Em Tese, v. 21, n. 3 (2015)

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Apoio

PÓS-LIT CAPES PROEX /UFMG


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

EDITORES DA REVISTA EM TESE

Reitor: Prof. Jaime Arturo Ramírez Vice-Reitora: Profa. Sandra Regina Goulart Almeida

Aline Sobreira de Oliveira Felipe Oliveira de Paula Gustavo Cerqueira Guimarães João Alves Rocha Neto Josué Borges de Araújo Godinho Rafael Castro Rafael Otávio Fares

FACULDADE DE LETRAS DA UFMG

Diretora: Profa. Graciela Inés Ravetti de Gómez Vice-Diretor: Prof. Rui Rothe-Neves PÓS-LIT – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

Coordenadora: Profa. Myriam Corrêa de Araújo Ávila Subcoordenadora: Profa. Elisa Maria Amorim Vieira COLEGIADO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

Docentes Titulares: Sabrina Sedlmayer Pinto, Luiz Fernando Ferreira Sá, Márcia Maria Valle Arbex, Maria Cecília Bruzzi Boechat, Matheus Trevizam Docentes Suplentes: Ram Avraham Mandil, Marcel de Lima Santos, Claudia Campos Soares, Teodoro Rennó Assunção Discentes Titulares: Alysson Quirino Siffert e Gabriela Figueiredo Azevedo Discentes Suplentes: Amanda Pavani Fernandes e Ana Paula Raposo Secretária: Letícia Magalhães Munaier Teixeira

EDITORES DE SEÇÃO DOSSIÊ – PAISAGEM: SUBSTÂNCIA LENHOSA DA LÍNGUA

João Alves Rocha Neto TEORIA DA LITERATURA E ENSINO DE LITERATURA

Josué Borges de Araújo Godinho CRÍTICA LITERÁRIA, OUTRAS ARTES E MÍDIAS

Felipe Oliveira de Paula TRADUÇÃO E EDIÇÃO

Rafael Castro EM TESE

Aline Sobreira de Oliveira ENTREVISTAS

Gustavo Cerqueira Guimarães RESENHAS

Gustavo Cerqueira Guimarães POÉTICAS

João Alves Rocha Neto Rafael Otávio Fares CONSELHO EDITORIAL

Adélcio Sousa Cruz – UFV Ana Paula Arnaut – Universidade de Coimbra Andréa Sirihal Werkema – UERJ


Antônio Marcos Pereira – UFBA Antonio Marcos Vieira Sanseverino – UFRGS Cynthia Santos Barra – UNIR Elcio Loureiro Cornelsen – UFMG Emerson da Cruz Inácio – USP Emílio Carlos Roscoe Maciel – UFOP Ernani de Castro Maletta – UFMG Graciela Ravetti – UFMG Georg Wink – Freie Universität Berlin Heike Muranyi – Deutscher Akademischer Austauschdienst Jacyntho Lins Brandão – UFMG João Nilson Pereira de Alencar – UFSC Joelma Santana Siqueira – UFV Jorge Alves Santana – UFG Julio Jeha – UFMG Leda Maria Martins – UFMG Lucia Castello Branco – UFMG Luiz Morando – UFMG/Uni-BH Luiz Nazário – UFMG Marcelino Rodrigues da Silva – UFMG Marcos Antônio Alexandre – UFMG Marcos Rogério Cordeiro Fernandes – UFMG Maria Cristina Batalha – UERJ Maria Elisa Rodrigues Moreira – UninCor Mônica Medeiros Ribeiro – UFMG Nina Caetano – UFOP Ozíris Borges Filho – UFTM Paulo Fonseca Andrade – UFU Pedro Dolabela Chagas – UFPR Roberto Corrêa dos Santos – UERJ Sandra Regina Goulart Almeida – UFMG Sandro Ornellas – UFBA Tatiana da Silva Pequeno – UFF Tereza Virginia Ribeiro Barbosa – UFMG Vânia Maria Baeta Andrade – UFMG

PARECERISTAS AD HOC DESTE VOLUME

Cleber Araújo Cabral – UFMG/CEFET-MG Gustavo Cerqueira Guimarães – UFMG Janaina Patrícia Rocha de Paula – UFMG João Guilherme Dayrell – UFMG Luiz Henrique Carvalho Penido – UFMG Maria Rita Drumond Viana – UFSC Rafael Lovisi Prado – UFMG PROJETO GRÁFICO

Priscila Justina | Pi Laboratório Editorial Eduardo Soares CRIAÇÃO DE CAPA E DIAGRAMAÇÃO

Priscila Justina | Pi Laboratório Editorial IMAGENS DESTE NÚMERO

Leonora Weissmann REVISÃO

A revisão dos textos deste número foi de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.


SUMÁRIO

Apresentação Dossiê

APRESENTAÇÃO UM NÓ DE SANGUE NA GARGANTA: A EXPERIÊNCIA DO POEMA EM HERBERTO HELDER

Erick Gontijo Costa PAISAGEM SENSÍVEL: A PERCEPÇÃO DO ESPAÇO URBANO NA OBRA DE SAMUEL RAWET

Michel Mingote Ferreira de Azara

Teoria da Literatura e Ensino de Literatura

O RELEVO DE ÁGUA VIVA: CLARICE LISPECTOR E A ESCRITA DA PAISAGEM

Crítica Literária, outras Artes e Mídias

EU TE DOU A MINHA PALAVRA (A MATÉRIA NÃO MENTE)

Tatiane Costa Souza

Maraíza Labanca Correia

Edição e Tradução Em Tese

IMAGEM-PAISAGEM: A DESCRIÇÃO PICTURAL EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM

Daiane Carneiro Pimentel ÉTICA DA PAISAGEM

Entrevistas Resenhas Poéticas

João Rocha ALVORADA LÁ NO MORRO, QUE BELEZA! HERMÍNIO, A PAISAGEM E AS CORES DO SAMBA

Francisco Antonio Romanelli

EXPERIMENTAR CON LA LITERATURA DESDE UN PENSAMIENTO OTRO

Cesar Augusto López A SEMIOSFERA DO SEXO EM IRRÉVERSIBLE

Paulo Gerson Rodrigues Stefanello O NAVEGANTE POUND, EZRA. ‘THE SEAFARER’, EARLY POEMS, DOVER PUBLICATIONS, NEW YORK, 1996 (ISBN: 0-486-28745-9)

Ezra Pound (Tradução: Marcelo Fonseca Ribeiro de Oliveira) A RELAÇÃO ENTRE OS MANNON E AS FIGURAS DOS COROS EM ELECTRA ENLUTADA (1931), DE EUGENE O’NEILL: EXEMPLARIDADE, INTERTEXTO E TRAGICIDADE

Pedro Leites Jr. NOVA YORK SELVAGEM: IMAGENS DA CIDADE EM MAGGIE: A GIRL OF THE STREETS, DE STEPHEN CRANE

Adriana Carvalho Conde PARTILHA DA APORIA: DIÁLOGOS COM ALBERTO PUCHEU

Alberto Pucheu (Entrevista por: Cleber Araújo Cabral e Rafael Lovisi Prado)


SUMÁRIO

A PAISAGEM ACRE ÁCIDA AZEDA DE MARCELO DOLABELA

Mário Alex Rosa

Apresentação

NO ABISMO DAS CIDADES: HOSANA NA SARJETA, DE MARCELO MIRISOLA

Valdemar Valente Junior IMAGEM

Dossiê Teoria da Literatura e Ensino de Literatura

PINTURA A FORA

Leonora Weissmann PAISAGENS URBANAS QUASE SEM PAISAGENS

Alberto Pucheu

Crítica Literária, outras Artes e Mídias

FOGLIA E PAESAGGIO DEL CERVELLO

Edição e Tradução

VÍDEO

Em Tese Entrevistas Resenhas Poéticas

Giuseppe Penone ARRANJO EM BUSCA DE UM PARADIGMA PARA A RELAÇÃO ENTRE O CRÍTICO LITERÁRIO E O POETA (2014) - 7:44

Alberto Pucheu (texto) Gabriela Capper (arranjo audiovisual) TEXTO

POEMAS DE ALBERTO PUCHEU

Alberto Pucheu


APRESENTAÇÃO

O v. 21, n. 3, da revista Em Tese traz como tema o dossiê PAISAGEM: SUBSTÂNCIA LENHOSA DA LÍNGUA. Desde o Iluminismo, a paisagem é vista, comumente, como uma construção humana enquadrada no campo das representações. Nessa direção, é a partir da capacidade do homem de representar a paisagem por palavras, sons e imagens que ela passa a existir, ou seja, somente quando é delimitada no campo do humano pode-se falar dela. Nesse contexto, ela nos deu uma nova dimensão espacial, a perspectiva, oferecendo-nos o abismo e o horizonte, por exemplo. Mas e se caminharmos em outra direção? Se não concebermos a paisagem como uma construção do homem, mas como o que sempre esteve lá a nos espreitar como uma força, uma potência, apontando-nos justamente o que a representação não encerra? Se pensarmos, com Agamben, que o limite da língua não está, necessariamente, no silêncio, no indizível, mas em sua “substância lenhosa”, para onde nos dirigiríamos? E se

tomássemos a perspectiva como uma orientação não somente espacial, mas também ontológica, na qual todo habitante do planeta teria um modo de vida a ser compartilhado, vislumbrando uma noção de identidade mais aberta, menos binária, em que se conceberia o outro não mais como um espelho, mas como um destino, como escreveu Viveiros de Castro sobre os Tupinambá? Para onde caminhariam a literatura e a crítica literária? Essas são algumas questões suscitadas por este dossiê da revista Em Tese. Convidamos todos os escritores, poetas, artistas e pesquisadores que compõem este número a pensarem a paisagem não mais como uma construção do homem, mas justamente como o que excede, a porção inumana que o invade, desestabilizando a ordem social, cultural, política e econômica, levando-o, sempre, mais além, indo ao encontro desta constatação de Hölderlin: não há na terra uma medida.


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Nessa perspectiva, o Dossiê traz oito trabalhos que se concentram em diferentes abordagens sobre a noção de paisagem. Em “Um nó de sangue na garganta: a experiência do poema em Herberto Helder”, de Erick Gontijo Costa, ela é apresentada ao longo da obra de Helder e relaciona-se, sobretudo, com a noção de exterior. Michel Mingote Ferreira de Azara, com o artigo “Paisagem sensível: a percepção do espaço urbano na obra de Samuel Rawet”, aborda-a como um “fundo de natureza inumana sob o qual se instala o homem” e um “ponto de inflexão desterritorializador”. Já em “O relevo de Água viva: Clarice Lispector e a escrita da paisagem”, Tatiane Costa Souza trabalha a paisagem a partir de alguns livros de Clarice, aproximando-a ao não humano. Maraíza Labanca, tomando como suporte principal o texto “Manchas na pele, linguagem”, de Nuno Ramos, aproxima-a à matéria em seu texto “Eu te dou a minha palavra (A matéria não mente)”. Daiane Carneiro Pimentel traz o artigo

“Imagem-paisagem: a descrição pictural em Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum”, focando no caráter pictórico da paisagem na referida obra do escritor brasileiro. Em “Ética da paisagem”, João Rocha, a partir da obra de Maria Gabriela Llansol, aposta em um movimento ético da paisagem e nas aberturas que este pode causar na relação da literatura com o mundo. “Alvorada lá no morro, que beleza! Hermínio, a paisagem e as cores do samba”, de Francisco Antonio Romanelli, traz canções-pinturas que vão recriando a paisagem do Rio de Janeiro a partir de algumas letras do samba. Por fim, Cesar Augusto López, com seu trabalho “Experimentar con la literatura desde un pensamiento otro”, traz a possibilidade de concepção de novas formas de pensamento, embasadas pelo pensamento ameríndio, calcado no mito, e a noção de que a paisagem não é um lugar para se explorar, mas para partilhar a “beleza do exigente pensar”.

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Excepcionalmente para este número, a seção Teoria da Literatura e Ensino de Literatura não conta com nenhum texto. A seção Crítica Literária, outras Artes e Mídias conta com a contribuição de Paulo Gerson Rodrigues Stefanello, com o texto “A semiosfera do sexo em Irréversible”, no qual procura demonstrar que o caráter de irreversibilidade do filme está associado, sobretudo, ao sexo. Na seção Tradução e Edição, Marcelo Fonseca apresenta “O navegante”, poema de Ezra Pound baseado em uma obra homônima da poesia anglo-saxã. Na seção Em Tese, Pedro Leites Jr., com o artigo “A relação entre os Mannon e as figuras dos coros em Electra enlutada (1931), de Eugene O’Neill: exemplaridade, intertexto e tragicidade”, explora a expressão do elemento

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trágico na peça do dramaturgo estadunidense, considerando as relações intertextuais com o mito grego de Electra e com a Oréstia, de Ésquilo. Em “Nova York selvagem: imagens da cidade em Maggie: a Girl of the Streets, de Stephen Crane”, Adriana Carvalho Conde analisa a atuação da cidade de Nova York no destino da personagem Maggie, jovem que experimenta a decadência nos tenements do século XIX. Em Entrevistas, Cleber Cabral e Rafael Lovisi compartilham conosco o diálogo com o poeta, pesquisador, ensaísta e professor Alberto Pucheu. Na seção Resenhas, Mário Alex Rosa apresenta a paisagem desolada do poeta Marcelo Dolabela em acre azedo ácido. E Valdemar Valente Junior aborda o romance Hosana na sarjeta, de Marcelo Marisola.

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Finalmente, a seção Poéticas expõe trabalhos de Vídeo, Imagem e Texto, em consonância com o tema deste dossiê. Trazemos o vídeo Arranjo em busca de um paradigma para a relação entre o crítico literário e o poeta, de Alberto Pucheu, e também alguns poemas do autor, além de uma parte da série fotográfica Paisagens urbanas quase sem paisagens. A seção traz ainda a série Pintura a fora, de Leonora Weissmann, na qual a paisagem se revela em suas múltiplas formas, e as obras Foglia e Paesaggio del cervello, do italiano Giuseppe Penone, introduzidas por Marina Câmara, em que o artista nos apresenta “ a paisagem que nos circunda” e que “possuímos dentro desta caixa de proteção”: o crânio.

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Boa leitura!

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UM NÓ DE SANGUE NA GARGANTA: A EXPERIÊNCIA DO POEMA EM HERBERTO HELDER

Erick Gontijo Costa*

* erickgcosta@gmail.com Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG.

RESUMO: Este texto investiga a obra de Herberto Helder, sob a perspectiva da experiência de escrita, enfocando as seguintes noções em seus poemas: leitura, tradução, nascer da escrita, corpo e paisagem.

RÉSUMÉ: Ce texte examine le travail de Herbert Helder, du point de vue de l’expérience d’écriture, en se concentrant sur les concepts suivants dans ses poèmes: la lecture, la traduction, né de l’écriture, le corps et le paysage.

PALAVRAS-CHAVE: paisagem.

MOTS-CLÉS: l’expérience; la lecture; la traduction; le corps; le paysage.

experiência;

leitura;

tradução;

corpo;


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e tu que me ouves, leva tudo mas não me leves a mão, e as maneiras que lhe dou, de assinatura, e nela me refaço com um soluço, autor, nó de corpo, a contar com a autoria Herberto Helder LEITURA DO POEMA

1. KAFKA. Essencial Franz Kafka, p. 190.

2. COELHO. A poesia ensina a cair, p. 7.

Entre todas as formas de leitura, a do poema é das mais exigentes, visto que nele a linguagem e a vida compõem um nó indiscernível, irredutível à interpretação: amálgama entre vida e linguagem, que tomba fora da representação e de todo senso comum. Só se aproxima do poema, destituindo-se da rigidez dos aparatos prévios de pensamento para, na experiência de leitura, compor outra forma de corpo, de pensamento e de mundo, em que os conceitos entram em metamorfose, gerando aberturas no sistema de que derivam. Ninguém que, de fato, tenha lido um poema sai o mesmo dessa experiência. Há um aforismo de Kafka que diz: “A partir de certo ponto não há mais retorno. É este o ponto que tem de ser alcançado.”1 O poema é um ponto sem retorno, capaz de modificar corpo, pensamento e mundo, ao recriá-los. No livro A poesia ensina a cair, Eduardo Prado Coelho se dedica ao exercício de escrever ensaios sobre poesia, pensando modos possíveis de aproximação da crítica ao poema. Seu método é “deixar que duas línguas se tornem cúmplices e acabem por formar uma só linguagem.”2 Em um dos textos EM  TESE

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do mesmo livro, “Como uma corda de alegria”, Coelho formula duas premissas para a leitura da obra do autor que aqui nos interessa – Herberto Helder. A primeira é que essa obra se lê por incisões, “cortes encurvados para o lado negro em que cada coisa se silencia”3. Modo interessante de abordagem de um sistema textual que tende à amplificação contínua de relações internas entre suas imagens, pois parece estancar a proliferação de significados do texto para nele perceber os movimentos estruturantes da obra e as energias que ali circulam. A segunda é a necessidade de se “abandonar drasticamente os códigos da verossimilhança, ou mesmo os meios de representação (não há modelação, mas modulação)”4. Desde a modernidade, a poesia (tal como algumas literaturas) tende a abolir o mecanismo de referenciação da linguagem a um suposto exterior, ao qual tenta representar eficazmente, para se voltar, em movimento circular, para si mesma, referenciando-se a si e, assim, se tornando toda ela uma imagem, ou, ainda, entrando numa espécie de devir não-referencial5. Mas interessa-me, dentre outros aspectos dessa obra, aproximar do mecanismo não representativo de HH6 e nele perceber o que de singular há, e, não tanto, aprofundar a discussão a respeito da mímesis e sua negação ou ausência. Importa, portanto, perceber o ponto em que o poema mais silencia do que significa, caso se pretenda dizer algo a partir dele e não apenas permanecer fechado em seus jogos

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3. COELHO. A poesia ensina a cair, p. 17. 4. COELHO. A poesia ensina a cair, p. 17. 5. Maurice Blanchot, na nota 3 ao texto de abertura do livro Espaço literário, formula da seguinte maneira a questão sobre a representação na modernidade: “Será que a própria linguagem não se torna, na literatura, imagem inteira, não uma linguagem que conteria imagens ou colocaria a realidade em figura, mas que seria a sua própria imagem, imagem da linguagem – e não linguagem figurada – ou ainda linguagem imaginária, linguagem que ninguém fala, ou seja, que se fala a partir de sua própria ausência, tal como a imagem aparece sobre a ausência da coisa, linguagem que se dirige também à sombra dos acontecimentos, não à sua realidade, e pelo fato de que as palavras que os exprimem não são signos mas imagens, imagens de palavras e palavras onde as coisas se fazem imagens?” (BLANCHOT. O espaço literário, p. 25.) 6. Utilizarei, ao longo do texto, apenas as iniciais HH para Herberto Helder.


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7. HELDER. Photomaton & Vox, p. 136.

8. COELHO. A poesia ensina a cair, p. 17.

9. HELDER. Photomaton & Vox, p. 133.

de significação. Dita a primeira palavra, instaura-se a alternância entre silêncio e som, ou seja, entra-se no ritmo, condutor de forças corpóreas do poema: “A coerência dos meus poemas é a coerência da energia”7, dirá HH. Se a coerência é energética, falar em termos de ritmo é “promover forças, capturar energias, canalizar vertigens, entrar na corrente, nos fluxos vitais, nas inclinações irreversíveis e fatais.”8 Procuro, aqui, mapear, esboçar a dinâmica rítmica, condutora de energias que animam o poema. Deixar que o poema, com sua maquinaria rítmica, conduza um pensamento, uma leitura capaz de captar as marcas da experiência de sua escrita. Porque lá, “Implantado no meio das leituras, o poema funciona em estado de máquina vital.”9 NASCER DO POEMA

O uso cotidiano da linguagem representativa organiza-se pela linearidade temporal imposta pela sintaxe gramatical e pela delimitação de entradas possíveis no texto. Mas, na poesia de HH, ampliam-se as vias de leitura, já que os lugares do leitor não se demarcam de antemão. Entra-se por qualquer ponto do espaço textual, pois não há linearidade. Cabe ao leitor, por um lado, certo abandono ao fluxo incessante e incontornável do escrito e, por outro, alguma escolha de percurso.

aqui, a contínua “modulação da voz” exercida no ofício do poema. Silvina Rodrigues Lopes, em ensaio fundamental, escrito a partir da obra de HH, de nome A inocência do devir, dirá que os poemas em questão modulam continuamente (e não moldam, o que seria dar acabamento) voz e silêncio, criando tensões semânticas e rítmicas, isto é, tensões entre a multiplicidade de sentidos e “o timbre, os acentos, as intensidades”.10 Assim, o leitor será levado pela continuidade do poema, transitando entre as escanções de texto em texto que cada livro concretiza. É preciso cautela quando se adentra em uma poética como a de HH, caso não se pretenda apenas repetir, num gesto de fascínio, o que já lá está escrito. Mas, sem algum fascínio e possessão rítmica pelo texto, o processo de leitura tende a interromper-se. Assim, escolho, entre o sistema reticular dessa poesia, um nó, um norte: “um nó de sangue na garganta,/ um nó apenas duro”11. Voz e sangue, um grão da voz12, um nó: o da experiência de escrita, em que a vida se traça no livro que a morte contínua, pouco a pouco, devora: traças devoram as linhas linha a linha dos livros, o medo devora os dias dia a dia das vidas, a idade exasperada é ir investindo nela: a morte no gerúndio13

Se se entra nessa obra é, principalmente, mas não apenas, pela captura de um fluxo: o do ritmo. Por ritmo entendo,

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10. LOPES. A inocência do devir – Ensaio a partir de Herberto Helder, p. 60. 11. HELDER. A morte sem mestre, p. 9-10. 12. Refiro-me ao conceito barthesiano de “grão da voz”, que aqui nos auxilia para pensar a língua reduzida ao seu potencial de toque musical: “espaço (gênero) muito preciso onde uma língua encontra uma voz. Darei imediatamente um nome a esse significante ao nível do qual, creio eu, a tentação do ethos pode desaparecer – e, consequentemente, o adjetivo pode ser dispensado: será o ‘grão’: o grão da voz, quando a voz tem uma postura dupla, uma produção dupla: de língua e de música.” (BARTHES. O óbvio e o obtuso, p. 238.) 13. HELDER. Servidões, p. 693.

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14. LOPES. A inocência do devir – Ensaio a partir de Herberto Helder, p. 29.

A experiência, que é “ofício de viver, o ofício de arrancar à morte a vida”14, é também ofício de morrer. A vida que se extrai da morte não é uma categoria, digamos assim, puramente positiva, independente. Não há, na poesia de HH, trabalho de vida sem trabalho de morte. A vida, que se afirma na construção de um corpo textual, é passagem de um estado em que a morte, substantivo comum a todos, se dessubstancia em ação contínua de morrer, vai-se morrendo linha a linha, como quem renasce a todo tempo. Porque o poema é ritmo, pensamento e ato constitutivo de um corpo textual.

refaz-se incessantemente nos livros. Nascimento do corpo do poema engendrado pelo próprio poema. Em Do Mundo, as nuances da existência poética precisam-se: Selaram-no com um nó vivo como se faz a um odre, a ele, o dos membros trançados, o recôndito. Podiam arrancá-lo aos limbos, à virgindade, ao pouco, destrançá-lo para o potente e o suave mundo: as ramas de leite que se devoram, sal e mel que se devoram, pão, o alimento ígneo, a testa lavorada pela estrela saída agora da forja. Custara-lhe que a cabeça e os membros atravessassem a vagina materna. Mas depois os dois lados da cabeça refulgiram muito, e ele ergueu-se à altura do seu nome, antebraços apanhando a luz, pés a correr como em cima da água, torso puro: algures, algo. E então selaram-no, e à púrpura nele, e à música jubilatória dos tubos na boca, nó de couro num odre vivo, a frescura como uma chaga: louco, bêbado. E selado luzia.16

Ainda sobre a experiência, é preciso acrescentar: não me refiro a um acúmulo do conhecimento, resultante da elaboração do vivido. Não há, nessa acepção, referência a nada que se construa de modo definitivo, acabado. Antes: a cada escrita de um poema, refazer o corpo, renascer. A cada vez, ascender à altura do nome.

15. LOPES. A inocência do devir – Ensaio a partir de Herberto Helder, p. 18.

A obra, por ser ato constitutivo e, não, apenas representativo, ao ser criada, cria aquele que escreve, confere-lhe um corpo: “Enquanto pensamento, o poema é acima de tudo um lugar ou um modo de nascer. Ou mais propriamente, o poema é o nascimento do poema, engendrado através do entrançado que nele se faz e se desfaz incessantemente”15. A cena de nascimento do poema e de um corpo (orgânico) entrançados, atados aos símbolos e às imagens textuais,

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17. O nome próprio do autor é Luís Bernardes de Oliveira. Seu nome de escrita é outro: Herberto Helder. Assinatura nascida da experiência de escrita, podemos pensar.

O gesto de escrever como quem entrança um corpo, para destrançá-lo, arrancá-lo à morte, ao limbo, lugar de indefinição onde ainda não se chega a se constituir como canto, permite ao corpo escrito erguer-se à altura do seu nome de escrita17. Sela-se o corpo com um nó entre corpo orgânico, imagem e símbolo: “nó de couro num odre vivo”. Permanece, no entanto, uma chaga, de onde brota a verdade daquele que escreve: a chaga, como marca originária de um corpo, permitindo-lhe luminosa existência em seu devir-escrito. Corpo e chaga como nó entre potências de morte e de vida, na reversibilidade de uma força a outra. Em A parte do fogo, livro de Maurice Blanchot, cujo pensamento ressoa nos poemas de HH, há indicações de uma paradoxal inversão quanto à precedência da autoria em relação à obra:

18. BLANCHOT. A parte do fogo, p. 101.

O poeta nasce pelo poema que ele cria; ele é o segundo, em vista do que faz; é posterior ao mundo que criou e em vista do qual suas relações de dependência reproduzem todas as contradições expressas nesse paradoxo. O poema é sua obra, o movimento mais verdadeiro de sua existência, mas o poema é o que o faz ser, o que deve existir sem ele e antes dele, numa consciência superior onde se unem o escuro do fundo da terra e a claridade de um universal poder de fundar e justificar18.

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A existência do autor, segundo essa lógica, resulta do poema, só há ser em face da criação. Sem a criação, há falta de ser. Refiro-me, aqui, à elaboração lacaniana de “manque-à-être”. De modo abreviado, pode-se entender por essa lógica que o sujeito lacaniano é marcado por inconsistência desde sua origem. Mas, em face de um objeto a ser produzido artesanalmente, a partir de certa consistência lógica, o objeto-a (resíduo corporal inominável restante da entrada de um corpo na linguagem, operador da causa de seu desejo), um sujeito poderá constituir-se pontualmente. O ato de escrita pode ser pensado como um modo de um sujeito chegar a existir em face da escrita. A escrita como causa de seu desejo e, consequentemente, de existência, em seu devir-obra19. Acompanhando essa lógica e perseguindo os rastros da experiência na poética de HH, chega-se, pouco a pouco, ao entendimento do ofício de escrita não apenas como gesto primeiro, do qual decorre uma autoria. A escrita é ato de composição do corpo, do poema e de um mundo ou paisagem do poema, simultaneamente. Poema e poeta criando-se mutuamente, na tensão da sintaxe: “o poema escreve o poeta”20: o poema é escrito pelo poeta, o poeta é escrito pelo poema. Há “autor,/ como se ele mesmo fosse o poema”21. Em HH, a experiência de escrita e seus efeitos se dão no jogo de composição de símbolos unificadores de potências desordenadas. Em Os passos em volta, livro de narrativas COSTA. Um nó de sangue na garganta […]

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19. A respeito, ver: C. acurar-se da escrita.

20. HELDER. Do Mundo. In: A faca não corta o fogo, p. 133. 21. HELDER. Do Mundo. In: A faca não corta o fogo, p. 132.


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biográficas – se entendermos que a biografia de HH é a biografia da obra, no sentido de que só há a vida escrita –, a operação de escrita como ordenadora das potências se depura como estilo:

22. HELDER. Os passos em volta, p. 7.

23. HELDER. Poemacto. In: A faca não corta o fogo, p. 12.

24. HELDER. Poemacto. In: A faca não corta o fogo, p. 12.

O estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte22.

A confusão e a violência, equacionadas em tópicos, constituem-se em símbolos condensadores e organizadores em meio à desordem das potências (ou pulsões, tais como pensadas por Freud) de morte e de vida. O poema equaciona, por via da centralização que a ordem simbólica permite, a experiência atravessada por vida e morte. O estilo é, portanto, um recurso contra o terror, “o terror que há sempre/ no fundo informulado de uma vida”23. Entretanto, a experiência de criação, além de consistir em um jogo simbólico, salvaguarda daquele que escreve, é um modo de veicular a morte de palavra em palavra, porque “a morte passa de boca em boca/ com a leve saliva”24. Se por um lado tem como efeito o nascimento, é por outro um ofício moribundo, sem EM  TESE

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anulação possível entre esses movimentos contrários presentes no poema. Morte e vida, jogando-se simultaneamente, participam no ofício do canto, o qual se constitui às voltas com o terror que ecoa do “fundo informulado de uma vida”. A partir do pensamento de Gilles Deleuze, em seu texto “A imanência: uma vida...”, podemos desdobrar um pouco mais a questão da vida que se atualiza no poema, em seu fundo informulado: Entre sua vida e sua morte, há um momento que não é mais do que este de uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, entretanto singular, que desprende um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade do que acontece. Homo tantum25 do qual todo mundo se compadece e que alcança alguma beatitude. É uma hecceidade26, que não é mais de individuação, mas de singularização: vida de pura imanência, neutra, além do bem e do mal, já que só o sujeito que a encarna em meio às coisas a torna boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em proveito da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida...27

Nesse fragmento, Deleuze trabalha com a noção de uma vida impessoal, que se desprende da vida do indivíduo e pode

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25. Uma possível tradução seria “homem tão-somente”. 26. Uma possível tradução seria “estidade”, evocando o neutro de terceira pessoa: o “ele sem rosto”, diríamos com Blanchot. 27. No original, lê-se: “Entre sa vie et sa mort, il y a un moment qui n’est plus que celui d’une vie jouant avec la mort. La vie de l’individu a fait place à une vie impersonnelle, et pourtant singulière, qui dégage un pur événement libéré des accidents de la vie intérieure et extérieure, c’est-a-dire de la subjectivité et de l’objectivité de ce qui arrive. <<Homo tantum>> auquel tout le monde compâtit et qui atteint à une sorte de béatitude. C’est une hecceité, qui n’est plus d’individuation, mais de singularisation: vie de pure immanence, neutre, au-delà du bien et du mal, puisque seul le sujet qui l’incarnait au milieu des choses la rendait bonne au mauvaise. La vie de telle individualité s’efface au profit de la vie singulière immanente à un homme qui n’a plus de nom, bien qu’il ne se confondre avec aucun autre. Essence singulière, une vie...” (DELEUZE. Philosophie. Tradução de E G C e João Rocha.)


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atualizar-se, por exemplo, em um poema, em suas palavras e suas imagens, sem que necessariamente seja encarnada por um sujeito em (des)articulação com um objeto. Uma vida neutra, uma “estidade” imanente, fora da representação, e, não, uma identidade. Homo tantum, homem tão-somente. Vida mínima, singular, informe.

