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SAUDADE MULTIPLICADA
MARIA AUGUSTA BASTOS DE MATTOS
O elemento essencial de nosso projeto é a Saudade. Sem ela, não faríamos este trabalho, não procuraríamos recuperar os fatos, as emoções, os registros de uma época. Nosso olhar dirige-se para o passado, e o faz de uma maneira singular: temos um olhar saudoso para o passado.
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Todos nós conhecemos o poder da saudade: por vezes, é tão nítida que “ouvimos” a voz de alguém querido, “sentimos” o sabor e o aroma de uma comida, “vemos” cenas de nossa infância, revivemos uma emoção já experimentada. A saudade faz com que a memória se mantenha acesa.
Ora, se queremos manter viva a lembrança desta casa, é porque temos saudade: a saudade de um tempo vivido, mas com a intenção de que ele se mantenha presente; de que ensine e emocione; de que evoque outras lembranças; de que ecoe na memória de outras pessoas; de que ajude a relativizar o presente e o futuro.
A saudade é um tema banal nas poesias simples, nas trovas, nas canções populares. Muitos de nós conhecemos: “saudade, palavra triste quando se perde um grande amor”; “a saudade mata a gente, a saudade é dor pungente”; “quem parte leva saudade de alguém que fica chorando de dor”; “tô com saudade de tu, meu desejo”; “não sei por que você se foi, quantas saudades eu senti”; “Oh, que saudades do luar da minha terra”; “A saudade é uma estrada longa que começa e que não tem fim”...
FLORES SECAS
JARDIM DA CASA ROSA OUTUBRO DE 2021
O tema, no entanto, pode ser visto pela perspectiva da filosofia, já que qualquer questão do homem pode interessar a ela: “Nihil humani a me alienum puto”, já afirmava uns 200 anos antes de Cristo o comediógrafo Terêncio - e essa frase pode ser entendida hoje como um mote dos filósofos, ao menos de um filósofo como Carlos Lopes de Mattos. Quem quiser estudar seu pensamento filosófico pode ler sua obra Filosofia da Realidade e da Projeção (Capivari, Gráfica e Editora do Lar, 1988).
Meu pai deixou iniciado um estudo sobre a saudade, uma Filosofia da Saudade, aqui apresentada para que todos possam participar da maneira como o filósofo Carlos Mattos ia constituindo suas reflexões.
Ao me deparar com esse estudo, no início senti pena de que ele estivesse incompleto e inconcluso. Entretanto, lendo com mais vagar as anotações nas folhas manuscritas, decifrando as abreviações taquigráficas, procurando entender o que está em outras línguas e driblando o esmaecimento da grafite provocado pelo tempo, percebi que esses papéis, essas trinta páginas proporcionaram-me um prazer inesperado: o prazer de participar da gênese da obra (obra nonata).
Décadas depois desse estudo iniciado por meu pai, meu irmão Tonio (certamente sentindo saudade) recolheu pacientemente essas anotações e colocou-as numa sequência. Hoje, na ausência de ambos – pai e irmão – temos, reunidas num único trabalho, a Saudade e a saudade da saudade.
[N. do A.] Saudade ou saudades: a discussão de que não existe o plural dessa palavra para mim se resolveu ao ler no conto “A parasita azul” de Machado de Assis: “o Sr. Camilo Seabra (...) voltava agora com o diploma na algibeira e umas saudades no coração”.