TIDIR 1º 2013 - O papel das charges no Jornal De Fato

O papel das charges no jornal De Fato durante o Governo Geisel nos anos de 1977 a 19781

BRASIL, Samara Moura COSTA, Izabella JORGE, Mariana Elisa de Oliveira SCHUMANN, Saionara VIEGAS, Danilo Ce rqueira

Centro Universitário UNA/MG, 2013.

Resumo: Este artigo tem como objetivo mostrar que em um momento de censura no Brasil, o jornal De Fato, por meio de charges, conseguiu transmitir críticas políticas ao governo do General Ernesto Geisel. O trabalho demonstra, por meio de pesquisas e análises, o valor universal de um desenho com caráter político e sua contribuição na sociedade pela abertura política no Brasil. O texto aborda os aspectos e as colocações das charges no periódico, visto que a época caracterizava-se pela censura e censura prévia, ou seja, nem tudo produzido pelos jornais era publicado. A partir de seu conteúdo implícito, a charge exerceu papel fundamental para a emissão de mensagens que não podiam ser veiculadas de forma escrita.

Palavras-chaves: charge; censura; jornal De Fato; Ernesto Geisel.

1. INTRODUÇÃO: ORIGENS DA CHARGE NO JORNALISMO Segundo o Novo Dicionário Aurélio 2 a charge “é uma representação pictórica, de caráter burlesco e caricatural, em que se satiriza uma ideia, situação ou pessoa”. A julgar por essa definição, a charge é uma ideia gráfica onde o autor expressa sua visão sobre determinadas 1

Trabalho apresentado no ExpoUna, requisito parcial de avaliação da discip lina Trabalho Interdiscip linar Dirigido do curso de Jornalismo Multimíd ia do Instituto de Arte e Comunicação do Centro Universitário UNA, orientação professora Cândida Emilia Bo rges Lemos.

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Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, 2a ed, p.86.

situações atuais através da sátira. A charge é um subgênero do jornalismo porque também se origina dos fatos. Sobre o jornalismo, o Jornalista Clóvis Rossi classifica a atividade da imprensa como uma batalha pela informação, segmento em que a charge também se insere.

O jornalismo , independente de qualquer definição acadêmica, é u ma fascinante batalha pela conquista das mentes e corações de seus alvos – leitores, telespectadores ou ouvintes. Uma batalha geralmente sutil e que usa uma arma de aparência extremamente inofensiva – a palavra, acrescida, no caso da televisão, de imagens. Entrar no universo do jornalis mo significa ver essa batalha por dentro, desvendar o mito da objetiv idade, saber quais são as fontes, discutir a liberdade de imprensa no Brasil. (ROSSI, 1980, p. 7).

Segundo Luiz Amaral, o jornalismo, considerado como “o estudo do processo de transmissão de informação, através de veículos de difusão coletiva, com características específicas de atualidade, periodicidade e recepção coletiva”, tem quatro funções: política, econômica, educativa e de entretenimento. (AMARAL, 2001, p.16) No quadro de Luiz Amaral, as charges se enquadram no perfil “entretenimento”. Historicamente, as charges já existiam antes da invenção da reprodução gráfica de Johannes Gutenberg. A palavra tem origem francesa e significa carga, trata-se de um sinônimo de crítica, ataque. O primeiro jornal a tratar charges foi idealizado por Charles Philipon em 1830, quando lançou o “La Caricature”, existente até os dias atuais.

O binômio humor-política é uma constante não apenas na imprensa, como no imaginário popular. No Brasil, a primeira charge foi publicada no dia 14 de dezembro de 1837 por Manuel da Araujo Porto-Alegre, que também publicou em 1844, a revista Lanterna Mágica, a primeira publicação de humor político na imprensa brasileira. Desde os seus primórdios, as charges possuem caráter político, ela se caracteriza pelo grande número de valores da sociedade que introduz no texto a partir de imagens e pela crítica político-social. É importante frisar as diferenças estéticas entre charge, cartum e caricatura. A caricatura é uma representação exagerada de características ou hábitos de uma pessoa, geralmente pública. O cartum não tem como objetivo satirizar uma situação atual e se remete à situações cotidianas. Já a tirinha é uma sequência de quadrinhos que geralmente faz uma crítica aos valores sociais de forma pessoal.

As charges estiveram presentes em todas as 27 edições do jornal De Fato, que circulou entre janeiro de 1976 e outubro de 1978 (Todas as edições do jornal foram publicadas durante o governo

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do General Ernesto Geisel). Na primeira edição, as charges foram a principal ilustração; existem 10 charges e duas tirinhas nas 16 páginas do jornal. Todas as charges estão alinhadas com o projeto editorial no jornal, pois possuem conteúdo de política, economia ou social.

2. GOVERNO GEISEL

Marcado na História como o chefe, o estrategista, o homem articulado que visou usar todos os meios para vencer a batalha, mas que acima de todas estas características foi um homem do Exército, que cumpriu de forma absoluta e autoritária todos os cargos em sua vida, Ernesto Geisel foi “o homem calado, que sempre viu com maus olhos o trabalho dos jornalistas, que se recusava a comentar suas atitudes na vida pública” (ARAÚJO, 1997. p.494).

