Potência do ensino em rede: o Neo-iluminismo resultante dos multiletramentos integrados à cult. dig

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UniRio

A potência do ensino em rede: o Neo-iluminismo resultante dos multiletramentos integrados à cultura digital

Autor:​ Gabriel Araújo Data:​ 19/11/2020

A sala de aula regimentada pela postura inflexível do professor vêm entrando em conflitos ao longo dos anos da chamada “era da informação”. A falta de contextualização entre o que é transmitido e o mundo em que o educando vive, contribui para que o aluno não aprenda, e simplesmente decore (acúmulo de informação) o que o educador expõe, sem qualquer nível de reflexão.

Para que se reflita mais a fundo acerca da potência da cultura digital no ensino, o filósofo Immanuel Kant, no seu artigo “O que é iluminismo?” de 1784 (texto assustadoramente atual), nos brinda ideias importantes para pensar . lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. ​Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem.​1 (...) Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! [...] A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes),continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor. (p. 5)

Ao mesmo tempo que infere-se a oposição Iluminismo x "alumno" ( do latim "sem luz [da razão]"), a dicotomia paulofreireana de automatismo x autonomia se assemelha muito à oposição menoridade x maioridade, no sentido de que ambos, professor e aluno, estão sujeitos aos seus influxos. O educador que reproduz o que está escrito na cartilha - bem como reproduz a forma estanque com a qual fora ensinado -, é um autômato tanto quanto são seus alunos adeptos da “decoreba”. Estes, em pleno desenvolvimento de entendimento, tornam-se seres resignados ao entenderem que educação é, no fim das contas, dessubjetivar-se, já que ambos são guiados por algo alheio à sua individualidade, desconexo com a sua própria deliberação criativa de pensamento. Tal molde de ensino não educa, apenas escolariza.

Mas é claro que o profissional da educação se vê pressionado a cumprir um cronograma, e apenas cogitar a possibilidadede não cumprí-lo gera estresse e medo. Surge o questionamento: como não se apequenar diante disso e lançar mão de práticas pedagógicas coerentes com a atualidade? Submeter-se, por outro lado, a um aprendizado em rede exige muito mais do professor em questão de atividade mental - oposto à preguiça e ao medo, termos listados por Kant como causadores da menoridade. Pressupõe flexibilidade, vontade e criatividade.

1

grifo meu

No texto "Linhas erráticas: cartografias de um outro modo de existir na (vida e) escola", as educadoras e pesquisadoras Luciana Pires Alves e Carmen Lúcia Vidal Pérez abordam Deligny, educador francês. Destacam que, para o pensador, a rede é um modo de ser que é aversa a "projetos pensados" e, destituindo centros ou núcleos de controle, a teia tem o projeto de ser tecida e a partir de acontecimentos. A teia, sem subjetividade ou objetividade, é "resultado" de um acompanhar. Envolve diluir as linhas do “ter que” e a ideia do "fazer" (algo imposto) que visa unicamente a produtividade, em prol do "agir" que estimula a imaginação e o senso crítico individual. É justamente por esse caminho que é possível trazer para a sala de aula a cultura digital aplicada às disciplinas de línguas.

Se o jovem de hoje passa grande parte do seu tempo na internet, é válido concluir que uma didática em rede seja atrativa e eficaz, porque replica o padrão virtual e mental de conectar pensamentos quanto à facilidade de expô-lo sem medo. López Quintás, filósofo e pedagogo espanhol, afirma que ​"os textos [no sentido lato da palavra] devem ser lidos à luz adquirida a partir de sua própria experiência, uma experiência tematizada, mergulhada na

reflexão filosófica, que nos permite ver o trabalho estrutural de eventos, conceitos e termos"​2​.

Além disso de acordo com o item 5 das competências previstas na Base Nacional Comum Curricular, é importante que o educador busque estimular o aluno a: Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. (BNCC, 2017, p. 11)

A autonomia está em confronto com o “autoritarismo do automatismo” (o ensino enquanto método irrefletido e estanque) e das linhas do fazer delignyanas, principalmente na aplicação de atividades avaliativas. A linguagem analítica (termo que pressupõe “quebra”, “separação”) cria fronteiras que impedem o "acontecer" e o "tecer", limitam, nos alunos, o aproveitamento da experiência de leitura e o incorporamento daquela no haver desses.

Portanto, outras formas de avaliação mais livres são mais próximas desse acontecimento, conforme traz Jorge Larrosa no seu livro “Tremores”. Segundo o autor, "o ​logos do saber, a

linguagem da teoria, a linguagem da ciência, não pode nunca ser a linguagem da experiência"​3​. É esse o terreno fértil para o cultivo da autonomia, que compreende justamente

2 3

​tradução minha ​Larrosa p. 39

a produção de conhecimentos e principalmente o protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.