28. HELDER. Photomaton & Vox, p. 135.

29. HELDER. Photomaton & Vox, p. 54.

Entretanto, se há vida imanente na poesia de HH, “O poema assenta numa experiência do mundo. A experiência é uma memória em estado de actualidade sensível.”28 Arrancada à morte, uma vida se atualiza em memória escrita, matéria sensível. Repare-se: estamos distantes do campo das biografias identitárias e nos aproximamos do campo de testemunho de uma experiência neutra. Uma vida atualizada em imagem se desprende, se arranca à experiência de mundo do indivíduo. Há a memória como escrita, matéria sensível, liberta do mundo referencial, canalizando energias corporais no ritmo poético. Nessa experiência de criação, corpo e obra fazem-se num só ato e, nessa perspectiva, só há poema. Corpo, mundo e obra acontecem na linguagem. Exterioridade e interioridade tornam-se um circuito contínuo. “O valor da escrita reside no facto de em si mesma tecer-se ela como símbolo, urdir ela própria a sua dignidade de símbolo. A escrita representa-se a si, e a sua razão está em dar razão às inspirações reais que evoca.”29 Escrita e experiência de mundo acontecem no plano imanente do poema.

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Se se fala em símbolo e representação da escrita por si própria, tornando-se uma substância que se autoengendra, o jogo, no entanto, não é o da verossimilhança. A experiência como memória em estado de atualidade cria tensões entre forças heterogêneas que se encerram no poema, que segue não a coerência de significados ou das leis de um suposto mundo anterior ao escrito, mas a coerência de energias. A coerência energética não busca estabelecer simetria entre escrita e realidade. Antes, “produz uma tensão muito mais fundamental do que a realidade. É nessa tensão real criada em escrita que a realidade se faz.”30 Ou seja: quando se fala em corpo e obra compostos na experiência de escrita, há tensão energética, visto que, no poema, morte e vida operam como símbolos criados e criadores da matéria escrita, continuamente se decompondo e recompondo-se. Somente no plano do poema, em suas imagens, assinala-se a verdade verificável no poema: a que ele mesmo produz. Tal seria “o talento de saber tornar verdadeira a verdade”31 da experiência: “Chega a mão a escrever negro e conforme vai escrevendo mais negra se torna”32. A escrita, ao “dar razão às inspirações que evoca”, adensa a experiência por meio da própria experiência, o poema por meio do poema, o mundo por meio do mundo, o corpo por meio do corpo, sua verdade por meio da sua verdade. Resta a mão negra, obra imanente.

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30. HELDER. Photomaton & Vox, p. 54.

31. HELDER. Photomaton & Vox, p. 55. 32. HELDER. Photomaton & Vox, p. 54-55.


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CORPO DO POEMA

33. Na tese de doutorado acurarse da escrita – Maria Gabriela Llansol, desenvolvo um estudo mais detalhado sobre os conceitos referidos. (C. acurar-se da escrita.).

A noção de corpo não é simples. Tanto mais complexa é se pensada como corpo textual. Por mais que se queira precisar um conceito para corpo – mesmo que se recorra a dicionários e saberes que tendem à objetividade, como os científicos –, o corpo resta irredutivelmente opaco à linguagem. Conceitos como corpo imaginário, eu, sujeito do inconsciente, voz, olhar, desejo, pulsão e letra, da psicanálise freudiana e lacaniana; potência, das filosofias de Espinosa, Nietzsche e Deleuze; escritura, em Lacan, Derrida e Barthes são imprescindíveis para delinear um esboço do que se pode entender por corpo em sua articulação com a escrita33. Sem explicitar toda a pesquisa necessária para esboçar o que aqui entendo por corpo, mas sem dela abrir mão, poderíamos dizer que um corpo é uma estrutura composta por elementos somáticos, palavras e imagens, articulada a uma paisagem. Um corpo é um edifício de imagens colhidas em outros corpos e na paisagem em que habita. Essas imagens são organizadas, em certa medida, pela linguagem, pela sua potência de nomeação, a qual estabelece uma sintaxe entre as imagens, que delimitam um espaço interior e um exterior, não excludentes, com aberturas de circulação entre dentro e fora. A esse edifício especular de imagens entrelaçadas pela linguagem, fortificação que resiste à dissolução entre interioridade e exterioridade, mas assegura a circulação contínua

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entre uma e outra, podemos nomear eu ou corpo imaginário. Nesse edifício, nos lugares onde a visibilidade (e a consciência) é menor ou inexistente, um sujeito pode habitar à maneira do que aparece e desaparece, sempre que interior e exterior encontram vias comunicantes, isto é, orifícios que não se recobrem no edifício: janelas, portas. Olhos, boca e ouvidos, por exemplo, são vias entre dentro e fora, lugares de condensação e dispersão de energias ou potências. É onde o olhar e a voz têm lugar, entre o corpo e a paisagem, que o poema pode ser lugar de passagem, de circulação e produção de energia. Esse corpo tem também órgãos e sangue. As energias vitais e mortíferas aí circulam, indo da paisagem ao corpo, do corpo à paisagem. Energia pulsional, poderíamos dizer com Freud. A escrita pode ser um modo de contínua decomposição e recomposição desse edifício e pode fazer circular nele as energias. Nesse sentido, escrita e sangue são símbolos corporais ou corpos simbólicos dotados de reversibilidade entre si. “Um nó de sangue na garganta: um nó apenas, duro” – voz, sangue, escrita. Há poema, principalmente, onde corpo e linguagem se enodam, podendo aí haver ou não aparição de um sujeito articulado a objetos: que um nó de sangue na garganta, um nó de ar no coração, que a mão fechada sobre uma pouca de água, e eu não possa dizer nada, COSTA. Um nó de sangue na garganta […]

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34. HELDER. A morte sem mestre, p. 9-10.

do corpo, a escrita se torna “forma concreta, uma forma de vida, nunca uma formulação mental ou ideológica”35. Forma concreta orientada para a contínua modelação do fundo informulado de uma vida:

e o resto seja só perder de vista a vastidão da terra, sem mais saber de sítio e hora, e baixo passar a brisa pelo cabelo e a camisa e a boca toda tapada ao mundo, por cada vez mais frios o dia, a noite, o inferno, o inverno, sem números para contar os dedos muito abertos cortados das pontas dos braços, sem sangue à vista: só uma onda, só uma espuma entre pés e cabeça, para sequer um jogo ou uma razão, oh bela morte num dia seguro em qualquer parte de gente em volta atenta à espera de nada, um nó de sangue na garganta, um nó apenas duro34

Trata-se de uma operação, e o que pode tornar-se visível é o modo – sempre arriscado, livre (de inspiração libertária) –, nunca um modelo. Modelações da matéria-prima, sob a força de um pensamento aberto a todos os poderes e solicitações, mas orientado para o final objetivo do domínio da <<coisa>> que está nas coisas. O mundo do espírito é uma organização simbólica e o seu fundamento encontra-se na matéria, no corpo. O espírito deve entender-se como apenas o tecido de alusões simbólicas do próprio corpo. A escrita realiza a circulação do símbolo no plano material; é uma simbologia corporal e também uma corpografia simbólica. Na escrita reside o símbolo do corpo, mas o corpo é a última e verdadeira escrita. O silêncio.36

Um nó de sangue, um nó de ar, um coração, uma mão fechada ante a vastidão da terra: cada elemento, orgânico ou não, é uma imagem cerrada, símbolo sem referenciação a uma realidade exterior à língua. Símbolo tendendo à imanência, dispositivo condensador e dispersor de energias num circuito rítmico que vai do poema ao poema, passando por quem escreve e quem lê. Na circulação rítmica constitutiva do poema, que, como se, vê opera em campos distintos da metáfora, já que símbolo, nessa poética, não é apenas instrumento de significação, mas principalmente órgão vital

O corpo é a verdadeira escrita, porque no cerne da experiência do poema está o nó entre corpo e língua. No que do corpo resta sem significação e se expressa fora do sentido, porém, por meio da operação poética, na linguagem, está a verdade da experiência de escrita: o silêncio do que não se diz, mas se escreve. Operação que confina com a impossibilidade estruturante da língua: articular em palavras as coisas do mundo (o corpo orgânico ou os objetos, por exemplo).

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35. HELDER. Photomaton & Vox, p. 134.

36. HELDER. Photomaton & Vox, p. 134.


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Mas, sabemos, em princípio, a palavra, em seu estatuto metafórico, jamais toca as coisas.

37. João Amadeu Oliveira, em A poesia de Herberto Helder, demonstra, na poesia de HH, o desenvolvimento de uma poética de articulação entre corpo e linguagem, ficando a questão do sujeito, digamos assim, num segundo plano: “Em Herberto Helder, ao contrário de uma consciência de si, encontramos uma consciência centrada bipolarmente no corpo e nas palavras: transfere-se o espaço do drama da alma dos modernistas para um espaço condensado na palavra poética, filtro ou imagem do corpo.” (SILVA. A poesia de Herberto Helder – Do contexto ao texto: uma palavra sagrada na noite do mundo, p. 147.)

Entretanto, diferentemente do drama moderno em torno do sujeito, e aí reside o impulso do poema em HH, há nas palavras o seu tanto de coisa, porque nessa poética corpo e linguagem não se dissociam, antes só se constituem se se articulam em alguma medida37. Se a palavra não é capaz de significar a completude do corpo ou das coisas, é, no entanto, um refúgio para o que resiste à nomeação. O que da significação se subtrai retorna à palavra como ritmo, energia, pulsação corpórea. Assim, podemos dizer que as palavras, no poema, comovem o corpo, movem o corpo junto a si. Há palavra e corpo em forma de nó, um nó vocal. “Um nó de sangue na garganta”. Ou “simbologia corporal”, “corpografia simbólica”. PAISAGEM DO POEMA

Resultante da operação poética de HH, experiência constitutiva de um corpo linguístico, articulam-se em nó energias que excedem a capacidade de nomeação da língua, mas nela e por meio dela animam outra forma de corpo, a do poema. A essa operação, Silvina Rodrigues Lopes nomeia nó corpo-linguagem:

Daí que um nó seja um ponto de voragem, um umbigo, o lugar onde se manifesta uma energia que não refigura, que estratifica sensações não integráveis no funcionamento orgânico.38

Um nó corpo-linguagem permite a metamorfose (e, não, a metáfora) do corpo em símbolo e do símbolo em corpo, em constante reversibilidade. Por outro lado, é ponto de voragem, em que a palavra se torna foco captador e dispersor do excedente energético inassimilável pelo corpo orgânico na paisagem do texto. Nó literal39 entre corpo, poema e paisagem. Até aqui, foi investigado o nascimento simultâneo do poema e do corpo na experiência de escrita. Corpo, poema e vida arrancados à morte, a cada escrito. Mas o corpo do poema não existe no nada. Há “um nada de nada, e tudo, eximiamente com/ muita força”. Paisagem ou “o mundo arrancado aos limbos”40. A rigor, o poema de HH é ele mesmo uma paisagem entre paisagens: Ver sempre o poema como uma paisagem. Esta paisagem é dinâmica. Preocupa-me a natureza do solo, por isso me imponho certa unidade de flora e fauna, uma ligação mineral, as articulações meteorológicas. Mas a paisagem move-se por dentro e por fora, encaminha-se do dia para a noite, vai de estação para estação, respira e é vulnerável. Ameaça-a o seu pró-

Quando se fala de um nó corpo-linguagem fala-se sempre de uma ligação pela qual se entra em processo de metamorfose.

38. LOPES. A inocência do devir – ensaio a partir da obra de Herberto Helder, p. 35. 39. Para articular o conceito de “nó corpo-linguagem”, de Silvina Rodrigues Lopes e a “corpografia simbólica, simbologia corporal”, de HH, valho-me indiretamente do conceito lacaniano de letra. Podemos elaborar, a partir da leitura da obra de Lacan, o conceito de letra como resto de uma prática capaz de delimitar pontos de articulação e separação entre os excedentes energéticos do corpo somático e a linguagem, em seu funcionamento simbólico. Em seu texto “A letter, a litter”, Ram Mandil apresenta uma interessante definição de letra, referente à rede conceitual psicanalítica lacaniana, que nos permite pensar em que medida a letra indica, na língua, uma substância a ela distinta, sem representação, mas nela presente. Em termos lacanianos, indica o gozo em meio à língua: “É possível dizer que, em uma leitura retroativa, a letra, pensada como distinta do significante, seria o que, na ordem da linguagem, permitiria apreender a circulação dessa substância, dessa materialidade à qual Lacan gradativamente associa o gozo.” (MANDIL. Os efeitos da letra – Lacan leitor de Joyce, p. 47.) 40. HELDER. A faca não corta o fogo, p. 153.

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41. HELDER. Photomaton & Vox, p. 133-134.

prio fim de paisagem. Pela ameaça e vulnerabilidade é ela viva. E é também uma coisa do imaginário, porque uma paisagem brota do seu mesmo mito de paisagem. Aquilo que lhe firma a existência situa-se nas condições do desejo: o movimento entre nascença e morte. A tensão criada pela ameaça destruidora afiança-lhe a vitalidade. A árvore da carne41.

Entre nascimento e morte, o desejo, potência ou energia fundamental na obra de HH, move-se do corpo à paisagem, da paisagem ao corpo: do poema ao poema, porque o poema é corpo e paisagem. A circulação do desejo é ela mesma o ofício de viver, o ofício de “arrancar à morte a vida”. Se o poema é também uma paisagem, já não há separação entre interior e exterior. Poema, corpo e paisagem – um nó: “a árvore da carne”.

42. A respeito, ver: “Imanência e desejo” (DELEUZE; GUATARI. Imanência e desejo. In: Kafka: por uma literatura menor, p. 81-96.).

todo o tempo o risco de desaparecer, pois, lembremos, uma vida é o próprio movimento de dessubstanciar a morte e lançá-la ao movimento. Passar da morte substantiva à “morte no gerúndio”. Nos limites da linguagem, na substância lenhosa da árvore da carne, uma vida se faz na materialidade extrema da língua, a qual assim Agamben descreve, no livro Ideia da Prosa: Ideia da matéria A experiência decisiva que, para quem a tenha feito, se diz ser tão difícil de contar, nem chega a ser uma experiência. Não é mais que o ponto no qual tocamos os limites da linguagem. Mas aquilo que então tocamos não é, obviamente, uma coisa, de tal modo nova e portentosa que, para descrevê-la, nos faltam as palavras: é antes matéria, no sentido em que falamos de ‘matéria da Bretanha’ ou ‘entrar na matéria, ou ainda índice das matérias’. Onde acaba a linguagem, começa, não o indizível, mas a matéria da palavra. Quem nunca alcançou, como num sonho, esta substância lenhosa da língua, a que os antigos chamavam silva (floresta), ainda que se cale, está prisioneiro das representações.

A árvore da carne – corpo e paisagem do poema ou poema e corpo como paisagem – se aproxima do que Deleuze conceitua plano ou campo de imanência42. Campo fora da representação, em que o desejo se movimenta metonimicamente por contiguidade de imagens, em constante metamorfose. Uma vida, a vida desprendida do indivíduo, criada na operação poética, habita esse campo, o campo de amarração entre corpo, poema e paisagem: nó imanente, fora da representação, articulando em texto uma vida desejante. Campo de tensão, já que o desejo, energia que vivifica o poema, corre a

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É como o caso daqueles que regressaram à vida depois de uma morte aparente: na verdade, de modo nenhum morreram (senão não teriam regressado), nem se libertaram da necessidade de ter de morrer um dia; libertaram-se, isso sim, da representação da morte. Por isso, interrogados sobre aquilo

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43. AGAMBEN. Ideia da Prosa, p. 29.

44. HELDER. Photomaton & Vox, p. 8. 45. DELEUZE; GUATARI. Imanência e desejo. In: Kafka: por uma literatura menor, p. 93. 46. BLANCHOT. A parte do fogo, p. 323.

que lhes aconteceu, não têm nada a dizer sobre a morte, mas encontram matéria para muitas histórias e para muitas belas fábulas sobre a sua vida43.

Onde a linguagem já não mais representa, mas se apresenta como matéria de início, palavra vegetal e corpórea, o cerne da experiência – a constituição de um corpo e uma paisagem no poema – se revela, como “uma frase cosida ao fôlego, ou um relâmpago/ estancado/ nos espelhos.”44 Na experiência do poema, abertura ao “campo ilimitado de imanência”45, uma vida, liberta da individualidade, liberta-se também da representação da morte. “Mas a linguagem é a vida que carrega a morte e nela se mantém”46. No poema, espaço da metamorfose, uma vida, portanto, está a salvo da morte. Porque, vivendo, está permanentemente entregue ao ofício de viver a morte, no gerúndio. A TRADUÇÃO DO POEMA

Mencionei anteriormente a estrutura reticular da obra de HH e as estratégias de leitura que me parecem adequadas à leitura que proponho. Entendo, neste texto, por obra, não apenas o que está escrito ou a reunião dos textos publicados, mas a articulação necessária entre esses textos para a composição de um conjunto dinâmico de nós textuais, em que cada elemento se correlaciona a todos os outros, em um sistema de circulação energética. EM  TESE

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Nessa perspectiva global, podemos pensar a tradução na poética do autor como elemento da composição da própria obra. Porque, em HH, tradução e escrita se aproximam de tal forma que já não se emprega o termo “poema traduzido”, mas “poema mudado”. Refiro-me aos “poemas mudados para o português”, série composta pelos livros O bebedor noturno (1986), As Magias (1987), Ouolof (1997), Poemas Ameríndios (1997) e Doze nós numa corda (1997). Nessa série, o autor traduz, de modo muito próprio à sua poética, poemas de culturas extremamente diversas, vindos de partes distintas do mundo, atravessando períodos que remontam à escrita bíblica do Cântico dos Cânticos, passam por antigos ritos e cantos tribais indígenas e africanos, por poetas ocidentais e orientais e poetas mais recentes, como Henri Michaux e Le Clézio. João Amadeu Oliveira, em uma nota etimológica, apresenta uma interessante hipótese a respeito da técnica empregada nos poemas mudados: “De algum modo [HH] assumiu a amplitude do verbo ‘traduco’ do latim , utilizando-o no sentido de conduzir para o outro lado, fazer passar (dum lado ou de um estado para outro). Deste modo, traduziu-o, até porque ao passá-lo para outro contexto, o poema deixou já de ser o mesmo.”47 Os poemas mudados são, assim, como enxertos: um poema estrangeiro que se insere na paisagem do poema próprio. O poema estrangeiro como muda, broto transposto

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47. SILVA. A poesia de Herberto Helder – Do contexto ao texto: uma palavra sagrada na noite do mundo, p. 168.


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de uma a outra obra, segundo o prazer e o trabalho com a matéria textual, com a substância lenhosa da língua. Em “O bebedor noturno”, texto de mesmo nome de um dos livros dos poemas mudados, HH explicita seu procedimento:

48. HELDER. Photomaton & Vox, p. 69.

49. HELDER. As Magias – alguns exemplos: poemas mudados para o português, p. 17.

50. HELDER. As Magias – alguns exemplos: poemas mudados para o português, p. 16.

O meu prazer é assim: deambulatório, ao acaso, por súbito amor, projetivo. Não tenho o direito de garantir que esses textos são traduções. Diria: são explosões velozmente laboriosas. O meu labor consiste em fazer com que eu próprio ajuste cada vez mais ao meu gosto pessoal o clima geral do poema já português: a temperatura da imagem, a velocidade do ritmo, a saturação atmosférica do vocábulo, a pressão do adjectivo sobre o substantivo48. Em As magias, há um poema de Henri Michaux mudado para o português, que nos permite perceber o ponto nevrálgico sobre o qual incide a operação “tradutória”. Um ponto de enodamento material, articulando língua e paisagem. Trata-se do poema “Iniji”, escrito parte em língua francesa e mudado para o português, parte em grafias da voz exterior a qualquer língua: “orrenaniâã Iniji/ e Iniji inanimada”49. Espécie de língua arcaica, se por arcaico entendermos próximo da origem (arké). Lembremos, uma língua é, em sua origem, em seu caráter mais elementar, som, ritmo e desenho.

língua (die reine Sprache)51 benjaminiana, de seu “A tarefa do tradutor”. Linguagem originária, livre de qualquer sistematização prévia, absurdamente literal. Língua entre-línguas, que deixa marcas na materialidade de cada uma delas: na sonoridade, no ritmo e na imagem. Proponho tal aproximação porque, nas palavras do poema de Michaux, “Iniji fala com palavras/ que não são as suas palavras”52. Traduzir um poema cujas palavras importam menos que sua sugestão sonora e rítmica obriga a trabalhar com o corpo a substância física da palavra, tocando outro corpo linguístico. Porque, em tradução de poesia, “Um corpo tem a lembrança excessiva de outro corpo”53. No mesmo livro, há a tradução de um texto de Le Clézio, “– Um poema (Iniji) que não é como os outros –”, que é uma leitura atravessada pelo poema de Michaux. Nele se lê:

Nessa língua sem território fixo, “Movem-se margens/ Fundações afundam-se”50. Poderíamos aqui pensar na pura

Não é como os outros, este poema, não distrai, não se esquiva. Na verdade não está escrito, encontra-se ali na página por acidente, e deve estar também algures, gravado numa árvore, por exemplo, ou inscrito na terra seca, ou tatuado então na pele humana. Claro que não está apenas escrito. Passou pelo tremor da escrita, foi assim que apareceu primeiro. Mas não existe somente nesse tremor, não existe somente para os olhos. Existe algures, em volta, no ar, nas nuvens, nas folhagens das árvores vistas à distância, no mar, na erva calcada de uma pista. E nas ruas de uma grande cidade,

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51. A respeito da pura língua, ponto a ser visado na tradução, Benjamin escreve em “A tarefa do tradutor”: “Essa liberdade (da tradução) não deve sua existência ao sentido da comunicação, do qual justamente a fidelidade tem a tarefa de se emancipar a tradução. Mais do que isso, essa liberdade se exerce, em nome da pura língua, na própria língua. A tarefa do tradutor é redimir, na própria, a pura língua, exilada na estrangeira, liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação [umdichtung]. Em nome da pura língua, o tradutor rompe as barreiras apodrecidas da sua própria língua.” (BENJAMIN. Escritos sobre mito e linguagem, p. 117.) 52. HELDER. As Magias – alguns exemplos: poemas mudados para o português, p. 18. 53. HELDER. As Magias – alguns exemplos: poemas mudados para o português, p .17.


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54. HELDER. As Magias – alguns exemplos: poemas mudados para o português, p. 10-11.

55. HELDER. As Magias – alguns exemplos: poemas mudados para o português, p. 10.

entre as paredes dos prédios, acompanhando o movimento dos automóveis, os cláxons, as luzes, a multidão54.

Claro, considerávamos importantes essas palavras da linguagem, essas palavras comuns. Excitadas como matilhas, boas para caçar, farejar, ladrar, matar. Mas há outra língua, que falávamos antes de nascer. Uma língua muito antiga, não servia para nada, não era a língua do comércio com os homens. Não era decerto uma língua de sedução, para subornar, ou para dominar. Dela provinham as palavras, estas palavras: fluidos, vento, bilha, órfã, carris, dormir, coração, constelada, cisne, lasciate, vapor, contorno, opala, vem... Existiam ao mesmo tempo que a vida, não desligada dela. Eram uma dança, uma natação, um voo, eram movimento56.

O poema está na paisagem, é ela própria. Está na lembrança excessiva de um corpo em outro, é energia de circulação entre a paisagem do corpo e do texto. Vai deixando marcas na pele, nas cascas de uma árvore, na superfície do papel. E a quem escreve, lê e transporta o poema de um lugar ao outro, cabe acompanhar sua música: “Agora, depois de Iniji, já não interrogamos. Há uma certeza. Viu-se qualquer coisa, seguiu-se essa coisa, como se a gente estivesse a fazê-la, como se tivesse encontrado ouvidos para escutar a música do fundo da água.”55 O poema se escreve, se lê e se traduz seguindo a música submersa que há não na língua estruturada, mas na música que evoca, música submarina que ecoa no poema. Para Herberto Helder, ao traduzir os dois textos em torno dessa outra língua, a de Iniji, é preciso atentar-se não em suas palavras, mas na música de que deriva.

Falar de Iniji é um exercício de aproximação da forma pura, da sonoridade, é como reproduzir gestos, movimentos da língua antes de pronunciar a primeira palavra. Elemento à margem da língua. Palavras informuladas que se esquecem em meio aos usos da língua, mas são “lembradas” no exercício de leitura/tradução: “Tínhamo-las perdido de vista. Depois, hoje, reencontradas, são elas que me reencontraram, e me obrigam a lembrar.”57 Uma vez atingido esse cerne poético, que se exibe nos poemas de HH, sejam eles os mudados para o português ou não, o poeta pode dizer: “Já não pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam.”58 Certa inocência em relação às línguas passa a ser a técnica de captar as palavras estrangeiras por sonoridade e sugestão: “Quanto a mim não sei línguas. Trata-se de minha vantagem.”59

A leitura de Le Clézio, traduzida por HH, acontece, portanto, como se algo estivesse sendo feito no ato de ler/mudar para o português. Ler, traduzir, seguindo, criando a, digamos assim, pura língua de Iniji. Língua entre traduções, fora do registro comunicativo, fora da lógica arregimentada por gramáticas e sentidos relativamente já cristalizados por dicionários. Diferenciação interna à língua, ligada ao corpo, de onde nascem os poemas:

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56. HELDER. As Magias – alguns exemplos: poemas mudados para o português, p. 12-13.

57. HELDER. As Magias – alguns exemplos: poemas mudados para o português, p. 13.

58. HELDER. As Magias – alguns exemplos: poemas mudados para o português, p. 14. 59. HELDER. Photomaton & Vox, p. 68.


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Parece ser esse um dos principais pontos da articulação da poética helderiana a outras: a tradução em que se mudam poemas, operando no corpo da linguagem, sem que haja aí qualquer metáfora. Trata-se de um estilo que equaciona poéticas por diferença, articulando o que nelas é por si só um elemento de diferença: o som, o movimento, o ritmo, a imagem. Articulação de poéticas por imparidade, não por pareamento. Talvez seja esse o dom das línguas, que confina com a singularidade de uma assinatura. Não por acaso, é essa a direção, que se explicita em um de seus poemas de A faca não corta o fogo: mas eu, que tenho o dom das línguas, senti a linha sísmica atravessando a montagem das músicas, e ouvi chamarem-me em lírica, numa língua nenhuma que não sabia, e os acertos e erros do meu nome não eram traduzíveis nas línguas do meu dom, e soube então que ar e fogo se mantinham um ao outro mas, em vez de se abrirem, se fechavam, e estremeci das músicas ¿oh o que eram elas, que coisa grande traziam para ser posta em mínimo, e que somenos ministério lavrava assim que voz, no vivo, no arrepio do ritmo,

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por brônquios, garganta e dentes, para fora, para o escuro, para o número ímpar?60

60. HELDER. A faca não corta o fogo, p. 169-170.

Nesse lugar, em que se exibe a linha sísmica atravessando a montagem das músicas, o lugar entre poéticas dispostas em diferentes épocas e espaços, o ritmo transporta, quem sabe, não apenas os sons, os sentidos e suas interrupções, mas também as ressonâncias da origem, no sentido grego da arké. Linha sísmica em que o arcaico faz ressoar uma origem: a da palavra. Lembremos aqui das palavras de Agamben: a contemporaneidade se escreve no presente assinalando o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico significa: próximo da arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar nesse como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto61. Aí, nesse espaço, a poesia portuguesa, nas mãos, na assinatura de Herberto Helder, atualiza-se a todo tempo, ao fazer ressoar no texto próprio a língua para sempre estrangeira, entre a sua e a outra poética. Retomemos um dos nós COSTA. Um nó de sangue na garganta […]

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61. AGAMBEN. O que é o contemporâneo e outros ensaios, p. 69.


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62. HELDER. Photomaton & Vox, p. 55.

fundamentais deste texto, como quem o arremata, para concluir: “O talento de saber tornar verdadeira a verdade. // Chega a mão a escrever negro e conforme vai escrevendo mais negra se torna.”62 REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora 34, 2011. BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

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HELDER, Herberto. A morte sem mestre. Porto: Porto Editora, 2014.

HELDER, Herberto. Os passos em volta. Porto: Porto Editora, 2014.

C, E G. acurar-se da escrita. 2014. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

21

HELDER, Herberto. A faca não corta o fogo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.

HELDER, Herberto. O bebedor noturno – poemas mudados para o português. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

COELHO, Eduardo Prado. A poesia ensina a cair. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2010.

v.

GUEDES, Maria Estela. A obra ao rubro de Herberto Helder. São Paulo: Escrituras, 2010.

HELDER, Herberto. As Magias – alguns exemplos: poemas mudados para o português. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

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DELEUZE, Gilles. L’imanence: une vie... Philosophie, Paris, n. 47, set. 1995, p. 3-7. Tradução de E G C e João Rocha. FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: Freud online. Disponível em: http://www.freudonline.com. br/?s=Al%C3%A9m+princ%C3%ADpio+prazer. Acesso em: 19 nov. 2015.

AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Lisboa: Edições Cotovia, 1999.

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DELEUZE, Giles; GUATARI, Félix. Imanência e desejo. In: ______. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte, São Paulo: Autêntica, 2014.

HELDER, Herberto. Photomaton & Vox. Porto: Porto Editora (Assírio & Alvim), 2013.

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COSTA. Um nó de sangue na garganta […]

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HELDER, Herberto. Poemacto. In: ______. A faca não corta o fogo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. HELDER, Herberto. Poemas canhotos. Porto: Porto Editora, 2015. HELDER, Herberto. Servidões. In: ______. Poemas completos. Porto: Porto Editora, 2014. KAFKA, Franz. Essencial Franz Kafka. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. LOPES, Silvina Rodrigues. A inocência do devir – Ensaio a partir de Herberto Helder. Viseu: Edições Vendaval, 2003. MANDIL, Ram. Os efeitos da letra – Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Contra-Capa Livraria/Faculdade de Letras da UFMG, 2003. SILVA, João Amadeu Oliveira Carvalho da. A poesia de Herberto Helder – Do contexto ao texto: uma palavra sagrada na noite do mundo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2004.

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PAISAGEM SENSÍVEL: A PERCEPÇÃO DO ESPAÇO URBANO NA OBRA DE SAMUEL RAWET

Michel Mingote Ferreira de Azara*

RESUMO: O escritor judeu-polonês naturalizado brasileiro Samuel Rawet apresenta ao leitor uma escrita inquietante, visceral e intensa. Girando em torno de temáticas diversas como a da imigração, da alienação, da errância, da diáspora e da condição marginal de alguns de seus personagens, a literatura do autor propicia a abordagem múltipla de sua obra. Nesse sentido, consideraremos as novelas, contos e ensaios do escritor para pensar a inscrição das paisagens sensíveis em suas narrativas, percebidas por personagens geralmente errantes, andarilhos que percorrem o espaço urbano de maneira intensiva. Procuraremos considerar também como se configuram, em sua obra, as paisagens não-humanas, anteriores a uma consciência intencional. Palavras-chave: Samuel Rawet; paisagens; sensível.

* michel_mingote@yahoo.com.br Doutor em estudos literários pela UFMG. Área de concentração: Teoria da Literatura e Literatura Comparada.