Ernesto Geisel alcançou o cargo de presidente através das eleições indiretas, pois havia necessidade de administrar as oposições legais contra a ditadura, como a chapa do MDB, que realizou uma campanha onde denunciava falhas ao regime militar e a opressão do sistema. Com o objetivo de recuperar a autonomia do Estado, além da força do regime, Geisel assumiu a presidência buscando uma política lenta, gradual e segura. “O alto grau de concentração do poder conduzia a um Estado de paralisia nas decisões e à perda de eficiê ncia do Estado. Assim, tornava-se necessário abrir e ampliar os canais de informação como instrumento para reverter essa situação”.

(SOUZA, 1981, p.78).

A abertura política, ocorrida a partir de 1964, iniciada no Governo Geisel (1974) e estendida até o governo de Figueiredo (1979-1985), representou um período negro aos jornalistas do Brasil, pois segundo Francisco Carlos Silva, “o projeto de abertura do regime representava uma volta ao Estado de Direito, a reconstitucionalização do regime, mas não exatamente a redemocratização do país”. (SILVA, 2003, p.263). A classe teve que trabalhar sob um regime autoritário, onde manifestações, ideias contrárias ao governo e atividades políticas eram reprimidas. Além disso, com a Ditadura sendo instaurada no Brasil a voz maior era a da censura aos meios de comunicação

O projeto de abertura política tinha co mo u m de seus pontos estratégicos a liberalização da imp rensa, em especial da imprensa escrita. Entretanto, durante todo o período de governo do general Geisel, continuou em vigor toda a legislação que impedia a liberdade de expressão, fator que incentivou a autocensura. Durante esse período, a imprensa e a mídia sofriam a censura positivada pelas leis e decretos instaurados para

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regulamentar os órgãos oficiais de censura e a estruturação dos veículos de informação.

(ABREU, 2006, p. 79).

Implantar um sistema de informação, que fosse capaz de unificar o país era necessário, pois o Estado era o centro de todas as atividades fundamentais em termos políticos e os meios de comunicação eram vistos como ferramentas para a integração do país. “Os meios de comunicação de massa, ao longo do período autoritário (1964-85), sofreram forte intervenção dos militares, que aplicaram uma política deliberada de modernização do setor. Ao lado da imposição da censura, a modernização da mídia fez parte de uma estratégia ligada à ideologia da segurança nacional” (ABREU, 2006, p. 72).

Geisel, diferente dos presidentes anteriores, tornou de conhecimento da imprensa a disputa que estava sendo tomada entre seu mandato e os militares que iam contra a abertura política, pois agindo desta forma era mais fácil evitar a manipulação de informações por parte dos militares linha dura, que agiam no interior do regime. Além disso, “a liberação da imprensa contribuiu para que o governo Geisel controlasse os órgãos de segurança e burocracia estatal” (ABREU, 2006, p.80).

Desta forma, Geisel tinha autonomia para camuflar os abusos administrativos e controlar os casos de corrupção.

O seu governo foi marcado por muitos acontecimentos entre os meios de comunicação e pessoas do meio. Em 1974, foi permitida a propaganda eleitoral que estava proibida pelo o AI-5. A Lei Falcão, de 1976, foi elaborada com o objetivo de alterar a mesma, “impedindo o aparecimento de candidatos ao vivo no rádio e na televisão” (ARQUIVO NACIONAL, 2002, p.157). A morte do jornalista Vladimir Herzog em 1975, nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, “resultou em manifestações políticas contra o governo e evidenciou a existência de divergências com os setores militares contestadores da política de distensão” (ARQUIVO NACIONAL, 2002, p. 156). Além disso, no ano seguinte: A morte do operário Manuel Fiel Filho, no mesmo local e nas mesmas condições, levaria à exoneração do comandante do II Exército, general Ednardo D'Ávila Melo, e ao confronto entre o governo e os militares que se opunham ao processo de abertura do regime. As relações entre a Igreja e o governo acirraram-se, em 1976, co m o seqüestro do bispo de Nova Iguaçu (RJ), dom Adriano Hipólito, e o assassinato do padre João Bosco Burnier, em Mato Grosso, ambos envolvidos na formação de comunidades eclesiais de base e em movimentos populares. (ARQUIVO NACIONA L, 2002, p. 157).

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O confronto entre o governo e os militares, sobre o processo de abertura do regime, foi um marco para a história do país, visto que “em 31 de dezembro de 1978, o presidente Geisel revogou o AI-5, dando um passo decisivo no processo de redemocratização do país” (ARQUIVO NACIONAL, 2002, p.158).

3. IMPRENSA ALTERNATIVA

Com a repressão em todo o país, jornalistas e pensadores da época, para não sofrerem com as consequências da censura, criaram meios revolucionários de expor suas ideias e repassar informações das outras esferas políticas contrárias ao regime militar. Assim, surgiram diversas mídias alternativas, inclusive os jornais alternativos.

Durante os quinze anos de ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1980, nasceram e morreram cerca de 150 periódicos que tinham como traço comu m a oposição intransigente ao regime militar. Ficaram conhecidos como imp rensa alternativa ou imprensa nanica 3 ¹.

(KUCINSKI, 1991, p. 05).

Para Abreu (2005, p.56), a imprensa alternativa, as charges, as editorias de economia, as páginas de opinião e as telenovelas foram vetores de crítica ao regime. Ela afirma que “esses espaços expressavam o descontentamento de uma parcela da população com as medidas de repressão e com a política não adotada”.

