sobre as quais tem sido feito o debate sobre ensino religioso no Brasil.” (RODRIGUES, 2013, 166).

A crítica ao ensino religioso na perspectiva do regime de separação rígida nos remete a uma questão: onde está exatamente o problema? Em lidar com o cruciante discurso religioso, às vezes, pouco flexível ao diálogo, ou em temer a abertura do Estado e o reconhecimento da relevância do ensino do fato religioso nas escolas públicas que pode resultar na invasão e desestruturação de uma esfera pública ideal?

Será que a entrada do discurso religioso na esfera pública deixaria a estrutura discursiva preexistente intacta? Asad afirma que “a esfera pública não é um espaço vazio de debates, mas um espaço constituído por sensibilidades – memórias e aspirações, temores e esperanças – de falantes e de ouvintes. [...] A introdução de novos discursos pode resultar no rompimento de suposições estabelecidas que estruturam os debates na esfera pública” (ASAD apud RODRIGUES, 2013, 169).

De qualquer forma, o rompimento é exigência para que sejam ouvidos os discursos, quaisquer que eles sejam. Rodrigues (2013) vai além ao indagar se a atitude de evitar o ensino do fato religioso nas escolas não representaria uma tendência ao

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O reconhecimento do fato religioso pelo Estado Brasileiro pode ser ilustrado em ações sociais desenvolvidas por denominações religiosas junto com o Estado e dos crucifixos e santos expostos nas repartições públicas, mesmo que possamos discutir o grau deste reconhecimento.

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protecionismo, característico de uma concepção do Estado paternalista, que infantiliza a sociedade alijando-a do real direito de escolha. Giumbelli (2004), a partir de quatro documentos85, analisa a relação entre Estado, religião e escola no Brasil, com perspectivas bem diferentes. No primeiro deles, o argumento implícito é de que mesmo o Estado laico não pode se desinteressar daquela dimensão que, da melhor forma, transmite as noções de ‘cidadania’ e de ‘moral’; posta esta necessidade, é exatamente o modelo confessional que preserva a pluralidade das opções religiosas. Este é o modelo adotado pelo Estado do Rio de Janeiro. No segundo, este modelo confessional é negado em nome da laicidade e o pluralismo seria contemplado através de uma entidade consultiva formada pelas diferentes denominações religiosas. Podemos considerar que este modelo se inspira mais fortemente na LDB e foi seguido pelo projeto de ensino religioso adotado tradicionalmente pelo FONAPER. No terceiro, temos uma proposta baseada em um saber acadêmico capaz de despertar para os valores de boa convivência e o pluralismo, valores que seriam contemplados por meio de uma abordagem que se recusa a considerar as expressões religiosas como derivações de uma essência única. Este é o modelo que acabou teoricamente adotado no Estado de São Paulo, mas nunca efetivamente implementado, e que mais se aproxima atualmente da proposta do Ensino dos fatos religiosos como área de conhecimento. Podemos considerar que uma combinação entre o segundo e terceiro modelos vem inspirando o projeto desenvolvido no Estado do Paraná, assessorado por acadêmicos da Universidade Federal do Paraná, da Universidade Católica do Paraná e por uma entidade promotora do diálogo inter-religioso denominada ASSINTEC (Associação Inter- Religiosa de Educação e Cultura). No quarto modelo, laicidade e pluralismo articulam-se para desaconselhar a presença da religião na escola, espaço aberto de aprendizado da ciência e da formação da consciência.

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Estes documentos utilizados por Giumbelli são: a Lei 3459/00, promulgado pelo então governador Antony Garotinho que adotou o ensino religioso confessional no Estado do Rio de Janeiro; o segundo foi o projeto de lei apresentado pelo deputado carioca Carlos Minc, aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2003, mas que acabou vetado pela governadora Rosinha Garotinho; o terceiro foi um documento produzido por uma equipe de professores do Departamento de Pós-graduação em História da UNICAMP, solicitado por uma equipe especial da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo criada em 1995 (governo Mário Covas) para regulamentar o Ensino Religioso nas escolas públicas paulistas; e o último documento, de 2004, é de autoria de Roseli Fischmann que, como representante da USP, havia participado dessa comissão de 1995.

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A existência de pontos de encontro em meio à produção desses modelos tão diferentes faz pensar sobre os caminhos da modernidade no Brasil e Giumbelli (2004) acredita que as relações entre Estado, sociedade e religião oferecem um campo precioso para esta análise. Talvez seja a França o país que viva mais fortemente o paradoxo da separação contida na noção da laicidade: separar significa distinguir, e distinguir significa produzir os termos produzidos na relação. Assim, para ele não há nada de casual que a mesma lei que consolida a separação entre Estado e igrejas na França tenha se dedicado à criação da associação do culto, uma figura jurídica nova para abrigar as instituições especificamente religiosas. No Brasil, pelo contrário, houve a separação entre Estado e Igreja, mas sem a contrapartida da definição desse espaço propriamente religioso. Até hoje, em termos jurídicos e com exceção de algumas regras fiscais, não há característica ou exigência que distinga as instituições religiosas de outras ‘associações sem fins lucrativos’. Para Giumbelli, “O resultado é a articulação entre um Estado moderno – juridicamente laico – e uma sociedade tradicional – que não necessita se organizar de modo a manter o religioso dentro de limites próprios e específicos. O debate sobre o ensino religioso na escola pública na medida em que produz modelos bem distintos em torno das noções modernas de laicidade e de pluralismo, parece confirmar a possibilidade dessa articulação.” (GIUMBELLI, 2004, 57).

Os quatro textos selecionados por Giumbelli (2004, 57-58) podem ser organizados segundo uma graduação de ruptura que demandam em relação ao sistema vigente. Assim, dentro desse critério, o texto de Fischmann ocuparia um dos extremos, justamente o que identifica o maior grau de ruptura. Ao menos na medida em que implicaria uma modificação constitucional, no sentido de suprimir a exigência da oferta de ensino religioso, como já afirmamos no Capítulo I. Em uma posição intermediária, teríamos a proposta apresentada pela equipe da UNICAMP e o modelo defendido pelo deputado carioca Carlos Minc. Ambos apostam na possibilidade de se chegar a um programa disciplinar único, que envolve no primeiro caso, a intervenção do saber acadêmico e, no segundo, a constituição de uma entidade interconfessional. No outro extremo dessas opções, temos o modelo instaurado no Estado do Rio de Janeiro, onde as próprias estruturas institucionais religiosas, cuja existência está suposta, estão encarregadas de formar e avalizar os professores de ensino religioso contratados e pagos 149


pelo Estado. De qualquer forma, para Giumbelli (2004), esta é uma abordagem bastante pragmática que mantem este quadro sujeito a contínuas avaliações. Nada está consumado e os dilemas são e ainda serão muitos.

Capítulo III O estudo do religioso como área de conhecimento na escola pública, laica e democrática: em busca de uma base epistemológica

Além da laicidade do Estado, que tratamos no capítulo anterior, outra questão que permanece como um entrave para o ensino do religioso na escola pública do Brasil é a fragilidade da base epistemológica desta disciplina. Não há como negar que este problema está diretamente relacionado à discussão da própria laicidade do Estado. Este trabalho não tem a pretensão de elaborar essa base epistemológica para o ensino religioso, mas sim argumentar no sentido da sua necessidade, se se quer adequá-lo com claras finalidades pedagógicas.

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Para adentrarmos na discussão em torno da conveniência ou não, da necessidade ou não, e da própria indispensabilidade ou não, do ensino religioso na escola pública, há uma questão de fundo que precisa ser mais bem esclarecida desde o início. O que se acostumou até hoje entender por ensino religioso no Brasil? Pierre Bourdieu na sua obra Economia das trocas linguísticas pode nos auxiliar na construção de um encaminhamento para esta questão.

Bourdieu busca desvelar o poder distintivo das palavras e compreendêlas na perspectiva da análise de uma conjuntura social repleta de tensões e conflitos, como é este caso em foco. Com a ideia de que ‘toda ação é uma conjuntura’, ele propõe empreender a crítica a uma determinada análise linguística que se busca na singularidade da própria língua. Embora seja legítimo tratar as relações sociais como interações simbólicas, isto é, como relações de comunicação que implicam o conhecimento e o reconhecimento, “não se deve esquecer que as trocas linguísticas – relações de comunicação por excelência – são também relações de poder simbólico (...)” (BOURDIEU, 2008, 23-24). Bourdieu baseia sua argumentação primeiramente desconstruindo a ideia de uma língua legítima dada como natural e comumente usufruída por um grupo de sujeitos falantes. Segundo ele, aquela visão de que “não é o espaço que define a língua, mas a língua que define seu espaço [...] oculta o processo propriamente político” (BOURDIEU, 2008, 31) que leva o grupo de falantes a aceitarem tal língua como sendo a oficial. A língua oficial é apenas tornada legítima em consonância com as condições socioeconômicas que permitem tal legitimação – apenas em virtude de um mercado linguístico.

A tese levantada por Bourdieu de que as palavras descrevem e prescrevem, de que têm capacidade de “produzir ou reforçar simbolicamente a tendência sistemática para privilegiar certos aspectos do real e ignorar outros” (BOURDIEU, 2008, 125), constitui-se como um importante instrumento teórico para os interessados em investigar o poder simbólico constituído pelas palavras, ou seja, a eficácia simbólica da linguagem na construção da realidade. Não as palavras em sua aparente neutralidade, mas as palavras dispostas em luta – na luta permanente pelo estabelecimento do consenso sobre o sentido, pelo estabelecimento de uma visão do mundo social. 151


Esta discussão sobre o poder das palavras é importante quando analisamos o ensino religioso no Brasil. Estas são palavras carregadas de sentido, como diz Bourdieu (2008), inseridas num contexto social, cultural e político repleto de tensões. São palavras que trazem um forte poder simbólico, elas não são neutras. São palavras em luta. Em torno do ensino religioso encontramos um histórico de embates ideológicos não só na França, mas também no Brasil desde a Escola Nova, como vimos no Capítulo I, opiniões cultural e politicamente divergentes no seio da sociedade nacional e interesses fortemente ligados à concepção de Estado e aos interesses das confissões religiosas. Ao ponto de ensino religioso ainda hoje ser percebido natural e espontaneamente por uma boa parte das pessoas como ensino de doutrina religiosa nas escolas. E também ser condenado como ameaça à democracia, à diversidade e à pluralidade cultural e religiosa do país. No centro deste conjunto de interesses, concepções e tensões, nós podemos encontrar a questão da laicidade, expressão esta também fortemente carregada de sentido, como já vimos.

Os regimes de verdade em todas as sociedades humanas se estabelecem a partir desta relação intrínseca do saber-comunicação-poder. O que tem visibilidade e se impõe como verdadeiro e não como falso é porque já foi previamente escolhido por um estatuto político da verdade. Nas palavras de Foucault: “Não há poder sem saber, não existe verdade fora ou sem poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade; isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionou uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. (FOUCAULT, 2008, 12).

Existe um regime de verdade em torno do enunciado do ensino religioso na escola pública no Brasil. Em grande parte, este regime de verdade já foi ditado pelo discurso da laicidade a partir do paradigma francês, de longa história dentro e fora do Brasil. Discurso este que se impôs e se impõe ainda hoje a partir de uma visão estritamente científica da racionalidade ocidental. Se a escolha for pela construção de uma racionalidade mais ampla e mais cosmopolita (SANTOS, 2010) que abarque e credibilize todos os saberes, inclusive os saberes religiosos, é mister que se descontrua esse regime 152


de verdade, que o deixe às claras. Somente assim será possível reconhecer a relevância e até a necessidade do conhecimento do religioso para uma sociedade secularizada como a nossa e em um espaço público tão importante para a formação das consciências como a escola pública.

3.1. Relevância do conhecimento religioso para uma sociedade secularizada e para a escola laica O currículo escolar não deveria incluir nenhum saber que não fosse relevante para a comunidade atendida e para sociedade em geral. Com isto todos estão de acordo. Neste sentido, qualquer área de conhecimento deveria reunir um consenso mínimo da própria sociedade para ser pertinente e justificar a sua presença no ambiente escolar. No caso do ensino religioso, por exemplo, é imprescindível, que, antes mesmo de sua função pedagógica, fique bem clara a importância dos saberes e da experiência religiosos para a cultura, a sociedade e outras dimensões constitutivas do humano. E ainda mais se tratando de um conhecimento cuja designação é geralmente carregada de sentido, inserida num contexto político, social e cultural repleto de tensões, como pudemos perceber em Bourdieu (2008) quando trata do sentido das palavras, e em Foucault (2008), quando fala dos regimes de verdade. Toda ciência é ensinada nas escolas com finalidades pedagógicas e não deixa de ter crenças embutidas em seus programas. É impossível não tê-las. Por outro lado, existe hoje um consenso de que a educação não pode ser uma reprodução de princípios e métodos neutros, mas, sim, de valores a serem assimilados pelos educandos e educandas. A educação do intelecto e da vontade, na verdade, do ser humano em sua completude, funda-se numa teleologia: que tipo de pessoa e de sociedade que se quer e que se deve construir. E este é um objetivo de toda a educação. A composição curricular é o meio a ser percorrido para tal finalidade. Dentro deste quadro geral da educação para a formação do ser humano, o que está em jogo é o lugar da escolarização do conhecimento do religioso. Qual é a utilidade deste conhecimento em e para uma sociedade secularizada? Essa parece ser a questão, quase sempre imperceptível, que está por trás de toda a discussão em torno da

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Constituição, da LDB e da própria laicidade do Estado, como pudemos ver no Capítulo I. O seu encaminhamento nos exige um ponto de partida crucial: que papel desempenha a(s) própria(s) religião (ões) em sociedades secularizadas como as nossas no sentido de promover exatamente aqueles valores de que falamos antes? Sem uma resposta lúcida para este questionamento, não encontraremos nenhuma razão também lúcida para a presença do ensino religioso como área de conhecimento no projeto político-pedagógico da escola pública. Buscamos em José Carlos Mariátegui, conhecido escritor e ativista peruano do início do século XX, um ponto de partida para o encaminhamento das questões levantadas acima. Ele é uma referência importante para compreender a religiosidade como dimensão constitutiva do próprio ser humano e a própria religião como objeto de cultura da sociedade humana. Em um famoso ensaio de 1925, Dos concepciones de la vida – verdadeira matriz de sua obra posterior - ele critica a “estéril e sumária execução de todos os dogmas e igrejas em benefício do dogma e da igreja de um livre-pensamento ortodoxamente ateu, laico e racionalista” (MARIÁTEGUI, 1971, 15). Lembrando que Mariátegui defendia estas posições no período em que, na França, se construía, em meio a todos os conflitos e controvérsias, a laicidade republicana que, por décadas, serviu de paradigma para o mundo ocidental. Referindo-se a Mariátegui, Michael Löwy, num artigo publicado em 2005, intitulado Mística revolucionária: Jose Carlos Mariátegui e a religião, afirma que Mariátegui não se opõe à razão e à ciência, mas insiste em que elas “não podem satisfazer toda a necessidade de infinito que existe no homem.” (LOWY, 2005, 106). Este autor, representativo de uma tradição marxista não ortodoxa, é insuspeito ao chamar a atenção para o fenômeno religioso de uma sociedade que sofreu tremendamente o impacto do colonialismo europeu, que tinha ainda justamente na religião um dos seus alicerces mais poderosos, e por isso, a necessidade de vê-lo como objeto de pesquisa científica e dos estudos acadêmicos. E nós acrescentaríamos: e por que não também nos bancos escolares? Sua tese tem foco na cultura andina, mas a análise que faz, a partir da subalternidade desses povos frente à expansão colonial-capitalista da cultura ocidental, é exemplar para toda a humanidade e se coloca como referência muito importante para os

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estudos de religião como um campo da ecologia dos saberes sugerido por Boaventura de Sousa Santos, dentre outros.

Na visão de Lowy (2005), José Carlos Mariátegui se integra ao movimento cultural do Romantismo de forma original e em um contexto latinoamericano, bastante diferenciado do europeu. Com sua visão romântico-revolucionária do mundo, tal como formulada naquele famoso ensaio de 1925, ele rejeita a filosofia evolucionista, historicista, racionalista, portadora de um culto supersticioso da ideia do progresso. Vê-se que Mariátegui se distancia da interpretação da religião como um estágio pré-lógico e pré-racional da suposta evolução linear da humanidade, de acordo com a visão positivo-marxista. Ele anuncia aqui um ponto de partida convergente com os estudos pós-coloniais no que se refere aos estudos de religião.

Outro autor marxista muito próximo das conceituações do pensador peruano foi o jovem Gramsci, que, em um artigo sobre Charles Péguy, escrito em 1916, rende homenagem ao "sentimento místico religioso do socialismo [...] que tudo invade e nos leva muito além das polêmicas ordinárias e miseráveis dos pequenos políticos vulgarmente materialistas” (GRAMSCI, 1916, 33-34).86 A palavra ‘mística’, tão utilizada por Mariátegui e também por Gramsci, é claramente de origem religiosa, apresentando aqui, porém, um significado mais amplo, ao sinalizar a dimensão espiritual e ética do próprio socialismo, a fé no combate revolucionário, o compromisso total pela causa emancipadora, disposição heroica para arriscar a própria vida. Já a religião, como instituição, encontra-se, por outro lado, no centro das atenções do capítulo ‘O fator religioso’ dos 7 Ensaios de interpretação da realidade peruana (1929). Nele, Mariátegui se afasta das reflexões místicas dos ensaios publicados nos anos 1924-1926, passando a estudar a religião do ponto de vista científico-social, isto é, histórico, sociológico e antropológico. Mesmo assim, na introdução do capítulo, ele se mostra preocupado em evitar toda conceituação reducionista dos fenômenos religiosos, distanciando-se de uma crítica liberal ou iluminista sobre o assim chamado ‘obscurantismo clerical’:

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Provavelmente, Mariátegui não conhecia este trabalho do jovem Gramsci. As afinidades entre Mariátegui e Gramsci podem ser esclarecidas pela leitura do capítulo "Gramsci e Mariátegui" no livro de Francis Guibal y Alfonso Ibañez, Mariátegui Hoy, Lima, Tarea, 1987, 133-145.

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“Foram superados definitivamente os tempos de apriorismo anticlerical [...]. O conceito de religião cresceu em extensão e em profundidade. A religião não é reduzida mais a uma igreja e a um ritual. São reconhecidos nas instituições e nos sentimentos religiosos significados muito diferentes dos que ingenuamente eram atribuídos, com radicalismo incandescente, por pessoas que identificavam religiosidade e obscurantismo. A crítica revolucionária não mais regateia nem contesta as religiões, as igrejas, seus serviços à humanidade, ou seu lugar na história.” (MARIÁTEGUI, 2004, 113-135).

Certamente, não se trata de formulações sistemáticas sobre a religiosidade e a própria religião, pois, afinal, Mariátegui não é um cientista da religião, muito menos um teólogo, mas de um conjunto de fragmentos carregados de brilhantes intuições sobre a alma e a sociedade humanas. Mas nos chamam a atenção considerações como estas no início do século XX, vindas de um reconhecido revolucionário marxista. Parecem deslocadas do tempo, se atentarmos para a construção de toda uma teoria sobre a laicidade em curso principalmente na França. De qualquer forma, trata-se de um pensamento contextualizado na realidade pós-colonial da América Latina que muito contribui para o estudo da presença cada vez mais marcante da(s) religião (ões) na esfera pública em nossos dias. Seja na sua fase romântica e mística, quando encara a religiosidade como dimensão humana, seja na sua posterior fase científico-social, quando percebe a religião como um fenômeno que expressa uma forte marca identitária da cultura, Mariátegui dá uma contribuição extraordinária aos estudos de religião.87 Atualizando a posição de Mariátegui, tomemos Jules Régis Debray que nos lembra da dimensão religiosa do ser humano em sua obra Deus, um itinerário (2004), ao dizer que as religiões dizem respeito à raiz pesada das mentalidades e não apenas à história das ideias. Para ele, trata-se uma dimensão identitária e coletiva profundamente

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Esta contribuição de Marátegui e do jovem Gramsci pode ser recepcionada até mesmo para o nosso debate sobre o ensino do religioso. Estes autores utilizam a dimensão religiosa e a fé a partir de seu traço teleológico de compromisso com uma causa emancipadora e como uma disposição heróica que deposita a vida em favor de alguma coisa. A carga semântica tende ao compromisso ético de uma conduta dotada de um espírito inclinado para algo, inclusive a religião. Um pouco na direção de um ensino do religioso preferencialmente referido não mais ao saber teológico, mas sim ao saber antropológico e às expressões culturais portadores de religiosidade. E aqui já um pouco distante do lastro semântico vinculado aos textos do FONAPER, logo após a aprovação da LDB em 1996/1997, antes de o ensino do religioso ser defendido abertamente como área de conhecimento.

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inscrita na carne das sociedades e por isso deve ser objeto necessário de estudo no âmbito acadêmico e na escola pública. Não é diferente a posição de Paul Tillich: “A religião, em seu sentido profundo e universal, como elemento humano essencial, perdurará enquanto existirem homens e mulheres: ela não pode desaparecer da história humana, pois, história sem religião, deixaria de ser história humana.” (1964, 32).

Exatamente por isso, Debray se tornou na França um dos maiores defensores daquilo que ele mesmo chamou de ensino dos fatos religiosos nos currículos escolares como necessidade vital para a preservação da memória e da cultura de um povo, como ainda veremos. Nesta linha, é possível admitir a afirmação da LDB de que o ensino religioso é parte integrante da formação básica do cidadão, como ainda veremos. De qualquer forma, o tema é bastante controverso, tanto nas análises na área das Ciências Sociais realizadas na comunidade internacional quanto latinoamericana e brasileira. No Brasil, por exemplo, os autores divergem quanto ao lugar ocupado pela religião na sociedade e cultura nacionais (ORO & URETA, 2007). De um lado, diversos autores defendem que a religião possui uma importância fundamental na cultura e na conduta ética e quotidiana da sociedade, apesar do avanço da modernidade. Nesta linha, Gilberto Velho afirma que “o domínio do ‘sobrenatural’ aparece como fundamental para compreender o sistema de representações da sociedade brasileira ou do sistema cultural propriamente dito” (VELHO, 1994, 31); Emerson Giumbelli defende a opinião de que o Brasil seria um país pouco aplicado [em relação à laicidade francesa] “[...] uma vez que tendo abraçado o mesmo modelo [adotado pela França] jamais deixara de ser um ‘país religioso’” (GIUMBELLI, 2002, 54); Joanildo Burity (2000) alerta que nos últimos anos ocorreu o aprofundamento da experiência religiosa como algo pessoal, individual, íntimo, e simultaneamente uma desprivatização ou publicização do religioso como força social e política, e José Jorge de Carvalho destaca que se assiste hoje no Brasil “uma luta para ampliar a dimensão religiosa do espaço público e não por laicizá-lo”. (CARVALHO, 1999, 6). Mas diversos outros autores sustentam, como já vimos no Capítulo II, não somente para o caso brasileiro, o persistente declínio da religião, como faz Pierucci (1997a): “a secularização é irrefreável e irreversível” (PIERUCCI, 1997a, 259), e “[...] o 157


pouco que sobrou para a religião na moderna civilização ocidental [foi para] a esfera privada, íntima, e olhe lá" (PIERUCCI, 1997b, p. 103). Nesta mesma linha, temos a posição de Prandi que afirma: “se enganam os que imaginam que vivemos um momento de grande reflorescimento religioso, que nega a secularização e leva a sociedade, de novo, a entregar os pontos ao sagrado. A velha religião fonte de transcendência para a sociedade como um todo foi estilhaçada, perdeu toda a utilidade. A religião que tomou o seu lugar é uma religião para causas localizadas, reparos específicos.” (PRANDI, 1996, 273).

Ari Pedro Oro e Marcela Ureta (2007), porém, chamam nossa atenção para uma posição mais nuançada de outros autores. Assim, para Alexandre Brasil Fonseca, “somente nos últimos anos do século XX temos uma situação mais próxima de efetiva liberdade individual para as escolhas religiosas” (FONSECA, 2002, 70). Eles citam ainda o próprio Giumbelli para quem “os debates acerca da ‘liberdade religiosa’ possuem uma ‘espantosa atualidade’ e eles voltam a se dar em países como a França, [...] que pareciam ter solucionado o problema há muito tempo, ou em países como o Brasil, [...] em que aparentemente não teriam razão de ser." (GIUMBELLI, 2002, 12).

Os reflexos desta profunda secularização e suas consequências para a vida social e cultural são sentidos com maior intensidade ainda na Europa. Para Baubérot, por exemplo, “a ignorância em matéria de religião coloca em risco a transmissão do conhecimento” (BAUBÉROT, 2005, blog). Já em 1989, Philippe Joutard, então professor de História Moderna na Universidade da Provence, na França, afirmava: “a ignorância da religião pode impedir as mentes contemporâneas, especialmente aquelas que não pertencem a nenhuma comunidade religiosa, o acesso a grandes obras do nosso património artístico, literário e filosófico" (JOUTARD in BAUBÉROT, 2005, blog). Sem dúvida, a decifração do simbólico, que inclui as referências religiosas, continua a ser um ponto cego da cultura ocidental. Nós perdemos, sem o saber, o sentido do simbólico (e este é o mais grave: esta perda ou a negação do conhecimento). O simbólico constitui um elo entre a realidade que vemos e aquilo que nos escapa. No

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símbolo88, há uma realidade empírica, verificável de maneira evidente. Mas o verificável no símbolo torna-se importante porque os pequenos detalhes formados pelas suas arestas não são desprovidos de significado. Seu sentido, sua representação, para além da sua realidade empírica, constitui uma abreviatura, uma condensação de toda uma história, e, portanto, refere-se à outra coisa que não é sua empiria verificável por todos. É preciso aprender a decifrar o seu significado. Assim, é possível se criar relações para além do tempo e do espaço (BAUBÉROT, 2005, blog). Mas se há apenas as realidades verificáveis, tudo formatado de forma idêntica ou de acordo com critérios definidos aparentemente funcionais, então o sucesso material da sociedade funciona como uma falência simbólica. Há uma crise de relações. Longe de produzir uma sociedade pacífica, a flutuação generalizada de sentido, a sua instrumentação por parte da esfera do mercado, revela-se um verdadeiro bumerangue. É por isso que uma vasta gama de acontecimentos parece incompreensível. Fundamentalismos religiosos prosperam porque a sociedade global em si é uma sociedade que coloca a razão em primeiro lugar. Ela é, de repente, envolvida pelas estruturas simbólicas que ela desconhece, que ela não pode decifrar. Ela não conhece a relação dialética do conflito. E esta recusa de uma inteligência simbólica não é neutra: um processo de objetivação exige enfrentar, como dizia Max Weber, os fatos desagradáveis, o que implica uma autoanálise, um desafio. Aquela denúncia de Mariátegui, no início do século XX, contra a descredibilização da religião pela ciência moderna ocidental, possui os seus fundamentos. Esta ciência converteu-se em conhecimento uno e universal, constituiu uma poderosa e inesgotável fonte de progresso tecnológico e desenvolvimento capitalista ao mesmo tempo em que marginalizou e descredibilizou todos os conhecimentos não científicos que lhe eram alternativos, como alerta Boaventura de Sousa Santos (2010). Disso resultou uma gigantesca experiência social desperdiçada, incluindo práticas, costumes, saberes e crenças, grande parte dela profundamente arraigada em conhecimentos religiosos

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Em seu significado original, o símbolo consistiu em um pedaço de madeira cortada em dois bastões. Quando duas tribos se cruzavam, elas verificavam se a ponta que tinham cada um deles podia ou não ser encaixada à outra. Se ambas as extremidades dos bastões se encaixassem, isso significava que as duas tribos tinham a mesma origem. Elas, então, se reconheciam como aliadas. Mas se verificassem que não era esse o caso, então elas se estranhavam uma à outra e tudo podia acontecer, inclusive a guerra.

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acumulados por séculos pela humanidade. Este processo submeteu e silenciou todos os saberes não reconhecidos no âmbito da totalidade da razão ocidental. Santos (2010) nos lembra que esta não se impôs e ainda não se impõe pela força dos argumentos e dos consensos, mas pela eficácia de sua imposição, pela produtividade e pela coerção legítima, pelo seu regime de verdade Esse silenciamento não é de forma alguma casual, ele é propositadamente imposto e chega a ser uma estrutura perversa, pois circula dentro do próprio Sul, expressão utilizada por Santos (2010) como metáfora do sofrimento humano e da exclusão de povos e culturas que, ao longo da História, foram dominados pelo capitalismo e pelo colonialismo, contraposto ao Norte, o centro hegemônico deste pensamento, o pensamento eurocêntrico. Ou, como afirma Sung, ocorreu na verdade a substituição de antigos mitos e símbolos por outros mais adequados à modernidade: “O mundo moderno pretendeu substituir a religião pela razão/ciência e Deus pelo sujeito humano, por isso produziu uma visão quase que totalmente negativa em relação, não somente às religiões tradicionais que predominavam nas sociedades pré-modernas, mas a tudo que se refere ao imaginário simbólico, mitos e espiritualidades. E o resultado foi, na verdade, a produção de um novo tipo de encantamento, novos deuses e novos tipos de fé e espiritualidade (responsáveis por mortes e sofrimentos de milhões, quer para justificá-los ou para a eles se contraporem). O que mostra que nós humanos realmente somos seres simbólicos e, como tais, não podemos prescindir desses elementos nas nossas vidas.” (SUNG, 1996, 134).

Esta realidade que afeta, ao mesmo tempo, os saberes e os fazeres de diversos grupos humanos, nos exige necessariamente uma investigação no campo da epistemologia dominante no nosso mundo. Ela se fundamenta em contextos culturais e políticos bem definidos: o mundo moderno cristão ocidental, o colonialismo e o capitalismo. Assim, a produção do conhecimento, o modo como ele se faz, onde se faz e o que e para quem se faz não é exterior aos contextos sociais e políticos que o prefiguram e o configuram. Da mesma forma, a epistemologia dominante e exclusivista se construiu a partir daqueles contextos engendrados a partir de marcos importantes para a construção daquela epistemologia dominante, como o Renascimento, o pensamento cartesiano, o Iluminismo e o Positivismo. Nas palavras de Santos,

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“afirmar, pois, a exclusividade de uma epistemologia com pretensões universalizantes tem um duplo sentido: por um lado, a redução de todo o conhecimento a um único paradigma, com as consequências de ocultação, destruição e menosprezo por outros saberes e, por outro, a descontextualização social, política e institucional desse mesmo conhecimento, conferindo-lhe uma dimensão abstrata mais passível de universalização e absolutização e que possa servir de quadro teórico legitimador de todas as formas de dominação e de exclusão.” (SANTOS & MENESES (orgs.), 2010, 167).

A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer uma razão científica para considerá-la melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da arte ou da poesia. E por que não dizer da própria religião. “A razão por que hoje privilegiamos uma determinada forma de conhecimento nada tem de científica. Trata-se apenas de um juízo de valor” (SANTOS, 2008, 83), e de uma relação de poder-saber, na linha de pensamento de Bourdieu e de Foucault, como já vimos. Este debate que opõe a ciência ocidental à religião e que está intrinsecamente ligado à discussão da laicidade, como já vimos, possui no Brasil contemporâneo algumas desdobramentos interessantes. As duas vertentes acadêmicas que reconhecem a laicidade do Estado brasileiro e não admitem o ensino religioso confessional na escola pública tem dificuldades de diálogo e este é um dos fatores que tem aberto grande espaço para a vertente do ensino religioso confessional, como no caso do Estado do Rio de Janeiro. De um lado, uma das vertentes, forte em nível das Pontifícias Universidades Católicas; de outro, representantes de universidades públicas, principalmente da área de Educação, e representantes do campo jurídico. Podemos identificar estas posições com a análise feita por Giumbelli (2004), colocada no Capítulo II: na primeira, uma proposta baseada em um saber acadêmico capaz de despertar para os valores da boa convivência e do pluralismo; na segunda, desaconselha-se a presença da religião na escola, espaço aberto apenas para o aprendizado da ciência e da formação da consciência por ela formada. Em nível de encontros, simpósios ou congressos acadêmicos, muito raramente se observa os representantes destas duas vertentes participando de mesas ou debates comuns em defesa de suas posições. São raras as vezes que, nas próprias publicações, observamos posicionamentos frontalmente conflitantes. Esta postura vem 161


reforçar o pretendido silêncio/fala ausente da religião no âmbito acadêmico. Não somente as palavras, como já dizia Bourdieu, mas também o silêncio tem muito a dizer. E este não é um silêncio casual, nos remetendo mais uma vez a Boaventura de Sousa Santos (2010). Ainda se pode perceber aquela posição de que o religioso não pode estudar a religião pela exigência de uma neutralidade científica. Lembremos aqui de uma discussão ainda comum nos meios acadêmicos em torno do estudo das religiões, mas que nós podemos, de certa forma, levar também para os meios escolares. Trata-se da proposta de alguns estudiosos da necessidade de certo “ateísmo metodológico” para se garantir a neutralidade do estudo da religião do ponto de vista científico, afastando-se qualquer tipo de contágio/contaminação religiosa, em paralelo com o argumento de que a religião deve estar ausente da escola pública, pois, também pelas mesmas razões, a religião não caberia num ambiente de estudo de disciplinas científicas.89 Em vez de neutralidade científica preferimos distanciamento do objeto de estudo por parte do pesquisador ou do estudante em relação a qualquer área do conhecimento. Não cabe aqui levantar uma discussão em torno deste tema já bastante enfocado nos meios acadêmicos, considerando esta uma questão já praticamente superada. Diante do “horror do invisível”, o procedimento metodológico de uma pretensa neutralidade científica ou de ateísmo metodológico acaba justificando não uma perspectiva de neutralidade objetiva, mas de “militância anti-religiosa”, como mostra Luiz Felipe Pondé, “O ‘ateísmo metodológico’ tem pavor de adentrar uma região de experiência interna humana que simplesmente desconhece, ainda que se diga especialista nela. Não seria a não experiência do tato religioso um caso particularmente e culturalmente recente de uma ‘miséria’ da cognição?” (PONDÉ, Em busca de uma cultura epistemológica in TEIXEIRA, 2001, 57).

Na visão de Pondé, o argumento que sustentaria tal procedimento metodológico, ou seja, a exclusão apriorística da “substância” religiosa seria “uma

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Um dos primeiros autores que defendem esta tese é o italiano Giulio Giorello com a sua obra Senza Dio (Sem Deus). Uma crítica a esta posição pode ser encontrada em Sem Deus: a crítica ao ateísmo metodológico, de Vittorio Possenti, publicada no jornal Avvenire, em 05/10/2010. Uma tradução feita por Moisés Sbardelotto pode ser encontrada no sítio eletrônico do Instituto Humanitas Unisinos, acessível em <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/37103-sem-deus-a-critica-ao-ateismometodologico > acessado em 10/10/2015.

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postura essencialmente anti-religiosa na qual seria traída uma visão de experiência e vida religiosa como algo necessariamente danoso para a vivência racional e cognitivamente emancipada do ser humano.” (PONDÉ idem, ibidem: 54-55).

3.2 A necessidade de uma base epistemológica para o ensino do fenômeno religioso de acordo com uma laicidade de inteligência

Vêm da década de 50, considerações muito interessantes de Paul Ricoeur sobre a relação entre o laicidade, o Estado e a escola pública. Ele antecipa em décadas uma noção de laicidade escolar que só viria a ser definitivamente reconhecida na França já neste século com o Relatório Debray, de que ainda trataremos. Para ele, a princípio, a escola é laica no sentido de que o Estado também o é, no sentido negativo: “o Estado não tem religião. Ele é neutro porque é incompetente nesta questão; a escola também é neutra porque reflete esta neutralidade por empréstimo” (RICOEUR, 1954, 8). Mas para ele a escola não pode se limitar a esta neutralidade estatal, mesmo que esta seja importante. Ricoeur chega a dizer que “a escola estará morta se a sua única laicidade for a desta abstenção, a desta ausência do Estado no grande debate que perpassa toda a cultura ocidental” (RICOEUR, 1954, 8). Ao ressaltar a diferença conceitual entre uma escola da Nação (que inclui alunos, professores, famílias, sociedade em geral) e uma escola estatal (como simples braço do Estado), a laicidade escolar, de acordo com ele, deve se abrir ao debate e à diversidade da sociedade civil: “a laicidade de uma escola da Nação deve ser mais rica [...] que a laicidade que vem do Estado. Porque a vida cultural de um povo não é laica por abstenção, mas pela fermentação de correntes culturais diversas e contrárias; não por incompetência, mas por expansão; esta laicidade de vida e não de morte é a realidade mesma da consciência moderna que é uma encruzilhada percorrida de influências e não um lugar deserto. Sendo a laicidade do Estado negativa, por natureza, uma laicidade de exclusão, a laicidade da escola deve ser inclusiva”. (RICOEUR, 1954, 10).

É a escola da Nação que, na realidade do cotidiano, se impõe, de qualquer forma, a uma escola estatal que se pretende neutra, exclusivista e universalista. Esta laicidade viva que Ricoeur reivindica para a escola, esta laicidade que ele qualifica 163


como laicidade positiva de confrontação, colocaria os alunos e alunas na presença de todas as possibilidades espirituais de seu tempo, sob formas adaptadas às diferentes idades. Para melhor entendermos, a escola, ao mesmo tempo sendo uma instituição do Estado e da Nação, deve articular a laicidade de abstenção do Estado, que é negativa, à laicidade de confrontação da sociedade civil que, sendo positiva, “é uma laicidade dinâmica, ativa, polêmica, cujo espírito está ligado ao debate público” (RICOEUR, 1995, 195). Segundo ele, é esta laicidade de confrontação que “toma a tarefa de produzir em um determinado momento da história o desejo de ‘viver juntos’, ou seja, uma certa convergência de convicções” nas situações em que é preciso se chegar a um acordo diante das contradições encontradas” (RICOEUR, 1995, 198), ou seja, reconhecer que há disputas muitas vezes insolúveis e, portanto, reconhecer o caráter racional das partes em presença, o que vale dizer, se respeitarem. Segundo Ricoeur, a escola ocupa uma posição intermediária entre o Estado, como serviço público, e a Nação que entende como a sociedade civil que a investe com uma das funções mais importantes: a educação. E porque a escola participa também da sociedade civil, há “uma obrigação de compor com a pluralidade das opiniões próprias das sociedades modernas” (RICOEUR, 1995, 196). Para cumprir esta obrigação, Ricoeur distingue dois aspectos: um aspecto de informação e um aspecto de educação para o debate. Eis como ele argumentava em 1995 o aspecto de informação: “Eu acho incrível como que no ensino público, sob o pretexto da laicidade de abstenção própria do Estado, você nunca vê verdadeiramente, com toda a profundidade de seu significado, as grandes figuras do judaísmo e do cristianismo. Chega-se ao paradoxo dos alunos conhecerem melhor o panteão egípcio, grego e romano do que os profetas de Israel ou as parábolas de Jesus; eles conhecem todos os amores de Zeus, as aventuras de Ulisses, mas nunca ouviram falar da Epístola aos Romanos, nem dos Salmos. Porém estes textos são fundamentais para a nossa cultura, bem mais que a mitologia grega [...] Não é normal que os alunos não tenham acesso ao seu próprio passado, ao seu patrimônio cultural que comporta, além da herança grega, as fontes judaicas e cristãs” (RICOEUR, 1995, 196-197).

Porque a sociedade é diversa, é rica em tradições diferentes e, portanto, a escola é o espaço de encontro uns dos outros, trata-se da questão fundamental da alteridade. Aprender é socializar a relação com o outro, com os outros, com as outras culturas. A escola é o espaço privilegiado para o debate público. Quanto a este aspecto, Ricoeur assim argumentava: 164


“Se a laicidade da sociedade civil é uma laicidade de confrontação entre convicções bem distintas, então é preciso preparar os alunos para ser bons debatedores; é preciso iniciá-los na problemática pluralista das sociedades contemporâneas, talvez trabalhando com eles argumentações contrárias, através de pessoas competentes.” (RICOEUR, 1995, 197).

