A doutrina do Santo Ministério segundo as Confissões Luteranas

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H. J. A. Bouman

A Doutrina do MinistĂŠrio segundo Lutero e as ConfissĂľes Luteranas - 2019 -



H. J. A. Bouman

A Doutrina do Ministério Segundo Lutero e as Confissões Luteranas

Tradução: Gastão Thomé

Casa Publicadora Concórdia S. A. Rua São Pedro, 633 – Caixa Postal 916 Porto Alegre, RS



Introdução

Como se sabe, o século XIX despertou para um novo interesse no tocante às pesquisas em torno de Lutero e a um aprofundamento nas Confissões da Reforma do século XVI. Após os desvios da escolástica luterana, do pietismo, do racionalismo e do iluminismo, só poderia ser bem recebida essa volta, ainda que parcial, ao ponto de vista confessional de Lutero e da igreja luterana. Um incalculável acervo de investigações históricas, teológicas e eclesiológicas dos mais variados aspectos da época da Reforma, fez com que as tipografias da Alemanha tivessem suas mãos bastante ocupadas. Dentro em pouco, porém, notou-se um deslocamento da tônica. Agora já não interessava tanto um estudo direto de Lutero e das Confissões, mas, sim, uma interminável polêmica com aqueles que haviam escrito algo a respeito da teologia de Lutero e das Confissões. Ou, então, havia a preocupação de aproximar-se de Lutero e das Confissões com certos pressupostos, quando não preconceitos, o que levava muitas vezes a unilateralismos, desvirtuando assim o quadro real da época da Reforma e o reduzindo a simples caricatura. A investigação sobre Lutero e o luteranismo ainda hoje está em voga e, pode-se dizer, de forma mais acentuada e ampla do que nunca. Era inevitável que a doutrina da igreja, com todas as suas implicações, fornecesse um assunto tão fascinante para a pesquisa. Ouve-se dizer, por vezes, que nossa era é a era da igreja. Verdade é que cada século, cada geração, cada período da história, desde o primeiro advento de Cristo até a sua segunda vinda, é a era da igreja. E assim, visto por esse prisma, é que também se pode compreender bem todo o movimento da Reforma. No centro do interesse estava o Senhor

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Introdução

da igreja, os dons da graça com os quais a enriquece, a liberdade que conquistou para ela, e a boa-nova de cuja propagação a incumbiu. Assim, também, no movimento renovador do luteranismo no século XIX, muito houve, sem dúvida, a dizer com respeito à doutrina da igreja e do ministério, ambas intimamente relacionadas. Pensemos apenas num Hoefling, Loehe, Vilmar, Kliefoth, Walther, etc. No nosso século é suficiente mencionar teólogos como Elert, P. Brunner, W. Brunotte, Sommerlath, M. Doerne, H. Lieberg etc. O que causa espécie, mesmo num estudo comparativo pouco profundo dos muitos escritos sobre a doutrina da Reforma referente à igreja e ao ministério, é o fato de que se tenha chegado a ilações tão diametralmente opostas, sendo as fontes perquiridas as mesmas. Neles podemos constatar toda uma gama de concepções sobre o ministério da igreja, desde as mais inferiores até as de mais alto nível eclesiástico. De certa forma o próprio Lutero é responsável por esse estado de coisas. É que ele fez muitas afirmações sob circunstâncias as mais diversas e em face de muitos problemas fundamentalmente divergentes. Assim, cada vez que ele tratava de um problema, faziao de forma radical, sem perguntar se isto que ele dizia agora concordava com aquilo que havia afirmado alhures tratando de outra questão. Também as mui diversificadas fontes polêmicas nas quais Lutero feria ardorosas lutas pelos seus ideais reformistas, influenciavam fortemente sua momentânea maneira de falar. A presunção hierárquica e os desmandos da igreja papista, o desprezo dos meios de graça e do ofício por parte dos pietistas, e as necessidades práticas das novéis igrejas reformistas reclamavam,

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Introdução

cada qual, um tratamento e uma formulação especialmente adequados. Numa apreciação integral da doutrina de Lutero sobre a igreja e o ofício, coisa que não será possível realizar aqui, não se pode ignorar essa situação. E mesmo assim, apesar de todas as diferenças exteriores e aparentes contradições, Lutero, em princípio, se conserva coerente consigo mesmo. O homem que nas chagas de Cristo encontrara um Deus gracioso, para quem o evangelho da santificação pela fé havia aberto as portas do Paraíso, a quem a obra redentora do Salvador tirara o jugo de toda a escravidão do pecado, da morte, de Satanás, da lei e dos preceitos humanos, restaurando-lhe a maravilhosa liberdade de um filho de Deus — este homem jamais poderia deixar de julgar e decidir tudo que lhe acontecia, principalmente na igreja, do ponto de vista do evangelho. A felicidade e o bem-estar da igreja, a boa ordem, a paz de consciência e a promoção da fé e da santificação do homem do povo, a fermentação moral, pelo evangelho, de todas as classes sociais instituídas por Deus — em toda esta linha Lutero se manteve cem por cento coerente. Em seus escritos, a partir de 1519, as mesmas circunstâncias se repetem, ainda que com tônicas variadas. Nenhuma discussão com Lutero, que não tome em consideração este estado de coisas, poderá fazer justiça àquilo que, para ele, está em jogo. Antes de passarmos a palavra ao próprio Lutero, desejamos ainda apontar os escritos em que o ofício do ministério é o tema central ou, pelo menos, desempenha papel relevante. São os seguintes:

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Introdução 1.

A explanação de Lutero sobre a décima terceira tese relativa ao poder do Papa, 1519 (WA — edição de Weimar — 2:183 segs.; St. Louis — edição de São Luís — XVIII: 720 seg.); 2. Sobre o cativeiro babilônico da Igreja, 1520 (WA 6: 479 ss.; St. Louis, XIX, 108 ss.); 3. À nobreza cristã da nação alemã, 1520 (WA 6:404 ss.; St. Louis, X: 266 ss.); 4. Que uma assembleia ou congregação cristã tenha o direito e o poder de julgar toda doutrina e de chamar, instalar e demitir seus mestres: motivo e causa dados pelas Sagradas Escrituras, 1523 (WA 11: 408 ss.; St. L. X: 1538 ss.); 5. De instituendis ministris ecclesiae, dirigido ao conselho e comunidade da cidade de Praga, 1523 (WA 12: 161 ss.; St. L. X: 548 ss.); 6. Fiel admoestação aos cristãos de Erfurt para se acautelarem contra doutrinas falsas e estimarem e prezarem mestres honrados, 1527 (WA 23: 15 ss.; St. L. X: 1524 ss.); 7. Sermão exortando a que se conservem as crianças na escola, 1530 (WA 30 II: 517 ss.; St. L. X: 410 ss.); 8. Admoestação aos clérigos reunidos na Dieta de Augsburgo, 1530 (WA 30 II: 340 ss.; St. L. XVI: 945 ss.); 9. Sobre os bajuladores e pseudo-pregadores, 1532 (WA 30 III: 519 ss.; St. L. XIX: 1664 ss.); 10. Sobre a missa escusa e a ordenação de padres, 1533 (WA 38: 237 ss.; St. L. XIX: 1220 ss.); 11. Carta a um velho amigo por causa de seu livro sobre a missa escusa, 1534 (WA 38: 262 ss.; St. L. XIX: 1286 ss.); 12. Sobre os concílios e igrejas, 1539 (WA 50: 509 ss.; St. L. XVI: 2144 ss.). Os escritos, portanto, abrangem vinte anos da carreira do grande Reformador. A fim de facilitar as citações, referirei as passagens em conformidade com a edição Walch de St. Louis, após haverem sido confrontadas com as da edição de Weimar.

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1. A doutrina de Lutero sobre o ministério A. A relação entre o sacerdócio geral e o ministério

1. A doutrina de Lutero sobre o ministério A. A relação entre o sacerdócio geral e o ministério “Cristo é sacerdote, por isso todos os cristãos são sacerdotes... somos filhos, como ele; reis, como ele” (St. L. X: 1571). Esta frase notável, contida no escrito aos boêmios, exprime de modo sucinto tudo, enfim, o que se pode dizer do cristianismo. A relação íntima entre os crentes e Cristo é fundamental para todos os dons e objetivos na igreja. Este pensamento se repete constantemente. Assim no escrito à nobreza cristã: “Todos os cristãos são realmente sacerdotes, e não há diferença entre eles, com exceção unicamente do ofício, como Paulo diz em 1Co 12.12 que somos todos um só corpo, tendo, porém, cada membro a sua função própria, para que possa servir ao outro. Tudo isto sucede por possuirmos um batismo, um evangelho, uma fé, e por sermos cristãos iguais, Ef 4.5, pois o batismo, o evangelho e a fé, só eles nos fazem espirituais e povo de Cristo” (St. L. X: 270). Ênfase especial se empresta àquilo que o batismo realiza e opera. “... aquele que renasceu pelo batismo já pode