Apesar de sua natureza essencialmente jornalística, “a imprensa alternativa acabou se tornando o principal espaço de reorganização política e ideológica das esquerdas nas condições específicas do autoritarismo” (KUCINSKI, 1991, p. 07).

Os meios de comunicação foram atingidos em geral (rádio, televisão, editoras, jornais, teatro, cinema) pela censura, que era um instrumento de proteção autoritária do próprio Estado.

Ocorreram ações violentas dos órgãos de repressão em relação aos jornais impressos, como invasões das redações, ataques às bancas de jornal, apreensão de edições, suspensão da circulação dos informativos, ameaças aos anunciantes e pressões econômicas. A censura política foi realizada através de diversas formas, todas resultando em consequências financeiras e organizacionais, além das obviamente políticas.

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Imprensa nanica era co mo era chamada a imp rensa alternativa, devido ao formato pequeno adotado pela maioria dos jornais alternativos, co mo o dos tabloides.

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A censura prévia implicava seja a presença de uma equipe de censores na redação, que foi a forma adotada contra vários grandes jornais que se recusaram a se submeter à autocensura, seja a obrigação de enviar a Brasília todos os materiais para que fossem examinados, que foi o caso da imprensa alternativa, geralmente de frequência semanal. (SOA RES, 1998)

Não foram somente as redações dos jornais que foram vítimas de agressões. Conforme informações postadas no site da Associação Brasileira de Imprensa – ABI, em 1976 um ataque destruiu todo o 7º andar do edifício-sede da ABI, “onde funcionavam o Conselho, os serviços administrativos e a Presidência. As autoridades nunca conseguiram identificar os autores do atentado a bomba” (ABI, s/d apud LEMOS e SANTIAGO, 2013, p. 4).

A grande imprensa era complacente com a ditadura militar, enquanto “os jornais alternativos cobravam com veemência a restauração da democracia e do respeito aos direitos humanos e faziam crítica do modelo econômico”. (KUCINSKI, 1991, p. 05). Tratavam da crítica ao governo, na maioria das vezes de forma subjetiva em sua linguagem e utilizando de artifícios que codificavam a informação. Um dos principais artifícios dos jornais alternativos era a linguagem imagética² 4 através de charges: Desde o começo, os humoristas evitaram a caricatura; recorreram mu ito mais à charge para a qual não faltavam os ingredientes essenciais: os tipos e as situações genéricas que o público podia identificar facilmente, generais sobrecarregados de medalhas, agentes truculentos da polícia, os coronéis neurotizados pelo anticomunis mo dirigindo Inquéritos Policiais Militares, que inspiravam mais riso do que temor. Tratava-se, nesse início, de u m regime amb íguo, ainda indefin ido entre uma corrente civ il liberal-conservadora e outra militar-autoritária. Havia u m discurso “democrático” e uma prática repressiva. Co m a arma poderosa da ironia o humorista penetrava nas contradições entre palavra e ato enfatizando o grotesco das situações. (KUCINSKI, 1991, p. 26).

A partir desta ferramenta, o risco de serem penalizados pela manifestação de seus pensamentos em relação ao governo era menor. As penas para os crimes da censura variavam entre multas e reclusões mínimas, apesar de na prática funcionar de outra maneira. O governo era protegido pela abertura da lei que deixava o poder da execução da forma mais viável aos seus interesses políticos: O aparelho militar d istinguia os jornais alternativos dos demais, perseguindo -os e submetendo os que julgava mais importantes a um regime especial, dacroniano² 5 , de censura prévia. Em conformidade co m a Doutrina de Segurança Nacional, instituída p ela ideologia da guerra-fria, eram considerados pelos serviços de segurança como inimigos (...).(KUCINSKI, 1991, p. 05).

Em 25 de outubro de 1975 o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado, sob tortura, o que provocou crises internas em algumas redações levando ao surgimento de

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Imagética: que encerra imagem, ou revela imag inação.

Dacroniano: relativo às leis severas promulgadas pelo legislador ateniense Drácon; por ext. mu ito severo.

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uma nova modalidade de jornais alternativos, de caráter regional, criados, em geral, por jornalistas de prestígio em cap itais fora do eixo Rio de Janeiro/São Paulo, co m apoio de seus sindicatos e portadores de propostas elaboradas de gestão cooperativa. (KUCINSKI, 1991, p.57).

Em Belo Horizonte, a imprensa alternativa foi representada pelo De Fato, jornal oponente ao regime militar, criado em 1976: De Belo Ho rizonte sairia depois um dos maiores contingentes de quadros da imprensa alternativa (...).Participariam, depois, e decisivamente, de Opinião, Movimento, Em Tempo e de um dos maio res alternativos regionais, o De Fato (KUCINSKI, 1991, p. 33) .

Diante das diversas formas de cerceamento impostas à imprensa brasileira e traduzindo a indignação coletiva da classe jornalista, foi publicado, em 07 de junho de 1977, o Manifesto da ABI, que foi um dos maiores protestos já documentados no Brasil contra a censura. O manifesto reuniu 2500 assinaturas, vindas de vários lugares do país, reafirmando a obstinação do exercício do jornalismo acima de qualquer circunstância. (BRASIL, 2007 apud LEMOS E SANTIAGO, 2013).