RESUMEN: El escritor judío-polonés naturalizado brasileño, Samuel Rawet, presenta al lector una escritura inquietante, visceral e intensa. Girando en torno a temáticas diversas como las de la inmigración, la alienación, la errancia, la diáspora y la condición marginal de algunos de sus personajes, la literatura del autor propicia el abordaje múltiple de su obra. En este sentido, consideraremos las novelas, cuentos y ensayos del escritor para reflexionar sobre la inscripción de los paisajes sensibles en su narrativa, percibidos por personajes generalmente errantes, caminantes que recorren el espacio urbano de manera intensiva. Intentaremos considerar también cómo se configuran, en su obra, los paisajes no-humanos, anteriores a una conciencia intencional. Palabras-clave: Samuel Rawet; paisajes; sensibles.


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A famosa volta à natureza é um sonho infantil de melancólicos e ociosos mentais. É uma visão falsa da natureza. Na avenida Rio Branco, às três horas da tarde, entre buzinas, fumaça, asfalto e arranha-céu, posso sonhar com mar verde, campo. Apenas buzinas, asfalto, fumaça e arranha-céus são também natureza, como natureza sou eu em conflito, e natureza é a minha aspiração à tranquilidade ou à agitação. Samuel Rawet 1. JAKOB. Le Paysage, p. 37. “La constitution du paysage coïncide en effet avec l’occupation d’une hauteur, le mot entendu aussi bien au sens physique que symbolique et transcendantale. Pétrarque a légué un document exceptionnel de cet acte fondateur dans sa lettre dite du Mont Ventoux. […] La montagne fonctionne chez ce “premier homme moderne” (Jakob Burckhardt) comme la plateforme d’une élévation, et ceci sur plusieurs plans. L’homme nouveau s’est détache à travers une transgression consciente du diktat normatif de la théologie (à l’époque, de l’explication du monde en général) et du sens commun (symbolisé par la figure d’un ancien berger). Il dépasse les règles de la plaine – et plate, imposée -, s’élevant de sa propre force et de sa propre volonté en haut où il exercera un nouveau regard […]”.

A subida do poeta italiano Francesco Petrarca ao monte Ventour, realizada em abril de 1335, é considerada um marco da teoria moderna sobre a paisagem. Ao atingir o cume da montanha e observar a paisagem que se descortina ante seus olhos, o poeta teria instaurado a conquista de um ponto de vista elevado, que funda a experiência paisagística moderna: A constituição da paisagem coincide de fato com a ocupação de um elevado, a palavra entendida tanto no sentido físico quanto no sentido simbólico e transcendental. Petrarca legou um documento excepcional deste ato fundador na sua carta do Monte Ventoux [...] A montanha funciona neste ‘primeiro homem moderno’ (Jakob Burckhardt) como a plataforma de uma elevação, e aqui sobre vários planos. O novo homem se destaca por uma transgressão consciente da imposição normativa da Teologia (à época, da explicação do mundo em geral) e do sentido comum (simbolizado pela figura de um velho camponês). Ele ultrapassa as regras do plano – insípido, que é imposto – se elevando por sua própria força e sua própria vontade no elevado sobre o qual ele exercerá um novo olhar [...].1 EM  TESE

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Como salientou Jean Marc Besse,2 essa concepção – que chamamos aqui de concepção clássica – da paisagem como um panorama natural, geralmente descoberto desde uma elevação e que permitiria que o espectador obtivesse uma espécie de domínio visual sobre o território, vigorou por muito tempo como definidora do termo paisagem. Além disso, tal formulação nos leva a outro ponto importante para essa definição clássica: a presença do sujeito, daquele que apreende uma porção do espaço do alto de um cume ou elevado. Conforme compreende o ensaísta francês Michel Collot,3 a paisagem é, por definição, um espaço percebido ligado a um ponto de vista, ou melhor, uma extensão de território que se oferece ao olhar de um observador. Além da concepção clássica de paisagem enquanto representação pictórica, o autor também salienta a importância do encontro entre sujeito e mundo para a definição de paisagem: “[a] paisagem como um fenômeno, que não é nem uma pura representação nem uma simples presença, mas o produto do encontro entre o mundo e um ponto de vista”.4 Ainda de acordo com o ensaísta francês, a paisagem não se dá somente a ver, mas também a pensar, e é no encontro entre um ponto de vista e o mundo que a paisagem transgride a oposição entre sujeito e objeto, corpo e espírito, natureza e cultura. A percepção, nesse contexto, aparece como termo mediano e mediador,

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2. BESSE, Le Goût du monde : exercices de paysage.

3. COLLOT. La pensée paysage.

4. “Le paysage comme un phénomène, qui n’est ni une pure représentation ni une simple présence, mais le produit de la rencontre entre le monde et un point de vue”. COLLOT. La pensée paysage, p. 18


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5. COLLOT. Poética e filosofia da paisagem, p.18.

6. Termo cunhado pelo filósofo e escritor francês Alain Roger para definir o caráter mediador da arte. Segundo o autor, o nosso olhar é atravessado por modelos pictóricos e literários, imagens que conformam a nossa relação com a natureza. Nesse sentido, um lugar natural só é esteticamente percebido através de uma paisagem, de um quadro, de um modelo, a arte é um a priori da relação homem/ natureza. Cf. ROGER. Court traité du paysage. 7. COLLOT. Poética e filosofia da paisagem, p.30. 8. COLLOT. Poética e filosofia da paisagem, p.31.

[...] que deve tanto à configuração do local quanto às figuras de arte e cultura. Para escapar da alternativa entre o construído e o dado, considerarei, portanto, a paisagem como um fenômeno, que não é nem uma pura representação, nem uma simples presença, mas o produto do encontro entre o mundo e um ponto de vista.5

A paisagem, enquanto fenômeno, enquanto algo que se dá entre o mundo das coisas e a subjetividade humana, instaura um espaço intermediário como alternativa tanto ao caráter de artialisation6 do mundo da cultura quanto ao que é imediatamente dado aos sentidos, ao olhar, ou seja, instaura uma interação que nos convida a pensar de outro modo. Nesse movimento, a paisagem implica também um sujeito “que não reside mais em si mesmo, mas se abre ao fora. Ela dá argumentos para uma redefinição da subjetividade humana, não mais como substância autônoma, mas como relação”.7 Esse sujeito que não habita mais em si, que se abre ao fora, desvela a experiência da paisagem como lugar de uma espécie de “espaçamento do sujeito”, que é “esse movimento pelo qual deixa sua identidade fechada em si mesma para se abrir ao fora, ao mundo e ao outro”.8 Conquanto ressalte o caráter mediador, “fronteiriço”, fenomênico da paisagem, o filósofo francês, a nosso ver, ainda se deixa prender à noção de ponto de vista, à necessidade

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de um sujeito que, de certa forma, “sintetiza” e “organiza” a paisagem. Como salientara o autor, a paisagem “é sempre vista por alguém de algum lugar, é por isso que ela tem um horizonte, cujos contornos são definidos por este ponto de vista”9 ou ainda “[é] uma extensão de país que se oferece ao olhar de um observador”,10 uma vez que “[u]m meio só é suscetível de tornar uma paisagem a partir do momento em que ele é percebido por um sujeito”.11 A paisagem é um espaço percebido que em última instância remeteria a um sujeito. Ainda que este sujeito não seja encerrado em si mesmo e se constitua enquanto abertura ao fora, ao mundo, ao outro, ele aparece como pressuposto, como um ponto de vista único que atesta o caráter “irredutivelmente subjetivo”12 do espaço percebido. O campo que marca essa subjetividade é dado pelo horizonte, que é justamente o traço de união entre a paisagem e o ponto de vista de um sujeito. O autor vai buscar na fenomenologia de Husserl e Maurice Merleau-Ponty a noção de “estrutura do horizonte” como articuladora da relação entre o visível e o invisível. Segundo ele, essa estrutura faz com que uma coisa jamais seja percebida senão em sua relação com outras no interior de um campo, de um horizonte externo. O horizonte é a estrutura que determina a relação com o mundo, a constituição do sujeito, e a prática da linguagem, que se desdobra em um “horizonte interno”, “feito de todos os pontos de vista que eu pude ou poderia ter do objeto, para confirmar meu ponto de vista atual ou AZARA. Paisagem sensível: A percepção do espaço urbano […]

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9. COLLOT. Do horizonte da paisagem ao horizonte dos poetas, p. 206 10. COLLOT. La pensée-paysage, p. 17. “c’est une étendue de pays qui s’offre au regard d’un observateur”. 11. COLLOT. La pensée-paysage, p. 20.“Un environnement n’est susceptible de devenir un paysage qu’à partir du moment où il est perçu par un sujet”.

12. COLLOT. Poética e filosofia da paisagem, p. 26


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13. COLLOT. La poésie moderne et la structure d’horizon, p.16. “fait de tous les points de vue que j’ai pu ou pourrais prendre sur l’objet, pour confirmer mon point de vue actuel ou le compléter”. 14. COLLOT. La poésie moderne et la structure d’horizon, p. 18. “fait des relations qu’elle [la chose] entretient avec les autres objets qui l’entourent”. 15. COLLOT. La poésie moderne et la structure d’horizon, p.23. “relation constitutive à un point de vue limité parce qu’incarné ”.

16. MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção apud COLLOT. Poética e filosofia da paisagem, p. 24.

completá-lo”,13 e um “horizonte externo”, “feito das relações que ela [a coisa] tem com os outros objetos que a rodeiam”.14 Em Merleau-Ponty, essa estrutura é repensada através da noção de perspectiva, que salienta o caráter incompleto e inacabado de toda a percepção e sua “relação constitutiva a um ponto de vista limitado porque encarnado”.15 Nesse sentido, todo visível comporta uma parte de invisível, e a paisagem jamais se apresenta como um panorama, um quadro estático, mas como uma cena móvel: O horizonte interior de um objeto não pode se tornar objeto sem que os objetos ao redor se tornem horizonte […]. Na visão, apoio meu olhar sobre um fragmento da paisagem; ele se anima e se desdobra, os outros objetos recuam na margem [...], mas não deixam de estar lá. Ora, com eles, tenho à minha disposição seus horizontes, nos quais está implicado, visto numa visão marginal, o objeto que fixo atualmente [...]. Ver é entrar num universo de seres que se mostram, e eles não se mostrariam se não pudessem estar escondidos uns atrás dos outros.16

Nas artes plásticas, o horizonte, ou melhor, a linha do horizonte marca a posição de um observador: a cena, a paisagem ou o desenho que se inscreve no quadro dependem de um ponto de vista que organiza as relações entre os elementos dispostos no espaço pictórico. Essa concepção de horizonte, EM  TESE

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pensada na literatura, tal como considerou Michel Collot, implica na dependência de um sujeito que, em última instância, organizaria e unificaria a cena observada. Dito isso, caberia a indagação: seria possível pensar a formulação de um conceito de paisagem que não se prenderia à “estrutura do horizonte”, ou melhor, que não remeteria a uma subjetividade enquanto instância última que subordinaria o “ser do sensível”, o “fenômeno” paisagem? Seria concebível compreender a condição de possibilidade da percepção para além, ou ainda, aquém de um sujeito constituinte, “intencional”? Em suma, seria possível pensar a natureza não-humana da paisagem, seu caráter pré-racional, pré-subjetivo? A PAISAGEM EM SAMUEL RAWET

Arrastava e cosia com dois olhos e dois ouvidos os fiapos que o acaso lhe lançara, e que, provavelmente, algum dia, devolveria com um grito, assim como o grito de parturiente, ou o grito de dor de quem está sendo aliviado de terrível mal, devolveria com um grito um vasto manto tecido de longas caminhadas e de noites vazias. Samuel Rawet

A novela de Samuel Rawet intitulada “Abama”, de 1964, escrita em um único parágrafo, se inicia da seguinte maneira:

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17. RAWET. Abama, p. 411, grifo meu.

Deu-se um dia, após longa caminhada, quando se encontrava no outeiro um pouco afastado da igreja branca, e seus olhos varreram o horizonte da esquerda para a direita. Ao fundo, a linha arroxeada de serras no outro lado da baía, o mar, o monte de pedra oferecendo às águas um dorso gracioso: à frente, o aeroporto, galpões de empresas de aviação, a linha atual das águas mal definida pelo aterro recente, obras em construção sobre a faixa de mar recém-conquistada, na continuação o cais e a murada de pedras antiga, e em curva abrupta blocos de edifícios quase escondiam o morro encravado na avenida arborizada. Entre as duas linhas as águas calmas de um dia calmo, estriado de faixas mais escuras em um ou outro ponto, refletindo azuis e vermelhos de um céu ainda azul, claro no centro mas bordado de noite e fogo atrás dele, e à sua frente debruado de nuvens brancas, tendo já no bojo manchas cinzentas e nas dobras linhas de amarelo, reflexo talvez da outra extremidade. Deu-se um dia, em que pela primeira vez, é bem possível, sentira com toda a intensidade o impacto de um lugar-comum: o dia em sua plenitude, um instante antes de se dissolver em negrume, a evidência a um passo do mistério, a forma definida na fronteira do vago e impreciso. Deu-se pois quais todos esses elementos se juntaram e despertaram nele uma ideia de há muito incubada e que tomou forma com uma lágrima. Deu-se que resolveu descobrir o seu demônio particular. Zacarias, o homem que naquele instante resolveu avivar a memória, andara o dia todo.17

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Neste trecho inicial da novela é possível perceber como a paisagem se configura de múltiplas maneiras: primeiro, como uma espécie de panorama, tal como o movimento panorâmico de uma tomada cinematográfica, é o horizonte captado pelo olhar do personagem. Posteriormente, a tentativa de descrever as granulações, os matizes e jogos de luzes entre o céu e as águas do mar. Nesse momento, o movimento panorâmico cede lugar à tentativa de captar as singularidades da cena observada. Por fim, todos os elementos que, após afetarem intensivamente o personagem, despertam nele uma ideia e tomam a forma de uma lágrima. Um pequeno alumbramento, iluminação profana que afeta o protagonista. No entanto, a lágrima toma forma quase como um processo puramente fisiológico, não existe uma sentimentalização da cena, mas uma afecção, um corpo que é afetado pela paisagem vista, sentida. A tentativa de descrição dos elementos paisagísticos revela também a tentativa de ultrapassar os domínios da subjetividade: É noite quase. Apenas acima do horizonte uns restos de azul se fundem ao cinza e negro de um céu enevoado sobre a serra além da baía. Abaixo as luzes espalham uma poeira entre os vultos que caminham pelo parque, e acentuam as sombras das amendoeiras. Caminho por um mundo calmo, realizado, além dos desesperos e das angústias.18

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18. RAWET. O fio, p. 151.


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19. RAWET. O fio, p. 151. 20. RAWET. O fio, p. 149.

21. Utilizamos aqui a expressão “sensação-paisagem” para remetermos ao termo “pensamento-paisagem”, proposto por Michel Collot. Cf. COLLOT, La pensée paysage.

O personagem caminha por um mundo “além dos desesperos e das angústias”, além do sujeito, um mundo que se abre à percepção sensível, em que cores e formas se acentuam, se intensificam, em que as tonalidades e singularidades das coisas vêm à tona. A própria tarde “é um cromo”,19 um composto metálico que reverbera e envolve o sujeito, que era conduzido pelo entardecer: “[...] um entardecer que me conduzia à toa”.20 Os liames que ligam o sujeito ao mundo são visíveis nesta passagem através do ato do protagonista de se deixar levar por um entardecer. Antes de ser da ordem de uma decisão racional, uma volição do sujeito, a caminhada atesta uma relação primordial entre o sujeito e o entardecer, e é justamente nesse liame que se configura a paisagem, ancorada no sensível, na sensação. Os personagens de Samuel Rawet penetram na cidade de forma intensiva e são afetados por tudo aquilo que veem. Dessa forma, a paisagem não se conforma como mero cenário para o desenrolar dos fatos, mas atravessa os personagens, afeta-os, implica a possibilidade da formulação de uma espécie de “sensação-paisagem”,21 uma vez que se trata de um encontro (sensível), pré-reflexivo entre o sujeito e o espaço, muito mais do que uma relação pautada pelo entendimento, pela apreensão intelectual. É importante refletir justamente sobre este ponto, a paisagem não se daria apenas na apreensão do sujeito dos diversos elementos que seu olhar consegue abarcar (visão panorâmica), ela não se configura somente na sua subordinação ao olhar do observador, mas existe uma

natureza não-humana naquilo que é dado a ver e a sentir, uma relação fundamental que se comunica através da sensação, do sensível, uma percepção primordial, anterior ao processo de abstração e interiorização da experiência sensível, o “fundo de natureza inumana sob o qual se instala o homem”.22

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22. MERLEAU-PONTY. A dúvida de Cézanne, p.132.

Além do perspectivismo de um “horizonte relativo” que a fenomenologia de Merleau-Ponty propõe, pode-se pensar em um “horizonte absoluto” que conforma a experiência da paisagem, que ultrapassa as condições de um sujeito habitual da percepção e sinaliza a potencialidade de uma percepção intensiva do espaço urbano. Quer dizer, que ultrapassa a condição subjetiva através da experiência literária e cria um plano para a circulação das multiplicidades, individuações sem sujeito: Olhar para um edifício, estabelecer com a sua visão relações do tipo ‘emoção estética’ significa desenrolar entre o corpo que vê e a obra vista um plano intensivo de fluência de forças. O edifício não é simplesmente um objeto no espaço objetivo – é um objeto que tem um dentro porque o saber que é ‘habitável’ (como “abrigo”, mas não só) está intimamente integrado na percepção do seu exterior.23

É na criação, através da escrita, daquilo que Deleuze e Guattari intitularão de plano de imanência, que nós podemos

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23. GIL. O Imperceptível Devir da imanência: sobre a filosofia de Deleuze, p. 194.


24. A respeito do uso deste termo, Gilles Deleuze e Félix Guattari esclarecem que: “Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade. Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado” (DELEUZE; GUATTARI, Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol.4, p. 40). 25. Em Le Vocabulaire de Gilles Deleuze encontramos a seguinte definição de percepto: ‘Percepção tornada independente do sujeito que a percebe. Exemplo: a montanha Sainte-Victoire. O “silêncio que quer caminhar” de Trakl. O “pequeno pedaço de muro amarelo” de Ver Meer. Os matadouros de Berlin Alexanderplatz. O grito de Munch ou do Laocoon’ (SASSO; VILLANI, Le Vocabulaire de Gilles Deleuze, p.355). “Percept : ‘Perception devenue indépendante du sujet qui la perçoit. Exemple : la montagne Sainte-Victoire. Le « silence qui veut marcher » de Trakl. Le « petit pan de mur jaune » de Ver Meer. Les abattoirs de Berlin Alexanderplatz. Le cri de Munch ou du Laocoon”. 26. RAWET. Abama, p. 411; grifo meu. 27. RAWET. Abama , p. 431.

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compreender a inscrição sensível da paisagem na literatura, a intensificação da relação entre o corpo que observa e o espaço em seu entorno. A visão pode se dar a partir de um ponto, mas sem que seja subordinada à perspectiva daquele que olha, ao horizonte que instaura a subjetividade. Diante disso, podemos pensar a experiência literária enquanto a criação deste plano de imanência que nos possibilita pensar as singularidades do espaço, hecceidades,24 perceptos25 e afectos que extrapolam a condição de um sujeito percipiente:

A paisagem vê. Em geral, qual o grande escritor que não soube criar esses seres de sensação que conservam em si a hora de um dia, o grau do calor de um momento (as colinas de Faulkner, a estepe de Tolstoi ou a de Tchekov)? O percepto é a paisagem anterior ao homem, na ausência do homem. Mas em todos estes casos, por que dizer isso, já que a paisagem não é independente das supostas percepções dos personagens, e, por seu intermédio, das percepções e lembranças do autor? E como a cidade poderia ser sem homem ou antes dele, o espelho, sem a velha que nele se reflete, mesmo se ela não se mira nele? É o enigma (frequentemente comentado) de Cézanne: “o homem ausente, mas inteiro na paisagem”. Os personagens não podem existir, e o autor só pode criá-los porque eles não percebem, mas entraram na paisagem e fazem eles mesmos parte do composto de sensações. [...] Os afetos são precisamente estes devires não humanos do homem, como os perceptos (entre eles a cidade) são as paisagens não humanas da natureza. “Há um minuto do mundo que passa”, não o conservaremos sem “nos transformarmos nele”, diz Cézanne. Não estamos no mundo, tornamo-nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o. Tudo é visão, devir. Tornamo-nos universo.28

Era um dia de verão, o calor intenso obrigava a caminhar pelas faixas de sombra ou colado aos edifícios. Era um dia belo, porém. A luz viva na atmosfera transparente acentuava cores e formas. Os galhos se projetavam nítidos, as folhas se individualizavam, os prédios ofereciam à vista suas arestas bem definidas e, nos mais novos o revestimento ganhava tonalidades novas e indefinidas.26

As folhas se singularizam, as cores se acentuam, como se as coisas tivessem existência autônoma, independente do sujeito que as observa. Nesse sentido, a escrita seria justamente a criação deste plano de imanência que comporta uma percepção singular, é através da escrita que a realidade singular das coisas se dão a ver, paisagem sensível, captada por um sujeito atravessado por devires de toda ordem: “[o] s postes espaçados criam zonas amarelas no emaranhado de sombras”.27 De acordo com Deleuze e Guattari,

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“A paisagem vê”. É a percepção colocada nas coisas mesmas. E é nesse processo intensivo que a cidade devém paisagem, devém percepto, uma vez que não é a percepção da cidade, por parte de um sujeito, mas a cidade, ela mesma, enquanto percepto, “paisagem não humana da natureza”. AZARA. Paisagem sensível: A percepção do espaço urbano […]

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28. DELEUZE; GUATTARI, O que é a filosofia, p. 218-219.


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29. RAWET. Crônica de um vagabundo, p.232.

30. RAWET. Crônica de um vagabundo, p.215.

Mas cabe ressaltar que a paisagem também se dá nas projeções, olhares e percepções marcadas pela subjetividade daquele que observa o espaço: “[a] insistência que punha nos passos transmutava as casas e os aspectos em torno”. 29 Nesse trecho do conto “Crônica de um vagabundo”, percebe-se a marca do sujeito que, através dos seus passos, transmutava o aspecto das coisas ao seu redor. No entanto, é justamente na intensificação desta relação entre sujeito e mundo, sujeito e espaço, que compreendemos a paisagem. Antes mesmo de ser da ordem de uma subjetividade que se projetaria em direção às coisas, são as próprias coisas que se mostram em suas singularidades: “[t]udo lhe surgia como em um desfile permanente, ele mesmo participando, onde o máximo a atingir era a contestação do desfile. E seguir, num sentido ou noutro, o essencial era seguir.”30 CAMINHADA E PAISAGEM

Foi nas minhas andanças que formulei todas as questões, refiz todas as perguntas, sonhei todos os sonhos.

Se no conto “Crônica de um vagabundo” e na novela Abama, por exemplo, a caminhada é o eixo condutor e propulsor de uma escrita gestada e pautada na errância, em outros contos do autor também é possível observar a ligação entre o ato de caminhar pelo espaço e a percepção das paisagens. No conto intitulado “Uma carreira bem sucedida”, o protagonista, ao sair de um bar, observa a intensidade do clarão do céu: “Já na escada rolante em direção ao ônibus da cidade livre viu o clarão do céu. Vermelho denso por trás das nuvens para os lados do nascente, leitoso por cima de sua cabeça”.31 Os personagens de Samuel Rawet estão muitas vezes em trânsito, por isso é comum observarmos a percepção não só durante uma caminhada mas também da janela de um veículo em movimento – trem ou ônibus, por exemplo – como se observa no “Conto de amor suburbano”, “[o] trem do subúrbio vazio na subida àquela hora dava-lhe a paisagem diferente, sua e não a que vira pela tarde”32 e também na novela Abama: “[...] na paisagem de sua janela dois urubus cortaram uma diagonal à procura da vala rente ao curtume.33

Nos contos e novelas de Samuel Rawet é comum encontrarmos personagens que perambulam pelo espaço urbano e apreendem a paisagem do entorno. A percepção da paisagem, neste sentido, está intrinsecamente ligada à caminhada.

A escrita de Samuel Rawet - ensaística e literária - é uma escrita de caminhada34 que busca a errância do próprio pensamento, do próprio processo reflexivo, o que se verifica, por exemplo, na tentativa do escritor de interpretar, à sua maneira, a redução eidética da fenomenologia husserliana: “mas interpretar mesmo, como idiota, como ingênuo, como

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31. RAWET. Uma carreira bem sucedida, p. 319.

32. RAWET. Conto de amor suburbano, p. 79. 33. RAWET. Abama, p. 435.

34. A respeito de uma “escrita de caminhada” cf. VASCONCELOS. Rimbaud das Américas e outras iluminações.


35

35. RAWET. A Gênese do binômio idéia-emoção, p.87.

criança, interpretar a partir de um fenômeno quase desconhecido, e profundamente ignorado: o homem comum”.35 Se o pensamento reflexivo de Samuel Rawet buscou romper as amarras da tradição filosófica, em seus textos literários o que se verifica é a tentativa de produzir uma escrita que buscou romper os limites da representação, uma escrita intensiva, que emaranha paisagem e pensamento, paisagem e corpo. Nesse sentido é possível afirmar que a paisagem para Samuel Rawet é uma questão que atravessa toda a sua produção literária e ensaística.

claridade tênue sobre as águas. Um desarranjo intestinal me leva a um bar da Assembléia. O vaso está trancado à chave e a chave amarrada pelo português a uma barra de ferro. No instante exato consigo girá-la. Sentado penso na forma que devo dar a este trabalho. Escrevi os prolegômenos para uma teoria da consciência unificada em um trabalho considerado altamente pornográfico: devaneios de um solitário aprendiz da ironia. Para não me repetir mudo o tom. De novo na assembleia, Rodrigo Silva, São José, Largo da Carioca. Dia. Há faixas de um sol ainda aquém do horizonte nas fachadas e nas nuvens. Ando pela Cinelândia deserta. Compro jornal. Raptaram o embaixador alemão. Clarice Lispector escreve sobre o infinito. Largo do Machado. Café na esquina de Machado de Assis. Praia do Flamengo. Entro no quarto com raiva da frescura dos literatos. Meu nome, entre outros, é narciso. Não faço versos. Sou Poeta, um homem que me dá a visão mais autêntica da realidade, inacessível ao homem da ciência; uso, e uso mal, o mais fino instrumento de representação do mundo: a palavra.36

Assim, nos ensaios do escritor brasileiro também é possível verificar esta relação intrínseca entre escrita, paisagem e deslocamento: Sou homem de crepúsculos. De transições. De nascimentos e mortes aparentes. E foi um crepúsculo vivido apaixonadamente que me deu o início deste livro. [...] Tomo café na Praça Quinze, e compro cigarros. Discuto com o rapaz do caixa. Não tem a minha marca. Entro na barca das cinco. É noite ainda. Amanhece tarde neste junho de novecentos e setenta. Salto em Niterói. Sinto com prazer a flexibilidade de meus músculos enquanto caminho à procura, entre homens, de um outro café. Vício. Um deles. Vendedores de cintos e lâminas. Alguns ônibus descarregam gente apressada. Regresso com eles à barca. Regresso à Praça Quinze. Café. Caminho numa

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Um “crepúsculo vivido apaixonadamente” dá início ao processo de escrita do autor. Assim como ocorre com alguns de seus personagens, no texto de caráter ensaístico a caminhada também é fundamental para a o sujeito. O crepúsculo, hora intermediária entre a noite e o dia, hora propícia ao percepto, à percepção sem sujeito, também se refere aos estados

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36. RAWET. Eu-tu-ele, p.99-100.


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internos do sujeito que é atravessado por devires, transições, fluxos. Poderíamos dizer que a paisagem, em Samuel Rawet, funciona como elemento desterritorializador, linha de fuga que faz o sujeito evadir de seus domínios racionalizados. A paisagem é algo da ordem do encontro, entre o sujeito e o mundo algo se passa: o sensível. Pensar, nesse sentido, em um “ser do sensível”, é pensar em uma alternativa a uma concepção de fenomenologia presa e dependente de um sujeito constituidor, intencional, que se projeta em direção às coisas. Assim, é possível pensar o sensível como um meio, um campo, um plano sensível, pré-filosófico e conceitual que envolve sujeito e objeto, corpo e consciência, anterior a uma relação subordinativa entre esses elementos:

37. COCCIA. O ser do sensível, p. 36.

Se a fenomenologia pode chegar à afirmação do primado da percepção sobre a consciência, ela ainda não parece ser capaz de tomar o ser do sensível independentemente do ser de um sujeito, de uma alma que o percebe. ‘A percepção’ – confessa mais adiante Merleau-Ponty – ‘não existe senão na medida em que alguém possa perceber’. É como dizer que toda a imagem só existe na medida em que há uma alma por trás dela, que a percebe ou que, através dela, está no ato de imaginar. Há sensível apenas porque há viventes no universo (homem ou animal, aqui a distinção não tem nenhuma importância): a condição de possibilidade da percepção (e, consequentemente, da imagem) é, de fato, a existência de um sujeito.37

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Na acepção do filósofo italiano Emanuele Coccia, o fenômeno é uma modalidade de ser particular que existe no meio, entre o sujeito e o objeto. Afirmação semelhante à de Michel Collot, salvo que, no caso de Emanuele Coccia, o sensível não está subordinado a um sujeito pensante que o constitui: a imagem, “ser do sensível”, tem uma autonomia ontológica: Não somos nós e nem mesmo nossos órgãos que transformam o mundo em algo passível de se fazer experiência. Não é o olho que abre o mundo: a luz existe antes do olho e não o seu fundo, o sensível existe antes e indiferentemente da existência de todo órgão perceptivo. Ela pertence ao vivente enquanto capaz de sensibilidade. É o sensível que abriu caminho para a existência da vida.38

O que nos interessa na argumentação do filósofo italiano é pensar a não subordinação do sensível a um sujeito que o constituiria, a possibilidade de refletir sobre esse “meio” no qual se dá a condição de possibilidade da percepção e no qual se possa configurar um conceito sensível de paisagem que, salientaremos mais uma vez, independe de um sujeito constituinte, intencional. Gilles Deleuze e Félix Guattari, se contrapondo a essa noção de “estrutura de horizonte”, vão formular aquilo que eles consideram um “horizonte absoluto”, independente de todo observador: “[o] que está em movimento é o próprio horizonte: o horizonte relativo se AZARA. Paisagem sensível: A percepção do espaço urbano […]

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38. COCCIA. O ser do sensível, p. 36-37.


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39. DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia, p. 54.

