Cultura.Sul 124 8FEV2019

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

FEVEREIRO 2019 n.º 124 6.878 EXEMPLARES

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ARTES VISUAIS •••

Pode a arte fazer a ponte entre a realidade e a ficção? fotos d.r.

Saul Neves de Jesus

Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora https://saul2017.wixsite.com/artes

No último artigo, “Pode a arte visual ser “expressa” para os cinco sentidos?”, abordámos a conceção de tecnologia que permite apreciar obras de arte, não apenas através da visão, mas também através do olfato, do paladar, da audição e do tato. Este é um exemplo que permite compreender o posicionamento de várias especialistas que consideram que a inovação tecnológica está a começar a ser a “chave” para a arte do século XXI (eg, Stephen Wilson no seu livro “Art+Science”, 2010). Se é a “chave” não sabemos, mas a utilização de novas tecnologias é cada vez mais frequente nas artes visuais. A este propósito, parece-nos interessante a exposição LUZAZUL, de Miguel Soares, no Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), no Chiado, inaugurada em 22 de novembro de 2018. Esta é a terceira edição do projeto SONAE / MNAC Art Cycles, que tem como objetivo promover a criação artística livre e aproximar a sociedade à arte. Nesta exposição somos transportados para um futuro próximo em que a paisagem urbana parece já não depender de humanos, mas de uma inteligência superior. LUZAZUL, para além da curiosidade de ser um palíndromo composto por duas palavras, Luz e Azul, que, juntas, se podem ler tanto da direita para a esquerda como da esquerda para a direita, refere-se a um tipo de luz que apareceu recentemente, sobretudo com a introdução da televisão e das tecnologias informáticas (écrans, projetores de vídeo, LEDs, smartphones, etc). Por ser recente a sua utilização e interação com o ser humano, tem-se colocado a questão dos eventuais perigos da exposição

senvolveu um a hipótese de como poderá vir a ser projeto original a sociedade no futuro. As pessoas assente numa vipararíam de envelhecer aos 25 anos, são futurista da começando a partir daí o seu tempo sociedade, explode vida a diminuir, sendo cronomerando o conceito trado numa imagem que aparece no da automação e braço direito de cada um, podendo ser da inteligência arganho mais tempo através do trabatificial no contexto lho. Mas o tempo também pode ser da 4ª Revolução oferecido por outros, em particular Industrial. os pais, como se se tratasse de uma Para além desherança, ou o tempo pode ainda ser ta exposição, foi contraído por empréstimo, como se se desenvolvido um tratasse de um empréstimo bancário. programa de atiDesta forma, o tempo seria a “moeda” vidades paralelas de troca desta sociedade, substituindo repartidas entre o dinheiro. Tal como na sociedade acmasterclasses tual há ricos e pobres, também nesta realizadas pelo arsociedade haveria mundos diferentes, LUZAZUL propõe refletir sobre a realidade hipotética tista, conferências com fronteiras entre eles, sendo ne• e conversas em torno dos grandes cessário pagar com tempo para passar prolongada a este tipo de luz. temas da exposição: a robotização, a essa fronteira. Por um lado, teríamos Partindo deste mote, a exposição inteligência artificial e a ficção cienpessoas com muito tempo para viLUZAZUL projeta-nos num futuro tífica. ver ou gastar, predominando o ócio e que pode ser mais próximo do que Uma das três masterclasses reaum ritmo de vida lento e, por outro, possamos pensar, tendo em conta o lizadas teve lugar na Faculdade de teríamos pessoas com pouco tempo rápido avanço da inteligência artificial, Ciências Humanas e Sociais da Unide vida, vivendo o dia-a-dia de forma que poderá dar origem a uma evolução exponencial das máquinas e da versidade do Algarve, no dia 7 de rápida e intensa, tendo que trabalhar fevereiro, com a moderação de Pedro ou conseguir tempo de alguma forma, automação, transformando profunCabral Santo, tendo sido inserida nas para poderem viver mais algum temdamente o mundo em que vivemos. atividades do Doutoramento em Mépo. Na sociedade atual o tempo tem Segundo a teoria da "Singularidade dia-Arte Digital, uma parceria entre a um elevado valor, mas neste filme a Tecnológica", de Ray Kurzweil, em Universidade do Algarve e a Universisua importância é levada ao extremo. que se baseia esta exposição, o ano dade Aberta. Procurámos sintetizar a mensagem de 2045 será o momento chave Em relação à exposição, poderá principal deste filme através duma tedessas transformações. Antecipa-se ainda ser visitada até ao dia 24 de la pintada em preto e branco, sendo um mundo automático onde o ser fevereiro de 2019. estas cores separadas claramente, humano encontra as suas necessicomo se se tratasse dudades de serviços básicos satisfeitas ma fronteira que separa por máquinas ou robots dotados de inteligência artificial, sentindo-se lidois mundos, o mundo “branco”, das pessoas vre para se dedicar às suas genuínas com mais tempo, e o vocações. Contudo, nesse momento, mundo “preto”, das pesnovos problemas se colocam, nomeasoas com menos tempo damente a realidade hipotética em para viver. No mundo que as novas máquinas tomam cons“preto” está colada uma ciência de si e procuram reivindicar foto a preto e branco de mais tempo livre, mais liberdade e direitos, criando um paralelismo com uma imagem do filme, com o ator Timberlake a as lutas desenvolvidas pelos humanos correr preocupado para em séculos anteriores, e levando-nos conseguir mais tempo e a questionar se esta luz azul será a "luz ambicionando conseguir ao fundo do túnel". Figura 44: Trabalho “Time” (0,50x0,60m; 2011) • Assim, a exposição LUZAZUL passar a fronteira para o Um trabalho que traduz um esforço outro mundo. Por seu turno, no munpropõe refletir sobre a realidade hide síntese através da produção artísdo “branco” está colada uma foto a potética em que as novas máquinas tica intitula-se “Time” (ver figura 44), cores do mesmo ator bem vestido e tomam consciência de si e procuram reivindicar direitos sociais, sendo o que procura representar, sintetizancom uma postura calma, mas olhando culminar de um percurso artístico do, a principal ideia do filme de ficção para trás, com receio de passar para o científica “Sem tempo” (“In Time”). lado “preto”, em que o tempo de vida desenvolvido por Miguel Soares, deEste filme, realizado por Andrew é reduzido. Na fronteira está colada dicado à reflexão e à conceptualização Niccol, e com Justin Timberlake no uma imagem do cronómetro existente do mundo real versus virtual. Miguel Soares concebeu e depapel principal, pretende trabalhar no braço de cada um, com a indicação

Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saúl de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade |Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 6.878 exemplares

do respetivo tempo de vida, sendo reduzido num mundo e elevado no outro. Aparece ainda colado um cronómetro real debaixo do qual estão duas notas, uma em euros e outra em dólares, traduzindo que o tempo se sobrepôs e veio substituir as principais moedas nas transações atuais. Com grande destaque está a palavra “Time”, sendo mais largas as letras que estão pintadas no lado branco e mais estreitas as que estão pintadas no lado preto, traduzindo o fato de terem mais ou menos tempo de vida as pessoas de cada um dos dois lados. Como se trata de tempo de vida, a palavra está pintada em vermelho, escorrendo gotas ao longo da tela, como se se tratasse de sangue, símbolo da própria vida. l


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REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••

O ordenamento do território e o turismo

Teresa Correia

Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com

O turismo no Algarve, o ouro sazonal O turismo no Algarve desempenha para a região o pilar fundamental da nossa economia, o nosso ouro, aquele que permitiu a saída do subdesenvolvimento de grande parte da população. Este turismo que nos alimenta, nos dá a riqueza, nos dá emprego, faz movimentar o pequeno comércio, a restauração, a hotelaria, os serviços de animação turística, a grande dinâmica de golfe, entre outros. Porém, com os mercados concorrentes do mediterrâneo, do Norte de África, estamos nós preparados

para uma diminuição da receita que possa advir? O turismo necessita de um apoio claro do Governo, em infraestruturas de saúde, de segurança e de transportes. O setor privado tem feito a sua parte, na aposta de hotéis de qualidade, mas falta criar uma cultura de acolhimento digno, com infraestruturas de transporte modernas e ligações fáceis aos centros e aos aeroportos, com uma ferrovia leve e flexível, com equipamentos de saúde públicos, e espaços públicos valorizados. Esta parte só ao Estado diz respeito e parece tardar, ano após ano. Com a agitada discussão sobre o Brexit, será fácil prever que a redução do número de turistas ingleses está também à vista de todos, provocando um repensar sobre o que afinal temos como seguro e os nossos destinos. O ambiente de grande beleza, o clima, a gastronomia e a natureza amistosa do nosso povo são caraterísticas únicas que poderemos sempre valorizar no Algarve, mas não é suficiente para todas as crises. Será fundamental o pensar antecipadamente e a procura de novos mercados.