Com a abertura política, os jornais alternativos começaram a desaparecer, perdendo então a razão de sua existência, já que sua principal função era ser um canal de resistência à ditadura. A grande imprensa não foi só recriando uma esfera pública, como a fez apropriando-se de temas até então exclusivos da imprensa alternativa, e recontratando muitos dos seus jornalistas. Opor-se ao governo deixou de ser monopólio da imprensa alternativa. (Kucinski, 1991).

A imprensa alternativa não foi um fenômeno apenas do período da ditadura civil- militar. A imprensa alternativa “foi também responsável pela formação de uma nova geração de profissionais que ganhou espaço e poder nas redações”. (ABREU, 2006, p.77). Durante o regime militar, ocorreu a profissionalização da categoria dos jornalistas, bem como a exigência do diploma universitário de jornalismo: Nesse simulacro de modernização, em que se mis turou o fechamento de alguns jornais manu militari com a adoção de técnicas modernas de gerenciamento e market ing, acelerou se o processo de assalariamento dos jornalistas, o fim de u ma cultura jornalística de relativo desprendimento salarial, co mpensado por satisfações intelectuais, literárias e ideológicas.

Passou a prevalecer nos novos projetos modernizadores que operaram essa mudança, como o Jornal da Tarde e as publicações da Editora Abril, especialmente Veja, u m mecanis mo oposto de compensações: salários relativamente elevados. Assim, o assalariamento se consolidou como relação de trabalho no jornalismo brasileiro, no âmbito da modernização silenciadora e da legislação autoritária de 1968, que instituiu a obrigatoriedade de diplo ma para jornalista e seu registro no Ministério do Trabalho (...) (KUCINSKI, 1991, p. 11).

A imprensa alternativa progrediu e prosperou em diversos momentos da vida política e social do país. Entre os jornais alternativos, destacam-se O Pasquim e Opinião, do Rio de Janeiro; Movimento, de São Paulo; e Resistência, originário de Belém do Pará. Hoje pertencem à história.

Todos desapareceram. Porém a imprensa alternativa não foi um fenômeno exclus ivo dos 21 anos da

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Ditadura Militar. Ela aparece, em outros tempos da história, como as publicações dos pasquins irreverentes e panfletários do período da Regência, que atingiram o seu apogeu em 1830 com cerca de cinquenta títulos (Sodré, 1968 apud Kucinski, 1991), e dos jornais anarquistas de operários, meio século depois (1880-1920), com quase quatrocentos títulos (Ferreira, 1978 apud Kucinski, 1991). A imprensa alternativa desapareceu, porém o seu espírito de oposição e de dissenção nunca deixou de existir.

4. O JORNAL DE FATO

Fundado pelo jornalista Aloísio Morais, o De Fato foi um periódico, em formato de tablóide, da imprensa alternativa mineira, que esteve presente na sociedade de Belo Horizonte entre os anos de 1976 a 1978, totalizando neste período 27 edições. Tinha forte cunho contra o regime militar, que vigorava no governo Geisel (1974-1979), por isso reivindicava pela democracia, tendo como intuito de desmistificar u ma velha ment ira de que o jornal de jornalistas era um sonho impossível. ”De Fato” não será apenas uma parede dos que militam na imprensa, mas um muro onde pretendemos estampar a opinião de todos os leitores que acreditam que a liberdade de expressão, de reunião e todos outros direitos dos homens são p ressupostos de uma sociedade livre e justa. (De Fato, 1976, n.1, p.1).

É nítida, no discurso do editorial, a ideologia do jornal em apresentar a informação a partir da liberdade de manifestação do pensamento e do livre debate, além de nortear o leitor à democracia do país. Percebem-se, pela narrativa, elementos que se identificam com a ‘liberdade de expressão’, ‘senso de justiça’ e “resistência ao regime militar”, a palavra parede, na segunda linha, representa bem esses elementos da narrativa. A palavra “muro”, na terceira linha, reforça o sentido contra o autoritarismo, a atuação da censura e arbitrariedade. “O discurso dialoga, em toda a sua extensão, com outro discurso, presente no senso comum, que trata do controle da informação, da relação entre poder econômico e imprensa, num plano de leitura maior, da política” (LEMOS; SANTIAGO; 2013 p.10).

Marcada por duas fases, a primeira linha editorial do periódico apresenta, em suas primeiras edições, temas referentes à cultura, ao movimento feminista, a religião, ao homossexualismo, “(...)

Juntam-se a essas questões outras como pobreza, inflação, a falta de escolas, o atendimento precário

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à saúde” (LEMOS; SANTIAGO; 2013 p.8). A capa da 5º edição, com a manchete: “Aborto, o mercado negro da Habitação” mostra claramente a construção desta primeira linha editorial.

Figura 1: Capa da edição n. 5

Fonte: De Fato, 1976, n.5, p.1.

Inicialmente o De Fato contava com uma equipe de 14 colaboradores, formada principalmente por jornalistas, entre eles, o fundador, Aloísio Morais, Bernardo Carvalho, Durval Guimarães, Jurani Garcia e Miriam Christus. Posteriormente, acompanhando os fatos diários da época, o periódico acabou ganhando uma linha editorial política, onde os assuntos em pauta eram os censurados pela grande mídia: direitos humanos, situações política e econômica do momento, entre outros. “Houve inclusive, um jornal especial, em maio de 1978, exclusivo sobre anistia” (LEMOS; SANTIAGO; 2013, p.7). A revolta referente à política, o clima tenso da ditadura, era apresentado ao leitor através das palavras violência, tortura, armas, morte. Além da informação, o tom de sátira e irônico, repudiando as ações do inimigo político compunha a linha editorial. A Capa do exemplar n.13, ano II: a Polícia Metropolitana (METROPOL), sendo mencionada como METROPAU como mostra explicitamente a capa da edição n.13 abaixo:

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Figura 2: Capa da edição n. 13.