A educação para o pluralismo e para o debate: este ponto é essencial para o desafio que devemos destacar hoje para a educação escolar. Não é exatamente isso que é aprender a se situar em um universo pluralista? Não é permitir aos alunos socializar a diversidade? Não é tomar consciência e conviver com as diferenças e contradições da sociedade? Este é um dos desafios da educação escolar: reforçar a lucidez, proporcionar hábitos e ferramentas intelectuais que ajudem a compreender as implicações de nossa ação e seu significado no que se refere a grandes princípios como solidariedade, justiça, democracia, respeito às diferenças ou ao meio ambiente, por exemplo. Em síntese: pôr o dedo em nossas contradições, impedir-nos de professar grandes princípios com toda boa-fé, respeitando uns aos outros de forma flexível. Em nome desta laicidade positiva de confrontação e de uma gestão escolar menos centralizada, Ricoeur chegou a propor que todas as famílias espirituais participassem com representes nos conselhos de gestão das escolas. Preocupado em evitar, em 1954, o enfrentamento dos dois monopólios, o estatal e o clerical, Ricoeur defendia a presença de representantes de diferentes correntes religiosas e filosóficas na gestão da escola pública, fiel ao princípio de que a escola deveria ser aberta à diversidade da sociedade, não somente no seu conteúdo de ensino, mas também na gestão mesma da vida escolar. Nesta conferência de 1954, Ricoeur convidava os presentes a olharem mais além, para ver o que se fazia principalmente em outros países da Europa e nos Estados Unidos (WILLAIME, 2014). Frente a toda esta discussão sobre a laicidade da escola pública, vamos direto agora ao tema que lhe deu origem: a religião. Observamos que, se a religião é uma das falas ausentes (ou silenciadas) no discurso acadêmico, na escola também o é, sem nunca ter sido. A religião não saiu em nenhum momento e não sairá da escola, porque ela nunca esteve ausente e nunca estará completamente fora da história da fomação da 165


sociedade e do Estado brasileiros. É de reconhecimento geral que todos os envolvidos no processo docente transmitem, conscientemente ou não, ideias, valores e princípios, inclusive de cunho religioso ou anti-religioso, aos educandos e educandas, em todas as disciplinas. Afinal, se a ciência não é neutra, a educação também não o é. E os regimes de verdade também se manifestam, e se manifestam principalmente na esfera da educação. Muitos admitem o estudo da religião dentro do sistema cultural como uma história das religiões, como é a modalidade adotada pelo sistema estadual de ensino do Estado de São Paulo, que nunca foi, de fato, implementada. Mas perguntamos: por que não a sociologia das religiões? A antropologia das religiões? A psicologia das religiões? Mas Mircea Eliade já alertava para a especificidade do fenômeno religioso, considerando o que os sujeitos religiosos consideram como sagrado90, e que ultrapassa todas as abordagens particulares: “[...] um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro da sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa. Querer delimitar este fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela linguística e pela arte, etc., é traí-lo, é deixar escapar precisamente aquilo que nele existe de único, e de irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado.” (ELIADE, 1983, 1).

Trouxemos até aqui as contribuições insuspeitas de vários autores para darmos início, neste capítulo, à discussão em torno da necessidade de uma sólida base epistemológica para o ensino religioso na escola pública. Este é um evidente calcanhar de Aquiles da modalidade de ensino religioso que deseja vê-lo como área de conhecimento no Brasil. Não temos a pretensão de formular aqui esta base epistemológica, mas demonstrar a sua necessidade se se quer justificá-lo como área de conhecimento no contexto de uma sociedade secularizada e de um Estado e de uma escola laicos. Esta base epistemológica exige uma concepção de religião que escape à identificação com qualquer instituição religiosa ou partes do sistema social. Trata-se de

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Para a questão do sagrado tratado na(s) Ciência(s) da(s) Religião (ões), ver o interessante artigo de Frank Usark publicado na Revista Estudos de Religião (REVER) da PUC/SP, n. 4, 2004, disponível no site dessa revista.

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reconhecer a relativa independência do fenômeno religioso em relação às determinações sócio-econômicas, um espaço de sentido e, por isso mesmo, capaz de ter uma pluralidade de funções (GUEDES, 2012). Tal compreensão é fundamental para a questão que nos ocupa neste capítulo, os desafios epistemológicos que se apresentam às práticas educacionais, especialmente, aquelas que buscam a estruturação de uma área de conhecimento ou de uma disciplina de ensino religioso, bem como, a formação dos seus docentes. Trata-se, na verdade, de um duplo desafio: desenvolver bases conceituais tanto para constituição de um corpo teórico específico, muito possivelmente a partir das ciências da religião que, enquanto tal, encontra-se ainda em processo de afirmação, como também, de uma metodologia de ensino que articule as especificidades desta área e suas exigências pedagógicas à diversidade dos universos simbólicos e às linguagens das experiências religiosas. Como disciplina, “o ensino religioso precisa de um fundamento em uma área de conhecimento que articule o conhecimento acumulado pelos estudos das tradições religiosas e as conquistas de um Estado Laico, como por exemplo, o caráter não confessional [da educação pública], em respeito à pluralidade religiosa. [outra necessidade seria] Desenvolver uma metodologia de ensino, uma vez que integra o currículo escolar, apropriada à natureza de seu objeto e objetivos, especialmente afeitos ao subjetivo, ao imaginário e aos universos simbólicos das tradições, da cultura e religiosidade contemporâneas, o que demanda uma especial valorização e cuidado com a questão da linguagem, ou, melhor dizendo, das linguagens, seja pela natureza da experiência religiosa, seja pelas características da sociedade contemporânea.” (GUEDES, 2012, 7-8).

Para se pensar uma epistemologia das ciências da religião e, consequentemente, também do ensino religioso como sua aplicação didática, é necessário colocar os estudos no terreno do conhecimento. Isto significa levantar a questão: o que faz com que alguma coisa de verificável possa ser dita sobre o religioso? Não há dúvida de que hoje a discussão deve ser levada definitivamente para uma nova fronteira, a fronteira do epistêmico: “Trazer a religião para o ‘palco’ do conhecimento e apontar que a epistemologia se torna constitutiva e capaz de conferir à ciência da religião identidade de ciência, implica colocar a interrogação: que conhecimento se constitui capaz de dar pertinência epistemológica a esta disciplina? O que, por sua vez, coloca em discussão também a 167


questão sobre o que se pode conhecer. Neste percurso, faz-se necessário ainda perguntar que epistemologia poderá servir à ciência da religião, de modo a proporcionar-lhe a possibilidade de um trabalho científico no âmbito do existir humano, produzindo respostas que outras abordagens não o fizeram.” (FIGUEIRA, 2008, 150-151).

Os estudos sobre o fenômeno religioso têm recebido atenção por parte de várias disciplinas que se ocupam das expressões humanas. A presença da religião no espaço acadêmico e nos círculos constituídos por pensadores que, há algumas décadas, vem colocando o debate acerca da dimensão religiosa e reclamando o direito de reconhecimento desta ao lugar de ciência, não se questiona mais. Dito de outra forma, “a religião e seus estudos têm seu lugar na academia e nos círculos de estudo de pesquisadores e estudiosos, não necessitando mais, como em outros tempos, de justificativa ou pedido de licença para sua presença nestes círculos. Já perdeu relevância a simples e “surrada” argumentação de que a religião é um objeto neutro, e que já existem muitas abordagens que se debruçam sobre ela, não havendo necessidade de mais uma disciplina. Também já se esgotou o argumento de que a religião trata de uma ordem de coisas que estão no estrato intimista do ser humano e que, por essa razão, não poderá haver uma disciplina de caráter científico que dela possa se ocupar.” (FIGUEIRA, 2008, 151).

Para Figueira (2008), é necessário assumir-se os estudos do fenômeno religioso – que ele propõe como Ciência da Religião – uma disciplina acadêmica que se distingue da teologia e da catequese, não sendo, por tal razão, corretamente empreendida para promover ou impulsionar qualquer tipo específico de crença religiosa. Deverá este estudo oferecer uma visão menos restrita e menos provinciana da religião, em especifico aquela religião na qual fomos educados – e aqui entendemos não apenas os religiosos assim entendidos, mas também aqueles que foram educados como humanistas ou ateus. Um estudo além dos teístas e dos ateístas parece apresentar de forma interessante o debate acerca da manutenção ou da introdução de uma disciplina de estudos da religião, qualquer que seja a sua nomenclatura, que pretenda abordar, a partir de uma compreensão científica, a natureza e a manifestação do fenômeno religioso. Figueira (2008) traça uma linha de argumentação, que julgamos muito interessante, a partir do pensamento que Santiago Zabala expõe na Introdução do livro O Futuro da Religião, solidariedade, caridade e ironia, na verdade um diálogo entre Gianni Vattimo e Richard Rorty.

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Zabala indica, seguindo John Dewey, um dos pais do neopragmatismo, a linha de condução de sua proposição para se abordar a natureza dos estudos sobre a religião. Ele propõe que, acima de tudo, “o futuro da religião esteja ligado à possibilidade de desenvolver uma fé nas possibilidades de experiência humana e na capacidade humana de estabelecer relações, o que há de criar um sentido vital da solidariedade dos interesses humanos e de inspirar ações capazes de transformar este sentido em realidade” (VATTIMO & RORTY, 2006, 19). Significa ainda partir do princípio de que a religião como objeto de estudo se compreende como manifestação humana, visto que expressa um modelo de experiência humana, na medida em que ela faz parte da capacidade humana de construir relações que garantam a quem a vive poder afirmar que a vida faz sentido.

Para Figueira (2008), podemos então afirmar que é compreensível alguém dizer que possui uma religião e que por ela orienta sua vida. É nela – na religião – que o crente expressa suas mais profundas convicções de que vale a pena viver e que este viver tem um sentido. Religião não se fixa apenas em uma ilusão – assumindo a ideia de ilusão no seu sentido mais originário como Nietzsche a cunhou –, mas ela produz sentido e praticidade na vida e nas relações do seu fiel seguidor, apresentando-se então como uma fonte não apenas de projeção, mas também de justificação do seu cotidiano e de suas ações. É por aí que Zabala introduz o grande tema que nutre toda a conversa sobre religião nos círculos de nossas sociedades cosmopolitas da atualidade: o problema acerca da existência de Deus, do Sagrado, do Divino, seja qual for o título que se lhe dê, e de como esta assume uma forte presença nas relações humanas. Para Figueira (2008), isto significa assumir que a existência de Deus tem um peso na história da humanidade, pelo menos na história da humanidade que compõe nossa gênese cultural do Ocidente. Até mesmo o esforço da crítica religiosa, mesmo a mais radical como a nietzschiana, não foi capaz de abolir o debate sobre Deus. O melhor a se fazer, então, é considerar a existência de Deus com toda a sua influência histórica.

Assim, Figueira (2008) propõe uma disciplina curricular na regularidade das salas de aula das escolas públicas com o objetivo de produzir um leque mais alargado de testemunhos, ou como diz Rorty (1992), maior número de audiências, do que poderíamos ter de outra forma e algum entendimento sobre a evolução e as 169


questões históricas, boas ou más, das várias formas de crença religiosas existentes no mundo. Esta disciplina deveria tomar como objeto de seu trabalho a experiência religiosa produzida pelos homens e mulheres no intuito de interpretar o mundo. Deste modo, ele entende que: “o estudo resultado dos esforços do Ensino Religioso pode ajudar, de modo relevante, não só a compreender, mas identificar o pensamento religioso da geração contemporânea, ou dito de outro modo: nos ajudar a perceber como homens e mulheres em seus lugares hodiernos produzem razões para fazerem o que fazem e como fazem e este fazer produzirá ações de solidariedade capazes de nos afastar da crueldade.” (FIGUEIRA, 2008, 153).

Como já dissemos aqui antes, a questão de uma fundamentação epistemológica para a escolarização do ensino religioso está intrinsecamente ligada à discussão eminentemente política da laicidade do Estado e da escola pública. A reação de Règis Debray é emblemática neste sentido: “Agora, parece ter chegado o tempo de passar de uma laicidade de incompetência (o religioso, por definição, não nos diz respeito) a uma laicidade de inteligência (é nosso dever compreendê-lo)” (DEBRAY, 2015, 43). Philippe Gaudin em sua tese de doutoramento, publicada em 2014, comentando esta emblemática afirmação de Debray, chega a afirmar: “Esta expressão é claramente adaptada ao universo do conhecimento e de sua aprendizagem, mais do que isso, em seu sentido mais relacional que intelectual, ela pode significar em profundidade um tempo quando, depois de uma longa maturação, a laicidade perde a tensão que ela pudesse ter frente o religioso e a uma sociedade ainda largamente ancorada na religião. [...] Ela nos parece, além disso, notavelmente melhor e menos sujeita a polêmicas que outras expressões como ‘laicidade aberta’ ou ‘laicidade positiva’.” (GAUDIN, 2014, 16).

Teixeira (2007) afirma que não há como excluir a possibilidade do acesso à reflexão apropriada sobre o religioso na escola pública, levando-se em conta a importância do fator religião na sociedade brasileira e de sua relevância para a compreensão da nossa própria cultura. “E as ciências da religião constituem um canal importante para possibilitar este exercício reflexivo: de aperfeiçoamento da compreensão do religioso como objeto de cultura ou fenômeno de cultura”. (TEIXEIRA, 2007, 73). Na 170


mesma linha, a líder feminista, grande filósofa e ateia convicta, Camille Paglia, defende o estudo do fenômeno religioso na escola: “a religião é absolutamente central para a cultura e a experiência humanas e, sem ela, não seria possível entender o mundo em que vivemos, sua organização e sua história. Ainda que eu não acredite em Deus, considero as grandes religiões do mundo como sistemas que, de fato, ajudam a entender os mistérios do universo e da vida humana.” (PAGLIA, 2007).

As tradições religiosas são portadoras de um rico patrimônio espiritual que, para Teixeira (2007), justificam o seu estudo no âmbito escolar como área de conhecimento, mas, além disso, também um exercício de maior aproximação existencial, um contato mais estreito com elas, como defende Figueira (2008). Teixeira avança ainda mais na concepção do ensino do religioso em relação a Régis Debray, afirmando: “E para isso, faz-se necessário também o aperfeiçoamento do ‘tato religioso’, que favorece a superação de uma certa mentalidade que resiste em adentrar-se em esferas particulares da experiência humana, limitando-se a reduzir o engajamento vivido pelo outro a uma mera ‘rapsódia de observações exteriores e frias’. Não há como compreender o contexto histórico das religiões, desconectando-o da ‘espiritualidade’ que o anima”. (TEIXEIRA, idem, ibidem, 75).

Todos os questionamentos sobre o fenômeno religioso muito irão interessar não apenas ao estudioso das religiões, mas também aos alunos e alunas das nossas escolas. A pertinência deste estudo está justamente na compreensão da presença cada vez maior do fenômeno religioso nos espaços públicos, contrariando toda uma expectativa de seu desaparecimento desde a noção de desencantamento do mundo de Max Weber, como vimos no Capítulo II. Mas também na compreensão mais exata das religiões como experiência de fé dos sujeitos religiosos. É, pois, impossível discutir a pertinência do ensino religioso na escola pública sem atentarmos para o lugar da religião ou das religiões no âmbito público nas sociedades do nosso tempo que vivem uma profunda crise civilizacional como a nossa ou o seu significado mais profundo para o ser humano que vive esta crise.

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O lugar do ensino religioso na educação para a condição humana: a contribuição do pensamento complexo de Edgar Morin Edgar Morin percebe a necessidade de - antes de pensarmos projetos para a humanidade - pensarmos sobre a concepção de ser humano que fundamenta esse projeto, ou seja, repensar o tema da condição humana. Ele focaliza o ser humano gestado na modernidade, e como essa concepção deve ser transferida para o campo da educação, que é o espaço mais adequado para a transmissão dessas concepções. Ao repensar um projeto de reforma da educação, Edgar Morin apresenta como fundamento dessa reforma uma educação que proporcione ao indivíduo do século XXI o reconhecimento de sua condição humana e terrena.

A educação para a condição humana tem como principal objetivo situar o ser humano na sua realidade, naquilo que o condiciona, conferindo-lhe sua humanidade: “Pensar uma educação par a condição humana é pensá-la enquanto um espaço-instrumento, onde o indivíduo se volte para a realidade que o rodeia. Que ao se descobrir, descubra-se humano-terreno, responsável e aberto à lucidez de conviver com os limites de sua realidade antropológico-social.” (GUINDANI, 2006, 135).

Falar de ensino religioso nos obriga a discutir prévia e necessariamente o tipo de educação desejável para uma sociedade secularizada como a nossa. Que tipo de educação nós temos? Para que ela serve? Que tipo de educação nós queremos para a construção de um mundo melhor? Estas indagações norteiam o pensamento de Edgar Morin aplicado à educação para a condição humana, conforme vimos acima. Para ele, a escola que temos foi também uma construção da racionalidade ocidental que prevaleceu no mundo nos últimos dois séculos. Esta racionalidade não preenche e não satisfaz “toda a necessidade de infinito que existe no homem”, como dizia Mariátegui (cf. LOWY, 2005). O ser humano não consegue viver só de racionalidade, afirma Morin (1985). Ele carece também do imaginário, do simbólico. Para ele, a racionalidade deve ser entendida como um pensamento que se quer consistente e coerente, mas não pode se fechar sobre o mundo e digeri-lo. O pensamento racional é um pensamento que deve dialogar com a realidade, e não engoli-la. Não podemos colocar o mundo sob a lógica e sob a razão; a racionalidade 172


deve se abrir em um diálogo com aquilo que no mundo é irracionalizável. Para Morin (1985), o pensamento complexo não nega as formas simplistas de pensamento, nega sua reificação. O legado deve ser integrado, mas também ultrapassado. O pensamento de Edgar Morin e Boaventura de Sousa Santos surge na esteira das duas grandes viradas epistemológicas do século XX que acabou por possibilitar a admissão da pluralidade dos saberes.91 Podemos considerar, no conjunto, que o sentido geral desse processo, que abarcou boa parte do século passado, foi a incapacidade de auto-fundação das ciências exatas, aplicadas desde muito para o conhecimento e a interpretação da sociedade humana. A partir desse momento os fundamentos da ciência moderna passam a não ser considerados tão seguros e sólidos como pareciam: “Aos poucos cai o otimismo cartesiano (“ideias claras e distintas”), o empirismo de Galileu (“a experimentação”), o Novo Saber de Bacon (“saber é poder”), as leis de Newton (“as leis da natureza”), a razãopura de Kant (“a maturidade da razão”). Além disso, implodem os pressupostos do saber científico: a objetividade (por causa da interferência do observador); a neutralidade (devido aos interesses do sujeito); a decomposição do real (por conta da irredutibilidade da complexidade); a irrefutabilidade (por causa da falsificabilidade e da mudança de paradigma).” (COSTELLA & OLIVEIRA, 2010, 3).

Desta forma, supera-se o modo linear e causal de conhecer e se começa a pensar em termos de interdependência e circularidade. A partir dos anos 50, o encantamento do homem e da mulher modernos com o novo mundo de progresso do pósguerra e o seu afastamento dos problemas decisivos para uma autêntica humanidade levaram a uma crítica cada vez mais radical da irredutibilidade dos saberes do mundo vital às linguagens científicas e à sua pretensa superioridade. É neste contexto que, a partir dos anos 70, a Epistemologia tende a superar toda forma de dicotomia, típica da modernidade ocidental. Um novo paradigma começa a se impor superando aquelas radicais distinções: natureza/cultura, natural/artificial, mente/matéria, subjetivo/objetivo, animal/ser humano (COSTELLA & OLIVEIRA, 2010). É neste contexto que Edgar Morin elabora as suas intuições do pensamento complexo. 91

Em contraste com a primazia relegada ao saber científico, o século XX viu surgirem as duas viradas epistemológicas que prepararam o caminho de superação do racionalismo moderno, de que o pensamento complexo de Edgar Morin é um dos grandes expoentes. A primeira virada amadureceu nos anos 30, no terreno da física e da matemática com a teoria da relatividade de Einstein, a física quântica e o princípio de indeterminação de Heisenberg; a segunda configurou-se a partir da década de 50 no campo da filosofia, a partir da publicação da obra de Edmund Husserl (1859-1938), A crise das ciências europeias.

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Para Morin (1985; 2011), o primeiro desafio é ir além das aparências, e enfrentar o desafio da complexidade. A complexidade surge como um desafio, com a incerteza, a confusão. O grande problema é tentar formular um pensamento capaz de trabalhar com a incerteza. Como a palavra complexus - tecido em conjunto - a complexidade é um emaranhado de coisas, um verdadeiro nó de que não podemos desatar o fio. A complexidade vai na contramão da nossa concepção da inteligibilidade, especialmente como faz o pensamento cartesiano. Por isso, para Morin o ser humano é homo complexus. Mas o que é este homo complexus? O que é a complexidade humana? Ele parte da crítica ao paradigma antropológico que, de forma binária, separa e opõe as noções de ser humano e de animal, de cultura e de natureza, procurando formular uma “antropocosmologia” (COSTA, 2005). Daí as diversas indagações pelo ser humano que se humaniza no mundo. Mas esta humanização é truncada por este mundo fragmentado em três estratos sobrepostos e que não se comunicam: ser humanocultura/vida-natureza/física-química. A humanização autêntica se daria no cosmos que é “a totalidade complexa físico-biológica-antropológica, onde a vida é uma emergência da história da Terra, e o homem, uma emergência da história da vida terrestre” (MORIN, 2002, 40; BOFF, 2009). A animalidade e a humanidade constituem juntas a nossa condição humana (COSTA, 2005).

Aquela humanização truncada aplicada à educação formal, na maioria das vezes, privilegiou a racionalidade e ignorou as aptidões imaginárias, lúdicas e míticas. O positivismo lógico92, herdeiro mais recente dessa racionalidade cartesiana, permaneceu “prisioneiro de uma concepção que reduzia o conhecimento a uma observação da experiência e a ação a um comportamento observável” (LACOSTE, 1992, 128). Por que o ensino é totalmente programado e fragmentado? Por que não fazer dele um lugar, também, para o inesperado e o uno?

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Por que a escola é cada vez mais o lugar onde

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Por positivismo lógico ou neopositivismo se entende a teoria formulada inicialmente pelo Círculo de Viena a partir de 1922 atingindo seu auge nos anos 30 do século passado. O positivismo lógico defendia uma filosofia antimetafísica, estreitamente ligada às ciências da natureza, à lógica e à matemática, exclusivamente com base no empirismo. Ele exalta primazia do saber científico: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”, afirmara o primeiro Wittgestein (1889-1951), membro do Círculo de Viena. 93 A visão holográfica do pensamento complexo abre nova perspectiva aos educadores. Não se trata somente de inverter o foco do binário parte-todo, mas de acrescentar o movimento de religação ao conjunto desmontado, à totalidade fragmentada “trata-se de atuar em duas direções opostas: contexto e unidade simples (todo e parte), estabelecendo a interligação dinâmica” (SANTOS, 2008, 73).

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menos se aprende e se apreende outras dimensões não experimentáveis e observáveis da vida humana? E é justamente na escola onde aprendemos a não ver interdependência. Trata-se de um conhecimento fragmentado que leva a uma visão de mundo também fragmentada, disciplinada, em gavetas como nos diz Sung (2002).

Este modo de pensar levou à divisão do conhecimento em diversos saberes ou áreas e produziu especialidades que são importantes, mas que nos conduziram ao predomínio de uma visão mecanicista, quantitativa e formalista que sempre foi um risco para a condição humana quando “ignora, oculta ou dilui tudo que é subjetivo, afetivo, livre, criador” (MORIN, 2002, 15, nota de rodapé.). É ao que Paulo Freire se referiu como uma educação bancária na sua obra Pedagogia do Oprimido.

Morin propõe uma nova epistemologia para a aprendizagem escolar com base no “aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser” (MORIN, 2001). Esta proposta poderá superar o paradigma cartesiano e considerar a uno-diversidade do ser humano e o desenvolvimento de uma consciência lúcida nesse sentido como pilares fundamentais para uma educação para a condição humana (COSTA, 2005). O aprender a aprender e o aprender a fazer se ajustam perfeitamente aos objetivos de uma educação laica que busca a autonomia dos sujeitos. O aprender a ser e o aprender a conviver buscam respetivamente, a valorização da identidade e da alteridade dos sujeitos, na perspectiva de uma sociedade secular, mas que seja autêntica e solidária, como veremos no próximo capítulo.

Ao considerar o aspecto mítico do ser humano, Morin introduz o tema da noosfera que diz respeito ao “mundo vivo, virtual e imaterial, constituído de informações, representações, conceitos, ideias, mitos que gozam de uma relativa autonomia e, ao mesmo tempo, são dependentes de nossas mentes e de nossa cultura” (MORIN, 2002, 53-54). A proposta é a de que a separação, advinda desta autonomia, não seja uma oposição, e sim que se conceba essa autonomia em um espaço comum, na perspectiva de um trabalho de tradução94 proposto por Santos (2010). Este trabalho de

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O princípio da incompletude de todos os saberes, considerados científicos ou não, é a condição da possibilidade de diálogo e debate epistemológicos entre diferentes formas de conhecimento. Para isso, o trabalho de tradução é o procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências e saberes do mundo, tanto os disponíveis quanto os possíveis. A ideia e a sensação da carência e da

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tradução permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, inclusive as religiosas, tanto as disponíveis como as possíveis, presentes e futuras. Ele procura desconstruir e reconstruir, captar a relação hegemônica entre as experiências e o que nelas está para além desta relação. “E neste duplo movimento, que as experiências sociais se oferecem a relações de inteligibilidade recíproca que não redundem na canibalização de uma por outras” (SANTOS, 2010, 124). Morin (2000) afirma que os saberes sobre os mitos seculares e as religiões seriam orientados para o destino mítico-religioso do ser humano. De fato, as religiões, mitos e ideologias devem ser considerados em sua ascendência sobre as mentes humanas, e não mais como ‘superestruturas’, constituindo uma nova disciplina. Ela teria um objetivo todo especial, ou seja, sistematizar as contribuições feitas por outras disciplinas e desenvolver temas e experiências que precisam de uma atenção especial. Para Jung Mo Sung, não há uma formação para a cidadania em nossos dias sem a compreensão adequada dos mitos que norteiam os valores do grupo social a que pertencem alunos e alunas, e sem o respeito pelos mitos e valores de outros grupos étnicos ou culturais. Nesse sentido, é importante destacar que o estudo dos mitos seculares e do fenômeno religioso é, sem dúvida, uma parte importante daquilo que Morin chama de noologia (SUNG, 1996, p. 155). Morin (2000) afirma que essa alvissareira disciplina, a noologia está ainda por ser construída ou, diríamos nós, os trabalhos dessa área, que já existem, continuam muitas vezes imperceptíveis, precisam ser mais conhecidos e desenvolvidos, pois padecem também de um silenciamento nada casual. Cabe bem aqui a aplicação da sociologia das ausências, proposta por Santos (2010), ou seja transformar as ausências em presenças a partir dos fragmentos da experiência social não socializados pela totalidade metonímica. Vale dizer, o objeto impossível do conhecimento da religião como possível na realidade das nossas salas de aula. Certamente esta alvissareira ciência se situa em um novo paradigma nascente que corresponde ao que Santos (2010) chama de pensamento cosmopolita, uma

incompletude criam a motivação para o trabalho de tradução, que, para prosperar, tem de ser o cruzamento de motivações convergentes originadas de diferentes culturas ou saberes.

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racionalidade que dê conta da diversidade epistemológica do mundo e que, para ele, não se dará ao sabor das casualidades, mas tem de ser também ativamente construída. Para ele, a razão ocidental se reivindica como a única forma de racionalidade e, assim, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade, ou se faz isso, o faz apenas para tornar esses outros tipos de racionalidade como matéria-prima para os seus interesses hegemônicos. Por isso, vai denominá-la de razão metonímica. 95 O pressuposto da proposta de Santos é saber que esta razão metonímica não conseguiu com pleno êxito arrastar todas as identidades para dentro das relações dicotômicas. Ficaram partes destas identidades não socializadas pela ordem da totalidade.96 Como ele afirma, “estes componentes ou fragmentos não socializados pela ordem da totalidade [...] tem vagado fora dessa totalidade como meteoritos perdidos no espaço da ordem e insusceptíveis de serem percebidos e controlados por ela” (SANTOS, 2010, 102). Tais identidades, de acordo com Mignolo (2003), foram submetidas à lógica da colonialidade do poder97 - hegemonia eurocêntrica do conhecimento, que conseguiu silenciar sociedades que não foram ouvidas na produção do conhecimento. No entanto, sistemas marginais de pensamento foram construídos no espaço colonial, que Mignolo (2003) denomina de pensamento liminar. E nós acrescentaríamos: também os sistemas de pensamento que se tornaram marginais no decorrer da crescente hegemonização totalitária da racionalidade ocidental, inclusive os saberes religiosos de tradição milenar. O grande desafio e a grande tarefa da educação deste novo milênio seriam exatamente ajudar as mentes a se movimentarem na noosfera, entendendo que religiões, mitos e ideologias são meios de comunicação, mas também podem tornar-se meios de ocultação e silenciamento. E quase sempre o são. Para isso, será mais que 95

Santos (2010) ainda denuncia a razão ocidental como indolente, pois se ela recusa a se exercer ao pensar que nada pode fazer contra uma necessidade que está fora dela e nem sente mesmo necessidade de exercerse porque se considera totalmente livre e, por conseguinte, livre de demonstrar a sua própria liberdade. Ela ainda se afirma como exaustiva, exclusiva e completa, mesmo sendo apenas uma das lógicas de racionalidade existentes no mundo e seja apenas dominante nos estratos da compreensão do mundo constituídos ou influenciados pela modernidade ocidental. Ao contrário desta racionalidade assim totalitária, Santos (2010) propõe outra racionalidade que ele vai chamar de racionalidade ou razão cosmopolita. 96 Na visão de Santos (2010) esta totalidade estabelece uma espécie de ordem já que o todo tem absoluta primazia sobre as partes que o compõem, existindo assim somente uma lógica que governa o todo e as partes. Entre o todo e as partes existe uma homogeneidade, sendo a dicotomia a forma mais acabada de totalidade combinando a simetria – horizontal que esconde a vertical – com a hierarquia entre as partes. 97 Por colonialidade do poder, Mignolo (2003) entende a invisibilidade das formas de conhecimento anteriores ao projeto moderno, contando com o totalitarismo epistêmico teológico e científico. Neste mesmo sentido, Quijano (2005) defende que esse empreendimento foi possível na América a partir da ideia de raça que outorgou legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista, ou seja, uma suposta estrutura biológica que situava uns em situação natural de inferioridade em relação aos outros.

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necessário uma ecologia dos saberes que possa substituir a monocultura do saber e do rigor científico, adotados pela educação que temos hoje: trata-se de “um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da globalização contrahegemônicas e pretendem contribuir para as credibilizar e as fortalecer” (SANTOS, 2010, 154). 98 No ser humano, “o desenvolvimento do conhecimento racionalempírico e técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético” (MORIN, 2001, 59) Ele sobreviveu nestes dois últimos séculos como partes das identidades não socializados pela ordem da totalidade, como já disse Santos (2010). Mas sobreviveu, permaneceu nas margens... Será a partir dele que uma ecologia dos saberes é possível também na área da educação. Aqui, a cada passo, é crucial perguntar se o que se está aprendendo é válido ou se deverá ser desaprendido. 99 Falando da necessidade de uma ciência antropossocial religada, que concebesse a humanidade em sua unidade antropológica e em suas dimensões individuais e culturais, Morin (2005) reconhece que essa religação ainda está fora do alcance das ciências e que por isso é importante que o ensino de cada uma delas fosse orientada para a condição humana. Ao denunciar a insuficiência dos princípios tácitos na estrutura organizacional, influenciando atitudes e um modo de pensar e ensinar em toda a comunidade educacional, a complexidade e a transdisciplinaridade constituem um corpo teórico que possibilita o resgate do elo perdido, o sentido do conhecimento para a vida. Um sistema conceitual que, segundo o próprio Edgar Morin (2005), no momento em que é lançado ao mundo sofre o jogo das ações e interações e segue direções inesperadas, muitas vezes até contrárias às intenções dos autores. A esse jogo de ações e interações Morin (2005) chama de “ecologia da ação”, o que significa que o conhecimento é dinâmico, mas também sofre o fenômeno do “reducionismo”, como ocorreu, por exemplo, com a pedagogia libertadora, que se transformou em “método Paulo Freire”,

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Célio Turino utiliza uma expressão semelhante na sua obra Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima (Garibaldi, 2009). Ele fala da necessidade de desesconder uma multidão de saberes espalhados pelo mundo que fazem seu trabalho à margem das diversas hegemonias constituídas - econômicas, sociais, políticas, culturais e religiosas. Para ele, por exemplo, existe um Brasil que quer ser “des-silenciado”, quer ser visto e se fazer ouvir. 99 A ignorância é apenas uma forma de desqualificação quando o que está sendo aprendido é mais valioso do que o que está sendo esquecido. A prudência, que subjaz à ecologia de saberes, se baseia em aprender novos, diferentes e estranhos saberes sem necessariamente ter de se esquecer dos anteriores e os próprios.

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omitindo sua fundamentação e sendo preenchida com conceitos da pedagogia tradicional, que é o senso comum (SANTOS, 2008, 71-83). Por tudo isso é imperioso que o estudo da complexidade humana seja uma das vocações da educação do século XXI, e para isso é necessária e urgente que esta religação dos saberes seja colocada na ordem do dia das nossas sociedades (MORIN, 2001). Segundo Morin, “o ensino pode tentar, eficientemente, promover a convergência das ciências naturais, das ciências humanas, da cultura da humanidade e da Filosofia para a condição humana” (MORIN, 2002, 46). Enfim, educar para a condição humana é, antes de tudo, buscar compreendê-la, vislumbrando a possibilidade de uma vida melhor. É reconhecer a cultura humana em sua complexidade e respeitá-la, possibilitando, assim, a continuidade dessa construção iniciada há milhões de anos.

Este novo horizonte epistemológico, que aceita e exige a pluralidade de saberes, abre a possibilidade e a necessidade do estudo dos saberes e das experiências religiosas, a partir do momento em que estas entraram fortemente na agenda do mundo globalizado, constituindo um dos seus componentes sociológicos mais importantes da atualidade. Enquanto na modernidade, a religião foi jogada na esfera privada das escolhas pessoais, como já vimos, “na pós-modernidade, ela passou a ocupar um lugar cada vez mais presente na esfera pública, exatamente ali onde as estruturas políticas da sociedade civil são convocadas a renegociar e gerir os princípios e os valores da convivência humana” (COSTELLA & OLIVEIRA, 2010, 4).

Esta nova epistemologia proposta por Morin em que “só devemos crer em crenças que comportem a dúvida no seu próprio princípio” (MORIN, 1986, 277), coloca em xeque não apenas aquele ensino religioso que se resume a ser defensor de verdades ou certezas absolutas, mas também diversas outras posturas educacionais que ainda estão presas ao raciocínio cartesiano como, por exemplo, quaisquer tipos de concepções fundamentalistas sobre o mundo, a sociedade, o ser humano e a própria religião. E é bom lembrar que hoje vai se imponto cada vez mais uma visão de religião que não seja uma verdade absoluta. Diversos teólogos, como Paul Tillich, 179


defendem ser parte da essência da fé a possibilidade da dúvida; em caso oposto, qualquer crença se tornaria demoníaca e idólatra. Juan Luis Segundo, um dos maiores teólogos latino-americanos do século XX, vai nesta mesma direção quando discute a busca por um sentido da vida como um ato de fé, uma verdadeira aposta: “A fé é entendida aqui em uma dimensão antropológica [...], não é algo dogmático, não é sinônimo de certeza, muito pelo contrário, ela constitui um componente indispensável – uma dimensão – de toda existência humana” (SEGUNDO, 1985, 31). Para Costa (2005), esse pensamento representa uma análise teológicosimbólica parecida com as intuições de Morin. Ao reassumir essa perspectiva, a aprendizagem escolar do fenômeno religioso estará assumindo a condição humana e contribuindo para o resgate do humano em sua enorme complexidade. Neste sentido, estará reconhecendo a importância dos saberes e da experiência religiosas como elementos constitutivos do humano, bem como sua importância como expressão cultural da sociedade secularizada. No entanto, sua maior contribuição, indispensável mesmo a nosso ver, será para o conhecimento e a aceitação do outro (alteridade), como veremos no próximo capítulo, na perspectiva de construção de uma sociedade melhor, mais madura, mais autônoma, inteligentemente laica e democrática. Mais uma vez queremos reafirmar aqui que não se pode separar o estudo do fenômeno religioso do princípio da laicidade. Eles se implicam mútua e necessariamente. Mesmo que ainda estejamos no limiar de um novo paradigma epistemológico, o conhecimento noosférico integrado ao projeto de uma religação dos saberes exige uma visão da laicidade nos novos termos colocados no Capítulo II e esta, por sua vez, exige o conhecimento cada vez mais aberto, amplo e cosmopolita na perspectiva defendida por Santos (2010). É neste sentido que Debray chega a afirmar que “a laicidade não é uma escolha espiritual entre outras, mas é aquilo que torna possível a coexistência [das pessoas], pois tudo aquilo que é comum de direito a todos os homens deve prevalecer sobre tudo aquilo que os separa de fato. A faculdade de aceder à globalidade da experiência humana [...] implica [...] no estudo dos sistemas das crenças existentes.” (DEBRAY, 2015, 39).

Por outro lado, o ensino do religioso, necessário aos novos parâmetros da educação colocados por Morin para o século XXI e perfeitamente integrado a uma 180


nova perspectiva da laicidade já descrita aqui por vários autores, não pode descartar nem silenciar as esferas particulares da experiência humana, mesmo não assumindo um caráter catequético e proselitista. Costella & Oliveira, tecendo uma crítica bastante subliminar, no interessante artigo a que estamos fazendo referência, depois de ressaltarem positivamente diversas considerações de Regis Debray sobre o ensino do religioso nas escolas públicas da França, chegam a afirmar que: “É melhor deixar de lado as noções de fato ou fenômeno religioso, próprias ao método das ciências empíricas, e tomar aquela de experiência religiosa, que, como tal, subtrai-se a toda determinação em termos de objeto e nos permite entender melhor as noções de horizonte unificante e raiz comum.” (COSTELLA & OLIVEIRA, 2010, 5).

Certamente esta preferência pela noção de experiência religiosa e não pela de fenômeno religioso se refere à noção de fato religioso, basilar no relatório Debray, mas que esses autores não chegam a discutir. Neste documento, entregue por Régis Debray ao Ministro da Educação francês Jack Lang, em 14 de fevereiro de 2002, encontramos diversas propostas que levariam o governo francês, a partir daquele ano, a implementar uma série de medidas para implementar o ensino dos fenômenos religiosos nas escolas públicas do país. Este texto é conhecido como Relatório Debray e é ponto de referência obrigatório atualmente em qualquer discussão sobre laicidade e ensino religioso não apenas na França, mas em todo o mundo.

Em primeiro lugar, não podemos debitar somente a Debray esta noção de fato religioso e nem imaginar que ela se deteve apenas no seu relatório. Uma enorme produção intelectual tem se desenvolvido na França desde aquela época, avançando consideravelmente na amplitude do que se deve considerar como fatos religiosos, pari passu com novas abordagens e propostas sobre a laicidade pública, dentro e fora da academia, como já foi visto no Capítulo II. O aprofundamento deste conceito tem envolvido não somente a academia, mas cada vez mais também a esfera pública, administrativa e educacional. A sua escolha não foi casual, nem obedeceu simplesmente a uma preferência pelo método das ciências empíricas, como veremos a seguir. Ela abarca também a experiência religiosa dos crentes e reconhece o seu âmbito próprio na condição humana. Nas palavras de Borne e Willaime,

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“Falar de fatos religiosos não significa reduzir o estudo dos fenômenos religiosos aos aspectos materiais e visíveis deles mesmos. É [também] recuperar manifestações sociais, práticas e fazeres de sentido. O estudo do religioso como fato coletivo, a análise do religioso através de suas nuances e de suas práticas, implicam evidentemente a exploração de significados, a exploração dos sistemas de sentido que constituem os mundos religiosos.” (BORNE & WILLAIME, 2007, 44).

