Cultura.Sul 125 8MAR2019

Page 1

Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

MARÇO 2019 n.º 125 6.813 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

MISSÃO CULTURA •••

Em busca das grutas do Algarve: Trazer à luz um património escondido fotos: d.r.

Ficha técnica

Direção Regional de Cultura do Algarve

Terão as grutas do Algarve sido habitadas por Neandertais e outros homens do Paleolítico? Constituíram santuários e necrópoles de povos pré-históricos? Existirá fundamento material para as lendas alusivas aos Mouros relacionadas com muitas destas grutas ou cavernas? Estas e muitas outras questões se colocam sobre a relação que ao longo dos tempos foi estabelecida entre os nossos ancestrais e as grutas existentes no território hoje algarvio. Na realidade, as características geológicas de extensas áreas do Algarve revelam-se favoráveis à presença de tais formações endocársicas, desde o extremo Barlavento até Tavira, e a importância de as estudar tem sido reiteradamente propalada por arqueólogos, desde o último quartel do século XIX, incluindo o insigne Estácio da Veiga. Porém, poucos foram os trabalhos arqueológicos subordinados à pesquisa dos espaços subterrâneos naturais nesta região e, embora existam já algumas respostas para as dúvidas acima colocadas, o facto é que pouco se sabe ainda sobre o tema. Tal situação de desconhecimento conduz a uma vulnerabilidade acrescida desse património face à pressão humana, principalmente devida à

As grutas do Algarve constituem um importante repositório de informação arqueológica a estudar, valorizar e salvaguardar •

modificação do barrocal provocada pela construção civil, laboração de pedreiras e implementação de grandes projectos agrícolas. É por estes motivos que se justifica plenamente o projecto em curso a que se deu o nome ProPEA – Projecto Património Espeleológico do Algarve, que está na base de um Acordo de Colaboração estabelecido entre a Direção Regional de Cultura do Algarve e a Universidade do Algarve. Neste enquadramento, o trabalho preconizado consiste, fundamentalmente, na inventariação e caracterização patrimonial das cavidades naturais no Algarve, de modo a melhor aquilatar o respetivo interesse patrimonial, com a tónica no património arqueológico. Paralelamente, estão a ser estudados os procedimentos e métodos mais adequados à salvaguarda e valorização desse recurso cultural no âmbito

de Estudos de Impacte Ambiental e dos Instrumentos de Gestão Territorial. O trabalho até aqui realizado revelou já a existência de jazidas

arqueológicas relevantes que permaneciam ignoradas, e que a seu tempo serão devidamente divulgadas, existindo fortes probabilidades de ocorrerem descobertas significativas adicionais ao nível do património cultural. A articulação que se procura estabelecer entre entidades estatais, meio universitário e associações, numa perspetiva de colaboração interdisciplinar, poderá propiciar e até catalisar um aproveitamento sustentado dos recursos de natureza espeleológica, sobretudo do ponto de vista científico e da divulgação cultural, mas também enquanto fulcro de sensibilização em relação a um património que fica recorrentemente negligenciado ou olvidado. l

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saúl de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade |Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Colaboradores desta edição : Mohamed Zitane Reda Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 6.813 exemplares


12

8 de Março de 2019

d.r.

ARTES VISUAIS •••

Pode a arte influenciar a política?

Saul Neves de Jesus

Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora https://saul2017.wixsite.com/artes

Desde há muito tempo que a arte tem servido como instrumento de crítica social e política, envolvendo-se os artistas frequentemente em movimentos sociais, expressando a grande relação das artes com o ativismo político e social. Os anos 60 foram ricos em manifestações artísticas inseridas em movimentos sociais, muitas vezes de caráter pacífico, que procuravam questionar os modelos políticos vi-

gentes. Manifestações de arte visual e musical, com performances e happenings, ocorriam muitas vezes de forma aparentemente espontânea, “invadindo” a rotina do espaço público, questionando e funcionando muitas vezes quase como contracultura, aparentemente anárquica. Mas é sobretudo nos anos 90, com o desenvolvimento da arte urbana, que a expressão visual como meio de protesto parece ter um maior incremento, sendo vários os artistas que, na atualidade, procuram ter impacto sociopolítico com os trabalhos que produzem. Em artigos anteriores, fizemos referência aos trabalhos de alguns artistas, nomeadamente Banksy que, através de graffitis, que podemos encontrar em ruas, pontes e muros de diversas cidades do mundo, tem procurado criticar os conceitos de capitalismo, autoridade e poder. A arte é uma forma de comunicação, permitindo sintetizar as emoções e os sentimentos sociais já existentes em relação a certas questões psicossociais polémicas, complexas e atuais,