Fonte: De Fato, 1977, n.13, p.1.

Neste segundo momento, a produção do jornal era realizada com o apoio de várias pessoas.

Segundo o fundador do De Fato, Morais, “havia um time fixo, alguns foram do inicio ao fim, mas havia gente que apenas passava por lá”. (...) “Era tudo muito aber to. Quem quisesse colaborar poderia vir” (LEMOS; SANTIAGO; p.6). Existiam muitas charges e o jornal dava espaço também aos leitores, através das cartas que recebiam com as manifestações e opiniões sobre o que acontecia na sociedade da época. Tratando-se de um jornal da imprensa alternativa, ou seja, contra o governo vigente da época, a sede foi alvo de atentado. Em 2 de setembro de 1978, a Redação do De Fato, também residência do fundador do jornal, Morais, e de Fernando Assunção, foi alvo de ataque pelo conteúdo distribuído em suas edições: [...] foi deixada u m bo mba que deflagrou [...] Em que pese a série de dificuldades que temos enfrentado, intimidações como esta não nos afastarão da verdade dos fatos e

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continuaremos firmes no propósito de permanecermos na luta ao lado da oprimida maioria do povo brasileiro. (DE FATO, 1978, n. 26, p . 2).

Com isso, “o alternativo mineiro circulava pela última vez. O atentado à sede do jornal ainda aguarda por ser esclarecido, como tantos outros cometidos nesses obscuros tempos” (LEMOS; SANTIAGO; 2013. p.14). No entanto, a história do jornal é encontrada através do trabalho desenvolvido pelo Centro de Investigação da Mídia, criado em 2012, lotado no Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário UNA, que digitalizou todo o acervo do jornal De Fato, em 2012.

5. O DISCURSO CHÁRGICO NO JORNAL DE FATO

A principal dificuldade para a realização deste trabalho foi a seleção da charge a ser analisada. O grande volume de charges e a qualidade da produção chárgica nos obrigou a delimitar um tema; nesse sentido, selecionamos a charge que tematizou exclusivamente a repressão do regime e a luta pela democracia na tentativa do Movimento Estudantil (ME) de realizar o III Encontro Nacional dos Estudantes em Belo Horizonte. A charge escolhida foi produzida pelo chargista Nilson Azevedo e publicada na edição nº 15 em junho de 1977.

5.1. CONTEXTO SÓCIO POLÍTICO Como afirma CANCIAN 6 (2007), o período em que o movimento estudantil voltou a ter força coincidiu com uma mudança importante nos rumos da política nacional. Após a escolha do general Ernesto Geisel para a Presidência da República teve início a imp lementação do projeto de liberalização política, que previa a redemocratização do país. Foi um processo lento e gradual, que durou até o final dos governos militares. É importante ressaltar que, neste período, a volta do mov imento estudantil nã o desencadeou ondas de repressão política co mo as que foram presenciadas no final da década de 60 e início da década de 70. A ditadura já não contava com apoio popular e até mesmo as elites começaram a dirig ir duras críticas contra o governo militar. A lut a contra a ditadura foi travada com a bandeira das liberdades democráticas. O ápice da retomada se deu em 1977, ano marcado pela saída dos estudantes para as ruas. Grandes manifestações de protesto e passeatas públicas mobilizaram os estudantes em defesa d a democracia. As reivindicações de caráter educacional não obtiveram grande destaque. Foram as reivind icações de caráter

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Renato Cancian, especial para a p. 3, 2007. Pedagogia & Co municação. É cientista s ocial, mestre em sociologiapolítica e doutorando em ciências sociais. É autor do livro "Co missão Justiça e Paz de São Paulo: gênese e atuação política - 1972-1985".

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político (defesa das liberdades democráticas, fim das prisões e torturas e anistia ampla, geral e irrestrita) que se tornaram a grande força motivacional a mobilizar os estudantes.

Passo a passo, as principais organizações estudantis foram reconstruídas. (CANCIAN, 2007, p.3).

O jornal De Fato dedicou - se à cobertura do movimento, trazendo como a manchete de capa “A batalha no Campus”. (De Fato, 1977, n. 15. p.1).