Baubérot reage de uma forma mais contundente: “Eu posso ver nesta crítica de cientificismo [do ensino dos fatos religiosos] um desejo de colocar a religião fora da investigação científica. [...] Se dissermos que a religião vai além da ciência, isso é válido para todas as realidades humanas. A sexualidade, por exemplo, vai além da investigação científica, bom, mas a escola não pode ensinar o amor como um sentimento... Ela será necessária para ensinar Anatomia, o que podemos saber sobre a sexualidade, contracepção, etc. Existe uma distância entre a formação científica e, depois dela, aquilo que todo ser humano vive e sente, os sentimentos, as emoções, etc. Então, por que insistir nesta distância para a religião? O ensino [do religioso] não se destina a substituir a experiência pessoal. Destina-se a dar conhecimento. Bom, mas ele não pode substituir a experiência religiosa que é pessoal. Na verdade, houve um tempo em que a ciência realmente talvez fosse extremamente racionalista. Mas hoje, por exemplo, precisamente os avanços da antropologia, a abordagem antropológica (do religioso) não é uma abordagem tão racionalista, é uma abordagem, até pelo contrário, mais compreensível em comparação com os fenômenos que estuda. Eu entendo que essa crítica se refere a um estágio da ciência já um pouco ultrapassado e não ao estágio da ciência atual. A abordagem científica atual me parece mais ampla do que na era do grande racionalismo. (BAUBÉROT, entrevista para o autor, 21/05/2015).

Para Danièle Hervieu-Léger, a sociologia assume seu reducionismo social, mas reconhece que esta abordagem não esgota a realidade do fenômeno religioso e que o psicólogo e o teólogo podem fazer outras abordagens. Esta sua observação pode nos levar a duas perguntas interessantes:

“A verdade sobre a religião é o produto da soma de todos os reducionismos que podemos fazer sobre este tema? Não podemos fazer uma sociologia de maneira não-reducionista? Para a primeira pergunta, devemos reconhecer unicamente que a verdade está no horizonte e que um fenômeno como a religião é inesgotável. Entretanto, valorizar este caráter inesgotável supõe aceitar outras abordagens possíveis, o que não é forçosamente fácil ou possível na escola. Para a segunda questão, seríamos tentados a chamar estas outras abordagens de dissidentes ou insólitas em sociologia da religião e que não seriam reconhecidas, sem 182


dúvida, por um reducionismo assumido ao social, mas valorizariam a dimensão de vida e da experiência humanas.” (HERVIEU-LÉGER, 1990, 9).

Willaime aprofunda este debate, deixando claro que o estudo racional e científico do fenômeno religioso não esgota toda a riqueza humana que ele contém: “Durkheim compreendeu isso muito bem, ao dizer que não deve existir abordagem intelectualista sobre fenômenos religiosos, é preciso ter uma abordagem sensata como um fato social e cultural. Isso se traduz pelas maneiras de conceber a vida e a morte, a alegria, a felicidade e a infelicidade, o sofrimento. É uma formatação simbólica da existência. Depois, há representações, há práticas, ritos. Representações e ritos que fazem sentido para pessoas de qualquer religião, para os fiéis, católicos, muçulmanos, budistas, e no Brasil o candomblé e os cultos tradicionais, quando isso faz sentido para as pessoas. Se o intelectual racionalista vem dizendo ‘mas é simplesmente... estas pessoas são alienadas, são supersticiosas’, esta é uma abordagem insuficiente. É preciso compreender que estas pessoas podem ser perfeitamente racionais e, ao mesmo tempo, ter representações que as ajudam a viver, que as ajudem a conceber a vida, a conceber a morte, a dar sentido ao sofrimento, e enchendo algumas das várias funções antropológicas e sociológicas.” (WILLAIME, entrevista para o autor, 24/06/2015).

Willaime aponta o equívoco de reduzir o fato religioso às suas dimensões econômicas, objetivantes ou a uma abordagem racionalizadora, como frequentemente é abordado nas aulas de História, Sociologia e outras disciplinas do currículo. Ou mesmo nas aulas de ensino religioso conforme alguns programas como no estado de São Paulo onde o ensino do religioso é reduzido claramente ao ensino da história das religiões. Trata-se de um fenômeno muito mais complexo. É preciso vê-lo além do seu aspecto científico. É preciso considerar os fatores históricos, econômicos, sociais, culturais, mas é preciso jamais reduzi-los a estes aspectos. Há determinações econômicas, sociais, culturais, mas os fatos religiosos devem ser estudados nas suas singularidades, nas suas especificidades, o que significa ultrapassar esta dimensão material. Daí para Willaime cabem e são admissíveis até mesmo a teologia, a ética e os sistemas simbólicos na busca da compreensão do que a religião significa para as pessoas: “[É preciso] Ir ainda mais longe ao considerar o sistema teológico, estudar os sistemas teológicos, estudar as normas éticas, ver os sistemas simbólicos, como eles se manifestam e o que isso corresponde para os fieis que compartilham estes mundos simbólicos, que compartilham estas representações, que praticam estes ritos ou estas diversas festas. Portanto, eu insisto cada vez mais sobre o fato de que os sistemas 183


religiosos são formas simbólicas da condição humana, integrando a vida, a morte, a felicidade, a infelicidade e que são transmitidos de geração em geração, com todo tipo de transformações. E eu penso que existe uma fecundidade no reencontro das abordagens sociológicas e antropológicas. Os antropólogos nos ensinaram a prestar mais atenção às singularidades. Eles nos ensinaram a não esmagar ou reduzir o religioso a uma abordagem macro: macrossocial, macrossociológico, mas estar atento ao micro”. (WILLAIME, entrevista para o autor, 24/06/2015).

De qualquer forma, uma visão estreita e reducionista de neutralidade científica não deixa de ser um risco para a abordagem do fenômeno religioso como área de conhecimento na escola pública. Isto já foi apontado por João Décio Passos (2007) ao analisar as modalidades de ensino religioso adotadas pelos diversos sistemas de ensino no Brasil. Qualquer conhecimento, de acordo com o projeto político-pedagógico da escola, levará, com certeza, a uma postura diante de si mesmo, diante das outras pessoas e da própria sociedade, se se quer que a escola seja um espaço de formação e não apenas de instrução. Isso ocorre também com o ensino do fenômeno religioso, como ainda veremos principalmente no último capítulo. Jung Mo Sung sintetiza e conclui bem esta discussão, afirmando o seguinte: “Muitos dos equívocos com respeito às tradições religiosas e espirituais consistem exatamente no erro de considerar a linguagem religiosoespiritual simbólica como descrições científicas de um mundo sobrenatural. Tanto os que defendem ardorosamente a religião como uma ciência do sobrenatural quanto os que a depreciam como uma péssima ciência, como uma ciência para as crianças e os ignorantes, cometem o mesmo erro de não perceber a especificidade da linguagem simbólico-religiosa.” (SUNG, 1996, 143).

Ir além destas verdadeiras possibilidades de um trabalho de tradução, como entendido anteriormente, seria abandonar o ensino do religioso como área de conhecimento e se adentrar em uma esfera muito específica que, com certeza, reacenderia a polêmica em torno do proselitismo e da catequese em um espaço estatal. Seria se adentrar em uma área que passa a ser reivindicada pela educação religiosa, distinta do ensino do religioso. E educação religiosa como um direito das famílias e das comunidades religiosas, no espaço, este sim, privado por direito e não por uma obrigação imposta por

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uma determinada visão política de laicidade. Debray tem uma afirmação muito direta neste sentido: “ensino do religioso não é ensino religioso” (DEBRAY, 2015, 23).

É necessário lembrar que toda esta elaboração é fruto de uma longa experiência histórica nacional francesa e se desenvolve em um contexto social e político muito particular que tem a laicidade como pedra angular da República, com certeza bem diferente do de outras sociedades, como a do Brasil. Mas nem por isso deixa de dar a sua contribuição para a discussão desta mesma agenda em outras sociedades.

Acreditamos que a política de educação francesa do estudo dos fatos religiosos na escola pública segue o caminho apontado por Morin (2002) para uma educação para a condição humana. A racionalidade deve se abrir em um diálogo com tudo aquilo que no mundo é irracionalizável. E o fático do religioso reconhece seus limites diante do que é irracionalizável, não o descarta, mas o integra à condição humana. O ensino dos fenômenos religiosos na França utiliza métodos científicos, mas não encerra a discussão por aí como se o observável e o demonstrável fossem a última palavra da realidade humana. Ele reconhece a autonomia da noosfera no espaço comum do palpável e do empírico e reconhece a sua importância e a sua necessidade para um ser humano melhor e para uma sociedade melhor. Assim, este objeto de estudo na escola – os saberes religiosos – estará comprometido na busca de credibilidade para aqueles conhecimentos não científicos de uma cultura cosmopolita no rumo de uma diversidade que substituirá a monocultura do saber e do rigor científico da globalização hegemônica que estamos vivendo. Neste sentido, se a religião já foi ou continua sendo referência de dominação e opressão, ela também já foi e continua sendo referência para resistências de todo tipo para a construção de um mundo mais humano e solidário. Se as culturas locais e as experiências religiosas são fundamentais para se pensar e praticar um outro mundo possível, não é salutar pensar um projeto político-pedagógico sem considerar o imaginário religioso de todos os atores envolvidos.

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3.3. O Relatório Debray como referência para o ensino do religioso na escola laica

Na França, desde o final da década de 1980, existe uma grande preocupação em relação ao declínio e ao desaparecimento de uma cultura religiosa nas camadas mais jovens da população. Já em 1988, Lionel Jospin, então ministro da Educação da França do governo socialista, pedira a Philippe Joutard um relatório sobre o tema. Entre outubro de 89 e março de 90, realizou-se um ciclo de conferências no Liceu Buffon, sob o título Religião e Sociedade, por iniciativa do diretor do estabelecimento Maddy Noin-Ladanois e de Danièle Hervieu-Léger, socióloga das religiões no Centro Nacional da Pesquisa Científica. Estas conferências deram origem a projetos de ação educativa organizados pelos professores de história sob o tema O que você diz sobre a tolerância? Elas resultaram também em uma publicação com um título bastante sugestivo A religião no liceu, conferências no Liceu Buffon, editado em 1990 pelas Éditions du Cerf.

Em 20 e 21 de novembro de 1991, Philippe Joutard, já nesta época reitor da Universidade de Besançon, reuniu um colóquio, organizado pelo Centro Regional de Documentação Pedagógica (CRDP), para discutir a proposta de se ensinar História das Religiões, mas descartando a criação de uma disciplina à parte. Este colóquio deu origem ao Relatório Joutard,100 considerado uma figura tipo ‘mito fundador’ desta discussão na França (GAUDIN, 2014). “Este colóquio foi, sem dúvida, a primeira manifestação pública de importância para a atual política pública do ensino dos fatos religiosos na França. Seu relatório possui verdadeiro valor de um documento histórico e foi objeto de uma publicação à época” (GAUDIN, 2014, 77). Tratou-se do primeiro grande passo nesta reflexão na França. Seu texto propunha a abertura do currículo a uma dimensão de inteligibilidade da história onde a dimensão do imaginário e do simbólico estivesse mais presente e não apenas a criação de um novo capítulo sobre o fenômeno religioso no programa de cada disciplina.

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De fato, este relatório é apenas uma pequena parte de um relatório bem mais amplo que englobava toda a arquitetura do saber – ciências da natureza e ciências humanas e sociais inclusive – e como ensinar na escola do século XXI. Uma subcomissão trabalhou especialmente a questão da história das religiões, considerada uma das lacunas no ensino de história. Esta comissão foi composta por personalidades que representavam diferentes visões religiosas e acadêmicas como Jean Baubérot, Jean Chélini, Bernard Phan, Henri Ourman e Michel Sot, além do próprio Philippe Joutard (GAUDIN, 2014, 65).

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Percebe-se, nas conclusões deste relatório, que se tratava antes de preencher um imenso desconhecimento em matéria religiosa, em nível da história dos conceitos, do conteúdo das crenças e das práticas religiosas, desconhecimento grave do ponto de vista de tornar incompreensível muitos dos aspectos da herança cultural e algumas situações geopolíticas contemporâneas. Ele propunha que o ensino da história das religiões deveria ser inserido como um tema transversal nas disciplinas de História, Geografia e da Educação Cívica, sem se criar uma disciplina separada, mas com o objetivo de mostrar “a importância do fato religioso na história, sua permanência no mundo contemporâneo [...] sublinhando a inserção do religioso na vida cultural e na civilização do cotidiano, através de exemplos concretos que faziam a diferença na vida dos homens: o calendário, as festas, os [próprios] nomes das pessoas, a arquitetura e os signos, as grandes etapas da vida, a família, etc.” (JOUTARD apud BORNE, 2005, 44-45).

Gaudin (2014) lembra ainda da importância da Nota de Jean Lambert, em 1990, em razão da qualidade de sua arquitetura conceitual e devido ao fato de ser bastante emblemática pela maneira particular de pensar a laicidade. Mas ela não alcançou a notoriedade do Relatório Joutard nem do posterior Relatório Debray. Ele nos chama a atenção pela sua visão de conjunto, destacando as questões decorrentes da emigração na França. Este documento discute a ideia fundamental da laicidade de abstenção diante dos fatos religiosos que já não podia mais servir à uma laicidade de compreensão e de inteligência, e nem mesmo à própria aventura do conhecimento.101

Em 1996, realizou-se na École du Louvre um colóquio com o tema Forme et Sens onde se debateu como o Estado poderia dar uma resposta a esta questão que, na prática, deveria se levar em conta, no mínimo, o campo da herança patrimonial e 101

Neste colóquio, na opinião de Philippe Gaudin (2014, 79), Joutard, de maneira realista, prudente e pragmática, define claramente o que seria possível e o que não seria possível na França naquele momento em relação ao ensino dos fatos religiosos. A posição de Jean Baubérot, a favor da criação de uma disciplina específica, foi minoritária e não foi aprovada. Em decorrência deste colóquio e de seu relatório, algumas iniciativas concretas já nasciam pouco tempo depois, como a do inspetor geral Jean Carpentier que chegou a organizar cursos de verão sobre este tema, sob a égide do Ministério da Educação Nacional, antes de criar em 1998 a ARELC (Associação Religiões, Laicidade, Cidadania). Esta entidade foi basicamente composta por educadores e desenvolveu uma linha de reflexão e ação que permitiu pouco a pouco implementar o ensino dos fatos religiosos na escola laica francesa. De certa forma, ela preparou o caminho para o que viria a seguir ao Relatório Debray. Ela foi dissolvida em 2010, quando seus integrantes chegaram à conclusão de que já haviam cumprido seu papel nesta questão.

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cultural da sociedade. Neste mesmo período, François Boespflug, Françoise Dunande e Jean-Paul Willaine, publicaram o livro Pour une mémoire des religions (Paris, Éd. Découvertes, 1996), onde discutiram sobre o lugar atual da religião na sociedade, as questões de erosão da identidade e o desaparecimento de uma cultura religiosa, centrandose, posteriormente, no lugar e nas modalidades da religião na escola (PINTO, 2012). Estes autores afirmavam a necessidade da escola laica levar para o seu interior a transmissão de uma cultura religiosa múltipla, centrada na objetividade do conhecimento das crenças, existentes na sociedade nacional e fora dela, tomando contato com os seus acontecimentos fundantes, seus ritos, textos, teologias e prescrições e, fundamentalmente, tendo a noção de que cada uma destas crenças é um sistema de verdade para quem nele crê.

Em 1997, Michel Milot e Ferdinant Ouelle, publicaram a obra Religion, éducation & démocratie com um amplo debate referente a muitos dos países onde esta discussão já havia se iniciado. Este trabalho aprofundava a questão da religião na escola, equacionando o lugar e o papel da educação na construção da identidade, lançando uma espécie de um novo posicionamento sobre a religião no contexto escolar: ni l’école républicaine, ni l’école plurielle…, mais l’école de la pluralité. Nesta expressão se colocava como tarefa do Estado trabalhar a questão religiosa na escola, em um contexto laico e não confessional. Isto queria dizer nem uma descredibilização da religião, como se ela não existisse, nem uma escola onde todas as confissões pregam a sua doutrina, mas sim uma escola onde se aprende a compreender todas as religiões (PINTO, 2012). Chamanos a atenção a contemporaneidade desta discussão na França com os movimentos em torno da aprovação dos novos parâmetros do ensino religioso no Brasil com a aprovação da LDB na mesma época.

No final dos anos 90, Philippe Meirieu era encarregado de estudar uma reforma geral do ensino secundário na França. O seu relatório final foi entregue em 1999 e, no seu item 3, sobre a Cultura Comum, ele realçava a necessidade de se avançar para um ensino das religiões que fosse neutro e laico. A 14 de fevereiro de 2002, como já vimos, Régis Debray entregava ao Ministro da Educação francês, Jack Lang, um relatório que levaria este a implementar uma série de medidas em torno do ensino dos fenômenos religiosos nas escolas públicas da França. Este texto foi o grande catalizador de todo um

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conjunto de reflexões, iniciativas e relatórios anteriores.

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Isabelle de Saint-Martin, atual

diretora do IESR, o confirma: “Nem tudo começou em 2002. O Relatório Debray e o Seminário Nacional Interdisciplinar, que se seguiu naquele mesmo ano, reforçaram muitas coisas que já existiam antes. É importante mostrar bem a continuidade desses processos. O que aconteceu a partir de 2002 é que o ensino dos fatos religiosos na escola pública talvez passou a ser melhor aceito na França, tornou-se mais banal e é bom que seja banal, banalizado. Passou a ser uma coisa comum.” (SAINT-MARTIN, entrevista para o autor, 28/05/2015).

Existe hoje na sociedade francesa um aparente consenso em torno da necessidade de se estudar as religiões na escola como fenômenos da civilização humana.103 De início, como já foi dito, a preocupação partia de uma ignorância religiosa ou de uma incultura religiosa, considerada uma perda coletiva, uma verdadeira ruptura da memória nacional e europeia. Nas palavras do próprio Debray: “É o desvirtuamento, o empobrecimento do quotidiano circundante, a partir do momento em que a Trindade não passa de uma estação de metrô, os dias feriados, as férias da Páscoa e o ano sabático, de um acaso do calendário. É a angústia de um desmembramento comunitário das solidariedades cívicas, o que contribui bastante para a nossa ignorância do passado e das crenças do outro, a transbordar de estereótipos e preconceitos.” (DEBRAY, 2015, 14).

Ou nas palavras de Willame que detalha mais este processo:

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Apenas destacamos aqui alguns momentos significativos da construção histórica da política de ensino dos fenômenos religiosos na França. Para uma visão mais completa, desde a década de 1980, ver GAUDIN, Philippe. Vers une laicité d’intelligence? L’enseignement des faits religieux comme politique publique d’education depuis les années 1980. Aix-em-Provence: Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2014. 103 Três departamentos franceses - Haut-Rhin, Bas-Rhin e Moselle – adotam o ensino religioso confessional e isto tem uma razão histórica importante. Esses departamentos não eram franceses, mas alemães entre 1871 e 1918. Por isso, a famosa lei de Separação das Igrejas e do Estado de 1905 não foi ali adotada. O regime de cultos anterior foi, portanto, mantido e mesmo confirmado pela lei de 01/06/1924. A portaria de 15/09/1944 relativa ao restabelecimento da legalidade republicana nos departamentos de Alsácia-Mosela manteve no seu artigo 3 “a legislação em vigor na data de 16 de junho de 1940”. Uma decisão do Conselho de Estado de 6 de abril de 2002 esclarece que a manutenção desta legislação especial procedia da vontade do legislador e que a constitucionalização do princípio da laicidade não tinha por efeito a revogação implicitamente os dispositivos da lei de 01/06/1924. As pesquisas de opinião mostram também que as populações afetadas permanecem majoritariamente a favor desta situação particular. Isto significa concretamente que os ministros dos quatro cultos (católico, protestante, luterano e israelita) são remunerados pelo Estado, que existe um ensino religioso correspondente aos quatro cultos nos estabelecimentos públicos de ensino, e que os cultos em geral (e não somente os quatro mencionados acima) podem receber subvenções públicas.

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“Há muitos anos, os professores têm diante deles uma maioria de alunos que não receberam nenhuma formação religiosa, são cada vez mais sem religião, nem os provenientes de famílias cristãs, mesmo os alunos que são de origem muçulmana ou de outras religiões. Houve assim uma mudança considerável do público da escola, a escola pública é composta hoje de um público bem diferente, mudou muito entre os anos 50 e os anos 2000. E isso explica também esta incultura religiosa crescente dos alunos”. (WILLAIME, entrevista para o autor, 01/04/2015).

Podemos encontrar nesse relatório indicações preciosas sobre o sentido mesmo deste projeto de ensino dos fenômenos religiosos implantado na França. Como diz Gaudin: “Os campanários e os calendários são fatos que estão longe de ser negligenciados, porque se trata de marcar e pontuar o espaço e o tempo que os homens compartilham” (GAUDIN, 2014, 92). E Jean Delumeau arremata: “Em nosso país (a França), a ignorância crescente da história religiosa toma proporções alarmantes, ela cria um vazio no qual podem se enfiar todos os esoterismos e todos os integrismos. Ela induz uma fragilização pelo obscurecimento dos pontos de referência.” (DELUMEAU, 2003, 34).

Para além destes comentários de Debray e Delumeau, podemos perceber que a ignorância do fenômeno religioso tem outras implicações que vão muito além do simplesmente cultural como conhecimento. Toda ignorância pode gerar também medo, superstição, servidão e violência. A ignorância dos saberes religiosos também gera tudo isso. Mas toda a ignorância sempre tem um remédio que a cura pela via do conhecimento (MENASSEYRE, 2003, 43). Assim também para a ignorância dos saberes religiosos. Os grandes deslocamentos e impactos do religioso na sociedade mundial colocaram em xeque, a partir dos anos 70, como já vimos, aquela visão de que o religioso deveria continuar estritamente encerrado na esfera privada. Isto combinou com o desmoronamento dos antigos vetores de transmissão constituídos principalmente pelas famílias e pelas igrejas que passam para o serviço do ensino público tarefas simples de orientação no espaço e no tempo que a sociedade civil já não está mais em condições de assegurar. Esta transferência de responsabilidades da esfera privada para a escola de todos, é sentida na flor da pele pelos professores e outros responsáveis pela escola pública.

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Entre aquelas tarefas situa-se a cultura nacional e a cultura de outros povos em todos os seus aspectos.

O que Debray denuncia como incultura religiosa não é um problema somente da França nem é uma questão em si mesma. Ela é parte de uma perda dos códigos de reconhecimento em todo o mundo ocidental, afetando transversalmente todos os saberes, todas as formas de viver e todo o discernimento. Diante disso cabe ao poder público uma responsabilidade na sua obrigação de garantir uma educação de qualidade para todos. É necessário, agora, permitir aos alunos e alunas, educados cada vez mais pela engrenagem do consumo e dos meios de comunicação, tornarem-se cidadãos plenos, assegurando-lhes o seu direito laico ao livre pensamento. “O objetivo não é o de repor Deus na escola, mas de prolongar o itinerário humano por múltiplas vias, tanto quanto a continuidade cumulativa, chamada também de cultura” (DEBRAY, 2015, 16). É preciso tomar consciência de que as tradições religiosas e o futuro da humanidade estão no mesmo barco. Por isso, não se fortalece o estudo do religioso na escola sem fortalecer, ao mesmo tempo, a própria educação, restaurando sua importância para a vida dos cidadãos e para toda a sociedade.

O conhecimento do religioso pode aqui assumir a sua plena importância educativa ao recuperar os encadeamentos daquela História de longa duração (Fernand Braudel), que tende a diluir a esfera audiovisual, apoteose repetitiva do instante. Na verdade, o que nós chamamos incorretamente de incultura das novas gerações é outra cultura que pode ser assim definida: “uma cultura da extensão que dá prioridade ao espaço sobre o tempo, ao imediato sobre a duração, tirando o melhor partido das novas ofertas tecnológicas (sampling e zapping, culto do direto e do imediato, montagem instantânea e viagens ultra-rápidas). Alargamento vertiginoso dos horizontes e redução drástica das cronologias.” (DEBRAY, 2015, 17).

Santos (2010) investiga os mecanismos que engendraram as concepções do tempo e da temporalidade que formataram a característica básica da concepção ocidental da racionalidade – a contração do presente e a expansão do futuro. Para Santos (2010), para a recuperação dos saberes e fazeres descredibilizados, ou seja, de toda a experiência humana desperdiçada pela racionalidade metonímica, será preciso 191


ampliar a visão de mundo através da ampliação e diversificação do presente104. Só através de um novo espaço-tempo será possível identificar e valorizar a riqueza inesgotável do mundo e do presente.

Para enfrentarmos este desequilíbrio entre o espaço e o tempo, que Debray chama de “duas âncoras fundamentais em qualquer estado de civilização” (2015, 17), urge desesconder e evidenciar as genealogias e as razões que podem nos explicar as realidades mais chocantes do nosso tempo. Como compreender o 11 de Setembro de 2001 ou o 7 de janeiro de 2015 sem nos voltar às diversas facções do Islã e até mesmo aos avatares do monoteísmo? Como compreender o desmembramento da antiga Iugoslávia sem retornar às antigas divisões religiosas na região balcânica? Como compreender o jazz e a obra do pastor Martin Luther King sem falar do protestantismo e da Bíblia?

Um acontecimento como o das Torres Gêmeas ou os massacres no Charlie Hebdo e no Bataclan só ganham sentido e importância com a distância no tempo e isto pode contribuir para relativizar nos alunos a fascinação conformista da imagem, a loucura publicitária, a opressão informativa, dando-lhes meios para escaparem do presente-prisão e para regressarem ao mundo de hoje, mas com conhecimento de causa.

É óbvio que estabelecer o estudo do religioso na escola pública, sem nenhuma obrigação religiosa, não é uma tarefa fácil. Começa pelas resistências externas que, com certeza, podem levantar diversas desconfianças. Entre os segmentos laicos, mas que nós, em um melhor sentido, como já vimos no Capítulo II, podemos chamar de segmentos laicistas, há quem vai julgar ser impossível uma tarefa dessas. Há quem vai denunciar, de forma mais ou menos disfarçada, uma última artimanha de uma conspiração proselitista ou uma tentativa de restabelecer o catecismo pelo Vaticano no espaço escolar (DELUMEAU, 2003, 33), ainda mais agora com a Concordata com o governo brasileiro. 104

No momento de transição que vivemos, Boaventura de Sousa Santos afirma que a ampliação do mundo e a dilatação do presente têm de começar com a investigação que demonstre que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente. É o que ele chama de sociologia das ausências. Depois, haverá necessidade de se substituir o vazio do futuro ditado pelo tempo linear por um futuro de possibilidades plurais e concretas, ao mesmo tempo utópicas e realistas. É o que ele chama de sociologia das emergências. E finalmente, faz-se necesário a utilização de uma ecologia dos saberes que poderá substituir a monocultura do saber e do rigor científico, sendo ela mesma um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da globalização contra-hegemônicas e pretendem contribuir para as credibilizar e as fortalecer.

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Outros vão afirmar que se trata de uma anti-ciência. Sem contar com o medo, aí sim plenamente justificável, de se avivar no interior da escola todos os demônios comunitaristas, através de questões que irritam os ateus não menos que os outros. Daí esta reação compreensível de vários educadores: a escola é laica e não deve ter nada a ver com religião.

Do lado dos grupos religiosos, as resistências também seriam grandes. Há quem vai denunciar um outro cavalo de Tróia, o da confusão e do relativismo difamadores que, reduzindo a fé a dados frios e inertes, certamente apagariam as fronteiras entre o transcendente e o imanente, entre a verdadeira religião e as falsas. Alguns vão dizer que não podemos compreender a religião sem a crença, sem a fé, não podemos abordar a religião como um fato social e cultural qualquer. Como separar a análise dos fatos das interpretações que lhes dão sentido? É possível reduzir a uma rapsódia de observações exteriores e frias um compromisso que seja parte integrante da própria pessoa humana? Em uma comparação feita pelo próprio Debray, “o mesmo seria reduzir a música a uma sequência de notas num papel pautado ou pedir a um cego para falar de cores...” (DEBRAY, 2015, 23).

Respondendo a uma pergunta se ainda existem resistências a esta nova política pública francesa de ensino dos fatos religiosos, treze anos depois de sua implantação, Isabelle de Saint-Martin, afirma: “Sim, ainda existem. Há posições hiper-laicas que consideram que a partir do momento em que se fala de religião (na escola) se está fazendo apologética, então há alguns que pensam que realmente é melhor não falar disso na escola. Então, existem resistências, mas eu diria, hoje elas são marginais, e isso é normal, também existem resistências passivas, não militantes [...] Em uma sociedade democrática, é normal nem todo mundo seguir a mesma opinião, existem opiniões diferentes. Então, à esquerda ou à direita, é complicado, poderíamos dizer, os mais laicos estariam à esquerda, mas à direita também podem existir pessoas mais religiosas que acham que (esta política) não é suficiente, que seria preciso uma aula específica ... Não existe assim uma divisão coerente de opiniões entre esquerda e direita. Me parece que isso hoje é bem mais complexo.” (SAINT-MARTIN, entrevista para o autor, 28/05/2015).

Todas estas objeções são válidas, mas podem se alimentar de malentendidos ou de relações mecânicas que precisam ser esclarecidas. E o primeiro grande 193


deles que já foi apontado aqui: o ensino do religioso não é um ensino religioso. Aqui vale a pena retornarmos a Bourdieu quando nos lembra que as palavras descrevem e prescrevem, elas têm capacidade de “produzir ou reforçar simbolicamente a tendência sistemática para privilegiar certos aspectos do real e ignorar outros” (BOURDIEU, 2008, 125). A partir dessa diferença fundamental, Debray elenca no seu Relatório seis ponderações em torno do que ele denomina ensino do fato religioso sobre os quais passamos a discorrer: 1) Não se confunde catequese e informação, proposição de fé e trabalho de ensino. Não se confunde a epistemologia da revelação com a da razão. A relação sacramental com a memória visa o crescimento e o esclarecimento da crença; a relação analítica visa o crescimento e o esclarecimento do conhecimento. As esferas da sociedade têm cada uma os seus espaços próprios e devem ser reconhecidas: as famílias, as comunidades religiosas e as escolas. 105 2) A busca de sentido é um objetivo que o projeto de educação não pode descartar, mas para Debray não se deve dar às religiões qualquer monopólio do sentido. Quanto às diversas ansiedades metafísicas do ser humano, as religiões institucionais não têm nem exclusividade nem superioridade a priori. Aliás, é bom lembrar que as religiões não pertencem mais às igrejas e isso foi bastante discutido no Capítulo II.

3) Expulsar o fenômeno religioso para fora do espaço da transmissão racional e publicamente controlada dos conhecimentos só poderá favorecer as leituras fundamentalistas e fanatizantes do religioso. A escola deve, em todos os sentidos, constituir-se um canal de conhecimento objetivo e desapaixonado na busca de uma cultura de paz, de solidariedade e de boa convivência, através de todo o seu currículo, não apenas através do conhecimento do religioso.

4) A abordagem objetiva e a abordagem confessional não concorrem entre si, desde que possam existir e prosperar simultaneamente. A ótica da fé e a ótica do conhecimento não se anulam. Fazer as coisas de um ponto de vista científico, no sentido mais amplo do Um exemplo disso citado por Willaime é ilustrativo: “Alguns dizem: não se pode dizer na escola laica ‘Cristo ressuscitou’. É preciso dizer: ‘Os cristãos pensam que Cristo ressuscitou.’ Não endossar uma crença está correto, mas também não deixar transparecer nenhuma opinião neste sentido. É preferível dizer: ‘os cristãos acreditam na ressurreição de Cristo, os muçulmanos acreditam nisso, os judeus naquilo, etc. Mas é necessário fazer uma clara distinção entre saber e crença.” (WILLAIME, entrevista para o autor, 01/04/2015). 105

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termo, não se opõe a uma dimensão espiritual. A ótica do conhecimento começa por fazer, liminarmente, a separação do religioso como objeto de cultura e como objeto de culto, cabendo à escola pública a primeira delas já que tem como obrigação analisar a contribuição dos diversos saberes religiosos para a constituição simbólica da humanidade. 106

5) A deontologia do ensino – que se aplica à exposição das doutrinas em Filosofia, e à dos sistemas sociais em História, exige colocar entre parênteses convicções pessoais. Dar a conhecer uma realidade ou uma doutrina é uma coisa, promover uma norma ou um ideal é outra. 6) A incultura religiosa, segundo vários indicadores, afeta tanto as escolas privadas de carácter confessional quanto as escolas públicas. Vários destes indicadores mostram que a ignorância neste campo está, em grande parte, relacionada ao nível de estudos e não à origem religiosa dos alunos ou à sua pertença familiar. O Relatório Debray não prevê a criação de uma disciplina de Ensino do Religioso, como já é tradição no caso do Brasil. Na França, desde Jules Ferry até o início do século XXI, os fenômenos religiosos ficaram completamente ausentes da escola pública. O processo histórico ali foi bem diferente em relação ao do Brasil. Na França, o estudo do fenômeno religioso é tratado como tema transversal dentro de outras disciplinas na área das Ciências Humanas, como Filosofia, Sociologia, História, Geografia, Língua Francesa e Artes.107 A responsabilidade de ensinar os fenômenos religiosos pertence ao corpo docente, através das disciplinas já existentes, e estes professores são preparados para a execução deste trabalho docente pela própria universidade. O governo francês, ao acatar uma das sugestões do Relatório Debray, criou

Baubérot insiste na diferenciação entre o saber e o crer: “O conhecimento não deve ser um substituto para crença, pois esta é um ato pessoal e uma escolha pessoal; é obrigação dos professores deixar isso bem claro, em última análise, que o conhecimento não vai substituir as escolhas pessoais e experiências pessoais (no campo religioso)” (Baubérot, entrevista para o autor, 21/05/2015). 107 Trata-se aqui de uma política pública adotada pela França, entendida na sua maneira clássica, ou seja, um conjunto de expertises que buscam identificar um problema coletivo, um conjunto de decisões e de ações que buscam implementar uma solução deste problema, quer eles sejam colocados por atores individuais, institucionais ou sociais, e a avaliação de sua eficácia. 106

195


já em 2002, o Instituto Europeu de Ciências da Religião (IESR)

108

para preparar os

professores neste sentido. Mas a política oficial da França de não se criar uma disciplina específica e tratar do religioso como tema transversal em disciplinas da área de humanidades não teve apoio unânime. Jean Baubérot, considerado o fundador da sociologia da laicidade e ainda hoje um dos mais influentes pensadores nesta área, defende desde 1991 uma posição contrária. Diz ele: “Indagado sobre o problema em termos de uma disciplina específica, eu colocava em 1991 que ela era necessária menos para aumentar o conteúdo da cultura religiosa do que para enfrentar um problema cultural fundamental” (BAUBÉROT, entrevista para o autor, 21/05/2015). No Colóquio de Besançon, em 1991, Joutard e Baubérot partiam do mesmo

diagnóstico,

mas

tiravam

conclusões

diferentes.

Baubérot

apontava

categoricamente a existência de uma contradição por parte daqueles que diziam, de forma enfática, não poder existir uma disciplina específica: “por que o que existe como confessional em três departamentos franceses seria, a priori, absolutamente impossível em uma perspectiva laica?” (BAUBÉROT apud GAUDIN, 2014, 79). Aparece aqui, finalmente, uma conclusão estritamente de caráter epistemológico atacando aqueles que contestavam a especificidade de uma história das religiões como uma disciplina sob o pretexto de que a dimensão religiosa estaria presente em todas as atividades humanas. De acordo com Baubérot, isso levaria ao perigo de se confundir religiões e crenças, enquanto que “o crer é mais global que o religioso”. As ideologias laicas do século XX já haviam demonstrado isso muito bem. Para ele, com uma disciplina específica, “tratar-se-ia de difundir o que já fosse conhecido - e já se sabe muito sobre isso - relacionado a uma

“No IERS, nós montamos formações continuadas sobre os fatos religiosos para a escola, porque é a escola pública que interessa. Elas não são obrigatórias para os professores. São formações que os professores podem requisitar à Reitoria. Então, organizamos essas formações que são propostas em associação com a Reitoria, com a Direção de Ensino Escolar. Convidamos pesquisadores, professores da Universidade para falar sobre os fatos religiosos, filosofia, sociologia, história das religiões, laicidade, etc. E podemos organizar isso por toda a França. Não somente em Paris. Não há uma exigência para os professores de disciplinas de humanidades para fazer esses cursos antes de começar sua carreira de professor. Vai depender do percurso [...] um professor de história, por exemplo, em seu percurso universitário, não aprendeu necessariamente todo o programa de história que vai abordar, mas se tiver que trabalhar (com conteúdos deste programa relacionados aos fatos religiosos), ele pode fazer um curso que organizamos (para se complementar e se atualizar). Pode ainda olhar nossos dossiês na internet. Mas vai ter de cumprir o programa.” (Entrevista de Isabelle de Saint-Martin, diretora do IERS para o autor, em 28 de maio de 2015, no IESR). 108

196


antropologia do crer - que as crenças são ou não são consideradas como religiosas pelos atores sociais” (BAUBÉROT apud GAUDIN, 2014, 79). Outro argumento de Baubérot: é próprio de toda abordagem científica recortar um campo na realidade empírica, onde tudo está conectado, e por isso não podemos censurar uma abordagem do tipo ‘ciências das religiões’ mais do que se faria para qualquer outra disciplina. E conclui: “Se nós quisermos escapar de um ensino da religião mais ou menos confessional e nos colocarmos em uma perspectiva laica, ele precisaria estar ancorado com segurança a uma disciplina que tivesse este nível de exigência. Esta abordagem deve, do meu ponto de vista, se inserir em um conjunto e ser um dos elementos da renovação de toda educação pública.” (BAUBÉROT apud GAUDIN, 2014, 79).

Baubérot destaca o forte substrato do catolicismo na sociedade francesa, mesmo entre os incrédulos, “um sistema que, no geral, não é necessário compreender e que nos libera de procurá-lo, mas é desta forma exatamente que a religião se coloca hoje para a França” (BAUBÉROT, 2005, blog). Esta sua constatação, até certa forma surpreendente, já aponta para a resistência de se construir uma disciplina como aplicação didática das ciências da religião na escola pública. Para ele, uma disciplina específica, além de vantagens intelectuais, seria todo um sistema de ensino e suas finalidades que se encontrariam regenerados por uma antropologia do crer onde se aprende a dialética da subjetividade e da objetivação e onde se aprende também a viver no pluralismo cultural e religioso, o que é um imperativo das democracias contemporâneas (GAUDIN, 2014, 80). Para Baubérot, portanto, seria insuficiente um tratamento do religioso como tema transversal, com a melhoria ou ampliação dos programas já existentes, tal a dificuldade de se decodificar os referenciais simbólicos109 no campo da educação: “A monocromática história dominante da França e o tipo de religião que (historicamente) prevaleceu ajudaram a forjar a mentalidade francesa, para definir o pensável e o impensável, para definir algumas características em relação ao real [...]. Para o mundo cultural francês, Baubérot afirma que sempre fui muitas vezes perguntado do que eu entendia por ‘estruturas simbólicas’, prova de que, apesar de Mauss, Dumezil, Febvre, Levi-Strauss, Vernant e outros (para citar apenas professores da EPHE), na verdade, uma seção inteira do conhecimento antropológico e sociológico permanece desconhecido e que se trata menos de um pseudo-analfabetismo dos alunos do que um analfabetismo social. 109

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pode existir a possibilidade de decifrar esse ponto cego da nossa sociedade para que não se desconheça mais o funcionamento das estruturas simbólicas, e para isso não é suficiente aplicar ou melhorar os programas do ensino secundário, e por isso devemos introduzir uma disciplina específica. Além do estudo comparado de diferentes religiões históricas [...], também as relações que toda sociedade mantém com os ritos (reguladores e outros) e mitos (fundadores e outros), as formas como se opera uma desconexão entre o sagrado e o profano, tudo isso que constitui uma disciplina de ciências da religião.” (BAUBÉROT, 2005, blog).

Estas considerações de Baubérot constam de uma conferência que ele fez em uma assembleia da União Racionalista, em 2005, e na preparação deste texto, ele releu um artigo que havia publicado em 1991 na revista Panoramique e um outro publicado no Le Monde Debates em dezembro de 1992. Sua posição basicamente permanece a mesma ainda hoje: “Eu não quero insistir em uma posição de princípio e colocar-me fora do jogo social. O fato é que os projetos atuais não correspondem ao que eu gostaria que fossem, já que eles não procuram construir um campo de conhecimento específico de uma disciplina. E eu estou impressionado com o fato de que eu possa reproduzir, sem mudar uma única palavra, a conclusão de que eu dei há quase doze anos [...]. Depois de constatar que a decodificação do simbólico ‘é um ponto cego em nossa cultura’ (e continuará sendo assim porque o conhecer cientificamente seria muito perturbador para o consenso mental que permeia a sociedade francesa), eu terminava o meu artigo de uma maneira que parecia, infelizmente, ainda mais utópica em 2005 do que em 1992. Moral da história: não haveria a criação de uma nova laicidade francesa, caso se introduzisse uma disciplina específica – que poderia se chamar de história das religiões ou antropologia do crer - nas escolas de ensino médio, porque os franceses preferem se excitar mutuamente sobre os lenços exteriores, em vez de ter a coragem de expor o chador que está dentro de suas próprias cabeças". (BAUBÉROT, 2005, blog).