podendo ajudar a promover a reflexão e o debate sobre as mesmas. Um caso recente ocorreu com a exposição/performance intitulada “Ivanka Vacuuming (2019)”, de Jennifer Rubell, na “Flashpoint Gallery”, em Washington. Rubell é uma artista conceptual, pelo que procura expressar ideias através da sua materialização artística. Neste caso, como o título sugere, a performance consiste numa sósia de Ivanka Trump a aspirar as migalhas que o público da galeria é convidado a atirar para uma carpete vermelha onde esta modelo se encontra. Curiosamente, as performances com aspirador têm vindo a ser usadas com diversos objetivos. Num artigo recente fizemos referência à performance realizada pelo artista Nut Brother, que aspirou o ar de Pequim durante 100 dias, procurando alertar a sociedade para os problemas ambientais e levar as pessoas a pensar na relação entre a natureza e o homem. Mas voltando à performance “Ivanka Vacuuming (2019)”, a sua autora Rubell referiu que a filha e si-

Imagem da performance “Ivanka Vacuuming (2019)” •

multaneamente assessora de Trump é um “ícone feminino contemporâneo” e o público gosta de jogar as migalhas para Ivanka aspirar: “fá-los sentir poderosos”. Por seu turno, Kristi Maiselman, diretora do CulturalDC, a organização de artes que encomendou o trabalho e está hospedando iterações do mesmo, referiu num comunicado: "O CulturalDC não está apenas criando espaço para a arte, estamos tornando esse espaço acessível e envolvente para os participantes. Com isso, gostaríamos de ter a oportunidade de fazer a Sra. Trump visitar a exposição para que ela possa ver e julgar por si mesma”.

Mas Ivanka não visitou a exposição, tendo ela e os seus irmãos Donald e Erik criticado a exibição, considerando-a como uma tentativa sexista de humilha-la. Ivanka Trump inclusivamente twittou (tal pai, tal filha) sobre a exposição: "As mulheres podem escolher bater umas nas outras ou construir umas com as outras. Eu escolho a segunda". ("Women can choose to knock each other down or build each other up. I choose the latter.") A polémica gerada em torno desta performance revela que a arte continua a ter impacto sociopolítico, promovendo debate e reflexão sobre ideias e (pre)conceitos. l

MARCA D'ÁGUA •••

Robert Schuman e a Europa: “Desígnios que nos superam” d.r.

Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

luisa.algarve@gmail.com

“Desta vez eu voto” é uma campanha do Parlamento Europeu que não consiste em aconselhar em quem as pessoas devem votar, mas sim em defender o próprio acto de votar, de participar no processo democrático, tal como o acto de o fazer de uma forma consciente e plenamente informada. Assim, foi criado o site www. destavezeuvoto.eu precisamente para aproveitar o potencial da interacção entre pessoas e criar uma comunidade de apoiantes em toda a Europa, que suportem a causa do voto, defenden-

do a própria ideia de democracia. No fundo, é a ideia de que todos juntos podemos decidir em que Europa queremos viver. Creio que o desejo de uma Europa com qualidade de vida e com paz está presente em cada europeu, seja mais ou menos europeísta, e está presente desde o início da aventura europeia. Na passada semana estive em Bruxelas, numa comitiva, em visita às instituições europeias, sediadas no Bairro Europeu, também designado Bairro Schuman. A figura de Robert Schuman, advogado, ministro francês dos Negócios Estrangeiros e Presidente do Parlamento Europeu, tem alguns aspectos invulgares e que vale a pena salientar. Como sabemos, a Declaração Schuman, apresentada a 9 de Maio de 1950, pelo mesmo, é um documento que está na origem da caminhada europeia e onde se pode ler o seguinte, nas primeiras frases: “A paz mundial não poderá ser salvaguardada sem esforços criadores à medida dos perigos que a ameaçam. A contribuição que uma Europa organizada e viva pode dar à civilização é indispensável para a manutenção de relações pacíficas.”