O ordenamento do território e o turismo A sustentabilidade do território é tantas vezes questionada pela pressão turística, tendo sido o Algarve durante décadas, julgado pela má utilização dos seus recursos, pela densificação excessiva. Embora haja exemplos infelizes, ainda assim, foram conseguidas melhorias significativas de infraestruturação, de contemplação da natureza, de valorização dos nossos núcleos históricos, não podendo referir que tudo seja mau. O ordenamento do território, por orientação governamental, teve em consideração este desígnio do Algarve, e procurou promover essa atividade, pela exceção. Em quase todos os regulamentos urbanísticos, consegue-se verificar que houve uma intenção de promover esta atividade, como exceção à proibição, permitindo a construção ou a ampliação no caso do turismo em espaço rural, nos estabelecimentos hoteleiros isolados, ou nos núcleos de desenvolvimento turísticos. A residência habitacional local das populações não foi tão grandemente valorizada, mas sobretudo o aspeto

O turismo necessita de um apoio claro do Governo •

de desenvolvimento económico do turismo. Será certamente relevante e fará sentido, mas considera-se também adequado outras funções para além desta, como a habitação, o aglomerado rural, o pequeno centro urbano que muitas vezes se localiza em cruzamentos de estrada e pequenos locais históricos de vivência, como um poço, ou uma capela. O equilíbrio entre a população residente e o turista Hoje, temos o debate sobre a capacidade da população residente em resistir ao turismo nos Centros Históricos, onde parece que o espaço do cidadão comum está a ser invadido ou desalojado. Embora possam existir excessos, em muitos casos, esta situação ainda está longe de provocar danos irreversíveis, pelo menos, no caso do Algarve. Aqui, faz tempo que tínhamos as camas paralelas e a densificação no Verão e estamos ha-

bituados. Aprendemos a lidar com as multidões faz décadas e não existe nenhum algarvio que se incomode, porque sabe que essa é uma realidade que lhe permite viver e crescer economicamente. Crescemos nesta ambiência e os nossos locais serão sempre nossos, porque no fim da época balnear estamos sozinhos. Esta situação é muito particular no Algarve e foge completamente à realidade de Lisboa e do Porto, por exemplo. A especificidade da nossa região devia ser ponderada em questões de restrições ao direito de instalar um alojamento local, porque já o fazíamos antes, mesmo sem ser dessa forma. Em termos de planeamento, faltará mais o regular no pormenor, na defesa do nosso património arquitetónico e da nossa memória coletiva. Na ausência destes documentos, o turismo poderá facilmente invadir e criar algum ruído e perturbação, o que seria evitável com uma visão urbanística das nossas cidades. l

ESPAÇO AGECAL •••

"Jornadas 20+10" - Encontro de gestores culturais de Espanha e Portugal d.r.

Jorge Queiroz

Direcção da AGECAL - Associação de Gestores Culturais do Algarve

As efemérides podem originar momentos de interesse, relançar ou propor novas ideias e projectos. Foi o que aconteceu no sul da Península Ibérica, em Isla Cristina, a 2 de Fevereiro, no magnífico espaço “Garum”, Centro de Inovação e Tecnologia da Pesca. Organizadas pela GECA – Gestores Culturais de Andalucia dezenas de gestores culturais espanhóis e portugueses reuniram-se nas “Jornadas 20+10”, que celebraram uma década de cooperação cultural transfronteiriça e também os 20 anos da GECA e os 10 anos da AGECAL, conferência apadrinhada pelo Ayuntamiento de Isla Cristina e com apoio da Junta da Andalucia.

Da parte espanhola foi salientada a maior atenção à Gestão Cultural por parte das Universidades e do Ministerio da Cultura de Espanha, patente na presença do ministro da Cultura nas recentes jornadas profissionais em Almeria. A Espanha, além de dezenas de Pós- Graduações e Mestrados, possui já licenciaturas em Gestão Cultural nas Universidades de Huelva e Córdoba, e irá abrir muito brevemente outra em Lugo. As intervenções e reflexões produzidas ao longo do dia salientaram a importancia da cultura para ambos os países, o valor espiritual-simbólico e económico da mesma num mundo em processo de globalização, também da necessidade, no âmbito das políticas culturais públicas, de preparar profissionais com boa formação teórico-prática capazes de analisar e acompanhar os complexos processos de desenvolvimento cultural, acção a articular com as universidades e politécnicos e associações socioprofissionais. A Gestão Cultural é uma ciência de formação recente, corresponde à evolução do pensamento nas sociedades

contemporâneas, necessidade de investigação aplicada nos domínios da cultura e necessidade de melhorar a gestão dos recursos culturais em cada região ou País. A GC tem componentes experimentais e práticas que deverão ser acompanhadas do estudo de disciplinas fundamentais como a História Cultural, Economia da Cultura, Direito da Cultura, Sociologia da Cultura e das Artes, Metodologias e Tecnicas, Tecnologias de Informação,… O caso português foi apresentado com informação estatística e reflexão sobre os vários domínios: balança comercial dos bens culturais, património, museus, bibliotecas, cinema, teatro, música… A dependência e fragilidade da economia da cultura dos países do Sul da Europa em relação à produção cultural de outras origens, nomeadamente anglo-saxónica, carece de políticas culturais e educativas que transmitam e valorizem a riquíssima cultura mediterrânica, a sua capacidade criativa e inovadora. Apesar do reequipamento de muitas cidades e maior atenção ao património, o peso da cultura no