Em 2015, dez anos depois desta conferência na União Racionalista, Baubérot continua com a mesma posição, concluindo que na adoção das propostas do Relatório Debray, pesou mais uma necessidade política do que razões de ordem sóciocultural e epistemológica: “Eu ainda acho que uma disciplina teria sido melhor. Embora, é verdade que é necessária uma formação transdisciplinar (quanto à temática da religião) para os professores de diversas disciplinas. A religião é algo muito complexo para os professores e [para tratar deste tema em sala de aula] precisam ser treinados. [...] Eu acho que foi uma opção mais 198


política diante dos fatos que vinham ocorrendo desde o que foi chamado na época o primeiro affair do véu que ocorreu em 1989 em Creteil, na época do governo Lionel Jospin.” (BAUBÉROT, entrevista para o autor, 21/05/2015).

Na perspectiva de uma educação que possibilitasse um discernimento entre os símbolos, mitos, deuses, e que nos apontasse um sentido da vida humanizante deveria ser, para Jung Mo Sung, a princípio, tarefa de todas as disciplinas, de todo o ambiente e de todas as relações escolares, tal a sua complexidade. “Mas, ao mesmo tempo, uma tarefa desta precisa de uma disciplina específica que sistematize as contribuições feitas por outras disciplinas e desenvolva temas e experiências que precisam de uma atenção mais específica. O responsável por isso precisa de uma formação apropriada para isso” (SUNG, 1996, p. 154). Mas para Willaime (2014), a escolha francesa de abordar os fatos religiosos através das disciplinas já existentes é uma maneira de sublinhar que a abordagem do religioso deve sempre ser contextualizada histórica e geograficamente, que não se trata de ensinar as religiões, mas sim os fatos religiosos como uma dimensão da vida das sociedades, de suas culturas e de sua evolução: “o ensinar a história das artes [por exemplo], se cruzado com o ensino dos fatos religiosos, é extremamente importante porque através das artes, da pintura, da música, da literatura, trata-se uma bela maneira, uma bela oportunidade para mostrar que os fatos religiosos são fatos sensíveis que correspondem a experiências existenciais muito profundas e à sensibilidade das pessoas.” (WILLAIME, entrevista para o autor, 24/06/2015).

Para Willaime, há, portanto, fortes razões epistemológicas para se adotar na França o ensino dos fatos religiosos como tema transversal nas disciplinas da área de Humanidades: “Há vantagens, pontos fortes para abordar os fatos religiosos de maneira transversal através das diferentes disciplinas escolares [...] isto sempre ajuda a contextualizar tanto do ponto de vista geográfico quanto de um ponto de vista histórico, e isso ajuda a mostrar que as tradições religiosas, os sistemas religiosos são parte das sociedades, de seu desenvolvimento e não se trata de considerar o religioso em si, mas sempre o religioso em situação. Portanto sempre no contexto cronológico preciso e dentro de um contexto geográfico preciso. Portanto, há uma vantagem epistemológica em abordar fatos religiosos 199


como temas transversais.” (WILLAIME, entrevista com o autor, 24/06/2015).

Sobre se haveria maiores vantagens de se adotar uma política educacional de ensino de história das religiões ou dos fatos religiosos, Willaime argumenta com detalhes sua posição favorável ao segundo caso: “Alguns países da Europa oferecem um ensino específico da História das Religiões. Com professores em História das Religiões. De forma alguma se trata de uma abordagem confessional das religiões, mas sempre uma abordagem objetivante, histórica. [...] Mas eu sempre tive uma discussão crítica ao fato de se consagrar um ensino específico sobre os fatos religiosos, como por exemplo, um ensino da história das religiões, mas isso não significa que ele seja considerado como intangível, essencialista, etc. Não. É porque, permanecendo no contexto da abordagem histórica, da abordagem da história das artes, da abordagem da literatura, como fato social e cultural, isso permite lhe consagrar mais tempo no horário da escola e nos programas.” (Entrevista para o autor, 24/06/2015).

Mas esta escolha se explica também pelo fato de que não era viável se criar uma nova disciplina, sobrecarregando os programas de ensino, e criar um novo corpo de professores especializados. E sem dúvida, foi uma opção para não suscitar resistências e desconfianças da parte dos grupos laicistas e dos grupos religiosos, como afirma Debray (2015). De qualquer forma, já existe uma definição muito consolidada no sistema educacional francês de que não se deve criar uma disciplina específica de ensino dos fatos religiosos. Afirma Debray: “A Escola não pode, por si só, encarregar-se de todos os problemas não resolvidos pela sociedade. [...] não seria razoável acrescentar uma divisória nova numa grelha já muito cheia, em que muitos professores lamentam já o peso e a dificuldade de [...] classes heterogéneas. Promover a História das Religiões (ou o ensino dos fatos religiosos) [...] como disciplina específica seria prestar-lhe (à educação) o pior dos serviços, visto que não poderia, num calendário cheio que nem um ovo, ocupar senão um lugar decorativo e um horário à margem [...].” (DEBRAY, 2015, 34).

Percebe-se que a disposição firme de não se criar uma disciplina própria para atender uma demanda sentida e refletida profundamente por diversos atores da área de educação na França tem muitos pontos de contato com as dificuldades de se implantar 200


efetivamente o ensino religioso como disciplina no Brasil, de acordo com a Constituição Federal e a LDB. Na grande maioria das escolas públicas do Brasil, o ensino religioso também não passa de um lugar decorativo e um horário à margem. Em outra intervenção muito interessante, afirma Debray: “Mais cedo ou mais tarde, forasteiros seriam propostos para substituir os professores e não seriam uns quaisquer (caso fosse criada uma disciplina específica): diplomados de faculdades de Teologia e representantes credenciados das diferentes confissões, que poderiam invocar reais qualificações e uma experiência secular nesta área. Sendo assim, Jules Ferry já não reconheceria aí os seus.” (DEBRAY, 2015, 35).

Parece até que Debray conhece bem a realidade do ensino religioso no Brasil tanto quanto o da França. Em alguns dos nossos sistemas de ensino, particularmente no do Estado do Rio de Janeiro, o credenciamento de professores de ensino religioso passa pelas autoridades confessionais. No Brasil, já existe até certo lobby para se exigir para os professores de ensino religioso a formação em Teologia. Mas não é esta a proposta dos que defendem o ensino do religioso no currículo como área de conhecimento. Tanto na França quanto no Brasil, dá-se atualmente enorme importância à formação dos docentes e que esta seja feita na área das Ciências da Religião. Neste sentido, vem de Wolfgang Gruen a defesa das Ciências da Religião como base de formação dos docentes de ensino religioso: “Embora o ensino religioso escolar não se identifique com as Ciências da Religião (como a Catequese não se identifica com a Teologia), o Curso de Ciências da Religião seria o lugar privilegiado para a formação e habilitação de tais professores” (GRUEN, 2005, 25). O aval dado pelo enfoque científico do conhecimento religioso, transmitido através das instituições escolares, controladas não apenas pelo poder público através de seus agentes, mas, e principalmente, pela sociedade, longe de ser inócuo, torna-se essencial para abalar as estruturas de modelos religiosos intolerantes ou fanatizantes (DOMINGOS, 2008, 164). Ora, quem melhor poderia contribuir para essa formação do que os professores que, por causa da deontologia da profissão, devem estar preparados para transmitir o contexto histórico aliado à espiritualidade da época, ao contexto social e aos valores vigentes, sem, no entanto, promoverem seus ideais ou valores pessoais? Uma formação sólida permitirá

201


a esse profissional adquirir uma didática e uma metodologia próprias ao ensino das religiões. 110

Em interessante artigo de Frank Usarski no livro Ensino Religioso e formação Docente, organizado por Luzia Sena e intitulado Ciência da Religião: uma disciplina referencial, o autor estuda o desenvolvimento do Ensino Religioso alternativo ao tradicional na Alemanha, tirando hipóteses sobre possíveis aplicações no Brasil. Atualmente as legislações de todos os 16 estados federais alemães reconhecem a importância de uma alternativa ao ensino religioso tradicional (confessional, luterano ou católico), sob as mais diversas nomenclaturas. Para Usarski, é possível perceber naqueles diversos programas três áreas em que a Ciência da Religião deve desempenhar um papel como “disciplina de referência” ou como sua aplicação didática: “Primeiro, um conhecimento pelo menos sobre as principais religiões do mundo e fenômenos tipicamente associados a elas. Segundo, o objetivo de gerar e aprofundar no aluno a atitude da tolerância enquanto integrante de uma sociedade multirreligiosa e pluricultural. E terceiro, o propósito de capacitar os participantes do curso a associar suas próprias preferências ideológicas a quadros filosóficos cujo caráter sistemático questiona ecletismos subjetivos ingênuos e a combinação ingênua de elementos de origem variáveis muitas vezes logicamente incompatíveis”. (USARSKI, Ciência da Religião: uma disciplina referencial in SENA, 2007: 57-58).

Para Cristel Hasselmann (2006), diferentemente da Teologia, a Ciência da Religião trabalha de maneira meta-confessional e independente. Isso significa que ela não toma partido a favor de uma determinada religião, e suas reivindicações de verdade e suas pretensões soteriológicas, nem de um conjunto delas que tenha a mesma matriz, numa visão ecumênica. Seu objetivo é o entendimento de uma religião abordada, mas não o consentimento com ela, o que seria um objetivo teológico. Também é insignificante a 110

Cada vez mais, vários estados brasileiros reconhecem que o professor habilitado para o ensino religioso nas escolas públicas é o egresso dos cursos de Ciência(s) da(s) Religião(ões). Podemos citar o exemplo do Estado de Minas de Gerais. O Decreto nº 44138 de 27/10/2005, no seu Art. 5º, diz que o exercício da docência do ensino religioso na rede pública estadual de ensino deve contar, preferencialmente, com profissional que possua “I - conclusão de curso superior de licenciatura plena em ensino religioso, ciências da religião ou educação religiosa”. Paralelamente a isso, observa-se uma ampliação no número de licenciaturas em Ciência(s) da(s) Religião(ões) no Brasil com ênfase em Ensino Religioso. Atualmente, funcionam cerca de quinze licenciaturas em todo o território nacional. No entanto, esse número deverá apresentar sensível crescimento em breve, considerando o número de instituições (privadas e públicas) que manifestaram interesse no oferecimento do curso.

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convicção pessoal de um cientista da religião sobre a existência ou não de Deus ou dos deuses. Pode-se compará-lo com um tradutor simultâneo ou um guia turístico, com a diferença de que ele desempenha o papel de um mediador entre diferentes religiões. Por tudo isso, o docente devidamente preparado para o ensino religioso, na visão de Hasselmann (2006), deve ser o cientista da religião, e não o teólogo. Assim, o ensino do fenômeno religioso seria a aplicação didática da(s) ciência(s) da(s) religião (ões).

Também para Debray, é preciso, antes de tudo, investir na preparação dos professores na área da(s) Ciência(s) da(s) Religião (ões). Exatamente por isso, como pedra angular do seu relatório, uma de suas propostas foi imediatamente aceita e colocada em prática pelo governo francês já em 2002, como já vimos: a criação do Instituto Europeu de Ciência da Religião (IESR).

São os professores que é preciso estimular, tranquilizar e desinibir, equipá-los melhor, intelectual e profissionalmente, para trabalhar uma questão sempre muito sensível porque diz respeito à identidade mais profunda dos alunos, alunas e das suas famílias. É preciso garantir-lhes uma maior competência, apoiando-os num assunto considerado, com razão, espinhoso ou complicado. Para Debray (2015), seria necessário descontrair, desapaixonar e até banalizar o assunto, sem lhe retirar, pelo contrário, a sua dignidade intrínseca.

A nosso ver, a formação dos educadores para o ensino do religioso exige aproximar os dois lados desta questão, ainda demasiado afastados: o escolar e o acadêmico. Observa-se aqui ainda um afastamento entre eles, entre a evolução da pesquisa destes saberes e a prática cotidiana da sua transmissão em sala de aula das nossas escolas. É muito comum, tanto na França quanto no Brasil, encontrarmos livros didáticos tratando sobre temas religiosos sem nenhuma preocupação, de fato, com as últimas descobertas e abordagens mais científicas. 111

111

Para Debray, é urgente que se organize em rede o arquipélago nacional das diversas ilhas das Ciências das Religiões. E podemos dizer que este arquipélago já existe tanto na França quanto no Brasil; que se destravem as rupturas já apontadas para permitir que essa rede possa ultrapassar os muros acadêmicos e se proporcione a todos os professores desta área uma formação profissional de qualidade.

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Pluralismo, liberdade religiosa e ensino dos fatos religiosos na escola pública

O princípio da laicidade coloca a liberdade de ter ou não ter uma religião (liberdade de consciência) acima do que conhecemos por liberdade religiosa (a de poder escolher uma religião entre as existentes). Então, a laicidade não pode ser entendida como uma opção espiritual entre outras, mas sim o que torna possível a coexistência entre as várias opções espirituais ou entre estas opções com nenhuma, pois, como já foi dito aqui, “o que é comum, por direito, a todos os homens deve sobrepor-se ao que os separa de fato” (DEBRAY, 2015, 39). Evidente que esta postura tem repercussões importantes no conhecimento do religioso levado para a sala de aula.

Procurar a totalidade da experiência humana implica caminhar na luta contra o analfabetismo religioso e promover o estudo dos sistemas de crenças existentes. Também não se pode separar o princípio de laicidade e o estudo do religioso, como já sobejamente afirmamos aqui. Melhor ainda: importa começar por uma primeira lição sobre os fundamentos e obrigações de um princípio – a laicidade -, nada simples, pois seria um equívoco imaginá-lo já incorporado aos nossos costumes e à nossa tradição. Ainda estamos no Brasil longe disso. Mas aqui não se trata de um recuo, uma concessão às pressões ou o resultado de um inexorável desgaste. Para levarmos a bom termo um projeto de ensino do religioso na escola pública, é necessário que esta se mostre ainda mais laica, apoiando-se, desde o início, em uma ordem de valores claramente assumida. Neste sentido, o projeto da França tem muito a contribuir com o caso brasileiro.

A ideia de laicidade aparece no período da Revolução Francesa através de diversos pensadores, como Condorcet, o primeiro a explicitar uma concepção laica de educação. Para ele, era rigorosamente necessário separar da moral os princípios de todas as religiões particulares e de não admitir na instrução pública o ensino de nenhum culto religioso. Mas será Jules Ferry, o fundador da escola laica francesa, que, a partir de 1879, envidará todos os esforços para arrancar as crianças da influência da Igreja Católica. Como Ministro da Instrução Pública e de Belas Artes naquela época, ele nomeará protestantes espiritualistas liberais, como Ferdinand Buisson, Félix Pécaut, Jules Steig, dentre outros, para colocar essa escola laica em funcionamento. Ferry vai propor uma moral laica, ou independente das Igrejas, possibilidade por ele considerada viável.

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Em se tratando da laicização do saber, o período entre 1880 e 1886 é aquele que marca a origem das Ciências das Religiões na França. O ano de 1880 foi o da criação da cátedra de História das Religiões no Collège de France, assinalando a emergência de um ensino superior consagrado às religiões e à laicidade da escola. Este período fixa também a fundação de um modelo escolar para o ensino primário, a laicização dos programas e do pessoal docente. Todo este processo de laicização do saber será concluído em 1886 em uma primeira etapa pela criação da V seção - Ciências Religiosas - na École Pratique des Hautes Études - EPHE

112

, consagrada ao estudo

científico das religiões.

Podemos considerar a finalização deste processo com a Lei de 7 de julho de 1904, que suprime o ensino congregacionista, ao determinar que as congregações não podem mais possuir escolas no país, como também suprime – em prazo máximo previsto de 10 anos – todas aquelas [congregações] que têm como única atividade o ensino. A determinação para o fechamento das escolas virá, no entanto, já em fevereiro de 1905, fixando o final do ano letivo como período de supressão. No início do ano letivo, 1º de setembro, estas escolas já deveriam estar fechadas (DOMINGOS, 2008,162).

Neste momento, vale a pena resgatar as palavras de Ferdinand Buisson, um dos fundadores da escola laica da França, que escreveu em 1905, ano da separação entre Igreja e Estado naquele país: “Para a educação de uma criança que deve se tornar um adulto, é importante que ela tenha contato alternadamente com os poemas inflamados dos profetas de Israel e com os filósofos gregos, que ela conheça e sinta qualquer coisa da cidadania antiga. Será importante que lhes façam conhecer e sentir as mais belas páginas do Evangelho, como também as de Marco Aurélio, como fez Michelet ao estudar todas as Bíblias da humanidade; que lhe faça navegar, sem prevenção ou sem apenas a crítica pela crítica, mas com uma forte simpatia, por todas as formas de civilização que se sucederam. O que sairá deste conhecimento não será o desprezo, o ódio, a intolerância, mas, pelo contrário, uma grande simpatia, uma admiração respeitosa por todas as manifestações do pensamento e da consciência que caminham sem

112

A École pratique des hautes études (EPHE), criada em 1868 por um decreto do Ministro da Instrução Pública da França, Victor Duruy, é um grande estabelecimento de ensino superior, atualmente ligado ao Ministério do Ensino Superior da França. Ele está instalado em diferentes universidades, institutos e centros de pesquisa de Paris, principalmente, mas também nas cidades de Montpellier, Bordeaux, Marseille, Lyon, Grenoble e Dijon.

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cessar na busca de um ideal cada vez maior.” (BUISSON apud DELUMEAU, 2003, 36-37).

Mais de um século depois, a atual política francesa de ensino dos fatos religiosos na escola pública tenta resgatar aqueles ensinamentos de Ferdinand Buisson. Em um rápido giro em torno da situação atual dessa política, Isabelle de Saint-Martin afirma: “Vejamos o exemplo do programa de história. Na sexta série do collége (do 6º ao 9º ano do ensino fundamental no Brasil) é que vai ser necessário estudar o judaísmo, o cristianismo; na sétima, o Islã; na oitava é possível que estudem a reforma protestante, as guerras religiosas, etc. Então, não é tanta coisa assim de religião no programa, mas são pontos de passagem que viraram rotina agora, que estão aí, que devem ser aprofundados. Os professores sabem que não é catecismo [...]. Nas disciplinas de literatura e língua francesa, na sexta série, nos textos-base, há páginas da Bíblia, sabe-se que não devem ser lidas para se fazer uma oração, são para ser lidas como um grande texto literário, também um texto fonte para se estudar [...] É para o conhecimento. Então, há um progresso qualitativo. E melhor aceito agora. Quantitativamente, não é muito ainda. Reconhecemos que ainda é um espaço pequeno para o ensino dos fatos religiosos nos programas escolares.” (SAINT-MARTIN, entrevista para o autor, 28/05/2015).

Para Jean-Paul Willaime, a distinção entre o saber e o crer continua sendo um ponto extremamente sensível, mas é importante fazer avançar o ensino dos fatos religiosos: “Por exemplo, alguns setores fundamentalistas muçulmanos e protestantes tem contestado a teoria da evolução e denunciado a proibição de se ensinar o criacionismo na escola pública laica, já que a teoria da evolução é um elemento importante para todos os cientistas que trabalham no domínio da Biologia. Mas eu não vejo problema em informar aos alunos sobre uma crença relativa à criação do mundo com base em uma determinada interpretação dos textos bíblicos do Gênesis e o saber científico relativo à Biologia. Portanto, uma distinção ainda entre o crer e o saber”. (WILLAIME, entrevista para o autor, 01/04/2015).

Mas também e principalmente os professores da área de Línguas, de História e de História das Artes na França têm insistido sobre o fato de que é importante levar os alunos e alunas a compreenderem os diferentes regimes de verdade: “Que a verdade de dois mais dois ser igual a quatro é uma verdade científica e matemática. É uma verdade experimental, racionalmente 206


hipotética ou dedutiva, mas a verdade de um poema, a verdade artística, é um outro regime de verdade. Portanto levá-los a compreender que em relação a um belo texto literário, como em relação à Bíblia ou ao Corão, são textos, mas não são verdades de ordem científica. Para alguns, isso leva a verdades sobre a condição humana, sobre a vida, sobre a morte, mas é um outro regime de verdade. Portanto, é bom levar os alunos a distinguirem entre saber e crer, entre regime de verdade científica, religiosa, artística. Levá-los a compreender que há diferentes abordagens, diferentes regimes de verdade”. (WILLAIME, entrevista para o autor, 01/04/2015).

Mas Willaime insiste em chamar a atenção para que o ensino dos fatos religiosos se afaste de todo o essencialismo e que sejam abordados também como construções históricas. Considerar que o cristianismo, o judaísmo, o Islã são uma lista variável de crenças, práticas, que as religiões tem uma história, e que existe uma história da construção dos textos sagrados: “Eu mesmo já disse algumas vezes para os professores: ‘a Bíblia e o Corão não caíram do céu, são textos que podem ser estudados de um ponto de vista histórico, podem ser estudos na sua constituição e na sua recepção’. Ou seja, que as religiões possuem uma história, que elas evoluem, que elas estão em interação constante com as culturas ao seu redor, nas sociedades nas quais elas se exprimem, e que o cristianismo da Idade Média não é o Cristianismo da época moderna, da época contemporânea. Não podemos considerar o fato religioso como um fato intangível, que não evolui. As religiões são o que elas expressam, o que dizem as pessoas que as praticam. E o cristianismo em 2015 é diferente do cristianismo da Idade Média ou da época da Inquisição, ou das guerras de religião e isto vale também para o Islã e para o Judaísmo. De modo que há uma insistência bem forte contra o essencialização dos fenômenos religiosos. Levar os alunos a admitir, mas também os professores, que eles têm legitimidade para falar da religião na escola. Que o professor de história, de língua, de filosofia, deve abordar a religião como fato social e cultural com os métodos habituais das ciências históricas, das ciências sociais. Assim, é um desafio para a escola pública abordar para todos os alunos, quer sejam muçulmanos ou cristãos, religiosos, ateus ou agnósticos, o professor poder falar dos fenômenos religiosos para todos os alunos, quaisquer que sejam suas convicções religiosas ou não-religiosas e deve fazê-lo com um vocabulário apropriado. Por exemplo, não falar do islã com um vocabulário cristão. Portanto, utilizar um vocabulário o mais objetivamente neutro... Não dizer, por exemplo, que o Ramadan é a Quaresma dos muçulmanos, ou que a Quaresma é o Ramadan dos cristãos [...]. É preciso encontrar um vocabulário histórico, sociológico (próprio para essas abordagens). Veja as peregrinações, mas a peregrinação a Meca é diferente da peregrinação a Lourdes, como a Santiago de Compostela. Mas, além disso, é possível, de um ponto de vista antropológico, de um ponto de vista sociológico, encontrar semelhanças. O fato é que, o peregrino, por exemplo, ele caminha, ele se desloca a Santiago de Compostela, ou a Lourdes, ou a Meca. Há 207


semelhanças, mas é necessário abordar a peregrinação como fenômeno social e cultural, que ela é um fato histórico, social”. (WILLAIME, entrevista para o autor, 01/04/2015).

Para marcar os dez anos do Relatório Debray, a Direção Geral do Ensino Escolar da França realizou nos dias 21 e 22 de março de 2011, em parceria com o IESR, um seminário nacional para fazer uma espécie de balanço da nova política de ensino dos fatos religiosos.113 Coube a Debray a abertura deste seminário, quando fez uma rápida avaliação:

“Hoje, dez anos depois, a questão não é saber se é legítimo ensinar fatos religiosos na escola pública. Este ponto foi superado. A questão é como fazer e como fazer melhor. Então, se você fizer um balanço, e percorrer as disciplinas, deu certo. O corpo docente aceitou. E eu diria que esta é a abordagem laica e científica para a questão religiosa, o objetivo não é falar de todos os fatos religiosos, mas falar de forma inteligente, bem informada e distanciada. Problemas, sim, existem muitos. Eu diria que o principal deles é a presença da religião na formação da base do conhecimento. Isso se tornou óbvio. Em seguida, a necessidade de melhor treinamento para os professores e para as escolas. O fato religioso foi ensinado, ouso dizer, do primário ao secundário. E, finalmente, eu diria, a formação continuada de professores liderada pelo IESR, tem sido muito consistente e completa.” (DEBRAY, Séminaire national “Enseigner les faits religieux dans une école laïque”, 21 et 22 mars/2011).

De qualquer forma, esta política pública da França ainda é bastante nova para se tecer uma avaliação completa e conclusiva. Para Willaime (2014), não se pode dizer que ela foi até aqui um sucesso total e que não teve suas limitações. Para ele, há muitas críticas a fazer. É possível, nas perspectivas já colocadas, fazer muito mais e muito melhor, mas seria até injusto subestimar a evolução notória que a escola pública laica francesa conheceu nestes últimos anos. Nas palavras de Willaime, os recentes episódios que abalaram a França no início de 2015 só vieram reforçar esta política pública na área de educação: “A recente iniciativa da ministra Najat Vallaud-Belkacem, nossa atual Ministra da Educação Nacional, depois das tragédias de janeiro, de querer reforçar o ensino dos fatos religiosos e o ensino da laicidade, é um impulso suplementar depois do relatório Debray no sentido de se ir 113

É possível encontrar os textos das diversas participações <http://eduscol.education.fr/cid56291/seminaire-dgesco-2011.html>.

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neste

seminário

em


mais longe e de forma mais incisiva nas escolas de formação de professores. Trata-se de uma questão importante, já que se prevê a obrigatoriedade agora de alguns elementos na formação de professores para o ensino dos fatos religiosos”. (WILLAIME, entrevista para o autor, 01/04/2015).

Mas entre a primeira (01/04/2015) e a segunda entrevista (24/06/2015) dada por Willaime a este autor, entrou na agenda política francesa a proposta de reforma de ensino do Collège, o que provocou enorme polêmica na área de educação, inclusive com paralização dos professores em diversas cidades, em uma linha muito semelhante à polêmica que tem provocado, no Brasil, a proposta de reforma do currículo do ensino médio. Alguns pontos desta proposta incidem diretamente sobre o ensino dos fatos religiosos, o que levou Willaime a assumir uma posição bastante crítica diante destes fatos mais recentes: “Nas controvérsias atuais sobre a reforma do Collège e do Lycée na França (o que corresponderiam no Brasil do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e ao ensino médio, respectivamente), pretende-se, no programa oficial, tornar opcional o estudo das Reformas Religiosas do século XVI e as guerras de religião. Opcional... Então isso significa para o professor, que estes temas não interessam tanto, ele não vai falar sobre isso. É um erro. É importante falar das Reformas do século XVI, incluindo as guerras religiosas, para explicar que a tolerância, a aceitação da diversidade religiosa, tudo isso foi feito também através de guerras, eventos trágicos, que muito sangue correu por causas religiosas, mas que, em seguida, houve a pacificação e foram superadas estas violências religiosas. Então, veja, não tem havido uma discussão fundamental sobre o ensino dos fatos religiosos em escolas públicas: a quantidade de tempo, quanto tempo vamos gastar com ele, como será registrado no programa, seja com holofotes ocasionais, seja com uma educação mais desenvolvida. Tenho visto no Quebec com o ensino de Ética e Cultura Religiosa, ou as crianças na Inglaterra com a educação religiosa, vão aprender muito mais sobre as tradições religiosas do que os estudantes franceses porque, os estudantes franceses recebem apenas algumas pinceladas. Então, esta é um pouco da minha reflexão crítica sobre esta questão: mesmo que no sistema francês, diante de uma tradição de educação secular, já foi uma evolução considerável dar atenção ao ensino dos fatos religiosos. Porque da parte de alguns setores laicos houve forte resistência, inclusive de alguns laicistas radicais. Prestar mais atenção aos fatos religiosos em escolas públicas laicas já foi visto como um atentado à laicidade, para esses já está se dando muito tempo para o estudo dos fenômenos religiosos. Assim, o ensino de fatos religiosos através das disciplinas na França é também um compromisso. Um compromisso laico para dizer: ‘trata-se bem do fato religioso na escola, mas sem dar-lhe um estatuto especial.’” (WILLAIME, entrevista para o autor, 26/06/2015).

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A questão da laicidade na escola pública sempre foi e é ainda vista como um problema. Todos concordam que com o ensino dos fenômenos religiosos, toca-se em algo sensível e como se fosse vulnerável. Não é alguma coisa que diz respeito somente a uma disciplina, mas a toda a escola. “É por isso que vale a pena pressupor e descrever a laicidade como nosso horizonte, mas também compreender a sua natureza e seu alcance” (MENASSEYRE, 2003, 40). A laicidade é vista aqui como uma liberdade radical dos indivíduos, fundada sobre a sua liberdade de consciência, sobre a autonomia de sua razão e de sua vontade que se ampliam desde que a escola laica possa realizar seu trabalho de emancipação (GAUDIN, 2014, 100). Estas afirmações de princípio, de Menasseyre e Gaudin, valem tanto para a escola pública da França quanto para a do Brasil.

A partir da proclamação da República em 1889, várias competências da Igreja foram transferidas para o Estado Brasileiro sem grandes traumas. No caso da educação foi diferente, o que ainda provoca muitas discussões. Durante a 1ª República, a escola laica foi acusada por grupos religiosos de ser uma escola sem Deus e, portanto, sem moral, como vimos no Capítulo I. Mas desde o momento em que o Estado assumiu a educação, ele o fez com base no valor moral do ideal laico, nem dependente nem exclusivo de nenhuma fórmula metafísica, o que foi reconhecido como justo e verdadeiro por todas as pessoas de bom senso. Este valor moral está fundado justamente na liberdade de consciência e de pensamento, na autonomia do indivíduo e na igualdade entre todas as pessoas, qualquer eu seja sua opção espiritual, como vimos no capítulo anterior. Esta liberdade é que deve garantir a laicidade como princípio.

Alguns poderão dizer que esta é uma discussão superada. Mas certos acontecimentos estão nos mostrando que não é uma discussão apenas do passado, inclusive no âmbito do ensino público. A liberdade, uma vez conquistada, sempre corre perigo. Um princípio deve, a cada época, ser colocado em prática, ao mesmo tempo de acordo com as suas exigências intrínsecas e também na singularidade do seu contexto histórico, requerendo de todos os cidadãos reflexão e ação. É por isso que a laicidade vale como um princípio e deve nortear necessariamente o ensino dos fenômenos religiosos na escola pública: “O exercício da razão, ligado indissoluvelmente ao exercício da liberdade,

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é longo e difícil, mas de capital importância para a escola laica” (MENASSEYRE, 2003, 43). 114

Esta convergência é fundamental porque ela mostra que o ensino do fenômeno religioso é também uma contribuição à educação cidadã em uma sociedade cada vez mais diversificada no plano cultural e religioso. E repetir isso nunca será demais: em uma sociedade assim, a educação para o pluralismo é uma necessidade cidadã e educadora a fim de que todo aluno e toda aluna, quaisquer que sejam suas convicções e suas pertenças, aprendam a viver em um ambiente sócio-cultural diversificado (WILLAIME, 2014, 11). Não somente aprendam, mas também se habituem, se acostumem a uma pluralidade de costumes e modos de vida, e sabendo que, além desta pluralidade, vivemos hoje em um mundo comum que tem suas regras e seus valores. Dito de outra forma, conhecer e aprender a diversidade, socializar sem cair em um multiculturalismo que dissolveria o viver juntos na justaposição dos mundos culturais e religiosos.

A laicidade é garantia da liberdade de pensamento para a formação da cidadania em uma comunidade política, abrangendo muito mais que o religioso, mas abarcando-o. Ela é garantia de um espírito livre e, portanto, de um homem e de uma mulher livres. Como compreender, assim, o ensino dos fenômenos religiosos na escola pública? É possível e necessário, sem dúvida, na medida em que se trata de uma dimensão importante da cultura-pátria e de outras culturas próximas ou distantes, mas humanas. E como escreveu Delumeau: “uma laicidade esclarecida não deve ser fundada sobre a ignorância religiosa” (DELUMEAU, 2003, 36). Pois é sempre e muito melhor conhecer do que ignorar. Desta maneira, é possível encarar de frente a questão do ensino dos fatos religiosos, como veremos a seguir.

Mas o caminho proposto por Debray deve de imediato e abertamente, reconhecer os seus próprios limites. Ele não pode nem deve pretender focar a emoção da

114

Christiane Menasseyre, no Seminário Nacional Interdisciplinar, organizado em Paris entre 5 e 7 de novembro de 2002, chega a ensaiar algumas propostas concretas para uma maior atenção dos professores em relação ao aspecto laico dos fatos religiosos: estar sempre vigilantes com as palavras e os conceitos; associar ao saber histórico sobre os fatos religioso não somente o aspecto sociológico, mas também o filosófico; não negligenciar uma reflexão que relacione a laicidade e a escola, em todos os momentos da vida escolar.

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vivência da fé, muito menos substituir os que têm essa vocação. Nem a adesão pessoal nem a recusa são da sua competência. Até em função desta auto-limitação, o espírito de laicidade nada deveria temer. E podemos elencar algumas razões para isso: a) Realizar um trabalho de tradução entre o discurso racional e o campo do imaginário e do simbólico, sem fugir das dificuldades, é se comprometer com a construção de uma ciência de razão cosmopolita, exatamente como sugere Santos (2010), com o objetivo de libertar homens e mulheres do silêncio, dos medos e dos preconceitos. Abrir os jovens a todo o universo da cultura para ajudá-los a descobrir em que mundo eles vivem e de que heranças coletivas eles são responsáveis, é levar luz à escuridão da ignorância. Debray fala de certo cientificismo ingênuo, em uma aproximação muito interessante com a crítica feita por Santos (2010) à totalidade da razão ocidental que subjaz à ciência hegemônica do nosso tempo.

b) Somente uma deontologia laica experimentada pode evitar a confusão das diferentes esferas do laico e do religioso, porque exige imparcialidade e neutralidade por parte dos professores e a recusa do que possa assemelhar-se a uma concorrência ideológica. O princípio de laicidade nada tem a ver com uma anti-religião militante. Para Debray, ensinar com este viés é recuperar a época alta das leis laicas e republicanas que culminou, na França, precisamente, na criação de uma seção autônoma da École Pratique de Hautes Études, em 1886, destinada a estudar, de forma não teológica, os fenômenos religiosos. No Brasil, estamos, pois, atrasados por mais de um século neste caminho. c) Se a laicidade é inseparável de uma visão democrática da verdade, o ensino do religioso deve transcender os preconceitos, enaltecer os valores de descoberta do até então desconhecido, abrir-se para o núcleo identitário das culturas. Tudo isso significa contribuir para desarmar os diversos integrismos, que têm em comum esta dissuasão intelectual que muito encontramos por aí: é preciso pertencer a uma cultura para poder falar dela. É, precisamente, neste sentido e sem excluir nenhuma das confissões de fé, que se pode avançar em direção à laicidade.

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É preciso voltar às fontes, não de uma laicidade que se tornou arrependida, mas antes refeita, reanimada, muito segura de si mesma e dos seus próprios valores (DEBRAY, 2015). A base estável dos seus postulados filosóficos, felizmente, não impede que a sua atuação seja evolutiva e sempre inovadora. Consciente das dificuldades enfrentadas até aqui, nada melhor do que estar preparado para as vindouras. “E isso recomenda uma abstenção deliberada e motivada, procedente tanto de um respeito pelas crenças íntimas como pelas divisões que poderão suscitar nos alunos” (DEBRAY, 2002).

E Debray conclui o seu pensamento com uma fórmula que vai se tornando clássica neste tema, e por isso vale a pena repetir: “Agora, parece ter chegado o tempo de passarmos de uma laicidade de incompetência (o religioso, por definição, não nos diz respeito) a uma laicidade de inteligência (é nosso dever compreendê-lo). Isto é tão verdade como não haver tabu nem área proibida para um laico. A observação calma e metódica do fenômeno religioso, recusando qualquer ligação confessional, não seria, em última análise, para esta ascese intelectual, a pedra de toque e a prova de verdade?” (DEBRAY, 2015, 43-44).

A intelectualidade francesa possui uma consciência muito forte de que seu país tem a abordagem mais avançada nesta questão. Preferimos dizer da sua singularidade. O México e a Turquia desenvolveram projetos bem semelhantes antes mesmo que a França. Querer submeter outros países ao projeto francês de ensino dos fatos religiosos é cometer grave erro político além de um anacronismo histórico e sociológico. Uma coisa é se garantir um princípio de direito universal, ou seja, o direito ao conhecimento o mais cosmopolita possível e que inclua os saberes, as crenças e os fazeres religiosos. Outra coisa é a sua aplicação em cada sociedade nacional, de acordo com a sua história, com seu contexto sócio-político, com a maturidade para ver a religião como importante ou não para a sua formação cultural.115 Não existe um modelo. Mas pode 115

Para Jean-Paul Willeime, diferentemente da França, o mais comum na Europa é encontrarmos o curso de ensino religioso através de uma disciplina específica, de diferentes formas e denominações. Na Espanha, onde se trata de fato de uma catequese, é feito, por professores escolhidos pela administração pública, mas a partir de uma lista de candidatos apresentados pelas autoridades da Igreja Católica, e tornou-se facultativa. Na Irlanda, onde a Constituição faz homenagem à Santíssima Trindade, e na Grécia, onde a Igreja Ortodoxa é unida ao Estado, este ensino religioso é de tipo confessional e obrigatório. Em Portugal, apesar do princípio estabelecido de neutralidade, foi, até agora, assegurado nas escolas públicas pela Igreja Católica. Na Dinamarca, onde a Igreja Luterana é a Igreja nacional, não há catequese, mas, em todos os níveis das escolas públicas, há um curso não obrigatório de conhecimento do cristianismo, filosofia de vida e educação

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existir um diálogo interessante entre projetos e propostas que sejam bastante conscientes das suas diferenças. 116

3.4. A pertinência do fato religioso no contexto de uma nova laicidade mediadora aplicada ao contexto da escola pública

Como já vimos, tratar de religião na escola é um debate que, em qualquer sociedade, vem carregado de História. Vimos isso muito claramente no Capítulo I sobre o caso do Brasil. De acordo com a conjuntura, ele retorna à agenda nacional assumindo novos contornos ou ressuscitando antigos. Assim aconteceu na França nos anos 80, a partir da constatação de uma perda crescente das referências culturais pelas novas gerações e, no início do século XXI, o ensino dos fatos religiosos foi inserido em um novo contexto, que exigia uma base epistemológica melhor definida, exatamente a necessidade que se ressente hoje no Brasil: o que a escola deve abordar sobre os fenômenos religiosos e como deve abordá-los nas sociedades secularizadas e cada vez mais culturalmente diversificadas.

A definição do nome de uma área de conhecimento não é uma questão neutra. Mais uma vez recordamos aqui de Bourdieu: “as palavras têm capacidade de produzir ou reforçar simbolicamente a tendência sistemática para privilegiar certos aspectos do real e ignorar outros” (BOURDIEU, 2008, 125). Mesmo na França, onde esta área de conhecimento não se apresenta como uma disciplina particular do currículo, essa definição poderia, com certeza, levantar discussões polêmicas, como de fato levantou, e

para a cidadania. Na Alemanha, onde varia segundo os Estados da Federação, o ensino religioso cristão faz parte dos programas oficiais, muitas vezes sob o controle das Igrejas, e as notas obtidas em religião contam para a aprovação. Na Bélgica, as escolas públicas permitem uma escolha entre um curso de religião ou um curso de moral não confessional. Na Inglaterra, a rede pública oferece um curso optativo de Educação Religiosa e, na Suíça, de Cultura Religiosa (Cf. WILLAIME. Le défi de l’enseignement des faits religieux à l’école: réponses européennes et québécoises, Introduction, p. 7-27). Vê-se, pois, a grande variedade de títulos para a disciplina bem como do tratamento dos seus conteúdos. 116 Como exemplo deste diálogo, destacamos o que ocorre atualmente entre as políticas da França e do Quebec. Aqui, a elaboração dos programas de ensino de “ética e cultura religiosa” é feita em um vasto processo colaborativo de consulta que incluem pareceres de diversas comunidades religiosas, mas a redação final fica sob a responsabilidade dos professores e de especialistas das universidades. A abordagem cultural do religioso, de acordo com Mireille Estivalèzes, tal como é desenvolvida nos programas e nos manuais, “não aborda as religiões como vestígios do passado, mas ao contrário, como realidades culturais vivas e de sistemas de sentido que se desdobram em universos sócio-culturais precisos que continuam a alimentar a busca de respostas para as grandes questões existenciais.” (ESTIVALÈZES, 2014, 197).