Robert Schuman: espírito criador Entre 1941 e 1943 Schuman referiu, por diversas vezes, diante de interlocutores que ainda não percebiam o alcance das suas palavras, a necessidade de “construir, após a guerra, uma realidade política nova que ligaria as nações europeias pelos seus interesses, e não mais apenas por palavras e pactos”. Tratava-se de um político com visão, um dos fundadores do projecto europeu, cuja vida está retratada em livros e variadíssimos testemunhos. André Philip (1902-1970), deputado e várias vezes membro do governo francês, disse: “o que mais me tocou nele foi a irradiação da sua vida interior: estávamos diante de um homem consagrado… de uma total sinceridade e humildade intelectual, que apenas queria servir.” A vida de Robert Schuman foi repleta de bons exemplos, tendo sido aberto um processo de beatificação em 1990. De acordo com o Vaticano foram ouvidas 200 testemunhas, o processo conta com 50 mil páginas e encontra-se na Congregação para as Causas dos Santos na Santa Sé. Em 2004 foi declarado Servo de

Deus, o primeiro passo para a beatificação. Há um testemunho no seu processo de beatificação que diz: “Ficará na memória daqueles que o conheceram como a imagem do verdadeiro democrata, imaginativo e criador, combativo na sua doçura, sempre respeitador do homem, fiel a uma vocação íntima que dava o sentido à vida.” No seu percurso a fé cristã e a acção política formam um todo, e apesar de duas áreas distintas, a sua fé determinou todo o seu empenho e iluminou a sua acção política. A 19 de Março de 1958 no Parlamento Europeu declarou: “Todos os países da Europa são permeados pela civilização cristã. Ela é a alma da Europa que se precisa restituir”. No seu livro Pour l’Europe afirma: “Este conjunto [de povos] não poderá e não deverá permanecer como uma empresa económica e técnica. É preciso dar-lhe uma alma. A Europa não viverá e não se salvará senão na medida em que tiver consciência de si mesma e das suas responsabilidades, quando voltar aos princípios cristãos de solidariedade e de fraternidade”. A fé e a prática política não são incompatíveis, pelo contrário e Schu-

Robert Schuman na assinatura da Declaração Schuman •

man é exemplo disso. “O centro da espiritualidade que o animava era a Palavra de Deus, tendo orientado as suas acções”. Da contemplação e da oração aprendeu a sentir-se instrumento nas mãos de Deus, tendo escrito em 1960 que: “Somos todos instrumentos, mesmo imperfeitos, da Providência, que se serve de nós para desígnios que nos superam”. Acredito que a Europa que desejamos tem estes valores de serviço e entrega, porque a política é um acto nobre, independentemente da fé, mas se ela existir, que exista sempre a liberdade e a coragem de a expressar ou assumir. l


CULTURA • SUL

8 de Março de 2019

13

simone marinho

LETRAS E LEITURAS •••

Uma Furtiva Lágrima, de Nélida Piñon

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Se o nome causa alguma estranheza é por causa da sua herança galega, pois os seus avós galegos emigraram para o Brasil. A escritora brasileira Nélida Piñon nasceu em 1937 no Rio de Janeiro. Formou-se em Jornalismo em 1956 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Colaborou em vários jornais e revistas literários e foi correspondente no Brasil da revista Mundo Nuevo, de Paris. Publicou o seu primeiro romance, Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, em 1961. Nélida Piñon foi homenageada na edição deste ano do Correntes d’Escritas e recebeu, no passado dia 1 de Março, o Prémio Literário Vergílio Ferreira 2019, atribuído pela Universidade de Évora. A atribuição do prémio à escritora foi decidida em dezembro, em reconhecimento pela «latitude e profundidade da sua obra». Actualmente com 81 anos, este é o primeiro livro seu publicado depois de anunciado o Prémio Vergílio Ferreira 2019. Um livro intimista, feito de memórias, pensamentos soltos, reflexões, aforismos, que foi publicado em Portugal, pela Temas e Debates, primeiro do que no Brasil. «Convocada desde cedo a fundir as tradições brasileiras e espanholas, que são a fonte da minha linguagem, o palimpsesto da minha fabulação, apraz-me pensar que herdei também os pigmentos e a emotividade de todos os povos.» (p. 46) Além da Galiza, a autora tem aliás uma forte ligação a Portugal, onde se encontra há um ano (parece que a preparar o seu próximo romance), ainda antes de saber que iria receber o Prémio, o que não lhe deu oportunidade de reler as obras do autor Vergílio Ferreira ou as cartas que ambos trocaram e que estão guardadas no seu arquivo pessoal. Escrever é o que sei fazer «Escrever é o que sei fazer. Narrar me insere na corrente sanguínea do humano e me assegura que assim prossigo na contagem dos minutos