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1. A doutrina de Lutero sobre o ministério A. A relação entre o sacerdócio geral e o ministério

gloriar-se de ser consagrado sacerdote, bispo e papa” (X: 272). “Todos nós, quantos fomos batizados, de igual modo somos sacerdotes... Em 1Pe 2.9 está escrito: ‘Vós sois raça eleita, sacerdócio real’, e o reino sacerdotal. Por isso todos nós, quantos formos cristãos, somos sacerdotes” (St. L. XIX: 113, Do cativeiro babilônico). “...cada cristão é ungido e santificado com o óleo do Espírito Santo na alma e no corpo” (ib. 117). “Por isso é necessário que todo aquele que pretende ser cristão, esteja seguro e reflita bem no fato de que somos todos do mesmo modo sacerdotes, isto é, que temos igual poder junto à Palavra de Deus e a cada um dos sacramentos... (ib.). No escrito sobre à missa escusa e a ordenação de sacerdotes, podemos ler o seguinte: “Em contraposição, deves elevar bem alto o teu batismo, glorificando-o tanto quanto puderes... Pois nada vale, na cristandade, fazer sacerdotes ou sagrá-los, o carisma (digo eu) e o bispo não farão de nós sacerdotes... Não pretendemos ser sacerdotes fabricados, antes, pelo contrário, queremos ser e chamar-nos sacerdotes natos, e receber nosso sacerdócio por herança de nosso pai e mãe pelo nascimento, pois nosso pai é o verdadeiro presbítero e sumo-sacerdote, como está escrito no Salmo 110: ‘O Senhor jurou e não se arrependerá: tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque’. Isso ele também provou ao sacrificar-se por nós na cruz etc. O mesmo sacerdote ou bispo tem agora uma noiva, uma presbítera ou pastora, como se acha escrito em Jo 3.29: ‘Quem tem a noiva, este é o noivo.’ É deste noivo e noiva que nascemos pelo santo batismo, e assim nos tornamos verdadeiros sacerdotes na cristandade, por herança, santificados pelo seu

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sangue e consagrados pelo seu Espírito Santo.” Entretanto, “...o nome sacerdotes, presbítero ou pastor, não foi dado a nenhum apóstolo nem a qualquer outro dignitário, mas é designação exclusiva dos batizados ou cristãos, ou seja, um nome inato, herdado pelo batismo, pois nenhum de nós nasce do batismo como apóstolo, pregador, mestre ou vigário, mas nascemos, isto sim, todos nós, genuínos sacerdotes e pastores...” (XIX: 1259 seg.). As implicações que daí decorrem, na prática, com relação aos cultos públicos, são maravilhosamente descritas mais adiante no mesmo tratado: “Portanto, louvado seja Deus, que em nossas igrejas podemos mostrar a um cristão uma missa genuinamente cristã, segundo a ordem e instituição de Cristo, bem como em conformidade com o verdadeiro pensamento de Cristo e da igreja. Aí se apresenta, perante o altar, nosso pastor, bispo ou servo do ministério, devida e publicamente chamado, antes, porém, ordenado, ungido e nascido no batismo como sacerdote de Cristo, a despeito do carisma escuso... e nós, separadamente, os que queremos participar do Sacramento, nos ajoelhamos ao lado, atrás e em torno dele, homens, mulheres, jovens, velhos, patrão, servo, esposa, criada, pais, filhos, conforme Deus ali nos reúne, todos juntos, verdadeiros e santos “cossacerdotes”1, santificados pelo sangue de Cristo e ungidos e consagrados pelo Espírito Santo no batismo. E, nesta nossa inata e herdada honra e glória sacerdotal, estamos aí, ostentando (como Ap 4.4 diz) coroas de ouro sobre nossas cabeças, tendo nas mãos

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Sacerdote junto. Sacerdote conjuntamente.

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harpas e incensórios de ouro. E não permitimos que nosso pastor fale a liturgia de Cristo como se fosse para a sua pessoa, mas ele é a boca de todos nós, e todos nós a falamos com ele de coração e com a fé voltada ao Cordeiro de Deus, que aí está para nós e junto de nós e que, de acordo com a sua instituição, nos alimenta com seu corpo e sangue” (St. L. XIX: 1279 seg.). Com o dom é dada também a incumbência. “... ninguém pode negar que cada cristão possui a palavra de Deus e foi por Deus instruído e ungido como sacerdote... Contudo, sendo assim que eles têm a palavra de Deus e por ele foram ungidos, é certo que eles igualmente têm o dever de confessar, ensinar e propagar a mesma” (St. L. X: 1543). O escrito aos cristãos da Boêmia esclarece como os cristãos individualmente devem exercer sua vocação sacerdotal, principalmente nos casos de emergência. “... seria muito mais eficaz e salutar se cada pai de família, no recolhimento do seu lar, lesse o evangelho aos seus familiares. E porquanto a opinião e o uso unânimes do mundo inteiro dão aos leigos o direito de batizarem, seria também o meu conselho que os pais de família, caso lhes nascessem filhos, eles mesmos os batizassem e assim, em conformidade com a doutrina de Cristo, governassem a si mesmos e aos seus, ainda que, durante toda a sua vida, não lhes fosse possível receber o santo Sacramento do Altar (audeant vel possint)... debaixo desta tirania do Papa, ele (este pai de família) agiria de modo mais certo e eficaz se suspirasse e tivesse saudade do Sacramento do Altar, o qual ele ou não ousaria ou não seria capaz de receber (quam sumere vel non auderet vel non posset)” (St. L. X: 1557 seg.).

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Com tudo isto, porém, Lutero não pretende afirmar que os cristãos, como pessoas individuais, devam exercer o seu sacerdócio em isolamento uns dos outros ou, fazendo valer seu mandato de sacerdote, devam ou possam impô-lo a seus cossacerdotes. O sacerdócio espiritual é, ao contrário, solicitação e incumbência da comunidade. Como sacerdote, cada cristão tem, certamente, a competência de fazer tudo o que se relaciona com a palavra de Deus e, em caso de necessidade, tem também o direito de fazê-lo, mas, no meio de uma comunidade cristã, ele não possui, sem mais nem menos, a vocação para • exercer seu sacerdócio publicamente. Também este pensamento é enunciado reiteradamente. Já no tratado sobre o exílio babilônico, no qual Lutero ataca com veemência a doutrina romana do ministério, lemos que “não cabe a qualquer um fazer uso (da autoridade junto à palavra de Deus), a não ser que tenha autorização da comunidade ou um chamado dos superiores. Pois, o que pertence a todos em comum, ninguém tem o direito de arrogar-se em particular, até que para isso seja chamado” (XIX: 117). É certo que, pelo batismo, todos nós nascemos como sacerdotes e pastores, mas, no entanto, “escolhem-se destes sacerdotes nascidos aqueles que são chamados ou eleitos para os cargos que deverão exercer em lugar de todos nós” (XIX: 1260). Todo o poder na igreja reside na assembleia dos sacerdotes em comum, também o poder do chamado plenamente válido para o ministério. “... cuidaremos de obter pastores e pregadores procedentes do batismo e da palavra de Deus, sem o carisma deles, ordenados e confirmados por meio de nossa escolha e chamado (ib. 1267). Onde cristãos se reúnem em torno do evangelho, aí

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está a santa igreja cristã, aí também o poder do ministério. “... as chaves não foram dadas a nenhuma pessoa em particular..., mas unicamente à igreja; pois não temos certeza com respeito a qualquer pessoa se tem ou não a revelação do Pai. Com relação à igreja, porém, não deve haver incerteza, pois ela é o corpo de Cristo, uma carne, vivendo no mesmo espírito, como Cristo” (XVIII: 733). “Pois, se somos todos sacerdotes iguais, então ninguém deve salientar-se nem se atrever, sem nosso consentimento e escolha, a fazer aquilo a que todos nós temos a mesma autoridade. Por isso ninguém deve apossar-se daquilo que pertence a todos em comum, sem o desejo e a ordem da comunidade” (X: 272, “À nobreza cristã”). Assim devese refletir bem sobre a diferença entre o desempenho do ministério particular ou público. “Aqui deves considerar o cristão sob dois aspectos. Assim, se ele se encontrar numa localidade onde não há cristãos, ele não carece de nenhum outro chamado além deste de ser cristão, interiormente chamado e ungido por Deus; aí ele tem a obrigação de pregar e ensinar aos pagãos e ateus transviados o evangelho por imposição do amor fraternal, ainda que para isso não receba chamado algum. Assim também procedeu Santo Estêvão; da mesma forma Filipe... e também Apolo... Mas, se ele morar numa localidade onde vivem cristãos que, como ele, possuem os mesmos poderes e direitos, aí ele não deve salientar-se, mas esperar que o chamem e incumbam de pregar e ensinar em lugar e por ordem dos outros” (X: 1544 seg.). “... o ofício da palavra de Deus pertence a todos os cristãos em comum... este ofício (o de ministrar a Santa Ceia) é igualmente comum a todos os cristãos, assim como o sacerdócio... nós todos, quantos formos cristãos,

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possuímos o ofício das chaves em comum. Isso, porém, exige o direito da comunidade que um ou quantos lhe aprouver sejam eleitos e empossados para, em lugar e nome de todos aqueles que têm o mesmo direito, exercerem publicamente estes cargos” (X: 1572 seg.). Resumindo: Pelo batismo todos os cristãos nascem sacerdotes e são ungidos com o Espírito Santo. Como tais eles têm plena participação em tudo quanto Cristo doou aos seus. Nada que venha de fora pode conferir maior honra ou poder. Particularmente e em casos de necessidade, cada cristão, individualmente, poderá exercer as funções do evangelho. Todavia, eles não existem isoladamente, mas, como cristãos, estão unidos na comunhão da igreja e, em conjunto, devem empenhar-se no sentido de que o exercício público do ministério da Palavra seja confiado a determinadas pessoas. Destarte o ministério público se distingue do sacerdócio gerai, não pela competência, mas, sim, pelo chamado.