Jornadas celebraram uma década de cooperação cultural transfronteiriça •

Orçamento Geral do Estado não reflecte a importância da língua e cultura portuguesa no mundo, nem as necessidades de desenvolvimento do País, aliados fundamentais no combate à desertificação e às assimetrias regionais. Foi referido por académicos e profissionais a preocupação com a tentativa política de criar artificialmente uma “identidade europeia”, contrária aos interesses da própria construção do projecto europeu ao abrir espaço a fenómenos negativos. A turistificação e festivalização ex-

cessivas foram também alguns dos problemas referidos. Foram ainda apresentadas diversas experiências de Gestão Cultural inclusiva, projectos na museologia e editoriais, protecção das actividades artesanais, rota dos castelos e do legado Andalusi, salvaguarda das salinas históricas, entre outros. À AGECAL foi atribuído um Prémio de reconhecimento pelo trabalho de dez anos de Cooperação Transfronteiriça entre a Andaluzia e o Algarve. As associações presentes irão continuar o trabalho conjunto. l


CULTURA • SUL

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LETRAS E LEITURAS •••

Vidas e Vozes do Mar e do Peixe, de Maria Manuel Valagão, Nídia Braz e Vasco Célio mos quando o sol quase se punha e se a despensa que já tinha poucas batatas levantava aquele vento quente de lemas que tinha de retribuir, enquanto as vante, enquanto me enxaguava na bica enfiava num alguidar que me incumbia em frente à casa (na altura ainda não de oferecer em troca… . . havia água canalizada que O livro chegasse à casa) para depois A ideia deste livro jantarmos peide Maria Manuel xe com batata Valagão, Nídia Braz ou batata com e Vasco Célio parte peixe (para ir de uma ideia desenvariando a dievolvida durante o ta alimentar). processo de elaboraEra esse o únição do livro Algarve co momento Mediterrânico. Trado dia em que dição, Produtos e o televisor era Cozinhas (2015) destapado e também da autoria ligado, ver a de Maria Manuel VaTieta do Agreslagão e Vasco Célio, te (sim, as • Livro retrata as comunidades marítimas e com Bertílio Gomes. novelas ainBem estruturado, de da eram brasileiras, na altura) ou ir leitura acessível, em linguagem espara a rua brincar com os filhos dos correita, que recolhe depoimentos de pescadores das casas ao lado. Reto«homens e mulheres que fizeram a sua mando o assunto em mãos, guardo vida no e com o mar» (p. 15), fixa a vida com enorme carinho as memórias dos dos produtos do mar (peixe, marisco, pescadores a puxar as redes cheias de sal) e da memória da pesca, com os peixe-rei que brilhava como prata, da barcos, os aparelhos de pesca, os usos chegada dos homens nos seus barcos e costumes marítimos, recolhendo as de madeira com motor, que depois vozes da memória individual e colectiva empurrávamos para a areia, sendo, no Algarve mediterrânico e atlântico. depois, o peixe vendido no mercado Foi através do mar que Portugal se de Quarteira ou de Faro ou deixado na aventurou ao mundo, e ainda hoje o areia a quem o quisesse levar (ainda era país tem uma vasta plataforma maría época da abundância), das mulheres tima, fonte de alimento e riqueza. Mas a lavar o lingueirão, dos passeios pela é sobretudo pelo Algarve dentro que Ria Formosa quando vazava e onde eu o mar se estende e se faz sentir, nessa gostava de tentar descobrir peixes re«extensa costa (…) ponto de partida, tidos em latas ou pneus, que ficavam de chegada de outros povos e também encalhados nos regos de água como de regressos», onde até ao século XX detritos que a ria se recusava a levar era mais fácil a «aproximação pelo mar mais longe, apenas para de vez em e pelos rios Arade e Guadiana» (p. 23). quando ser enxotado por algum hoAqui «mar e terra entrelaçam-se» (p. mem mal-encarado que me acusava 25) na usual prática (como a minha avó de andar a pisar o viveiro de amêijoas o confirma) de se trocar produtos da (sempre me transcendeu que se deterra por produtos do mar ou na formarcassem pedaços de terreno na ria ma como nas papas de milho (o xarém como quem delimita uma horta), dos agora tão em voga nos restaurantes homens a limpar os seus aparelhos de quando antes era uma comida de popesca onde no fio de nylon, brilhante bres) se incluem os bivalves, como como prata e invisível como um fio de berbigão, conquilhas ou amêijoas, e o baba, enrolado em grandes novelos toucinho frito. Se a sotavento a costa se ia enfiando o isco nos anzóis. Lemestende-se num cordão arenoso, com bro-me nitidamente como a minha várias aberturas, que criam a ilusão de avó recebia agradecida o peixe que os ilhas, a barlavento existem práticas pescadores lhe traziam, quando soarcaicas e intimamente ligadas como brava, resmungando no caminho para a pesca a linha nas falésias da costa rofotos d r