da vida alheia. Pois nada deve ser esquecido, deixado ao relento. Há que pinçar a história dos sentimentos a partir da perplexidade sentida pelo homem que na solidão da caverna acendeu o primeiro fogo.» (p. 18) Neste livro é recorrente a lembrança e a descrição da chegada dos seus avós ao Brasil, provindos da Galiza, que aliás foi recriado ficcionalmente no seu romance A República dos Sonhos, publicado em 1984, livro que a consagrou no Brasil e em Portugal, onde tenta explicar dois séculos de história do Brasil: «É um refrigério ser brasileira, cidadã do mundo, enquanto a génese familiar facilitou-me roçar o fulcro da poesia galaico-portuguesa, estabelecer analogias entre o arcaico e o que vem até os meus dias. A recordar o velho camponês, de Cotobade, sentado à mesa, com um vaso de vinho tinto ao lado, esfregando um pedaço de broa de milho no toucinho cedido pelo porco que vi crescer na casa da avó, em Borela, e que conquanto consolidou minha visão narrativa, não pude suportar a dor quando mataram o animal a quem fizera dias antes declarações de amor. d.r.

uma comunhão com a natureza galega, com o mundo ancestral, como se eu fora uma druida celta prostrada em adoração diante das árvores (...) enquanto absorvia, destemida, a geografia, o campo e a montanha, as lendas, as bruxarias, as línguas galega e castelhana, as festas de verão, os cheiros, a comida, os costumes locais, o substrato enfim da grei de que me originara.» (p. 48) Diário da morte Nélida Piñon parece viver com desmesura, fazendo da vida um acto de amor: «Mergulha, sim, na liturgia do amor e renuncia a tua descabida ira. O amor é e será sempre teu melhor gesto na terra. O único capaz de projetar luz sobre esta precária existência humana.» (p. 29) Ou não tivesse a autora sobrevivido a um diagnóstico, afinal errado, quando no dia 2 de dezembro de 2015 (uma das entradas deste livro) o médico ditou que teria meses de vida: «Pensei fazer um diário breve, um resumo dos meus últimos dias, segundo sentença do oncologista que, com parcimónia e convicção, antes mesmo dos resultados dos últimos exames, foi conclusivo. Eu teria entre seis meses a um ano. Retornei à casa, disposta a me preparar.» (p. 19) Neste livro, a que chama «diário da morte», feito de fragmentos, de memórias, de uma partilha de enamoramentos, a autora explora e apresenta-nos as suas paixões, assim como algumas das suas inquietudes. «Minha morte não é inspiradora, não pode ter traços poéticos, emenda ou salpicos metafóricos. Não há poesia na morte.» (p. 19) Narrar é prova de amor

Este conjunto de episódios estimulou-me a compor o romance A República dos Sonhos, uma saga ou uma épica que cobre dois séculos do Brasil e outros tantos séculos da trajetória espanhola, incluindo as peregrinações medievais. E que ao abordar a imigração, ressalta como os milhares de galegos, a caminho da América, cumpriram a rota da utopia individual e coletiva.» (p. 201) A autora recorda ainda quando viveu cerca de dois anos na Galiza: «Esta temporada em Espanha, com esporádicas visitas a Portugal, quase sempre vivida em Borela, Cotobade, na casa da avó Isolina, propiciou-me

Contudo escrever é também um acto de amor e de entrega: «Narrar é prova de amor. O amor cobra declarações, testemunho do que sente. Fala da desesperada medida humana. (...) A partir da escrita tornaram-se valiosas as confidências humanas. E ampliou-se o horizonte verbal, estabelecendo-se correspondência entre o afetivo, o conceitual e as palavras. A fim de verbo e sentimento não extraviarem de suas representações.» (p. 71) É manifesto o amor da autora pela história, desfiando um rol de personagens quer míticas quer históricas, mas está bem cônscia da actualidade: «A vida, in extremis, expulso para longe. Sei, contudo, que a crueldade do planeta é da minha responsabilidade. Não ignoro os efeitos do mal