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1. A doutrina de Lutero sobre o ministério B. O ministério público

B. O ministério público A instituição do ministério público, porém, não dimana simplesmente da autoridade, do agrado ou deliberação da comunidade cristã. Antes, pelo contrário, o ministério se fundamenta sobre uma instituição e ordenação especial de Deus. A este fato Lutero atribui grande importância. “Pois isso devemos crer firmemente, que o batismo não é nosso, mas de Cristo; que o evangelho não é nosso, mas de Cristo; que o ministério da Palavra não é nosso, mas de Cristo; que o Sacramento do Altar não é nosso, mas de Cristo; que o Ofício das Chaves, ou o perdão e retenção dos pecados, não é nosso, mas de Cristo. Em suma, os ofícios e sacramentos não são nossos, mas de Cristo, pois foi ele quem instituiu tudo isto e o delegou à sua igreja para ser praticado e usado até à consumação dos séculos... Porque a nossa fé e sacramento não devem firmar-se na pessoa, seja ela piedosa ou má, consagrada ou não consagrada, chamada ou intrometida, o diabo ou sua mãe, mas sim em. Cristo, em sua palavra, em seu ministério, em sua ordem e determinação... nisto atenta, que ele exerce o ministério da Palavra, ministério que não é seu, mas de Cristo” (Sobre a missa escusa e a ordenação de sacerdotes, XIX: 1271 ss.). “Pois precisamos de bispos, pastores e pregadores que, de público e em particular, apresentam, oferecem e levam a efeito as quatro partes ou sagrados acima mencionados (Pregação, Batismo, Santa Ceia, Ofício das Chaves), fazendo-o da parte e em nome da igreja, mais ainda, porém, por causa da instituição de Cristo, conforme

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1. A doutrina de Lutero sobre o ministério B. O ministério público

São Paulo diz aos Efésios no capítulo quarto, versículo 11: Accepit dona in hominibus, ‘ele concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres’ etc. Pois a multidão toda não pode fazer isso, mas precisam encarregar um ou deixar que um disso se encarregue” (Sobre os concílios e igrejas, XVI: 2279). “...não é dele o que ele fala e faz, mas Cristo, teu Senhor, e o Espírito Santo fala e faz tudo, contanto que ele permaneça na maneira correta de ensinar e agir” (XVI: 2281). “Por isso é que a igreja, o povo santo de Deus, não possui simples palavra, sacramentos e ofícios externos, como o deus-mono, Satanás, também os possui e em maior abundância, mas os têm por determinação, instituição e ordenação de Deus, assim que ele mesmo (não um anjo) desta maneira quer atuar com o Espírito Santo. E a designação de ministério não caberá nem a anjo, nem a homens, nem à criatura alguma, mas à própria palavra de Deus, batismo, sacramento ou perdão” (ib. 2294). “Espero, pois, que os crentes e os que querem ser chamados de cristãos, compreendam bem que a classe clerical foi instituída e ordenada por Deus, não com ouro ou prata, mas com o precioso sangue e a amarga morte de seu único Filho, nosso Senhor Jesus Cristo” (Sermão sobre a necessidade de mandar as crianças à escola, X: 423). “Não que ele (um pregador público) o faça como homem, mas o seu cargo, que Deus para isso instituiu, o faz, e a palavra de Deus que ele ensina; pois ele é o instrumento para isso” (ib. 428). E, na verdade, é assim que Deus age por intermédio da comunidade cristã. A intervenção da eleição e do chamado para o ministério não acarreta, portanto, nenhuma diminuição ao caráter divino dele. Afirma-se

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dos verdadeiros pregadores que eles “receberam de Deus mesmo ou de homens, como substitutos de Deus, determinada vocação e mandato...” (Sobre os intrometidos e pregadores escusos, XX: 1669). Nós, de fato, devemos “crer firmemente que tudo quanto deste modo foi tratado e realizado através da eleição geral dos crentes, os quais conhecem o evangelho e o confessam, foi tratado e feito por Deus” (De instituendis ministris, X: 1593). Se o ofício da pregação foi instituído por Deus, então ele está inseparavelmente ligado à existência da Palavra, pois o que Deus realiza na terra, dentro da igreja e com a igreja, isso ele faz pela sua Palavra. “Onde, porém, a palavra de Deus existir pura e certa, ali tudo o deve ser, o reino de Deus, o reino de Cristo, o Espírito Santo, batismo, sacramento, ministério, ofício da pregação, fé, amor, cruz, vida e salvação, e tudo quanto pertencer à igreja” (XIX: 1267). “... isto é e deve ser nosso fundamento e rocha firme: onde o evangelho é pregado pura e retamente, aí deve existir uma igreja cristã; e quem disso duvidar, com mais razão poderá duvidar do evangelho, se é realmente a palavra de Deus. Onde, porém, existir uma igreja cristã, aí devem estar todos os sacramentos, Cristo mesmo e o seu Espírito Santo. Se nós agora constituíssemos uma igreja que tem as partes mais importantes e necessárias, como palavra de Deus, Cristo, Espírito Santo, fé, oração, batismo, sacramento, ofício das chaves, ministério, etc., e não tivesse também esta parte mais insignificante, qual seja, o poder e o direito de escolher alguns para o ministério, que nele devam servir e nos oferecer a Palavra, o batismo, o sacramento, o perdão (que aí já estão), que espécie de igreja seria isso?” (XIX: 1283). “... em qual

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quer parte onde a palavra de Deus é pregada e crida, aí está também a verdadeira fé, esta rocha inabalável; mas onde existe a fé, aí está a igreja; onde a igreja, aí está a noiva de Cristo; onde a noiva de Cristo, aí está tudo que pertence ao noivo. Assim a fé tem junto de si tudo quanto se segue à fé: as chaves, os sacramentos, o poder e tudo o mais” (XVIII: 765). “Daí podemos ter a certeza de que é impossível não haver cristãos onde a palavra de Deus está em prática, não importando o número deles nem o fato de serem eles pecaminosos e fracos ... porque ... não devendo e não podendo existir comunidade cristã sem a palavra de Deus, decorre, com bastante evidência do que foi dito anteriormente, que, apesar disso, eles carecem de mestres e pregadores que exercitem a Palavra” (X: 1540 seg.). “O primeiro, porém, e o mais sublime, de que tudo o mais depende, é ensinar a palavra de Deus” (X: 1572). “Como, porém, a igreja nasce da Palavra e por meio dela é nutrida, mantida e fortalecida, manifesto é que ela não pode prescindir da Palavra” (X: 1593). Não existe, portanto, nenhuma classe de pastores para si. “Daí se conclui que aquele que não prega a Palavra, para cujo mister a igreja cristã o chamou, de maneira alguma seja um sacerdote...” (XIX: 114). Uma vez que o ofício da pregação sem a pregação do evangelho é absurdo e inútil, Lutero efetivamente pode inclui-lo entre as notae ecclesiae. O ministério, mesmo na igreja romana, a despeito de toda deformação, é característica da igreja. “... aí Deus alcançou maravilhosamente que, apesar disso, permanecesse sob a arbitrariedade do Papa ... em quinto, o chamado e ordenação ao ministério, ofício da pregação ou cura d’almas, a fim de reter e perdoar os pecados... Onde tais artigos ainda

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permanecem, ali certamente permanecem a igreja e alguns santos” (XIX: 1249). No extenso tratado dos Concílios e Igrejas, Lutero se ocupa, num capítulo à parte, dos sinais pelos quais a igreja cristã pode ser reconhecida. Após ter dissertado sobre a palavra de Deus, o batismo, a santa ceia e o ofício das chaves, ele prossegue: “Em quinto lugar reconhece-se exteriormente a igreja pelo fato de que ela ordena ou chama seus servidores, ou que possui cargos que devem ser supridos. Pois necessitamos de bispos, pastores ou pregadores...” (XVI: 2276). E como, na opinião de Lutero, a ordenação papal não dedicava propriamente para o ministério da Palavra, por isso a considerava nula e sem valor. Disto ele se ocupa especialmente no tratado da missa escusa e ordenação de sacerdotes. Ali ele afirma “que, sob o papado, jamais um sacerdote é ordenado a pastor ou pregador, mas unicamente a pseudo-sacerdote... Que espécie de ordenação ou sacerdócio é este de que os cristãos humildes não têm batismo, sacramento, consolo, absolvição ou pregação, nem alguma cura d’alma ou ministério?” (XIX: 1248 seg.). E mais abaixo: “...assim como o insano horror papal aniquilou o batismo, o sacramento, a pregação do evangelho, da mesma forma ele destruiu, pelo seu vergonhoso carisma escuso, o ministério, e a vocatio, chamado e correta ordenação para o ofício da pregação ou ministério”, (XIX: 1266). “...nestes desventurados tempos derradeiros, os bispos e o falso regimento espiritual não são esses mestres (que praticam a Palavra)” (X: 1542). Como já foi mencionado, o pastor ingressa no seu cargo mediante um chamado regular por parte da comunidade cristã. Disso Lutero trata especialmente

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no seu escrito a respeito dos Intrometidos e pseudopregadores, escrito este dirigido contra a esquerda radical. “E antes de tudo é fácil desmascará-los, interrogando-os quanto à sua vocação. ... Donde vens? Quem te enviou? Quem te encarregou de pregar para mim? ... com o chamado, insistindo-se no mesmo, é possível intimidar até o próprio diabo. Um pastor bem pode enaltecer o fato de que ele exerce publicamente e com justiça o ofício da pregação, batismo, sacramento, cura d’almas, coisas que lhe foram ordenadas... Caso contrário, se não se desse a devida importância ao chamado e ordenação, insistindo neles, por fim não haveria mais igreja em parte alguma. Por isso coloque-se a questão nos seguintes termos: Ou provem o chamado e incumbência de pregar, ou então se abstenham de falar, e sejam proibidos de pregar. Pois trata-se de um ofício, sim, um ofício da pregação. Um ofício, porém, ninguém pode exercer sem ordenação e chamado” (XX: 1665 ss.). O quanto Lutero prezava seu próprio chamado ao magistério, é sabido. “Muitas vezes tenho dito, e digo ainda, que não trocaria meu doutorado pelos bens do mundo. Pois, no fim, certamente haveria de desanimar e desesperar nesta difícil tarefa que me pesa sobre os ombros, se a tivesse iniciado como um intrometido, sem chamado e ordenação. Agora, porém, Deus e todo mundo são testemunhas de que iniciei publicamente minha função de doutor e pregador e que a desempenhei até aqui com a graça e ajuda de Deus” (XX: 1670). Não se deve admitir “que num conselho espiritual, isto é, no ministério da pregação ou assento dos profetas, se intrometa um estranho, ou que um leigo, sem autorização, se atreva a pregar na sua igreja paroquial. Isto é encargo dos profetas. Eles devem atender à