Nesse sentido, pode-se pensar, por exemplo, em iniciar debates através de tweets, em diálogo com textos literários a serem trabalhados na disciplina a fim de dissolver as diferenças de valor que separam cânone de não-cânone, ou ainda, “descentralizar as culturas sem dicotomizar”, conforme coloca Roxana Roxo no texto “diversidade cultural e de linguagens na escola”. Ou ainda, exercitar conexões texto-texto, texto-leitor e texto-mundo​4​, relacionando questões sobre o cyberbullying com textos literários que mostram a construção do preconceito na sociedade, como o racismo retratado em alguns contos de Machado de Assis por exemplo, comparando a engrenagem de funcionamento das duas formas de descriminação em um anacronismo convidativo ao debate, algo vital para um ensino que visa o conhecimento e não só a informação. É interessante perceber que na internet é comum que a autoria não tenha tanta importância, como no caso das wikis e, assim como em um aprendizado coletivo em rede, o produto final não pode ser atribuído a um único indivíduo, mas sim ao grupo. É preciso, segundo a autora Roxana Roxo, que se desenvolva uma nova ética que não se importe tanto com a autoria, já que a produção tenderá a ser conjunta, abrindo margem para ​mashups e remixes​, como reformulação de questões vigentes na sociedade, mas que ganham outro corpo através da interação viabilizada pelo letramentos críticos geradores de afeto que recorrem à cultura digital.

Existem

ferramentas

virtuais

(como o ​coggle ​ou mesmo o ​google drive​) que servem como complemento

para a dinâmica em círculo e de rede em sala de aula, e tal prática tende a apontar mais para o espectro do conhecimento do que para o da mera informação,

sendo

esta

última

proliferada pelas diversas redes sociais (vide os ​feeds de instagram, ​tweets e notícias) ou pela educação, assim dita, informativa. A informação envolve

4

​Rildo Cosson p.117

menor atividade mental, alheia à presença plena da consciência - quando o indivíduo é condicionado a ser objeto de um fazer e não sujeito do seu agir - e sua onipresença nos mais diversos os âmbitos da vida contemporânea, pressupõe que se deva construir uma alternativa, na qual o ensino seja ​formativo​, abolindo o prefixo ​in- c​ omo força negadora de individualidade. Frente a outra dicotomia (informativo x formativo) torna-se imprescindível conhecer, e conhecimento convida o corpo, a atividade de raciocínio, a presença da consciência e a elaboração de pensamento a partir de um corpus literário-experimental e, assim, o aluno se forma moralmente. São os círculos de leitura de Rildo Cosson; um debate, uma discussão em rede em sala de aula, onde a informação é ruminada através da interação articulada de pessoas visando torná-la saber formativo.

Nesse sentido, em seu texto, Roxane Roxo coloca o aspecto multimodal dos textos do mundo globalizado e aponta a existência de dois tipos de multiplicidades que serão utilizadas para os (multi)letramentos: ​cultural das populações e semiótica de constituição dos textos

(retroalimentação de linguagens artísticas)​. No primeiro aspecto, em última análise, procura-se criar uma lógica de permealidade entre as diversas culturas a serem contempladas, sem desmerecer quaisquer atributos de cada uma, buscando misturá-las. Nesse âmbito, o que se pretende é ​descolecionar os discursos estagnados e estagnadores, abrindo o diálogo para outros advindos da tecnologia informativa, o que permite que o indivíduo construa sua própria coleção sempre em potência de ser reformulada, fora dos moldes da coleção fixa, rígida e autoritária em certo sentido (ROXANE, 2012). A tecnologia informativa torna-se, sob essa visão, formativa.

Adotar uma nova estética, que conceda ao aluno a possibilidade de fazer uso da sua própria coleção, é admitir o que é evidente: seu acervo de referências internas é diferente do do professor. Assim, utilizar como experiência de multiletramento algum (hiper)texto do repertório dos próprios alunos, do modo que fez Roxane ao trazer um anime para a sala de aula, decompondo a relação de poder que poderia haver nesse ambiente e inspirando o gosto pelo conhecimento - o saber sabor, uma volta ao significado original do termo em latim sappere​. Além disso, nesse exemplo, o discente traz à tona toda a semiótica de construção do texto, as diferentes linguagens que o integram (verbal, visual, musical, etc.) e ensina ao

docente que se encontra na condição de curioso diante desse saber rico que não é de seu domínio e por isso se propõe a aprendê-lo. No domínio do saber do aluno, desenvolver a capacidade crítica de acordo com o que propõe a disciplina de línguas é algo enriquecedor.

mais

O docente, portanto, não deve reproduzir por medo ou falta de vontade a tirania curricular mas pensar certo, como diz Paulo Freire: A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, oferecer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar(...). A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica(...) a produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado.(FREIRE, p. 38-39)

Ou ainda: “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente, aos vinte e cinco anos. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser.” (Ibid., p. 105)