Nasci no país que quis radical e tão-pouco desejo que se faça desta exposição visceral instrumento de arte. E isto porque sou vulnerável aos estertores oriundos da inquisição, do tráfico negreiro, do holocausto, dos genocídios sistemáticos, das guerras religiosas, da limpeza étnica, do estupro ideológico, dos porões da ditadura.» (p. 31) Assim como o afecto pelo seu país, mesmo pleno de desigualdade e injustiça: «Escritor brasileiro é estrangeiro em qualquer recanto, mesmo no Brasil. É pena ser apátrida no mundo. Ter passaporte, mas que não tem efeito, não defende sua vida e dos livros que levam sua assinatura.» (p. 113) Nestes textos esparsos e sentidos, ora com meia dúzia de linhas ora com algumas páginas, Nélida Pinõn relembra amigos do mundo da escrita, como Natália Correia, Lygia Fagundes Telles, a quem se dirige por vezes como em carta, Rubem Fonseca, ou Afrânio Coutinho, um apaixonado apoiante da sua candidatura a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, em 1989, que aliás veio a presidir em 1996, sendo a primeira mulher a presidir-lhe. Enaltece a sua herança e o seu álbum de memórias de família. Percorre a história através de figuras como Epicuro ou Carlos V, até porque se sente mais feliz a reviver outras épocas: «Frequento com assiduidade as páginas da História. Desde Heródoto, Tucídides, até os anais dos historiadores modernos. Atrai-me a imaginação dos mestres da História.» (p. 165) Revisita personagens bíblicas, como Paulo de Tarso, ou mitológicas, como Ártemis. Relembra o seu querido Gravetinho Piñon, já falecido, animal que humaniza ao dedicar-lhe este livro.

Filha da língua portuguesa

Mas se há valor que lhe serve de bússola é o amor à língua portuguesa: «Nasci no país que quis, no continente que ampara minha imaginação. Não teria escolhido o século XX para viver, mas me resta fruir, graças à fantasia, outras épocas que me atraem. Como os séculos IV, XII e XVI. Contudo aponto como um crédito a meu favor o facto de ser filha da língua portuguesa. Eu não a trocaria por nenhuma outra, ainda que não domine seus meandros, e me oferte armadilhas para me testar. Ah, língua maldita que tem a excelência do sublime e a insídia do pecado! Mas eu a amo com a ufania e o desespero de quem cria nela.» (p. 203) E neste diário, testamento ou testemunho de vida, escrito pela premência de sentir subir em si a maré negra da morte, que afinal acabou por enganar, pois o diagnóstico estava errado, a autora deixa-nos um rosário de pensamentos e de retalhos onde recompõe a sua existência e a dos que a amparam: «Falar em primeira pessoa requer audácia. Mas é uma opção natural. Enquanto falo por mim, ou penso por mim, incorporo os demais à minha genealogia. Não ando sozinha pelo mundo. Ao ser múltipla, sou muitas. Minha linguagem reverbera, tenho a memória de todos na minha psique. E o coletivo passa a me afetar, aloja-se na minha primeira pessoa, que é uma experiência dramática.» (p. 17) Do conjunto da sua obra destacamos ainda títulos publicados pela Temas e Debates como Os Filhos da América, A República dos Sonhos, Aprendiz de Homero, e O Livro das Horas. l


14

CULTURA • SUL

8 de Março de 2019

REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••

O ordenamento do território e os riscos naturais fotos d.r.

aprofundamento das questões mais relevantes que estão na base do risco, se pretendermos planos credíveis. Pior do que não ter um plano, é ter um plano mal feito. Vinculará de forma injusta pessoas, sem que exista uma lógica e um fundamento técnico baseado no saber científico.