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doutrina, sempre se adestrando e auxiliando fielmente uns aos outros, assim que, como diz São Paulo, tudo seja feito com decência e ordem. Como, no entanto, é possível que tudo se faça com decência e ordem, onde qualquer um interfere no cargo do outro indevidamente, e, na igreja, qualquer leigo se levanta para pregar?” (XX: 1673). De acordo com a doutrina romana, a ordenação sacerdotal era considerada um sacramento que, posto em prática, imprimia ao sacerdote um caráter indelével e lhe infundia poderes peculiares que um cristão comum não possuía, como, por exemplo, a faculdade de realizar a consubstanciação dos elementos. Contra esta concepção da ordenação, Lutero se insurge de modo impetuoso. A ordenação está intimamente relacionada com o chamado, até mesmo equiparada a ele. Ele diz que “o sacramento da ordenação não passa de um certo uso no sentido de chamar pregadores para a igreja... E se, por isso, o sacramento significa alguma coisa, nada mais pode ser do que a praxe de chamar alguém para o serviço da igreja” (XIX: 144.117). “E, desta forma, a consagração ou carisma está bastante distanciado da ordenação ou chamado para o ofício público e cristão da pregação e do ministério” (XIX: 1249). Quando os antepassados “chamavam alguém para o verdadeiro pastorado cristão ou cargo de cura d’almas, procuravam realçar tal chamado diante da comunidade de forma aparatosa, em contraste dos outros que não eram chamados, para que cada um tivesse a certeza quanto à pessoa que deveria exercer tal cargo com a incumbência de batizar, pregar, etc. Pois, no fundo, a consagração não pode ter outro sentido (a passar-se de maneira correta) que não o de um chamado ou

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ordenação para o ministério ou ofício da pregação” (XIX: 1258). Assim Lutero também denomina o “Ministerium, o ofício da palavra, e Vocationem, o chamado para o pastorado ou cura d’almas (o que eles chamam de consagração ou ordenação)” (ib. 1263). “...ordenar deve significar chamar e incumbir alguém do ministério, o qual tem poder e deve possuir Cristo e sua igreja, sem qualquer carisma e tonsura, onde quer que ela se encontre no mundo, assim como ela deve possuir a Palavra, batismo, sacramento, Espírito e fé” (ib. 1268). “... realizamos uma assembleia a fim de escolher, mediante eleição geral, um ou quantos forem necessários, contanto que sejam competentes. Em seguida eles são confiados à comunidade e confirmados diante dela por meio de oração com imposição das mãos. Depois disso é preciso reconhecê-los como verdadeiros bispos e servos da Palavra e considerá-los dignos de honra” (X: 1593). “Servos da Palavra” — assim Lutero denomina os ocupantes de cargos. Este caráter serviçal do ministério, ele o destaca muitas vezes em oposição às pretensões despóticas da hierarquia papal. “... Aqueles, porém, a quem chamamos sacerdotes, são servos, escolhidos dentre nós, os quais em nosso nome devem executar tudo” (XIX: 113). “... o ministério não pode ser efetivamente outra coisa do que o serviço da Palavra; da Palavra, repito, não da Lei, mas do Evangelho” (ib. 117). “...um pastor deve ser um servo da igreja, que administre os sacramentos e pregue, conforme as palavras de Cristo na santa ceia e 1Co 11 claramente o ordenam” (XIX: 1224). “...de modo que se tenha a certeza de que o sacerdote não faz uso das chaves por determinação própria, mas em consequência do ofício da igreja (pois ele é o servo da

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igreja), contudo não como se fossem propriedade sua ou tivessem sido entregues a ele” (XVIII: 735). De acordo com tal concepção, positivamente não pode haver diferenças hierárquicas entre os titulares de cargos. “Não existe outra primazia na igreja além do serviço da Palavra. E este será preservado intato, se os sacerdotes se submeterem em todos os assuntos temporais ao poder da espada, assim como foi com relação a Cristo, aos apóstolos e aos primeiros bispos... Daí deduzo o seguinte: Todo sacerdote é um bispo em caso de morte e necessidade, ele é um papa, possuindo o mais amplo poder sobre aquele que se confessa, conforme assegura a opinião generalizada de toda a igreja e se infere claramente das cartas de santo Cipriano. Logo, dimanando do direito divino, nem o papa é superior aos bispos, nem o bispo superior ao conselho dos anciãos (diretoria da comunidade)” (XVIII: 792.818). Lutero tem plena convicção “de que entre leigos, sacerdotes, príncipes, bispos e, como eles dizem, clérigos e seculares, não há realmente outra diferença a não ser quanto ao cargo ou trabalho, nunca, porém, quanto à posição” (X: 272). “Agora, creio eu, que de tudo isso se confirma que aqueles que presidem o povo nos sacramentos e na Palavra, não podiam nem deviam ser chamados sacerdotes. Se, no entanto, são chamados sacerdotes, isso se deu ou por influência de costumes pagãos ou por ser um resquício da lei do povo judeu. Em consequência disso, foi introduzido na igreja com graves prejuízos para ela. Em conformidade com os escritos evangélicos, porém, seria muito mais indicado denominá-los servos, diáconos, bispos, mordomos, os quais, por causa da sua idade, muitas vezes também são chamados presbíteros, isto é, anciãos... Isso ele faz

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para não erigir em parte alguma uma classe, nem ordem, nem direito ou certa dignidade, como os nossos querem; mas unicamente para enaltecer o ofício e o trabalho, deixando de lado o direito e dignidade do sacerdócio na comunidade” (X: 1591 seg.). Já foi mencionado que o ministério é inseparável da Palavra. Isso ocorre, não somente porque a Palavra institui a igreja e o ministério e lhes dá plenos poderes, mas também porque todas as funções do ministério se relacionam com a Palavra. “O ofício do sacerdote é pregar; se ele, porém, não pregar, então será um sacerdote tão irreal, como o é o retrato de uma pessoa em relação à mesma... O servir na palavra de Deus é que faz de alguém um sacerdote e bispo” (XIX: 116). “Nada deve interessar no ministério ou ofício da pregação além desta única obra, dar e oferecer o evangelho, que Cristo ordenou fosse pregado” (XIX: 1269). “Assim, pois, aqueles que agora são chamados clérigos ou sacerdotes, bispos ou papas, não estão separados dos outros cristãos pela sua posição ou dignidade, mas porque devem ministrar a palavra de Deus e os sacramentos, sendo este o seu trabalho e ofício” (X: 273). “Estas são, em síntese, todas as atribuições sacerdotais: ensinar, pregar e anunciar a palavra de Deus, batizar, abençoar ou celebrar o sacramento do altar, reter e perdoar pecados, interceder em favor dos outros, oferecer sacrifícios e julgar todas as outras doutrinas e espíritos. Isto são, na verdade, coisas poderosas e próprias de reis” (X: 1572). No que diz respeito às aptidões especiais que os portadores de cargos devem possuir em confronto com os outros, Lutero salienta aí vários aspectos. Se

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bem que todos os cristãos batizados sejam sacerdotes e, como tais, tenham plena participação no poder e dignidade sacerdotais, assim mesmo não é lícito que todos eles exerçam publicamente o ofício que lhes é comum. “Verdade é, porém, que nesta parte o Espírito Santo exclui mulheres, crianças e pessoas incapacitadas, escolhendo unicamente varões aptos para este mister (salvo casos de necessidade) ... Em resumo, deve ser um homem hábil e escolhido, para cujo cargo crianças, mulheres e outras pessoas não são capacitadas, embora o sejam para ouvir a palavra de Deus, para receber o batismo, o sacramento, a absolvição, fazendo assim parte dos cristãos verdadeiros e santos” (XVI: 2286). “... em o Novo Testamento o Espírito Santo ordena, por intermédio de São Paulo, que as mulheres se conservem caladas nas igrejas e comunidades, afirmando ser isso mandamento do Senhor, 1Co 14.34. No entanto ele sabia com certeza que o profeta Joel havia anunciado, em época anterior, que Deus queria derramar o seu Espírito também sobre as suas servas... Na comunidade ou igreja, porém, onde há o ofício da pregação, ali elas devem se manter caladas e absterse de pregar. Fora disso elas podem, em conjunto, orar, cantar, louvar e proferir o amém. E em casa podem ler e mutuamente instruir-se, admoestar-se e consolar-se, também explicar as Escrituras na medida que lhes for possível” (XX: 1673 seg.). Da máxima importância é a instrução. “Pois, se não granjearmos alunos, em breve não mais teremos pastores e pregadores, como é fácil de constatar. Pois a escola deve suprir a igreja das pessoas que possam ser destinadas a apóstolos, evangelistas e profetas, ou seja, pregadores, pastores e dirigentes” (XVI: 2300).