Hoje, consente quem cala – dizia a carta aberta à população, lançada em São Paulo, no dia 5 de Maio, pelo Movimento Estudantil (M E). Nesse dia, 10.000 estudantes se concentraram no Largo de São Francisco – chamado de território livre dos estudantes -, e dali avançaram em direção à Praça da República, denunciando as violências do regime polít ico e conclamando a população a luta pelo fim às torturas, prisões e perseguições políticas, pela libertação imed iata dos companheiros presos, pela anistia ampla e irrestrita a todos os presos, banidos e exilados políticos, e pelas liberdades democráticas. A passagem policial militar impedia o acesso ao Viaduto do Chá, no centro de São Paulo, e ali mes mo a passeata foi encerrada após a leitura da carta. Enquanto isso, a República, a praça, continuava ocupada militarmente. A prisão de 4 operários e de 4 estudantes que no dia 1º de maio distribuíam panfletos na cidade de São Bernardo, no ABC Pau lista, fo i a causa imediata das jornadas de maio pelas liberdades democráticas, organizadas e dirig idas nacionalmente pelo Movimento Estudantil (M E). Um d ia antes dessas prisões ocorrerem (30 de abril), o M E de São Pau lo realizara u ma passeata, abertamente apoiada e aplaudida pelos populares que se identificaram politicamente com o objetivo das manifestações: PELO ENSINO GRATUITO E PELA S LIBERDADES DEM OCRÁTICAS. Esta foi a primeira passeata feita no Brasil desde 1968. Em seguida viriam as jornadas de Maio, a luta pela realização do III Encontro Nacional dos Estudantes, marcado para o dia 4 de junho em Belo Horizonte, e as recentes manifestações de junho contra a repressão ao III Encontro Nacional, durante o qual foram presos 880 representantes dos estudantes, vindos de várias Universidades brasileiras (De Fato, 1977, n. 15, p. 4).

Outros jornais da época, como o Estado de Minas, noticiaram o acontecimento e recentemente relembraram o fato em reportagem publicada no portal digital do Jornal Estado de Minas, EM.com.br 7 : Exatamente como hoje, as férias escolares ainda não haviam chegado. Era junho. Nu ma madrugada, começaram a aportar em Belo Horizonte ônibus de todas as partes do país.

Vinham lotados de jovens, inscritos no 3º Encontro Nacional dos Estudantes (ENE), que deveria ocorrer no auditório da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de M inas Gerais (UFM G). Naquele ano, 1977, os universitários tentariam reconstruir a União Nacional dos Estudantes (UNE), dissolvida em 1968 pelo regime militar. Depois disso, a Faculdade de Medicina fo i invadida e os estudantes começaram a deixar o local nu m corredor polonês (7). Em grupos de cinco, eles deixaram o prédio abraçados e cantando músicas dos compositores Geraldo Vandré e Chico Buarque. Colocados em ônibus de turismo (porque o reitor da UFM G, o méd ico Eduardo Osório Cisalpino, não concordou que fossem em camburões), foram conduzidos ao Parque da Gameleira.

Em entrevista concedida para o jornal De Fato, o grupo DA FACE vivida pelos estudantes e as questões políticas mais gerais,

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explica qual eram as relações

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KIEFER, Sandra. Nossa história: estudantes do Brasil decid iram em 1977 en frentar repressão militar. Publicado em 22 jun. 2013. Disponível em: <http://www.em.co m.br/app/noticia/gerais/2013/ 06/ 22/ interna_gerais,410680/nossa -historiaestudantes-do-brasil-decidiram-em-1977-enfrentar-repressao-militar.shtml> Acesso em 25 jun. 2013.

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O DA FACE era u m entre os vários grupos de estudantes que representavam o ME na UFM G. Especificamente, representantes do Diretório Acadêmico da Faculdade de Ciências Econômicas. Entrevista concedida para o De Fato em jun. 1977, edição n.15, p.4.

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Na medida em que procuramos mostrar o caráter opressor do regime em cada problema vivido no dia a d ia da Escola, enfim, deixando claro para todos os estudantes que o trabalho de defesa de nossos interesses é hoje, u ma luta de oposição. Isto pode ser entendido se observamos que as formas de dominação vigentes na sociedade, estão contidas na estrutura do ensino. O estudante é oprimido não só por mecanismos como o 477 e o 288, que tentam nos impedir de nos organizamos de maneira livre e independente, mas o estudante é oprimido também pela burocracia universitária, e por certos professores, que tentam nos impedir de discutirmos nossos problemas, que juntamente com os que estão no poder tentam boicotar os Encontros Estudantis. (De Fato, 1977, n. 15, p. 4).

Apesar das limitações, é necessário reconhecer que, o Decreto Lei 477 foi o mais duro ato repressor contra os estudantes. Como afirma OLIVEIRA (2010), a legislação contra os estudantes no período militar apresentou-se como o meio mais eficaz na tentativa de silenciamento do movimento estudantil. As leis específicas, como a Lei Suplicy de Lacerda, o Decreto Aragão (228) e o DecretoLei 477, serviram como meios de reação desses jovens, que entendiam que o repúdio a esses mecanismos contribuía para a articulação e a movimentação estudantil no período em questão.

Assim, entender as formas desta reação acrescenta subsídios para a compreensão do movimento estudantil em Belo Horizonte.

A Lei Suplicy de Lacerda e o Decreto Aragão foram u ma das expressões dos atos de arbitrariedade da ditadura civil-militar contra os estudantes brasileiros. Mas o Decreto-Lei 477 se apresentou como a forma mais particularizada e detalhada dos meio s de repressão ao movimento estudantil, foi o controle legal defin itivo dele. A ditadura civil -militar tinha mais u ma vez a oportunidade de silenciar o movimento estudantil através da legislação, o Decreto-Lei 477 respondeu exatamente às intenções governamentais, se tornando o meio mais eficaz para fazê-lo. O Decreto-Lei 477 foi editado no dia 26 de fevereiro de 1969, e tinha como objetivo coibir qualquer manifestação política ou de protesto dentro das instituições públicas ou particulares de ensino. Dentre essas manifestações incluíam-se greves, protestos, comícios, passeatas, ou qualquer outra atividade considerada subversiva.