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Para falar do prazer que me deu descobrir e ler este livro agora publicado pela Tinta da China, numa belíssima e luxuosa edição, de grande dimensão, assumindo-se em simultâneo como um documento etnológico, um hino ao resgate da cultura local, um álbum de fotografias e uma espécie de postal dos produtos marítimos algarvios, tenho de fazer um intróito em que recapitulo as memórias da minha infância que estão fortemente ligadas a esta área geográfica, ao mar e, consequentemente, a esta obra. Tendo crescido junto ao mar (pois os meus avós tinham uma casa na ilha de Faro - se bem que na verdade se trate de uma restinga - e eu era aí despejado pelos meus pais nos finais de Junho, ou às vezes no início de Julho - logo depois do meu aniversário - para ser recolhido nas primeiras semanas de Setembro quando as aulas estavam prestes a começar), vivia, portanto, como um índio da meia-praia, sem roupa (à excepção de uns calções de banho), sem calçado, sem preocupações, durante cerca de três meses, em que a rotina consistia em tomar o pequeno-almoço ansioso para chegar à praia, ainda deserta, estrear o areal limpo de pegadas e caminhar até à Quinta do Lago, local onde desemboca a ponte de madeira… para depois alternar entre leituras estendido na toalha e revigorantes mergulhos. Seguia-se o almoço de peixe com batatas, após o qual se esperavam as fatídicas três horas de digestão, durante as quais se podia dormir a sesta (nem por isso…), jogar monopólio (com as netas da vizinha da casa do lado, filhas de emigrantes de franceses) ou ler. Pelas 16 horas, a minha avó pegava num farnel, voltávamos para a praia, de onde só regressáva-

chosa, e nesses trilhos descobriam-se enxames de abelhas bravas alojados na rocha calcária cujos favos de mel eram recolhidos e o mel generoso escorria pelas rochas até ao mar. A maritimidade já vem dos tempos pré-históricos, como o comprovam os concheiros, depósitos de cascas de mariscos diversos e as sepulturas dos primeiros habitantes da costa vicentina decoradas com camas de percebes. E essa maritimidade revela-se das formas mais inesperadas, quer no conhecimento íntimo que o povo ainda hoje tem das marés, como num surpreendente farol integrado na torre sineira de uma igreja. O Algarve marítimo é aqui desvendado, desde os tanques de salga das grandes estações arqueológicas, aos portos e barras, cujas areias móveis abrem e fecham, aos faróis dos cabos, aos estaleiros navais, às indústrias transformadoras de peixe, passando pelas marinhas, agora conhecidas por salinas, até à ria Formosa (Parque Natural de singular beleza) e a ria de Alvor, cujos ecossistemas complexos são «profusamente povoados por espécies animais e vegetais» (p. 47). Este livro retrata as comunidades marítimas nas suas vozes e vidas, transcritas em diversos relatos, ao mesmo tempo que transmite a informação mais diversa, e bastante preciosa, como descobrir que o peixe de viveiro pode ser mais saboroso do que o selvagem. O livro, dividido em cinco partes, explora a relação entre o mar, a maritimidade e a paisagem em «Paisagem, recursos e portos»; os recursos do mar e das rias através dos habitats e climas em «Pesca e Pescadores»; as memórias da pesca do bacalhau e do atum em «Pescas lembradas»; o percurso do peixe desde o mar até ao consumidor em «O peixe já em terra», outrora com as antigas práticas de venda como agora nas lotas e mercados, a conservação tradicional do peixe com a salga e a secagem, e um capítulo sobre as indústrias conserveiras, cujas fábricas ainda povoam a paisagem algarvia e as grandes chaminés dessas antigas fábricas têm sido integradas em novos edifícios; e em «Última vida do peixe» transcrevem-se algumas receitas transmitidas por boca. Por fim, a concluir, dá-se voz à modernidade através do testemunho

de três personalidades – Pedro Bastos, Bertílio Gomes e Dieter Koschina – que revelam como o peixe afinal puxa carroça e é uma matéria-prima muito fácil de recriar e de trazer à mesa dos portugueses e dos estrangeiros, pois «o bom peixe, sozinho, já é o cozinheiro» (p. 19), ao mesmo tempo que se questionam sobre os actuais riscos ambientais e apontam caminhos para o futuro do peixe e dos mares. Existe ainda um Anexo que reúne informação sobre muitas das espécies de peixe e marisco disponíveis nos mercados, um glossário marítimo e um útil índice das várias receitas apresentadas no livro. Este livro não só promove a preservação de todo um legado cultural, com as vozes da maritimidade e do seu povo, para que perdure nas gerações vindouras, como pretende estruturar a identidade algarvia num mundo em mudança no sentido da globalização e onde a biodiversidade marítima, de que dependemos, corre sérios riscos como se tem vindo a ver com as mudanças climatéricas ou as ilhas de plástico flutuante que poluem os oceanos.