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“... 2Tm 2.2 ... Paulo só quer aqueles que sejam idôneos para instruírem a outros, e determina categoricamente que só a eles deve ser confiado o ministério da Palavra” (X: 1592). Com relação à direção da igreja, Lutero se declara disposto a respeitar a antiga estrutura episcopal, contanto que fosse expurgada de concepções falsas, contrárias ao evangelho. Ele não deseja ver desaprovada a ordenação bispai, a qual “durante tantos séculos foi resguardada, mas o que não posso permitir é que se inventem fantasias humanas, quando se trata de coisas divinas. E mesmo não se justifica prescrever alguma coisa como se fosse ordenada por Deus sem que, realmente seja ordenada por Deus... É suficiente que, por amor à concórdia, consintamos em seus costumes e pretensões. Não queremos, todavia, ser constrangidos a isso, como se fosse imprescindível à nossa salvação eterna o que não é imprescindível. Preterindo eles mesmos a imposição da sua tirania, então nós dispensaremos obediência espontânea ao seu ponto de vista, para que assim possamos viver em paz um ao lado do outro”. (XIX: 108.112, Do cativeiro babilônico). Também no seu ulterior tratado polêmico da missa escusa e ordenação de sacerdotes, de características acentuadamente anti-romanas, Lutero opina que “não queríamos violar o seu direito canônico e autoridade, mas caso não nos forçassem a aceitar cláusulas contrárias aos princípios cristãos, permitir de bom grado que nos ordenassem e dirigissem” (XIX: 1220). Aos clérigos reunidos na dieta imperial de Augsburgo, Lutero assim se dirige: “Nada mais pedimos, como também nunca temos pedido outra coisa, além de usarmos livremente o evangelho” (XVI: 983). Ele lhes faz a seguinte proposta: “... queremos

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executar o vosso ofício, pretendemos manter-nos a nós mesmos sem o vosso sustento, a vós desejamos ajudar que continueis como sois ... ajudai-vos, porém, igualmente a vós mesmos, e não penseis em vós, mas na gente humilde e na ditosa paz. Não há tempo a perder, e, de nossa parte, faremos o que estiver em nossas forças” (ib. 984). “... para que a gente ímpia veja que procuramos a paz de todo o coração, de maneira alguma me oponho a que eles supram paróquias e púlpitos com pessoas clericais, ajudando assim a administrar o evangelho” (ib. Cf. igualmente o conselho que Lutero dá aos boêmios quanto à jerarquia do bispado, X: 1598). Finalizando, queremos lembrar ainda o conceito de Lutero referente à grandeza e importância do ministério evangélico. “.. aquele a quem se confere o ofício da pregação, se confere o cargo mais sublime na cristandade” (X: 1549). “...visto que a ordenação sacerdotal ou consagração foi estabelecida primeiramente pelo testemunho das Escrituras e posteriormente pelo exemplo e praxe dos apóstolos, com o fito único de instituir para o povo servos da palavra de Deus, que administrem os mistérios de Deus — é óbvio que este cargo deve ser instituído pela santa ordenação como algo que na igreja supera a tudo, sendo o mais sublime e grandioso, aquele sobre o qual se alicerça toda a organização da igreja” (X: 1560). “Sendo líquido e certo que Deus mesmo estabeleceu o estado clerical e o instituiu com seu sangue e morte, é evidente que deseja vê-lo altamente considerado, não permitindo que ele pereça, mas seja conservado até o dia do juízo final. Pois o evangelho e a cristandade hão de subsistir até o dia derradeiro, conforme Cristo o afirma em Mt 28.20: ‘Eis que estou

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convosco todos os dias até à consumação do século’” (X: 425). A fim de encorajar os pais a dedicarem seus filhos ao serviço da igreja, Lutero assim se dirige ao pai ou à mãe: “Podes alegrar-te de coração e exultar, se compreendes que foste escolhido por Deus para, com os teus bens e o teu trabalho, educares um filho que venha a ser um pastor, pregador ou professor piedoso e cristão, e, desta maneira, educares para Deus mesmo um servo fiel. Sim ... um anjo de Deus, um salvador de muitos, um rei e príncipe no reino de Cristo e, no meio do povo de Deus, um mestre, uma luz do mundo. E a quem será possível referir toda honra e virtude que um verdadeiro e fiel pastor frui diante de Deus? Não existe nesta terra e nesta vida tesouro mais precioso, nem realidade mais nobre que um bom e fiel pastor ou pregador” (ib. 427).

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas

2. A Doutrina do Ministério nas Confissões Luteranas A transição entre a doutrina de Lutero e a doutrina das Confissões se processa sem grandes dificuldades. Na verdade, as confissões da igreja luterana revelam a expressão da amadurecida teologia do Reformador e da mais profunda convicção de fé de uma grande multidão de cristãos (ecclesiae apud nos), os quais, através do testemunho de Lutero manifestado em seus sermões, preleções e escritos, haviam sido levados ao pleno conhecimento do evangelho e a uma nova concepção da única igreja cristã. O que eles haviam reconhecido e aceito pela fé, isso então confessavam unanimemente (magno consensu) perante o mundo. No centro da teologia das Confissões, como na teologia de Lutero, encontra-se o Deus triúno em seu domínio absoluto e majestade, em seu in- sondável e indizível amor e graça. Deus solus operator, diz Lutero. Deus solus — e isto quer dizer Deus Revelatus — e isto quer dizer Jesus Cristo. Solus Christus abrange tudo o mais: Solus Christus significa sola gratia, significa sola fide, significa sola scriptura. A existência e a constituição da igreja, a sua missão, os seus meios e, também o seu ofício, — tudo está compreendido no Solus Christus. Contudo, isto não significa um unitarismo de Cristo (Christus-Unitarismus), mas toda a confissão luterana está, por assim dizer, entrelaçada à arque-eclesiástica confissão de fé trinitária (p. ex., A.

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas

C. I e F. C. XI, passim). A nota tônica de toda a confissão eminentemente trinitária, cristológica, soteriológica, eclesiológica e escatológica é, decisivamente, doxológica: Soli Deo Gloria! Dentro deste quadro está, pois, tudo o que as confissões luteranas “creem, ensinam e confessam”, também a sua doutrina da igreja e do ministério eclesiástico. Referem-se expressamente ao ofício da pregação os artigos V, XIV e XXVIII, em parte também os artigos XXIII, XXIV, XXV, XXVI e XXVII. Cumpre observar que só os dois primeiros artigos se encontram naquela parte da Augustana que trata da doutrina positiva, a que está em consonância com a Escritura e a antiga igreja, enquanto os artigos restantes figuram na parte que visa à supressão dos abusos. Naturalmente, nos artigos paralelos da Apologia, se entra em maiores detalhes no que se refere às declarações sobre o ofício da pregação. Mereceriam ainda ser mencionadas as breves referências de Lutero nos catecismos e nos artigos de Esmalcalde e, de modo especial, o tratado de Melâncton sobre o poder e autoridade do Papa. Além disso, encontram-se declarações espalhadas em todas as partes das Confissões. O material, poder-se-ia talvez classificá-lo sob os seguintes itens: A. Conexões em que se encontra o ofício da pregação; B. Origem e autoridade; C. Objetivo e função; D. Conteúdo da proclamação; E. Regimento da igreja; F. Comportamento diante do ofício da pregação; G. Qualidades.

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas A. Conexões

A. Conexões Já a estrutura da Confissão de Augsburgo é elucidativa quanto ao lugar que o ofício da pregação ocupa segundo o princípio evangélico. Para a salvação e redenção da humanidade, nascida e perdida em pecados, o Deus triúno providencia o começo, meios e fim através da humanação e perfeita obra redentora de seu unigênito Filho Jesus Cristo, declarando os pecadores justificados de graça, por amor de Cristo. E seremos contemplados com esta salvação, “se crermos que Cristo sofreu por nós e que, por amor de seu nome, nos é oferecido perdão dos pecados, justiça e vida eterna. Pois esta fé, Deus a quer revelar e imputar por justiça, como diz São Paulo aos Romanos, capítulos três e quatro”. A isto sucede imediatamente, como continuação direta do pensamento: “Para alcançar-se tal fé, Deus instituiu o ofício da pregação e deu o evangelho e os sacramentos, concedendo assim, por intermédio deles, o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando quer, naqueles que ouvem o evangelho, o qual ensina que temos um Deus gracioso não por nossos méritos próprios, mas por merecimento de Cristo, contanto que cremos nisso.” E, após isso, seguem as declarações sobre a nova obediência, a igreja e os sacramentos. Assim, à luz da doutrina luterana, o ofício da pregação está em relação com Cristo, com a justificação, a fé, o dom do Espírito Santo, a santificação, a comunhão dos santos e os meios pelos quais a igreja nasce, é nutrida, fortalecida e mantida. O ofício da pregação não é, pois, fim, mas unicamente meio; um meio de levar, pelo evangelho e

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas A. Conexões

os sacramentos, os pecadores indultados à fé salvífica, habilitando-os, por meio desta fé, à prática de boas obras. Com isto, praticamente, estaria dito tudo quanto de fundamental deve ser dito a respeito do ministério. Isto significa que todo e qualquer acréscimo é do domínio das coisas adiáforas, a respeito das quais pode haver, sem nenhum prejuízo, divergência de opiniões. Não se pense, porém, de maneira alguma, que todo o restante seja destituído de importância. A maneira como as Confissões tratam do ofício da pregação é um bom exemplo do tradicionalismo luterano na verdadeira acepção da palavra. A fim de explanar os contextos da doutrina do ministério, sejam ainda mencionadas algumas citações. C. A. VII: A igreja é “a comunhão de todos os fiéis, em cujo meio o evangelho é pregado em toda pureza e os santos sacramentos ministrados em conformidade com o evangelho.” C. A. XXVII, 5: “Assim os nossos ensinam que o poder das chaves ou dos bispos seja, de acordo com o evangelho, um poder e ordem de Deus para pregar o evangelho, perdoar e reter os pecados e ministrar os sacramentos.” Ap. IV, 190 (texto latino): “Os perigos, fadigas e pregações do apóstolo Paulo, de Atanásio, de Agostinho e de outros doutores da igreja, são obras santas, sacrifícios autênticos e agradáveis a Deus, lutas de Cristo, por meio das quais ele subjugou o diabo e o baniu da presença dos crentes.” Ap. XII, 103: “... o ofício da absolvição é benefício ou graça (beneficium est seu gratia), nunca, porém, juízo ou lei... Porque Deus é o juiz, e ele não ordenou aos apóstolos funções judicantes, mas a aplicação da graça... “ Ap. XXVIII, 12: “Verum nos de episcopo loquimur juxta evangelium (Falamos, porém, de verdadeiros bispos cristãos).”