40. DELEUZE. Michel tournier e o mundo sem outrem, p.315.

41. DELEUZE. Michel tournier e o mundo sem outrem, p.317.

42. DELEUZE. Michel tournier e o mundo sem outrem, p.311-330.

distancia quando o sujeito avança, mas o horizonte absoluto, nós estamos nele sempre e já, no plano de imanência”.39 A proposição de um “horizonte absoluto”, incondicional, sem limites, autônomo, difere do “horizonte relativo” que pressupõe a posição de um observador, de um sujeito. Em outros termos, o que os filósofos questionam é a estrutura Outrem como expressão de um mundo possível, que articula o visível e o invisível e está na base da estrutura do campo perceptivo: “a parte do objeto que não vejo, coloco-a ao mesmo tempo como visível para outrem”.40 É esta estrutura que assegura a distinção da consciência e de seu objeto. De acordo com Gilles Deleuze, [u]m semblante assustado é a expressão de um possível mundo assustador ou de alguma coisa de assustador no mundo que ainda não vejo. Compreendemos que o possível não é aqui uma categoria abstrata designando alguma coisa que não existe: o mundo possível expresso existe perfeitamente, mas não existe (atualmente) fora do que exprime.41

É Outrem, como estrutura, que torna a percepção possível, e não um “eu”, um ego “transcendental”. Pensar o mundo sem outrem – que é justamente a leitura que Gilles Deleuze faz da obra Sexta-feira ou os limbos do pacífico, de Michel Tournier, no ensaio intitulado Michel Tournier e o Mundo sem Outrem42 – significa pensar um mundo em que EM  TESE

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“a consciência deixa de ser uma luz sobre os objetos para se tornar uma pura fosforescência das coisas em si”43 um mundo em que a consciência e seu objeto estão indiscerníveis. A quebra da estrutura outrem, no romance de Tournier, diz respeito à dissolução de um sujeito unificado, uma forma eu, de um sujeito enquanto unidade, essência, e a abertura a um “modo de vida impessoal, assubjetivo”,44 a um plano de imanência que não se determina por uma consciência transcendental: “[p]arte-se o objeto como identidade do sujeito. Todos são agora, força de um mesmo plano de consistência, diferenciando-se simultaneamente, mas como co-existência: a imanência pura da ilha de Speranza”.45 A configuração do plano de imanência, do campo transcendental, nos auxilia a pensar a ancoragem da experiência da paisagem no sensível. A paisagem deixa de ser apenas uma porção do espaço captada ou apreendida por aquele que a olha, ela é também a experiência fundamental, pré-racional, anterior ao homem. O “crepúsculo vivido apaixonadamente” é algo da ordem da sensação, que “age diretamente no sistema nervoso”,46 que afeta intensivamente o sujeito. E é aqui que a própria concepção de horizonte pode ser repensada, uma vez que ela também deixa de ser compreendida apenas como a linha imaginária ligada à posição de determinado observador, e passa a ser vista como lugar da perda de coordenadas um espaço não objetivável, irrepresentável, lugar do extravio, do descaminho: AZARA. Paisagem sensível: A percepção do espaço urbano […]

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43. DELEUZE. Michel tournier e o mundo sem outrem, p.321.

44. JARDIM. Como sair da ilha da minha consciência: Gilles Deleuze e uma crítica à subjetividade transcendental em Edmund Husserl, p.141.

45. JARDIM. Como sair da ilha da minha consciência: Gilles Deleuze e uma crítica à subjetividade transcendental em Edmund Husserl, p.157.

46. cf. DELEUZE. A lógica da sensação.


38

47. BESSE. Ver a Terra. Seis ensaios sobre a paisagem e a geografia, p.79.

48. STRAUSS. Du sens des sens, p.79

49. BESSE. Ver a Terra. Seis ensaios sobre a paisagem e a geografia, p.80.

A paisagem é desorientação radical, ela surge da perda de toda referência, ela é uma maneira de ser invadido pelo mundo. [...] ‘O espaço da paisagem é, de início, o lugar sem lugares do ser perdido’. [...] Nenhuma coordenada. Nenhuma referência. [...] ‘Nós saímos do caminho; como homens nos sentimos perdidos’ [...]. Não temos mais um lugar. Não temos mais lugar.47

No trecho citado acima, Jean-Marc Besse se embasa na distinção feita pelo fenomenólogo Erwin Strauss entre a geografia, que estaria do lado da percepção, e a paisagem, que estaria do lado do sentir: “[o] espaço do mundo da sensação está para aquele do mundo da percepção como a paisagem está para o espaço da geografia”.48 Se a paisagem está fundamentalmente ligada à existência de um horizonte, “o que quer dizer que não há paisagem sem a coexistência do aqui e do além, coexistência do visível e do oculto, que define a abertura sensível e situada do mundo”49 ao mesmo tempo a ideia de horizonte implica a perda de qualquer tipo de referencial, subsume um encontro pré-reflexivo entre o sujeito e o espaço, um transbordamento do ser que se abre à experiência de uma imersão na paisagem: Mas, a partir do momento em que ela se situa além do dispositivo moderno do objeto e do sujeito, sob qual forma aparece a experiência da paisagem? Falaremos aqui de imanênEM  TESE

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cia, de imersão, de participação, para nomear este encontro pré-reflexivo com o inobjetivável, que constitui o núcleo do evento-paisagem.50

É nesta “zona pré-individual e absolutamente impessoal, além (ou aquém) de toda ideia de consciência”51 que se configura a experiência da paisagem. Nesse sentido, ela implica “uma espécie de experimentação tateante, e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso”.52 Ela é o chão onde experimentamos “a vertigem do pensamento”. Como ocorre nos quadros do pintor inglês William Turner não que se deixa prender apenas aos dados sensíveis captados pelo pincel do artista, mas evoca o sublime que ultrapassa as condições de um sujeito percipiente, de um ponto de vista fixo. A experiência da paisagem é aquela da imersão, da perda de coordenadas, daquele que é invadido pelo mundo. Voltando à escrita de Samuel Rawet, a paisagem não se configura como mero pano de fundo para as deambulações dos protagonistas de seus textos, mas sim se constitui como algo da ordem dos afetos. Ela é aquela que está ancorada no sensível, na sensação, antes de ser da ordem do visível: “Vinha da praia, preocupado com um leve exagero do sol,

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50. BESSE. Le Goût du monde : exercices de paysage, p.54. “Mais, dès lors qu’elle se situe au-delà du dispositif moderne de l’objet et du sujet, sous quelle forme apparaît l’expérience du paysage ? On parlera ici d’immanence, d’immersion, de participation, pour mettre des mots sur cette rencontre préréflexive avec l’inobjectivable, qui fait le noyau de l’événementpaysage”. 51. AGAMBEN. A imanência absoluta, p. 174. 52. DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia, p. 58.


39

53. RAWET. Eu-tu-ele, p.109.

esse sol que me devolveu uma claridade externa, e de quem espero uma claridade interna. Doido por um café, tomo uma transversal à praia. Subitamente me vem a decisão de formular uma Teoria das ideias”.53

54. RAWET. Crônica de um vagabundo, p. 232

A paisagem aparece de múltiplas maneiras na obra do escritor, apreendida e percebida de diversas formas. No entanto, como procuramos salientar, ela é antes de mais nada o ponto de inflexão desterritorializador, linha de fuga, pensamento-paisagem, sensação-paisagem. Fundo inumano sobre o qual o humano se instala, ela é da ordem dos devires, dos estados intersticiais, das zonas de indiscernibilidade, captada por andarilhos, como o personagem de “Crônica de um vagabundo” que deambula pelo espaço urbano sem rumo certo: “[f]oi longo o percurso até reencontrar as águas da baía. Sem rumo certo orientava-se apenas pelo vento e pelo que lhe parecia ser o rumo da água. Eram longas as ruas, quase todas mal iluminadas, e à exceção de alguns bares ainda abertos, tudo dormia. Por onde andava?”.54 REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. A imanência Absoluta. In: ALLIEZ, Éric (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000.

________. Le Goût du monde : exercices de paysage. Arles: Actes Sud; École Nationale Supérieure du Paysage, 2009. COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Trad. Diego Cervelin. Florianópolis, SC: Cultura e Barbárie, 2010. (Coleção Parrhesia). COLLOT, Michel. La poésie moderne et la structure d’horizon. Paris: Presses Universitaires de France, 1989. ______. Do horizonte da paisagem ao horizonte dos poetas. Trad. de Eva Nunes Chatel. In: ALVES, I. F. & FEITOSA, M. M. M (orgs.). Literatura e paisagem: perspectivas e diálogos. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2010. ______. La Pensée-paysage. Arles: Actes Sud; École Nationale Supérieure du Paysage, 2011. ______. Poética e filosofia da paisagem. Trad. Ida Alves et al. 1. ed. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2013. DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o Mundo sem Outrem. In: DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva: EDUSP, 1975. _____; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992. (Coleção Trans).

BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra. Seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. São Paulo: Perspectiva, 2006.

______; GUATTARI, Félix. 1730: Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 4. Trad. Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997, p. 179214.

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O RELEVO DE ÁGUA VIVA: CLARICE LISPECTOR E A ESCRITA DA PAISAGEM

Tatiane Costa Souza*

* tattianecs@gmail.com Doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG.

RESUMO: Este trabalho pretende averiguar o movimento “impessoal” que se destaca no relevo da escrita de Clarice Lispector. Para isso, será feita uma leitura, privilegiando o livro Água viva e algumas passagens de A paixão segundo G.H e Um sopro de vida, que possibilite verificar como a composição do texto clariceano se lança rumo ao “vivo”, ao não humano, ao aberto da paisagem.

RESUMEN: Este trabajo propone investigar el movimiento “impersonal” que se destaca en el relieve de la escritura de Clarice Lispector. Para ello se hará una lectura, dando la prioridad al libro Agua viva y algunos pasajes de La pasión según G.H. y Un soplo de vida, que posibilite verificar como la composición del texto clariceano se lanza en la dirección de lo “vivo”, de lo no humano, de lo abierto del paisaje.

PALAVRAS CHAVE: Clarice Lispector; Água viva; impessoal; relevo; paisagem.

PALABRAS-CLAVE: Clarice Lispector; Agua viva; impersonal; relieve; paisaje.


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Quer ver comigo? Paisagem onde se passa essa música? ar, talos verdes, o mar estendido, silêncio de domingo de manhã. Um homem fino de um pé só tem um grande olho transparente no meio da testa. Um ente feminino se aproxima engatinhando, diz com voz que parece vir de outro espaço, voz que soa não como a primeira voz mas em eco de uma voz primeira que não se ouviu. [...] Um novo personagem atravessa a planície deserta e desaparece mancando. Ouve-se: psiu; psiu! E chama-se ninguém. Clarice Lispector

Água viva, de Clarice Lispector, foi publicado no ano de 1973. No entanto, esse livro passou por profundas alterações até que chegasse ao seu conteúdo final. A primeira versão extensa, que a princípio parecia ser definitiva, foi escrita por Clarice no ano de 1971. Essa versão, ainda um verso de um rascunho, intitulava-se Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Depois, passa a se chamar Objeto gritante. No entanto, nenhum dos dois títulos prevalece.

1. Cf. SEVERINO. As duas versões de Água viva. In: Remate de Males, p. 117. 2. LISPECTOR. Água viva, p. 35. 3. BRANCO. O sopro Clarice. In: ______; BRANDÃO. A mulher escrita, p. 210.

uma passagem do pessoal ao impessoal, que averiguaremos no texto da autora em questão. Para isso, circunscreveremos dois movimentos que se destacam no relevo da escrita clariceana: “Ele”, “ela”, “ninguém”; “Eu”, “tu”, “it”. PRIMEIRO MOVIMENTO: “ELE”, “ELA”, “NINGUÉM”

Na infinitude do espaço do livro Água viva, letras e mais letras se agrupam, disseminando sentidos diversos. As palavras pendem entre as acácias amarelas e formam um “intenso matagal”.4 Nessa “densa selva de palavras”, página a página, linha a linha, letra a letra, fios incessantes de voz e silêncio, emaranhados entre ramos e raízes, cobrem o espaço a ser desbravado pela leitura. Em meio à ramificação desses fios de letras, encontram-se vestígios de vida, de morte, de voz, de olhar, de silêncio, de solidão.

Ao seguir rumo à versão final do livro, a autora opera com um trabalho de corte e redução, pois, para chegar ao que conhecemos hoje como Água viva, ela teria eliminado mais de cem páginas.1 A razão de Clarice cortar parte do que já havia sido escrito resultava de uma preocupação em eliminar os dados de caráter mais pessoal ou autobiográficos. Na versão final, esse corte aparece através da escrita de um movimento da “bio”,2 de um vivo — “a vida em seu sentido mais visceral”.3 Portanto, será essa escrita do vivo, ocasionada por

Durante a leitura, passamos, de instante em instante, pelos rastros das letras deixados nas páginas. Nesse movimento, é possível percebermos que o espaço do livro Água viva, povoado por palavras e sentidos diversos, abre-se em um horizonte aberto. Lá, as palavras espocam, escorrem, espraiam. Lá, lemos sobre telas brancas, superfícies crestadas, espelhos vazios, jardins com águas correndo, gritos de pássaros, plantas e plantas, luar canhestro, tensão mágica e silenciosa do sol. Lá há dimensões nas quais seres e coisas se misturam.

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4. LISPECTOR. Água viva, p. 23.


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5. LISPECTOR. Água viva, p. 15.

6. LISPECTOR. Água viva, p. 13.

Nesse cenário, composto por uma paisagem, pelo vivo, a narradora de Água viva anuncia que começa as primeiras páginas com o desejo pela pintura, mas segue tomada pelo gosto das palavras. A escrita corre, então, em um fluxo de letras aquosas e, na sequência das páginas, entramos em um mundo que abriga um “emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras”.5 A dimensão desse mundo se expande por diversos espaços: grutas escuras e nimbadas de claridade; um jardim todo maduro de perfumes; fontes, lagoas e cachoeiras. Lá, há o mergulho na matéria pela palavra, o mergulho na escrita pela palavra, o mergulho na palavra pela palavra afluindo no aberto de um horizonte: Água viva.

Diante da humildade de uma possível personalização, um “ele”/um “ela” aparecem, acolhidos, primeiramente, pelas dobras das aspas.7 Nesse contexto, aquela que narra os instantes das palavras diz que em breve estará “pronta para falar em ‘ele’ ou ‘ela’”.8 Mas essa brevidade cada vez mais se distancia, pois esses pronomes, masculino/feminino, aparecem ligeiramente para logo se rarefazerem pelo espaço do livro, como podemos ver em algumas passagens.

O ele contou-me que morou durante algum tempo com parte de sua família que vivia em pequena aldeia em um vale dos altos Pirineus nevados. No inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas até a aldeia a farejar presa. Todos os habitantes se trancavam atentos em casa a abrigar na sala ovelhas e cavalos e cães e cabras, o calor humano e calor animal — todos alertamente a ouvir o arranhar das garras dos lobos nas portas cerradas. A escutar. A escutar.9

O ele desaparece. As páginas são, então, atravessadas pelo segredo das manhãs. A narradora conta sobre uma rosa, cujo gesto de sobrevivência, sustentado por dias a fio, lembrava os mistérios animais. Em seguida, um “ela” é mencionado em meio aos instintos abafados de bichos e gritos ancestrais: “Conheci um ‘ela’ que humanizava bicho conversando

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8. LISPECTOR. Água viva, p. 38.

Ao contar sobre filhotes de coruja e cavalos soltos, um “ele” surge fundido à paisagem do “vale dos altos Pireneus nevados”:

Da leitura que se faz pela paisagem desse livro, e, aqui, podemos tomar a última como o próprio relevo do texto, encontramos, logo nas primeiras páginas de Água viva, uma frase na qual aparecem algumas palavras entre aspas, e/ou em relevo. Lá, lemos: “E se eu digo ‘eu’ é porque não ouso dizer ‘tu’, ou ‘nós’ ou ‘uma pessoa’, sou obrigada à humildade de me personalizar me apequenando mas sou o és-tu.”6 Se recortarmos dessa frase aquilo que está entre aspas, eis o que resta: um eu, um tu, um nós, uma pessoa. Notamos que há breves tentativas de personalização na escrita de Água viva. Ao adentrarmos nas páginas desse livro, é possível percebermos alguns pronomes pessoais evocados entre aspas e, quem sabe, a tentativa de construção, que sempre fracassa, de uma narrativa que conte uma história humana. BELO HORIZONTE

7. Em alguns momentos, o ele/ ela aparecem entre aspas, em outros, sem as mesmas, mas, ainda assim, as aspas se tornam condutores da leitura.

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9. LISPECTOR. Água viva, p. 50.


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10. LISPECTOR. Água viva, p. 49.

11. LISPECTOR. Água viva, p. 52.

com ele e emprestando-lhe as próprias características. Não humanizo bicho porque é ofensa — há que respeitar-lhe a natureza — eu é que me animalizo.”10 Adiante, novamente, um “ela” aparece para logo morrer: “Soube de um ela que morreu na cama mas aos gritos: estou me apagando! Até que houve o benefício do coma dentro do qual o ela se libertou do corpo e não teve nenhum medo de morrer.”11

livro. Um corpo de ninguém começa a se compor através da tessitura da escrita. Sobre isso, lemos: “Na hora de pintar ou escrever sou anônima. Meu profundo anonimato que nunca ninguém tocou.”15 Ela inteira, à medida que rola no chão, vai se “acrescentando em folhas”. Ela, “obra anônima de uma realidade anônima”, vai aquém e além de sua história humana. Ela, anônima, escreve:

Lemos também sobre um ela/um ele que se apavoram diante da paisagem da natureza. Como a narradora conta:

12. LISPECTOR. Água viva, p. 92.

Para me interpretar e formular-me preciso de novos sinais e articulações novas em formas que se localizem aquém e além de minha história humana. Transfiguro a realidade e então outra realidade sonhadora e sonâmbula, me cria. E eu inteira rolo e à medida que rolo no chão vou me acrescentando em folhas, eu, obra anônima de uma realidade anônima só justificável enquanto dura a minha vida. E depois? depois tudo o que vivi será de um pobre supérfluo. Mas por enquanto estou no meio do que grita e pulula. E é sutil como a realidade mais intangível. Por enquanto o tempo é quanto dura um pensamento.16

Conheço um ela que se apavora com borboletas como se estas fossem sobrenaturais. E a parte divina das borboletas é mesmo de dar terror. E conheço um ele que se arrepia todo de horror diante de flores — acha que as flores são assombradamente delicadas como um suspiro de ninguém no escuro.12

14. LISPECTOR. Água viva, p. 52.

Como é possível percebermos, a narradora, vez ou outra, faz menção a um ele/um ela que se misturam aos fios da paisagem de Água viva — sejam eles plantas, bichos, “suspiros de ninguém no escuro”. Afinal, ela ainda não está “pronta para falar em ‘ele’ ou ‘ela’, pois demonstra ‘aquilo’. Aquilo é lei universal. Nascimento e morte”.13 Por enquanto, o que a “sustenta é o ‘aquilo’ que é um ‘it’”.14

17. LISPECTOR. Água viva, p. 21.

Nesse sentido, observamos que, diante do apagamento de um ele/um ela, aos poucos, um tom anônimo ganha voz no

Na durabilidade de um pensamento, que se faz com gritos de aleluia, destacamos uma passagem na qual a narradora se lança para outro lado: “a transfiguração me aconteceu. Mas o outro lado, do qual escapei mal e mal, tornou-se sagrado [...]. Ninguém saberá de nada: o que sei é tão volátil e quase inexistente que fica entre mim e eu”.17 Há, pois, um lado

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13. LISPECTOR. Água viva, p. 37.

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15. LISPECTOR. Água viva, p. 34.

16. LISPECTOR. Água viva, p. 22.


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sagrado, secreto, um lugar que, por sua quase inexistência, ninguém sabe contar.

18. LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 79.

19. LISPECTOR. Água viva, p. 82.

20. LISPECTOR. Água viva, p. 35.

Nesse outro lado, o tom anônimo se intensifica e um terceiro que nomearemos, por enquanto, de “um ninguém da escrita”, escreve-se. Sobre isso, lemos em Um sopro de vida: “O que escrevo agora não é para ninguém: é diretamente para o próprio escrever, esse escrever consome o escrever.”18 Já em Água viva, encontramos outro rastro de ninguém: “Estive só. Só de ti. Escrevo para ninguém e está-se fazendo um improviso que não existe. Descolei-me de mim.”19 No que se refere ao ninguém, ao processo de descolagem, é possível pensar na composição de Água viva, cujo método envolveu o corte de traços pessoais de Clarice Lispector. Nesse movimento, notamos o desaparecimento de uma pessoalidade e mais vestígios de ninguém deixados nesse livro: “Comi minha própria placenta para não precisar comer durante quatro dias. Para ter leite para te dar. O leite é um ‘isto’. E ninguém é eu. Ninguém é você. Esta é a solidão.”20 Disso, desdobra-se um ninguém que escreve para ninguém; um gesto solitário que atravessa os fios do texto; um tom anônimo da escrita; um “aquilo”; um “isto” — “uma melodia sem palavras”: Ontem eu estava tomando café e ouvi a empregada na área de serviço a pendurar roupa na corda e a cantar uma melodia sem palavras. Espécie de cantilena extremamente plangente. EM  TESE

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Perguntei-lhe de quem era a canção e ela respondeu: é bobagem minha mesmo, não é de ninguém. Sim, o que te escrevo não é de ninguém.21

O que ela escreve não é de ninguém. Se “essa liberdade de ninguém é muito perigosa. É como o infinito que tem cor de ar”,22 se “o ar é it”,23 essa liberdade caminha para um impessoal, um neutro, uma terceira dimensão. Mas se não há, nem ele, nem ela, como localizar esse terceiro que se escreve? Para avançarmos nesse ponto, primeiramente, recorremos às elaborações de Jacques Lacan sobre o feminino. Cabe lembrar que foi na travessia dos conceitos psicanalíticos que Lacan formulou uma nova forma de pensar A mulher.24 Se para Freud o feminino seria qualificado como um “continente negro”,25 Lacan segue por outro caminho, ao trabalhar a lógica do “não-todo” e do gozo como algo ininteligível. N’O seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan, ao diferenciar a posição feminina da masculina, estabelecerá que parte do gozo feminino é ligado à lógica fálica, mas que existe outra parte do gozo que a mulher não sabe dizer. Ou seja, o gozo d’a mulher está para além do falo, pois a posição feminina é ser ela não-toda submetida ao falo. Nesse sentido, não há uma palavra que defina a mulher, pois o significante falta. Portanto, o feminino será o que mais resistirá em se inscrever, seja no corpo anatômico (pois a mulher não tem o SOUZA. O relevo de Água viva: Clarice Lispector e a escrita da paisagem

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21. LISPECTOR. Água viva, p. 83.

22. LISPECTOR. Água viva, p. 83. 23. LISPECTOR. Água viva, p. 63.

24. Cf. LACAN. O seminário livro 20: mais, ainda, p. 100. 25. FREUD. A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial. In: ______. Um estudo autobiográfico; inibições sintomas e ansiedade; a questão da análise leiga; outros trabalhos. (1925-1926), p. 205.


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26. POMMIER. O Aberto, até onde as palavras podem nos transportar. In: ______. A exceção feminina: os impasses do gozo, p. 102.

27. LACAN. O aturdito. In: ______. Outros escritos, p. 467.

28. LISPECTOR. Água viva, p. 13.

falo), seja no campo simbólico da linguagem. Através dessas elaborações, Lacan propõe pensar a mulher em outra lógica: “a mais” do gozo, “além”, que nada significa à medida que não se inscreve no corpo, ou seja, um gozo ininteligível, que somente goza sem palavra alguma que o traduza. Sobre isso, ressoam estas palavras de Gerard Pommier: “O poeta, um místico, uma mulher mostram [...] nessa escolha do ‘sem abrigo’, de um fundamento sem fundo, a região essencial onde o falar apresenta sua união com o gozo de um Todo que se apoia no nada.”26 Do Todo ao nada, do “sem abrigo” à solidão, lemos, em Lacan: “Mas é também nisso que se aprende o que há por aprender, isto é, que mesmo que se satisfaça a exigência do amor, o gozo que se tem da mulher a divide, fazendo-a parceira de sua própria solidão, enquanto a união permanece na soleira”.27 Em Água viva, a união de um ele/um ela também fica na soleira e há uma recusa das tentativas de classificação: “Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais.”28 Nesse sentido, é possível pensarmos, a partir das construções lacanianas, em uma aproximação desse feminino, cuja parceria se dá com a própria solidão, com a escrita de Clarice, mais especificamente de Água viva, cujo caminho aponta para um ninguém.

que se trata, também, de outra dimensão do feminino. Para avançarmos nesse ponto, citamos a seguinte construção: “O risco — estou arriscando descobrir terra nova. Onde jamais passos humanos houve.”29 No risco, em mais um passo, ao longo da travessia da leitura desse livro, rumamos ao inumano. Sobre isso, lemos: “Minha noite vasta passa-se no primário de uma latência. A mão pousa na terra e escuta quente um coração a pulsar. Vejo a grande lesma branca com seios de mulher: é ente humano? Queimo-a em fogueira inquisitorial.”30 Posto isso, lançamos a seguinte questão: se há um feminino, cuja parceria se dá com a própria solidão, se há uma escrita que caminha na direção de um ninguém, de “onde jamais passos humanos houve”, esse feminino é “ente humano?” Para iluminar essa questão, citamos uma passagem de Freud, extraída da conferência “feminilidade”: Isto é tudo o que tinha a dizer-lhes a respeito da feminilidade. Certamente está incompleto e fragmentário, e nem sempre parece agradável. Mas não se esqueçam de que estive apenas descrevendo as mulheres na medida em que sua natureza é determinada por sua função sexual. É verdade que essa influência se estende muito longe; não desprezamos, todavia, o fato de que uma mulher possa ser uma criatura humana também em outros aspectos. Se desejarem saber mais a respeito da

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29. LISPECTOR. Água viva, p. 44.

30. LISPECTOR. Água viva, p. 38.


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31. FREUD. Feminilidade. In: ______. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. (1932-1936), p. 134.

32. LISPECTOR. Água viva, p. 54.

33. LISPECTOR. Água viva, p. 28-29.

feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e mais coerentes.31

Nessa elaboração, Freud deixa em aberto o fato de que a mulher, ou, mais ainda, o feminino, “possa ser uma criatura humana”. Há a possibilidade de um humano, mas, parece-nos, pode haver também, outra possibilidade, estranha e arriscada, do feminino estar próximo do não humano. Sobre a afluência dessa segunda possibilidade, recortamos duas passagens de Água viva. Primeiramente, na lucidez da escrita, ela conta: “Estou terrivelmente lúcida e parece que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou da desumanidade — o it.”32 Por essa via, do não humano, também lemos:

Elástica, prolongando-se pelas dobras da palavra, ela adentra uma floresta onde sobrevive para ser. Elástica, ela entra no mistério, em profunda alegria de um “êxtase secreto”. E eis que, nesse caminho, na composição de um pensamento, de um tom da escrita, emerge uma estranha impressão de não pertencimento ao gênero humano — uma “solidão de não pertencer”.34 SEGUNDO MOVIMENTO: “EU”, “TU”, “IT”

É possível percebermos que há vestígios do impessoal deixados, não somente em Água viva, mas ao longo da obra clariceana. Essas marcas do neutro, de uma paisagem que se abre, parecem ser tentativas de ultrapassar os limites do humano, na travessia que a própria escrita “exigiu” que Clarice Lispector fizesse. Sobre isso, Evando Nascimento, no livro Clarice Lispector: uma literatura pensante, observa:

Mas vou me seguindo. Elástica. É um tal mistério essa floresta onde sobrevivo para ser. Mas agora acho que vai mesmo. Isto é: vou entrar. Quero dizer: no mistério. Eu mesma misteriosa e dentro do âmago em que me movo nadando, protozoário. Um dia eu disse infantilmente: eu posso tudo. Era a antevisão de poder um dia me largar e cair num abandono de qualquer lei. Elástica. A profunda alegria: o êxtase secreto. Sei como inventar um pensamento. Sinto o alvoroço da novidade. Mas bem sei que o que escrevo é apenas um tom. Nesse âmago tenho a estranha impressão de que não pertenço ao gênero humano.33 EM  TESE

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A literatura de Clarice tem ajudado a questionar os limites do humano, na medida mesma em que traz para seu espaço formas concorrentes em relação à tradição, tais como animais e objetos, texturas, paisagens, cores, trechos musicais, ruídos e silêncios. Uma partitura de matérias e assuntos inusitados para a composição clássica. Textos como o “Ovo e a galinha”, ou “A quinta história”, Onde estivestes de noite, “O relatório da coisa”, A paixão segundo G.H., Um sopro de vida, além do excepcional Água viva, ficcionalizam certo não humano não como aquilo SOUZA. O relevo de Água viva: Clarice Lispector e a escrita da paisagem

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34. LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 111.


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35. NASCIMENTO. Clarice Lispector: Uma literatura pensante, p. 27.

36. Cf. BLANCHOT. O livro por vir, p. 292-293.

37. SANT’ANNA. O ritual epifânico do texto. In: NUNES (coord.). A paixão segundo G.H. (Edição crítica), p. 255. 38. NUNES. Clarice Lispector ou o naufrágio da introspecção. In: Remate de Males, p. 67-68.

que ameaça o homem, mas, ao contrário, contribui para o ultrapasse das barreiras impostas pela civilização dita ocidental no avançado estágio de seu desenvolvimento tecnológico.35

Na formação dessa escrita composta por animais, texturas, paisagens, podemos observar uma tentativa de Clarice em construir, desconstruindo, muitas vezes, um pensamento que, ao ultrapassar os limites da linguagem e, mais ainda, do humano, rume para o desaparecimento dos traços autobiográficos. Nesse sentido, no movimento que a escrita faz para alcançar essa experiência de apagamento, assistimos a um caminhar da própria obra rumo ao espaço deserto e neutro do impessoal.36 Parece-nos ser na direção da impessoalidade que a escrita de A paixão segundo G.H. também caminha. Nesse livro, anterior a Água viva, escrito em meados de 1963, a personagem G.H. vai além das fronteiras do humano, principalmente, quando coloca na boca a massa branca da barata. Do branco da matéria restam marcas do impessoal, que se propagam na continuidade da obra clariceana.

A fim de tentar localizar a entrada desse terceiro, coberto de impessoalidade, faremos uma digressão pelo livro A paixão segundo G.H. A história — que converge com Água viva, pois também não conta história alguma — do encontro de G.H. com o impessoal acontece quando a personagem entra no quarto da empregada, abandonado, como um quarto de ninguém. Lá há um som inaudível — “como o de uma agulha rodando no disco quando a faixa de música já acabou. Um chiado neutro de coisa, era o que fazia a matéria de seu silêncio”.39 Neste cenário, silencioso, neutro, impessoal, G.H. encontra uma barata no armário e fecha a porta sobre seu corpo. Desse ato, começa a brotar da barata uma matéria branca — matéria que G.H., depois de passagens de silêncio no quarto, coloca em sua própria boca.

Há algumas leituras de G.H. que apontarão que “a mulher (G.H.) e a barata têm uma relação de complementariedade binária”.37 No entanto, pensamos que entre a mulher e a barata não há uma relação binária, pois há a entrada de um terceiro elemento branco: “a matéria neutra, a vida crua”.38

Antes do encontro com o neutro, havia a persona, a máscara: “Para escapar do neutro, eu há muito havia abandonado o ser pela persona, pela máscara humana. Ao me ter humanizado, eu me havia livrado do deserto.”40 Depois da matéria branca, havia a falta de gosto do impessoal: “Eu sabia que o neutro da barata tem a mesma falta de gosto de sua matéria branca.”41 E, por fim, havia o medo: “O medo que eu sempre tive do silêncio com que a vida se faz. Medo do neutro. O neutro era a minha raiz mais profunda e mais viva — eu olhei a barata e sabia.”42

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39. LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 42.

40. LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 91-92.

41. LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 85.

42. LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 91.


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43. LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 101.

44. LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 173.

45. LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 174.

Para entrar no neutro, a personagem abandona sua organização humana. Nessa travessia rumo ao impessoal, aquilo que é “inexplicável e vivo”,43 G.H., assim como Clarice Lispector (C.L.), sabia que era preciso operar com o abandono; sabia que era preciso renunciar a algo; sabia que era preciso desconstruir. Sobre isso, lemos: “Mas agora, através de meu mais difícil espanto — estou enfim caminhando em direção ao caminho inverso. Caminho em direção à destruição do que construí, caminho para a despersonalização.”44 No caminho da desconstrução, segue a obra clariceana, ao recompor, com as ruínas dos traços daquela que escreve, com aquilo que resta, a escrita de um pensamento que se sustenta pelos abismos da palavra. Parece-nos que Clarice sabia que a experiência de despersonalização não se daria sem desistências e perdas, pois, para prosseguir nesse “caminho inverso”, é preciso, pouco a pouco, tirar algo de si “com um esforço tão atento que não se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da própria pele”.45 Parece-nos, também, que tenha sido em meio aos gestos de renúncia e corte, ao buscar o apagamento de si mesma, que Clarice tenha se lançado, em sua obra, na escrita de Água viva, em direção a um impessoal.

da leitura, seguimos, novamente, pelo caminho das dobras das aspas em Água viva. Desta vez, sem o “eu”, o “ele”, o “ela” ou “uma pessoa”, resta, abrigado nas dobras das aspas, o elemento puro, o “it”. Sobre isso, a narradora, que é “it” e nasce das escuridões, escreve: Nasci por Ordem. Estou completamente tranquila. Respiro por Ordem. Não tenho estilo de vida: atingi o impessoal, o que é tão difícil. Daqui a pouco a Ordem vai me mandar ultrapassar o máximo. Ultrapassar o máximo é viver o elemento puro. Tem pessoas que não aguentam: vomitam. Mas eu estou habituada ao sangue.46

Na ultrapassagem dos limites da linguagem, na entrada pelo mistério do impessoal, sem o pessoal que às vezes a encharca, ela se aproxima daquilo que é seco, duro e, outras vezes, mole como o pensamento de uma ostra — daquilo que é vivo: Sou-me. Mas há também o mistério do impessoal que é o “it”: eu tenho o impessoal dentro de mim e não é corrupto e apodrecível pelo pessoal que às vezes me encharca: mas seco-me ao sol e sou um impessoal de caroço seco e germinativo. Meu pessoal é húmus na terra e vive do apodrecimento. Meu “it” é duro como uma pedra-seixo. A transcendência em mim é o “it” vivo e mole e tem o pensamento que uma ostra tem. Será

Desse modo, daquilo que é cortado, recortado, para que a água, em sua vivacidade, possa escorrer sulcando um traço pelo livro, resta o impessoal. Para nos orientarmos nessa via EM  TESE

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46. LISPECTOR. Água viva, p. 47.


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47. LISPECTOR. Água viva, p. 30.

48. LISPECTOR. Água viva, p. 30-31.

que a ostra quando arrancada de sua raiz sente ansiedade? Fica inquieta na sua vida sem olhos. Eu costumava pingar limão em cima da ostra viva e via com horror e fascínio ela contorcer-se toda. E eu estava comendo o it vivo. O it vivo é o Deus.47

Quer ver comigo? Paisagem onde se passa essa música? ar, talos verdes, o mar estendido, silêncio de domingo de manhã. Um homem fino de um pé só tem um grande olho transparente no meio da testa. Um ente feminino se aproxima engatinhando, diz com voz que parece vir de outro espaço, voz que soa não como a primeira voz mas em eco de uma voz primeira que não se ouviu. A voz é canhestra, eufórica e diz por força do hábito de vida anterior: quer tomar chá? [...] Alguém olha as unhas. Há um som que de longe faz: psiu! psiu!... Mas o homem-do-pé-só nunca poderia imaginar que o estão chamando. Inicia-se um som de lado, como a flauta que sempre parece tocar de lado — inicia-se um som de lado que atravessa as ondas musicais sem tremor, e se repete tanto que termina por cavar com sua gota ininterrupta a rocha. É um som elevadíssimo e sem frisos. Um lamento alegre e pausado e agudo como o agudo não-estridente e doce de uma flauta. É a nota mais alta e feliz que uma vibração poderia dar. Nenhum homem da terra poderia ouvi-lo sem enlouquecer e começar a sorrir para sempre. Mas o homem de pé sobre o único pé — dorme reto. E o ser feminino estendido na praia não pensa. Um novo personagem atravessa a planície deserta e desaparece mancando. Ouve-se: psiu; psiu! E chama-se ninguém.49

Se o vivo, o “it”, é Deus, o Deus é também o mundo. Notamos a aproximação do impessoal com aquilo que existe no espaço do mundo, que é, também, como uma prece, uma meditação sobre o nada. Das palavras que se compõem e existem em apagamento, lemos o seguinte: “Vou parar um pouco porque sei que o Deus é o mundo. É o que existe. [...] A prece profunda é uma meditação sobre o nada. É o contato seco e elétrico consigo, um consigo impessoal.”48 O “it” vivo é também plasma, leite, ostra, placenta. Há, assim, das ruínas dos traços que restam, sem ele nem ela, aquilo que vivo vibra, aquilo que na impessoalidade alcança o não humano — um terceiro anônimo. Ao rumarmos pelo caminho do não humano, do anonimato, presentes no texto clariceano, seguimos, agora, na direção daquilo que nomearemos, tomando de empréstimo um termo da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, como “feminino de ninguém”. Primeiramente, recortamos duas passagens de Clarice Lispector e Llansol, a fim de pensar aquilo que as aproxima e possibilita a leitura por esse caminho de ninguém. Na primeira cena, vinda de Água viva, descortina-se: EM  TESE

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Na segunda cena, (re)colhida do livro Lisboaleipzig 2 — o ensaio de música, de Maria Gabriela Llansol, lemos:

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49. LISPECTOR. Água viva, p. 90-92.


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Passeava-se distraidamente por Lisboa quando passou por ele uma mulher nova. Sentiu-lhe os seios baterem livres contra a camisa, as pernas e o garbo da garupa (não tinha palavra melhor) caminharem sem entraves como luzes fátuas vistas na luz translúcida de um balão veneziano. Aquele movimento era um misto de substância viva, aragem firme, e luz trémula. Passou por mim foi o que pensou mais tarde, e guardou como expressão exacta um porte altivo e um vestido ao vento.

50. LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 2 — o ensaio de música. Lisboa: Edições Rolim, 1994, p. 37.

Não é correcto dizer que Aossê nunca a viu. Vira-a, mas sem o rosto. Normalmente, é verdade que o verbo ver alguém supõe um rosto, conhecido ou a conhecer. Não vira ninguém é correcto, mas vira ninguém não é menos próprio: um rosto sem rosto. Fora-lhe mostrado — dir-se-ia — à medida das suas posses. Se eu a tivesse visto teria de ir atrás dela porque o desejo nasceu-lhe logo intenso. Uma vontade de ter de _______________. De a ter, de me enfiar nela, sem magoar, e sem recusa. Um movimento que nem sequer esboçaria. Nunca o fizera: — Estão-me a ver? — A ver o quê, Aossê? Sabemos que nunca irias atrás dela, dizer-lhe ou dar-lhe a entender que me queria pôr nela — Por isso o seu rosto não lhe foi mostrado. Deram-lhe um feminino de ninguém a ver. Viva, veloz, livre, altiva.50

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Na composição da primeira cena-paisagem, escrita por Clarice, além de ar, talos verdes, o ar, há a presença de “um homem fino de um pé só”, de um “ente feminino”, que não pensa, estendido na praia e, ainda, a travessia pela planície deserta de um novo personagem que desaparece mancando — um terceiro “anônimo, impessoal e neutro como o deserto”.51 Parece ser nessa direção,52 de um terceiro anônimo, que Maria Gabriela Llansol também descreve a passagem desse vestido ao vento sem rosto — um “feminino de ninguém”. Desse tecido que veste um corpo de ninguém, como uma tessitura composta de fios anônimos, podemos citar o ensaio “Masculino, feminino, neutro”, escrito por Roland Barthes. A partir da leitura do Sarrasine de Balzac, o autor escreve sobre a vestimenta, o neutro, um terceiro sexo: É preciso, pois, voltar-se para a simbólica de Sarrasine. Seu centro aparente é o sexo. A vestimenta, material predileto dos romancistas, só conhece dois, o masculino e o feminino; Balzac tem, portanto, continuamente necessidade de um terceiro sexo, ou de uma ausência de sexo; não lhe resta então mais do que definir a castração, seja como uma mistura simultânea de masculino e de feminino (é o traje do velho), seja como uma sucessão dos dois (Zambinella se veste de mulher, depois de homem). Esta distribuição vestimentária traduz bem a dificuldade que o romancista sente em colocar simbolicamente

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51. NUNES. Clarice Lispector ou o naufrágio da introspecção. In: Remate de Males, p. 67. 52. Cf. BRANCO. Três digressões sobre o texto ardente e o feminino de ninguém. (Texto inédito); BRANCO. O feminino em biografemas: Llansol, Clarice, Duras. (Texto inédito).


52

53. BARTHES. Masculino, feminino, neutro. In: CARVALHAL; ZILBERMAN; BORDINI; NUNES; FILIPOUSKI (Org.). Masculino, feminino, neutro: ensaios de semiótica narrativa, p. 10-11.

o castrado na estrutura institucional dos sexos, que é inelutavelmente binária; pois se nos atemos a essa estrutura, já que a ausência de marca faz nela o feminino, de que poderia ser feito o neutro? Em realidade, e a linguística o atesta, o neutro não pode ser colocado diretamente numa estrutura sexual; nas línguas indo-européias, a oposição do masculino e do feminino é menos importante que a do animado e do inanimado; ela lhes é, portanto, subsequente. [...] o narrador não pode, pois, indexar o castrado senão discretamente, por aquilo que se poderia chamar o neutro feminino (uma criatura tão encantadora, uma organização feminina).53

Em Sarrasine, como observa Barthes, a vestimenta só conhece duas dimensões: a masculina e a feminina, pois mesmo que Balzac tenha necessidade de um “terceiro sexo” — uma dimensão que rompa com a lógica binária — há quem diga que “o neutro não pode ser colocado diretamente em uma estrutura sexual”. No entanto, se há linhas de pensamento que qualificam o neutro com uma “ausência de sexo”, propomos, a partir da passagem de Llansol, na qual há uma vestimenta para o ninguém, um vestido ao vento, pensarmos o terceiro, que adentra na paisagem deserta do texto clariceano, como um ausente, aquele que sem rosto, apaga-se, quem sabe, um “neutro feminino” — um “feminino de ninguém”. No texto “O feminino em biografemas: Llansol, Clarice, Duras”, Lucia Castello Branco faz uma leitura que avança na EM  TESE

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noção de feminino em direção ao que Llansol propõe como “feminino de ninguém”. Como sugere a autora, a direção do “feminino de ninguém” parece se aproximar daquilo que Lacan anuncia em 1979, n’O seminário, livro 26: a topologia e o tempo, quando ele sugere a existência de “um terceiro sexo” — aquele que não pode subsistir em presença dos outros dois.54 Afinal, se há essa possibilidade de um “terceiro sexo”, quem sabe, ele só possa existir, assim, sozinho, desconectado, longe dos limites que a linguagem impõe. Quem sabe, ele exista no movimento da escrita. Quem sabe ainda, ele exista na ramagem da árvore, nas asas de um pássaro solitário, na água que corre pelo chão seco — no não humano, naquilo que avança rumo ao ninguém. Nesse sentido, se a escrita de Água viva é como uma “mensagem de pessoa só”55 e se, como a narradora escreve, “ninguém é eu. Ninguém é você. Esta é a solidão”,56 da pessoa, resta aquele que, em sua solidão, abandonou sua pessoalidade (sua persona?)57 — um ninguém. Em Água viva, o “emissor é, pois, personne (ninguém), ou seja, alguém que seja um ser inumano. [...] É por isso que o destinatário, conforme a voz narrativa, não lerá jamais o que ela escreve, uma vez que o tema é atemático e se situa no limite da legibilidade”.58 Portanto, como observa Lucia Castello Branco, “é também em direção a um ‘feminino de ninguém’ que veremos a questão do feminino avançar, na obra de Clarice Lispector,

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54. Cf. LACAN. El seminario, libro 26: la topologia y el tempo. (Seminário inédito).

55. LISPECTOR. Água viva, p. 43. 56. LISPECTOR. Água viva, p. 35. 57. LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 81.

58. PETERSON. Clarice Lispector: uma leitura do sujeito. In: Organon, p. 111.


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59. BRANCO. O feminino em biografemas: Llansol, Clarice, Duras. (Texto inédito).

60. BLANCHOT. O espaço literário, p. 19.

61. BLANCHOT. O espaço literário, p. 21.

62. BRANCO. O sopro Clarice. In: ______; BRANDÃO. A mulher escrita, p. 205.

a partir da redução da vida a alguns ‘pormenores sutis’, a alguns biografemas”.59 Pois se o texto clariceano segue entre cortes e perdas, em um movimento de apagamento dos excessos autobiográficos, é possível pensarmos naquilo que indica Blanchot: a passagem do “Eu” ao “Ele” que, por sua vez, converte-se em um ninguém. O “Ele” que toma o lugar do “Eu”, eis a solidão que sobrevém ao escritor por intermédio da obra. “Ele” não glorifica a consciência em um outro que não eu, [...] “Ele” sou eu convertido em ninguém, outrem se torna o outro, é que, do lugar onde estou, não possa mais dirigir-se a mim que aquele que se me dirige não diga “Eu”, não seja ele mesmo.60

Ao descolar-se dele mesmo, o escritor, imerso na solidão que habita a obra, atravessado pelo interminável da escrita é, então, convertido em ninguém. Nesse movimento, “o ‘Eu’ que somos reconhece-se ao soçobrar na neutralidade de um ‘Ele’ sem rosto”.61

desdobramento, lemos: “Quem fala parece que sou eu, mas não sou, É uma ‘ela’ que fala em mim.”63 Parece-nos, que, em Água viva, há também essa conversão: um “Eu” fala a um “tu” que nada responde. Tem-se, desse modo, a dobra do “Eu” que, sem o ela, o ele, lança-se ao tu, ao ti, ao it, ao ninguém. Quem sabe o tu esteja próximo ao it, pois o “tu é duro como pedra e recusa-se a ser atingido, mas a água é mole... Água é it? Dentro da ostra, sim. Recoberta pela dureza da concha”.64 Quem sabe, ainda, se na combinação de letras que compõem essa escrita, o eu e o tu sejam permutáveis e, por isso, “podem integrar-se com o não-humano — as palavras, os animais, a natureza, a ‘coisa’, ou até mesmo o ‘it’”.65 Assim, sem o ele/o ela, com a paisagem que se abre em Água viva, há o abandono do humano e aparecimento de formas vegetais e animais que se ramificam ao longo da escrita. Como observa Roberto Correia dos Santos: Abandonam-se sequencialidades demarcadas por conectivos e produzidas por efeito de régua, compasso, esquadro. Abandona-se esse cálculo geométrico, para construir-se por formas livres, vegetais, sinuosas, suculentas; a frase em desenvolvimento, como que seguindo a direção da luz natural, em acordo com a umidade do solo, as características do terreno. [...] A escrita, sob a forma das folhas e das ramagens. A escritura como natureza, na maioria das vezes vegetal, mas, muitas

Acreditamos que seja também na conversão de um “Eu” em um “Ele sem rosto” (ou em um “Ela sem rosto”) que a escrita de Clarice opera. Como propõe Lucia Castello Branco, no livro Um sopro de vida, “por meio de um suposto desdobramento daquele que é nomeado o ‘Autor’ em sua ‘personagem’ ‘Ângela’, opera-se essa passagem do ‘Eu’ a seu ‘Ele’”.62 Desse

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63. LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 73.

64. MASTROBERTI. A palavra em quarta dimensão: leituras de Água viva, de Clarice Lispector. In: Letrônica, p. 322.

65. MATOS. Romance sem romance: o caso de Água viva de Clarice Lispector. In: Letrônica, p. 310.


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66. SANTOS. Na cavidade do rochedo: a pós filosofia de Clarice Lispector, p. 41-42.

outras, animal. [...] E para além desse amor pelas linguagens que se ramificam e proliferam como a dos troncos, galhos, raízes e para além ainda do amor pela linguagem dos animais — que vivem simplesmente —, o grande amor pelo que está fora tanto da natureza quanto da cultura, e até mesmo fora da linguagem — o grande amor pelo que chamará de it: o nem ele, nem ela — o neutro, o impessoal, o âmago.66

Desse modo, em Água viva, abandonam-se as sequencialidades, que poderiam narrar uma história; abandona-se o gênero humano, que poderia encadear os acontecimentos no texto; abandonam-se os traços, que haveriam de cobrir as letras com fios de pessoalidade. Com esse movimento de renúncia, não há uma narrativa a ser contada, mas, sim, fragmentos de letras que escorrem pela superfície do livro; não há uma dimensão do pessoal, mas um caminho rumo ao it, ao impessoal, a um ninguém; não há, ainda, um ele/um ela, mas há um não humano que se lança em meio às plantas, às raízes, aos galhos, às folhagens, aos animais. Na “direção da luz natural” e entre os milhares de reflexos do sol que atravessam as páginas de Água viva, há um caminho que se abre em pura paisagem. Lá, em meio a uma ramificação que se amplifica pela “densa selva de palavras”, no ritmo de uma música selvática, há folhas esmagadas e plantas aveludadas e carnívoras. Nesse cenário, ao mencionar

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os sacrifícios animais e cerimônias de sortilégio, feras e cavalos em carros alegóricos, ela escreve sobre a preferência por certo tipo de paisagem: “Gosto é das paisagens de terra esturricada e seca, com árvores contorcidas e montanhas feitas de rocha e com uma luz alvar e suspensa. [...] Sou uma árvore que arde com duro prazer”.67 Ela, cujo “impulso se liga ao das raízes das árvores”,68 segue por um caminho de raízes que rebentam a terra. A escrita, que se alastra pelo aberto dessa paisagem, liga-se à força da natureza e das árvores. O texto se funde com esse espaço, é assim que ela escreve: “Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas raízes de árvore descomunal, é assim que te escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres”.69 Terra, raízes, corpos, mulheres. No aberto desse lugar, ela, sozinha, ao buscar viver o que é redondo e amplo, conta: “cerco-me por plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo mítico. Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma ideia: sou orgânica”.70 Há uma força que a guia, vinda de uma “sensualidade vital de estruturas nítidas e das curvas que são organicamente ligadas a outras formas curvas”.71 Da natureza em cântico coral, das curvas orgânicas, das quais escorre resina pelo tronco das árvores, ressoam ruídos de plantas. Sobre isso, ela escreve: SOUZA. O relevo de Água viva: Clarice Lispector e a escrita da paisagem

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67. LISPECTOR. Água viva, p. 39. 68. LISPECTOR. Água viva, p. 42.

69. LISPECTOR. Água viva, p. 20.

70. LISPECTOR. Água viva, p. 23-24. 71. LISPECTOR. Água viva, p. 40.


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72. LISPECTOR. Água viva, p. 41-42.

Na minha viagem aos mistérios ouço a planta carnívora que lamenta tempos imemoriais [...] As inscrições cuneiformes quase ininteligíveis falam de como conceber e dão fórmulas sobre como se alimentar da força das trevas. Falam das fêmeas nuas e rastejantes. E o eclipse do sol causa terror secreto que no entanto anuncia um esplendor de coração.72

Podemos articular essas passagens do vivo de Água viva com aquilo que desenvolve Maria Gabriela Llansol, em sua obra, como a paisagem — “o terceiro sexo”. Em Onde vais, Dramapoesia?, Llansol oferta “a boa nova anunciada à natureza”: tudo participa das diversas partes: a boca, a copa frondosa, o cogumelo, a falésia, o mar, a erva rasteira, a leve aragem, os corpos dos amantes. Os três sexos que movimentam a dança do vivo: o homem, a mulher, a paisagem.

Observamos, então, que, no aberto da paisagem de Água viva, misturados entre os ramos de letras, há “Fêmeas nuas e rastejantes, inscrições cuineiformes, plantas e animais legendários banhados pela luz de um sexo mítico”. Das folhagens da escrita desse livro, há, pois, uma “natureza que é sexualmente viva”:

73. LISPECTOR. Água viva, p. 25.

Esta é a novidade: a paisagem é o terceiro sexo. A paisagem não tem um sexo simples. Nem o homem, nem a mulher. Há, no entanto, alguns fatos que aqui consigno: Na paisagem ou na geografia imaterial da espécie terrestre, os seres humanos distribuem-se em vagabundos, em formadores e poetas. Os vagabundos erram à procura de uma nova paisagem. São desde sempre, exteriores à comunidade. Os construtores são os elementos estabilizadores que prendem toda a geografia imaterial á vida cotidiana. Os formadores sentem essa geografia porque o seu órgão é o coração. Os poetas vêem, e anunciam a geografia imaterial por vir. Os construtores, os formadores são peregrinos. Os poetas também o são, de certo modo. Há uma grande afinidade que os liga aos vagabundos. Porque são os únicos que desejam o retorno do ser como Belo. É vital conhecer a paisagem.75

A densa selva de palavras envolve espessamente o que sinto e vivo, e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que fica fora de mim. A natureza é envolvente: ela me enovela toda e é sexualmente viva, apenas isto: viva.73

Da natureza que é sexualmente viva, há, ainda, o espalhamento do “erotismo próprio do que é vivo” pelos corpos e lugares:

74. LISPECTOR. Água viva, p. 40.

O erotismo próprio do que é vivo está espalhado no ar, no mar, nas plantas, em nós, espalhado na veemência de minha voz, eu te escrevo com minha voz. E há um vigor de tronco robusto, de raízes entranhadas na terra viva que reage dando-lhes grandes alimentos.74 EM  TESE

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75. LLANSOL. Onde vais, DramaPoesia?, p. 44-45.


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76. BRANCO. O feminino em biografemas: Llansol, Clarice, Duras. (Texto inédito).

Nem ele, nem ela, nem o homem, nem a mulher, mas o erotismo próprio do que é vivo, a paisagem, um terceiro sexo. Nesse sentido, a escrita de Clarice Lispector, ao estabelecer uma passagem do pessoal ao impessoal, parece enveredar pelas vias do não humano, do vivo. Vemos, então, o texto clariceano avançar fora dos limites do binarismo e na direção de um impessoal. Esse movimento instaura uma outra lógica, na qual há uma tentativa de conceber um feminino não referido ao masculino — um “feminino de ninguém”.76 Portanto, o que vemos/lemos no relevo de Água viva são os rastros deixados por esse “ente feminino”, que sabe ser vital conhecer a paisagem e, por isso, avança sozinho na imensidão dela. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Masculino, feminino, neutro. In: CARVALHAL, Tania Franco; ZILBERMAN, Regina Levin; BORDINI, Maria da Glória; NUNES, Luiz Arthur; FILIPOUSKI, Ana Mariza (Org.). Masculino, feminino, neutro: ensaios de semiótica narrativa. Porto Alegre: Globo, 1976. p. 1-17. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. BRANCO, Lucia Castello. O sopro Clarice. In: ______; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. p. 201-215.

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BRANCO, Lucia Castello. Três digressões sobre o texto ardente e o feminino de ninguém. (Texto inédito). BRANCO, Lucia Castello. O feminino em biografemas: Llansol, Clarice, Duras. (Texto inédito). FREUD, Sigmund. A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial. In: ______. Um estudo autobiográfico; inibições sintomas e ansiedade; a questão da análise leiga; outros trabalhos. (1925-1926). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 20). p. 175-240. FREUD, Sigmund. Feminilidade. In: ______. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. (19321936). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22). p. 113-134. LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. LACAN, Jacques. O aturdito. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 448-497. LACAN, Jacques. El seminario, libro 26: la topologia y el tiempo. 1979. (Seminário inédito). LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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POMMIER, Gérard. O Aberto, até onde as palavras podem nos transportar. In: ______. A exceção feminina: os impasses do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. p. 94-104.

LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 2: o ensaio de música. Lisboa: Edições Rolim, 1994. LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000. MASTROBERTI, Paula. A palavra em quarta dimensão: leituras de Água viva, de Clarice Lispector. Letrônica, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 317-329, 2009. MATOS, Anderson Hakenhoar. Romance sem romance: o caso de Água viva de Clarice Lispector. Letrônica, Porto Alegre v. 2, n. 1, p. 306-316, 2009. NASCIMENTO, Evando. Clarice Lispector: uma literatura pensante. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

SANT´ANNA, Affonso Romano de. O ritual epifânico do texto. In: NUNES, Benedito (Coord.). A paixão segundo G.H. Edição crítica. Madrid, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Lima, Guatemala, São José da Costa Rica, Santiago de Chile: ALLCA XX/Scipione cultural, 1997. p. 241-261 SANTOS, Roberto Corrêa. Na cavidade do rochedo: a pósfilosofia de Clarice Lispector [livro eletrônico]. São Paulo: IMS — Instituto Moreira Salles, 2012. Disponível em: <http:// claricelispectorims.com.br/files/uploads/books/book_4.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2014. SEVERINO, Alexandrino. As duas versões de Água viva. Remate de Males: Revista do Departamento de Teoria Literária e do Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, UNICAMP, n. 9, p. 115-118, maio 1989.

NUNES, Benedito. Clarice Lispector ou o naufrágio da introspecção. In: Remate de Males: Revista do Departamento de Teoria Literária e do Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, UNICAMP, n. 9, p. 63-70, maio 1989. PETERSON, Michel. Clarice Lispector: uma leitura do sujeito. Organon: Revista do Instituto de Letras, Rio Grande do Sul, UFRGS, v. 17, n. 17, p. 105-112, 1991.

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EU TE DOU A MINHA PALAVRA (A MATÉRIA NÃO MENTE)

Maraíza Labanca Correia*

* maraizalabanca@gmail.com Doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG.

RESUMO: Este ensaio propõe uma aproximação entre “A literatura e o direito à morte”, de Maurice Blanchot, e alguns textos de Nuno Ramos, em especial “Manchas na pele, linguagem”.

RÉSUMÉ: Cet essai propose une approche entre “La littérature et le droit à la mort”, de Maurice Blanchot, et certains textes de Nuno Ramos, em particulier “Manchas na pele, linguagem”.

PALAVRAS-CHAVE: matéria; morte; linguagem.

MOTS-CLÉS: matière; mort; langage.


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Pego com as mãos a beleza de um dizer performativo que se admite numa promessa. A beleza desta fala: eu te dou a minha palavra. Nela, o dizer consente com o que lhe é alheio, com o que estaria alhures. O aqui e o ali, o agora e o outrora coincidem, pois a palavra está imediatamente dada no curso de uma fala: dizer eu juro é fazê-lo, mesmo que a promessa não se cumpra – se será cumprida ou não pouco importa. O que importa é que a palavra já está dada ao ser proferida a frase. Num átimo, dizer é fazer: um juramento tem o peso de uma assinatura.

1. A instalação foi montada em 2014, na Caixa Cultural Rio de Janeiro.

Com essa frase a sobrevoar meu pensamento, olho, por muito tempo, o detalhe de uma instalação de Nuno Ramos: Choro negro 31. Ali se lança alguma coisa que queima e escorre, feita lágrima escura a deslizar sobre um vidro translúcido a suster seu deslizamento. Ali, uma escultura se faz desfazendo-se, uma forma se flagra pelo seu movimento, como se fosse dada voz à matéria. Foi-lhe dada a palavra – como se passa a palavra ao outro, numa conferência ou numa mesa-redonda, ela ganha o tempo de dizer(-se). E, mesmo que não diga propriamente nada (pois não faz uso de palavras), ela fala por seus meios, por seus meandros, por seus silêncios. Ela fala fazendo. A matéria se enruga por si mesma. Sua viscosidade garante uma forma instável, sem garantias. Ela se estende em direção ao chão, mas também se adensa, se acumula em alguns pontos. No entanto, não para. Sua cor ganha tonalidades próprias, da alegria e da doçura do

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dourado à austeridade do negro, passando por tons avermelhados e terrosos. Vejo que o breu – de que é feita a matéria que escorre – guardava em potência todas essas matizes que só poderiam ser atualizadas pelo seu aquecimento, desfazendo-lhe a dureza e a solidez antes homogênea.

FIGURA 1 - Choro negro 3 (detalhe) Fonte: site do artista – http://www. nunoramos.com.br FIGURA 1

A forma se abre. Quase vejo, no lugar do breu que escorre, um pedaço de carne cujas fibras, irregulares, guardariam a memória das vísceras que dele se desprenderam, como essas que vemos expostas nos açougues para serem compradas, não fosse o fato de que o que escorre é a própria carne do breu, mais viscosa e inquieta do que uma carne morta. Nesse CORREIA. Eu te dou a minha palavra (A matéria não mente)

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2. “A linguagem do corpo terra, que diz a partir da concretude, da proximidade com as coisas. Diz a gosma alaranjada das lenhas. Disseram-me que o âmbar é uma resina que cai dos pinheiros no fundo do oceano. Dizer só a partir da concretude mesma, da ressonância, uma palavra inteiramente não produzida”. PESSANHA. A exclusão transfigurada. Versão oral gravada no auditório do SESC Pinheiros entre março e junho de 2008 para Tertulia – encontros de literatura. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=J6YN03_GHCc. Há uma versão um pouco modificada desse texto publicada, com o mesmo título, em: PESSANHA, Juliano Garcia. Instabilidade Perpétua. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p. 43-62.

escorrimento, as nuances, sempre provisórias, acontecem no tempo de um gerúndio que enfraquece a forma, sempre vindo a ser, num movimento imprevisível e sinuoso em que o artista apenas concede o impulso inicial. A matéria é quem fará o resto, como se ela também assinasse a obra. Lembremos: não se trata mais de lágrima humana, é a matéria que chora. É a matéria que gestualiza-se. Ela se diz, (des)fazendo-se. O breu se funde e escorre, quente, e a escultura acontece num acontecendo, animada pela força do chão e pelo seu aquecimento. Ela se (des)faz, fazendo-se. O artista, nesse momento, retira as mãos (suas mãos nela queimariam), como quem solta o leme e consente com a deriva do que assumiu uma vida própria. Na obra insiste, no seu visgo e nas suas cores quentes, talvez, a consumação do fogo, como quem diz “a partir da concretude mesma”. O breu escorre como “a gosma alaranjada das lenhas”2. A LÍNGUA DAS LENHAS

Mas dizer “a partir de uma concretude mesma”, dizer “a gosma alaranjada das lenhas”, não é exclusividade das artes plásticas. Há, em alguns escritores, uma língua das lenhas, atravessada pelo mistério das coisas. Nela, a palavra falaria a si mesma, recusando-se a designar a generalidade dos seres. Consentiria com o que lhe é alheio, com o que se aparta da fala corrente. Nela, também alguma coisa queima e escorre, num

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“vazamento poético”3 que opacifica o vidro translúcido do discurso – como o breu, ela se enruga a si mesma e fala por seus silêncios. Palavra que gestualiza-se, quente, e que diz dizendo-se, viscosa, na sua “fuga bailarina”, “sempre renovada” – palavra “luminosa, cheia de sargaços”, ou ainda: “infravermelha”4.