Teresa Correia

Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com

Os riscos naturais no Algarve Os riscos naturais correspondem a uma matéria de fundamental importância para o correto planeamento e ordenamento do território, uma das maiores condicionantes no planeamento. O urbanismo visa, em princípio, proceder à localização correta das várias atividades humanas no espaço, onde a gestão e a prevenção do risco devem estar na base da decisão. O sismo é um dos fenómenos naturais que mais frequentemente atinge o Algarve, sendo relevante criar mecanismos de prevenção adequados. Este facto foi assinalado com algum destaque no âmbito do programa de evocação dos 50 anos do sismo de 28 de Fevereiro de 1969, organizado pela Sociedade Portuguesa de Engenharia Sísmica (SPES) e pela Associação Portuguesa de Meteorologia e Geofísica (APMG), que incluiu uma visita do Presidente da República à Fortaleza de Sagres. Porém, quais os mecanismos de alerta que possam existir no mar, para que possamos minorar ou prevenir a maior perda de pessoas e danos? Apesar da tecnologia existir, com a possibilidade de dar alertas com algum tempo de antecedência, estes não estão instalados nem operacionais na generalidade da nossa costa, fican-

O sismo é um dos fenómenos naturais que mais frequentemente atinge o Algarve •

do os municípios à mercê do acaso. Os autarcas deverão ter consciência do enorme risco que correm ao não apetrechar a sua Proteção Civil com tecnologia que permita os alertas, para além do trabalho no terreno que devia existir, com planos de evacuação e colocação de sinalética nos arruamentos que possam ser passíveis de constituir percursos de fuga. Fundamento técnico para o planeamento A localização de funções e serviços de forma ponderada e correta poderá reduzir ou mitigar as consequências decorrentes de desastres naturais. Por exemplo, um hospital localizado numa margem de uma ribeira, ou num espaço com frente de mar, muito próxima das zonas vulneráveis a um tsunami, será em princípio, um erro de planeamento. Os planos poderão servir como “instrumentos de antecipação de

ações futuras“, enfrentando de forma preventiva, as situações de risco. Porém, para tal acontecer, terá de existir uma grande mudança cultural, com a inclusão de uma nova exigência de interdisciplinaridade, com uma reunião de informação, e ainda uma necessidade de participação da coletividade sujeita às fontes de perigo. Por outro lado, por vezes, existe a tendência para os extremos, no qual tudo poderá estar em risco da parte de alguns técnicos, sem que haja ainda assim, a necessária recolha de informação, a própria produção cartográfica, como cartas de suscetibilidade, de vulnerabilidade ou de perigosidade. As questões da fiabilidade da informação de risco é a chave da questão, pelo que, não existindo rigor, tudo parece estar coberto pelo risco, sem grande rigor, nem ponderação de interesses. A necessidade de estudo levará a um maior dispêndio financeiro, no

A estabilidade dos edifícios

A estabilidade dos edifícios novos está em princípio garantida pelo termo de responsabilidade do técnico em função dos regulamentos que temos que já preveem as questões sísmicas. O problema coloca-se sobretudo nos edifícios anteriores a 1985, que não tinham os regulamentos com esse enfoque. Sendo que a reabilitação

dos edifícios está agora com grande dinâmica, sobretudo ao nível dos centros históricos, questiono se existirá a verificação do reforço estrutural a que os edifícios deveriam ser sujeitos. Essa avaliação é de grande complexidade e existe uma grande carência de técnicos nessa área específica, pelo que, na maior parte das obras, se não existir um edifício classificado ou de interesse municipal, poderá ser reabilitado, pelo seu interior, sem que haja uma confirmação das soluções empregues por parte de um técnico da especialidade. O regime jurídico de reabilitação urbana limita também a intervenção no existente, desde que não haja perigo para a segurança estrutural e sísmica. Esta noção é de grande valia, embora as autarquias não detenham os meios necessários para aferir todos os casos. As realidades são por vezes complexas e a mudança das consciências tanto dos promotores como dos técnicos envolvidos é fundamental para termos edifícios reabilitados mais seguros em caso de sismos. O Estado deverá, também ele, ponderar esse interesse de segurança face a outros como a dinâmica económica nos centros históricos. l