Vasco Célio, Maria Manuel Valagão e Nídia Bráz •

Os autores

Maria Manuel Valagão é doutorada em Ciências do Ambiente, investigadora em Sociologia da Alimentação e Ambiente e é actualmente investigadora do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição – Patrimónios, Artes e Culturas da Universidade Nova de Lisboa. Nídia Braz é doutorada em Engenharia Agroinsdustrial, professora na Escola Superior de Saúde da Universidade do Algarve e investigadora em Ciência de Alimentos. Vasco Célio é um fotógrafo baseado no Algarve. l pub


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CULTURA • SUL

8 de Fevereiro de 2019

MISSÃO CULTURA •••

DiVaM cultiva o “processo patrimonial” Direção Regional de Cultura do Algarve

O DiVaM – Dinamização e Valorização dos Monumentos – é um projeto organizado pela Direção Regional de Cultura do Algarve, promovido desde o ano de 2014. Desde então e ao longo de cinco edições tem constituído um programa cultural a ser desfrutado pelas comunidades locais, residentes e visitantes dos sete monumentos da região algarvia, que acolhem as iniciativas. O programa conta desde a sua origem com a parceria de várias autarquias, agentes culturais e, nos últimos

anos, com a participação ativa das comunidades em alguns dos projetos de dinamização, de fruição e de vivência dos espaços patrimoniais. O DiVaM constitui um programa promotor do valor do património, não apenas como testemunho do passado, da memória e da identidade, mas determinante para que as pessoas que vivem esse património o possam ver com um “novo olhar”, fomentando a qualidade de vida das comunidades e a integração de novas perspetivas e narrativas. A “Convenção de Faro”, assinada em 2005, na, então, Capital Nacional da Cultura, apresenta um novo paradigma para a sustentabilidade social e cultural do património. Existe uma nova narrativa, associada aos benefícios da utilização e fruição do património pelas comunidades. A tónica deixa de ser

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a da preservação do património para passar a ser a do património como instrumento de promoção da qualidade de vida das pessoas, das comunidades e sociedades. Pretende-se com o tema do DiVaM 2019 – A VIAGEM – assinalar os 500 anos da primeira viagem de circum-navegação em torno do planeta Terra. Com o mote da grande viagem em torno de um lugar, pretende-se integrar projetos culturais que envolvam de forma ativa as comunidades, pretende-se redescobrir novos caminhos, novos lugares, abraçando novas perspectivas, novas narrativas e novas reinterpretações do património. Pretende-se promover o património cultural como factor de aproximação, de diálogo, de coesão social e de uma cidadania cada vez mais inclusiva.

O Património passa a ser visto enquanto processo: um processo patrimonial que se centra nas comunidades em que os seus valores, aspirações e necessidades são consideradas no processo de construção, reconstrução e celebração desse seu património, englobando diversas vozes e olhares. Tendo “A Viagem” como tema central do DiVaM 2019 e ape- O DiVaM 2019 tem como tema central “A Viagem” • lando à inclusão das culturais da região algarvia, à aprecomunidades no processo de conssentação de candidaturas para a trução de novos projetos culturais, programação do DiVaM 2019. l convidam-se todas as associações

Talvez não tenha havido em todos os tempos, filósofo mais cioso da verdade que Platão. Acreditando na inexistência de uma equivalência inexorável entre a Bondade, a Beleza e a Verdade, baniu todos os artistas da sua cidade ideal que retrata na República. O que seria de nós, caro leitor, num mundo sem arte?! Imagine um mundo sem nenhuma imaginação ou fantasia… Impossível, não é?

foram realçadas, extrapoladas e adornadas poética e retoricamente e que, depois de um uso prolongado, um povo considera firmes, canónicas e vinculantes”. A Arte de Mentir é o título do livro de kazuo Sakai - psiquiatra no hospital de Shibamata do Japão - e Nakana Ide - pseudónimo de um próspero homem de negócios e ensaísta que dirige uma grande editora na cidade de Tóquio. Neste livro podemos encontrar capítulos como: “Mentiras que tornam uma mulher mais bela”, “Mentiras que ajudarão um homem a triunfar”, ou “Mentiras que fazem com que o mundo gire”. O livro é um mergulho na para nós exótica e distante cultura japonesa. Segundo Ide Nakada “uma boa mentira é como a utilização de especiarias na cozinha: melhoram o sabor e acrescentam variedade ao desfrute da vida.” Por isso, a mentira é, para este autor, essencial! Afirma ainda que “contrariamente ao que os nossos pais e educadores nos ensinaram, as pessoas que mentem têm frequentemente vidas muito mais profundas e interessantes. Consequentemente, o último capítulo deste livro ensina a mentir eficazmente de forma a que os leitores possam desfrutar da vida “com mais cor e riqueza”. Com tantos pontos de vista provocadores de que está o leitor à espera para se juntar a nós no Café Filosófico? l