3. A expressão é utilizada por Nuno Ramos em entrevista ao Canal Cultura. 4. RAMOS. O pão do corvo, p. 17.

Uma palavra vermelha, talvez, entre o negro e o dourado, que toca ao mesmo tempo a luz e o luto, a morte e o júbilo – o fogo. Palavra-lenha que é tratada por Maurice Blanchot em “A literatura e o direito à morte”, mas também por Nuno Ramos, em alguns de seus textos, em especial “Manchas na pele, linguagem”. Porque haveria duas espécies de palavras; primeiro as que, quentes, tocaram o fogo e, segundo, as que dele se distanciam, refugiando-se na sua forma estanque e abstrata, fria. As primeiras falariam a partir das coisas, coisas que elas próprias são. As segundas aniquilariam as coisas, esquecendo-as e submetendo-as à sua inexistência. Essas últimas, designativas, pela chancela do sentido, cancelariam as coisas. Elas negam, nas coisas, o que elas são. Negando-as, porém, garantem, das coisas, uma noção. Uma noção das coisas é o que encontramos nessa língua abstrata, mas sob o preço de perdê-las. Nessa segunda espécie de palavras, perdemos as coisas, fingindo que as ganhamos. Pois, uma vez nomeadas, as coisas, escreve Blanchot, perdem sua realidade de carne e osso5. Fazendo-nos crer que nome e coisa são homogêneos e contínuos, os nomes do dia retêm a ausência da coisa CORREIA. Eu te dou a minha palavra (A matéria não mente)

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5. Cf. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 331-332.


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6. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 333.

7. RAMOS. Ó, p. 12.

8. RAMOS. Ó, p. 17-18.

dentro de seus contornos bem definidos, essencializando-a. Mortificando-a, também. Mas a coisa aí ressuscitaria “plena e certamente como sua ideia (seu ser) e como seu sentido: a palavra lhe restitui, no plano do ser (da ideia), toda a certeza que ele [um objeto, um bicho] tinha no plano da existência”6. Essa certeza conferida no plano do ser, da ideia, veste a ausência de tal modo que a esquecemos. Mais definitiva e segura do que as próprias coisas, essa certeza ganha naturalidade suficiente para substituí-las.

leva a esquecer a morte a que a coisa é relegada ao nos valermos das palavras segundas9. É a posição que assumimos quando “nós nos sentamos e damos nomes, como pequenos imperadores do todo e de tudo”10 que passa, gradativamente, nesse texto, a sofrer uma desacomodação. “Quando falamos”, escreve Blanchot, “tornamo-nos senhores das coisas com uma facilidade que nos satisfaz. Eu digo: essa mulher, e imediatamente disponho dela, afasto-a, aproximo-a, ela é tudo que desejo que seja, […]; a palavra é a facilidade e a segurança da vida”11.

Nuno Ramos também interpela o estatuto do nome. O texto “Manchas na pele, linguagem”, publicado em Ó, é de ponta a ponta atravessado por essa questão. A segunda espécie de palavras é sinalizada logo no princípio, quando o narrador depara com manchas em sua face – pormenores mosqueados na pele, “sinais extraterrestres no corpo” –, que deixam de gerar angústia à medida que lhes são atribuídos nomes: “e me alegrei com a possibilidade de ganhar a companhia, mesmo que de uma doença, de alguma coisa com nome definido”7. Nomear a doença é, aqui, delimitá-la na zona do pensável, é ceder ao imperativo de dar-lhe contornos bem definidos, é medicá-la, remediá-la, é tentar vencer a morte, suprimindo-a e velando-a pelos efeitos do discurso.

Mas o próprio Blanchot sinaliza, também, que há uma outra incidência da linguagem, vislumbrada no homem primitivo.

Mas, pouco a pouco, “Manchas na pele, linguagem” vai desvelando os engodos dessa segunda espécie de palavras, “estranha ferramenta, […] que me põe para fora do corpo […]”8, que EM  TESE

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O ser primitivo sabe que a posse das palavras lhe dá o domínio das coisas, mas entre as palavras e o mundo as relações são para ele tão completas, que o manejo da linguagem permanece tão difícil e arriscado quanto os contatos entre os seres; o nome não saiu da coisa, ele é o seu dentro, posto perigosamente às claras e, contudo, sendo ainda a intimidade oculta da coisa; portanto, esta ainda não está nomeada. Quanto mais o homem se torna homem de uma civilização, mais ele maneja as palavras com inocência e sangue-frio. Seria porque as palavras perderam toda relação com o que designam?12

Lendo Blanchot, vejo que seu texto, em vários pontos, toca o de Nuno Ramos, pois “Manchas na pele, linguagem” também menciona os homens primitivos, tentando apresentar o CORREIA. Eu te dou a minha palavra (A matéria não mente)

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9. Essas palavras segundas teriam uma função, digamos, tumular. Os túmulos, conforme escreve Nuno Ramos, são um dos modos de recobrir a morte, para que a toleremos, esquecendo-a. Fazemos afundar os mortos na terra, no fogo, ou no mar, velando-a para nós. Desde as “ogivas de concreto, aos mármores de suas lápides, aos emblemas de pedra ou dispostos na grama […]”, aparentemente edificados para nos lembrarmos dos mortos, os túmulos são, na verdade, “marcos e monumentos, pequenos oratórios à beira das estradas, cidadelas em miniatura para tentar esquecê-los”. Pois as lápides tentam nos livrar de uma morte que “rugia de perto” demais, vestindo-a com a túnica do esquecimento. As lápides “pavimentam o esquecimento, permitindo à vida que faça o que tem de fazer, seguir sem os mortos (o que nos incluirá a todos)”, seguir sem essa lacuna deixada aos vivos, pois é “isso que a morte carrega, deixando um halo, um talho, uma mordida aos vivos”. Cf. “Túmulos”, em: RAMOS. Ó, p. 33-45. 10. RAMOS. Ó, p. 20. 11. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 330-331. 12. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 331.


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13. RAMOS. Ó, p. 22. 14. RAMOS. Ó, p. 22-23.

15. RAMOS. Ó, p. 23-24.

surgimento de uma civilização que maneja as palavras com inocência e sangue frio. Para os homens primitivos, a linguagem – uma linguagem que passaram a tomar por mundo – adquiria eficácia à medida que alheava a dor numa expressão que os poupasse. As palavras, fabricadas, tornavam-se, para eles, uma “moeda de troca”, uma “comunhão na doença”, “a mais exótica das invenções”13. Palavras que, com o tempo, pareciam tão naturais e verdadeiras “quanto uma rocha”, substituindo-se “ao real como um vírus à célula sadia”14. Decorreu disso a formação de uma civilização, a comunidade dos falantes, que teria expulsado os “heróis mudos” (teriam eles se mantido primitivos?); civilização reunida, amarrada, pela corda da linguagem. Restam hoje apenas algumas pistas desta origem ou, para dizer de outro modo, alguns sinais fora da linguagem. Parece uma experiência cotidiana, ainda acessível a todos, estranhar subitamente o som de determinada palavra como demasiado abstrato ou inverossímil em relação àquilo que designa, e o velho jogo infantil de repetir indefinidamente um mesmo vocábulo até que perca completamente qualquer ligação com aquilo que procura indicar talvez queira nos conduzir, apenas, de volta a uma época em que cada coisa tinha seu peso sinestésico, e tanto a cor como o sabor como a imagem eram o índice livre para aquele pássaro flechado. […] Quando entramos em choque com algo inaceitável ou excessivamente belo e ficamos, literalmente, sem palavras, estamos recuperando esta etapa adormecida de nossa natureza15.

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Diante dessas experiências que restam ao homem civilizado, essas experiências “fora da linguagem”, lembramos que, sim, as palavras perderam a relação com as coisas, como já havia indicado Blanchot16. Caberia então perguntar se, uma vez que essas experiências existem como restos, apontariam, mesmo para o homem civilizado, um outro contato com a linguagem, mais além da designação, abrindo brechas, saídas, para a entrada da primeira espécie de palavras. A linguagem viral, anel da comunidade dos falantes, foi tornando o homem o que ele é hoje. Onde grassa a segunda espécie de palavras, há, segundo leio em “Manchas na pele, Linguagem”, a “anestesia das palavras”17. Com a maldição dos heróis mudos18, contudo, algo na língua escaparia ao sentido e à anestesia das palavras, uma maldição que “açoda de perto todas as línguas vivas ou mortas”19. Tratar-se-ia de uma maldição abrigada no corpo, “em seu mal-estar entranhado e inexprimível, em sua carga desarticulada de dor e de sofrimento, de tal forma inconcebível que os próprios narcóticos tornam-se legítimos, em doses medicinais de morfina apaziguando o que vai além das palavras”20. Mais uma vez, são os restos de uma experiência fora da linguagem-artefato que o texto de Ramos aponta, destacando agora esse momento de dor cega, que não pode ser alheado numa expressão (facial, gestual, linguística) capaz de nos poupar. Nesse ponto, evade-se o sentido; e “nosso CORREIA. Eu te dou a minha palavra (A matéria não mente)

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16. Refiro-me ao trecho já citado: “Quanto mais o homem se torna homem de uma civilização, mais ele maneja as palavras com inocência e sangue-frio. Seria porque as palavras perderam toda relação com o que designam?”. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 331. 17. RAMOS. Ó, p. 25. 18. O último herói mudo que sobreviveu ao exílio, à expulsão da comunidade dos falantes, segundo leio em “Manchas na pele, linguagem”, teria lançado aos falantes “uma terrível maldição calada”: algo da dor seria para eles sempre inexprimível. Na dor cega, na dor intratável, a cisão haveria de ser total, igualando, ironicamente, nesse momento, os doentes aos heróis mudos. Na dor cega não vale nem a ilusão de qualquer expressão, pois “A dor não se duplica”. Não é possível apaziguá-la pela linguagem, darlhe um nome, porque não há um nome para essa parte pânica da vida. A palavra comum dá conta do dia, mas abandona na dor profunda, na morte, na agonia. Ela aí não existe ou desarticulase. Cf. RAMOS. Ó, p. 26. 19. RAMOS. Ó, p. 26. 20. RAMOS. Ó, p. 26.


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21. RAMOS. Ó, p. 26. 22. RAMOS. Ó, p. 26. Não raro as inflexões sobre a linguagem no texto de Nuno Ramos enviam ao interpelamento do corpo; pois haveria um corpo a onde a linguagem mal chega, de carga desarticulada, inexplorado e mudo. A linguagem como ferramenta permite o laço social que deu origem à comunidade dos falantes, ou dos doentes, processo civilizatório de que restou, ainda, um corpo, a sua “parte pânica, corpórea e dolorida – ali não há linguagem”, pois ainda não há um nome para essa “doença”. Ver RAMOS. Ó, p. 27. 23. HELDER. Ofício cantante – poesia completa, p. 460. 24. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 330-331.

corpo é quem de algum modo fala”21, enquanto a língua regride, geme, grunhe ou grita. Uma língua agora esvaziada de eficácia mediadora, medicinal: só com ela se saberia que “a dor não se duplica, que não há signo para a doença e que o corpo, o corpo profundo, continua inexplorado e mudo”22. “A POESIA É UM BATISMO ATÔNITO”23

Blanchot havia afirmado que o nome nos torna senhores do mundo, um mundo em que manejamos as palavras com inocência e sangue frio, palavras que garantem a estabilidade das coisas, mas de onde as coisas se retiram. Por vezes, no entanto, um objeto sem nome se coloca no caminho de uma vida, e “De um objeto sem nome não sabemos o que fazer”24. Mas isso que se apresenta sem nome interessa à escrita literária, ela mesma às voltas com aquilo que no corpo é desarticulado e que parece não poder ser capturado pelas palavras. Na narrativa “O nome disso”, de O mau vidraceiro, nos é acenado justamente o que não poderia ganhar o gesso das palavras. Introduzida por um diálogo brutalmente interrompido, após um forte ruído vindo da rua, efeito de um acidente de trânsito em torno do qual uma multidão se aglomerava, a narrativa desemboca na cena em que uma velha murmurava presa ao banco, pedindo ajuda. De sua boca jorrava sangue e, Mostrando alguma coisa sólida, e muito vermelha, na palma da mão (parecia um dente, ou dois, ou ainda um pedaço de carne EM  TESE

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esmagada, ou mesmo um órgão inteiro, arrancado na batida), estendeu o braço para fora da janela, na direção dos dois amigos, e falou, quase soletrando as letras – não sei o nome disso25.

Assim termina o curto texto, no momento em que se tenta nomear alguma coisa por aproximação: “parecia um dente, ou dois, ou ainda um pedaço de carne esmagada, ou mesmo um órgão inteiro”. Mas persiste algo inomeado, alguma coisa muito vermelha. É então que a língua da mulher acidentada soletra as letras e, mais certeira que a dos homens que lhe assistiam, estando sem palavras, deixando que faltassem as ferramentas do dizer, que o habitual sucumbisse à brutalidade de uma ferida exposta, acederia à sentença final: “não sei o nome disso”. Também insuficiente, seu ato de nomear era proporcional ao de mostrar: “estendeu o braço para fora da janela”, “mostrando alguma coisa sólida, e muito vermelha”. Como quem oferece um recém-nascido e ergue-o nos braços para o seu batismo, ela ostenta aquilo que de seu corpo foi extraído, aquilo que do seu próprio corpo tornara-se irreconhecível. Define precariamente o indefinido, negando-lhe o nome e nomeando-o, ao mesmo tempo, com o pronome isso, numa espécie de gesto anafórico que se anula, ao permanecer inaugural. Um isso que a nada generaliza, ele não cabe ainda em uma ideia bem definida do ser, mas que tem aqui a justeza das palavras capazes de respeitar o aspecto informe, incomunicável e indefinido da coisa, como um “termo que serve para CORREIA. Eu te dou a minha palavra (A matéria não mente)

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25. RAMOS. O mau vidraceiro, p. 60.


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26. BATAILLE. Georges Bataille: Textos para a revista Documents, p. 81.

desclassificar”26. Anterior e resistente à nomeação, diz por meio de uma língua soletrada, que, letra a letra, nada dizendo, mostra, transtorna e resta sem sentido possível. UM NOME ÚMIDO

Tomo ainda um outro texto de Nuno Ramos, também de O mau vidraceiro, em que, novamente, se está às voltas com os nomes e com aquilo que os excederia. Em “Pierrô”, é descrita uma paisagem de dejetos que sobraram do carnaval: tantos cacos, um mundo pisado, o recolhimento necessário para colher os pedaços, o que restou da festa que parecia interminável, sucedendo a euforia da véspera. A quarta-feira de cinzas é esse dia em que tudo parece morrer. No entanto, em meio a essa paisagem composta de morte, advém uma miragem, como alguma coisa difícil de situar e/ou nomear:

Estava pensando, que nome dou para isso? Para isso que sinto? Para que sinto isso? Sinto exatamente isso27.

“Tem muita coisa desse negócio de morte na minha obra”, afirmou Nuno Ramos em entrevista, indicando que, assim como em “Pierrô”, aquilo que parece arrastar para a morte, arrasta também para a vida. Aproximar-se da morte seria, pois, um gesto de aproximação da vida, talvez porque a “morte tem a potência de abrir o real”: “ela [a morte] é a mesma força que refaz a vida. É nesse sentido que a coisa da morte está presente na minha literatura”30. Para Ramos, além da lacuna deixada aos vivos, há algo mais na morte que nos apavora, por isso nossos esforços para recobri-la sob a segunda espécie de palavras – tumulares e frias. Para ele, haveria na morte uma “fertilidade insana”, um “florescimento incontrolável” 31, isto é, uma vida.

Diante da miragem, esse isso que desestabiliza a sua relação com os nomes, cumpria fundar uma nova forma de

Em alguns textos, a escrita de Nuno Ramos chega e se reduz ao Isso, a esse limite que diz que não se pode nada mais

Que dia é hoje? Que horas são? Por que tantos cacos? Garrafas espalhadas, latas de alumínio pisadas. Meus passos enroscados aos cachorros. E a visão de uma miragem. Exatamente. 27. RAMOS. O mau vidraceiro, p. 71.

dizer. Da miragem que advém ante uma cidade e seus restos, em uma quarta-feira de cinzas em que tudo parece morrer, algo insistia sem nome. É nesse momento que a voz que enuncia encontrará a música. Quando tudo silencia após a euforia dos dias precedentes, ocorre-lhe a música, “um ritmo sincopado, que pedia. E parecia úmida, frágil, quente ainda. Como uma vida”28. Sim: “Exatamente. Posso contar assim. Como uma vida. Foi exatamente isso”29. Mais uma vez, com um isso o texto termina, é sua última palavra. Um isso que, em meio à morte, convoca, agora, a vida e a música.

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28. RAMOS. O mau vidraceiro, p. 72. 29. RAMOS. O mau vidraceiro, p. 72.

30. RAMOS. Nuno Ramos. Jornal Rascunho, p. 9-10.

31. RAMOS. Ó, p. 42-43.


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32. BARTHES. A Preparação do romance I: da vida à obra, p. 101. 33. BARTHES. A Preparação do romance I: da vida à obra, p. 167. 34. Sobre isso, ver BARTHES. A Preparação do romance I: da vida à obra, p. 152. 35. BARTHES. A Preparação do romance I: da vida à obra p. 165. Em alguns momentos, Nuno Ramos toma o ato de nomear como motor de sua escrita. Ora rechaçando toda possibilidade de dar nome, ora procurando-o na justeza de um nome ainda indefinido. Algumas vezes ocorre o isso, “isso” súbito que, dêitico capaz de a qualquer coisa se referir, não é capaz, nesses textos, de definir o todo. O nome permanece, aí, enraizado no inominável, “mal dito”, e fiel à precariedade da língua, tornando a palavra um “coeficiente de opacidade” (RAMOS. Cujo, p. 49). >>>

dizer; tal qual uma nota de verdade, estreita. Diz-se: É isso, é apenas isso ou é exatamente isso – o que, sendo uma coisa pouca, não é pouca coisa. Fica-se, nesse limite, com o que habita o depois do sentido, como desenvolveu Roland Barthes ao propor uma leitura das formas breves A Preparação do romance I: da vida à obra. Para Barthes, nas formas breves (o haicai, a notatio, a epifania) se alojaria um ponto intratável da escrita, um ponto de cesura do discurso, quando restaria então dizer: É isto!, como quem silencia, como quem acaba “de ser tocado por alguma coisa”32, em seu frescor. Alguma coisa, afinal, que “parecia úmida, frágil, quente ainda”. “Isto: remetendo ao Wu-shi, à naturalidade -> Isso explica por que os mestres Zen citavam frequentemente a poesia (chinesa clássica), escolhendo quadras ou versículos de sentido designativo (É isso!), calando-se depois: a própria definição do haicai: ele designa […] e depois se cala”33.

linguagem, no nada a dizer, mas a mostrar-se, há, segundo Barthes, o “Neutro dêitico ‘isto’”35. “PEDAÇOS DE MUNDO (PALAVRAS PRINCIPALMENTE)”

Retorno de novo a “Manchas na pele, linguagem”, no ponto em que, nesse texto de teor mítico, foi lançada, pelos heróis mudos, a maldição calada à horda dos falantes. De acordo com essa “maldição calada”, abrigada no corpo, haveria, para cada falante, uma carga de dor inarticulável, pânica, inexprimível, indicando que algo, nele, “vai além das palavras”36. Algo vai além das palavras justamente porque a palavra não basta para a verdade que ela contém. Mas a linguagem literária é feita de inquietude, é feita também de contradições. Sua posição é pouco estável e pouco sólida. De um lado, numa coisa, só se interessa por seu sentido, por sua ausência, e essa ausência ela desejaria alcançar absolutamente nela mesma e por ela mesma, querendo alcançar em seu conjunto o movimento indefinido da compreensão. Além disso, observa que a palavra gato não é apenas a não existência do gato, mas a não existência que se tornou palavra, isto é, uma realidade perfeitamente determinada e objetiva. Vê ali uma dificuldade e mesmo uma mentira. Como pode ela esperar ter cumprido sua missão só porque transpôs a irrealidade da coisa para a realidade da linguagem? De que maneira a ausência infinita da compreensão poderia aceitar confundir-se com a

Quando a única coisa a dizer é o É isto, algo a mais está colocado na escrita, e o isso/isto torna-se o nome inominável que atesta algo impossível de dizer, abrigado num corpo inexplorado e mudo (embora de outro modo fale). O isso ocorreria quando algo ao lado do acontecimento, ao lado do espanto, como uma autoridade pura34, se deixa pousar no texto Depois do “É isso” ou “É isto”, frente à força do que aí se celebra, dispensa-se a hipertrofia da interpretação. A coisa-da-palavra é o que interessa, absolutamente. No limite da

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35. >>> Pois seria possível dizer esse isso que aos nomes escapa, por meio, talvez, de uma “palavra súbita”, como diria Ramos, imprevista, abandonada dos ditos do discurso. A palavra súbita, dita a cada vez, acontece à boca de quem encontra a “fração correta do fracasso” (RAMOS. Cujo, p. 25). Encontro, porém, que não depende das “boas intenções” de um escritor, mas de um trabalho que se realiza a despeito das leis do trabalho, trabalho da mão esquerda, essa mão cega que a tudo derruba, a fazer um corpo disponível de ser trabalhado por uma escrita que a ele não pertença e onde seja ainda um recém-chegado. Esse nome dito a cada vez também será, então, instável e frágil, úmido e quente ainda, que consente com o fracasso de nomear e com a procura interminável por fazê-lo. 36. RAMOS. Ó, p. 26.


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37. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 334.

38. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 334.

presença limitada e tacanha de uma palavra só? E a linguagem diária, que quer nos persuadir disso, não estaria enganando-se? Com efeito, engana-se e engana-nos. A palavra não basta para a verdade que ela contém37.

se tornava a comunidade dos falantes –, antes considerados não linguísticos, teriam uma mudez em tudo diversa da dos bichos. Sua mudez advinha do fato de que eram, na verdade, radicalmente linguísticos,

É sua condição de existência como linguagem que a palavra seja um artefato limitado, estável, rígido. Mas essa sentença implacável – a palavra não basta para a verdade que ela contém – apenas a primeira espécie de palavras poderia tocar. Para Blanchot, a palavra literária seria aquela capaz de apontar o que vai além das palavras nas próprias palavras, como a afirmação de uma impossibilidade; palavra de inquietude e contradição, instabilidade e pergunta. Na literatura, as palavras são “mais capazes de reconciliar com a liberdade selvagem da essência negativa, dos conjuntos instáveis, […] deslizamento sem fim de ‘expressões’ que não chegam a lugar nenhum”38. O movimento e o deslizamento do que segue sem objetivo definido decorrem da abertura da palavra, à mercê de sua própria selvageria e irrepresamento. Pois o que vai além das palavras não poderia ser simplesmente contornado pelo poder nomeador dos termos comuns.

a ponto de que tudo para eles pertencesse à linguagem. Cada árvore seria o logaritmo de sua posição na floresta, cada pedregulho parte do anagrama espalhado em tudo e por tudo. Mover-se-iam entre alfabetos físicos perceptíveis aos seus cinco sentidos (e ler talvez constituísse um sexto, que reunisse e desse significado aos demais), e cada cor seria música e cada música seria mímica, e cada gesto seria um texto; o sangue do cervo que derrubaram; os fios de pêlo que os aquecia. Em tudo liam, nas nuvens e no hálito, no dorso de um mamífero, na luz fosforescente de um inseto que já morreu, na textura dos troncos e no seu limo […]. Tudo parecia escrito para eles e bastava que tocassem um corpo de pedra ou de carne para que o enorme livro se abrisse e mais uma linha fosse escrita. Todo o acontecer parecia parte desta página, reescrita a cada momento; todas as mortes, os pios, cada gota, cada sal39.

Ao final de “Manchas na pele, Linguagem”, onde se formula o que Nuno Ramos vai chamar de uma “última hipótese” para a origem mítica da linguagem, leio que os heróis mudos – pouco gregários, expulsos da horda primitiva que

Para esses heróis mudos, ler e tocar seriam operações indistintas, e o enorme livro se abriria a cada vez que o ato se impunha, porque nada poderia acontecer fora desse livro: todas as mortes, os pios, cada gota, cada sal, redobrados numa página infinita. Contudo, como toda matéria física, essa língua

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39. RAMOS. Ó, p. 28-29.


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40. RAMOS. Ó, p. 30.

41. RAMOS. Ó, p. 30.

era mutável e perecível, aceitando certo grau de metamorfose, acima do qual se tornaria irreconhecível – o livro estaria incendiado. É então que o texto nos lança outra hipótese: “Talvez um grande cataclisma – um terremoto, um meteoro ou um incêndio – tenha transformado a tal ponto a matéria que os cercava que acabou por emudecer para sempre este texto físico, obrigando à sua substituição”40. Com a perda dessa escrita que continha todo o acontecer em alfabetos físicos, os homens teriam optado por substituí-la pela fala, de fácil manuseio, e capaz de tamponar a perda sofrida. Cada palavra dita substituía a coisa perdida, operando uma duplicação, um “falso duplo para nos poupar”, como também havia feito a comunidade dos falantes. “E assim, por precaução, nunca mais atribuíram matéria à linguagem, mas apenas vento e signo sem matéria. Com isso, não corriam mais perigo”41. Mas: Fico imaginando o que teria acontecido se tivessem desafiado o cataclisma e construído uma linguagem com os restos da antiga, calcinada. Se ao invés de tornarem-se ventríloquos das coisas tivessem transformado as próprias cinzas, a terra deserta, o maucheiro de tantos bichos mortos, expostos ao céu e à risada das hienas, se tivessem transformado as próprias hienas em sujeito e predicado de seu mundo moribundo. Se tivessem a coragem de escrever e falar com pedaços e destroços. Então seriam parte

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deste caos, desta correnteza de lava e de morte, mas trariam a cabeça erguida, seus passos teriam o tremor do terremoto que os aniquilou e sua risada a potência do vento lá fora42.

Tratar-se-ia da tarefa de renunciar a substituir o que foi perdido, fazendo das perdas a própria linguagem, “colocando os fragmentos sob a luz, transformando todos esses restos em linguagem”43: “Pedaços de mundo (palavras principalmente)”44. Fazer uma linguagem de restos – isso que, nas palavras, vai além das palavras? – portanto distinta da língua que usamos para falar, constituída apenas de vento e signos sem matéria. Contra a covardia da fabricação de uma língua puramente abstrata, o texto de Nuno Ramos anuncia um desejo que requer escrever e falar com pedaços e destroços, os escombros de uma língua que, pela catástrofe acometida, calcinada, teria feito a experiência do seu nada45. Se isso ocorresse, também seria o homem uma vida que atravessou a morte, carregando consigo a potência do (vento, da tempestade lá) fora. Blanchot assinala que, enquanto a linguagem corrente à coisa perdida apõe uma ideia, fazendo dela, assim, uma coisa abstrata, ou signo sem matéria, tal como os heróis mudos após a incidência do grande cataclismo sobre uma linguagem antes espalhada por tudo; diante da morte, a linguagem literária procuraria não o “espírito” (a ideia) da coisa, desfazendo sua realidade corpórea e cadavérica. A própria perda

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42. RAMOS. Ó, p. 30-31.

43. VIEIRA. L’image et la production de sens textuel dans Ó, de Nuno Ramos: le rôle de la multiplicité sémiotique, p. 13. Tradução minha. No original: “[…] en mettant les débris en lumière, transformant tous ces restes en langage”. 44. RAMOS. Cujo, p. 9. 45. Seguindo Blanchot, “para que a linguagem verdadeira comece, é preciso que a vida, que levará essa linguagem, tenha feito a experiência do seu nada, que ela tenha ‘tremido nas profundezas e tudo o que nela era fixo e estável tenha vacilado’”. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 333.


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que constitui a palavra é o que a literatura buscaria designar; no entanto, a linguagem aí naufragaria, junto ao seu poder de designação, porque, para isso, não haveria nome algum.

46. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 335. 47. RAMOS. O mau vidraceiro, p. 78.

48. RAMOS. Monólogo para um cachorro morto, p. 359.

49. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 335-336.

A linguagem da literatura […] quer o gato tal como existe, o pedregulho em seu parti pris de coisa, não o homem, mas este, e neste, o que o homem rejeita para dizê-lo, o que é fundamento da palavra e que a palavra exclui para falar, o abismo, o Lázaro do túmulo, e não o Lázaro devolvido ao dia, aquele que já tem mau cheiro, que é o Mal, o Lázaro perdido, e não o Lázaro salvo e ressuscitado46. Deseja-se agora “Não a língua da fala, mas a língua que lambe o sal”47, o pedregulho na/da palavra, as próprias cinzas do Lázaro, os escombros, a ruína sem salvação. Só assim a coisa então poderia ressurgir na palavra, em sua existência desconhecida. “EI-LO PEDREGULHO. PERMITO O PEDREGULHO”48

Onde reside então minha esperança de alcançar o que rejeito? Na materialidade da linguagem, no fato de que as palavras também são coisas, uma natureza, o que me é dado e me dá mais do que compreendo. Ainda há pouco, a realidade das palavras era um obstáculo. Agora ela é minha única chance49.

rejeitado pela segunda espécie de palavras, aquilo que me dá um a mais de compreensão, ao permanecer fora de toda compreensão. Trata-se da sobrevida de uma língua física, de troncos, pedaço de casca, lasca de madeira, rochas, palavra que regressa a sua realidade material, quando já não há perigo de que nos engane, pois “a matéria não mente, ela cai antes de mentir, ou derrete, se esparrama, mata alguém”50. Como afirmou Blanchot, manejar um nome exigiria a delicadeza – flagrada no homem primitivo – do contato entre, pois dizer seria tocar um ser vivo: as palavras. No homem primitivo, “o nome não saiu da coisa, ele é o seu dentro, posto perigosamente às claras e, contudo, sendo ainda a intimidade oculta da coisa; portanto, esta ainda não está nomeada”51. A função do nome, aqui, não traduz a generalidade dos seres, pois as coisas não se juntam pelo nome: “Podemos pôr palavras juntas, mas não os dias e as aves”52. O nome, em Nuno Ramos, apresenta uma preocupação “com a realidade das coisas, com sua existência desconhecida, livre e silenciosa”53. Nesse ponto, ela [a literatura] simpatiza com a obscuridade, com a paixão sem objetivo, a violência sem direito […]. Nesse ponto também, ela se alia à realidade da linguagem, faz dela uma matéria sem contorno, um conteúdo sem forma, uma força caprichosa e impessoal que não diz nada, não revela nada, e se contenta em anunciar, por recusa a dizer algo, que vem da noite e que retorna à noite. Essa metamorfose não é

Alcanço o que rejeito na materialidade da linguagem, na palavra que se pode torcer, quebrar, dobrar, talhar, cortar, esticar, tensionar, tocar, produzir ruído. Na própria realidade da linguagem reside a esperança de alcançar o que é EM  TESE

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50. RAMOS. Entrevista ao canal Cultura. Em outro momento, sobre isso afirmará ainda o autor: “Tenho justamente confiança na matéria, a palavra é essa, pois acho que a questão essencial da matéria é permanecer aquilo que é, no sentido meio da física aristotélica – o próprio do fogo é subir, o próprio da pedra é descer, o próprio da vaselina é escorregar e derreter. Com isso, há algo anti-retórico na matéria. Acho que só voltei a confiar um pouco nas palavras depois de passar por uma imersão nos materiais que utilizava no atelier. Mas não saberia descrever como funcionaria essa equivalência”. RAMOS apud VIEIRA. L’image et la production de sens textuel dans Ó, de Nuno Ramos: le rôle de la multiplicité sémiotique, p. 35. 51. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 331. 52. RAMOS. Cujo, p. 79. 53. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 338.