CULTURA • SUL

8 de Março de 2019

15

ESPAÇO AGECAL •••

Chefchaouen... um esboço sobre a dieta mediterrânica

Mohamed Zitane Reda

Engenheiro e gestor cultural Chefchaouen - Marrocos

Através dos tempos, Chefchaouen, pequena cidade do norte de Marrocos, soube preservar as suas heranças ancestrais, o modo de vida da população. A situação geográfica da cidade, o seu tecido socioeconómico constituíram entraves para formas de vida modernas, para a globalização de temporalidades sociais. Foi assim que Chefchaouen se afirmou como

uma das primeiras urbes inscritas na lista representativa das comunidades emblemáticas da dieta mediterrânica, reconhecida pela UNESCO em 2010 como património cultural imaterial. Chefchaouen, está situada na área de reserva da biosfera intercontinental do Mediterrâneo, acolheu, depois da sua fundação em 1471, uma vaga de imigrados mouriscos e judeus da Andaluzia, trazendo nas suas bagagens os seus costumes, modo de vida e as suas tradições. Actualmente, a população urbana, com 42 mil habitantes, guarda permanentemente vivo um património mediterrânico constituido e enraizado ao longo dos séculos. Na actualidade, Chefchaouen continua a polarizar actividades na sua retaguarda rural. Com efeito, as mulheres e os homens das aldeias transportam cada manhã para os di-

versos mercados da cidade produtos alimentares bio, como pão, ovos e azeitonas, plantas aromáticas colhidas frescas, figos secos ou frescos, galinhas do campo, produtos feitos com leite e legumes provenientes de parcelas minúsculas. Neste aspecto, a cidade oferece uma variedade de alimentos que caracterizam a refeição mediterrânica, representada em forma de pirâmide com 29 tipos culinários que cobrem o conjunto dos países mediterrânicos. Como nas outras comunidades representativas, a dieta mediterrânica conserva em Chefchaouen a base alimentar, que é o vector do estilo de vida que reflecte a identidade da cidade. Para o analisar, é necessário considerar o conjunto de saberes-fazer, as tradições que dizem respeito às culturas agrícolas, as sementeiras, as colheitas, o armazenamento, a trans-

formação, a cozinha e, em particular, a forma de partilhar a mesa e de consumir os alimentos. Contudo, certos factores constituem uma ameaça real para a sobrevivência e dinamismo deste património cultural imaterial. Referimo-nos, entre outros, à modernidade e ao urbanismo, que uniformizam os modos de vida actuais. É esta a razão porque as estruturas sociais e culturais locais de protecção deste património funcionam e resistem admiravelmente a todo o eventual basculamento radical do modo de vida mediterrânico. Compostas por cozinheiros profissionais, artesãos, populações locais, produtores e comerciantes, tecido associativo, etc… essas estruturas trabalham, cada uma no seu domínio, para preservar esta arte de viver. A protecção do património da dieta

mediterrânica é um grande desafio e deverá envolver uma visão estratégica das comunidades. No contexto das ameaças às estruturas portadoras e transmissoras da dieta mediterrânica, o reforço das capacidades de gestão, protecção e valorização do património junto dos seus nichos sociais e culturais, estabelecerá certamente, uma acção a adoptar pelos decisores. O primeiro desafio de protecção da dieta mediterrânica consiste na consolidação de esforços do conjunto dos intervenientes, a identificação das populações que guardam e defendem este património, a fim de inventariar as produções e práticas, diagnosticar as restrições e potencialidades. É o que permitirá às instituições possuir visões convergentes para um mesmo objectivo, valorizando acções de preservação e desenvolvimento sustentável da dieta mediterranica. l

FILOSOFIA DIA-A-DIA •••

O mistério da Primavera d.r.

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

A Sagração da Primavera (Le Sacre du Printemps) do compositor russo Igor Stravinsky estreou a 29 de Maio de 1913 no Teatro dos Campos Elísios em Paris. Os Ballets Russes de Sergei Diaghilev apresentaram no seu máximo esplendor a coreografia de Vaslav Nijinsky e a música de Stravinsky. Em Mestres da Música podemos encontrar uma descrição deste histórico debutar: “logo após os primeiros compassos, a sala rebentou num violento confronto entre defensores e detratores daquela música. Uma senhora esbofeteou um jovem que pateava, o que deu origem a que o jovem e o acompanhante da referida senhora se desafiassem para um duelo; a condessa Portalós foi vista a gritar do seu camarote que, em sessenta anos, nunca ninguém tinha zombado dela como naquele dia. Stravinsky, nos bastidores, viu Nijinsky que, de pé em cima de uma cadeira, gritava uns números a uns bailarinos que estavam em cena para que pudessem interpretar a coreografia, apesar de que, dada