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ainda levanta, como já vimos. Observamos, de qualquer maneira, que, onde existe uma disciplina especialmente voltada ao estudo das religiões ou dos fenômenos religiosos, as denominações variam, inclusive no Brasil, sobretudo nas escolas particulares confessionais. Da tradicional aula de religião quando se trata de um ensino abertamente confessional, é possível observar uma série de títulos para designar disciplinas não confessionais tendo os fenômenos religiosos como objeto de estudo: cultura religiosa, religião e cultura, formação humana e cristã, quando não como cidadania e valores, ética e cidadania e vários outros.

A expressão fato religioso se impôs desde alguns anos no vocabulário científico e popular a partir da França. Mas, quando se reflete bem, ela esconde certo número de confusões. No Seminário Nacional Interdisciplinar117, organizado em Paris entre 5 e 7 de novembro de 2002, Debray discutiu suas definições e problemas. Ele parte da constatação de que um fato tem três características básicas: a) ele constata e se impõe a todos; b) ele não faz nenhum prejulgamento; c) ele é englobante, não privilegia as partes. Isto o levou a concluir que um fato é observável, neutro, mas ao mesmo tempo pluralista (DEBRAY, 2003).

Já o religioso, apreendido através das suas expressões, já havia sido identificado há muito tempo pela ciência ocidental como fato histórico e social. O que o Relatório Debray propôs em 2002 foi dar um passo à frente. Distante de qualquer perspectiva positivista, aliás, se afastando dela, e no contexto de novas necessidades sociais e educacionais já sentidas desde o final do século passado, era necessário explicitar o sentido e o escopo do fenômeno religioso para se chegar às suas diversas dimensões, muito mais amplas do que simples fatos palpáveis, demonstráveis e mensuráveis (BORNE & WILLAIME, 2007, 15-16).

Já a expressão ensino dos fatos religiosos se consagrou na França a partir de 2002 com a publicação do Relatório Debray e, sem seguida, com o Seminário 117

Este seminário foi organizado no contexto de um Programa Piloto Nacional pela Direção Geral do Ensino Secundário da França. As atas deste seminário foram publicadas em junho de 2003 pela Academia de Versalhes na coleção Les Actes de Desco com o título O Ensino do fato Religioso. Este seminário foi concebido como prolongamento do Relatório Debray e uma das suas finalidades práticas foi o de colocar em contato pesquisadores, notadamente os da Vª Seção da EPHE, professores e inspetores do ensino público. Podemos afirmar que este foi um colóquio fundador do ensino do fato religioso na França. Estamos utilizando várias citações dos participantes deste seminário neste trabalho.

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Interdisciplinar organizado pela Direção de Ensino Escolar do Ministério da Educação, que se reuniu em Malta em maio de 2004 por iniciativa do Comissariado dos Direitos do Homem do Conselho da Europa. Por fato foi pensada qualquer coisa que pudesse, em um primeiro momento, ser verificada e demonstrada, apresentando as religiões de uma maneira relativamente objetiva. René Rémond, no preâmbulo do trabalho coletivo, Europe et le fait religieux : Sources, patrimoine, valeurs, sublinha que “esta expressão se impõe por sua objetividade: sua neutralidade tanto quanto o seu caráter abrangente permitem muito bem caracterizar tanto uma adesão pessoal quanto designar uma dimensão social” (2004, 14). Mas a definição deste título para esta área de conhecimento não quer dizer que há um consenso sobre o que ele abrange. Por isso é preciso ter um olhar mais atento.

Tal denominação poderia levantar diversas desconfianças. Era preciso encontrar uma expressão, a mais neutra possível, desarmando as susceptibilidades tanto religiosas quanto antirreligiosas. Era preciso uma expressão indicando bem que, qualquer que fosse a sensibilidade pessoal, ela não se revestiria de qualquer apologia, mas, em uma perspectiva laica, de um livre exame documentado e crítico dos fenômenos que existem e constituem, quaisquer que sejam os sentimentos que se pode ter em relação a eles, uma dimensão da vida das pessoas e das sociedades.118 De antemão, Debray esclarece que “o problema não está em valorizar ou desvalorizar o religioso, de reabilitá-lo ou desacreditá-lo, mas de esclarecer de maneira circunstanciada suas incidências na aventura humana” (DEBRAY, 2003, 16). Não se trata de indicar o caminho da verdade, do bem e do bom ou ministrar um curso de moral. Nem de mostrar que os crentes tem razão e os outros estão errados: isto seria proselitismo. O fato de consciência é um fato de sociedade e um fato de cultura, um fato social total que ultrapassa o sentimento particular e de inclinação individual. É esta dimensão estruturante, identitária ou coletiva que lhe dá um lugar como objeto de estudo na escola pública.

118

Escusado dizer que se for imposta uma moral ou um proselitismo difuso através do ensino dos fatos religiosos, estes seriam facilmente negados como área de conhecimento no contexto escolar. Na tradição francesa, é óbvio que o ensino do fato religioso não pode ser uma moral, como se poderia imaginar se aquela área de conhecimento fosse chamada de ensino religioso.

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Tradicionalmente, a História das Religiões sempre foi uma denominação mais usual e genérica para o estudo científico das religiões. Foi nesta direção a proposta do sistema estadual de ensino do Estado de São Paulo ao regulamentar o ensino religioso nas suas escolas. Mas ela possui vários inconvenientes. Talvez o maior deles seja o de focalizar as religiões historicamente mais conhecidas e deixar de lado o vasto campo das expressões religiosas não sistematizadas, ágrafas e que fogem ao próprio conceito de religião do mundo ocidental. 119

Mas, na perspectiva de Debray, propor o ensino dos fatos religiosos significaria outra coisa: abordar os fenômenos religiosos com o recorte trazido pelas próprias tradições religiosas, embora com o objetivo de estudar suas expressões e práticas singulares nos contextos históricos e geográficos variados. Além disso, a expressão fatos religiosos tem uma conotação que não têm as expressões história das religiões ou ciência(s) das religiões, expressão que leva a pensar que se trata de uma série de introduções às grandes religiões mundiais. O religioso aborda as religiões no sentido onde o substantivo – religião – privilegia o repertório quase sempre apenas das grandes religiões. Fazendo aqui uma referência a Marcel Mauss, “não existe de fato uma coisa chamada religião, existem sim fenômenos religiosos mais ou menos agregados a sistemas que são chamados de religiões e que tem uma existência histórica definida nos grupos de homens e tempos determinados” (MAUSS, 1968, 93).

Mas por que Debray prefere falar de fatos? Por que ele privilegia o plural? Como chamar aquilo do que se propõe a falar, os fenômenos religiosos, fazendo justiça aos múltiplos aspectos destes fenômenos e sem os mutilar? Verificamos que, se não há uma definição científica incontestável do religioso, existem atualizações em perspectivas disciplinares e socioculturais diversas de um fenômeno com múltiplas facetas. É impossível imaginar a possibilidade de encontrar um conceito de religião adaptado a todas as ocorrências diacrônicas e sincrônicas do fenômeno: é sempre correr o risco de conceber a religião através do modelo dominante do religioso que se encontra na sociedade ocidental e na modernidade.

119

Na Universidade e na pesquisa internacional, podemos dizer que a História das Religiões tem buscado mais recentemente não restringir o campo das suas investigações e ampliar os seus questionamentos.

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Não podemos ignorar mais que a definição mesma do que é uma religião representa questões sociopolíticas tanto quanto religiosas naquela abordagem histórica e sociológica onde ela não entra diretamente. E por que isso? Porque esta abordagem constata que em todas as épocas há intensos debates sobre as delimitações deste fenômeno. Por isso é necessário ser cuidadoso com as distinções entre religião/superstição, religião/magia, igrejas/seitas. Elas têm uma história e todo estudioso dos fenômenos religiosos sabe que as relações entre ortodoxia/heterodoxia, religião legítima/religião ilegítima, religião institucional/religião desinstitucionalizada fazem parte do campo a ser analisado. Um ensino do religioso pluridisciplinar e laico não vai tomar partido entre as ortodoxias e as heresias. Ele vai além, na sua preocupação em apreender os fenômenos religiosos como expressões vivas e dinâmicas que, como todos os fenômenos sociais, são atravessadas por debates e conflitos o tempo todo.

Para a definição de religião em oposição à espiritualidade, Debray apresenta uma expressão concisa e feliz: “convicção interior que se exterioriza e sentimento individual que se socializa” (DEBRAY, 2003, 18). Ela permite concluir que o ensino escolar não está qualificado para ultrapassar o domínio do que é manifesto, quer dizer, o que cada um pode ler, ver ou entender. Para ir ao fato, não se trata de dizer que somente a experiência da fé permite compreender o fato religioso, mas de se perguntar se podemos compreendê-lo sem aprofundar as doutrinas e ter um mínimo de cultura teológica (GAUDIN, 2014, 98).

Como fatos históricos, os fatos religiosos são também fatos sociais. A expressão é cara para Émile Durkheim que, na sua preocupação de tornar precisas as singularidades epistemológicas e metodológicas de uma disciplina nascente, a sociologia, quis insistir na objetividade do social, o chamando de fato que possuía uma existência própria, independente das manifestações individuais. Marcel Mauss falou de fato social total para sublinhar que certos fatos sociais colocam em movimento a totalidade da sociedade e de suas instituições e tinham a natureza “ao mesmo tempo jurídica, econômica, religiosa e mesmo estética e morfológica” (MAUSS, 1950, 274). Sem assumir necessariamente a concepção durkheimiana do fato social como um contrato que se impõe aos indivíduos, nem a concepção maussiana do fato social total (que, aliás, possui outros diferentes sentidos no mesmo trabalho de Mauss), 218


falar de fatos religiosos representa, sem dúvida, a preocupação objetiva de uma abordagem sociológica.120 Podemos concordar com Borne & Willaime (2007) que a expressão fato religioso permite sublinhar diferentes aspectos do religioso. Com esta abordagem, trata-se de um fenômeno que pode ser estudado através de, pelo menos, quatro ângulos: como um fato coletivo, material, simbólico e como um fato experimental e sensível na escala individual e coletiva. Como um fato coletivo, podemos observar que os sujeitos religiosos partilham alguma coisa em comum, sentem-se pertencentes a um mesmo mundo e se encontram mais ou menos regularmente. Há pessoas que, de formas extremamente diversas, se relacionam na prática de ritos, na leitura de textos, em reuniões, se comportando de tal ou tal forma. Este caráter coletivo do fato religioso implica uma divisão do trabalho religioso com determinadas divisões de papéis e autoridades, conforme já estudado por Bourdieu (2005). O religioso primeiro religa os homens e, depois, estes com a divindade, conforme uma das etimologias do vocábulo religião – religare.121 Trata-se de um gênero de sentimentos coletivos das comunidades, dos movimentos, das instituições. Mas enfim, para que serve a religião para o ser humano? Morin & Kern respondem: “por que termos a necessidade, para procurar a hominização e civilizar a Terra, de uma força comunicante e comungante. É necessário um arrebatamento religioso nesse sentido para operar nos nossos espíritos

120

Borne & Willaime lembram que desde a sua fundação por Danièle Hervieu-Léger em 1993, o laboratório de Ciências Sociais da Religião na École des hautes études en sciences sociales - Centre national de la recherche scientifique (EHESS-CNRS) é significativamente chamado de Centro de Estudos Interdisciplinares dos Fatos Religiosos (CEIFR). 121 Religião vem do verbo latino religare (re-ligare). Religar tanto pode ser um novo liame entre um sujeito e um objeto, um sujeito e outro sujeito, como também entre um objeto e outro objeto. Obviamente, o religar supõe ou um momento originário sem a dualidade sujeito/objeto ou um elo primário (ligar) que, uma vez desfeito, admite uma nova ligação (re-ligar). Lembrando da narrativa de Abel e Caim em Gênesis e do relato mítico grego de Chronos. À fraternidade originária se segue o fratricídio e daí a busca dos múltiplos caminhos de recuperação da irmandade perdida. Também o jusnaturalismo, na versão hobbesiana, rechaça a ideia de um ser humano naturalmente social, como queriam os clássicos e os medievos, e defende o homo homini lupus. Busca-se um novo elo de ligação entre os humanos, iguais entre si. A estes caminhos de religação, muitos nomes foram dados, daí nascendo também múltiplas maneiras de religações, civis, laicas ou sacrais. Entre outras denominações pode-se citar a via de reconstrução racional da vida social e política pelo pacto ou contrato racionais, a fraternidade universal realizada, a humanidade altruísta, o reino da liberdade, a justiça na igualdade, o abraço do lobo com a ovelha nos novos céus e nas novas terras, a paz perpétua e também a ligação do homem com a divindade.

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a re-ligação entre os humanos, a qual por si mesma estimula a vontade de ligar os problemas uns dos outros.” (MORIN & KERN, 2001, 150).

Com base nesta propriedade que tem todo fenômeno religioso de ser comum a um grupo de homens, Marcel Mauss afirma que “é possível seguir as fileiras dos fatos e se passar das manifestações mais exteriores às condições mais distantes e mais íntimas da vida religiosa. Mas quando se tenta alcançá-los na primeira tentativa, pela simples introspecção, aparecem seus preconceitos, suas impressões pessoais e subjetivas em vez das coisas.” (MAUSS, 1968, 548).

Já o fato religioso como um fato material quer dizer que o religioso se relaciona, não somente aos homens, mas também aos textos, às imagens, às canções, às práticas, às construções e aos objetos. É alguma coisa no campo do arqueológico, literário, artístico, cultural que se deixa ver. O estudo destes traços e destas obras, como demonstrou Isabelle de Saint-Martin (2014) é também fundamental para a apreensão pluridisciplinar dos fatos religiosos. Os fatos religiosos também se referem às representações do mundo, de si mesmo, dos outros, da divindade ou das forças sobrenaturais, das teologias e das doutrinas, dos sistemas morais. Em consonância com outra etimologia da palavra, relegere, o religioso se deixa aqui apreender como uma perpétua leitura e releitura das tradições, dos signos e dos textos fazendo deles o objeto de interpretações que serão discutidas, contestadas e/ou renovadas. Este aspecto é assim tão importante quanto os precedentes e ele merece ser sublinhado, especialmente porque a expressão fatos religiosos pode ter por parte de alguns uma conotação positivista. Como já dissemos aqui, falar de fatos religiosos não significa reduzir o estudo dos fenômenos religiosos aos aspectos materiais e visíveis deles mesmos: “O estudo do religioso como fato coletivo implica evidentemente a exploração de significados, a exploração dos sistemas de sentido que constituem os mundos religiosos. As expressões sociais e culturais das religiões são incompreensíveis se não se faz a exegese dos textos, se não se mergulha na história dos dogmas, se não se analisa com profundidade as querelas teológicas e suas consequências para a sociedade.” (BORNE & WILLAIME, 2007, 44).

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De outra forma, é preciso levar também em conta as expressões religiosas como objeto de racionalização intelectual, e particularmente a história das teologias relacionadas com a história do pensamento filosófico. Para Borne & Willaime (2007), os fatos religiosos são também objetos de investigação intelectual. Para estes autores, o estudo das doutrinas faz parte da aplicação didática da investigação científica através de uma pedagogia adequada em sala de aula. Por último, temos o fato religioso como fato experimental e sensível na escala individual e coletiva. Esquecer que as representações e as práticas religiosas são experimentadas por milhões de pessoas que veem nelas, em diferentes graus, uma dimensão essencial de suas vidas, seria mesmo um grave erro epistemológico. O religioso experimental e sensível se refere ao fato de que estes esquemas simbólicos da condição humana são fenômenos religiosos ao nível das sensibilidades. Como as identificações nacionais, linguísticas, culturais ou étnicas, as identificações religiosas tanto podem expor as paixões, gerar fanatismos e conflitos como também compromissos altruístas e mediações pacíficas e desejáveis. A História pretérita e atual está aí para nos demonstrar vários exemplos dos dois lados. Mas as dimensões sensíveis do religioso não se reduzem a estas expressões negativas ou positivas, elas se preocupam também com o religioso comum que se vive no cotidiano, nas diferentes formas de culto, de contemplação, de oração, de louvor, de pessoas vivendo individualmente ou coletivamente os momentos fortes de sua espiritualidade que uma abordagem sócio-histórica dos fenômenos religiosos deve também levar em conta: “O estudo dos fatos religiosos é por isso também o estudo dos místicos e das espiritualidades, o estudo dos sentimentos religiosos. Assim como é experimental e sensível, o religioso motiva a agir em tal ou tal sentido. O religioso, mais ou menos intensamente, induz a comportamentos, estrutura as condutas de vida, incluindo, como bem mostrou Max Weber, até mesmo o campo econômico.” (BORNE & WILLAIME, 2007, 45-46).

As maneiras de se representar as relações de homens e mulheres com a esfera do que eles consideram como transcendente estão ligadas às maneiras concretas de se conduzir na vida, podem ter consequências não somente nas práticas alimentares e nas maneiras de se vestir, mas também nas maneiras mesmas de se conduzir na política, no 221


trabalho, no lazer e em outros campos. Daí porque, para Borne & Willaime (2007), falar de fatos religiosos é também estar atento ao estudo das dimensões consequenciais das identificações religiosas, em todos os setores da vida humana. Mas é preciso deixar bem claro que o estudo dos fatos religiosos não pode se reduzir ao estudo das inter-relações entre religiões e sociedade, entre a religião e economia, religião e política, religião e educação, religião e saúde, por exemplo. Seria, a nosso ver, uma visão reducionista. Ele não se reduz a isso, mesmo que o estudo das relações entre o religioso e as outras esferas de ações humanas faça incontestavelmente parte de suas especificações: “Se estudar os fatos religiosos consiste bem em analisar as múltiplas interferências entre as expressões religiosas e outros campos da vida humana, se estudar os fatos sociais consiste em historicizar e contextualizar bem o exame das representações e práticas religiosas, então ele consiste também em descrever e analisar o cerne das expressões religiosas, as formas de devoção, as representações das divindades, as práticas rituais, as relações com os textos, com a história, com a sua própria história, incluindo aí as relações das próprias religiões com as objetivações sócio-históricas de que elas foram objeto.” (BORNE & WILLAIME, 2007, 46).

A abordagem pluridisciplinar e laica dos fatos religiosos não se reduz ao estudo do não-religioso no religioso, ele deve envolver todos os aspectos do religioso. “O fato religioso não é tudo, mas está em quase tudo” (DEBRAY, 2003, 18). Esta é uma das razões de que, na concepção adotada pela França, ele não constitui uma esfera à parte e nem corresponde ao objeto de uma disciplina em si. 122

122

É interessante perceber como na França existem os extremos harmônicos. Sendo um Estado laico e tendo uma lei específica sobre a interdição ao uso dos sinais religiosos na escola, é também o Estado que prevê a liberação de um dia da semana para que os pais possam enviar os filhos à catequese, caso o desejem; que propicia meios para que os alunos possam realizar seus cultos, durante os estágios escolares, quando viajam ou ficam longe da família; que fornece uma segunda opção de cardápio, quando a carne prevista é de animal interditado em certas religiões (caso da carne de porco pelos muçulmanos e judeus); que propõe carne de peixe às sextas-feiras nos cardápios escolares - tradição judaico-cristã de abstinência de carne vermelha neste dia da semana. A França é o país onde se comemora o dia de «Todos os Santos», sendo o 1º de novembro feriado nacional, enquanto no Brasil, são os mortos - dia 2 de novembro - que nos garantem o feriado; onde o Ramadã muçulmano é respeitado e o abate do cordeiro é fiscalizado por religiosos em abatedouros autorizados e controlados pelos órgãos sanitários; país considerado «a filha primogênita da Igreja Católica» e país onde se encontra uma das maiores comunidades ecumênicas do mundo: Taizé; uma sociedade extremamente secularizada mas com maior número de santos católicos e lugares de peregrinação (Lourdes, Lisieux, Paray-le-Monial, etc.); país laico, profundamente marcado pela religiosidade, de extremos harmônicos, em busca de um respeito e uma tolerância somente possível através de uma ruptura de alguns tabus, dentre eles aquele de que «religião não se discute». (cf DOMINGOS, Maria de Franceschi

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De fato, não há, do ponto de vista das ciências humanas, nenhum domínio que possa ser subtraído da pesquisa. Mas há um dever de objetividade, de distanciamento e de apreensão cientificamente válido do objeto, deontologia que pressupõe respeitar este objeto na sua complexidade e suas especificidades, incluindo assim, no fato que concerne aos homens e às mulheres que, participando ativamente de seu tempo, encontrem sentido em tal ou tal identificação religiosa. Se a abordagem dos fatos religiosos pelas ciências humanas, para a objetivação sócio-histórica que ela representa, tem incontestáveis efeitos críticos com relação a toda percepção a-histórica das religiões, ela não constitui para muitos uma crítica da religião, quer dizer uma invalidação filosófica e uma desqualificação social e cultural destas maneiras de colocar em formas simbólicas a sua existência. A fim de se garantir aos alunos e às alunas a abertura mais objetiva possível à diversidade das visões de mundo e dos saberes, nenhum tema está, portanto, excluído do questionamento científico e pedagógico: não há tema tabu na escola laica, como já afirmara Debray. Nesse sentido, outro documento de referência importante e bem recente, na França, enviado às escolas pelo Ministro da Educação em 9 de setembro de 2013, foi a Carta da Laicidade na escola e os recursos pedagógicos para a sua observância nos estabelecimentos escolares. No seu artigo 12, esse documento afirma categoricamente que o ensino dos fatos religiosos tem seu lugar garantido na escola por duas razões: “tudo o que se ensina na escola deve ter o selo da laicidade, respeitando totalmente a liberdade de consciência dos alunos e alunas [...] e os fatos religiosos são um elemento importante da cultura geral que os alunos e alunas devem adquirir.” (CHARTRE DE LA LAICITÉ, EDUSCOL, 2013).

A abordagem sociológica da religião para o ensino do religioso

A necessidade uma sólida base epistemológica para o ensino do religioso na escola pública passa necessariamente por uma abordagem pluri e transdisciplinar, tanto que esta foi a principal razão do governo francês ao não se criar

Neto. Escola e laicidade: o modelo francês. In INTERAÇÕES – cultura e comunidade. Uberlândia: Faculdade Católica de Uberlândia, 2008, 164-165).

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uma disciplina específica para o ensino do religioso. No Brasil, a partir do momento em que existe uma tradição de um ensino religioso escolarizado em forma de uma disciplina no currículo, consagrado na Constituição e na LDB, com um horário previsto na grade de horários, coloca-se uma necessidade ainda mais premente de se se estabelecer com clareza aquela base epistemológica a partir de uma noção a mais exata possível do que é a própria religião. Neste sentido, além da Filosofia, da História, da Geografia, das Artes e das Linguagens, a Sociologia, desde os seus clássicos, tem muito a contribuir com a formatação científica da própria religião, do religioso e do(s) fato(s) religioso(s), em condições de serem levados didaticamente para a sala de aula. O religioso está na intercessão de diferentes aspectos focalizados acima. Falar de fatos religiosos não é arriscar uma definição (como se poderia supor com fato religioso no singular), mas é destacar maneiras de abordá-los em uma perspectiva pluri e transdisciplinar com uma preocupação de objetivação e desideologização. Concordamos que privilegiar o plural é destacar tanto a extrema variedade fenomenal do religioso quanto a multiplicidade das dimensões implicadas, coletivas, materiais, simbólicas e sensíveis, como já vimos. O fato religioso, em todos os seus aspectos, pode ser entendido tanto como um programa que consiste em falar de um modo não religioso do religioso, quanto em reconhecer a consistência de seu objeto, ou seja, sem reduzi-lo ao que ele não é: “O religioso é um fenômeno histórico e sociocultural por demais importante para que seja abandonado às consciências crentes ou nãocrentes que, por excesso ou por falta, podem se juntar na dissolução do religioso como fenômeno histórico e sociocultural.” (BORNE & WILLAIME, 2007, 47).

É o processo da modernidade que, diferenciando as esferas das atividades humanas, colocou a questão do que se devolveria ao religioso e do que não se lhe daria. A palavra religião passa assim designar um fenômeno próprio. Portanto, falase do campo religioso, das instâncias religiosas e das relações que o religioso mantem com a cultura, o social, a política e a economia. Ou, como observa Émile Benvieniste, “não concebendo esta realidade onipresente que é a religião como uma instituição separada, os indo-europeus não possuíam um termo para designá-la” (BENVENISTE, 1969, 265). A distinção entre religião e não religião é extremamente problemática em 224


algumas culturas, sendo que para o hinduísmo e o budismo religião representa certo modo de vida ou filosofia de vida e não uma religião como no seu sentido ocidental. O mesmo ocorre com as culturas indígenas e de origem africana no Brasil, detentoras de uma cosmovisão bem diferente da dos ocidentais. Poder analisar os fenômenos religiosos como fatos sociais pressupôs, em todo caso, uma secularização do saber sobre a sociedade: a emergência de uma análise científica das religiões é inseparável de uma evolução social ao mesmo tempo marcada pela função englobante da religião. A gênese sócio-histórica do conceito de religião na modernidade ocidental é acompanhada por uma progressiva elaboração da religião como objeto de estudo, sendo que ciências do religioso e conceito de religião passam a ser historicamente interdependentes. O desenvolvimento das ciências da religião tem forçosamente complexificado, como toda ciência que se respeite, a definição de seu objeto.

123

Não

existe uma definição de religião que seja unânime entre os pesquisadores e alguns já até falaram de uma torre de babel de definições. De fato, é difícil isolar totalmente a definição do religioso da análise que se faz, e as definições propostas refletem inevitavelmente as orientações das pesquisas de seus autores.124 Conforme se privilegie um paradigma textual ou um paradigma comportamental, o objeto religião será definido diferentemente. Há muitos pontos de vista disciplinares possíveis para definir o religioso, e a abordagem sociológica dos fatos religiosos não é exclusiva de outras abordagens. As origens sociológicas do fato religioso justificam, entretanto, um olhar particular sobre o modo de abordagem desta disciplina. Desde seu início, na virada do século do século XIX para o XX, a sociologia se interroga sobre o futuro do religioso nas sociedades modernas ocidentais. Isso porque as sociedades europeias mudaram profundamente a partir das revoluções políticas, econômicas, científicas, sociais e culturais, e assim, se impôs um estudo sistemático do funcionamento das sociedades. Foi central este desejo de identificar os 123

Michel Despland chegou a listar quarenta definições de religião, desde suas origens greco-latinas até o final do século XVIII. Já foram identificadas por outros pesquisadores cerca de trinta e uma definições de religiosidade e quarenta definições de espiritualidade nas publicações em ciências sociais publicadas de um século para cá. 124 Conforme o país, a abordagem científica do religioso foi marcada por um tropismo particular. Assim é frequente sublinhar o contraste entre a origem das religiões pelos textos na Alemanha, onde a história das religiões foi fortemente marcada pela filologia, e a origem das religiões pelos ritos e costumes na GrãBretanha, onde se mais desenvolveu a antropologia.

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contornos da nova maneira de viver em sociedade que implicavam todas essas mudanças sobre o futuro da religião. Longe de ser um aspecto marginal dos pensadores clássicos da sociologia, a sociologia das religiões foi, ao contrário, uma dimensão essencial do seu trabalho, o que se verifica particularmente com Émile Durkheim e Max Weber. Dado o papel central jogado pelas representações e pelas práticas religiosas na vida das sociedades, a emergência das sociedades modernas significava uma reorganização profunda do lugar e do papel do religioso, até mesmo sua perda inevitável de influência, como vimos no Capítulo II. As abordagens sociológicas puderam pouco a pouco esclarecer uma maneira específica de abordar os fenômenos religiosos, isto é, uma maneira particular de os constituir como fatos sociais, objetos de observação e análise. Fiel às Regras do Método Sociológico que escreveu em 1895, Émile Durkheim, tentou circunscrever o estudo científico dos fenômenos religiosos propondo uma definição de religião. Ao final de uma elaboração crescente da noção de sagrado, ele chega à distinção do profano e do sagrado: “Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam um mesmo caráter comum: elas supõem uma classificação das coisas reais ou ideais que se apresentam aos homens, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos distintos que traduzem muito bem as palavras profano e sagrado [...] Uma religião é um sistema solidário de crenças e práticas relativas às coisas sagradas, quer dizer, separadas, interditas, crenças e práticas que unem em uma mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a ela aderirem.” (DURKHEIM, As Formas Elementares da Vida Religiosa, 1989, 68).

Fazendo do religioso uma dimensão intrínseca da sociedade, destacando seu poder de expressão e de fortalecimento dos laços sociais, Durkheim destaca de forma incontestável uma função importante do religioso: sua função de integração social. Mas Borne e Willaime (2007) nos alertam aqui que a sua abordagem não leva em conta o aspecto contrário, ou seja, a religião como fator de desintegração social, a religião como vetor de reação e protesto. Ela pode também ser a expressão de uma luta ativa contra o status quo e gerar atitudes de retirada do mundo, seja

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coletivamente através da construção de sociedades alternativas, seja individualmente através da mística, por exemplo. 125 A problemática durkheimiana nos convida também a refletir sobre esta propensão que possuem as sociedades em se colocarem, de maneira alusiva, sob um dossel sagrado, na intuição de Peter Berger (2003), como se fosse necessário inscrever a ordem social contingente na órbita do sagrado, a ponto de Robert Neely Bellah, sociólogo americano, considerar também Durkheim como “um grande sacerdote e um teólogo da religião civil da Terceira República Francesa” (BELLAH, 10). Outro interesse da abordagem durkheimiana é sua insistência sobre o aspecto dinâmico do sentimento religioso. Para Durkheim, a religião é uma força, é uma força que permite os sujeitos religiosos agirem: “O fiel que fala com seu Deus não é apenas um ser humano que vê as novas verdades que o não-crente ignora; é um homem que pode mais. Ele sente em si mais força, seja para enfrentar as dificuldades da existência, seja para as superar. É como se elevasse acima das misérias humanas porque se estivesse acima da sua condição de homem; ele acredita estar salvo do mal, sob qualquer forma, seja qual for a maneira que ele concebe o mal. O primeiro artigo de toda fé é a crença na salvação pela fé.” (DURKHEIM, As Formas Elementares da Vida Religiosa, 1989, 75).

Se a religião é ação, se a fé é antes de tudo um ímpeto para agir, compreende-se melhor, portanto, porque Durkheim pensava que a ciência era impotente para fazer desaparecer a religião, como vimos no Capítulo II. A ciência reduz as funções cognitivas da religião e contesta a sua pretensão de ditar os empreendimentos do conhecimento, mas ela não pode negar a realidade e impedir que os homens continuem a agir levados pelo ímpeto da fé religiosa. Para Borne e Willaime (2007), este é o grande paradoxo da abordagem durkheimiana da religião. Se por outro lado, ela parece reduzir a religião ao social, de outro parece que ela traz de volta o social ao religioso ao considerar que uma sociedade não pode realizar uma sacralização do sentimento coletivo. O grande

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Durkheim não diferencia, neste caso, a sociedade religiosa em relação à sociedade civil. Mas esta limitação da abordagem durkheimiana é também o seu diferencial. Com efeito, são numerosos os exemplos onde a religião é um elemento importante de afirmação de identidade coletiva, como ocorre com o Islã xiita no Irã, como o Catolicismo na Polônia, a Igreja Ortodoxa na Grécia, o Luteranismo na Suécia e vários outros.

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problema de Durkheim era justamente saber como a sociedade moderna, caracterizada pelo individualismo e a solidariedade orgânica (divisão do trabalho), poderia gerar consenso e coesão social. O grande sociólogo francês responderá insistindo sobre o caráter sagrado da pessoa humana: “não há mais nada para o homem poder amar e honrar em comum que o próprio homem”, escreveu Durkheim em 1914. A sacralização da pessoa lhe parece como “a única convicção moral que pode unir os homens de uma sociedade moderna”. Durkheim traz assim um debate muito atual sobre a relação social e os fundamentos éticos das sociedades pluralistas onde alguns se perguntam como garantir laicamente a sacralidade dos direitos do homem e da mulher (BAUBÉROT, 1996). Já para Weber, a religião é uma espécie particular de se agir na comunidade. Daí ele se propõe a estudar as condições em que isso ocorre e quais as suas consequências. Na sua obra Economia e Sociedade (2014), ele fez duas anotações importantes: a) a religião se refere à maneira de se conduzir sobre a vida; b) os atos motivados pela religião, ao menos relativamente, são racionais. Uma das contribuições de Weber foi justamente o de mostrar que há diferentes tipos de racionalidade – uma racionalidade instrumental e uma racionalidade axiológica – e que o racionalismo da religião jogou um papel essencial na emergência da modernidade. Além disso, é por demais conhecido o estudo de Weber sobre as diversas formas do poder religioso. Ele elaborou uma tipologia de autoridades religiosas a partir do reconhecimento das diferentes formas de legitimação do poder na vida social (racional-legal, tradicional ou carismática).126 No domínio religioso, estes três modos de legitimação do poder definem os tipos ideais do sacerdote, do feiticeiro e do profeta. Esta tipologia de formas de autoridade religiosa deve ser utilizada, naturalmente, com cuidado, mas seu poder heurístico é grande e numerosos sociólogos da religião fazem referência a ele. Outra contribuição de Weber foi a sua teoria dos tipos de formação das comunidades religiosas, ao distinguir a igreja de uma seita como dois modos de existência social da religião. A primeira constitui uma empresa burocratizada de salvação

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A legitimação racional-legal do poder corresponde à autoridade administrativa, uma autoridade impessoal que responde pela credibilidade e pela validade dos regulamentos e das funções. O poder tradicional se baseia no crédito da validade do costume, na legitimidade da transmissão tradicional das funções (por exemplo, a função hereditária). Quanto à autoridade carismática, ela é o tipo de poder pessoal porque sua legitimidade se baseia na aura reconhecida de um determinado indivíduo.

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aberta a todos e onde se exerce a autoridade da função de sacerdote: ele está em simbiose estreita com a sociedade englobante. A segunda, como uma forma de associação voluntária de crentes em ruptura mais ou menos marcada com o ambiente social; no interior de uma tal associação prevalece uma autoridade religiosa de tipo carismático. Assim, quem nasce membro de uma igreja pode tornar-se membro de uma seita por uma decisão voluntária.

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Podemos concluir que Émile Durkheim e Max Weber são dois modos de apreensão dos fatos religiosos que nos mostram que, mesmo no interior de uma disciplina, a construção do objeto de estudo e a escolha dos ângulos de análise podem ser diferentes. Para eles falar de fatos religiosos não esvazia a necessária elaboração de seu objeto de estudo: nunca é um fato simplesmente dado, ele possibilita diversas perspectivas de estudo e de análise, a partir dos materiais que constituem os fatos coletivos, os traços culturais, as realidades simbólicas e sensíveis através das quais aparecem os fenômenos religiosos. Podemos considerar que outra grande lição destes sociólogos clássicos é que o estudo dos fatos religiosos foi uma contribuição importante pra a análise da sociedade no seu conjunto. Se se pôde acreditar, logo após a II Guerra, que a religião constituía um fenômeno social em vias de desaparecer, como se mais modernidade significasse obrigatoriamente menos religião, os fatos estão mostrando justamente o contrário, como colocamos no Capítulo II. Se a secularização, particularmente nas sociedades ocidentais, se manifesta por uma queda sensível do poder social de enquadramento e de influência das instituições religiosas, se esta secularização é incontestavelmente traduzida por uma queda bastante sensível das diversas práticas religiosas, podemos concluir que a modernidade contemporânea não está menos religiosa, mas tem outra religião. As maneiras de ser religioso, de se referir a uma verdade considerada transcendental e de vivê-la socialmente evoluem no contexto das mudanças sociais globais. Estudar os fatos religiosos é também sair das filosofias lineares da história prevendo um destino desconhecido para o religioso, tendo cuidado para o fato de que o

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Igreja ou seita são, na abordagem de Weber, dois tipos ideais, ou seja, dois modelos elaborados pela pesquisa e que não existem em estado puro na realidade, mas que são polos úteis de referência para o estudo da realidade empírica.

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religioso também muda e que ele se inscreve como um fenômeno dentre outros na evolução global das sociedades. A noção do fato religioso ressaltada por Debray e por outros que o seguiram, se não é uma definição simples e unívoca, pode ser considerada proveitosa, sobretudo para o ensino. Não somente porque, como eles ressaltam, é preferível escolher o adjetivo religioso ao substantivo religião, mas também porque isso permite entrar na inteligibilidade dos fenômenos religiosos tendo cuidado também tanto para as suas dimensões de fatos coletivos e materiais quanto para suas dimensões de fatos simbólicos e sensíveis. Falar de fatos religiosos, concordamos, não é adotar de forma simplista uma abordagem positivista que perderia a profundidade simbólica e o caráter sensível destes fenômenos. Nas palavras de Borne & Willaime, “Reconhecer a profundidade simbólica do religioso é justamente levar em conta a lacuna hermenêutica (Paul Ricoeur) que está no coração das expressões religiosas: na abordagem das verdades que reivindicam estas expressões, há [...], sempre lugar para a interpretação. Os sentidos que veiculam as expressões religiosas não são simples atualizações na relação entre significantes e significados, entre palavras e significações, eles são colocados em relação complexa atravessada pela diacronia (em relação com as tradições de interpretação) e a sincronia (em relação com os contextos socioculturais diversos).” (BORNE & WILLAIME, 2007, 56-57).

Colocadas em formas simbólicas a condição humana em relação com a presença-ausência de um outro (as figuras do divino, os espíritos, os ancestrais ...) as religiões são linguagens e tem uma história: estas formas simbólicas participam na construção do relacionamento dos sujeitos religiosos consigo mesmo, da relação com os outros e da relação com o mundo, eles os formatam e os motivam, gerando práticas e condutas de vida. Através do estudo dos fatos religiosos e do desenvolvimento de um ensino pluri e transdisciplinar relativos a estes fatos, é exatamente a apreensão dos sistemas simbólicos que está em jogo, uma apreensão que consiste em uma contribuição essencial à inteligência e à evolução das sociedades. A compreensão das linguagens simbólicas deve fazer parte dos fundamentos da educação escolar no contexto da mundialização. É um sinal incontestável de maturidade da laicidade escolar se abrir para a formação dos alunos e dos professores tais perspectivas cada vez mais indispensáveis nas sociedades pluralistas. Exatamente como dizia Dominique Borne:

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“O estudo do religioso desemboca naturalmente sobre todos os problemas da atualidade. Ele não leva a estes problemas nenhuma resposta global. Ele ensina como melhor respeitar o outro, ele ensina identificar os signos, a reconhecer as linguagens, a dar sentido ao mundo. O ensino do fato religioso na escola deve, como dizia Katherine Weinland, não sacralizar as abordagens nem profanar os conteúdos. Ele se inscreve em um contexto de maturidade da laicidade.” (BORNE, 2003, 369).

O ensino dos fatos religiosos na escola laica, portanto, não procede de uma ruptura fundamental da concepção da laicidade na França e no Brasil. Certamente, ele vem da maturação da laicidade e de uma evolução de sua prática, ou ainda do aparecimento de uma nova configuração ideológica em torno do seu núcleo filosófico e jurídico. Ensinar os fatos religiosos na escola pública não é apenas um olhar dentre outros, que permite explicar o mundo para os alunos, mas também, dentre outros, uma caminhada que lhes permite compreendê-lo e, sobretudo, pensá-lo. É, pois, uma caminhada pedagógica que conjuga complexidade e totalidade e que passa, prioritariamente pelas narrativas, pelos textos e pelas obras. Esta caminhada é sempre ocasião de se passar da forma ao sentido e perceber que o religioso, assim também como o artístico, vai sempre além de qualquer abordagem que dele se possa fazer (BORNE, 2003). Mas o religioso não se restringe ao patrimonial, ele está firme no mundo presente. O conhecimento propriamente científico obedece a certo número de critérios que, sem dúvida, não concordam com a totalidade do fato religioso. Mas os homens e as mulheres não necessitam apenas da ciência para conhecer o mundo, eles têm também necessidade de fazer a sua leitura, de exprimi-lo por si mesmos e de agir. A religião como também a arte são os recursos maiores para isso, para falar da condição humana no mundo. Como a escola pode se esquecer de que ela deve formar homens e mulheres, e não apenas cidadãos? Instruir, certamente, mas educar também! Pedagogicamente, todo o problema será de não ficar na totalidade mais ou menos fascinante, mas também para entrar na complexidade das determinações de todas as naturezas, não ficar cego diante dos detalhes das partes que faz desaparecer o todo e da unidade de que se busca aproximar. (BORNE, 2003).