FILOSOFIA DIA-A-DIA •••

A arte de Mentir

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

Para quem desde sempre foi educado a não mentir e a tomar as mentiras como um pecado terrível, dispor-se a escrever sobre tal matéria envolve a priori uma valente dose de incomodidade. Mas este é um tema em que os queridos participantes do Café Filosófico vêm insistindo há bastante tempo. Fevereiro, mês das máscaras, do Carnaval, do disfarce, pareceu-me o momento adequado para me enfrentar a este assunto. Existem as chamadas mentiras piedosas que se dizem, por exemplo, a um doente terminal ou para protecção de um ente querido. Se durante a 2ª Guerra Mundial nos aparecesse a Guestapo à porta, não iríamos admitir que escondemos o nosso amigo judeu na despensa, certo? Existem também as mentiras inofensivas que fazem o mundo girar, como clicar no quadradinho “li e concordo” dos termos e condições de algum serviço da internet. Estas mentiras são, na generalidade, toleradas. É evidente que se todos nós mentíssemos constantemente a propósito de tudo e mais alguma coisa não existiriam comu-

nidades humanas. A mentira destrói o tecido social! Dos seus malefícios todos estamos plenamente cientes, portanto, guardarei os caracteres que me restam para abordar esta questão de ângulos menos convencionais. Se pensarmos um bocadinho repararemos que os nossos heróis dos filmes mentem imenso! Mentem por boas razões, claro, para criar uma cilada e apanhar um vilão, fazem-se passar por outros para espiarem alguém ou obter informações, etc. Nos filmes admiramos estes personagens pela sua destreza e jamais nos paramos a pensar nas implicações éticas de tais condutas. Casos há até que nos identificamos e desejaríamos ser como tal espiã, mestra em disfarces e álibis. Por que será? Há ainda um outro aspecto em que a mentira joga um papel preponderante; quando vemos um filme ou lemos uma história nós sabemos que é ficção, mas fazemos de conta que é verdade. Senão não nos envolvemos! Esta suspensão voluntária da descrença é uma condição sine qua non para podermos entreter-nos com uma boa história. A ideia foi apresentada pela primeira vez no livro Uma História Verdadeira do poeta satírico Luciano de Samóstata, que viveu no séc. II durante o reinado de Marco Aurélio. No prólogo o autor assume-se como mentiroso e apela à credulidade do leitor. Porém, o livro relata uma viagem à lua e contactos com vida extraterrestre. Factos que ou aconteceram ou se difundiram através da ficção científica.

função “assaltar de surpresa o previsível e o prognosticável”. Em Wilde os papéis invertem-se e é a vida que copia a arte, e a máscara é mais valiosa que a pessoa que a usa: “o interessante nas pessoas de boa sociedade é a máscara usada por cada uma delas, não a realidade mentirosa que sob a máscara se esconde.” Até a nossa visão do mundo é mediada pela arte: “As coisas existem porque nós as olhamos, e do modo co. . mo as vemos depende a influência que, pela mediação da Arte, exercem sobre nós. (…) Não se vê coisa nenhuma enquanto não se repara na sua beleza. Então, e só então, a coisa se eleva ao nível da existência. Presentemente as pessoas reparam nas névoas, nas por serem A mentira destrói o tecido social • névoas, mas porque poetas e pintores lhes Foi o seu discípulo Aristóteles quem conferiram todo o misterioso encanto criou condições para o nascimento das dos seus efeitos.” Belas Artes ao admitir que os artistas Já Nietzsche no seu Sobre Verdade podiam reproduzir a realidade de e Mentira afirma que o homem busca forma igual, inferior ou superior. Na esa verdade por razões pouco nobres, teira aberta por Aristóteles Oscar Wilde “anseia as consequências agradáveis escreve em 1889 um artigo escandada verdade, aquelas que mantêm a loso intitulado O Declínio da Mentira. vida;” e mostra-nos claramente os Aqui se defende fervorosamente que limites da linguagem e a impossibia arte deve “rejeitar a sinceridade, a lidade de se alcançar a verdade nela. fidelidade e a exactidão, e optar pela “Que é então a verdade? Uma hoste máscara e pela mentira”. Aliás, “o acto em movimento de metáforas, metoníde contar belas coisas não verdadeiras mias, antropomorfismos, em resumo, é o propósito exclusivo da arte” e a sua uma soma de relações humanas que dr

Inscrições para o café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com


CULTURA • SUL

8 de Fevereiro de 2019

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MARCA D'ÁGUA •••

Simone Weil: a política e a fé em íntima ligação

Maria Luísa Francisco

Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

luisa.algarve@gmail.com

Simone Weil ensinou-nos que só há uma maneira de lidar eticamente com o poder: transformá-lo em serviço. Maria Clara Bingemer

