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O camaleão da desesperança
Paulo Matos
Que, a quem não vê porque não quer ver, deve ser dada uma bengala, para não chocar com os transeuntes; Que combateremos, em qualquer campo, a indiferença poética e os economizadores de espírito; Que, não simpatizando com indivíduos acomodados, achamo-los, no entanto, fruto e alicerce da realidade, com a qual não simpatizamos igualmente;
[…]
Que a realidade é, tal como se apresenta, um insulto à inteligência, muitas das vezes, realmente, não existente; […] Espreitar os mais recentes resultados estatísticos sobre o “estado da nação” conduz-nos à inevitável constatação de que, em muitos campos, os Açores são dos territórios mais pobres de Portugal e até da Europa. Esta preocupante prova do subdesenvolvimento humano no Arquipélago é apenas superada pela sua prestação nos índices de qualidade ambiental, em comparação com a maioria das restantes regiões do país. Esse fator ambiental, eventualmente distintivo, tem sido o chamariz turístico das ilhas das vacas felizes e da natureza viva e (vá lá: quase) intacta. Inegável, poder-se-á dizer. Os Açores são uma bênção natural no nosso (nem sempre) tão amado planeta. Mas as nove ilhas que os constituem são oficialmente habitadas por gente há cerca de seiscentos anos, ao longo dos quais as populações têm vivido os rigores próprios de uma terra ultraperiférica, muitas vezes esquecida, pelos de fora e pelos de dentro, olvido que – está provado – aniquila qualquer tipo de desenvolvimento humano.
A par, pois, da beleza natural publicitada, vendida para abono de receitas turísticas, há toda uma existência humana em que reinam desigualdades de conforto e bemestar. É que as ilhas são um belíssimo local para viverem os que têm poder de compra. E os que não o têm? Quem se tem preocupado com essas disparidades? Com certeza, há quem o faça, embora haja também quem faça orelhas moucas e olhos ceguinhos.
Não comungando com silêncios hipócritas, cúmplices, tentando até ultrapassar pugnas intestinas, Joel Neto tem falado e escrito sobre a pobreza nos Açores, para cuja resolução parece haver pouca ou nenhuma estratégia. Porque, em palavras que já lhe li numa conversa privada, «[a] mar os Açores começa na preocupação com as doenças que os podem aniquilar.» A sua mais recente conquista quanto a este assunto encontra-se em Jénifer ou a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas, livro que se nutre de essencialidade para o despertar das consciências, o que valeu a este escritor português dos Açores a honra de fazer parte da lista de obras constituintes do Plano Nacional de Leitura, iniciativa do Governo Português para a promoção dos livros e da leitura.
Na edição portuguesa, publicada em fevereiro de 2023 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, a capa sugere esta dicotomia entre o parecer o e o ser. De facto, ao observá-la (vide https://ffms.pt/pt-pt/livraria/ jenifer-ou-princesa-da-francailhas-realmente-desconhecidas ), atentamos numa daquelas imagens mágicas de promoção turística: a vista do alto da Serra da Ribeirinha alcança o Monte Brasil, em cujo sopé descansa a cidade-património dos Açores, Angra do Heroísmo, na ilha Terceira. Abrindo a contracapa, esticamos a imagem e a magia expande-se. Um sol de fim de tarde ainda aquece pastos e mar. É a mesma fotografia do postal-separador que descobrimos no seio das cerca de setenta páginas da edição lusa. Mas nessa tela onírica abundam indícios: o céu não carrega o azul de verão ilhéu, mas nele dançam nuvens que clamam por chuva; no grande plano paisagístico, ausenta-se o oeste da cidade de Angra; o sol, esse, verga-se ao ocaso, em breve dando lugar ao breu…
Depois, detemo-nos no título, promessa de conto de fadas que o subtítulo desconstrói. O facto de não o virmos a desvendar será certeza posterior; antes, teremos entre mãos um conto que nada tem de maravilhoso, porque as linhas do texto nos trarão uma história que vai à medula de determinadas vivências quotidianas e nos elucida sobre como, nas ilhas dos Açores, a vida de muitas pessoas é massacrada ou, melhor dizendo, de como há quem a torne profundamente insustentável.
Ainda que alguns livros possam ser mero entretenimento e invistam principalmente num intuito lúdico, tendo para preferir aqueles que, como este, se (pre)ocupam com o aperfeiçoamento do ser humano, com a solidez da sua dignidade, com a glorificação dos valores humanistas, aqueles que contribuem para um mais profundo sentido de Humanismo.
Apesar de brincar com o leitor a vários níveis, este livro assegura seriamente esse propósito humanista, à semelhança de outras obras anteriores de Joel Neto. Jénifer ou a princesa da França é claramente uma narrativa de ficção (note-se!) que pretende uma denúncia cívica (logo, política, mas isenta de partidarismos) das condições de pobreza que, no século XXI, ainda assolam a Região Autónoma dos Açores, alicerçando-se em casos reais que ilustram os graves índices de pobreza deste território insular. Não é tanto a pobreza que, por exemplo, Vitorino Nemésio denunciou em Mau Tempo no Canal, porque essa advinha da fome, da falta de recursos que a consentiam; aqui, numa trama bem urdida e magnificamente bem escrita, Joel Neto alerta-nos para a pobreza intelectual, moral e sentimental, que potencia o espírito podre, e para uma vileza da essência humana, em que, quão próximos aos peixes de Vieira, os homens se atropelam uns aos outros.