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As considerações destes dois últimos parágrafos pertencem a Dominique Borne, feitas na conclusão do Seminário Nacional Interdisciplinar organizado em Paris em novembro de 2002, logo após a divulgação do Relatório Debray. Pode parecer até que tenham saído da boca de um Edgar Morin. Ou, quem sabe, até de um Boaventura de Sousa Santos. Tentamos neste trabalho um diálogo entre os dois lados que só teria a contribuir na discussão sobre o ensino do fenômeno religioso em uma sociedade secularizada e no contexto de um Estado laico como no Brasil e na França. Mas nem Borne, nem nenhum dos acadêmicos franceses que contribuem para recepção de uma nova laicidade de inteligência, como Jean-Paul Willaime, Jean Baubérot, Philippe Gaudin e Isabelle de Saint-Martin, fazem qualquer referência a Morin e a Boaventura. Também na questão da política pública do ensino dos fatos religiosos na França, que só se entende a partir daquela nova perspectiva de laicidade compartilhada por Morin e Boaventura, estes teriam muito a dizer, mas eles permanecem impermeáveis nos meios acadêmicos franceses. Arriscamos em dizer que são, até certo ponto, desconhecidos. O rigor científico utilizada na abordagem dos fatos religiosos da França se explica ainda pela necessidade de demarcar um campo estrito da competência do Estado em gerir a diversidade cultural e o pluralismo religioso, atendendo ao preceito de neutralidade imposta pelo seu caráter laico. Mas os dois lados apontam para horizontes comuns, sem ao menos conhecerem as preocupações e elaborações uns dos outros. Por vias transversas, apostam na construção de uma racionalidade mais ampla na busca de uma convivência para o bem viver com a construção de uma racionalidade mais ampla e mais cosmopolita que abarque e credibilize todos os saberes, inclusive os saberes religiosos. Como é urgente a conjugação de esforços, inclusive intelectuais, se quisermos apostar na construção da casa comum que nos garanta, para nós e para as futuras gerações, um outro mundo possível, com mais tolerância e aceitação do diferente. Cabe aqui, sem dúvida, a proposta do trabalho de tradução proposta por Boaventura. O princípio da incompletude de todos os saberes, considerados científicos ou não, é a condição da possibilidade de diálogo e debate epistemológicos entre diferentes formas de conhecimento. Este é o caminho para criar inteligibilidade recíproca entre as experiências e saberes do mundo, tanto os disponíveis quanto os possíveis. Acreditamos que as condições estão dadas para este trabalho de tradução entre os autores do pensamento crítico e os propulsores de uma nova laicidade a partir da França. Como a sociedade 232


humana teria a ganhar, como o conhecimento teria a ganhar se estes dois lados se sentassem à mesma mesa. Como disse o próprio Morin, na célebre entrevista dada em 1985 à revista Voies Livres de Lyon, e que permanece muito atual: “Estudei os pensamentos de estruturas que temos e que acreditamos possuir. Eu cheguei à conclusão de que estamos em uma relação muito bárbara no que diz respeito às nossas ideias. [...] estamos possuídos por uma ideia que nos controla, sem saber o que realmente fazemos. Nós temos grande dificuldade em falar. Não só entre os indivíduos: os sistemas de ideias [...] mesmo quando se trata de importantes cientistas. Tenho muitas vezes dado o exemplo de Chomsky e Piaget, que são duas grandes mentes, mas não incluem nem um nem o outro o que o outro está dizendo. Eles não entendem que o problema não é discutir os fatos, mas a necessidade urgente de comunicar as estruturas de pensamento. Nós somos (ainda) bárbaros nessa área.” (MORIN, 1985).

Capítulo IV Uma perspectiva teleológica para o ensino do fenômeno religioso na escola pública: conhecer para conviver

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Depois de respondermos as questões de o quê e como ensinar o fenômeno religioso na escola pública, laica e democrática no Capítulo III, chegou o momento de avançarmos para a crucial e difícil questão do para quê. Neste capítulo, iremos buscar uma perspectiva teleológica para o ensino do fenômeno religioso na escola pública. Mais uma vez, também aqui, além da necessidade de uma clara base epistemológica que já defendemos no capítulo anterior, esta teleologia precisa estar intimamente conectada com a realidade presente de uma sociedade diversa e plural como também aos postulados reconhecidos do Estado laico na sua nova perspectiva flexível, mediadora e inclusiva de que falamos no Capítulo II. Decidir o que deve ser ensinado e para que se ensinar dentro de uma sala de aula é tarefa bastante complexa, pois estamos definindo os rumos que a sociedade deve tomar. Não se trata de um ato gratuito e sem repercussões. Mesmo com toda a crise que estamos vivendo na educação, a escola ainda é um locus decisivo para o futuro de crianças e adolescentes. Mesmo sendo consensual a necessidade da educação escolar como constitutiva e constituinte do nosso tempo e da nossa sociedade, ainda assim o debate acerca do que ensinar e para que se ensinar constitui-se um desafio impar para a sociedade, o Estado e, principalmente, para os educadores. Não podemos esquecer que o debate sobre o educar e sobre o ensinar passa pelo debate sobre a existência humana e pela discussão da falta de humanidade do nosso tempo. A escola é historicamente um espaço privilegiado de aprendizagem, mas esta aprendizagem não se situa apenas no universo cognitivo e técnico da instrução. É consensual que a escola tem uma função comprometida com a formação de valores. Um projeto político-pedagógico deve garantir esta função. Nada melhor para isso do que iniciarmos pela própria inteligência como a base ou a condição para o conhecimento. Podemos ter a inteligência do mundo que nos cerca (ciências naturais) ou mesmo do espaço em que vivemos (geografia) ou aquela do nosso passado (história). Mas o que nós entendemos por ‘inteligência’? Não existem várias formas de alcançá-la? Fala-se de ter uma inteligência dos fenômenos religiosos, ou seja, da capacidade de aprender, apreender ou compreender os fenômenos religiosos. Inteligência, então, neste sentido, significa intelecção, percepção, apreensão, compreensão.

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Todos concordam também que, com a inteligência assim conceituada, não é fácil ter um acesso esclarecido e informado, por exemplo, do conjunto das obras de arte que constituem nosso patrimônio cultural brasileiro. Lembremos das obras de Oscar Niemeyer em Brasília ou dos profetas do Aleijadinho em Congonhas. Em relação às religiões, mais difícil ainda. Mas desde o instante que tomamos consciência do aspecto de intimidade que cerca a arte e a religião, é todo um mundo que se abre diante de nós. Não apenas do ponto de vista da quantidade do que existe para se conhecer, mas também do ponto de vista do tipo de inteligência e de cultura que isso requer. Neste sentido, as religiões, até mais do que as artes, são tentativas de explicação do mundo e que se tornaram progressivamente obsoletas pelo progresso científico e tecnológico para grande parte da sociedade ocidental.

Não há dúvida de que a religião, como fato social total, esteja duramente confrontada com o progresso das ciências e das técnicas a ponto de ter de revisar radicalmente seu discurso sobre a ordem da natureza e reformar profundamente suas promessas de salvação. A certeza de se atingir o infinito era antes a promessa dos discursos religiosos. Agora, desaparece a noção de limites da condição humana. Surge a noção de ser humano como um ser ilimitado. Com isso surge a ideia de que podemos realizar todos os nossos desejos; e mais do que isso, a noção de que temos a obrigação de lutar para que todos os nossos desejos sejam realizados (SUNG, 2006, 25). A modernidade prometeu o progresso até o infinito, sem limites para a inteligência humana e a razão. O homem passou a ser o seu próprio infinito (MORIN & KERN, 2001).

Mas, purgadas cada vez mais daquelas funções, que a ciência e a técnica assumem cada vez melhor, as religiões vêm se impondo naquilo que elas possuem de irredutíveis: interpretar o mundo em vez de dominá-lo ou mais exatamente, “interpretar o mundo para o homem e o homem para o mundo”, como afirma GAUDIN (2014a). Mas para se interpretar o mundo, o ser humano precisa de uma linguagem. Se é próprio da linguagem nomear as coisas visíveis, as invisíveis são chamadas pelos sinais dos seus significados para dar sentido ao discurso (lembrando que este discurso não é apenas verbal). Assim a religião, por exemplo, se exprime através do orar e do louvar em vez do analisar e do esquematizar. A linguagem da ciência por excelência desde o século XVII é a da matemática. É a linguagem cartesiana. Mas esta

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linguagem formal é universal pela univocidade de seus signos e pelos seus códigos de rigorosa correspondência entre significantes e significados.

Mas existe outra forma de linguagem que não se pode nunca codificar, porque ela fala através de símbolos. Uma linguagem simbólica fala por signos nos quais a relação entre significante e significado tem um motivo especial e diferente do usual para se expressar. Toma-se a balança para significar a justiça e o leão para significar a força. Podemos compreender essas relações naturalmente. É como se o mundo entregasse espontaneamente o inteligível para o ser humano, este ser sensível e inteligente, que, então, o percebe e o compreende.

Mas o negro simboliza o luto em nossa cultura tanto quanto o branco em outras culturas. O leão simboliza a força tanto quanto a águia nas mesmas culturas. Dupla confusão, portanto, porque vários significantes podem indicar um mesmo significado e vários significados podem ser contidos no mesmo significante. Vê-se que a confusão do símbolo se amplia ainda mais pela cultura e pelo seu poder natural de acrescentar os códigos que ele precisa apreender. A cruz simboliza tanto o suplício e a morte, quanto a vitória sobre a morte. Assim precisamos saber como os romanos condenavam à morte os criminosos e como os cristãos viam na cruz de Jesus a porta estreita para a ressurreição do Cristo.

Nesse sentido, a inteligência do fenômeno religioso deve, em primeiro lugar, contribuir tanto para a inteligência da história quanto do mundo contemporâneo: “Compreender o passado e o presente; aceder ao patrimônio cultural e artístico; partilhar um mundo comum sem o qual não existe uma forma de se viver juntos: tais são as justificações essenciais do ensino dos fatos religiosos” (GAUDIN, 2014b, 79).

Ela deve também se abrir para o fato de que há várias inteligências possíveis. A própria palavra inteligência nos remete, além disso, a dois significados fundamentais: seu sentido intelectual e seu sentido relacional. Ter a inteligência de um fenômeno quer dizer que eu sou capaz de apreendê-lo o mais adequadamente possível; estamos aqui na ordem do saber. Se eu digo que eu vivo uma boa inteligência com meus vizinhos, não se trata de uma questão de conhecimento. Trata-se, antes, de boas relações com eles. A função da escola é certamente de desenvolver a aptidão para o saber, mas 236


também as capacidades relacionais. O cidadão responsável deve saber como barrar as falsas ideias ou passar pelo crivo da crítica o que se tenta acreditar ingenuamente. Mas também, como seres humanos, e mais ainda como cidadãos e cidadãs, devem ser capazes de habitar o mundo e conviver com os outros. A escola é encarregada desta dupla inteligência.

Mas a inteligência intelectual não é ela mesma também relacional? Para se estudar algum fenômeno, é preciso, a princípio, se aproximar dele, se relacionar de alguma forma com ele; e ter honestidade diante dos fatos e diante da experiência vale tanto para as ciências quanto a atenção e a simpatia valem para toda a relação entre as pessoas. Vale a pena repetirmos aqui o que diz Teixeira sobre o estudo do fenômeno religioso como experiência humana: [..] para isso, faz-se necessário também o aperfeiçoamento do ‘tato religioso’, que favorece a superação de uma certa mentalidade que resiste em adentrar-se em esferas particulares da experiência humana, limitando-se a reduzir o engajamento vivido pelo outro a uma mera ‘rapsódia de observações exteriores e frias’. (TEIXEIRA, 2007, 75-76).

Mas como passarmos da esfera intelectual para a esfera relacional no processo de ensino-aprendizagem? Como pode qualquer objeto de estudo, no contexto escolar, levar, ao mesmo tempo, a uma postura diante do mundo e das pessoas? Ou, além, a uma mudança de postura? Que papel o ensino do fenômeno religioso pode desempenhar neste processo? Vamos neste capítulo tentar encontrar respostas para estas questões. Por ora,

queremos

deixar

claro

que

a

inteligência

intelectual-relacional

supõe

necessariamente uma relação de alteridade. Vamos buscar mais uma vez em Edgar Morin algumas pistas para o esclarecimento desta questão. A forma de conhecimento que articula diversas perspectivas e ciências no estudo de realidades concretas é o paradigma da complexidade. Mais do que isso, ela estrutura o próprio pensamento de tal forma que procura sempre perceber a interdependência entre fatos e pessoas que parecem, à primeira vista, independentes ou sem relação uns com os outros. É uma forma de pensar que reconhece

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que a realidade é ‘tecida’ por tramas complexas e, portanto, acredita que pensamentos analíticos que privilegiam o separar e o dividir são importantes, mas não suficientes. Neste sentido, na inteligência relacional, precisamos fazer uma distinção aqui entre o conhecimento da interdependência entre as pessoas e o reconhecimento disso. Qualquer conhecimento ocorre quando eu reorganizo a minha mente e sou capaz de utilizar os conceitos e a lógica apreendidos para solucionar problemas, lidar e organizar novos dados e para criar novos conhecimentos. Mas aqui estamos ainda no nível da inteligência intelectual. Mas ir do conhecimento para o reconhecimento é outra questão. O reconhecimento da interdependência entre as pessoas exige experiências de aprendizagem e de vida que vão além do simples conhecimento intelectual. É alguma coisa que penetra no nosso ser e se torna parte do nosso existir, é uma questão existencial (SUNG, 2002). Aqui estamos no nível da inteligência relacional. Se quisermos educar para a solidariedade, por exemplo, temos de mostrar às pessoas a interdependência como um fato e lhes ajudar a ter experiências de aprendizagem e de vida que lhes permitam não apenas conhecer, mas também reconhecer existencialmente este fato. Solidariedade tem, assim, relação com a questão da dependência mútua entre as pessoas e esta é alguma coisa que tende a ser silenciada em nossa sociedade contemporânea. Somos até educados para não percebê-la. É o individualismo como marca da nossa civilização. Sung (2002) nos alerta que é justamente na escola onde aprendemos a não ver interdependência. Trata-se de um conhecimento fragmentado que leva a uma visão de mundo também fragmentada,128 ‘disciplinada’, ‘em gavetas’. Numa linha de raciocínio muito semelhante, o Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, mais conhecido como Relatório Delors, afirma o seguinte: “A educação tem por missão, por um lado, transmitir conhecimentos sobre a diversidade da espécie humana e, por outro, levar as pessoas a tomar consciência das semelhanças e da interdependência entre todos os seres humanos do planeta. Desde tenra idade a escola deve, pois, aproveitar todas as ocasiões para esta dupla aprendizagem. Algumas disciplinas estão mais adaptadas a este fim, em particular a geografia humana a partir do ensino básico e as línguas e literaturas estrangeiras 128

A especialização científica, fruto da fragmentação e da separação entre os saberes, passou a ser reproduzida também na escola. Assim, a solidariedade foi excluída do âmbito escolar como algo talvez restrito à educação familiar ou às religiões.

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mais tarde.” (EDUCAÇÃO, UM TESOURO A DESCOBRIR: Relatório Delors, 1996).

A ideia de que todos nós estamos interconectados, interdependentes, é correta, mas, no processo de reconhecimento, reconhecemos tão somente a interdependência de quem está próximo de nós, de quem partilha o mesmo sistema. Os que estão fora do meu mundo, os excluídos, não fazem diferença, não me afetam, pois eu não os considero na relação de interdependência comigo (SUNG, 2006, 58-59). É por isso que o senso comum percebe a solidariedade restrita aos ‘próximos’, e quase sempre esta solidariedade se manifesta apenas através de relações de assistência e não de promoção. Para que o conhecimento teórico da interdependência se transforme em um reconhecimento existencial, é preciso encontrar ou dar um sentido existencial a esta relação de interdependência com os excluídos. Entra claramente aqui a noção de alteridade, da relação com o outro. Sem isso, não é possível, por exemplo, passar para a solidariedade como um valor ético, um movimento de ir ao encontro do outro, reconhecendo-se no outro sua própria dignidade humana (SUNG, 2006, 59). Tornar-se humano é se tornar solidário com os incluídos no nosso mundo, mas também e principalmente com os dele excluídos. Humanizar-se é, sobretudo, encontrar um caminho que nos dê um sentido para a vida. Sung conclui bem esta questão ao afirmar: “Forte não é aquele que não tem dores, não sente nenhuma insegurança ou medo, mas sim aquele que tem forças para reconhecer e ter sensibilidade para as suas dores, e que, por isso, é capaz de sentir as dores dos outros. Sentindo as dores dos outros, é capaz de sentir a sua dor. Não dá para separar isso, porque eu sei quem eu sou por meios das relações com outras pessoas.” (SUNG, 2002, 71).

4.1. Conhecer o outro significa também conhecer a religião do outro

Identidade e alteridade são princípios que se implicam mutuamente. De fato só teremos uma relação de alteridade, se estivermos convictos da nossa própria

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identidade. Aqui cabe lembrar a máxima de Delfos: conhece-te a ti mesmo. Faz sentido aqui conhecer a religião que professamos, distanciando-se dela como algo que possa ser observado de fora, uma verdadeira tomada de consciência de nossas crenças mais profundas. Partimos, pois, da nossa identidade cultural e religiosa. Em um segundo passo, a relação entre identidade e alteridade é extremamente complexa e, mais uma vez, Edgar Morin (1985) nos auxilia nesta reflexão. O princípio da identidade, divorciado da alteridade, é experimentado como um princípio simplificador e purificador: eu excluo o outro. Se eu excluir da minha própria identidade um elemento que eu considere impuro, eu tenderei a ter horror deste mesmo elemento no outro. Se introduzirmos a multiplicidade em nós mesmos, estaremos introduzindo o princípio da aceitação do outro. A atitude humana com o outro é uma atitude fundamentalmente ambivalente, que oscila entre rejeição e confraternização. Como dizia Levinas (2006; 2015), os ritos de cortesia e de fraternidade estão aí para conter o potencial de agressão que há em nós, para reduzir a nossa inumanidade. É possível exemplos de pessoas e tradições de sabedorias espirituais com as quais podemos aprender não o conteúdo de suas experiências, mas como elas caminharam: “Esta é a razão pela qual devemos estudar as tradições espirituais e religiosas da humanidade. Não só para conhecer as tradições de outros povos e culturas, para aprender a conviver com os diferentes, mas também para aprender com elas a aprender a sermos mais humanos.” (SUNG, 2006, 137).

Portanto, temos uma profunda dificuldade em nosso relacionamento com os outros, e nós podemos buscar a sua solução, aceitando a multiplicidade que existe em nós mesmos (MORIN, 1985). Estes são problemas que devem deixar de ser apenas problemas psicológicos ou de literatura, problemas específicos de determinada área do conhecimento, mas tornando-se coisas que são aprendidas de imediato, nos primeiros anos da educação. Na identidade, existe um princípio externo e é por isso que a lógica sumária de uma identidade simples não funciona. Para Morin (1985), o aprendizado da identidade complexa deve fazer parte dos fundamentos da educação. Esta nova forma de aprender sobre o outro é bastante problemática e, neste problema está o ambiente escolar. Todos nós vivemos, e desde muito cedo no 240


ambiente global imediato feito de imagens, notícias, curiosidades. Por mais que se tentou nas últimas décadas, a estrutura da educação escolar não consegue se adaptar a esta situação. Sua tarefa permanece a de passar um estoque de conhecimentos já filtrados e reconhecidos. Os meios de comunicação e as redes sociais, pelo contrário, fazem surgir o novo, o inesperado, o que requer elucidação. Elucidar a notícia fica por conta dos comentaristas e dos editorialistas, não dos professores. O terceiro pilar da educação - Aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros – que integra o Relatório Delors, é bastante esclarecedor nesse sentido. Este documento afirma que “cabe à escola ensinar a descoberta do outro, necessariamente pela descoberta de si mesmo” (Relatório Delors, 1996, 98), dando à criança e ao adolescente uma visão mais ajustada do mundo. A escola deve, antes de mais nada, ajudálos a descobrir-se a si mesmos. Só então poderão, verdadeiramente, pôr-se no lugar dos outros e compreender as suas reações.

Desenvolver esta atitude de empatia, na escola, é muito útil para os comportamentos sociais ao longo de toda a vida. Ensinando, por exemplo, às crianças e aos jovens a adotarem a perspectiva de outros grupos étnicos ou religiosos, é possível se evitar incompreensões geradoras de ódio e violência entre os adultos. Assim, o ensino da história das religiões ou dos costumes pode servir de referência útil para futuros comportamentos. (RELATÓRIO DELORS, 1996, 98).

Por outro lado, os métodos de ensino não devem se opor a este reconhecimento do outro. Percebe-se, então, que esta postura não se restringe a uma disciplina ou a um professor. Ela é necessária para toda a escola. Os professores que matam a curiosidade ou o espírito crítico dos seus alunos e alunas, em vez de ajudá-los, podem ser extremamente prejudiciais para eles. Esquecendo que funcionam como modelos, com esta sua atitude arriscam-se a enfraquecer por toda a vida nos alunos e alunas a capacidade de abertura à alteridade e de enfrentar as inevitáveis tensões entre pessoas, grupos e nações. O confronto de ideias através do diálogo e da troca de argumentos é um dos instrumentos indispensáveis à educação do século XXI, bem de acordo com a tese de uma laicidade positiva de confrontação, defendida por Paul Ricoeur (1954). Para ele, como já dissemos, é preciso preparar os alunos para serem bons debatedores;

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é preciso iniciá-los na problemática pluralista das sociedades contemporâneas, na mesma linha de

argumento de Jung Mo Sung: “no campo da educação, é importante que ninguém dê a última palavra e que o diálogo seja o caminho para ampliar o nosso conhecimento, ou melhor, o nosso discernimento, e escolher entre os diversos sentidos da vida e mesmo entre as diversas pequenas opções do dia-a-dia.” (SUNG, 2006, 145).

Sem dúvida, a aprendizagem do ‘viver juntos’ representa, hoje em dia, um dos maiores desafios da educação. O mundo atual é marcado pela violência que se opõe à esperança posta por alguns no progresso da humanidade. A história humana sempre foi conflituosa, mas há elementos novos que acentuam o perigo e, especialmente, o extraordinário potencial de autodestruição criado pela humanidade no decorrer do século XX. Até agora, a educação não pôde fazer grande coisa para modificar esta situação. Poderemos conceber uma educação capaz de evitar os conflitos, ou de resolvêlos de maneira pacífica, desenvolvendo o conhecimento dos outros, das suas culturas, da sua espiritualidade? Este nos parece ser o grande desafio do ensino do fenômeno religioso, ao lado das demais disciplinas, na escola de todos.

Vê-se, portanto, a necessidade de se estudar o fenômeno religioso, mesmo que ele constitua apenas um instrumento, entre outros, para lutar contra os preconceitos geradores de conflitos. A tarefa é árdua porque, muito naturalmente, os seres humanos têm a tendência de supervalorizar as suas qualidades e as do grupo a que pertencem, e a alimentar preconceitos desfavoráveis em relação aos outros. É de se lamentar que a educação contribua, por vezes, para alimentar este clima, principalmente através de métodos e objetivos que estimulam a concorrência e a competição e não a abertura e a solidariedade em relação ao outro. É justamente na escola onde aprendemos a não ver interdependência, como já nos alertou Jung (2002).

O que podemos fazer para melhorar esta situação? A experiência prova que, para reduzir o risco, não basta pôr em contato e em comunicação membros de grupos diferentes (através de escolas comuns a várias etnias ou religiões, por exemplo). Se, no seu espaço comum, estes diferentes grupos já entram em competição ou se o seu estatuto é desigual, um contato deste tipo pode, pelo contrário, agravar ainda mais as tensões 242


latentes e degenerar em conflitos. Pelo contrário, se este contato se fizer num contexto igualitário, e se existirem objetivos e projetos comuns, os preconceitos e a hostilidade latente podem desaparecer e dar lugar a uma cooperação mais serena.

Entre esses projetos, necessariamente surgem aqueles que supõem o conhecimento da cultura, dos costumes e da religião de si mesmos (identidade) e dos outros (alteridade). Parece, pois, que a educação deve utilizar duas vias complementares. Em um primeiro nível, a descoberta progressiva de si mesmo e do outro. Num segundo nível, e ao longo de toda a vida, a participação em projetos comuns, que parece ser um método eficaz para evitar ou resolver conflitos latentes.

A religião, como constitutivo do humano, dimensão identitária e coletiva, por isso mesmo, substrato mais profundo de qualquer cultura, deve ser objeto de uma inteligência intelectual e relacional. Trata-se, portanto, de uma realidade que tem a dizer diretamente à alteridade dos seres humanos. Além de uma área de conhecimento, a religião necessariamente também se insere no reconhecimento entre as pessoas, perfazendo uma questão existencial de relevância para a educação pública.

Neste sentido, o conhecimento do fenômeno religioso não é um conhecimento neutro. Ele tem muito a dizer para a busca de um sentido para a vida humana. Não que outras filosofias não-religiosas também não tenham. Mas ele é portador de sentido que contribui diretamente para a humanização da vida, diante de muitos outros novos mitos contemporâneos que vão em direção contrária. Daí, sua função primeira de cumprir um papel de discernimento entre os mitos, símbolos e deuses, o que também é papel de todas as disciplinas, mas especialmente do ensino do religioso como ainda veremos.

4.2. Do patrimônio cultural ao vivre ensemble dos franceses

Dar razões da necessidade do ensino do fenômeno religioso na escola pública é o mesmo que justificá-lo, dar-lhe uma legitimidade epistemológica e pedagógica, indicar a forma que ele poderia ou deveria tomar. No caso da França, esta 243


legitimidade do ensino dos fatos religiosos foi justificada, pelo menos a princípio, como um remédio para um mal que se diagnosticou, o que tem provocado ainda hoje debates incandescentes sobre este próprio diagnóstico. Sem dúvida, devemos começar por explicar que diagnóstico é este, mais comumente aceito. Diversos fatores surgiram na França na década de 1980, período durante o qual a escola se abriu para um maior número de alunos e alunas e quando a questão de uma sociedade multicultural tornou-se um ponto central, em particular por causa do processo migratório. 129 Devemos acrescentar que esses fenômenos ocorreram tendo como pano de fundo o colapso das grandes narrativas ideológicas. Além disso, todo este tensionamento faz até hoje com que seja muito delicada a gestão do pluralismo cultural e religioso, gestão que, por outras diversas razões, também se torna cada vez mais delicada em todo o mundo.130 Tanto lá como alhures, a escola procurava um novo sentido para a sua missão já que o mundo em que ela estava imersa mudara drasticamente. No Brasil, este período corresponde ao processo de redemocratização, tão rico pela discussão dos direitos civis, sociais e políticos, incluindo a esfera da educação, que desembocou na Constituinte de 88 e na LDB em 96. Neste sentido, esta questão social, cultural e religiosa, de uma maneira muito complexa, foi sem dúvida a razão determinante de uma tomada de consciência e a primeira justificativa que foi dada para esta proposta de se promover um ensino dos fatos religiosos na França. Mas quando a questão religiosa apareceu explicitamente e não apenas como uma questão cultural, quando se colocou a questão de se ensinar a história das religiões no Relatório Joutard, por exemplo, a questão social do vivre ensemble – o viver juntos - foi bem recebida, mas apenas como uma filigrana no conjunto do projeto,

129

Não nos esqueçamos de que este período coincidiu também com os grandes deslocamentos e impactos do religioso na sociedade mundial que passaram a questionar se o religioso deveria continuar estritamente encerrado na esfera privada. Foi também neste contexto que a Epistemologia tendeu a superar toda forma de dicotomia, típica da modernidade ocidental, como vimos no capítulo anterior. 130 A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (Unesco, 2002) no artigo 1º declara que: “A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefício das gerações presentes e futuras. Assim, pode-se afirmar que a diversidade cultural é uma característica essencial da humanidade, pois contém os aspectos que mais marcam um povo e que revelam sua identidade; por isso deve ser conhecida, estudada, preservada como riqueza da humanidade.”

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mesmo sendo a sua força-motriz, na opinião de Gaudin (2014a). É falso afirmar que no início houve uma justificativa patrimonial e, depois, uma justificativa social e política. Desde o início, mesmo antes do Relatório Debray, quando se lê o relatório de Philippe Joutard, de fato, nunca houve uma dissociação entre a questão patrimonial, cultural e a dimensão política. 131

O objetivo do ‘viver juntos’ se impôs em decorrência da grande e importante diversidade dos alunos e alunas, de origens geográficas diversas, da África do Norte, da África Negra ou ainda de outros países, e, portanto, levando a uma enorme diversidade cultural e religiosa na França. Daí, portanto, o desafio de ‘viver juntos’, de como manter a coesão social com uma diversificação tão grande de origens e de religiões. Para Willaime, isto foi um segundo grande motivo acelerando uma tomada de consciência que faria reforçar um ensino objetivo, não confessional, laico, sobre os fatos religiosos, agora não somente para enfrentar a incultura religiosa, mas também para reforçar o ‘viver juntos’: aprender a viver com uma grande diversidade cultural e religiosa. 132 Observemos, porém, que, o que estava um pouco escondido como força-motriz e permanecia em segundo plano veio a se afirmar gradualmente diante dos temores de um choque de civilizações. Exatamente como afirma Figueira: “Como resposta a esta falta de cultura sobre o mundo das religiões, aliada ainda a uma nova necessidade cívica de equacionar o novo mundo do terrorismo e dos fundamentalismos religiosos, a religião na sala de aula revela-se cada vez mais como uma realidade que necessita de um amplo debate que responda e corresponda a alguns dos desafios mais prementes do nosso mundo.” (FIGUEIRA, 2008, 144).

Percebemos, no entanto, que, na ordem do discurso, assim que se tratou de justificar a implementação da política pública de ensino dos fatos religiosos a partir de 2002 na França, a razão social motriz do ‘viver juntos’ passa facilmente para o segundo plano em relação à razão patrimonial, histórica, científica e acadêmica, para responder ao que devemos aprender na escola. Como compreender o passado e o presente? Mas também como fazer a leitura de uma obra de arte, para ter acesso ao patrimônio

131 132

Entrevista de Philippe Gaudin com o autor em 22/05/2015. Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 01/05/2015.

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cultural? São perguntas que sempre aparecem quando se discute na França como lidar com a incultura da juventude? como já vimos no capítulo anterior. 133 Aprofundando esta predominante razão histórica e patrimonial, percebe-se rapidamente que a razão da cidadania lhe está ligada e que não existe instrução sem consequências educativas, ou seja, que as razões mais teóricas que tocam o conteúdo dos programas de ensino nunca estão dissociadas das questões práticas, isto é, éticas e políticas, que dão vida à cidadania e ao inevitável ‘viver juntos’.134 Philippe Joutard insistiu naturalmente sobre os efeitos da ignorância da história das religiões sobre a cultura geral, mas em várias oportunidades ele justificou que o ‘viver juntos’, ou seja, a inclusão do peso antropológico das religiões sobre a vida cotidiana sempre esteve muito presente no espírito do ensino dos fatos religiosos desde o início. Sobre esta questão, Jean-Paul Willaime (2014) possui uma opinião diferente. Ele afirma que o tema da incultura religiosa foi efetivamente pouco a pouco substituído pelo do ‘viver juntos’ e que isto corresponde a uma evolução que a sociologia coloca em evidência na sociedade, quer dizer, de uma lógica de desaparecimento das identidades religiosas a uma lógica da reivindicação de um direito de se ter uma religião qualquer. Percebemos como são claramente políticas as razões do ‘viver juntos’. Cabe ao Estado laico a gestão da diversidade cultural e do pluralismo religioso com a adoção de políticas públicas como esta do ensino do fenômeno religioso. Estas razões são claramente políticas no caso da França.

135

Foi depois do 11 de setembro de 2001 que

Jack Lang, Ministro da Educação Nacional, do Partido Socialista, solicitou um relatório a Règis Debray, e parafraseando Samuel Huntington, insistia para não caíssemos no cenário do choque das civilizações, a para isso a escola pública deveria estudar os fenômenos religiosos, de um ponto de vista laico, de um ponto de vista não confessional,

133

Percebemos que estas questões se colocam também no Brasil de forma inevitável para aquelas escolas que insistem antes de mais nada em preencher as lacunas do conhecimento, o que é típico de uma educação conteudista e técnica que supervaloriza a instrução em detrimento da formação. 134 Reduzir o estudo dos fatos religiosos ao seu aspecto patrimonial pode trazer uma série de problemas. Isto pode ser percebido na falta de continuidade nos programas. O Islã, por exemplo, corre o risco em ser considerado em suas origens, e nada se falar da sua continuidade e evolução. Com frequência, se passa das suas origens diretamente para os problemas de integrismo, comunitarismo e fanatismo religiosos de alguns de seus grupos. Há o perigo de reduzir a religião à sua origem mais ou menos mítica ou histórica, e fazê-la reaparecer quando se trata de violência e massacres. Esta seria uma visão bastante limitada e falsa. 135 Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 01/05/2015.

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para contribuir com a paz social, para o viver juntos entre os não religiosos, os cristãos, os judeus, os muçulmanos. O 11 de setembro apressou esta decisão política. Por outras razões diferentes, Gaudin lembra que Jean-Robert Armogathe e François Boespflug chamou a atenção para dois outros fenômenos interessantes na França (GAUDIN, 2014a). Para o primeiro, o que se manifesta em meados dos anos 80 é a consequência dos trinta anos de abandono da didática catequética. Com efeito, em meados dos anos 50, a Igreja Católica passa de um catecismo diocesano para um catecismo nacional que, segundo ele, enfatiza a religião na dimensão afetiva da fé em vez da sua dimensão didática. Para o segundo, esta emergência se compreende a partir da convergência de dois fenômenos: o do desenvolvimento de uma história religiosa fora da religião percebendo também uma incultura religiosa diagnosticada, em um primeiro momento, no interior da própria comunidade católica. O estudo laico das religiões teve certamente seu desenvolvimento na segunda metade do século 19, mas é somente no final dos anos 50 que ele se adentrou nas comunidades paroquiais. Se o conhecimento progride de um lado, é a ignorância que junto progride de outro lado. De fato, François Boespflug disse que no final dos anos 70 havia sentido uma ‘ruptura na transmissão dos conhecimentos’ e que algumas de suas previsões não se cumpriram. 136 Mas esta defesa do ensino do fenômeno religioso para o ‘viver juntos’ não é exclusiva dos franceses. Danilo R. Streck, em interessante artigo 137 publicado em 1998, partindo de um conceito aberto de ecumenismo, numa visão mais cultural que apenas religiosa, defende a escolarização do fenômeno religioso como instrumento fundamental para o reconhecimento da diversidade e de afirmação do respeito para com o outro. Este respeito seria mais que tolerância, seria, na verdade, a aceitação do diferente, “na esperança de contribuir para uma educação que ajude as pessoas a sentirem o mundo como sua casa (oikos) comum, em constante processo de construção para que todos e todas nela tenham lugar” (STRECK, 1998, 39).

136

É em 1982 que as Editions du Cerf decidem lançar a edição de um dicionário cultural da Bíblia que sairá alguns anos mais tarde, quando François Boespflug foi o organizador da coleção nesta editora. Este trabalho terá um grande sucesso (11 versões estrangeiras), e ainda mais interessante por se tratar de uma coedição com Nathan, que é um editor tradicional nos meios educacionais, em um tema, cujas lacunas eles percebiam a necessidade de preencher nesta mesma época. 137 Uma Educação Ecumênica: oito proposições sobre um tema controvertido, in Estudos de Religião, 1998, n. 14, p. 35-48.

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A partir desta primeira proposição, Streck (1998) avança em seus desdobramentos para concluir na necessidade do ensino do religioso na escola pública como necessário na formação de crianças e adolescentes, principalmente frente ao crescimento dos mais diversos fundamentalismos138, religiosos ou não. Teixeira (2007) acrescenta ainda que ele é também necessário para o “aperfeiçoamento do olhar e da escuta do mundo e da alteridade e o respeito à sua dignidade, a percepção da riqueza e do valor de um mundo plural e diversificado e a recuperação da força espiritual das religiões.” (TEIXEIRA, Ciências da Religião e “ensino do religioso” in SENA, 2007, 7576).

Streck (1998) defende uma posição interessante, mais situada no campo propriamente da Teologia e muito próxima do que se pratica atualmente no Quebec com a disciplina de Ética e Cultura Cristã. Para ele o Ensino Religioso pode ser confessional, sem ser proselitista, mas comprometido com o diálogo religioso e com o ecumenismo. Para ele, pode-se aprender a ser ecumênico, a aprendizagem ecumênica é um processo, tem de ser construído inclusive a partir da escola, já que esta não é, por natureza, um espaço ecumênico. Ele defende um ensino religioso ecumênico, experiência que no Brasil ainda persiste em vários sistemas de ensino, e que pode ser relevante para ajudar os educandos a lidar com as questões existenciais, as questões de fé. Para ele “este tipo de ecumenismo pode interessar a um Estado radicalmente democrático, a instituições religiosas abertas a questionamentos e interessadas mais no crescimento da fé do que em sua preservação enquanto instituições e a escolas dispostas a se envolver de uma maneira mais profunda com o drama do ser ou se fazer humano.” (STRECK, 1998, 47).

A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, realizada em 4 de outubro de 2005, aprovou a Recomendação 1720, reafirmando a necessidade da aprendizagem do fenômeno religioso nas escolas públicas como chave para o combate à ignorância, estereótipos e incompreensão das religiões, apelando para que os governos

Existem fortes correlações existentes entre a “volta do diabo” promovida por alguns grupos fundamentalistas e as diversas modalidades de demonização do outro através das quais se expressa em outras formas, não mais racionais, mas socialmente mais perigosas, o sentimento de não se ter nenhuma responsabilidade pessoal no mundo como ele é, nenhuma capacidade de agir sobre o seu futuro (a culpa é do diabo...). 138

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dos diversos países da Comunidade Europeia tomassem medidas concretas para garantila. Vejamos os itens 7 e 8 desta recomendação: 7. A escola é um elemento maior da educação, da formação do pensamento crítico dos futuros cidadãos e, portanto, do diálogo intercultural. Ela estabelece as bases para um comportamento tolerante, com base no respeito pela dignidade de cada pessoa humana. Ao ensinar às crianças a história e filosofia das principais religiões, com moderação e objetividade, de acordo com os valores da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ela efetivamente está lutando contra o fanatismo. Ela é essencial para compreender a história dos conflitos políticos que se fazem em nome da religião. 8. O conhecimento das religiões é uma parte integrante da história da humanidade e das civilizações. E isto é bem diferente da crença em uma religião em particular e a sua prática. Mesmo os países onde predomina uma determinada religião, a escola deve ensinar a origem de todas as religiões, em vez de privilegiar uma delas ou incentivar o proselitismo. Estas recomendações não são válidas apenas para os países europeus. Elas podem ser encaradas como uma contribuição significativa para a gestão do pluralismo cultural e religioso em todo o mundo, inclusive no Brasil. A promoção do ensino do fenômeno religioso deve fazer parte da avaliação de um pluralismo na educação escolar: nas nossas sociedades cada vez mais diversificadas, cultural e religiosamente, é necessário que a escola eduque para o pluralismo, o que significa não apenas compreender melhor a diversidade das expressões culturais e religiosas, mas também desenvolver habilidades para se mover em sociedades pluralistas. Para isso o Conselho da Europa chegou a confeccionar um manual para as escolas, intitulado Diversidade religiosa e educação intercultural: um livro de referência para as escolas. Outro documento de suma importância, lançado pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros do Conselho da Europa por ocasião da sua 118ª reunião ministerial em Estrasburgo, em 7 de Maio de 2008, é o Livro Branco do Conselho da Europa sobre o diálogo intercultural. Este documento dedica uma seção inteira à dimensão religiosa do rico patrimônio cultural europeu e é emblemático ao afirmar claramente que “a valorização da nossa diversidade cultural deve ser baseada no conhecimento e na compreensão das principais religiões e crenças não-religiosas do mundo, e o seu papel

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na sociedade” (Conselho da Europa, Livro Branco sobre o Diálogo Intercultural, 2008, seção 5.3.). Longe de todo o relativismo multicultural, o Conselho da Europa constantemente afirma que esta abordagem auspiciosa da diversidade cultural tem certos limites diante da necessidade sempre colocada na Europa da necessidade da coesão social e do respeito a outros princípios e valores, como, por exemplo, a igualdade de gênero: “As tradições culturais, quer sejam elas ‘da maioria’ ou ‘da minoria’ não podem prevalecer sobre os princípios e valores, como foi expresso na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e em outros instrumentos do Conselho da Europa sobre os direitos civis e políticos, sociais, econômicos e culturais, em particular que a igualdade entre os sexos constitui uma questão prévia inegociável no diálogo intercultural”. (Conselho da Europa, Livro Branco sobre o Diálogo Intercultural, 2008, seção 1.3.).