A escolha das autoras sobre as quais escrevo tem tido como critério não só a sua importância literária, académica e espiritual, mas também a celebração de uma data especial ligada às suas vidas. Desde a crónica de Outubro tem havido um maior enfoque na espiritualidade, a partir de Março o enfoque será político. Gosto de perceber como a parte espiritual está plasmada na vida de um(a) autor(a), de um(a) escritor(a), de um(a) poeta. É também uma parte importante na minha vida enquanto cristã e católica sem “respeitos humanos”. Este conceito é usado quando um indivíduo tem vergonha de assumir a religião em que crê, ou por exemplo vergonha de se benzer ou rezar em público. Tenho orgulho em pertencer a esta maioria, mas já participei em encon-

tros inter-religiosos fora do país, em que, como católica, fiz parte da minoria. A participação em encontros ecuménicos e inter-religiosos deu-me uma visão mais plural sobre a forma de viver a vida e a espiritualidade. O diálogo e a partilha de experiências de vida com pessoas de credos e religiões diferentes tem sido uma aprendizagem enriquecedora. Simone Weil: militante e mística Comemora-se precisamente neste mês de Fevereiro 110 anos do nascimento da escritora, professora, filósofa e mística, que morreu aos 34 anos e deixou um legado incrível. É difícil sintetizar, mas vale a pena conhecer alguns traços da sua vida e obra. Nasceu em Paris no seio de uma família agnóstica. O seu pai era um médico francês de origem judia, e a sua mãe era de origem russa. A saúde de Simone Weil era frágil, mas era forte a sua capacidade de amar e de compadecer-se com o sofrimento dos outros. Enquanto militante sindicalista, tornou-se assalariada da Renault e de outras fábricas para viver na pele a condição operária, perceber assim o que significava a escravidão e para escrever sobre o quotidiano dentro das fábricas. Foi crítica acérrima do nazismo, do estalinismo, do trotskismo, lutou na Guerra Civil de Espanha ao lado dos republicanos e foi resistente à ocupação alemã. Aquando da luta na Resistência Francesa, em Londres, estava débil e recusou a alimentação prescrita pelos médicos, para ser solidária com os soldados franceses e comer apenas a ração diária igual à que lhes era distribuída. Esta situação agravou o seu estado de saúde, levando-a a ser internada com tuberculose. Morreu em 1943.

Simone Weil em Portugal no Verão de 1935

d.r.

As suas diferentes facetas foram vividas muito intensamente, desde operária fabril a mística. No fundo, teve a experiência mística através da prática e percebeu na pele o que vivem os mais frágeis da sociedade. Esse olhar atento, denunciador e ao mesmo tempo cheio de compaixão acompanhou-a sempre. Quando deixou a fábrica realizou a primeira experiência com o cristianismo, na Nazaré. Impressionou-se ao ver, numa noite de lua cheia, as mulheres dos pescadores da Nazaré, em procissão, à volta dos barcos, “com velas (…) e cânticos duma tristeza dilacerante”. Aqueles momentos fizeram-na reflectir sobre a dor e a escravidão e como o cristianismo é a religião que conduz a sair da condição de escravo. A segunda experiência com o cristianismo ocorreu em 1937 em Assis, e Simone Weil escreve o seguinte: “Estando só na pequena capela romana do Séc. XII de Santa Maria degli Angeli, incomparável maravilha de pureza, onde São Francisco de Assis rezou frequentemente, alguma coisa de mais forte me obrigou, pela primeira vez na vida, a colocar-me de joelhos”. A experiência mística e a prática Simone Weil na sua Autobiografia espiritual diz que nunca procurou Deus e que o próprio Cristo desceu até ela e a tomou. Ela faz a experiência mística por meio de sua vivência do real, que a leva a sentir-se tomada pelo amor de Deus. Essa experiência leva-a a, cada vez mais, se entregar inteiramente aos outros. Maria Clara Bingemer, teóloga brasileira, tem publicado bastante sobre o percurso espiritual de Simone Weil e

Albert Camus considerou Simone Weil o único grande espírito do seu tempo •

sobre as dificuldades que impediram a sua adesão total à Igreja, refere que se trata de “uma mulher que viveu uma experiência claramente cristã, embora não institucionalizada, aberta à pluralidade e em diálogo não só com o ateísmo e o agnosticismo do seu ambiente e do seu tempo, mas também com outras tradições religiosas e com diversas áreas do saber”.

Deixou mais de dez livros, inquietantes, que mostram que viveu e praticou aquilo que reflectiu. Não foi baptizada, mas viveu intensamente a vida de Cristo no seu sofrimento. É considerada uma mística afastada da Igreja institucional, no entanto aderiu de coração a tudo o que é o âmago do catolicismo e pode ser uma inspiração para a vida de muitos de nós. l

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