CULTURA.SUL 113 - 9 MAR 2018

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Cultura.Sul

09.03.2018

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Filosofia dia-a-dia

Na Senda da Primavera

FOTOS: D.R.

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

Eu tenho a vida partida em mil pedaços Cola-os tu com dois abraços. Sérgio Godinho

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Cada dia tem 24 horas, se descontarmos as 8 que devíamos dedicar ao sono mais as 8 que passamos a trabalhar, ficamos com um terço do que começámos. Mas desses 480 minutos quantos é que são, realmente, nossos? Vem-me à memória uma canção do Sérgio Godinho: “O tempo parece que foge/ dura o tempo de um café/ e o ‘antes fosse’ já não é/ e vou de carro e vou a pé (...) Vou ter que dar de comer/ à filharada e ao periquito/ às plantas da selva em que habito/ à tartaruga e ao mosquito (...) E tenho os dedos e a cabeça/ a telefonar pra toda parte/ e desço à Terra e subo a Marte”. Vivemos a correr atrás de não se sabe muito bem o quê, que nunca se consegue apanhar, numa sensação de escassez de tempo generalizada. No entanto, quando nos encontramos com mais tempo do que prevíamos, frequentemente não sabemos o que fazer com ele. Ficamos ansiosos perante um fim de semana sem planos, sentimo-nos abandonados, vagabundos. Esse tempo livre que agora se abre à nossa frente magoa-nos mais do que quando foge. Torna-se urgente, necessário, imperativo, ocuparmo-nos. É preciso ocupar-se para não se aborrecer, para não entristecer, para não deprimir. Tendemos a considerar que de um lado estão a actividade, o movimento, o som — ingredientes constituintes das ocupações de um tempo bem vivido. Do outro lado estão o silêncio, a imobilidade, a solidão — características próximas da morte e, obviamente, reveladoras de um tempo mal passado. É como se o tempo precisasse de estar sempre preenchido e o seu esvaziamento equivalesse a tempo perdido. Quem percebeu muito bem esta dinâmica e sabe tirar partido dela são as indústrias de entretenimento. Proliferam os festivais, os concursos,

A Primavera está a chegar e com ela a disposição para enamoramento os eventos, as festas. Tudo com muita cor, música bem alta e uma linguagem motivacional reafirmatória do quanto é bom participar nestas actividades, identificar-se com os outros e exibir estar a sentir pelo menos tanta felicidade como o vizinho do lado. Longe vão os tempos das festas de garagem, em que o grupo de amigos se reunia e partilhava as músicas de que mais gostava, e se dançava e se namorava. Agora há uma indústria montada por trás do nosso suposto divertimento. Nesta correria dispersa em tantas frentes, neste galopar incessante voltado para fora, que sentido têm estas mil e uma ocupações? Um dia acordamos e damos conta de que somos um rato que dá voltas e voltas na roda da sua gaiola sem nunca sair do lugar! A actividade, o movimento por si só, de nada vale. São os afectos que dão sentido à vida e que de um modo misterioso colam, fazem aderir estes fragmentos uns aos outros criando uma forma, um todo, que constitui aquilo a que chamamos a nossa vida.

O amor apaixonado é um coração que lateja em carne viva e, hoje em dia, já ninguém se dispõe a deixar-se ferir. Renunciamos ao enamoramento, fugimos da paixão, e com tanto medo que temos de que nos partam o coração fechamo-lo a sete chaves e escondemo-lo. Esse coração embalsamado é uma flor que murcha antes de ter florescido. Amar é estar ligado, e estar ligado implica, forçosamente, um certo grau de dependência. Tal como dependem os órgãos uns dos outros num organismo vivo, tal como se afinam pelo mesmo

O Amor Asfixiado Vida na negação é a que se vive na ausência do amor. María Zambrano, A Metáfora do Coração Que lugar ocupam os afectos na vida de hoje? Com facilidade falamos do amor pelos filhos, ou do carinho pelos pais e avós, mas do amor entre pares, a esse camoniano fogo que arde sem se ver poucos ousamos referir-nos. Sentimos receio e até vergonha de nos apaixonarmos.