O Conselho da Europa insiste também no fato de que: “A livre escolha de sua cultura é fundamental; é um elemento constitutivo dos direitos humanos. Qualquer indivíduo pode, simultaneamente ou em diferentes períodos de sua existência, fazer a escolha de se juntar a múltiplos sistemas de diferentes referências culturais. Mesmo se cada indivíduo for de certa forma, o produto do seu património e de suas origens sociais nas modernas e contemporâneas democracias, todos podem enriquecer a sua identidade por uma afiliação cultural múltipla. Ninguém deve se fechar contra a sua vontade, em um grupo, uma comunidade, um sistema de pensamento ou visão de mundo; todos devem, no entanto, ser livres para renunciar a escolhas passadas e fazer novas escolhas, uma vez que sejam conformes aos valores universais dos direitos humanos, da democracia e do Estado de Direito. A abertura e partilha recíprocas são componentes de várias filiações culturais. Um e outro constituem as regras de convivência entre indivíduos e grupos, que são livres para praticar as culturas de sua escolha, sujeito apenas ao respeito com o outro”. (Conselho da Europa, Livro Branco sobre o diálogo intercultural, 2008, seção 3.2.).

Assim, há um amplo consenso na Europa sobre a necessidade de educação sobre religiões em escolas públicas. Estes diversos documentos, ao estabelecerem princípios e propostas para o diálogo intercultural com grande ênfase para o papel do ensino público, constituem também uma interfase muito interessante para problemáticas idênticas ou semelhantes de outras realidades nacionais, como a nossa do Brasil. Hugo Assmann (1998) nos chama a atenção para o fato de que este ‘modelo 250


europeu’ é idealizado nesses documentos como imbuído de uma forte ética da solidariedade. A partir de percursos históricos diferentes e de contextos sócio-políticos e culturais tão particulares, fica bastante clara a contribuição europeia para o caso brasileiro no que concerne a necessidade de se estudar o fenômeno religioso nas escolas públicas com o claro objetivo conhecer e compreender a diversidade do património cultural da sociedade brasileira, conhecer e compreender o mundo atual para desenvolver o ‘viver juntos’ na situação pluralista da sociedade nacional.

4.3. O Ensino do religioso para o discernimento na busca de um sentido humanizador da vida

Em um sentido mais profundo, a escola tem diante de si uma difícil tarefa: ensinar a competência para o discernimento entre todos os mitos contemporâneos. E discernimento significa ação ou capacidade de discernir, destreza para entender algo, perspicácia, aptidão ou capacidade de entender certas circunstâncias conseguindo distinguir uma realidade e o seu contrário, habilidade para compreender algo com sensatez e clareza, designação de juízo, entendimento, critério e conhecimento. Não há como fugir da compreensão de que tudo isso possui uma função pedagógica, papel de qualquer aprendizagem, papel da escola. Quando falamos de competência, um dos pilares contemporâneos da educação, estamos nos referindo, inclusive, à competência para o discernimento entre os mitos do nosso mundo, entre tudo o que nos humaniza e tudo o que nos desumaniza, na concepção mesma de Levinas (2006; 2015). Esta competência para o discernimento não se reduz a uma simples assimilação do que é ensinado, mas vai além, exige uma tomada de posição diante do que é ensinado e aprendido. E, em se tratando do mundo simbólico e religioso, este discernimento se torna mais necessário ainda, pois esse mundo se refere ao sentido último que podemos dar às nossas vidas. Como nos afirma Jung Mo Sung: “[...] só com este discernimento [...] podemos superar também a ingenuidade de crermos que todas as religiões e tradições espirituais são boas ou más em si mesmas ou de que o capitalismo é uma sociedade desencantada e que não possui uma teologia e uma espiritualidade que nos aliena, condena à miséria milhões de pessoas e coloca em perigo o nosso meio ambiente. E, desta forma, que podemos superar a ilusão de que podemos viver sem um sentido da vida, ilusão esta que 251


simplesmente legitima o sentido da vida dominante no capitalismo.” (SUNG, 2006, 134).

Educar para o discernimento do simbólico não se trata de debater sobre a existência ou não de deuses ou seres sobrenaturais ou espirituais, mas sim de dar um sentido mais humano para as nossas vidas e das pessoas que nos cercam. Além disso, é importante agregarmos a racionalidade autocrítica a este processo de discernimento. Uma determinada crença, suponhamos o cristianismo, não pode ser critério para discernir entre vários tipos de aposta no sentido da vida. Com certeza, isto nos levaria a uma absolutização de uma crença sobre as outras, como ocorre no ensino religioso confessional. Mas não podemos cair no campo da irracionalidade, pois neste é o mais forte que prevalece e não a verdade ou a justiça. É preciso manter o binômio fé, como aposta em um sentido último para a vida humana, e razão em uma tensão dialética permanente. Como diz Morin, “a aposta é a integração da incerteza à fé ou à esperança [...] A fé [...] é um dos mais preciosos suportes que a cultura europeia produziu; o outro é a racionalidade autocrítica, que constitui nossa melhor imunização contra o erro” (MORIN apud SUNG, 2006, 139). Mas, afinal, qual pode ou deve ser um sentido último da vida? Devemos reconhecer que nenhum tipo de conhecimento e nenhuma corrente científica têm condição de dizê-lo nem nenhum determinado sentido da vida pode ser imposto. Assim, o melhor caminho da escola é “ajudar os alunos e as alunas a adquirirem ou construírem conhecimentos que lhes possibilitem o discernimento entre os diversos sentidos da vida” (SUNG, 2006, 136-137). Então, no que devemos apostar? A primeira diretriz é que o sentido da vida humana não pode ser algo que nos reduza a uma condição inumana, subumana ou supra-humana. O sentido da vida é humanizar, é viver humanamente. Somos confrontados todo o tempo com tentações que buscam nos livrar das características da nossa condição. 139 “Se a vida humana tivesse o seu sentido fora da própria vida humana,

Um sentido da vida além dela mesma nos leva à criação de ídolos – criações humanas elevadas à categoria do absoluto. Horkhemeir diz que “qualquer ser limitado e a humanidade é limitada – que se considera como o último, o mais elevado, o único – se converte em um ídolo faminto de sacrifícios sanguinários, e que tem, ademais, a capacidade demoníaca de mudar a identidade e de admitir nas coisas um sentido distinto” (HORKHEMEIR, 1976, 68 in SUNG, 2006, 140). 139

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esta seria um mero instrumento ou um meio para um fim mais supremo. E, em nome deste fim mais sublime [claramente idolátrico], se exigiria sacrifícios de vidas humanas” (SUNG, 2006, 140). A noção de ídolos – deuses que exigem sacrifício de vidas humanas – e a crítica radical á idolatria – adoração a deuses sacrificiais que dá consciência tranquila aos vitimadores e culpabiliza as vítimas inocentes, invertendo completamente a verdade e a noção de justiça – não são criações teóricas de pensadores modernos. Os profetas de Israel já o diziam. Este é um exemplo de como podemos aprender com a sabedoria acumulada nas tradições religiosas e espirituais e como discernir os diversos tipos de mitos, deuses e sentidos da vida que nos cercam (SUNG, 2006, 141). Este papel pedagógico

de

uma

inteligência

intelectual,

mas

também

relacional,

cabe

necessariamente ao ensino do fenômeno religioso, antes de qualquer outra disciplina do currículo.

Devemos superar a ilusão de que a educação não precisa tratar do sentido de vida, daí porque a necessidade de discernimento dos mitos contemporâneos (SUNG, 2006). Viver com um sentido de vida necessita de uma educação para a solidariedade, principalmente para com as maiores vítimas da idolatria dos nossos dias, os mais necessitados, os excluídos (SUNG, 1994). A educação para a solidariedade seria o caminho para “reencantar a vida”, ou seja, dar-lhe um sentido último, alcançar aquela situação em que se conclui que a vida vale a pena ser vivida, independentemente de qualquer crença religiosa, como afirma Sung (2006).

As escolas trabalham com conhecimento. E o eixo ético, antropológico e político do conhecimento, ou seja, a radicalidade democrática e a inclinação a soluções pacíficas dos conflitos que surgem no convívio social humano, são dimensões do conhecimento que precisam ser criadas no interior dos processos de aprendizagem. Em termos mais tradicionais, trata-se da formação humana e política dos cidadãos e cidadãs. E desta nova concepção de educação, na linha de Edgar Morin, depende o nosso futuro, exatamente como nos fiz Hugo Assmann:

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“Hoje a viragem epistemológica na educação tem tudo a ver com a sobrevivência e a qualidade de vida do futuro neste planeta. Trata-se de incluir, no próprio aprender, o aprender vida e aprender mundo, com vistas à construção de um mundo onde caibam todos.” (ASSMANN, 1998, 113).

O papel do fenômeno religioso no contexto de uma educação para a solidariedade

Boaventura de Sousa Santos (2008) fala do desperdício da experiência social que não se enquadra nos cânones do racionalismo totalitário da ciência ocidental. De fato, assistimos, com uma frequência cada vez maior, ao menosprezo das práticas e conhecimentos com que grupos humanos e sociedades têm produzido e elaborado suas razões para permanecerem seres vivos humanos. Os interesses do capitalismo têm passado como rolo compressor por cima das fazeres e dos saberes daqueles que não possuam algum instrumento de força de comunicação ou de poder político e econômico. Milhões são jogados ao escanteio, próximos ou distantes de nossos olhos.

Algumas reações a este comportamento de expulsão e de extermínio moderno são muitas vezes engolidas pela força dos argumentos fundados no cinismo moral e social. Muitas vezes, slogans do tipo Solidariedade, Compaixão, Cidadania ficam circunscritos ao sinônimo da ideia em si mesma: “sou solidário com aqueles que não entopem meu caminho, sou cidadão com aqueles que vivem na minha cidade” (FIGUEIRA, 2008, 145). Exemplo típico desta solidariedade foi a do Conselho Municipal da cidade francesa de Charvieu-Chavagneux, e mesmo de outras cidades, ao admitir o recebimento dos refugiados sírios que abarrotam a Europa, mas somente daqueles que fossem cristãos. Mas, afinal, o que constitui a dignidade humana?

A grande dificuldade para enfrentarmos essas questões deve-se ao fato de tradicionalmente ter-se fundamentado a ideia de uma dignidade humana como resultado de uma essencialidade humana. Continuamos acreditando em uma suprahumanidade, além da história, capaz de levar aos homens e às mulheres de cada época, vivência e experiência com comportamentos exemplares que possam se perpetuar. Por este caminho, a humanidade seria capaz de produzir ações e premissas possíveis de identificar o que se deve tomar como justo ou injusto, como dizia Rorty: 254


“A maneira filosófica tradicional de explicar aquilo que entendemos por solidariedade humana é dizer que há algo dentro de cada um de nós – a nossa humanidade essencial – que ressoa como a presença dessa mesma coisa em outros seres humanos.” (RORTY, 1992, 235).

Será possível sair destas armadilhas na medida em que percebermos a dimensão de nossa contingência de forma a reconhecermos que devemos nos opor a ideias como a da essencialidade humana, ou nas palavras de Rorty (1992), a um “eu central”, a uma “natureza” e a um “fundamento”. Só este reconhecimento nos permite afastarmonos das afirmações de que há algumas ações e atitudes que são naturalmente “desumanas”: “Esta insistência na contingência implica que aquilo que conta como sendo um ser humano decente seja relativo às circunstâncias históricas, seja questão de um consenso passageiro quanto a saber que atitudes são normais e que práticas são justas ou injustas”. (RORTY, 1992, 235).

Nos momentos em que as sociedades passam por crises e por convulsões, em que as instituições entram em ruptura conjuntamente com padrões de comportamentos tradicionalmente tidos como desejáveis, esses momentos devem ser vistos em sua contingencialidade e não atribuídos a uma essencialidade criada na teoria das ideias inatas, segundo as quais as pessoas já nascem com verdades absolutas, eternas e com a própria noção de Deus.

Continuamos a pensar que homens e mulheres fazem o que fazem, assumem como justos ou injustos seus comportamentos ou os comportamentos dos outros porque, como pensava Kant, seguem uma ordem moral já impressa em sua essencialidade. Este sistema de moralidade se fundaria na perspectiva de que esta componente humana central e universal se resume na Razão, que, por sua vez se apresenta então como uma faculdade que seria a fonte das nossas obrigações morais (FIGUEIRA, 2008). Percebe-se por aí como a razão totalitária do Ocidente tem suas implicações no nosso comportamento moral do cotidiano.

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Contudo, não podemos negar que não se deva procurar uma saída diante destes momentos de convulsão e de ruptura, pois “queremos algo que se encontre para lá da história e das instituições. E o que poderá haver, a não ser a solidariedade humana, o nosso conhecimento da humanidade do outro que nos é comum?” (RORTY, 1992, 236). E indo além deste conhecimento, o seu próprio reconhecimento ou compartilhamento dessa mesma humanidade? Ninguém é solidário sozinho. A solidariedade é um fato social. Podemos falar da solidariedade como um conhecimento sociológico, mas o seu reconhecimento deve nos levar necessariamente a um compromisso.

Então a solução não é buscar construir referências em fundamentos que não podem responder a nossos problemas reais, mas também não podemos ficar na impossibilidade do agir, presos ao ceticismo. Se não devemos confiar no que esteja para lá da história e das instituições, devemos produzir utopias, mas utopias que nos possibilitem reconhecer nossas humanidades, como escreve Rorty: “Uma crença pode continuar a reger a ação, pode-se continuar a considerar que vale a pena morrer por ela, mesmo entre pessoas que estão plenamente conscientes de que essa crença não é causada por nada de mais profundo do que as circunstâncias históricas contingenciais.” (RORTY, 1992, 236).

Afinal, por que e para que trazer o religioso para dentro da sala de aula? Afinal, o que tem o conhecimento do religioso a ver com a solidariedade? Figueira (2008) nos sugere como resposta uma proposta pragmática. Para ele, trata-se de assumir o debate sobre o foco da pertinência do estudo sobre o objeto – na medida em que ele reclama um estudo – e não de como o estudo será feito, isto é, que conhecimento se faz necessário de modo que o fenômeno religioso seja observado, perscrutado e analisado de dentro dela, sem que se caia nas garras do reducionismo ou, no que não seria menos danoso, nas garras do fundacionismo, como tanto já se argumentou aqui.

A justificativa para o estudo do religioso na sala de aula deve ser construída no princípio do que alguém pode atingir com tais estudos. E para orientar este argumento, Figueira (2008) sugere perguntar a um pai porque ele pediria que, na escola na qual matriculou seu filho, este venha a ter aula de ensino religioso? E se o mesmo

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argumento se daria como justificativa para explicar porque o ensino religioso não pode ficar de fora do currículo da escola?

Por tudo o que já dissemos até aqui, a justificativa de uma disciplina do ensino do fenômeno religioso no currículo escolar, como ocorre no Brasil, não se deve a argumentos do tipo: porque nos ensinará a sermos mais responsáveis, mais cidadãos ou mais respeitadores das regras morais. Uma disciplina como o ensino do fenômeno religioso na escola pública, no contexto brasileiro, poderá construir “sujeitos históricos melhor sabedores de seus recursos, mais conhecedores de suas possibilidades e capazes de entender mais os fatos a seu redor” (FIGUEIRA, 2008, 147). O ensino do fenômeno religioso nos ajudará a construir o que Rorty (1992) aponta como a utopia liberal, ou seja, a solidariedade humana. Esta solidariedade que Rorty propõe não é pensada como sendo “o reconhecimento de um Eu Central, da essência humana em todos os seres humanos. É antes pensada como sendo a capacidade de ver cada vez mais diferenças tradicionais (de tribo, religião, raça, costumes, etc.) como não importantes, em comparação com semelhanças no que respeita à dor e à humilhação – a capacidade de pensar em pessoas muito diferentes de nós como estando incluídas na esfera do nós.” (RORTY, 1992, 239).

Tratar da religião na sala de aula significa enfrentar as grandes questões que afetam a forma como homens e mulheres constroem suas razões efetivas para viver como vivem e porque vivem. Discutir o religioso nas escolas significa assumir a necessidade de perceber que a vida não está posta somente na necessidade de construir modos de coesão social, como é muito enfatizado na França com o vivre ensemble. Muito menos na necessidade da luta pela sobrevivência, pois viver e morrer não se fixa na discussão sobre quando um corpo para de funcionar. Diante da necessidade da coesão social, a ciência natural e o senso comum da modernidade o fazem com competência, mas se pensamos que viver do vivre ensemble pode ser algo mais, algo que se coloca mais além, para o sentido da vida – e este além e este sentido não se trata de um mundo metafísico, mas trata-se de construir uma proposta de solidariedade – então um conhecimento religioso pode mostrar-se não apenas necessário, mas vantajoso: “Isto significa colocar a religião fora de uma referência a um mundo metafísico, significa apresentar a religião no registro da interpretação, da hermenêutica e do pragmatismo, como possibilidade de se produzir 257


sobre o mundo uma interpretação e não uma inteligibilidade.” (FIGUEIRA, 2008, 149).

Mas é possível ensinar a solidariedade? A solidariedade é uma questão de educação? Edgard Morin, no livro Os sete saberes necessários à educação do futuro, afirma que “ainda que solidários, os homens permanecem inimigos uns dos outros” (2001, 53). Isso quer dizer que solidariedade e aversão fazem parte da condição humana e, assim, é um fato possível de ser estudado na escola, mas, além disso, também “é um imperativo ético, como um valor e uma exigência ética” (MORIN, 2001, 39). Existem práticas que traduzem esse valor em atos concretos: partilhar, ajudar, acompanhar, apoiar, aceitar, integrar, proteger, cuidar, preocupar-se, etc. Nem essas práticas, nem os valores que a elas subjazem surgem naturalmente no desenvolvimento do ser humano. A solidariedade é uma construção social e cultural, uma conquista frágil da civilização (PERRENOUD, 2003, 2). Seria ingênuo, na situação em que se encontram o nosso planeta e as relações sociais, acreditar que a solidariedade nascerá espontaneamente da compreensão coletiva. Se ela se desenvolver, será em favor de lutas por mais democracia, mais igualdade, mais respeito aos direitos humanos e às diferenças, etc. Então, existe claramente um viés político nesta questão da solidariedade. A escola pode contribuir para o desenvolvimento da solidariedade, seja pelos exemplos extraídos da própria história, seja pela formação cultural que lhe confira sentido e fascínio (PERRENOUD, 1998), na medida em que os valores ensinados se inserem em uma representação do mundo, em uma visão do sentido da existência, em uma filosofia ou em uma religião.

A educação sozinha não pode fazer milagres.

Entretanto, ela pode contribuir, e muito, para o desenvolvimento da solidariedade, pois “[a educação] terá um papel determinante na criação da sensibilidade social necessária para reorientar a humanidade” (ASSMANN, 1998, 26). Perrenoud (1998) enfoca um método pedagógico para dar valor, sentido e fascínio/encanto a algo que é ‘espiritual’, no sentido mesmo utilizado pelos sujeitos religiosos. Nenhum valor tem um fundamento totalmente objetivo. Não se pode ‘deduzir’ a solidariedade da natureza, justificá-la inteiramente pela razão moderna, mesmo que esta seja necessária. O fundamento de um valor não se demonstra como um teorema de geometria. Para Perrenoud (1998), então, é preciso: a) de ‘testemunhos’ que mostrem que 258


vale a pena apostar na vida neste sentido; b) de uma aprendizagem que leve à experimentação desta aposta pelos alunos e alunas; c) de uma narrativa que lhes dê sentido em um nível mais amplo.

140

Sem dúvida, o ensino do fenômeno religioso, seja

como tema transversal, seja como área de conhecimento ou uma disciplina, responde positivamente a essas condições colocadas por Perrenoud. E o que o ensino do fenômeno religioso tem a oferecer, o oferece de forma exclusiva no rol das demais áreas de conhecimento e/ou disciplinas. A escola pública deve preservar ao mesmo tempo o pluralismo e o espírito crítico. Logo, ela não pode recorrer a uma teologia ou a uma filosofia particulares, através de qualquer área de conhecimento ou disciplina. O sistema educativo, em um país democrático, só pode professar o próprio ideal democrático e alguns outros valores suficientemente gerais para serem compatíveis com a diversidade das culturas, das religiões e das filosofias dos pais e dos alunos. Assim, não se pode inserir a solidariedade em um sistema de pensamento coerente, incorporá-la em um bloco no qual tudo se situaria a partir de algumas premissas (PERRENOUD, 2003). O ensino do fenômeno religioso não pode apostar na prescrição e afirmar: ‘É preciso ser solidário!’ Este seria o papel das comunidades religiosas e das famílias. Sua função é desenvolver a compreensão do mundo a partir do fenômeno religioso e tentar levar os alunos e as alunas a dizerem: ‘Como se pode não ser solidário quando se vê e se compreende o que se passa em nosso mundo?’ O conhecimento do fenômeno religioso tem muito o que contribuir para esta compreensão, de forma específica, reconhecendo-se como um dos saberes dentre outros. Não tenhamos ilusão: a adesão ao princípio de solidariedade no contexto escolar, mesmo que seja livremente consentida e decorra de uma reflexão, não garante que seja posta em prática nos contextos de ação. Cada um ficará tentado a salvaguardar antes de tudo seus interesses pessoais. Tudo o que se pode esperar de uma

140

Numa sociedade pluralista como a nossa, para evitar a absolutização de algo humano, é preciso relativizar estas experiências e narrativas provenientes das mais diversas tradições e pessoas, religiosas e não. Relativização que não significa a diminuição do seu valor, mas sim a necessária contextualização histórico-geográfico-sócio-cultural (SUNG, 2006, 150-151).

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firme adesão ao princípio da solidariedade, baseado em uma abordagem intelectual, saberes e raciocínios, é que ela seja um ‘contrapeso’ à tentação de pensar apenas em si ou em seu grupo. Se cada um aceitasse se colocar certas questões e considerar as implicações de seus atos em relação aos outros e o conjunto da comunidade, certas decisões nãosolidárias seriam mais difíceis de tomar. A educação pode desenvolver a lucidez e a descentração, fazer duvidar, fazer refletir, perturbar nossa tranquilidade. A escola é o lugar privilegiado para esta confrontação, como dizia Paul Ricoeur (1954). O debate da religião e os estudos dela e sobre ela, na sala de aula, nos levarão a mapear os caminhos que constroem a inumanidade – como dizia Lavinas (2006; 2015) –, ou no dizer de Rorty (1992) os que nos fazem mais cruéis. Assim, religião não é para que nos tornemos mais dignos, mas menos inumanos ou menos cruéis, pois por ela perceberemos nossas contingências o que nos afastará de considerar que algumas afirmações serão mais humanas do que outras. O estudo do religioso deve, assim, se abrir para a discussão sobre as práticas da discriminação étnica e religiosa, tratar de identidade, autonomia, alteridade, tradições, valores, símbolos, indivíduos e coletividades, singularidades e pluralidades. É tratar também de fronteiras, traduções, relações intra e inter-grupos, inclusões e exclusões. O objetivo do ensino do fenômeno religioso não deve ser formar cidadãos nem mais conscientes nem tão pouco mais responsáveis. Tratar do fenômeno religioso em sala de aula significa enfrentar as grandes questões que afetam a forma como homens e mulheres em nossa sociedade constroem suas razões efetivas para viver e ‘viver juntos’. Discutir o religioso significa assumir a necessidade de perceber que a vida não está comprometida apenas com necessidade de se construir modos de coesão social. Vai muito além disso. Lembrando mais uma vez da afirmação de Debray: “a religião é uma dimensão identitária e coletiva profundamente inscrita na carne das sociedades, diz respeito à raiz pesada das mentalidades e não apenas à história das ideias” (DEBRAY, 2004, 152). Ainda na perspectiva de se estudar o religioso como um processo de discernimento entre tudo o que nos humaniza e tudo o que nos desumaniza, encontramos a importante contribuição de Joerg Rieger. Em um artigo141 publicado em 2008, ele afirma

141

Libertando o discurso sobre Deus in Estudos de Religião, Ano XXII, n. 34, 84-104, jan/jun. 2008.

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que o estudo da religião é fundamental, não só porque ela foi a primeira sustentação, teórica e prática, das mais diversas formas de dominação econômica, social, cultural e política do colonialismo moderno, mas principalmente porque ela é uma referência, ao mesmo tempo, para as resistências locais a estas e a outras formas de dominação contemporâneas relacionadas a questões de raça, gênero, opções sexuais, religiosas, etc. Se as culturas locais são fundamentais para se pensar e praticar um outro mundo possível, não é salutar pensar um projeto pedagógico sem considerar o imaginário religioso de todos os atores envolvidos com o projeto pedagógico da escola pública. Rieger (2008) nos lembra que o impulso inicial para a opção preferencial pelos pobres da Teologia da Libertação142 foi teológico. Mas, em seguida, ele coloca duas questões que nos interessam mais de perto: que diferença fazem Teologia e Religião a este respeito? Não seria qualquer referência sincera às margens ou ao subalterno suficiente para resistir ao colonialismo/neocolonialismo e levar os estudos póscoloniais ao próximo passo? E nós acrescentaríamos: indo além da Teologia da Libertação, contextualizada, como sabemos na América Latina, que importância libertadora teria o estudo da(s) religião (ões) não apenas para o homem e a mulher da América Latina, mas para o homem e a mulher no contexto de qualquer situação existencial, em qualquer lugar do mundo que esteja à margem ou nas fronteiras, para utilizarmos uma terminologia própria dos estudos subalternos?

Para ele existem pelo menos duas respostas a estas perguntas. Uma da perspectiva do estudo da religião, mais amplamente concebida e que diz respeito ao nosso tema, e a outra mais especificamente desde a perspectiva da teologia. Na perspectiva do estudo do religioso, sabemos que todos os impérios coloniais modernos foram justificados religiosamente. Por este motivo, o estudo crítico da religião é crucial para investigações pós-coloniais. E mais: nesta história o cristianismo precisa ser especialmente escrutinado. Rieger (2008) afirma que Walter Mignolo foi muito feliz quando apontou que o cristianismo se tornou o primeiro desenho global do sistema mundial moderno/colonial, depois da bem-sucedida expulsão dos judeus e árabes da Espanha e da conquista das Américas. Para Rieger

142

É interessante observar que John Beverly considera os estudos subalternos como a manifestação secular da opção pelos pobres da teologia da libertação.

261


“Como tal, o cristianismo tornou-se uma base ideológica importante sobre a qual as estruturas coloniais de poder podiam ser construídas Uma religião que identificou Deus que está ao lado dos poderes coloniais, sejam eles os monarcas da Espanha e de Portugal, sejam os corpos governantes mais amplamente constituídos, sejam as tentativas dos Estados Unidos de “civilizar” a América Latina pós-colonial, deixou marcas para valer. Neste contexto, deixar de considerar o elemento religioso seria fechar os olhos para um dos motores do colonialismo.” (RIEGER, 2008, 96)

Sabemos que desconsiderar o religioso leva a perder não somente a oportunidade de retrabalhar uma parte importante da história colonial e pós-colonial. E mais: nos leva a perder também um elemento importante da resistência que continua em tempos pós-coloniais e chega até à contemporaneidade. Em muitos casos, assuntos religiosos fornecem sementes de tal resistência.

Muitas pessoas nas margens de nosso atual império levantam questões religiosas e são motivadas por elas – um fato que em algum grau é reconhecido também nos Subaltern Studies Groups. Em muitos lugares – e podemos citar a África do Sul, a América Latina, certas regiões na Ásia e até mesmo os Estados Unidos –, comunidades de fé têm se envolvido em resistir a estruturas coloniais, conduzindo as suas vidas de modo alternativo. Rieger conclui que “enquanto a história do colonialismo olha o cristianismo mais de perto, a história da resistência exige um horizonte religioso muito mais amplo, que inclui interesse por outras religiões e diálogo inter-religioso” (RIEGER, 2008, 101).

Assim, também numa perspectiva de formação para a tomada de uma consciência e de uma atitude que Rieger (2008) chama de pós-colonial, o ensino do religioso na escola pública tem um papel a cumprir. Um papel de preparar os alunos e as alunas, a partir do estudo do fenômeno religioso, para uma vida de resistência frente a toda onda de formas desumanizadoras da vida, típicas da civilização pós-moderna em que vivemos.

4.4. Ensinar o fenômeno religioso não é ensinar uma determinada moral

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Muito já se falou no Brasil que o ensino religioso era necessário para se transmitir e inculcar valores éticos e de cidadania nos alunos e alunas das nossas escolas. Logo após a aprovação da LDB em 1996, foi esta a concepção de ensino religioso que avançou, de certa forma impulsionada pelo FONAPER. Mas a proposta do ensino do fenômeno religioso, como área de conhecimento no currículo escolar da escola pública e laica, não está subordinada a uma determinada moral que certamente terá uma correlação com alguma filosofia ou religião. A aprendizagem do fenômeno religioso não supõe a assimilação, de forma direta, de valores éticos e morais. Ela pode ter um significado moral na formação dos estudantes, se for percebido como fato da cultura e, como tal, constitutivo da humanidade das pessoas e da sociedade humana; se não se restringir a uma inteligência intelectual, mas alcançar igualmente uma inteligência relacional; se não se situar tão somente no conhecimento, mas atingir o reconhecimento, em uma relação de alteridade com o outro; se não se limitar apenas ao aprender, mas também ao apreender. A aprendizagem do fenômeno religioso pode ter um significado para a formação de valores, da ética e da cidadania, no mesmo nível de necessidade e importância das demais disciplinas do currículo escolar. Ela assume este papel na medida em que leva ao conhecimento de si próprio e do outro, possibilitando uma relação que irá exigir um compromisso no campo da ética. Sabemos que todas as religiões possuem uma ética, um código de comportamento para os seus seguidores em relação aos outros, à sociedade e à natureza. O ensino do fenômeno religioso na escola pública e laica tem, com certeza, a tarefa de incluir o conhecimento deste código das diversas religiões em seu programa, sem, no entanto, assumi-lo para a formação dos alunos e alunas em uma determinada corrente moral, como norma de comportamento para as suas vidas. Na perspectiva de um ensino do fenômeno religioso como área de conhecimento, parece que todos estão de acordo com este tipo de abordagem. Mas na prática do dia-a-dia da sala de aula, a situação se revela bem mais complexa. E muitos consideram que está aí justamente o nó górdio de toda a problemática do ensino religioso no Brasil. É também na França que esta discussão se encontra mais avançada. Temos ali toda uma longa tradição histórica de uma educação cívica e de um ensino laico da moral, desde a saída da religião do ensino público em 1882. Ainda hoje o ensino laico 263


da moral está na agenda política do país e provoca acessas discussões em torno da política educacional a ser adotada. 143 A referência à França nesta relação entre o ensino laico da moral com o ensino dos fatos religiosos é necessária para o caso do Brasil, já que entre nós o ensino religioso tradicionalmente foi entendido como um ensino de uma religião portadora de determinada moral para a sociedade. O regime republicano que levou esta geração ao poder na França no final dos anos 1870, tem um discurso totalmente diferente dos períodos anteriores. Nada ficou da união napoleônica da moralidade e da religião positiva. Jules Ferry, certamente, repete várias vezes, inclusive em sua famosa Carta aos Professores de 17 de Novembro de 1883, que a República permanece com uma forte neutralidade religiosa: “Então, fale com o seu aluno com força e autoridade, como uma verdade indiscutível, um preceito da moral comum a todos, mas com o maior cuidado, pois você pode tocar em um sentimento religioso que não deve ser julgado” (FERRY apud PORTIER, conferência, Seminário Nacional, 2011). No entanto, a educação moral não pode contar com as crenças de instituições religiosas. Foi Condorcet o primeiro a insistir no princípio desta separação para a escola: “era necessário separar da moral os princípios de toda religião particular, e não se admitir na instrução pública o ensino de nenhum culto religioso” (CONDORCET, 1989, 116). A lei de 28 de Março de 1882 retirou do programa de educação obrigatória qualquer dogma particular. Essa dissociação é produto da reflexão filosófica que recebe influência principalmente de Kant. Os republicanos defendem, de fato, que a moralidade pode ser independente da religião: a razão é suficiente para acessar os princípios universais.144 A fé pode, se quiser, completar esta ascese interior; não pode é pretender ser o seu substrato.

A lei Jules Ferry, de 28 de março de 1882, substituiu a disciplina ‘Instrução Moral e Religiosa’ dos regimes precedentes (Lei Guizot, de 28/07/1833, e Lei Falloux, de 15/03/1850) de pela ‘Educação Moral e Cívica’, deixando a educação religiosa no encargo das famílias que poderão dispor para isso de um dia da semana, além do domingo, para retirar seus filhos das escolas e levá-los ao culto ou a outra atividade religiosa. Esta prerrogativa das famílias ainda permanece na França. A Instrução Moral e Cívica desaparece da França em 1968 e reaparece como Educação Cívica em 1985. 144 Mas essa dissociação também procede de um julgamento histórico: a Igreja Católica, com a qual JeanÉtienne-Marie Portalis imaginava poder contar para consolidar a sociedade revolucionária, tem, ao longo do século XIX, e mesmo através de alianças com regimes da ordem, perseverado na sua intransigência, a ponto de se tornar impensável, a construção da “cidade dos espíritos emancipados” na expressão de Gambetta. A partir da década de 1870, tornou-se impossível qualquer tipo de cooperação com ela. 143

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Uma conclusão se tira desta reflexão. É somente o Estado que poderia incutir uma moral coletiva. Como se observa Jules Ferry em 1879: “O Estado é responsável pela educação, a fim de manter uma determinada moral de Estado, alguma doutrina do Estado, indispensável à sua conservação”. (FERRY apud PORTIER, conferência, Seminário Nacional, 2011). A lei nº 595/2013, de 8 de julho de 2013, projeto do Ministro da Educação Nacional à época, o filósofo Vincent Peillon, estabeleceu novos parâmetros para o ensino laico da moral,145 tendo dois eixos que lhe são próprios: a afirmação da dignidade humana e a solidariedade social. Esta lei se orienta por uma espécie de refundação da escola da República em torno de seus valores fundamentais146, atualizada frente à nova realidade social, cultural e política do país, profundamente marcada pela imigração e pelos integrismos religiosos. No seu artigo 28, encontramos: “a escola, notadamente graças ao ensino moral e cívico, deve levar os alunos a adquirirem o respeito pelo outro, pelas suas origens e suas diferenças, pela igualdade entre homens e mulheres e também pela laicidade, [...] a educação moral e cívica busca principalmente levar os alunos a se tornarem cidadãos responsáveis e livres, adquirirem espírito crítico e adotar um comportamento refletido”. (Lei nº 2013/595).

Propõe-se assim uma cultura do respeito e esta é explicitada a partir do princípio da laicidade: “a laicidade não é somente um princípio que se impõe por regras, mas um valor a cultivar nas condutas do cotidiano. Ela repousa sobre uma cultura do respeito e da compreensão do outro” (CHARTE DE LA LAICITÉ Á L’ÉCOLE, art. 9), e pode ser compreendida como a pedra angular de uma ética democrática, ou seja, uma atitude moral constituída de pequenas e grandes virtudes: a civilidade, a polidez, a decência dos propósitos, do vestir e das atitudes, a cordialidade, mas também o respeito, a tolerância, a benevolência, a atenção ao outro, a compreensão, a solidariedade, a generosidade, o auscultar o próximo. São aspectos de uma conduta de humanidade e

Esta lei institucionalizava várias propostas do Relatório “Por um Ensino laico da moral”, solicitado em 2012 pelo ministro Peillon a Alain Bergounioux, Inspetor Geral da Educação Nacional e professor associado ao Instituto de Estudos Políticos de Paris, Laurence Loeffel, professor de Ciências da Educação na Universidade Charlles de Gaulle-Lille-3 e Rémy Schwartz, Conselheiro de Estado e professor associado na Universidade de Paris. 146 Estes valores fundamentais da República ficam explícitos no próprio texto da lei: o respeito mútuo, a liberdade e a qualidade de vida em comum. 145

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respeito. Entre estas virtudes, ainda se coloca a rejeição de toda e qualquer violência e de todas as discriminações (DELAHAYE, 2014, 19). É importante esclarecer ainda que foram também razões políticas que levaram o governo francês a implementar um novo modelo do ensino laico da moral, deixado praticamente de lado desde 1968. Basta lembrar do manifesto de um dos sindicatos de diretores de escolas que denunciava em 2013 o fracasso da educação na França, evidenciado pela evasão escolar de vários jovens que partiam para o engajamento nos grupos terroristas do Oriente Médio. Aquele documento ressaltava a necessidade de um projeto de educação e, especificamente, de uma política de ensino de moral e civismo que conscientizasse os jovens quanto ao perigo do integrismo e do comunitarismo religiosos. A instrução oficial que se seguiu à Lei nº 595/2013, denominado projeto de Ensino de Moral e Cívica, apresentado ao Conselho Superior dos Programas em julho de 2014, é outro documento esclarecedor. O ensino do fenômeno religioso é raramente mencionado aqui. Percebe-se que, na proposta oficial, o ensino laico dos fatos religiosos e o ensino laico da moral e civismo, apesar de terem a laicidade como sua base comum, são políticas claramente independentes. Mas isso não impede toda uma discussão sobre a transversalidade dessas políticas. O ensino laico da moral é colocado como uma cultura que deve ser construída na consciência e na práxis da vida de crianças e adolescentes.147 Assim, a cultura moral é formada por uma cultura da sensibilidade, por uma cultura do direito e do dever, por uma cultura de julgamento, por uma cultura de compromisso. Estas culturas devem se relacionar diretamente com a disposição do ‘viver juntos’, formada pelos princípios de autonomia, de disciplina, de coexistência das liberdades, enfim, da comunidade de cidadãos. Elas devem se relacionar também com três categorias de valores que devem ser promovidos: autonomia e liberdade; disciplina, comunidade e solidariedade; emancipação pelo diálogo, espírito crítico e busca da verdade (SAINTMARTIN & GAUDIN, 2014, 10). Analisando a evolução histórica do ensino laico da

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Quer se trate da moral ou dos fatos religiosos, a escola deve se preocupar em dar aos alunos e alunas, tão marcados por diferenças e desigualdades, um referencial comum e uma base comum de conhecimentos, de competências e de cultura. A Charte de la laicité á l’école, no seu artigo 7, também expressa esta preocupação: “A Laicidade deve assegurar aos estudantes o acesso a uma cultura comum e compartilhada”.

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moral na França, Alain Bergounioux (2006) observa que se passou de um saber nacional para valores de um viver juntos. Toda esta discussão se situa em outro contexto social, cultural e político diferente do Brasil, mas alguns de seus pontos muito podem contribuir para o nosso caso particular. A existência de uma área de conhecimento, não necessariamente uma disciplina específica, de moral e civismo, como na França, ainda provoca entre nós arrepios nada saudosos da ditadura militar e da sua política educacional.148 Como vimos, ela já possui na França uma tradição e é bem recepcionada pela grande maioria da população. O que queremos discutir aqui é exatamente a relação entre o ensino laico da moral e o ensino laico dos fatos religiosos. Percebe-se, de saída, que a laicidade da escola é a base comum destas duas políticas públicas de educação da França. Frente a isso é que têm se posicionado os intelectuais, a academia, os órgãos oficiais de ensino, as instituições da sociedade civil e os próprios professores naquele país. Enfim, como se poderia articular o ensino do fenômeno religioso e alguma consequência moral deste ensino, como tem sido colocado na França? Em primeiro lugar, é necessário lembrar que o ensino do fenômeno religioso ou o ensino da história das religiões não têm necessariamente virtudes morais. Nem todas as religiões têm um ensinamento moral. Há religiões, religiões antigas principalmente, que favoreceram a violência, que levaram à morte milhares de pessoas. Não nos esqueçamos da violência da Inquisição. Na Torah, temos exemplos de verdadeiras carnificinas ordenadas por Javé, como no caso dos 450 profetas de Baal trucidados por obra do profeta Elias. Assim, a ligação entre a religião e moral é complexa. As religiões são fontes de moral, mas algumas expressões religiosas ou partes delas não são muito portadoras de uma moral que seria hoje considerada consensualmente uma boa moral. Algumas expressões religiosas são belicosas e fanáticas. Assim, a qualificação moral das

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A própria Igreja Católica sempre levanta a questão de quem tem a legitimidade para ensinar valores. O Estado é o fórum mais legítimo para ensinar valores? Mas outros setores da sociedade também fazem este questionamento. Há quem defenda que esta seja uma tarefa unicamente da família. De qualquer forma, na Alemanha, após a experiência dos totalitarismos, segundo Willaime (2015), os alemães ainda desconfiam até hoje das pretensões filosóficas do Estado. Porque eles experimentaram os totalitarismos nazista e comunista, a tentativa do Estado de querer impor um conceito de vida para todos.