Efetivamente, a fealdade humana é desvendada ao longo do texto por um narrador bastante implicado nos acontecimentos e nos convívios interpessoais. Baseando o conto no relato de uma relação algo profissional (que evoluiu pessoal e socialmente) com Jénifer, uma menina de dez anos residente num dos bairros mais carenciados de Angra do Heroísmo, Joel Neto tece uma história que revela a falha do sistema e das instituições públicos (engelhados pela inércia ou pela delonga na resolução de problemas sociais, como o absentismo escolar ou o patrulhamento tendencioso), a corrupção olítica (evidente na compra de votos pela promessa de atribuição de subsídios de sobrevivência), a promiscuidade comunitária (do alcoolismo e da presença constante e até precoce em tabernas ao consumo e ao tráfico de drogas; da violência doméstica e no namoro aos abusos sexuais e às gravidezes de jovens raparigas; dos múltiplos casos de desemprego aos de doença prolongada e de invalidez; dos insultos entre crianças ao desrespeito verbal entre pais e filhos), num conjunto de cenas que desenham a conspurcação social que nem todos conhecem (nem querem conhecer) e a ruína da dignidade humana, que resvala para uma valeta lamacenta, reles e sempre sedenta de mais esterco.
, Neste meio, vive Jénifer, que, dentro da escolaridade obrigatória, falta consistentemente à escola, sem que disso haja grandes consequências. Apesar desse absentismo, a sua inteligência e a forma como conversa sobre o mundo são assustadoramente maduras. É que Jénifer sabe da vida, Jénifer conhece o mundo; não porque viajou (nada disso!), mas porque nasceu numa comunidade em que as vivências são uma pescadinha de rabo na boca, por mais vontade de libertação que se tenha. Jénifer é árvore, flor, folha, caule e raiz da comunidade em que vive. O que a escola lhe poderia ensinar a limar, nela foi adquirido pelo dia a dia: o espírito crítico, a resolução de problemas e a criatividade nas efabulações, no contar de histórias e nos sonhos e objetivos para a sua vida futura. Sabe tratar de animais e cumpre as lides do campo, mas também tem conhecimentos empíricos para desenvolver diálogos sobre o Rendimento Social de Inserção, sobre os problemas financeiros da sua família e sobre como os resolver sem estar dependente desse subsídio, que, segundo uma das personagens, é o mal social provocado por políticos que alimentaram o vício da inércia e da inépcia, que (para seu próprio benefício) habituaram as populações a não trabalhar, condenandoas a viver das migalhas subsidiárias, sem lhes darem ferramentas para sair desse redemoinho, fator que as engole em alternativas desonradas e degradantes.
«Ninguém guarda melhor um segredo do que uma criança.» Esta frase de Os Miseráveis, de Victor Hugo, é a segunda das que Joel Neto escolheu como epígrafe do seu livro. E é, na verdade, uma frase também ela indiciadora das ações de Jénifer, uma menina magnética não apenas para o narrador (que não consegue controlar uma afetuosidade protetora – a “fraternidade” que os une –, agindo como uma espécie de possível salvador de um jovem ser humano que ainda tem a oportunidade de ver a luz ao fundo do túnel), mas também para o leitor (que procura compreender como é que esta garota sobrevive tão sãmente naquele lugar). Só que as aparências enganam, confessa a primeira epígrafe. O final inesperado, desassossegador e surpreendente, é uma explosão de realidade, uma consciencialização de muitas ineficácias, um balde de água fria para a nossa esperança de um mundo melhor. É que Jénifer é mais do que parece ser: ela é uma princesa, mas das que, cobardemente, preferimos conhecer, num jeito hedonista de encararmos a realidade – até porque, diz algures uma personagem resignada deste conto, estamos perante a vivência de uma ilha, onde as coisas se esquecem num ápice, por ser essa «a única maneira de fazer o tempo andar para a frente».
Jénifer é como a rapariga presente na capa da edição americana deste livro de Joel Neto: sendo um enigma – pelos contrastes de luminosidade (o ar brilhante da sua sociabilidade versus o sombrio dos seus planos e das suas resoluções), pelo vislumbre do horizonte crepuscular e acinzentado, saboreando as diversas possibilidades (matreiras) que ele traz –, a sua verdade assusta-nos, porque, apesar da idade, esta é uma miúda mentalmente, estrategicamente, calculistamente adulta na sua (des)esperança.
2 Rendimento Social de Inserção (RSI):
«É um apoio destinado a proteger as pessoas que se encontrem em situação de pobreza extrema, sendo constituído por: . uma prestação em dinheiro para assegurar a satisfação das suas necessidades mínimas, e; . um programa de inserção que integra um contrato (conjunto de ações estabelecido de acordo com as características e condições do agregado familiar do requerente da prestação, visando uma progressiva inserção social, laboral e comunitária dos seus membros.» (In https://www. seg-social.pt/rendimento-socialde-insercao - consulta realizada a 16 de janeiro de 2024)
3 NETO, Joel (2023). Jénifer, ou a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas. Lisboa: Fundação Manuel dos Santos. 7
4 «Nas autobiografias e nas biografias, tal como na história, há situações em que os factos não dizem a verdade.» (Ibidem)
5 Idem: 72
4 «Nas autobiografias e nas biografias, tal como na história, há situações em que os factos não dizem a verdade.» (Ibidem)
5 Idem: 72
Tal como um vulcão – que, aparentemente sereno, oculta turbilhões geológicos que poderão conduzi-lo a uma erupção subreptícia, mas abrupta –, o narrador distrai o leitor com acontecimentos mais ou menos cinematografáveis, fá-lo refletir através das suas próprias cogitações, enreda-o na doce mansidão de Jénifer, para, depois, o fazer aperceber-se da magnitude anímica do embuste. É que ninguém adivinharia de Jénifer a sua capacidade camaleónica…
Estará na hora de a aproveitar para a revolução que, na obra, se prenuncia necessária? Eu, tu, todos nós: não percamos oportunidades, quando elas podem mudar o mundo.