Rosa Maria Cavaliri (1987) aponta que durante a vigência do Decreto -Lei 477 (1969-1979), o mesmo “fo i utilizado 245 vezes, atingindo 12 estudantes do ensino médio, 228 do ensino superior, três professores e dois funcionários de instituições universitárias.” (CA VA LIRI, 1987, p.140). Fo i a instalação do terrorismo na universidade, sendo conhecido como o AI-5 da Educação. A limitação da participação estudantil no período de 1969 (ano da edição do decreto), até por volta de 1975 (mo mento em que iniciou o período de abertura política no Brasil) está intrinsecamente ligado ao conteúdo do referido decreto. (OLIVEIRA, 2010, p.

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5.2. CONSTRUÇÃO DA CHARGE Durante o desenvolvimento deste trabalho, tivemos a oportunidade de entrevistar o chargista Nilson Azevedo, criador da charge a ser analisada, para saber a relevância que as charges exerceram no jornal De Fato. Para Nilson, o chargista era tratado como estrela, pois devido à censura, os principais fatos não eram veiculados de forma integral. Por este motivo, as charges completavam a informação ao leitor através de suas críticas humorísticas e implícitas. Desta forma, os chargistas eram valorizados, respeitados e admirados pelos leitores do jornal. (AZEVEDO, 2013, informação verbal 9 ).

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AZEVEDO, Nilson. Belo Ho rizonte, 08 maio. 2013. Entrevista concedida a Danilo Viegas Cerqueira, Mariana Elisa de O. Jo rge, Samara de M. Brasil.

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No dia 04 de junho, Nilson estava trabalhando na redação do De Fato. Decidiu então sair às ruas para registrar o que estava acontecendo. Chegando ao DA (diretório acadêmico) de Medicina da UFMG, se deparou com o campus completamente cercado pelo aparato policial. (AZEVEDO, 2013, informação verbal).

Azevedo recorda aquele dia: Pedi para entrar no Campus e sem qualquer espaço para perguntas, fui barrado. Não disse que era jornalista, nem estava identificado, pois certamente seria preso. O que vi eram os estudantes sentados no chão do campus olhando para a barreira policial que os cercavam.

Procurei por um lugar para me aco modar e observei que ao lado do campus tinha uma escola, onde o muro fazia d ivisão com o campus e era relativamente baixo . A arquitetura do muro permit ia que eu conseguisse subir e me sentar. Fiquei sentado no muro durante horas assistindo a resistência dos estudantes contra o confronto policial. Decid i então, desenhar.

Era o que me restava a fazer. Quando os ônibus chegaram para levar os estudantes, tive que ir embora por questões de segurança. Em casa, reg istrei através desta charge os principais mo mentos de repressão absoluta que presenciei na tentativa da realização do encontro dos estudantes. (AZEVEDO, 2013, info rmação verbal).

Figura 3: charge do Caderno Humordaz, da edição n. 15.

Fonte: De Fato, 1977, n. 15, p.10 e p.11.

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A primeira ilustração a ser analisada é o possível título da charge “Humordaz”. Os soldados representam a ditadura que era composta por militares e o nome Humordaz se refere ao caderno de humor do jornal De Fato, onde a maioria das charges foram publicadas. Não pode ser passado despercebida a figura de um menino que corre ao final da palavra Humordaz segurando um balde de tinta, com a expressão sapeca. Ele transmite ao leitor ter conseguido “pintar os escudos” dos soldados sem que eles tivessem notado a brincadeira. Foi ágil e inteligente. Esta representação que relaciona o nome do caderno de humor “Humordaz” estampada nos escudos dos soldados, sem dúvida pode ser analisada como uma crítica ao regime. Critica entrelinhas a censura, e o controle absurdo que a imprensa se submetia através da censura prévia para publicar as notícias e acontecimentos da época. Interpretamos que o menino sapeca representa os jornalistas, principalmente os jornalistas da imprensa alternativa, que não perdiam uma oportunidade em publicar a verdade dos fatos. Mas para isso, tinham que ser espertos, habilidosos, como foi o menino sapeca da charge.

Na primeira sequência de quadrinhos, vemos a imagem de um estudante em primeiro plano, que canta uma música com o tema liberdade, e atrás no segundo plano da imagem vemos uma multidão de estudantes que carregam uma faixa com as palavras: “liberdades democráticas”. A música que o estudante canta pedindo “liberdade” e a faixa que os demais estudantes carregam; se relacionam com o tema que a charge aborda: as liberdades democrática s. Esta era a principal reivindicação do Movimento Estudantil em oposição à ditadura. Ora para defendê- la como bandeira de luta dos movimentos estudantis, ora para denunciar as arbitrariedades dos defensores do regime militar, ora ainda para ironizar a concepção de democracia proferida e praticada pelos militares. A figura do estudante determinado em posição de “luta avante” acompanhado de uma multidão atrás simboliza a mobilização dos estudantes de todas as partes do país que vieram para Belo Horizonte, na tentativa de realizar o III Encontro Nacional dos Estudantes em junho de 1977 para a reabertura da UNE. Logo abaixo, vemos quatro personagens. A posição que o chargista usou para localizar cada personagem nos leva a interpretar que o estudante estava cercado. Pelos trajes que os militares usavam, percebe-se claramente a diferença de “status” que cada um possuía, tal como o cargo que cada um representava. O que está vestido de cape, parca militar, acompanhado de um cão, representa um militar superior, talvez um comandante ou general. No centro, o que está trajado de uniforme militar, capacete, lenço, e cassetetes, representa um soldado das forças do exército. E por

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fim, o que usa escudo, viseira, cartucheira para armas e cassetete representa a PM (Policia Militar) do batalhão de choque para operações especiais.