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expressões religiosas deve ser discutida e faz parte da necessidade de discernimento entre os mitos, crenças e símbolos do nosso tempo. Mas voltemos ao ensino da educação moral e civismo na escola pública e laica, aberta a todos, como ocorre na França. Cada escola decide a melhor forma de encaminhá-la: ou como uma disciplina à parte ou como um tema transversal a várias disciplinas. O que o professor da escola pública laica teria como tarefa máxima seria passar uma espécie de mínimo denominador comum, uma espécie de uma mínima moral abstrata, que fosse além das várias tradições filosóficas e religiosas. Seria algum tipo de abstração da moralidade mínima necessária para o ‘viver juntos’, para respeitar uns aos outros, condenar a violência, etc. Apenas seria possível um ensinamento moral mínimo por abstração. Ao mesmo tempo, a escola pública laica não pode, sendo uma instituição estatal e nacional, ensinar uma moral particular, de uma filosofia ou de uma religião particular. Então, há o desafio de se reconhecer que na sociedade atual há uma pluralidade de concepções morais. Ou, como alguns filósofos dizem, existem diferentes concepções do bem viver, diferentes concepções, por exemplo, para a dignidade do homem e da mulher, para a questão de gênero. Assim não se espera que a escola pública laica ensine uma concepção particular para desqualificar outras concepções. Ao mesmo tempo, ela deve educar para um ethos cívico e para um ethos democrático, um ethos dos direitos humanos. Porque estes são pilares normativos das sociedades democráticas. Seria o que as escolas públicas laicas poderiam e deveriam ensinar, mas é preciso reconhecer que há diferentes formas de legitimar, por exemplo, os direitos humanos, a partir de um ponto de vista secular, ou a partir de um ponto de vista religioso ou filosófico-não religioso. Assim, seremos necessariamente levados a debates sobre a origem e o fim da vida, sobre o estatuto do embrião, a questão do aborto, da homossexualidade. É muito fácil dizer: ‘há apenas um único caminho que é bom e é válido’ mas isso não resolve o problema. Na questão de gênero, por exemplo, há alguns que acreditam que há uma igual e absoluta dignidade do homem e da mulher, mas que dizem que, todavia, existem diferenças entre o homem e a mulher. Então, outros vão dizer: ‘Não há diferenças entre o homem e a mulher; se se falar em diferenças, isso é prontamente entendido como

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desigualdade.’ Mas nem toda diferença é equivalente a uma desigualdade, em termos de direitos, por exemplo. Desta forma, quando o Ministro da Educação Nacional da França, Vicent Peillon, quis reintroduzir o ensino da moral na escola pública laica, falou-se, a princípio, de ‘ensino da moral laica’, como era tradição desde Jules Ferry, e hoje se fala de ‘ensino laico da moral’.149 Então, observe, em um primeiro momento, ensino da moral laica. Esta expressão foi abandonada e, com razão, porque poderia levar ao entendimento de que esse ensino público laico deveria ensinar a moral laica em oposição a outras concepções de moral, especialmente as religiosas. Esta expressão ensino laico da moral é muito melhor que o ensino da moral laica, pois se entende que a moral laica seja um ensino que deve levar em conta o fato de que há diversas tradições morais, há diversas fontes de moralidade, fontes filosóficas, fontes religiosas, e que, por conseguinte, há uma pluralidade de tradições morais, há uma pluralidade de concepções morais. Vejamos bem. Nestas duas expressões, para o ensino da moral laica teríamos um magistério laico na escola pública, enquanto que o ensino laico da moral é uma laicidade positiva de confrontação, conforme Paul Ricoeur (1954), uma vez que é o ensino que é laico ao reconhecer que existem diversas tradições morais, fontes de diversidade moral. Trata-se, pois, de uma questão filosófico-política extremamente importante. Outra delicada questão é que não está ainda realmente resolvida na França é a formação de professores para a prática deste ensino laico da moral. De fato, este ensino da moral passa muito pela prática, pelo aprendizado em sala de aula. Isso não tem como ser uma teoria, o ensino da moral não é escrever na lousa: ‘você tem que amar seu próximo’, ‘é preciso respeitar o seu colega’. Em vez disso, na prática, inclusive em sala de aula, é preciso ensinar aos alunos, por exemplo: ‘escute seu colega’, ‘seu amigo fala, ele também fala; ele tem o direito de desenvolver os seus pontos de vista.’ É o que podemos chamar de uma educação para a cidadania nas sociedades pluralistas. Este é um

Esta alteração já aparece no relatório “Por um Ensino laico da moral”, resultado do trabalho de Alain Bergounioux, Inspetor Geral da Educação Nacional e professor associado ao Instituto de Estudos Políticos de Paris, Laurence Loeffel, professor de Ciências da Educação na Universidade Charlles de Gaulle-Lille3, e Rémy Schwartz, Conselheiro de Estado e professor associado na Universidade de Paris. Este relatório foi solicitado pelo ministro Peillon em 2012 e serviu de subsídio para o projeto de Lei nº 595/2013. Este relatório afirma que não é possível ensinar uma concepção de bem único em uma sociedade democrática e pluralista como a da atualidade, muito diferente da França nos anos 1880. Reafirma também a necessidade de fugir de todo o relativismo através do ensino de valores comuns. 149

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elemento fundamental da educação nas escolas públicas em sociedades pluralistas: a educação para o pluralismo. 150 Aprender que o colega é diferente não é um problema, mas uma riqueza. Então o professor precisa ensinar a diferença e para ensiná-la, para que os estudantes se acostumem com a diferença cultural, isso deve ser apreendido na vida diária, em sala de aula. Outro ponto muito importante é que as escolas públicas não façam como se fossem a única instância de socialização moral. Este é também o importante papel dos pais, das famílias, das associações, dos grupos religiosos, e até mesmo das associações desportivas, pois através do desporto, inclusive, aprendemos regras éticas, o respeito pela regra do jogo, o respeito ao outro. O respeito pelo outro no jogo passa pelo respeito às regras. Portanto, há uma virtude moral do esporte em particular, tanto do esporte coletivo quanto do esporte individual. Mas se Estado pretende ser o único empreendedor da moral, então corremos o risco de cairmos no totalitarismo. E ainda precisamos lembrar que a natureza essencial da democracia, é a renúncia do poder político para exercer o poder espiritual e a renúncia do poder espiritual para exercer o poder político. Assim, a democracia é uma renúncia dupla. Isso significa que, em um Estado de direito, temos o respeito ao direito, o respeito pelo direito comum, mas o Estado não deve assumir o encargo do bem viver. O Estado laico deve justamente ir a fundo com esta laicidade, não deve ser nem religioso nem anti-religioso, ele deve respeitar as opções religiosas e filosóficas da população e o papel das famílias, das associações, dos grupos religiosos e não religiosos na educação social, cultural, ética dos indivíduos. 151 Portanto, é preciso definir a tarefa específica da escola pública laica em relação à sociedade atual, em relação à sua diversidade. Diversidade não apenas de concepção, mas a partir da diversidade de cultura, da concepção de bem viver, ou seja, uma concepção antropológica. Há visões muito diferentes da vida, do bem viver, do que é a dignidade de uma pessoa humana, do que é a diferença entre o homem e a mulher. É, portanto, o que podemos chamar de um pluralismo axiológico, um pluralismo antropológico. E assim, este é um grande desafio para a escola pública laica que deve 150 151

Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 24/06/2015. Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 24/06/2015.

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garantir um mínimo do ensino para se ‘viver juntos’, garantir a moral pública comum que permite a nós vivermos juntos com as nossas diferenças. Foi o sociólogo Alain Touraine que usou pela primeira vez esta expressão ‘viver junto com as nossas diferenças’.152 Trata-se de um projeto ambicioso, difícil, mas é a única possível. O Conselho da Europa tem trabalhado muito neste sentido, tanto a respeito à diversidade cultural e religiosa, mas, ao mesmo tempo, a preocupação com a coesão social, a coesão nacional. Portanto, não se dissolve a moral comum no respeito às diferenças, porque, de outra forma chegaríamos aos comunitarismos, uma espécie de apartheid, cada um para o seu lado, segregação, guetos. Não, precisamos, pelo contrário, das interações, precisamos de um acordo e de uma educação em relação à moral comum. Na França, em 2010, por exemplo, a ocultação da face foi proibida porque se considerou que a relação face a face, olho no olho, como costumamos falar, identificava uma pessoa, é um elemento importante de uma sociedade democrática. Ocultar ou não ... O filósofo judeu, Emmanuel Levinas, tem insistido muito no papel da visão, do olhar, do enxergar na relação social, uma relação essencial. 153 Temos, pois, a necessidade de abertura, a necessidade de respeito pela diversidade cultural e religiosa, mas, ao mesmo tempo, é extremamente importante ensinar um ethos comum de respeito à liberdade do outro. E cada liberdade é limitada por outra liberdade. Há um equilíbrio a ser alcançado. Portanto, esta é uma questão absolutamente crucial, no Brasil, na França, em qualquer lugar do mundo. Gaudin lembra que “o famoso ‘viver juntos’ é o ponto de encontro entre a moral e o ensino dos fatos religiosos, para um projeto de sociedade que faça sentido, mesmo se não quisermos vê-lo como tal, por não sabermos o que pensar exatamente sobre isso.” (GAUDIN, 2014a, 298). Para aquelas correntes mais laicistas, a moral laica serve como uma solução completa para todos os problemas do ‘viver juntos’. Este é um bom exemplo do que Ricoeur (1954) chamava de laicidade de abstenção, mesmo que a escola, a princípio, não desconheça a sociedade onde ela se insere. Gaudin (2014b) aponta uma verdadeira diferença, para não dizer um mal entendido, entre a natureza do ensino do fenômeno religioso e certo tipo de demanda social que não se incomoda com sutilezas e que afirma que a religião vai levar, pelo

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Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 24/06/2015. Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 24/06/2015.

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menos, um pouco de moral para a escola. O ensino do fenômeno religioso não deixa de ter, no entanto, um evidente significado moral, sem impor uma determinada moral.154 Vejamos. Ensinar o fenômeno religioso, seja como um tema transversal, seja como área de conhecimento ou mesmo uma disciplina, é antes de tudo, educar e melhor instruir. Todo o Capítulo III foi dedicado a esta questão. Aquele significado moral não é, portanto, uma lista de boas ou más ações, obrigações e proibições, que também seria impossível estabelecer ao estudar o fenômeno religioso. Pelo contrário, seu escopo é proporcionar a conscientização, com exemplos concretos, do fato de que a vida humana na sociedade nunca é apenas uma vida biológica simplesmente, mas sempre procura se construir de uma forma simbólica e ética, a se representar por narrativas, rituais e obras de arte, preocupações com as origens do mundo, com as principais etapas da vida, com um destino para o além, etc. Isso não significa que não haja nenhuma construção simbólica e ética fora das religiões, mas é certo que elas são deste ponto de vista, uma reserva de sentido considerável e de grande repercussão na sociedade. Por outro lado, o fato de se estudar os fatos religiosos em uma óptica ‘científica’ tem um efeito crítico sobre uma certa maneira de crer e querer impor suas crenças fora de todo contexto democrático e, portanto, fora de qualquer contexto laico para entrar em um questionamento moral. Como sintetizar tudo isso? O estudo do fenômeno religioso nos proporciona a visão de que o religioso não pode ser reduzido a uma lista de superstições mais ou menos absurdas, mas pode se manifestar tanto na altura de suas construções teológicas, quanto na profundidade de suas raízes antropológicas e sociais a tal ponto que a leitura de muitos eventos seculares pode ser feita como ressurgências recompostas do religioso, como já foi falado aqui. A reflexão moral, tensionada entre o conhecimento necessário do ser humano como ele é e o postulado de como ele deveria ser, não pode abrir mão de tais recursos proporcionados pelo estudo do fenômeno religioso como aplicação didática da(s) ciência(s) da(s) religião(ões). Se a ciência é, por si mesma, uma

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O ensino dos fatos religiosos através das disciplinas da área de Humanidades na França requer abordagens tão diferentes que impede a manipulação simplista com objetivos externos predeterminados. Mas não podemos descartar nenhum dos lados nesta questão do significado moral deste programa.

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atividade social, como afirma Boaventura de Sousa Santos (2010), o ensino do fenômeno religioso na escola pública se justifica diretamente do ponto de vista da educação que é também, por si mesma, um ensino de valores comuns e de uma cidadania partilhada.

Considerações finais

Estudar o fenômeno religioso na escola pública é uma questão de urgência. É a própria secularização que exige a ampliação do leque dos conhecimentos, incluindo o conhecimento do religioso, para explorar todas as formas de sentido na construção de uma sociedade mais humana e solidária. É a própria laicidade do Estado, na sua evolução e maturação, que exige o conhecimento do religioso como uma melhor inteligência para enfrentar os grandes desafios do nosso tempo. Se o religioso é constitutivo do humano e está inserido na carne das sociedades, como fato de cultura, ele tem seu lugar garantido entre os saberes dos currículos escolares. Trata-se de uma questão

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complexa que não pode ser dissociada dos percursos históricos e contextos políticos das sociedades nacionais. No caso do Brasil, vimos que o tradicional ensino religioso traz uma pesada carga ideológica herdada dos tempos da colônia como catequese e ensino de uma religião em particular, no caso a Católica, cuja hegemonia só recentemente vem sendo abalada. Sua maior ou menor inserção no sistema escolar e a forma desta inserção evoluíram a partir das grandes transformações da sociedade brasileira na direção de uma secularização cada vez maior e a consequente constituição de um Estado laico com a República. Mais recentemente, os grandes deslocamentos do religioso, com destaque, no nosso caso, do crescimento das religiões pentecostais e neopentecostais com todos os seus desdobramentos, colocaram a religião na urgência de uma agenda política nacional. Terminantemente a religião não é mais um tema apenas da esfera privada. Sua presença cada vez maior no espaço público exige que passemos de uma postura de desconhecimento de sua presença para outra postura de dever compreendê-la como realidade humana e social. Daí o transcurso de uma laicidade de abstenção para uma laicidade de inteligência, na feliz proposição de Paul Ricoeur, depois tão bem explicitada por Régis Debray para a educação. Sem uma visão da laicidade mediadora e inclusiva na concepção de Hervieu-Léger, não teremos como justificar a necessidade de se estudar o fenômeno religioso através de um método pedagógico com uma clara finalidade de formação. A religião se situa entre os saberes silenciados pelo racionalismo ocidental totalitário. Uma laicidade de inteligência caminha pari passu com uma ecologia dos saberes que poderá credibilizá-la e fortalecê-la. Boaventura de Souza Santos dá uma contribuição ímpar para a investigação desta possibilidade. Mesmo que a religião não seja o grande tema de seus estudos, ele contribui muito ao nos fornecer argumentos úteis para a crítica à razão indolente que considera hoje as experiências humanas com o transcendental como ignorância, saber residual, inferior, local e improdutivo. Já Edgar Morin, com seu pensamento da complexidade, é indispensável para o reconhecimento do estudo do fenômeno religioso como não apenas útil, mas necessário, se quisemos educar nossas crianças e jovens para a condição humana. Nesse sentido, acreditamos ter demonstrado com segurança que a laicidade, como vem sendo colocada atualmente pela maior parte dos acadêmicos e 274


pesquisadores franceses sobre o tema, é o pressuposto indispensável para a ampliação do conhecimento na perspectiva mesma da ecologia dos saberes, entre eles os saberes religiosos. Trata-se de uma referência complexa para esta relação laicidadeconhecimento-religião, a que conceitos já conhecidos vêm trazer agora, com o nosso trabalho, contribuições ímpares. É o caso, por exemplo, da noção da separação flexível entre o Estado e as religiões desenvolvida por Jean-Paul Willaime e Philippe Portier na mesma linha da laicidade compartilhada de Habermas. É o caso também da laicidade positiva de confrontação, já colocada por Paul Ricoeur em 1954. De toda esta reflexão, pudemos concluir que a laicidade é um pressuposto fundamental para se pensar o ensino do fenômeno religioso não apenas na França, mas também no Brasil. De forma incrivelmente convergente, apontamos a grande ressonância do pensamento de Boaventura de Sousa Santos e Edgar Morin com a política pública francesa do ensino dos fatos religiosos desde 2002. Esta política parte da ciência para a abordagem do religioso em sala de aula sem desconhecer, no entanto, que falar dos fatos religiosos é também recuperar manifestações sociais, práticas e fazeres de sentido. O rigor científico aqui ainda se encontra na necessidade de demarcar um campo estrito da competência do Estado em gerir a diversidade cultural e o pluralismo religioso, atendendo ao preceito de neutralidade imposta pelo seu caráter laico. Assim, demonstramos como Jean-Paul Willaime e Jean Baubérot, Philippe Gaudin e Isabelle de Saint-Martin, por vias transversas, também apostam na construção de uma racionalidade mais ampla e mais cosmopolita que abarque e credibilize todos os saberes, inclusive os saberes religiosos. Somente desta forma, será possível reconhecer a necessidade do conhecimento do religioso para uma sociedade secularizada como a nossa e em um espaço público tão importante para a formação das consciências como a escola pública. No Brasil contemporâneo, a questão da laicidade retorna à ordem do dia, chegando até o Supremo Tribunal Federal com a tramitação de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs nº 4439 e 3268) envolvendo o ensino religioso nas escolas públicas. A audiência pública realizada em 15 de junho de 2015 para discutir a ADI 4439 vem sendo tratada pelos grupos laicistas como uma audiência para discussão da inconstitucionalidade do ensino religioso em si próprio, ao vinculá-lo apenas aos modelos proselitistas e catequéticos que priorizariam a moralidade de uma maioria cristã. Trata-se

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de uma posição presa a um forte viés jurídico-político, inspirada em uma noção de laicidade que já amadureceu e evoluiu na própria França.

Mas queremos deixar muito claro que o ponto central do questionamento da Procuradoria Geral da República é outro, ou seja, o caráter não constitucional do ensino religioso de viés confessional, inter-confessional e/ou ecumênico. Assim sendo, o entendimento do qual parte a discussão convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADI 4439, é de que o ensino religioso de matrícula facultativa para o aluno e a aluna deve ser ofertado nas escolas públicas segundo uma perspectiva atenta ao pluralismo de ideias e à diversidade religiosa, respeitando as liberdades individuais de crença e, vedando qualquer forma de proselitismo, conforme previsto na Constituição e na LDB. Ressalte-se que dos 31 pronunciamentos na audiência do STF, apenas 3 defenderam o ensino religioso confessional nas escolas públicas, como é praticado no estado do Rio de Janeiro. A defesa que aqui fizemos do ensino do religioso se alinha perfeitamente aos questionamentos feitos pelas ADIs. Como área de conhecimento e aplicação didática das Ciências da Religião, mesmo que esta área esteja ainda se consolidando na academia, o ensino do religioso não pode “inculcar nos alunos princípios e valores religiosos [ou morais] partilhados pela maioria, com prejuízo das visões ateístas, agnósticas, ou de religiões com menor poder na esfera sócio-política” (MPF, ADI 4439). Esta posição supera, pois, aquela visão que ainda perdura em vários sistemas de um programa baseado no ensino de determinados valores, de uma ética determinada e de uma visão de cidadania. Esta não é a finalidade de uma disciplina específica, mas de todas as disciplinas, de todo o currículo, com base no projeto políticopedagógico da escola pública. Os argumentos de base jurídica atentam para a lógica da lei, cuja letra explicita como um valor irrevogável a laicidade do Estado. Cabe ao Estado não se pronunciar em matéria de fé religiosa, privilegiando uma crença em prejuízo de outras. Assim, na qualidade de laica, a escola pública não deve manifestar-se em favor de crenças específicas. Deriva desse entendimento a inconstitucionalidade de qualquer forma de ensino religioso de caráter doutrinário e confessional. O que está em jogo no julgamento das ADIs não é determinar como inconstitucional o que “aí está”, mas determinar como 276


inconstitucional toda forma de ensino religioso que seja confessional, interconfessional e/ou ecumênica. Esse é o espírito da lei. Para nós está muito claro que não se trata de declarar não constitucional o ensino religioso, mas as formas de tematizar a religião em sala de aula que não atentem para esse componente curricular como lugar para a construção de um conhecimento de especificidade histórica, social e cultural que constitui identidades, etnicidades e grupos sociais que compõem a sociedade civil brasileira. As religiões, portanto, como culturas, como linguagem, como arte, como conjunto de crenças, como sentido, como formas de ordenamento individual e coletivo, que se expressam por meio de narrativas míticas, textos, rituais, códigos de usos e condutas.

De qualquer forma, a legislação vigente sobre o ensino religioso permanece contraditória e inconsistente em vários aspectos. Apesar do Conselho Nacional de Educação, através do Parecer 07/2010 e da Resolução 04/2010, considerar o ensino religioso como componente curricular, não é possível afirmar que a Constituição e a LDB o reconheçam explicitamente como área de conhecimento. A matrícula facultativa soa como uma advertência e isso só faz sentido por considerá-lo ainda com forte carga de confessionalidade. Se esse componente curricular recebesse regulamentação teórica, metodológica e epistemológica adequada com a finalidade de verdadeiramente levá-lo à qualidade de conhecimento, não haveria restrição para a frequência de todos os alunos e alunas às aulas de ensino do religioso, pois estaria firmemente assegurado que os programas e conteúdos não violariam a liberdade de consciência e de crença de ninguém. O que ocorre é que essas leis no Brasil tiveram sua origem na década de 30 do século passado, exatamente para agradar os católicos, historicamente os principais interessados nessa matéria. Por isso, o ensino religioso reconhecido como disciplina em horários normais, mas de maneira facultativa, para que não se deixasse de atender os laicistas do movimento da Escola Nova. Naquele momento, não interessava ao Estado tomar um dos lados e resolver esta disputa política. Interessava mais manter os dois lados sob relativo controle, de acordo com o Estado de compromisso criado por Vargas após a Revolução de 30.

Outra maneira de se tergiversar sobre o verdadeiro problema estaria na suposição de que seria um risco a proposta de um ensino religioso não confessional, amparada apenas nas experiências mal sucedidas de ensino religioso proselitista, 277


confessional, inter-confessional e/ou ecumênico. Só se compreende tal argumento tendo em vista que é considerável a parcela de juristas, pedagogos e militantes políticos que desconhecem a possibilidade de abordar a religião como objeto científico, o que é feito tanto nas Ciências Sociais quanto nas Ciências da Religião. Parecem desconhecer que a literatura produzida com base no estudo acadêmico e científico da(s) religião(ões) provém da História, da Sociologia, da Antropologia, da Filosofia, das Ciências da Religião e outras áreas do conhecimento, ligadas ao campo das humanidades, voltadas para o exame e escrutínio desse tema que é, sem dúvida, parte integrante da história da formação da sociedade e do Estado brasileiros. Infelizmente, foi possível percebermos esse desconhecimento, em vários momentos, da audiência pública do STF sobre o tema em 15/06/2015. Conhecer o campo religioso brasileiro, suas tensões, controvérsias, desafios, limites e perspectivas, corresponderia à oportunidade de compreender qual o papel que as instituições religiosas exerceram e exercem na formação de nossa história e de nossa cultura. Compreender também em que medida os discursos religiosos são produtores de sentido, a ponto de determinarem a conduta de muitos cidadãos e cidadãs brasileiras no seu cotidiano. Assim, não caberia ao ensino do religioso a promulgação dos discursos religiosos, mas o esclarecimento do que querem, pretendem e propõem tais discursos para grandes parcelas da sociedade brasileira.

Ignorar que, em nossa sociedade, a religião e a religiosidade transitam em todos os espaços, sejam eles privados ou públicos, supõe a permanência de uma laicidade de incompetência. Deixar apenas para os religiosos a responsabilidade de tratarem da religião corresponde a legar-lhes o direito de reforçar endogenamente a exclusividade de suas crenças e, consequentemente, o estreitamento da visão sobre pluralidade, diversidade e respeito pela alteridade. O Estado não deve interferir nas decisões individuais e privadas sobre ter ou não religião, mas deve garantir o direito das pessoas de exercerem suas liberdades de escolha. E escolher na base da razão pressupõe conhecimento. Não podemos prever o desfecho do julgamento das ADIs no STF, mas algumas indicações do Ministro Barroso apontam para a afirmação da constitucionalidade do ensino religioso, talvez com o estabelecimento de normas e limites para o seu 278


funcionamento, e julgando como inconstitucional as modalidades que não o considerem como área de conhecimento, com respaldo científico.

Nesse sentido, se o STF mantiver a constitucionalidade do ensino religioso, ele não estará induzindo à confusão quanto ao caráter facultativo desse componente curricular tornando-o obrigatório, como afirmam alguns. Nem renovará a inconstitucionalidade da prática docente relativa a ele. E afirmamos isso por diversas razões: 1º) porque construir uma proposta curricular para o ensino do religioso atenderá o que exige a lei; 2º) porque estabelecerá diretrizes para o ensino religioso laico, agora definido para o ensino do fenômeno religioso, para aqueles que optarem por essa disciplina; 3º) porque isso significará claramente a regulação da prática de ensino no que diz respeito à diversidade religiosa e à liberdade de crença; 4) porque isso significará a garantia de um ensino sobre religiões que permita aos alunos e alunas uma oportunidade de aprendizado não-tutelado pelas instituições e as lideranças religiosas; 5º) porque este modelo de ensino do religioso lhes será útil na formação de uma consciência crítica e autônoma, consciência essa desejável para religiosos e não-religiosos. Queremos afirmar, então, que, nessa perspectiva, fica bastante claro que se trata de um ensino para o esclarecimento e não para o obscurantismo. Não é somente o ensino religioso que permite uma certa invasão de noções derivadas de crenças privadas na esfera pública. As grandes transformações que incidem sobre as sociedades pós-modernas estão desconstruindo, na atualidade, como vimos, os conceitos de secularização e secularismo, laicidade e laicismo, já que é patente a precariedade de suas definições clássicas. As noções também de público e privado estão despertando cada vez mais a atenção de educadores e juristas. Na França, esta discussão já vai avançada, mas no Brasil ainda está engatinhando. Religiosos e religiosas carregam princípios e valores apreendidos na sua experiência de fé. Compreendê-los significaria a possibilidade de construção de pontes para o entendimento que resultariam em menor risco de violência e intolerância religiosa. O exercício da liberdade seria garantido pelo esclarecimento a respeito do que são as religiões, o que pretendem, o que pregam, quais são seus deveres e, principalmente, quais são seus limites. Em defesa do ensino religioso laico, queremos admitir que o objeto desse componente curricular, a religião, bem poderia ser tratado no âmbito da História, 279


da Sociologia ou da Filosofia, como se faz com o ensino dos fatos religiosos na França. No entanto, a peculiaridade do conteúdo tão rico em expressão, a especificidade do tema que exige o viés compreensivo e a vocação crítica sobre o tema, que contribuiria profundamente para a formação plena de alunos e alunas, parecem requer mais do que um tratamento transversal. Assim, ficamos com a posição de Jean Baubérot que continua defendendo para a França esta área do conhecimento como uma disciplina específica em um horário à parte, como já é tradição no Brasil.

Uma educação verdadeiramente humanística deveria ter na mesma conta de relevância todas as áreas de conhecimento significativas para a sociedade, inclusive o ensino do religioso. Exige-se que alunos e alunas passem pela escola e desenvolvam competências significativas para uma vida como cidadãos e cidadãs. Essas competências compreendem conteúdos tidos como indispensáveis à vida em sociedade. Não seria indispensável ao ser humano um tipo de conhecimento sobre religião que promovesse entre religiosos e não-religiosos, a capacidade de diálogo, de entendimento mútuo e de convivência social pacífica? Isso não seria aprendizagem altamente significativa? Esse tipo de conhecimento não contribuiria até mesmo para a preservação da laicidade do Estado brasileiro? Independentemente da judicialização do problema, permanecem em aberto questões cruciais: o que ensinar, como ensinar e para quê ensinar o religioso em sala de aula nas escolas públicas. Todo o imbróglio da legislação repercute diretamente na fragilidade facilmente constatada de uma epistemologia clara para este componente curricular. Aqui nos parece que o caminho no Brasil já foi suficientemente traçado, mas o caminhar até agora tem sido bastante limitado. E é justamente neste quesito que a política pública francesa do ensino dos fatos religiosos pode dar uma contribuição importante para o caso brasileiro.

E essa contribuição se dá exatamente no fundamento do ensino do religioso em uma área que articule o conhecimento acumulado pelos estudos das tradições religiosas e as conquistas de um Estado laico, como por exemplo, o caráter não confessional da educação pública, em respeito à pluralidade religiosa. Ainda também no desenvolvimento de uma metodologia de ensino, uma vez que integra o currículo escolar, apropriada à natureza de seu objeto e objetivos, especialmente afeitos ao subjetivo, ao 280


imaginário e aos universos simbólicos das tradições, da cultura e religiosidade contemporâneas, o que demanda uma especial valorização e cuidado com a questão da linguagem, ou, melhor dizendo, das linguagens, seja pela natureza da experiência religiosa, seja pelas características da sociedade contemporânea. Tudo indica que aqui está o maior ponto de convergência entre o projeto oficial francês de ensino dos fatos religiosos e o projeto do ensino do religioso defendido como área de conhecimento no Brasil, como se busca fazer no estado do Paraná. Nos dois países, dá-se atualmente enorme importância à formação dos docentes e que esta seja feita na área da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões). Para mim, foi determinante o estágio que realizei no Groupe Sociétés, Religions, Laicités (GSRL), da École Pratique de Hautes Études (EPHE), em Paris, seguramente onde esta discussão está mais avançada, a ponto de ali existir uma instituição pública nacional para preparar professores das diversas áreas de Humanidades no tratamento do religioso, o Instituto Europeu de Ciência das Religiões (IESR), criado em 2002.

Quanto ao para quê, o ensino do fenômeno religioso na escola pública – talvez resida aí o maior nó górdio desta disciplina inserida nos nossos currículos. Mais uma vez veio da França uma contribuição importante: para o vivre ensemble! Sem dúvida, uma porta de entrada para a discussão, mas pude perceber que na França avançou ainda muito pouco. No Brasil avançamos mais, pois já era uma preocupação ou já era um objetivo nas modalidades do ensino religioso que apontava para a formação de valores e da cidadania, como pretendeu o FONAPER em um primeiro momento. Antes mesmo de se definir melhor uma epistemologia para o ensino religioso, por linhas transversas, já estava claro para muitos, no Brasil, o que se queria com este componente curricular. Urge colocar as coisas entre nós no seu devido lugar, dar-lhe uma sustentação teórica.

Como pode qualquer objeto de estudo, no contexto escolar, levar, ao mesmo tempo, a uma postura diante das pessoas e do mundo? Ou, além, a uma mudança de postura diante da vida? Acreditamos que esta questão, tratada por nós no Capítulo IV, apresentou consideráveis avanços. A princípio, estas questões não se colocam apenas para o ensino do fenômeno religioso, mas para todas as disciplinas previstas no currículo. A escola deve dar competências a seus alunos e alunas, entre elas a importante competência para o discernimento. Esta não se reduz a uma simples assimilação do que é ensinado, mas vai além, exige uma tomada de posição diante do que é ensinado e aprendido. Uma 281


posição diante do mundo e da vida, de si próprio e do outro. Neste sentido, o conhecimento do religioso ocupa uma posição ímpar e contribui com aportes exclusivos que nenhuma outra disciplina nos pode oferecer.

Educar para o discernimento do simbólico é dar um sentido mais humano para as nossas vidas e das outras pessoas. E nisso não vai nenhuma moral ou ética particulares, ligadas a um determinado credo ou filosofia particulares. É uma questão da práxis do viver juntos! O reconhecimento da interdependência entre as pessoas exige experiências de vida que vão além da simples inteligência intelectual. E aqui, mais uma vez, podemos lembrar: inteligência é também manter boas e profícuas relações com as outras pessoas. É alguma coisa que penetra no nosso ser, não é apenas aprendida mas também apreendida, e se torna parte do nosso existir, é uma questão existencial.

Se a escola quiser educar para reduzir a nossa inumanidade, como quer Levinas ou, conforme Morin, se ela quiser educar para a condição humana, e esta é a sua principal função, temos de mostrar aos alunos e às alunas a interdependência entre os seres humanos como um fato e lhes ajudar a ter experiências de aprendizagem e de vida que lhes permitam não apenas conhecer, mas também reconhecer existencialmente este fato. Como pudemos demonstrar, são exemplares as contribuições de um conjunto de autores como Perremoud, Rorty, Hugo Asmann, Jung Mo Sung e Eulálio Figueira em consonância com a proposta do ensino do religioso tendo como pressuposta a própria laicidade do Estado e a secularização da sociedade.

Mas vem de Danilo R. Streck outra contribuição muito importante para a escolarização do fenômeno religioso como instrumento fundamental para o reconhecimento da diversidade e do respeito para com o outro. Não vamos restringir este respeito à noção já banalizada entre nós e mal compreendida de tolerância. Seria, na verdade muito mais que isso, seria a aceitação do diferente na esperança de contribuir para uma educação que ajude as pessoas a sentirem o mundo como sua casa comum, em constante processo de construção para que todos e todas nela tenham lugar. E para isso a fenomenologia da religião, com sua devida aplicação didática para o ambiente escolar, pode dar uma contribuição indispensável como nenhuma outra disciplina.

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Este seria o primeiro passo da escolarização do fenômeno religioso, ainda segundo Streck, na formação de crianças e adolescentes, principalmente frente ao crescimento dos mais diversos fundamentalismos que rondam o nosso mundo espalhando medo, intolerância e ódio. Conhecer a religião do outro levará com certeza ao aperfeiçoamento do olhar e da escuta do mundo e da alteridade, ao respeito da dignidade do outro, à percepção da riqueza e do valor de um mundo plural e diversificado. Isso não tem outro nome senão a solidariedade. Para isso, é de suma importância termos professores qualificados para tal e comprometidos com este resultado final, independentemente de suas crenças ou não crenças.

Lembremos aqui a afirmação de Debray ao dizer que o maior desafio do projeto francês está na preparação dos professores. Para ele é preciso garantir-lhes uma maior competência, apoiando-os num assunto considerado, com toda razão, bastante complicado. E a França deu o exemplo com a criação do Instituto Europeu de Ciência das Religiões (IESR) como já colocamos. A nosso ver, no Brasil, a formação dos educadores para o ensino do religioso exige aproximar os dois lados desta questão, ainda muito afastados: o escolar e o acadêmico. E neste sentido, os encontros da ANPTECRE, da ABHR, da SOTER e do CONERE têm cumprido um papel fundamental, colocando em destaque a temática da laicidade e seus desdobramentos na sociedade brasileira, além de priorizar a questão do ensino religioso em seus grupos de trabalho de Religião e Educação. Nos seus congressos e seminários de que participei nos últimos cinco anos, pude observar a aproximação de pesquisadores e professores de ensino religioso do país inteiro. Estes encontros têm possibilitado a divulgação de trabalhos acadêmicos e têm dado grande visibilidade aos avanços e desafios do trabalho docente em sala de aula. Demonstrando a atualidade e a urgência destas questões, tivemos o tema geral da Religião, Direitos Humanos e Laicidade no V Congresso da ANPTCRE, realizado em setembro de 2015 em Curitiba. Percebe-se nestes momentos o longo caminho a ser ainda percorrido até a plena efetivação do ensino do religioso como área de conhecimento do fenômeno religioso na rede pública de ensino, como já é uma realidade na França.

É necessário aqui registrar também a enorme produção editorial com foco no ensino do religioso no Brasil. São obras, sobretudo, voltadas para a formação docente e focadas na didática desta disciplina. E é perfeitamente compreensível este predomínio. A indefinição de uma sólida base epistemológica tem levado os envolvidos 283


com esta área de conhecimento a concentrar sua produção intelectual em temas relacionados ao trabalho em sala de aula para auxiliar os professores. No entanto, já é visível uma alteração de rota, na medida em que se qualificam cada vez mais os encontros acadêmicos que focam as questões teóricas e metodológicas, e em que surgem as graduações com ênfase na formação de professores de ensino religioso.

A partir dos programas de pós-graduação, os cursos de Ciências da Religião se expandem atualmente para a área de graduação respondendo à demanda de professores para a disciplina de ensino religioso. Depois de sua consolidação nas universidades ligadas às Igrejas Católica, Metodista e Luterana, a grande novidade recente é a entrada em campo das instituições públicas, principalmente no Nordeste. Mas talvez o melhor exemplo desta trajetória esteja na Universidade Federal de Juiz de Fora. De um departamento que oferecia apenas disciplinas para diversas graduações na década de 1970, onde eu tive a oportunidade de cursá-las como aluno do curso de Filosofia, evoluiu para a formação do bacharelado na década de 1980. Constituiu-se o programa de pós-graduação na década de 1990 e em 2013 viu nascer seu curso de licenciatura para a preparação de professores de ensino religioso. E aqui é preciso reverenciar a memória do padre redentorista holandês Jaime Snoek, verdadeiro visionário e desbravador das Ciências da Religião na década de 1970, ao lado de um dos professores do departamento naquela época, o padre salesiano Wolgang Gruen, considerado o pai do ensino religioso no Brasil contemporâneo. Ambos foram meus professores e me levaram desde aquela época a me interessar pelo debate sobre a religião na escola.

Acreditamos que a pertinência e a importância desta pesquisa vêm ao encontro da urgente necessidade de uma maior inteligência sobre a disciplina de ensino religioso para aqueles que trabalham diretamente com a definição das políticas públicas para a educação em nosso país. Mas sem deixar de ser também uma contribuição importante para os educadores e gestores escolares que ainda têm diante de si uma tarefa árdua e complexa de tratar a religião em sala de aula. Ainda é possível continuarmos falando de ensino religioso? Como as palavras descrevem e prescrevem, lembremos aqui uma última vez de Bourdieu, acreditamos que não! Mesmo com a denominação desta disciplina como ensino religioso na Constituição Brasileira de 1988, na LDB e em tantas outras regulamentações do sistema de ensino, há de se procurar, de alguma forma, o seu transcurso para o ensino do religioso se quisermos consolidar entre nós esta área de 284


conhecimento como necessária, urgente e indispensável nos currículos escolares, parte integrante de uma educação para o bem viver.

Enfim, a disciplina de ensino religioso na nossa rede pública de ensino continua como uma questão política relevante e, de certa forma, ainda em aberto. Ela traz implicações urgentes quanto ao papel do Estado e da escola pública refletindo uma nova realidade da segunda modernidade que estamos vivenciando. Sua razão de ser só tem sentido se responder às necessidades urgentes de encaminhamento para a profunda crise civilizatória que todos experimentamos no nosso cotidiano. Compreender a religião e dar instrumentos teóricos para que os alunos e alunas possam compreendê-la em suas mais diferentes formas é tarefa do Estado, das escolas, dos professores e professoras. Tal empreendimento é que possibilitará a manutenção da laicidade do Estado, garantirá o princípio da igualdade para todos e para todas, permitirá a médio e longo prazo o fortalecimento da democracia e tornará real um ambiente de respeito para todos e todas. Conhecer a religião, a sua própria e a do outro, é uma questão de identidade/alteridade para a construção de um mundo melhor. Conhecer para conviver!

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Entrevistas Jean-Paul Willaime, 1ª entrevista em 01/abril/2015, às 11 horas, no GSRL. 313


Jean Baubérot em 21/maio/2015, às 15 horas, no GSRL. Philippe Gaudin em 22/maio/2015, às 10 horas, na EPHE. Isabelle de Saint-Martin em 28/maio/2015, às 10 horas, na EPHE. Jean-Paul Willaime, 2ª entrevista em 17/junho/2015, às 16 horas, no GSRL.

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