A filosofa María Zambrano diapasão os instrumentos de uma orquestra. Entrelaçar uma alma com outra só é possível na entrega. Com a glorificação da independência banimos o amor.

“O DESPERTAR” Até 24 MAR | Galeria de Arte Pintor Samora Barros - Albufeira Nesta exposição, a artista algarvia Elsa Revez remete para o seu ambiente familiar os valores e a simplicidade que definem a sua forma de sentir a Arte

A filósofa María Zambrano no seu livro A Metáfora do Coração põe o dedo na ferida ao afirmar que uma das maiores indigências dos nossos dias é, precisamente, a que se refere ao amor. “Não porque ele não exista, mas porque a sua existência não acha lugar, acolhimento na própria mente e mesmo na própria alma de quem é visitado por ele. (...) Todas as liberdades não parecem ter-lhe servido de nada; à medida que o homem foi acreditando que o seu ser consistia em consciência e nada mais, o amor foi-se encontrando sem espaço vital onde respirar, como um pássaro asfixiado no vazio de uma liberdade negativa. (...) Pois a liberdade foi adquirindo um sinal negativo, foi-se convertendo — ela também — em negatividade, como se, ao ter feito de uma liberdade o a priori da vida, o amor, o primeiro, a tivesse abandonado. E assim ficará o homem com uma liberdade vazia, o oco do seu ser possível.” É como se nos sentíssemos diminuídos e humilhados se ousássemos pronunciar essa frase tão simples e verdadeira, espécie amorosa incontornável... Não é apenas eu gosto, é eu preciso de ti. No entanto, quando se venera a deusa da Independência, a necessidade do outro tem de ser erradicada. O mínimo sintoma de dependência afectiva, é tratado como um cancro. Assim se submetem possibilidades de amores felizes à quimioterapia da emancipação, e acabamos por deitar fora o bébé com a água do banho. Não sei se “Deus morreu” como afirmava Nietszche, ou se foi o homem que se cansou d’Ele e do divino

que leva em si. Não suportamos o brilho dessa “centelha de estrela”, tal como Heraclito definiu a alma humana. Nesta ânsia de nos libertarmos do divino resolvemos acreditar que toda a realidade se submete a um encadeamento de causas e entrámos num jogo interminável de fazer contas e de arranjar razões para tudo. “Mas o divino é o incalculável, o que pode destruir todo o cálculo e anular qualquer conta, ainda que esteja bem feita.” (M. Zambrano, A Metáfora do Coração) Nesta ânsia de independência subvertemos o amor. E o amor “convertido em facto, decaído em acontecimento e submetido a julgamento fica desvirtuado na sua essência que tudo transcende; despojado da sua força e da sua virtude. Ao amor de nada lhe serve aparecer sob a forma de uma paixão arrebatadora; é como se, cuidadosamente, alguém tivesse efectuado uma análise e extraísse o divino e avassalador que nele existe para o deixar transformado num acontecimento, no exercício de um direito.” (Ibid.) Assim subjugado, o amor está como que “enterrado vivo, vivente, mas sem força criadora” (Ibid.). Queremos continuar a desviver-nos assim? A Primavera está a chegar e com ela a disposição para enamoramento. Talvez valha a pena reaprender com Zambrano que “o espaço infinito de uma liberdade real, é a liberdade que o amor concede aos seus escravos” (Ibid.).

Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com l

“SOMOS FEITOS DE MEMÓRIAS” 31 MAR | 21.30 | Centro de Congressos do Arade - Lagoa Concerto de Olavo Bilac, cujo percurso musical começa em 1987 com a formação da banda Santos & Pecadores, projecto que se mantém até hoje


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