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas A. Conexões

Tractatus 67: “Pois, onde estiver a igreja, aí estará sempre a incumbência de pregar o evangelho. Por isso as igrejas devem reservar-se o direito de exigir, eleger e ordenar servos da igreja.” CM (Catechismus Maior) II, 54: “Cremos, além disso, que temos, na cristandade, perdão dos pecados, por meio dos santos sacramentos e absolvição, bem como grande cópia de passagens consoladoras de todo o evangelho. Por isso deve constar aqui o que se pode pregar a respeito dos sacramentos e, em suma, o evangelho inteiro e todos os cargos da cristandade.” F. C., S. D. XI, 29: “... a palavra pela qual somos chamados, é uma função do Espírito, ‘que dá o Espírito’ ou pela qual o Espírito é dado, 2Co 3; e um ‘poder de Deus’ para a salvação, Rm 1.” S. D. XII, 30: É rejeitada a heresia Schwenckfeldiana, que nega “ser o culto divino, a palavra pregada e ouvida, um meio pelo qual Deus Espírito Santo ensina os homens, operando neles o conhecimento salvador de Cristo, conversão, arrependimento, fé e nova obediência”.

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas B. Origem e autoridade

B. Origem e autoridade Não obstante as Confissões acentuarem o caráter serviçal do ofício da pregação, elas oferecem uma compreensão assaz elevada dele. Ele não depende, de modo algum, do aprazimento do homem, nem tão pouco é a excrescência de uma evolução sociológica. O ofício da pregação é ofício divino. Disso dá-nos um testemunho claro a passagem basilar da CA V: “Para que se consiga tal fé, Deus instituiu o ofício da pregação...” O poder integral do ministro é “um poder e ordem de Deus... Pois, com esta ordem, Cristo enviou seus apóstolos. Jo 20...” (CA XXVIII, 5.6). Assim, de acordo com o direito divino, a função bispai é a de pregar o evangelho... sem autoridade humana, mas unicamente pela palavra de Deus” (XXVIII, 21). As ideias de Lutero acerca das diferentes classes sociais instituídas por Deus, se refletem nas palavras de Melâncton, CA XXVII, 13: Ele fala de “todas as outras classes sociais, determinadas por Deus, como a classe dos pastores e pregadores, a classe das autoridades, príncipes, nobres e similares, que, em obediência ao mandamento, palavra e ordem de Deus, servem à sua vocação...” Agir segundo a ordem de Deus, significa agir em lugar de Deus e de Cristo. “E, por isso, os sacerdotes e igrejas são constrangidos a obedecerem aos bispos, em virtude das palavras de Cristo em Lc 10: ‘Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim’” CA XXVIII, 22). Em nada influi a atitude pessoal do ministro. Sua fé individual nada acrescenta à força da Palavra, e sua incredulidade individual nada lhe tira. Assim lê-se dos indignos que eles “repraesentant

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas B. Origem e autoridade

Christi personam propter vocationem ecclesiae, non repraesentant proprias personas, ut testatur Christus: Qui vos audit, me audit. Cum, verbum Christi, cum sacramenta porrigunt, Christi vice et loco porrigunt”, (Ap. VII, 28). “‘Quem vos der ouvidos, ouve-me, a mim.’ Por isso não devemos prezar menos a palavra da absolvição, nem crer menos nela, do que se ouvíssemos, proveniente do céu, a clara voz de Deus” (Ap. XII, 40). O ofício é divino, porque divina é a palavra que define a esfera de ação e a autoridade do ofício. Com isto está também fixada a meta, além da qual a autorização divina não vai. “... o ofício da pregação Deus o instituiu e ordenou, possuindo o mesmo grandiosas promessas de Deus, Rm 1: ‘O evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê etc.’ ... a igreja tem a ordem de Deus no sentido de designar pregadores e diáconos. Sendo tudo isto altamente consolador, por sabermos que Deus quer pregar e operar por meio de seres humanos e daqueles que foram escolhidos por homens, é bom que se preze e enalteça devidamente tal escolha, mormente em oposição aos satânicos anabatistas, que blasfemam e desprezam tal eleição, juntamente com o ofício da pregação e a palavra corporal” (AP. XIII, 11 ss.). “...com as palavras ‘Quem vos der ouvidos, ouveme a mim’, deseja nosso Senhor Jesus Cristo confortar o mundo inteiro, como também se impunha que estivéssemos bem seguros de que a palavra de Deus corporal é poder e que ninguém deve procurar ou esperar do céu outra palavra. Por isso, esta palavra: Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim, não pode ser compreendida pela pragmática. Pois Cristo exige aí que eles ensinem de tal forma que, pela sua boca, se ouça o próprio Cristo. Não devem eles, pois, pregar a

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas B. Origem e autoridade

sua própria palavra, mas a palavra dele, sua voz e evangelho, para assim ouvir-se Cristo... se o ensino deles for contrário aos princípios cristãos e às Escrituras, não devem ser ouvidos” (Ap. XXVIII, 18 ss.). “... Cristo conferiu a seus discípulos somente poder espiritual, isto é, ele mandou-os pregar o evangelho, anunciar o perdão dos pecados, ministrar os sacramentos e excomungar os ímpios, sem força corporal, mas pela Palavra” (Tract. 31).

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas C. Fim e função

C. Fim e função O ofício da pregação é um “ministerium docenti evangelii et porrigendi sacramenta” (CA V, 1). Por estes meios deve o homem ser absolvido e consolado, fortalecido e encorajado a levar uma vida irrepreensível. O poder das chaves ou dos bispos “só se põe em prática e se realiza mediante o ensinamento e pregação da palavra de Deus e o benefício dos sacramentos em favor de muitos ou de alguns, conforme o chamado. Porque, com isto, não são outorgados bens ou coisas corporais, mas espirituais, como sejam, justiça eterna, Espírito Santo e vida bemaventurada. Estes bens não podem ser obtidos de outra forma que não por meio do ofício da pregação e administração dos santos sacramentos” (CA XXVIII, 8 seg.). “...sacerdotes vocantur non ad ulla sacrificia velut in lege pro populo facienda ... sed vocantur ad docendum evangelium et sacramenta porrigenda populo” (Ap. XIII, 9). Faz parte das funções do ministério, manter boa ordem na igreja, para que o evangelho possa expandir-se livremente. “... os bispos ou pastores façam por observar a disciplina, para que as coisas se passem convenientemente na igreja, não para com isso alcançarem a graça de Deus... ou constrangerem com isso as consciências” (CA XXVIII, 54). “Também se observam, neste particular, muitas cerimônias e tradições, ... que servem para manter a disciplina nas igrejas. Ao mesmo tempo, porém, instruir-se o povo no sentido de que esse culto divino externo não torna piedoso diante de Deus e que deve ser cumprido sem constrangimento da consciência...”

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas C. Fim e função

(CA XXVI, 40 s.). Particularmente substanciais são as declarações do Tractatus com respeito aos deveres profissionais do pastor. “Agora, de modo algum, está o ministério vinculado a um determinado lugar ou pessoa, como estava ligado à Lei o cargo dos levitas. Antes, pelo contrário, acha-se espalhado pelo mundo inteiro e se encontra em todo lugar onde Deus dá seus dons a apóstolos, profetas, pastores, professores etc. E nada acresce a pessoa a essa palavra e cargo, ordenados por Cristo, pregue e ensine-a quem quer que seja” (Tr. 26). “... o evangelho ordena àqueles que devem presidir às igrejas, que preguem o evangelho, perdoem pecados e ministrem os sacramentos, conferindo-lhes a jurisdictio para excluir aqueles que vivem em pecados manifestos, e readmitir e absolver os que prometem emendar-se” (60). “Neste ponto devem incluir-se as passagens de Cristo, que testificam terem as chaves sido entregues à igreja toda e não a algumas pessoas em particular, como diz o texto: ‘Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles’. Finalmente isto foi ainda confirmado pelas palavras de Pedro: ‘Vós sois o sacerdócio real’. Estas palavras se referem propriamente à igreja verdadeira, a qual, sendo a única a possuir o sacerdócio, deve possuir também a autoridade de eleger e ordenar servos da igreja.” (68.69). Para Lutero, os deveres do ministro estão contidos no 4º mandamento: “Temos, pois, três tipos de pais revelados neste mandamento: do sangue, no lar e no país. Além destes há ainda os pais espirituais, porém não como no regime papal, em que eles instam serem assim chamados, sem, contudo, exercerem qualquer função paterna. Pois, só estes são realmente

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas C. Fim e função

pais espirituais, os que nos governam e orientam pela palavra de Deus” (C. M. I, 158 s.).

