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Bete Esteves
ETERNO RETORNO DO RECALQUE
Bete Esteves constrói inutensílios, engendra máquinas celibatárias, quimeras maquínicas - como as chama. Suas máquinas brotam do desejo de libertar os objetos da obviedade de seus usos. Ao liberá-los dos lugares-comuns, permite que emerja o inusitado. Ela busca desaprender o objeto e persegue o que permita que seu sentido enlouqueça. Como sugere o poeta Manoel de Barros, é preciso “desacostumar as coisas”, fazê-las “pegar delírio”, inverter, subverter, brincar, reinventar sua lógica, “divinar”. Bete transmuda como poeta que é nas cineses escultóricas que maquina e gesta. Uroboros, serpente ou dragão que come a própria cauda, é o nome do trabalho exposto na Gentil Carioca. Seu funcionamento opera ideias de movimento, continuidade, auto fecundação e eterno retorno. Evoca a circularidade do cão que persegue o próprio rabo (o consumo canibal de nosso tempo), a máquina que dispara ciclos aquáticos de invenção e reinvenção, de repetição não identitária, sujeitos às variações de temperatura e pressão e com possibilidades de pane. A noção de eternidade a cada retorno, a cada descarga acionada escorre o vir a ser, produz-se o incessante dos ciclos que retornam. Nesta sucessão circular de descargas nos assalta a ideia do recalque, que a artista lucubra. Na psicanálise, o recalque é conceito associado à descarga, à idéia de satisfação pulsional, à evitação de um prazer pelo desprazer que possa advir da descarga que o satisfaça. Em sentido estritamente hidráulico, o recalque corresponde ao sistema que opera a condução da água de uma cisterna em direção a uma caixa d’água no alto. Livres de suas funções originais as caixas e os demais componentes do trabalho, lembram os “personagens” que figuram em “The way things go” de Fischil and Weiss, reinventam um modus operandi, uma relação entre partes que provoca risos, reajustes e refuncionalizações, sequenciais e ininterruptas. “Uroboros” é uma máquina quimérica, como as lendárias e míticas representadas pela combinação do leão, da serpente e da cabra. Aqui, um “ser” criado a partir de organismos reais, com “células” de duas ou mais máquinas - motor de máquina de lavar, trilhos, roldanas, canos, boias, caixas de descargas - que geram novos territórios, inauguram singelezas, incutem novas subjetividades. “Uroboros” insere-se num looping que envolve uma dança em torno do objeto, um remoinho que mantém o sistema autorreferencial operante - como Picasso gostaria que ocorresse com sua “Cabeça de Touro”: que fosse encontrada por um ciclista que pudesse readaptá-la num selim e guidom de bicicleta e que, em seguida, fosse, mais uma vez, transformada numa escultura e assim sucessivamente ad infinitum*.
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20 Ricardo Paes

Bete Esteves é artista e designer, mestre em linguagens visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em seus mais recentes trabalhos, tem se dedicado à criação de dispositivos poéticos que unem experiências artesanais, científicas e técnicas com aparatos mecânicos, digitais e tecnológicos. Vive e trabalha no Rio de Janeiro.
Uroborus, 2009-2010 / painel de MDF, caixa de descarga plástica, tubo de PVC, perfis de alumínio, polia plástica, garrafa PET, molas, peso de chumbo, cordão de nylon, parafusos diversos, micro bomba d’água / 82.5 x 275 X 66 mm
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