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54. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 338-339. 55. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 339. 56. RAMOS. Ó, p. 155. 57. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 342. 58. Sobre a escolha por materiais instáveis em suas instalações, Nuno Ramos dirá: “Gosto de utilizar materiais instáveis pelo simples fato de que têm autonomia, mantêm um segredo deles, […] uma dinâmica interna ao trabalho – por mais que você deposite formas e conteúdos neles, eles preservam sua própria identidade primária – Caem? Não caem? Escorregam? Derretem? […]”. RAMOS apud VIEIRA. L’image et la production de sens textuel dans Ó, de Nuno Ramos: le rôle de la multiplicité sémiotique, p. 34. >>>

um fracasso nela própria. É bem verdade que as palavras se transformam. Não significam mais a sombra, a terra, não representam mais a ausência da sombra e da terra que é o sentido, a claridade da sombra, a transparência da terra: a opacidade é sua resposta; o roçar das asas que se fecham é sua palavra; o peso material se apresenta nelas com a densidade sufocante de um monte silábico que perdeu todo sentido54.

Monte silábico, pedaços de frases, palavras soletradas; no limite da linguagem, numa língua acidentada, digo também: não sei o nome disso. Esculturadas, estupefatas, as palavras ganham agora o sentido pelo seu aparecimento como coisa. Mas o sentido aqui é um poder vazio, determinando, segundo Blanchot, a indeterminação do sentido. Nesse ponto, “arrancando-se à pontualidade de um eu”, constitui-se como uma “espontaneidade impessoal, a teimosia de um saber desvairado, que não sabe nada, que ninguém sabe e que a ignorância sempre encontra atrás de si […]”55. Passa-se para o lado das coisas, toma-se o partido das coisas: é preciso dar “voz à matéria”56. Assim ocorre em Ponge, afirma Blanchot, quando há o “ponto de vista das coisas em relação ao homem, a singularidade de uma palavra humana animada pela vida cósmica e pelo poder dos germes […]”57. As palavras – tais como os materiais utilizados em tantas instalações de Nuno Ramos, como o breu escorrendo por si próprio –, com autonomia e “dinâmica EM  TESE

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interna”, são coisas vivas na medida em que possuem um comportamento próprio, como se guardassem uma indiferença em relação a um suposto gesto de autoria ou mesmo, se passamos para o lado do leitor, de interpretação58. As palavras são também “formas fracas”, sofrem o gesto perpetuamente indeciso, indefinido e aberto da obra que se fala a si mesma: “Trabalho com uma noção de forma fraca, o que me obriga a uma movimentação constante, como se o chão estivesse quente sob os meus pés”59. Isso porque a forma fraca resiste à fórmula, à fórmula que represa o sentido. Potente, nunca plenamente determinada, a forma fraca resiste tal qual um corpo em permanente estado formativo – goma60, gosma, visgo. Fogo. Mantendo tudo num estado incerto, inacabado, em que a forma não se tenha ainda ‘formado’ […]. Por isso, primam na obra de Nuno os materiais deslizantes, resvaladiços, que correm, se esfumam, patinam […] como matéria que facilita a circulação, a passagem, a viagem, a chegada de uma margem à outra61.

Os materiais, vivos, nas instalações, são autores, aprendem a falar, assim como as palavras, nos textos, apontam uma indefinição fundamental, falam desde o insondável de coisa que agora são, em sua “potência completa e desimpedida”62. Pois o escritor, nessa primeira espécie de palavras, CORREIA. Eu te dou a minha palavra (A matéria não mente)

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58. >>> Sobre isso, acrescentaria Julia Studart: “as esculturas que faz são quase sempre projetos de uma arquitetura oscilante, instáveis e movediças: derretem, queimam, quebram, se partem, viram pó etc., ou seja, passam por processos dilacerantes na forma que têm. E é perfeitamente possível transpor esse procedimento para seus poemas […].” STUDART. Nuno Ramos, p. 49.

59. RAMOS apud STUDART. Nuno Ramos, p. 9. 60. “Nuno ainda afirma que, para tanto, não tem à disposição um coração formal e universalizante, mas, ao contrário, que sua ‘ideia de forma é a de uma goma, sempre em potência e nunca completamente determinada’”. STUDART. Nuno Ramos, p. 9. 61. BRIZUELA. Mutações. Analogias. Fotografias, p. 199. 62. RAMOS. Ó, p. 114.


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teria passado para o lado das coisas e as coisas ganhariam voz, num discurso em que não haveria mais sujeito e objeto; cada palavra, coisa concreta, é intransitiva. Um discurso muitas vezes sem discurso dentro, onde se insinua o areado do barro, a viscosidade da lama, a aspereza da pedra. A palavra, vermelha, quente, úmida, frágil ainda, é brasa; e vislumbramos o regresso da lenha, da madeira onde ainda corra a “seiva desejante” de uma palavra reencarnada. 63. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 342.

64. TSVETÁIEVA. Vivendo sob o fogo, p. 399.

apenas quando o nome sagra a obscuridade que já na coisa havia, e que teve de desaparecer para advir como abstração na língua que utilizamos para nos comunicar. Assim, “as palavras voltam a ser ‘elementos’, e a palavra noite, apesar de sua claridade, ganha intimidade com a noite”65. Para que as palavras possam tocar, portanto, aquilo que vai além das palavras, é preciso tornar o próprio nome o testemunho de uma obscuridade primordial.

Em Ponge, escreve Blanchot, “a coisa aprende a falar”, em sua “existência muda”63; a palavra se mistura à terra, suja-se de terra. Ou, como escreveu certa vez Marina Tsvetáieva, escritora russa que, à sua maneira, também apostou numa língua matérica: “A palavra é o fundo da coisa em nós. A palavra é o caminho para a coisa, não o inverso. (Se fosse o inverso, precisaríamos da palavra, e não da coisa, ora, o objetivo último é a coisa.)”64

[A literatura] Sabe que é esse movimento pelo qual, continuamente, o que desaparece aparece. Quando nomeia, o que ela designa é suprimido; mas o que é suprimido é mantido, e a coisa encontrou (no ser que é a palavra) mais um refúgio do que uma ameaça. Quando recusa nomear, quando do nome faz uma coisa obscura, insignificante, testemunha de uma obscuridade primordial, o que, aqui, desapareceu – o sentido do nome – está realmente destruído, mas em seu lugar surgiu a significação geral, o sentido da insignificância incrustado na palavra como expressão da obscuridade da existência, de modo que, se o sentido preciso dos termos se apagou, agora se afirma a própria possibilidade de significar, o poder vazio de dar um sentido, estranha luz impessoal66.

“INCOMUNICABILIDADE DE FUNDO”

As coisas guardam sua incomunicabilidade de fundo, uma vez que só seriam abordáveis, definidas, finitizáveis, pelo nome, pelo nome que as aniquilam uma vez que lhes confere uma clareza ideal. Mas o nome, conforme dele se vale a literatura, ou alguma literatura, poderia, segundo Blanchot, tocar o que teve de ser aniquilado, tornando-se, ele também, uma coisa obscura. A matéria, então, ao nome retorna

Quando a segunda espécie de palavras faz com que nos fiemos na compreensão, fazendo das coisas o brilho de uma aparência ideal, elas aí se anulam. Mas, se a fatalidade da não compreensão

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65. BLANCHOT. O espaço literário, p. 33.

66. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 337.


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67. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 338.

68. BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 339.

se dá, as coisas não mais são nulas, mas, agora, impossíveis. Impossível de que se serve a língua da literatura, comprometida com a palavra-lenha. “A literatura é então a preocupação com a realidade das coisas, com sua existência desconhecida, livre e silenciosa […]”67. Assim, continua Blanchot, a literatura não representa mais a ausência, a morte da coisa, como quer a língua corrente, clarificando o que, por natureza, é opaco. A língua ganha seu peso material à medida que obscurece, que retorna à pergunta ou à “opacidade [que] é sua resposta”68. Aí, nada é feito de aparência ideal, o sentido torna-se um “poder vazio”, indisponível, que deve ser usufruído de outra forma, porque dele nada mais se pode fazer. Impotência, contudo, que afirma, determina e manifesta a privação de sentido que as coisas compartilhariam – sua indeterminação primordial. Aí a palavra, sem conteúdo, é o que vai além das palavras. A linguagem então, imediatamente, desvela-se (torna-se nua), ocultando-se, sem fim. Aí a palavra, ela mesma, é.

69. RAMOS. Ó, p. 19.

Acabo por me conformar com uma vaga e humilde dispersão dos seres, fechados em seu desinteresse e incomunicabilidade de fundo, e como um modelo mal ajustado ao modelado permaneço em meu torpor indagativo, deitado na relva, tentando unir pedaços de frases a pedaços de coisas vivas69.

70. RAMOS. Ó, p. 19-20.

[…] e a natureza seria nossa como uma gramática viva, um dicionário de musgo e de limo, um rio cuja foz fosse seu nome próprio70. EM  TESE

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REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. A Preparação do romance I: da vida à obra. Texto estabelecido, anotado e apresentado por Nathalie Léger. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BATAILLE, Georges. Georges Bataille: Textos para a revista Documents. Inimigo Rumor. Número 19. Rio de Janeiro/ São Paulo: 7 letras/ Cosac Naify. 2º semestre 2006/ 1º semestre 2007, p. 78-93. BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p. 309-351. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. BRIZUELA, Natalia. Mutações. Analogias. Fotografias. Depois da fotografia: uma literatura fora de si. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 197-232. HELDER, Herberto. Ofício cantante – poesia completa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. PESSANHA, Juliano Garcia. A exclusão transfigurada. Versão oral gravada no auditório do SESC Pinheiros entre março e junho de 2008 para Tertulia – encontros de literatura. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=J6YN03_GHCc. Último acesso em mar. 2015. PESSANHA, Juliano Garcia. Instabilidade Perpétua. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p. 43-62. RAMOS, Nuno. Cujo. São Paulo: Editora 34, 1997.

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IMAGEM-PAISAGEM: A DESCRIÇÃO PICTURAL EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM

Daiane Carneiro Pimentel*

RESUMO: Este trabalho objetiva demonstrar que, em Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, a descrição pictural constitui uma estratégia de problematização do modo como a paisagem é convencionalmente abordada tanto na literatura quanto nas artes visuais. Com frequência, os narradores do romance empregam elementos provenientes das artes visuais para descrever uma paisagem. Criam-se, assim, imagens verbais a partir de determinado recorte realizado pelo observador. Contudo, à semelhança de pintores impressionistas e de certos fotógrafos, os narradores destacam a potência de paisagens naturais e urbanas, as quais resistem à representação realista e, por conseguinte, à pretensão de um tratamento totalizante ou unívoco. Ademais, acredita-se que, por meio dessas descrições picturais, desenvolve-se, em Relato de um certo Oriente, a capacidade de a literatura estimular o imaginário, o que define, conforme Italo Calvino, a Visibilidade literária. PALAVRAS-CHAVE: descrição pictural; paisagem; Visibilidade literária.

* d.cpimentel@yahoo.com.br Doutoranda em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

ABSTRACT: This article intends to demonstrate that, in Relato de um certo Oriente, by Milton Hatoum, the pictorial description constitutes a strategy of questioning the way the landscape is conventionally approached both in literature and in visual arts. Frequently, the novel’s narrators use elements from visual arts in order to describe a landscape. Thus, verbal portraits are created from certain cutting made by the observer. However, in the likeness of impressionist painters and certain photographers, the narrators detach the potency of natural and urban landscapes, which resist the realistic representation and therefore the claim of a complete or univocal treatment. Moreover, it is believed that, by means of those portraits, is developed, in Relato de um certo Oriente, the literature’s ability to stimulate the imaginary, which defines, according to Italo Calvino, the literary Visibility. KEYWORDS: pictorial description; landscape; literary Visibility.


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1. CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p.107-108.

2. LOUVEL. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto; Nuanças do pictural. 3. Em algumas passagens, optei por empregar o termo Relato para me referir ao romance Relato de um certo Oriente.

Embora não apresente nenhuma imagem material em suas páginas, a obra Relato de um certo Oriente realiza um profícuo diálogo com as artes visuais. A falta de ilustrações que concretizassem o universo ficcional do romance de Hatoum torna ainda mais explícita a capacidade de a literatura, com seus recursos próprios, fazer com que o leitor produza imagens mentais. Ao desenvolver essa capacidade literária de estimular o imaginário, acredito que o romance em questão preserva o valor da Visibilidade, tal como o definiu Italo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Incluída por Calvino na lista de valores que a literatura deveria conservar na contemporaneidade, a Visibilidade diz respeito à faculdade humana “de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens”1. O escritor italiano elucida, no trecho acima, o processo imaginativo que se dá normalmente na leitura e que parte do texto verbal em direção à imagem. Assim, por meio da escrita, imagens materialmente ausentes – invisíveis, portanto – podem adquirir Visibilidade. Em Relato de um certo Oriente¸ o processo imaginativo que caracteriza a Visibilidade é estimulado por meio de diversas estratégias, entre as quais destaco a descrição pictural, conceito cunhado por Liliane Louvel.2 Mais especificamente, abordo, no presente artigo, a descrição pictural de paisagens, a qual é verificada no Relato3 EM  TESE

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quando os narradores4 empregam elementos provenientes das artes visuais para referir-se a determinado ambiente. Em tais ocasiões, sobressai-se a subjetividade do observador, cujo olhar enquadra paisagens como se elas fossem uma obra pictórica ou fotográfica. Por meio de um detalhamento descritivo em que aspectos como luz e cor são enfatizados, a linguagem torna-se imagética. Ademais, as paisagens são percebidas pelos narradores como verdadeiras imagens, imagens essas que, não raramente, excedem a capacidade da linguagem em nomear e, assim, resistem à representação verbal. Diante da força da imagem-paisagem, os narradores recorrem a estratégias que muito lembram as utilizadas por pintores impressionistas, os quais, com pinceladas rápidas e composições em série, almejavam captar a efemeridade de cenários naturais e urbanos. Semelhante desejo também pode ser encontrado nos primeiros fotógrafos, os quais, munidos de suas câmeras, escrutinavam paisagens, sendo por estas interpelados.

4. Relato de um certo Oriente possui cinco narradores em primeira pessoa. São eles: a mulher anônima, que é a filha adotiva de Emilie; Hakim, o filho dileto de Emilie; o marido de Emilie; Dorner e Hindié Conceição, ambos amigos da matriarca.

*** De acordo com Liliane Louvel,5 grande parte dos estudos dedicados à relação da literatura com a imagem utiliza, sem critérios precisos, diversas metáforas ligadas às artes visuais, como “força imagética”, “pictorialista” e “texturas”. Em uma postura crítica a esses estudos, Louvel realiza um levantamento de marcadores retóricos, narratológicos e linguísticos

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5. LOUVEL. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto.


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que permitiriam identificar a inserção do pictural – no sentido amplo de imagem – no texto literário. Entre os marcadores elencados pela pesquisadora, cito, como exemplo, os efeitos de enquadramento; os dêiticos; a focalização e os operadores de visão; o léxico técnico; a referência aos gêneros picturais; as comparações do tipo “como se fosse um quadro”. Assim, o texto em que há diversos desses dispositivos apresenta um alto grau de saturação pictural, o que, por sua vez, possibilita uma análise consistente do entrelaçamento da palavra e da imagem.

6. LOUVEL. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto, p. 216.

Sobressaem-se, no romance, os efeitos de enquadramento, pelos quais um sujeito, a partir de um determinado ponto de observação, focaliza um ambiente natural como se este fosse um quadro. Na descrição pictural, não há um recorte anterior ao momento em que o olhar incide sobre o mundo. Nesse sentido, o voyeurismo e o enquadramento são intrinsecamente associados na composição da imagem, conforme exemplifica o seguinte fragmento, no qual Hakim expõe um dos caminhos que Emilie, ainda no Líbano, trilhava “até alcançar os conventos debruçados sobre abismos”:7

7. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 89.

“Mas tinha um outro caminho, ao ar livre”, [Emilie] dizia, emocionada. Era uma escada construída pela natureza: pedras arredondadas pela neve escalonam as montanhas e te conduzem quase sempre a um convento ou monastério. Lá do alto, a terra, os rios e o mar azulado desaparecem: a paisagem do mundo se restringe à floresta de cedros negros e ao rio sagrado que nasce ao pé das montanhas. Além dos muros que circundam os edifícios suntuosos e solenes, uma outra paisagem surge como um milagre: córrego ao meio de bosques, videiras, oliveiras e figueiras que se alastram não muito longe do claustro, da igreja e das celas onde os solitários, nutridos pela religião, alçam o voo rumo ao céu como as asas de uma montanha.8

8. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 89.-90.

Ao tratar do léxico como marcador pictural, Louvel ressalta “os laços privilegiados [que] se tecerão entre texto e ‘gêneros’ picturais”.6 Assim, nas diferentes descrições picturais, haveria uma relação do personagem com o retrato, da paisagem com a pintura de paisagem, da história com o quadro histórico, dos objetos com a natureza morta ou dos elementos decorativos com a pintura de interior. Embora Louvel aborde apenas os gêneros na pintura, acredito ser possível ampliar tal abordagem, a fim incluir, por aproximação, a fotografia. Nesse sentido, ao analisar a descrição pictural de paisagem, farei referência tanto à pintura quanto à fotografia de paisagem. O emprego do termo “paisagem” torna explícita a articulação com o gênero pictural/fotográfico, mas não é o único fator responsável por essa articulação no Relato.

Primeiramente, destaco, com base em Louvel,9 o efeito de enquadramento produzido pelo fato de Hakim reconstruir

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9. LOUVEL. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto, p. 210.


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10. LOUVEL. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto, p. 206.

uma descrição pictural que ouvira de Emilie, descrição essa que se torna uma unidade praticamente autônoma, inserida na narrativa principal. É como se, após o discurso direto de Emilie, o leitor continuasse a ter acesso às palavras da matriarca, quem descreve uma paisagem vista há anos. Emilie destaca elementos como montanhas, árvores e cursos de água, os quais são típicos de uma pintura de paisagem. Tal gênero se caracteriza, ainda, pela exploração da vastidão de determinado espaço natural, o que, no excerto acima, é conseguido por meio da escolha de um ponto de observação específico. “Lá do alto”, o olhar recorta uma “paisagem do mundo”, de modo que “a terra, os rios e o mar azulado desaparecem”, enquanto a floresta de cedro e o rio sagrado são enquadrados. O emprego dos dois pontos não é, aqui, fortuito, pois acentua o efeito de recorte do ambiente, como sugere Louvel.10 Esse mesmo sinal de pontuação é utilizado para introduzir os detalhes da “outra paisagem [que] surge como um milagre”, uma paisagem formada por um “córrego ao meio de bosques”. A paisagem descrita por Emilie constitui-se, portanto, da conjunção das duas micropaisagens, o que vem a ratificar a amplidão avistada a partir do alto de uma montanha no Líbano.

Emilie, que era católica, reveste-se de um simbolismo religioso. As videiras, as oliveiras e as figueiras, juntamente com o córrego, parecem prolongar o espaço propício à oração formado pelo claustro, pela igreja e pelas celas, sendo a paisagem, então, interpretada como um verdadeiro milagre. A dimensão religiosa manifesta-se também quando o rio é qualificado como sagrado. O caráter milagroso e sagrado intensifica-se pelo fato de tratar-se de uma paisagem afastada e inabitual que só pôde ser visualizada após Emilie percorrer o caminho em direção ao cume da montanha. Todos esses aspectos permitem aproximar a paisagem descrita por Emilie à tradição pictórica que, conforme Jacques Aumont, em O olho interminável: cinema e pintura, representa “uma natureza organizada, arrumada, aprontada”, como se tivesse “um sentido a exprimir”.11 Em tal tradição, que se prolonga desde o Renascimento até o século XIX, há um texto sob a representação da natureza, um texto “que explica sempre o quadro e lhe dá seu verdadeiro valor”.12 13

Apesar de os aspectos naturais receberem uma grande ênfase, em detrimento dos “edifícios suntuosos e solenes” do convento ou do monastério, a paisagem descrita por

Para Aumont, o século XIX marca uma alteração no status pictórico da natureza, e esta começa a tornar-se interessante, mesmo se não tiver nada a dizer. Entre o final do século XVIII e o início do XIX, ocorre “a passagem do esboço – registro da realidade já modelada pelo projeto de um futuro quadro – ao estudo – registro da realidade ‘tal como ela é’”.14 O estudo é o núcleo das mudanças ideológicas na pintura, posto

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11. AUMONT. O olho interminável, p. 50.

12. AUMONT. O olho interminável, p. 50. 13. Emilie realiza a descrição no século XX, mas mantém-se próxima da tradição pictórica em que a natureza é representada como se tivesse um sentido. 14. AUMONT. O olho interminável, p. 48, grifo do autor.


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15. AUMONT. O olho interminável, p. 49, grifo do autor.

16. AUMONT. O olho interminável, p. 49.

que, sendo caracterizado pela rapidez, destina-se a captar e a fixar a primeira impressão de um segmento do mundo. Assim, a paisagem apreendida pelo pintor de estudos é “um fragmento qualquer de natureza, cuja pictorialidade poderá ser aplicada em toda parte, descobrindo em toda parte o pitoresco”.15 É essa nova ideologia pictórica que cria, segundo Aumont, a condição de possibilidade para a invenção da fotografia. Embora, desde a alta Antiguidade, no Egito, fosse conhecida a ação da luz sobre certas substâncias, a técnica fotográfica somente foi descoberta muitos séculos depois, justamente quando o mundo passou a ser concebido com um “campo interrompido de quadros potenciais, esquadrinhado pelo olhar do artista que o percorre, o explora e repentinamente para recortá-lo, ‘enquadrá-lo’”.16 A fotografia encarnaria, portanto, a mobilidade encontrada pela pintura no estudo, uma mobilidade resultante de um olhar que perscruta o mundo.

tornar essa concepção ainda mais explícita. Entre os tantos personagens que recorrem à fotografia, Dorner destaca-se, pois é fotógrafo de profissão. Sempre munido de sua câmera, Dorner persegue implacavelmente os “instantes fulgurantes”17 de homens e também de paisagens, o que significa que ele procura frações do mundo e enquadra-as. Acredito não ser fortuita a escolha da expressão “instantes fulgurantes” para caracterizar as imagens registradas pela câmera de Dorner. Isso porque, nas palavras de Aumont, “o fotógrafo é esse ser, indubitavelmente novo no século XIX, que opera o encontro, a fixação do instante, com seus acasos”.18

Em Relato de um certo Oriente, a maioria das descrições enquadra um fragmento qualquer do mundo, e não uma paisagem recôndita e sagrada, como a apresentada por Emilie no excerto acima analisado. Os narradores-personagens parecem partilhar a concepção de que o mundo possui uma infinidade de quadros potencias, os quais são recortados pelo olhar, ao mesmo tempo em que resistem a ele. O fato de haver, no Relato, uma forte presença da fotografia ajuda a

O fotógrafo é um ser novo no século XIX, mas sua prática vincula-se, segundo Aumont, às mudanças por que passava a pintura, às quais me referi anteriormente. Nesse sentido, vale ressaltar que, enquanto a fotografia já surge como prática capaz de fixar o instante, a história da pintura pode “ser escrita como a passagem, vacilante, porém mais ou menos ininterrupta, do máximo de pregnância na representação ao máximo de instantâneo e de acidental”.19 Para Aumont, o Impressionismo leva a cabo o abandono da doutrina do instante pregnante, a qual “é minimamente adequada a uma pintura que cultiva valores como o efêmero, a circunstância e a sensação”.20 A tese de Aumont, segundo a qual tais mudanças ideológicas na pintura possibilitaram a invenção da fotografia, não deve, contudo, levar à constatação de que

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17. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 59.

18. AUMONT. O olho interminável, p. 90, grifo do autor.

19. AUMONT. O olho interminável, p. 82

20. AUMONT. O olho interminável, p. 83.


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acolhida, nas décadas de 1830 e 1840. A pesquisadora destaca a estupefação causada pela descoberta de que a natureza possuía a capacidade de reproduzir-se a si mesma, por meio dos dois procedimentos fotográficos recém-desenvolvidos: o daguerreótipo e o calótipo. A assombrosa nitidez dos objetos inscritos na placa do daguerréotipo explicitava a precariedade da percepção humana. Já as imagens geradas pelo calótipo, sendo imprecisas e indefinidas, demonstravam o quanto a natureza mantinha-se impenetrável.22 Atentos a ambos os modos fotográficos de produzir imagens, Daubigny e, um pouco depois, Monet, Renoir e Degas, entre outros expoentes do Impressionismo, vão de encontro à ambição realista que parecia motivá-los a pintar ao ar livre. Eles continuam a trabalhar fora do atelier, mas desviam o enfoque do mundo exterior para se dirigirem “às modalidades internas do processo descritivo”.23

22. KRAUSS. O fotográfico, p. 66-68.

O contato próximo com a natureza não fez com que Daubigny compusesse paisagens realistas e dotadas de unidade. Por quê? Para responder a esse questionamento, Krauss recorre ao modo como a fotografia foi inicialmente

De modo semelhante, Aumont constata que o Impressionismo “não quer inscrever no quadro uma referência ‘bruta’ ao lugar e ao momento, e sim à sensação provocada por essas circunstâncias, portanto já a uma interpretação, a um sentido”.24 Ainda de acordo com Aumont, a busca de um instante qualquer do mundo demonstra o sonho de controlar o real, mas o instante é tão imprevisível que acaba por se contrapor ao realismo: “O instante que passa não basta para fundar o realismo, ele é sua moeda de troca, e, quanto

24. AUMONT. O olho interminável, p. 92.

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as relações entre pintura e fotografia são unilaterais. Pelo contrário, desde o século XIX até a atualidade, é possível perceber uma rede de influências mútuas entre o trabalho do pintor e o do fotógrafo, o que fica explícito em O fotográfico, de Rosalind Krauss. Em vez de enfocar o movimento da pintura em direção à fotografia, Krauss parte do pressuposto de que a experiência da fotografia impactou a produção de pintores que se dedicavam ao estudo da natureza, como era o caso de CharlesFrançois Daubigny, um dos precursores do Impressionismo. Daubigny, que Claude Monet conhece quando ingressa na escola de Barbizon, pintava ao ar livre:

21. KRAUSS. O fotográfico, p. 65-66.

Ele [Daubigny] não ia aos campos apenas para trazer esboços ao ateliê em que o verdadeiro quadro seria composto. Ao contrário, afirmava com veemência que a pintura realizada ao ar livre era o quadro definitivo, e isto a despeito do resultado obtido nessas condições ser bastante peculiar. Sua tela tinha grandes contrastes com vastos espaços de luz e escuridão e, dentro dessas massas, praticamente não havia articulação.21

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23. KRAUSS. O fotográfico, p. 64.


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25. AUMONT. O olho interminável, p. 94. 26. Vale mencionar que os fotógrafos também realizam séries.

27. AUMONT. O olho interminável, p. 94.

28. Dada a importância da luz no Impressionismo, entende-se por que Krauss o caracteriza como o “narcisismo da luz”. KRAUSS. O fotográfico, p. 63. 29. Do grego, phos (luz) e graphein (desenhar, escrever).

mais a arte pictórica parece confiar no instante, mais precisará reivindicar em alto e bom som o caráter artístico de seu projeto”.25 Desconfiados do puro instante, pintores26 encontraram na série – e, depois, com as vanguardas, na colagem – uma maneira de multiplicar os instantes. Para analisar a descrição pictural de paisagens no Relato, interessante destacar a série, que consiste em realizar várias imagens de um tema em instantes distintos. As Catedrais de Rouen, de Monet, são um exemplo de série, pois fixam “estados sucessivos de um mesmo lugar”.27 O objetivo dessa série não é registrar realisticamente a catedral, e sim produzir imagens distintas da construção católica, cada uma delas resultante de determinada luminosidade e de determinada sensação provocada naquele instante fugidio. Tal trabalho de Monet concretiza o projeto do Impressionismo de explicitar que as diferenças na incidência da luz modificam o modo como o olhar apreende o mundo. Nas obras impressionistas que não constituem uma série, é possível verificar, ainda que em menor proporção, a mesma tentativa de captar as variações luminosas e seus efeitos, o que vai de encontro ao ideal realista.28 Novamente, o paralelo com a fotografia é pertinente: a fotografia é “desenho da luz”,29 pois cria imagens a partir da exposição luminosa, imagens essas que fixam o instante com uma rapidez inalcançável pela pintura. Assim, não é de se espantar que os fotógrafos também recorressem à prática da série, pela qual puderam registrar vários instantes sucessivos. EM  TESE

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Em Relato de um certo Oriente, as descrições de paisagem baseiam-se, principalmente, em dois aspectos que, no século XIX, foram centrais aos pintores – sobretudo os impressionistas – e aos fotógrafos. O primeiro desses aspectos diz respeito à concepção de que qualquer fragmento da natureza pode ser recortado por um olhar perscrutador, de modo que a natureza não mais aparece organizada nem subordinada a um texto que a explicasse. O segundo aspecto trata-se da tentativa de captar o instante, ou melhor, os instantes, de acordo com a variação da luminosidade, o que pode formar ou não uma série. Nesse sentido, as paisagens descritas pelos narradores do Relato estão em consonância com as mudanças ideológicas que, no século XIX, afetaram a produção de imagens pictóricas e impulsionaram o surgimento da fotografia. Convém ressaltar que essas mudanças marcam o início de um processo continuado, de forma radical, pelas vanguardas do século XX, as quais levaram a cabo a contestação do ideal mimético e caminharam em direção à abstração. Em uma descrição pictural elaborada pelo narrador-personagem Dorner, a comparação com a pintura é explícita: Olhei para a beira do cais e reparei nos homens-rãs: os rostos visíveis através do vidro da máscara negra, o braço apontando para o horizonte; e, então, aquele som que soara suavemente, como o som de uma flauta, parecia vir de uma silhueta esbranquiçada, sem contorno definido, quase colada à linha da selva, merPIMENTEL. Imagem-paisagem: A descrição pictural em Relato de um certo […] p. 73-89

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30. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 65, grifo meu.

gulhando de vez em quando nos raios solares, sumindo nas brumas do chuvisco e reaparecendo como um corpo luminoso, alvo, talvez estático, ou se movendo tão lentamente que era impossível saber se vinha em nossa direção ou se distanciava do porto. Vista de longe, envolta de luz e água, a silhueta se assemelhava a um quadro vivo, uma pintura ligeiramente móvel: o horizonte aquático, brumoso e ensolarado ao mesmo tempo, e a cintilação de uma lâmina branca e encurvada, como um arco de luz entre o céu e a água. Aquela aparição no horizonte passara despercebida para quem estava ao meu redor.30

Nesse trecho, Dorner trata do momento em que se iniciaram as buscas por Emir, que acabara de desaparecer na região do porto de Manaus. Ao observar a paisagem manauara composta pelo rio Negro e pela floresta ao fundo, o personagem alemão nota a presença de “uma silhueta esbranquiçada”, talvez a de Emir, que vestia roupa branca no dia do afogamento. Contudo, os efeitos produzidos pelos raios solares em contato com a água, em vez de ajudarem, impedem a definição dos contornos daquele corpo tornado “luminoso”. Devido a tais efeitos, que são verbalmente criados na descrição pictural, os olhos de Dorner têm dificuldade em fixar uma imagem nítida e em decidir se, de fato, encontraram Emir em meio ao “horizonte aquático, brumoso e ensolarado”. Toda a variação provocada pela luz é, enfim, explicitada pela comparação da silhueta não a um quadro e EM  TESE

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a uma pintura estáticos, mas a “um quadro vivo” e a “uma pintura ligeiramente móvel”. Portanto, na descrição pictural realizada por Dorner, a comparação com as artes visuais e a exploração do campo semântico relacionado à luz traduzem o caráter lábil da imagem, o que, segundo a discussão acima desenvolvida, está em consonância com a prática tanto da pintura impressionista quanto da fotografia. Segundo Vera Maquêa, o trecho do Relato em análise explicita que: “A fotografia é a linguagem pela qual Dorner se expressa, sua câmera é a mediação entre ele e o mundo, e as partes do texto por ele narradas são construídas com imagens vivas e vibrantes, dando ao cenário um tom tenso e trágico”.31 É como se, mesmo quando não portasse a câmera, Dorner olhasse o mundo de modo fotográfico. Em um dos raros momentos em que não estava com sua Hassel, Dorner olha diretamente a paisagem às margens do rio Negro e a enquadra, sem que haja o intermédio das lentes. Ao elaborar a sua parte do Relato, o personagem recupera essa focalização e esse enquadramento e, então, realiza a descrição pictural da paisagem, cujos efeitos luminosos são destacados por meio da seleção lexical. Ademais, deve ser mencionado o fato de Dorner afirmar ter sido o único que viu “aquela aparição no horizonte”, o que demonstra que vagar pelo mundo e realizar um recorte de algum fragmento é um ato subjetivo e, em geral, PIMENTEL. Imagem-paisagem: A descrição pictural em Relato de um certo […] p. 73-89

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31. MAQUÊA. Memórias inventadas, p. 145.