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas D. Conteúdo da proclamação

D. Conteúdo da proclamação Já foi mencionado, repetidas vezes, que o ofício da pregação, do ponto de vista luterano, envolve o evangelho. Pois é o evangelho que vivifica e nutre a igreja. Só desta maneira podem os homens ser conduzidos à fé justificadora. Por isso lê-se: “... o evangelho ordena que se pratique, na igreja, a doutrina da fé” (CA XXVI, 20). Sendo a pregação do evangelho tarefa primordial do ministério, subentende-se que o pregador conheça o evangelho e saiba diferenciá-lo da lei. Sempre de novo são feitas acusações aos pregadores da igreja romana, tachando sua pregação de judaizante, filosófica e sinergista, uma pregação que confunde as consciências, escraviza e leva ao desespero. Contrastando com isso, a pregação da igreja da Reforma deve apresentar, como conteúdo, a palavra de conforto, a consolação graciosa e divina. “Agora, é certo que, para conseguir o verdadeiro arrependimento, não é suficiente pregar apenas a lei, visto que somente atemoriza as consciências. Mas é indispensável que se acrescente o evangelho, a saber, que os pecados são perdoados pelo amor de Cristo, sem merecimento de nossa parte, e que alcançamos remissão dos pecados mediante a fé (quia conscientiae numquam acquiescunt, nisi audiant vocem Dei, in qua clare promittitur remissio peccatorum” (Ap. IV, 257). Está claro que a lei também deve ser pregada. Não somente a justificação no seu sentido restrito, mas também a santificação pertence ao conteúdo da pregação luterana. No entanto, é necessário que se observe a devida proporção. A lei

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas D. Conteúdo da proclamação

não é uma grandeza autônoma, mas permanece opus alienum. “Em todas as glorificações das obras, devemos nos ater a estas normas: quod lex non fiat sine Christo... Por isso está fora de qualquer dúvida, quod doctrina legis non vult tollere e- vangelium, non vult tollere propitiatorem Christum” (Ap. IV, 269). A verdadeira pregação do evangelho encerra a pregação da lei. Assim se expressa Melâncton na Apologia XII, 29: “... haec est summa praedicationis evangelii, arguere peccata et offere remissionem peccatorum et justitiam propter Christum et Spiritum Sanctum et vitam aetemam, et ut renati beneficiamus. Sic complectitur summam evangelii Christus, cum ait Lucae ultimo: Praedicari in nomine meo poenitentiam et remissionem peccatorum inter omnes gentes.” “Estas são, pois, as duas obras mais notáveis pelas quais Deus age junto aos seus. Destas duas partes trata a Escritura inteira, primeiro, para amedrontar-nos o coração e mostrar-nos o pecado, por outro, para, de novo, nos consolar, animar e vivificar. Por essa razão é que a Escritura toda atenta para estas duas doutrinas. Uma é a lei, que revela nossa miséria e castiga nosso pecado. A outra doutrina é o evangelho ... a promessa de Deus, onde nos é assegurada a graça por intermédio de Cristo” (Ap. XII, 53). “... o culto divino mais grandioso, mais santo, mais necessário e mais elevado, aquele que Deus ordenou como o maior no primeiro e segundo mandamentos, é pregar a palavra de Deus, pois o ofício da pregação é o cargo mais sublime na igreja” (Ap. XV, 42). O evangelho, porém, sendo pregado integralmente, precisa ocupar-se do homem todo, de todos os aspectos da vida, de todos os deveres atinentes ao mundo material e espiritual. O quanto é rica de conteúdos a mensagem de um

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pregador evangélico, depreende-se da relação dos temas que são versados: “Em nossas igrejas, porém, os pregadores ensinam as seguintes partes essenciais: o verdadeiro arrependimento, o temor de Deus, a fé e o que ela seja, o conhecimento de Cristo, a justiça que provém da fé; de igual forma, a maneira como as consciências devem procurar consolo nas horas de angústia e tentação, como a fé deve exercitar-se através de toda sorte de tentações, o que seja a verdadeira oração e como se deve orar; igualmente, que um cristão deve confortar-se, certificado de que Deus, no céu, atenderá a seus rogos e súplicas, o que significa a bem-aventurada cruz, a obediência às autoridades; de igual modo, como cada um deve viver e comportar-se cristãmente no seu ofício, a obediência aos patrões e a toda ordem política e social; mais ainda, a diferença entre o reino espiritual de Cristo e os regimes e reinos deste mundo, o santo estado matrimonial e o dever de conduzi-lo cristãmente, a educação cristã dos filhos, a castidade, toda espécie de obras de caridade para com o próximo” (Ap. XV, 43). A doutrina da justificação não é, pois, contrária à solicitação da ética, antes a estimula. “Et verus ornatus est ecclesiarum doctrina pia, utilis et perspicua.” “... não há nada que conserve o povo mais ligado à igreja que a boa pregação” (Ap. XXIV, 50 s.). Como tudo na igreja, também o ofício da pregação está determinado cristológica e soteriologicamente. E isto significa, igualmente, que o ano eclesiástico, dentro de cujos limites o evangelho exerce suas funções, deve ser cristológico e soteriológico. E assim realmente é. Lutero afirma no Catecismo Maior, II, 32.33: “Dar, porém, especial destaque a todas estas diversas partes (particularidades do segundo Artigo),

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não cabe à breve pregação para as crianças, mas às extensas pregações que abrangem o ano inteiro, principalmente nas épocas estabelecidas para tratar de cada artigo detalhadamente: do nascimento, paixão, ressurreição, ascensão de Cristo etc. Com efeito, o evangelho todo que pregamos requer que se entenda bem este artigo do qual depende a nossa salvação e bem-aventurança e que é tão rico e profundo, que sempre encontramos nele o bastante para aprender.”

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas E. Regimento da igreja

E. Regimento da igreja Com respeito ao regimento da igreja, consta que ninguém deve ensinar, pregar ou ministrar os sacramentos publicamente na igreja, sem chamado regular” (CA XIV). Rite vocatus. Nenhum esclarecimento suplementar é dado quanto à compreensão desta frase. O conteúdo de um chamado legal deve ser elucidado com o fato de que Cristo deu à sua igreja, à comunhão dos crentes, todo o poder de que ela necessita para o cumprimento de sua missão. Fica a critério da igreja como constituir-se exteriormente e como providenciar que a Palavra e os sacramentos sejam ministrados. Enquanto não contrariar a palavra de Deus e o livre curso do evangelho, é e permanece um adiáforo o porquê do rite vocatus, seja pela eleição de uma comunidade local, seja pela determinação de um regime eclesiástico episcopal de posição superior, seja pela ação do conselho municipal ou do soberano de um país como praecipuum membrum ecclesiae. Tudo o que se revelou bom e salutar no transcurso da história eclesiástica, isto os luteranos conservarão de bom grado, contanto que não se constranja as consciências com coisas que Deus não ordenou. “Quanto às disciplinas da igreja estabelecidas por homens, recomenda-se sejam observadas aquelas que podem ser cumpridas sem cometer pecado e que contribuem para a paz e boa ordem na igreja, como certas solenidades, festas e outras mais. Cumpre, porém, esclarecer que não se deve com isso constranger as consciências, como se tais coisas fossem necessárias

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas E. Regimento da igreja

para a salvação eterna” (Ap. XV, 1 s.). “..., mas as praxes mais antigas da igreja..., ideadas para manter boa ordem, união e paz etc., estas observamos prazerosamente” (Ap. XV, 38). Não é, de modo algum, intenção da Reforma extinguir a hierarquia eclesiástica ou sequer diminuí-la. A Reforma pretende ser muito mais profunda e radical, adiantando-se da forma exterior para a essência da questão, a bem dizer, que a igreja, seu ofício, seu regimento, tudo seja governado da parte do evangelho. Sempre de novo se acentua esta questão. “Os bispos, porém, conseguiriam facilmente a submissão, se não insistissem na observância daqueles preceitos que não podem ser cumpridos sem pecado. Nossas igrejas não desejam que os bispos restabeleçam a paz e união em detrimento de sua honra e dignidade... Não se cogita agora de como privar os bispos do seu poder, mas roga-se e espera-se que não queiram forçar as consciências ao pecado (hoc unum petitur, ut patiantur evangelium pure doceri)” (CA XXVIII, 69. 71. 77.). “... estamos realmente dispostos a ajudar a manter a antiga disciplina eclesiástica e o regimento dos bispos, chamado de canonicam politiam, caso os bispos queiram tolerar nossa doutrina e aceitar nossos pastores” (Ap. XIV, 1). O texto latino acrescenta ainda que “desejamos reafirmar aqui, mais uma vez, que gostaríamos de conservar a ordem eclesiástica e canônica, caso os bispos cessassem de enfurecer-se contra nossas igrejas” (XXVIII, 5). Nos Artigos de Esmalcalde afirma Lutero, falando do regime papal, que “a igreja só poderá ser bem governada e preservada, se vivermos todos submissos a um chefe, Jesus Cristo, e os bispos, todos iguais segundo o cargo (ainda que desiguais segundo os

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dons), se mantiverem diligentemente unidos em uniformidade de doutrina, fé, sacramentos, orações e obras de caridade” (A. S. IV, 9). Por outro, no artigo da ordenação e vocação, lê-se: “Se os bispos tencionassem ser bispos verdadeiros e quisessem ocupar-se da igreja e do evangelho, então poder-se-ia permitir, por causa do amor e da concórdia, jamais por constrangimento, que eles ordenassem e confirmassem a nós e a nossos pregadores, contanto que menosprezassem toda máscara e fantasia de vida e ostentação contrárias aos princípios cristãos” (S. A. III, x, 1). As Confissões nada sabem de diferenças hierárquicas. Assim afirma Melâncton no Tractatus: O ofício das chaves pertence “simultaneamente a todos... que dirigem as igrejas, sejam eles pastores ou presbíteros ou bispos” (Tr. 61). Nada, pois, confere uma ordenação bispai que já não exista através da ação da comunidade. “... a igreja verdadeira, ... sendo a única detentora do sacerdócio, deve possuir também o poder de eleger e ordenar servos da igreja ... e, naqueles tempos, a ordenação nada mais tem sido que tal confirmação” (Tr. 70.71).