É vital, assim, que o professor também se coloque como aluno em uma experiência de multiletramentos, no sentido de desativar os graus de hierarquização que separam docente de discente, mas evidentemente não abdique da sua posição de articulador ou “costurador” das ideias trazidas pelos educandos. É tentador se fixar em formas pré-moldadas porém “seguras” de conduzir uma aula, como se toda aula fosse imune a surpresas. No entanto, embarcar em uma experiência de multiletramento permite, sem que seja artificial, a criação de uma colaboração porque permeabiliza as fronteiras entre as linguagens (e das artes), abrindo espaço para o outro se manifestar no momento em que se sentir convocado por seus próprios atributos (conhecimentos) aos quais se afeiçoa. Sendo assim, submeter-se também à posição de aprendiz é uma atitude que aproxima discente e docente, que promove afeto e abre para a criação de uma comunidade (COSSON). É válido ressaltar que, na época de Kant, vivia-se a carência de informações por diversos fatores, o que impedia a busca pela “maioridade”. Nos dias de hoje, a ​overdose informacional é um convite à letargia, por gerar certa baixa autoestima de criação cognitiva que geralmente submete a juventude a não superação do status da “opinião” e, colateralmente, a propensão à terceirização do pensamento (“os outros que pensem por mim, já que o que tenho a dizer não serve”). Tendo em vista esse cenário, o professor necessita respeitar o senso comum para que o aluno o supere, bem como respeitar e estimular a criatividade do educando, posto que o senso comum é um saber oriundo da pura experiência .

Implica o compromisso da educadora com a consciência crítica do educando cuja “promoção” da ingenuidade não se faz automaticamente (FREIRE, p. 16).

Ensinar e aprender são extremos de um continuum e têm caráter de arte. E por essa razão o corpus usado em sala de aula deve ter caráter de “antiarte” e de “não-objeto”. O primeiro é um conceito de Hélio Oiticica, renomado artista tropicalista da década de 60, que

eleva o espectador ao status de sujeito agente conectando o sentir ao trabalho através do corpo, fazendo parte da obra e performando como artista (vide os parangolés). A segunda ideia é de Ferreira Gullar, poeta, mas também desenvolvida pela pintora e escultora Lygia Clark na sua série "bichos", e pressupõe que o espectador seja manuseador da peça artística que no caso dela é tridimensional - e, nesse ato de manusear, é que o não-objeto torna-se objeto, pois ganha um devir a partir da inter-ação. É esse mesmo devir que tenta-se levar para o ambiente escolar ao contemplar a cultura digital como solvente para os grilhões da educação “autoritária”.

Que fique claro que não há possibilidade de se conquistar essa autonomia, que é a senda para a maioridade kantiana, se não houver, previamente, “a guia de outrem”, no caso, a guia do professor. Pois é unicamente esta figura que, ensinando principalmente através da própria conduta, guarda a potência de aproximar os saberes do aluno ao saber curricular e criar no educando não só curiosidade, mas inquietude como postura existencial. A inquietude é o que induz as mãos da inteligência a palparem os “não-objetos” do mundo. É preciso que haja inter-ação “não-artificial” para isso, interconectar a linguagem digital com todas as outras linguagens a fim de gerar compartilhamento natural de experiências a serem estudadas no laboratório que é (ou deveria ser) a escola, permitindo acontecimentos e, até mesmo, epifanias. Pouco a pouco surgirá dessa conexão a autonomia do aluno, a engendrar coragem para que ele emita as próprias ideias e brio para buscar desenvolvê-las por sua conta e, assim, afugentar a letargia informacional para atuar no mundo como contraveneno.

Bibliografia ALVES, Luciana Pires; PÉREZ, Carmem Lúcia Vidal. Linhas erráticas: cartografias de um outro modo de existir na (vida e) escola. In. Childhood & philosophy. Rio de janeiro, v. 14, n. 31, set.-dez. 2018, pp. 575-594.

COSSON, rildo. ​As estratégias de leitura​. In. ​Círculos de leitura leitura e letramento literário. São Paulo; Ed. Contexto, 2014, p 117-118 COUTO, Maria de Fátima Morethy. Entre bichos e parangolés: o neoconcretismo hoje.

In. XXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, 2004.

FREIRE, Paulo. ​Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.​

São Paulo: Paz e Terra, 1996.

KANT, Immanuel. ​Resposta à pergunta "O que é Iluminismo?".​ Trad. Artur Morão.

Disponível em:

http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_iluminismo_1784.pdf&ved=2ahUKEwif_52Kj4_tAh XfE7kGHY3TDjMQFjAAegQIARAB&usg=AOvVaw26xq5Gc7ck396WlSgEv_5w LARROSA, Jorge. “A experiência e suas linguagens” In. ​Tremores​. Trad. Cristina

Antunes. São Paulo; Ed. Autêntica, 2015.

QUINTÁS, Alfonso López. ​Los jóvenes frente a una sociedad manipuladora.​ 2a edición, Madrid, Ediciones San Pio X, 1991, pág. 116.

ROXO, Roxana. “Diversidade cultural e de linguagens na escola” In. ​Pedagogia dos

multiletramentos​. São paulo; Ed. Parábola, 2012, pág. 11-31.

Programa Curricular BNCC (Banco Nacional Comum Curricular) Disponível em:

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=79601-ane xo-texto-bncc-reexportado-pdf-2&category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192 Acesso em: 16 nov. 2020