a algaraviada geral, não se conseguia ouvir a música”. O espectáculo foi recebido com indignação e tumulto tanto pelo público como pelos críticos. Camille de Bellaigue escreveu que a composição era “qualquer coisa de bárbaro, um esforço para derrubar toda a civilização musical”! Outros críticos referiram-se-lhe ironicamente como “le massacre du printemps” (o massacre da primavera). Afinal, que fizeram Stravinsky e Nijinsky de tão escandaloso? Nesta composição cujas dissonâncias, assimetrias e politonalidades foram levadas a um extremo até então desconhecido, a Primavera não aparece como chilrear de passarinhos, desabrochar de flores e amor no ar... Em La Grande Revue num artigo de Junho de 1912 tentou preparar-se o público para este ballet religioso que estrearia no ano seguinte: “é a vivacidade eterna da terra que inspira esta música e leva o frenesi triunfante ao ponto do terror; então, no inquieto silêncio da noite, há uma longa perseguição na escuridão, a captura, a homenagem à vitima escolhida, e, finalmente, a mediação que precede o sacrifício libertador”. Apelida-se a música de Stravinsky de “super-humana” por conseguir revelar os poderes elementares, “os labirintos, os remoinhos, os clamores, as vozes distantes, a respiração das coisas vivas, as emoções do espaço, a agitação, o êxtase, as iniciações cruéis e as ce-

lebrações misteriosas”. Finalmente conclui-se que com as ousadas inovações musicais de Stravinsky o culto da natureza “encontrou a sua liturgia”. Contudo, não apenas a música mas sobretudo a coreografia originaram as maiores hostilidades! Cerca de um ano após a estreia, em La Revue Musicale, consta que A Sagração da Primavera era agora ouvida e vista num silêncio respeitoso e acolhia aplausos sem fim. Todos, sem excepção, reconheciam o seu poder e virtuosismo inédito. Stravinsky é então considerado o grande mestre dos sons e do ritmo, capaz de escolher e conjugar timbres de tal maneira que todos os ruídos da natureza são evocados. “São os terrores da noite, um leve toque de asas, os gritos, os lamentos no espaço, o rosnar de monstros, galopes implacáveis, animais que rastejam, sobressaltos, indícios de agonia, lutas, angústia, delírios, prostrações, triunfos sangrentos, e a indissolúvel união de vida e morte.” O efeito do inovador ritmo stravinskiano é descrito como um furacão capaz de desnudar a alma, romper-lhe os escrúpulos, a modéstia, o controle. “É embriaguez, êxtase, aniquilação, e quando a música pára, a audiência está para lá de si própria, presa de um entusiasmo que só poderia ser melhor descrito como pânico.” Com A Sagração da Primavera de Stravinsky podemos sentir na carne as palavras que Nietzsche escreveu em

A Sagração da Primavera, de Stravinsky, estreou a 29 de Maio de 1913 em Paris •

A Origem da Tragédia ao referir-se à independência da música da imagem e do conceito. “Na sua liberdade plena a música não precisa nem de um nem de outro, apenas os tolera”. Neste livro, Nietzsche, que era filólogo de formação e levou uma vida dedicada ao estudo da linguagem, rende-se à inexorável superioridade da música afirmando que é impossível à linguagem esgotar o simbolismo universal desta. Escreve que a música é “expressão simbólica do antagonismo e da dor universais que estão no coração do Uno primordial, superior a todas as aparências e anterior a todos os fenómenos.” Com as sonoridades da Sagração somos como que transportados para um ritual dionisíaco no qual o êxtase arrebatador surge perante a falência

do princípio da individuação. Após a beberagem narcótica, assenhora-se a embriaguez e é a entrega “à força despótica da renovação primaveril”. É a “exaltação dionisíaca”, através da música e da dança, é a aniquilação, o total esquecimento de si próprio. Pensar poeticamente implica “repartir bem os jogos pelas entranhas” (Empédocles), ou “dar um pouco mais de luz ao sangue” (Cervantes). Trata-se da descida aos “infernos da alma” (María Zambrano), às raízes do humano, às entranhas - esse fundo obscuro onde padece o ser escondido sonhando. Desentranhar-se. Será este, afinal, o mistério da Primavera? l Inscrições para o café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.