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas F. Comportamento para com o ofício da pregação

F. Comportamento para com o ofício da pregação O comportamento dos ouvintes para com o ofício da pregação é o reverso daquilo que o ministério deve ser. Também aqui devia refletir-se a compreensão do ministério nos moldes do evangelho. Os ministros não são detentores do poder temporal nem tiranos autocráticos, que tenham o direito de exigir obediência incondicional de seus subordinados. Antes, pelo contrário, são eles servos da Palavra, cuja honra e dignidade estão perfeitamente relacionadas com o evangelho. Sendo o ofício da pregação uma instituição divina que se ocupa com a palavra de Deus, pertencelhe por direito honra e reconhecimento. Tanto do ofício espiritual como do temporal é dito “que, por amor aos mandamentos de Deus, deve-se ter ambos os regimes e poderes em alta consideração, estimando-os devotadamente como as duas dádivas mais sublimes na terra” (AC XXVIII, 4). O ofício evangélico é um ofício da graça e do perdão. Por essa razão deve também o comportamento para com este ofício se caracterizar pelo perdão e pela tolerância. Facilmente aparecem discórdias, quando o povo se apressa a criticar e excogitar tudo na conduta e vida dos bispos e pregadores, ou quando não tardam a aborrecer-se dos pregadores, talvez por causa de uma pequena imperfeição. Disso resultam graves males. Em consequência desse descontentamento, vai-se logo à procura de outros professores e de outros pregadores. Do outro lado, conserva-se a perfeição e a concórdia,

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas F. Comportamento para com o ofício da pregação

isto é, a igreja continua unida e inteira, se os fortes tolerarem e ampararem aos fracos, se o povo também tiver paciência com seus pregadores...’' (Ap. IV, 233). “...no que tange à própria vida dos sacerdotes, Cristo nos admoestou nas parábolas que falam da igreja, que não promovêssemos cismas ou separações, mesmo que os sacerdotes ou o povo não vivam sempre uma vida pura e cristã, como aconteceu com os donatistas” (Ap. VII, 49). A despeito de suas fraquezas humanas, os pregadores devem ser estimados e amados por causa do seu ofício. Pois eles são, conforme diz Lutero na explanação do 4º mandamento, no Catecismo Maior, “pais espirituais, que nos governam e dirigem pela palavra de Deus... Sendo pais, cabe-lhes também honra, mais que a todos os outros... Contudo, importa incutir também na mentalidade do povo essa verdade — que aqueles que querem ser chamados cristãos, assumem perante Deus o compromisso de considerarem os que cuidam das suas almas, ‘merecedores de dobrada honra’, proporcionando-lhes o bem e sustentando-os. Deus então te dará também o suficiente, para que não sofras privação alguma. Mas aí cada qual se fecha e reluta. Todos temem que o ventre venha a morrer de inanição. E não podemos sustentar agora um pregador íntegro, quando antes tínhamos de nutrir dez ventres cevados. Diante disso também merecemos que Deus retire de nós a sua Palavra e bênção, permitindo que se levantem de novo pregadores da mentira, que nos conduzam a Satanás, sugando-nos, além disso, o suor e o sangue” (CM I, 160 ss.). “Por isso devíamos acostumar-nos, desde a idade moça, a pedir cada um pelas suas necessidades, quando se lhe deparam desgostos e dificuldades e, também, pelas das outras pessoas que o cercam,

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas F. Comportamento para com o ofício da pregação

como o pregador, as autoridades, os vizinhos, a criadagem...” (CM III, 28).

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas G. Qualidades

G. Qualidades Para finalizar, apresento ainda uma série de citações extraídas das Confissões, a fim de indicar quais as aptidões e virtudes que a igreja luterana deseja ver em seus obreiros. Das citações se conclui que o ofício da pregação da igreja é algo sumamente sério, muito especialmente do ponto de vista evangélico, visto tratar-se de bens espirituais, eternos, divinos, e do bem-estar daqueles pelos quais Cristo morreu. Assiste, pois, à igreja todo o direito de exigir dos seus obreiros, pregadores e professores, o melhor dos seus esforços. Deixe-se de lado aí toda leviandade e egoísmo. O que a igreja quer são “teólogos tementes de Deus, pacíficos e doutos” (Prefácio, S. 6). Eles devem estar bem fundamentados na doutrina e nas Confissões da igreja. Por isso os príncipes e corporações dos países evangélicos tomaram providências no sentido de que a Confissão “fosse lida, artigo por artigo, indistintamente a todos os teólogos, obreiros da igreja e escola de nossos países e territórios, lembrando-lhes as doutrinas nela contidas e admoestando-os a meditarem séria e diligentemente nas mesmas” (Prefácio, pág. 8). Havendo homens que querem exercer o ofício da pregação na igreja luterana, então devem estar dispostos a submeter-se irrestritamente à doutrina luterana, esforçando-se por conservá-la também para o futuro. Por esta razão, as igrejas e escolas são seriamente admoestadas a que “principalmente os jovens que se preparam para o serviço da igreja e o santo ministério, nela (a Confissão) sejam instruídos com toda a fidelidade e

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diligência, a fim de que, também entre nossos descendentes, a doutrina pura e a confissão da fé sejam mantidas e propagadas, com o auxílio e assistência do Espírito Santo, até o glorioso porvir do nosso único Senhor e Salvador Jesus Cristo” (Prefácio, pág. 13). “Pois, se quisermos ter pessoas de fino trato e capacitadas ao desempenho, tanto de funções civis quanto eclesiásticas, então, efetivamente, não devemos poupar esforços, nem cuidados, nem gastos na formação de nossos filhos, ensinando e educando-os para poderem servir a Deus e aos homens...” (CM I, 172). A casa pastoral evangélica, juntamente com a família do pastor, sem dúvida, fazem parte daquelas coisas que, pela Reforma, vieram dar outro cunho ao ofício da pregação. A imposição do celibato aos sacerdotes é doutrina satânica e, como tal, deve ser rejeitada. Pelo seu ingresso no ministério, os pregadores não renunciam à sua natureza de seres humanos, conforme explica Lutero nos Artigos de Esmalcalde: “Tão pouco como a nós ou a eles foi dado o poder de efetuar a mutação do sexo, transformando um varão em varoa ou vice-versa, ou transformando ambos num ser neutro, tão pouco tinham eles o direito de divorciar tais criaturas de Deus ou proibir que vivessem honesta e maritalmente juntos. Por isso não queremos concordar com o seu inoportuno celibato, nem nos submeter a ele, mas insistimos no livre uso do matrimônio, assim como Deus o ordenou e instituiu ...” (Art. de Esmal. III, xi, 2). E Melâncton, na Augustana, faz a seguinte pergunta: “De que forma pode o estado matrimonial dos sacerdotes ou clérigos ser prejudicial às igrejas públicas, em especial o dos pastores e de outros que devem servir à igreja?” (CA XXIII, 16).

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas G. Qualidades

Mesmo no matrimônio, o pastor consciencioso estará disposto a impor-se certas renúncias. “Homens de caráter íntegro, saberão, por certo, observar contenção no uso do matrimônio, mormente se estiverem ocupados com seus deveres de ofício. Estes, muitas vezes, lhes causam tantas aflições, que não sobra tempo para quaisquer pensamentos domésticos... Eles sabem igualmente que, de vez em quando, é preciso isolar-se completamente, a fim de ter tempo para a oração...” (Ap. XXIII, 43). O que deve caracterizar o pastor de um modo especial, é o zelo pelas almas a ele confiadas. Ele deve falar e agir de tal modo, que os menos instruídos, os inexperientes e simples possam compreendê-lo, sem se sentirem perturbados na sua presença. Por isso ele deve ter o cuidado de não se blasonar diante deles com sua erudição, de não desengavetar diante deles toda sorte de problemas. E é justamente isso que Lutero se propôs encarecer a todos os obreiros da igreja no prefácio do Catecismo Menor. “Peço-vos, pois, por amor de Deus, a todos vós, meus senhores e irmãos, que sois pastores e pregadores, vos dediqueis de coração ao vosso ofício, compadecendo-vos do povo que vos é confiado... Quando, no entanto, pregares aos doutos e ajuizados, aí podes provar a tua arte ao máximo, expondo estas partes com frases requintadas e primorosamente torneadas” (6.9). O pregador deve saber que sua atividade profissional, por mais fiel e conscienciosa que seja, é por muitos incompreendida, desprezada e até escarnecida. “Pois onde houver pregadores e cristãos piedosos, estes são tidos perante o mundo como hereges e apóstatas, sim, como malfeitores revoltados e desesperados. Além disso, a Palavra de Deus é

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2. A doutrina do ministério nas Confissões Luteranas G. Qualidades

ainda vergonhosa e virulentamente perseguida, blasfemada, injuriada, desvirtuada e falsamente interpretada” (CM I, 262). Isto requer alegria verdadeira e inquebrantável ânimo de fé. O pregador não pode ser covarde. Com um destemido espírito testemunhador, deve ele, na qualidade de guia espiritual da comunidade cristã, resistir a todas as dificuldades e perigos. “Também cremos, ensinamos e confessamos que, no tempo de dar testemunho, quando os inimigos da palavra de Deus desejam suprimir a doutrina pura do evangelho, é dever de toda a comunidade de Deus, sim, de cada cristão e, muito especialmente, dos servos da Palavra, como dirigentes da comunidade cristã, de confessarem, pelo poder da palavra de Deus, livre e publicamente, a doutrina e tudo o que se refere à religião, não apenas com palavras, mas também com o exemplo e a ação...” (S. D. X, 10). Sirva-nos de fecho oportuno o que Lutero disse no fim de seu prefácio ao Catecismo Menor: “Não perde, pois, isto de vista, pastor e pregador. Nosso ofício tornou-se agora algo diferente do que era sob a tirania papal, algo que agora é sério e salutar. Mas isso implica em muita fadiga e trabalho, perigos e tentações, sendo pouca a recompensa e gratidão no mundo. Cristo mesmo, no entanto, quer ser o nosso galardão, caso exercermos nosso ofício com fidelidade. A tanto nos ajude o pai de todas as misericórdias, a quem seja louvor e gratidão por toda a eternidade, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém” (CM, Prefácio, 26 e seg.).

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