As movimentações gráficas como “gotinhas” e pequenas “ondulações” ao redor do estudante apontam claramente que ele estava tremendo de medo e suando frio, pois estava em uma situação de perigo, violência e repressão. Porém, na sequência do próximo quadrinho, ele usa uma música como estratégia para se livrar dos opressores. Pelas movimentações gráficas representadas através das “gotinhas” e “ondulações” de medo e pânico do estudante, vemos que ele se arriscou demais, pois para a ditadura, qualquer um que manifestasse contra o regime deveria ser severamente punido.

As expressões da música “PM é amigo da gente, PM é amigo legal”, foi uma tática que naquele momento o estudante usou e deu certo. Mas o que o co ntexto da charge se refere é ao poder absoluto que os policiais militares em várias situações tinham e usavam publicamente para punir. O chargista ironizou estes atos de violência explícitos que ocorreram contra os estudantes na tentativa de realizar o encontro através das expressões e ações representadas pelo personagem.

Ainda na sequência, vemos atos explícitos de pura violência e truculência por parte dos opressores. Um detalhe importante neste quadrinho é a mudança de trajes dos agressores. Vejam que eles não usam nenhum uniforme militar, pelo contrário, são identificados como pessoas comuns. Eram os famosos agentes “a paisana”, que eram policiais civis infiltrados nas manifestações e dentro das universidades com o objetivo de observar e reprimir qualquer um que era contra o regime. Como afirma matéria publicada em 2012, no site Carta Maior

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:

A presença dos agentes infilt rados no dia a dia das universidades brasileiras foi u m fenômeno generalizado em todo o país. Suas informações foram vitais para prisões, torturas, mortes e desaparecimentos de um número ainda desconhecido de estudantes e professores. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estima que cerca de 300 estudantes e professores foram mo rtos e desapareceram no período da ditadura.

Abaixo, no próximo quadrinho, o chargista se preocupou em passar para ao leitor, através da ilustração, o poder de todo aparato policial que foi mobilizado para conter as manifestações dos estudantes no dia. Se observarmos pela posição dos personagens dentro do quadrinho, podemos dizer que 85% são opressores, contra apenas 15% de estudantes. É um dado a ser considerado somente para a análise desta imagem, para mostrar ao leitor a quantidade de militares que a ditadura dispunha para reprimir os estudantes, que sem dúvida, se organizaram em menor número.

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PASSOS, Najla . Foto do SNI revela agente infilt rado da ditadura no meio universitário . Publicado em 12 Nov. 2012. Disponível em <http://cartamaior.co m.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21245>. Acesso em: 26 jun.

2013.

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Por fim, nos últimos quadrinhos, a charge termina mostrando que a tentativa dos estudantes em realizar o III Encontro para reabrir a UNE (União Nacional dos Estudantes) não deu certo.

Terminaram em prisões coletivas, agressões de absoluta violência e punições generalizadas. Mas na charge não tinha espaço suficiente para retratar tudo que acontecera naquele dia de 4 de junho.

Então, o chargista metaforizou a derrota dos estudantes através das duas placas que se encontram no ônibus.

A placa que carrega a numeração 477 faz alusão ao Decreto-Lei 477, que tinha a finalidade de estabelecer a “ordem” e o “progresso” do Brasil de 1964, um dos mais repressivos da história de nosso país. O teor do Decreto-Lei 477 definia “infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares, e dá outras providências” (DECRETO-LEI Nº 477, 1969). Em seu Art. 1º, encontra-se proibidas passeatas, paralisação de atividade escolar ou participação de movimentos, qualquer prática de “ato contrário à moral ou à ordem pública”, ou seja, não havia liberdade de expressão.

O chargista usou a placa para colocar as iniciais do Decreto-Lei 477 porque as iniciais denotam uma possível linha de itinerário para qual o ônibus pudesse seguir. Mas, para quem conhece a legislação vigente da época, sabe que a placa com as inicias 477 conota o Decreto – Lei. Da mesma forma que a placa de identificação do ônibus com as iniciais AI – 05 denota somente as iniciais de uma placa que qualquer veículo deve ter, mas conota o ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estamos convencidos de que o discurso chárgico e sua respectiva análise nos possibilitam uma compreensão significativa e atemporal de qualquer realidade sócio – histórica.

Procuramos alinhar todas as informações de um período específico na ditadura, que foi de 1976 a 1978, quando Ernesto Geisel atuou como presidente.

No caso particular deste artigo, sabemos das suas limitações em razão da necessidade de apresentar resumidamente uma análise parcial e fragmentária da realidade em questão, qual seja o

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papel que as charges exerceram no jornal De Fato. No entanto, o fato de ser incompleta ou mesmo insuficiente para estabelecer qualquer conclusão definitiva, a análise aqui apresentada nos dá pistas bastante importantes para constatar qual foi a importância política do discurso chárgico como estratégia efetiva de luta contra as repressões da ditadura militar no Brasil.

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