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32. MAQUÊA. Memórias inventadas, p. 154.

33. MAQUÊA. Memórias inventadas, p. 154. 34. Maquêa toma como equivalentes os termos pictórico e fotográfico.

35. MAQUÊA. Memórias inventadas, p. 146.

36. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 72.

solitário. Tal afirmação de Dorner não deve ser interpretada como indício de que ele, enquanto artista visual, é o único narrador-personagem que apresenta uma acuidade visual e elabora descrições picturais. Conforme atesta Maquêa, o apelo imagético caracteriza a narrativa como um todo. A pesquisadora volta-se principalmente à presença da fotografia no romance, mas não deixa de notar que as “imagens criadas pela linguagem verbal” – as quais eu denomino “descrições picturais” – contribuem para que o Relato alcance “o seu tom poético, a linguagem como imagem”.32 Nesse sentido, é possível afirmar que “mais perto das imagens e da fotografia, o texto se torna um campo aberto para o uso de técnicas que se apropriam de várias outras linguagens, sem interdição”.33 Para corroborar a hipótese de que o apelo pictórico/fotográfico34 é comum a todos os capítulos do Relato, independentemente de quem seja o narrador, Maquêa cita o trecho em que o marido de Emilie descreve sua primeira visão de Manaus.35 Além de não analisar o trecho, a estudiosa concentra-se apenas no momento em que o marido de Emilie refere-se ao amanhecer. Entendo que a descrição pictural não se restringe a esse momento específico, e sim apresenta três partes, as quais constituem, conforme defendo a seguir, uma série. Após um breve introito, em que o patriarca informa ter atracado em Manaus durante uma “noite de intenso calor”,36 inicia-se a descrição pictural: EM  TESE

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Da proa ou de qualquer ponto do barco, nenhuma luz artificial era visível para alguém que mirasse o horizonte; mas bastava alçar um pouco a cabeça para que o olhar deparasse com uma festa de astros que se projetavam na superfície do rio, alongando-se por uma infindável linha imaginária ao longo do barco; a escuridão nos indicava ser ali a fronteira entre a terra e a água.37

Nessa primeira parte da descrição, o marido de Emilie conta que, ainda dentro do barco, fitou o horizonte, mas não pôde ver Manaus, pois “nenhuma luz artificial era visível”. Em contraposição à cidade escura, o rio apresentava uma luminosidade devido aos astros celestes que, ao se refletirem na água, formavam uma “festa” para os olhos. O patriarca demonstra, portanto, atentar-se aos efeitos da luz, os quais são, para ele, responsáveis por tornar uma paisagem visível, conforme atesta a segunda seção da descrição: Ansioso, esperei o amanhecer: a natureza, aqui, além de misteriosa é quase sempre pontual. Às cinco e meia tudo ainda era silencioso naquele mundo invisível; em poucos minutos a claridade surgiu como uma súbita revelação, mesclada aos diversos matizes do vermelho, tal um tapete estendido no horizonte, de onde brotavam miríades de asas faiscantes: lâminas de pérolas e rubis; durante esse breve intervalo de tênue luminosidade, vi uma árvore imensa expandir suas raízes e copa na direção das nu-

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37. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 72.


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38. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 72-73, grifo meu.

vens e das águas, e me senti reconfortado ao imaginar aquela a árvore do sétimo céu. Ao meu redor todos ainda dormiam, de modo que presenciei sozinho aquele amanhecer, que nunca mais se repetiria com a mesma intensidade. Compreendi, com o passar do tempo, que a visão de uma paisagem singular pode alterar o destino de um homem e torná-lo menos estranho à terra em que ele pisa pela primeira vez.38

Por fim, na última parte da descrição, o sol está totalmente estampado no céu e, com isso, conclui-se a transição do invisível ao visível: Antes das seis, tudo já era visível: o sol parecia um olho solitário e brilhante perdido na abóbada azulada; e de uma mancha escura alastrada diante do barco, nasceu a cidade. Não era maior que muitas aldeias encravadas nas montanhas do meu país, mas o fato de estar situada num terreno plano acentuava a repetição dos casebres de madeira e exagerava a imponência das construções de pedra: a igreja, o presídio, um ou outro sobrado distante do rio […].39

Do mesmo ponto de observação – o interior do barco –, o marido de Emilie presencia o amanhecer, pelo qual aquele “mundo invisível” começa a tornar-se visível. O emprego do termo “revelação” permite que se estabeleça uma comparação com o processo de revelação fotográfica: como se fosse uma imagem surgindo no negativo, a natureza amazônica ganha, com a claridade da alvorada, cores e formas, às quais o narrador atribui sentidos. Os “matizes de vermelho” transformam-se, segundo o olhar do patriarca, em um “tapete estendido no horizonte”, em que “lâminas de pérolas e rubis” constituem “asas faiscantes”. Já a “árvore imensa”, que se expande desde as águas até as nuvens, é transformada em uma árvore pertencente a um dos céus referidos por Maomé. Assim como Dorner é o único que nota a silhueta esbranquiçada perdida na cintilação do rio Negro, o marido de Emilie presencia sozinho o amanhecer, cujo aspecto fugidio é destacado quando o narrador afirma que aquela visão da paisagem ocorreu durante um “breve intervalo de tênue luminosidade”.

Ao realizar a descrição pictural de Manaus, o marido de Emilie destaca, pois, como a variação da luminosidade fez com que ele visualizasse a cidade em três estágios sucessivos: a princípio, a cidade, imersa na escuridão da noite, não pode ser vista, e o olhar só encontra os astros celestes projetados no rio; depois, com o chegar da alvorada, a claridade surge e alguns elementos naturais começam a ser delineados; finalmente, o amanhecer se completa e a cidade nasce “de uma mancha escura”. Como a descrição abrange instantes diferentes de uma mesma paisagem – Manaus observada a partir do barco –, é possível caracterizar tal descrição como uma série em que “as aventuras da luz”40 sobre a capital amazonense são evidenciadas.41 Segundo Aumont, um efeito de

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39. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 73, grifo meu.

40. AUMONT. O olho interminável, p. 95.

41. Aumont utiliza a expressão “aventuras da luz” para se referir à série Catedrais de Rouen, de Monet.


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diferença é produzido entre as imagens de uma série de pinturas ou de fotografias, o que, por sua vez, faz com que o olhar do espectador seja perturbado:

42. AUMONT. O olho interminável, p. 97, grifo do autor.

No confronto entre duas vistas, a um só tempo, semelhantes e diferentes, o olhar ganha, com efeito, uma possibilidade nova: a de se encontrar entre os dois, lá onde não há nada, nada de visível. Ele se torna um olhar intermitente, um olhar com eclipses. As obras mais interessantes aqui são, aliás, as mais fracamente narrativas, as que autorizam a ida e a volta do olhar, o vaivém, a produção de uma distância, de um intervalo que não se esgota no simples escoamento de uma duração restituível.42

Aumont não nega o vínculo entre série, sucessão e narração, mas opta por enfatizar o efeito de diferença gerado à medida que o olhar depara-se com as intermitências entre as imagens de uma série. No excerto do Relato em análise, é possível perceber um efeito de diferença entre cada estágio da paisagem descrita; contudo, tal efeito é contrabalanceado pelo fato de a descrição estar associada à narração, já que se trata de uma série inserida em um texto essencialmente narrativo (um romance) e formada não por imagens materiais, e sim por imagens verbais, isto é, por palavras. Descrição e narração, espaço e tempo estão, portanto, intrinsecamente relacionados na paisagem que o marido de Emilie, por meio do discurso verbal, torna visível ao leitor. Segundo Louvel, a descrição EM  TESE

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pictural possui uma “natureza subversiva”, pois “interrompe mesmo o texto, num efeito de expansão, de dilatação” e “‘resiste à linearidade’, acrescentando um espaço”.43 Mas Louvel também ressalta que, “sem renunciar à sua estética da suspensão”, a descrição pode se tornar uma “aliada da narrativa”.44 Dessa maneira, a descrição pictural promove “uma inclusão do espaço no tempo, no fluxo da narração”.45 No fragmento do Relato em questão, o marido de Emilie, à medida que descreve os sucessivos estágios de Manaus, narra o processo de revelação daquela paisagem vista a partir do barco atracado. Os olhos do patriarca, enquanto este se manteve relativamente estático no interior da embarcação, puderam acompanhar como o amanhecer proporcionou uma progressiva iluminação da capital amazonense. Assim como o patriarca, a mulher anônima compõe uma descrição pictural de Manaus observada à noite, descrição essa inserida na narração da chegada à cidade. Após anos de ausência, a personagem retorna à sua terra natal em uma viagem aérea, finalizada depois do anoitecer. A opção por um “voo noturno”46 é justificada pelo desejo de evitar a intensa claridade e de “regressar às cegas”, ou seja, sem enxergar: Não desejava desembarcar aqui [em Manaus] à luz do dia, queria evitar as surpresas que a claridade impõe, e regressar às cegas, como alguns pássaros que se refugiam na copa escura

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43. LOUVEL. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto, p. 200-201. 44. LOUVEL. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto, p. 202. 45. LOUVEL. Nuanças do pictural, p.63.

46. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 9.


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47. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 163-164.

de uma árvore solitária, ou um corpo que foge de uma esfera de fogo, para ingressar no mar tempestuoso da memória. Lá do alto, o viajante noturno tem a sensação de que um rio de histórias flui na cidade invisível. Tu sobrevoas a selva escura durante horas, e nenhum cisco luminoso desponta quando o olhar procura lá embaixo um sinal de vida.47

Como demonstra o trecho acima, o desejo de nada enxergar concretiza-se e o olhar da mulher, enquanto o avião sobrevoa a escuridão da floresta, procura em vão algum “cisco luminoso”. A esse estágio “invisível”, segue-se o momento em que as luzes, de repente, aparecem em abundância, o que, todavia, não garante a perfeita identificação dos elementos que compõem a paisagem urbana que surge: Nada anuncia o fim da longa travessia aérea: bruscamente, como as luzes de um gigantesco transatlântico a flutuar num oceano que separa dois continentes, uma contestação terrestre e aquática te adverte que a floresta ali muda de nome, que o rio antes invisível agora torna-se um caminho iluminado, e também suas margens, seus afluentes, os braços dos afluentes e até mesmo a floresta, em pontos esparsos, são pontilhados de luz. Essa claridade disseminada por toda parte te faz pensar que a cidade, o rio e a selva se acendem ao mesmo tempo e são inseparáveis; que o avião, ao navegar naquele espaço que se projeta sobre a linha do equador, divide duas abóbadas incandescentes. Mesmo

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perdendo altura, variando o ângulo visual e sabendo que agora já não são oito ou dez mil metros que te separam do solo, nada te faz distinguir as vias de asfalto dos caminhos aquáticos e da mata densa: um percurso sinuoso de luz pode ser os faróis das embarcações ou dos carros, e os focos fixos e reluzentes concentrados num mesmo lugar podem ser uma rua, um porto, uma praça ou um bairro inteiro que emerge da água.48

Enquanto o marido de Emilie chega a uma Manaus ainda destituída de iluminação pública e só vê no rio os reflexos dos astros celestes, a mulher anônima depara-se com uma “claridade disseminada por toda parte”, seja no rio, na cidade ou na selva. Ademais, como a paisagem é, neste caso, focalizada a partir do céu, o olhar da mulher alcança uma significativa amplitude e, então, pode registrar os tantos “pontilhados de luz”. Portanto, a narrativa da viagem a Manaus inicia-se com a referência à total escuridão da floresta – escuridão essa que impede a descrição da paisagem – e termina com a descrição pictural dos efeitos luminosos naquela paisagem noturna, que será imaginada pelo leitor. Há, pois, uma “travessia” que permite a passagem do invisível ao visível, da escuridão à luz.49 Não se deve esquecer que se trata de uma “travessia aérea” e que, assim, a descrição foi elaborada a partir de um enquadramento também aéreo, enquadramento esse que, já no século XIX, foi buscado por fotógrafos. Conforme informa Krauss, o pioneiro da fotografia aérea foi Félix Nadar: PIMENTEL. Imagem-paisagem: A descrição pictural em Relato de um certo […] p. 73-89

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48. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 164, grifo meu.

49. Mais uma vez, estabelece-se um paralelo com a fotografia, já que a paisagem iluminada surge na escuridão, assim como a imagem fotográfica surge, durante a revelação, do negativo.


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50. KRAUSS. O fotográfico, p. 101.

51. DUBOIS. O ato fotográfico, p. 261-262.

52. DUBOIS. O ato fotográfico, p. 262.

Do instante em que teve um aparelho fotográfico nas mãos e soube utilizá-lo, Nadar sonhou levá-lo muito alto, acima dos telhados de Paris, e tomar vistas aéreas do cesto de seu aeróstato. O ímpeto que empurrava os fotógrafos a explorar com seus aparelhos campos de experiência inéditos partia do pressuposto que (sic) se tratava então de espaços que o pintor não podia acompanhar – posições estranhas ao artista preso ao chão. Logo foram lançados ao ar pequenos balões com máquinas automáticas amarradas que subiam bem acima das primeiras experiências de Nadar […].50

real e a imagem dele produzida. Assim como toda fotografia, a aérea registra a realidade e estabelece com esta uma relação indicial; porém, a fotografia aérea se diferencia por tornar premente a questão da interpretação e da leitura: Não se trata simplesmente do fato de que, vistos de muito alto, os objetos são dificilmente reconhecíveis – o que de fato é verdade – mas, em particular, de que as dimensões esculturais da realidade tornam-se muito ambíguas: a diferença entre saliências e ocas – o convexo e o côncavo – se apaga. A fotografia aérea nos coloca diante de uma “realidade” transformada em texto, algo que precisa de uma leitura ou de uma decodificação. Existe uma cesura entre o ângulo de visão sob o qual foi tirada a fotografia e este outro ângulo de visão necessário para compreendê-la. A fotografia aérea desvenda portanto uma ruptura na tessitura da realidade […]. Se toda fotografia promove, aprofunda e encoraja nossa fantasia de relação direta com o real, a fotografia aérea tende a rasgar o véu deste sonho – através dos próprios recursos da fotografia.53

Com a fotografia aérea, Nadar e outros fotógrafos diferenciavam-se dos pintores, à medida que aqueles definiam “um modo bem diferente de percepção e de representação do espaço que não o herdado da perspectiva monocular clássica, isto é, um novo tipo de relação entre o sujeito e o mundo”.51 Segundo Dubois, enquanto a percepção e a representação tradicionais baseiam-se em uma “estrutura ortogonal, petrificada e rigorosa (o ponto de vista do homem de pé, vertical, preso ao chão e observando o mundo horizontal estendido diante dele)”, a fotografia aérea não está presa a uma estrutura fixa e, literalmente, não tem um sentido: “É possível olhá-la de todos os lados, ela é sempre coerente”.52 Ademais, conforme argumenta Krauss, a fotografia aérea distingue-se não só das pinturas, mas também das fotografias feitas no solo, por problematizarem o vínculo entre o

Ao problematizar o estabelecimento de um vínculo direto com o real, a fotografia aérea, que logo passou a ser feita também a partir de aviões, acabaria por inspirar trabalhos de pintores abstratos a partir do início do século XX, conforme atestam tanto Krauss quanto Dubois. Ambos os autores mencionam o Suprematismo e o Expressionismo Abstrato

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53. KRAUSS. O fotográfico, p. 101-102.


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54. KRAUSS. O fotográfico, p. 101.

55. DUBOIS. O ato fotográfico, p. 261.

56. KRAUSS. O fotográfico, p. 100. DUBOIS. O ato fotográfico, p. 266.

como exemplos de movimentos pictóricos em que a fotografia aérea desempenhou uma função essencial. Krauss afirma que a fotografia aérea foi empregada “como metáfora da relação ‘suprematista’ com o espaço”.54 Na esteira de Krauss, Dubois destaca, entre outros aspectos, que, para conceberem e representarem um “espaço novo”, os suprematistas El Lissitsky e Kasimir Malévitch basearam-se tanto nas fotos aéreas que exibiam “paisagens terrestres ‘transformadas’, mal identificáveis – sem horizonte, nem profundidade, sem buracos, nem saliências, achatadas, geometrizadas, ‘abstratizadas’”; quanto nas “vistas tomadas do solo, mais ou menos na vertical e mostrando esquadrilhas de aviões em pleno voo, compondo curiosos hieróglifos na tela do céu”.55 Já as obras do expressionista abstrato Jackson Pollock vinculam-se de outro modo à vista aérea. Krauss e Dubois ressaltam que Pollock pintava em uma tela colocada no chão, o que rompe com a postura normalmente assumida por pintores durante o trabalho.56 Assim, a relação desse artista com o suporte em que inscreve traços abstratos (sobretudo linhas emaranhadas e gotas) é a mesma que fundamenta a fotografia aérea: […] flutuação do ponto de vista, perda de qualquer quadro de referência preestabelecido (as ortogonais), deslocamentos multidirecionais, sentimento físico de liberdade, indecifra-

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bilidade aparente do “solo”, transformado em estrutura formal abstrata, superfície com manchas, esteiras multicores e multiformes […].57

A fotografia aérea constitui, portanto, um dispositivo teórico pelo qual se pode refletir sobre os modos de percepção e representação artísticos.58 Nesse sentido, por meio de tal dispositivo, é possível analisar com maior acuidade a descrição pictural que a mulher anônima realiza a partir de um avião que sobrevoa Manaus. Durante toda a descrição, a mulher enfatiza as luzes disseminadas pela capital amazonense. Sobretudo no final do trecho supracitado, há uma tentativa explícita de interpretar aquela paisagem iluminada. Mesmo quando está um pouco mais próxima do solo, a personagem não pode distinguir o asfalto, o rio e a mata, o que sugere o apagamento das diferenças entre superfícies salientes e ocas, como previa Krauss. Assim, Manaus torna-se um texto a ser decodificado, e surgem hipóteses de leitura desse texto: “um percurso sinuoso de luz pode ser os faróis das embarcações ou dos carros”; “os focos fixos e reluzentes concentrados num mesmo lugar podem ser uma rua, um porto, uma praça ou um bairro inteiro que emerge da água”. O emprego do verbo “poder” e da conjunção alternativa “ou” indica que a mulher anônima não consegue definir o que vê na paisagem manauara. A descrição pictural refere-se, indubitavelmente, a Manaus, mas trata-se de uma Manaus PIMENTEL. Imagem-paisagem: A descrição pictural em Relato de um certo […] p. 73-89

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57. DUBOIS. O ato fotográfico, p. 266.

58. DUBOIS. O ato fotográfico, p. 266.


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cujos traços são tão imprecisos que se tornam abstratos para a mulher, que possui uma visão aérea da cidade. Em vez de embarcações, carros, ruas, praças, casas, prédios e árvores, são vistos apenas linhas e pontos de luz, conforme demonstram as expressões: “caminho iluminado”, “pontilhados de luz”, “abóbadas incandescentes”, “percurso sinuoso de luz” e “focos fixos e reluzentes”.

59. DUBOIS. O ato fotográfico, p. 268, grifo do autor.

60. DUBOIS. O ato fotográfico, p. 268.

o rio Negro para ver a cidade sob outra perspectiva.61 Após a travessia aérea, ela realiza, pois, uma travessia fluvial. Ambas as travessias têm em comum o fato de proporcionarem uma lenta revelação e uma visão distanciada da paisagem. A mulher está dentro de uma canoa que se aproxima lentamente da cidade, sendo que esse movimento de aproximação é o responsável pela captação das variações luminosas:

À semelhança dos trabalhos artísticos de Pollock, Lissitsky e Malévitch, a descrição pictural realizada pela mulher anônima a partir de uma visão aérea promove a “dissolução das possibilidades de olhar identitário do sujeito”.59 Isso porque,

Após ter cruzado o bairro, seguindo uma trajetória tortuosa, decidi retornar ao centro da cidade por outro caminho: queria atravessar o igarapé dentro de uma canoa, ver de longe Manaus emergir do Negro, lentamente a cidade desprender-se do sol, dilatar-se a cada remada, revelando os primeiros contornos de uma massa de pedra ainda flácida, embaçada. Essa passagem de uma paisagem difusa a um horizonte ondulante de ardósia, interrompido por esparsas torres de vidro, pareceu-me tão lenta quanto a travessia, como se eu tivesse ficado muito tempo na canoa.62

no horizonte dessas práticas “abstratas”, [há] uma certa ideia da abolição ou da superação do homem “terrestre” e de seus limites (pobres e cansados). E um trabalho, experiências, com o intuito de aproximar ou constituir uma outra forma de olhar e de inteligência das coisas.60

No Relato, o desejo de “constituir uma outra forma de olhar” – desejo esse que implica em promover, de diferentes modos, a Visibilidade literária – é característico da mulher anônima. Conforme apresentei, ela decide voltar a Manaus em um “voo noturno”, a partir do qual elabora uma descrição pictural. Ademais, a filha adotiva de Emilie, durante o passeio que realiza pelas ruas de Manaus, resolve atravessar

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A princípio, Manaus aparece à mulher como uma massa “flácida, embaçada”. Paulatinamente, a paisagem adquire traços menos difusos, de modo que é possível distinguir algumas construções urbanas. Assim, estabelece-se uma analogia entre a travessia e o processo de definição da paisagem: à medida que a canoa corta o rio e segue em direção a Manaus, a cidade torna-se mais nítida. Entretanto, tal PIMENTEL. Imagem-paisagem: A descrição pictural em Relato de um certo […] p. 73-89

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61. O marido de Emilie também vê e descreve Manaus a partir de uma embarcação. Mas, ao contrário da mulher anônima, não se trata de uma escolha do narradorpersonagem, já que este, em sua viagem migratória para o Brasil, só pôde chegar a Manaus de barco.

62. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 123-124.


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63. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 124.

64. HATOUM. Relato de um certo Oriente, p. 124.

processo de definição parece ser relativizado pela mulher quando ela afirma: “Tive a impressão de que remar era um gesto inútil: era permanecer indefinidamente no meio do rio. Durante a travessia estes dois verbos no infinitivo anulavam a oposição entre movimento e imobilidade.”63 É como se, com essa afirmação, a personagem explicitasse que ir rumo ao cais não garantiria que Manaus fosse vista em seus detalhes. O caráter ambíguo da travessia – a qual está entre o remar e o permanecer, o movimento e a imobilidade – é explicitado quando a filha adotiva de Emilie caracteriza o remar como “um gesto inútil”. Frágil navegante, a mulher anônima não realiza com êxito a travessia metafórica rumo à definição da paisagem, cuja descrição será, portanto, imprecisa. Dessa maneira, a reflexão sobre a dificuldade de cruzar o rio sugere a dificuldade de apreender os detalhes de Manaus a partir da canoa. Minha hipótese encontra respaldo no seguinte fragmento, em que a mulher anônima cita uma carta do irmão: E à medida que me aproximava do porto, pensava no que me dizias sempre: “Uma cidade não é a mesma cidade se vista de longe, da água: não é sequer cidade: falta-lhe perspectiva, profundidade, traçado, e sobretudo presença humana, o espaço vivo da cidade. Talvez seja um plano, uma rampa, ou vários planos e rampas que formam ângulos imprecisos com a superfície aquática”.64 EM  TESE

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A mulher anônima parece compartilhar da ideia, defendida pelo irmão, de que a cidade, observada de longe, é apenas um conjunto geométrico abstrato (planos e rampas, os quais formam ângulos com a superfície do rio). Tanto na travessia de avião, quanto na travessia de canoa, a mulher está distanciada de Manaus, e esse distanciamento faz com que, para ela, as formas adquiram um caráter abstrato. Corrobora-se, portanto, a hipótese segundo a qual a vista aérea, instaurada logo após o surgimento da fotografia, proporcionou uma mudança na percepção e representação do espaço. A descrição pictural realizada a partir do rio demonstra que, mesmo que não se esteja no céu, é possível olhar e conceber a paisagem de modo menos realista. *** A análise de descrições picturais de paisagem explicitou que, em Relato de um certo Oriente, a composição verbal de um quadro se fundamenta em pressupostos comuns à literatura, à fotografia e à pintura. Ao realizarem descrições picturais de paisagens, os narradores do romance vinculam-se a uma tradição nas artes visuais que, sobretudo a partir do século XIX, problematizou o modo de produção de imagens. Com a prática de pintores impressionistas e de fotógrafos, qualquer fragmento de paisagem natural ou urbana passou a ser explorado, bem como se atestou a impossibilidade de captar o instante. Paulatinamente, o ideal de imitar o mundo foi contestado e abriu-se caminho à abstração. PIMENTEL. Imagem-paisagem: A descrição pictural em Relato de um certo […] p. 73-89

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A contestação da mimese e a atenção aos aspectos corriqueiros da vida são características também verificadas na história da literatura, o que pode ser demonstrado a partir de diferentes perspectivas de análise. A perspectiva escolhida por mim é a interartística. Justifica-se, assim, por que as descrições de paisagem foram denominadas “picturais” e aproximadas do modo de compor paisagens na pintura e na fotografia. A partir da abordagem por mim proposta, é possível verificar que a paisagem, seja na literatura, seja nas artes visuais, impõe-se como um desafio à representação. Nesse sentido, os limites da descrição pictural de paisagem são explicitados no Relato.

LOUVEL, Liliane. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto. In: ARBEX, M. (Org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de PósGraduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006, p. 191-220. LOUVEL, Liliane. Nuanças do pictural. In: DINIZ, T. F. N. (Org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: UFMG, 2012, p.47-69. MAQUÊA, Vera Lúcia da Rocha. Memórias inventadas: um estudo comparado entre Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum e Um rio chamado Tempo, uma casa chamada Terra, de Mia Couto. 2007. Tese (Doutorado em Letras: Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Letras da USP, São Paulo, 2007.

REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2004. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1998. HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Trad. Anne Marie Davée. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.

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PIMENTEL. Imagem-paisagem: A descrição pictural em Relato de um certo […] p. 73-89

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ÉTICA DA PAISAGEM

João Rocha*

* jarochabr@yahoo.com.br Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG.

RESUMO: A partir da figura paisagem, presente ao longo da obra de Maria Gabriela Llansol, este trabalho visa extrair a noção de Ética da paisagem. Para isso, tomou-se como suporte teórico os textos de Eduardo Viveiros de Castro, Débora Danowski, Michel Serres, Jacques Lacan e Giorgio Agamben.

RÉSUMÉ: À partir de la figure paysage, présente chez Maria Gabriela Llansol, ce travail vise à extraire la notion d’Éthique du paysage. On a pris comme supporte théorique les textes d’Eduardo Viveiros de Castro, Débora Danowski, Michel Serres, Jacques Lacan et Giorgio Agamben.

PALAVRAS-CHAVE: Maria Gabriela Llansol; Ética; Paisagem; Biogaia; Palavra-muda

MOT-CLÉS : Maria Gabriela Llansol ; Éthique ; Paysage ; Biogée ; Palavra-muda


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“Só a escrita me liga à terra.” Contos do mal errante, Maria Gabriela Llansol

“state of emergency: how beautiful to be state of emergency: is where I want to be”. Jöga, Björk

Tudo no mundo escreve. A brisa do mar, as linhas das montanhas, a curva do céu. O vale, o leito dos rios, a aridez das pedras, o horizonte sublinhado pelo voo de um pássaro, o chão. O alfabeto das águas ainda não foi desvendado, nem a sintaxe das palavras de amor. Antes das palavras que conhecemos, havia o toque, havia o corpo com suas letras indecifráveis, havia a retidão do olhar de um felino a mostrar que nossa língua é só mais uma dentre as muitas que habitam o mundo. Na força imóvel das árvores, que crescem em direção ao infinito, sem nunca tocá-lo, no silêncio dos passos de uma onça espreitando sua presa, inscreve-se a convicção de que Babel não é somente um mito para a construção das línguas dos homens, mas a certeza de que a paisagem também escreve. Talvez possamos marcar nesse mito o começo de um caminho que levou o homem para fora da paisagem, que o levou a pensar que poderia ter a linguagem. A partir de Babel, melhor seria dizer da leitura que se fez do mito, o homem começa a pensar a paisagem como metáfora, como “tudo aquilo que se EM  TESE

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vê”, concebendo-a como “um espaço humanizado, pelo olhar, pela habitação vivencial e pela habitação estética.”1 Nesse processo narcísico de humanização da paisagem – sua metaforização –, o homem acredita estar mais próximo de realizar o seu sonho, o sonho de que tem a linguagem2. É nessa direção que Buescu trabalha a noção de paisagem literária. Para ela, “dizer que a paisagem literária representa a natureza será certamente verdade, no contexto, se compreendermos que natureza é, como sempre foi, um acontecimento humano, um acontecimento perante a consciência do humano.”3 Nesse caminho que marca a natureza como um acontecimento humano, intensificado e disseminado, sobretudo, a partir do Iluminismo, e lê, portanto, o mito de Babel somente como a confusão das línguas dos homens; ou ainda somente o sentido de posse escrito no sonho de Llansol – “o sonho de que temos a linguagem” –, o homem só caminha para dentro de si e leva consigo a certeza de que está completamente apartado da paisagem. Porém, se tomarmos esse caminho que já vem sendo traçado há milênios, somos obrigados a nos prender nas malhas da criação do humano, ou seja, ficamos do lado de fora, como se não fizéssemos parte da natureza, como se ela não fosse o fora, o que sempre esteve lá e que atravessa o humano, permitindo-nos olhar para além de nós mesmos. Em outro caminho, podemos ler de outra maneira o sonho escrito por Llansol de que o que temos é somente a linguagem4 e que mesmo assim não a temos completamente, porque o sonho ROCHA. Ética da paisagem

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1. BUESCU. Paisagem literária: imanência e transcendência, p. 10.

2. LLANSOL. “O sonho de que temos a linguagem”.

3. BUESCU. Paisagem literária: imanência e transcendência, p. 17.

4. Cf. BRANCO. “A pedra dura ao luar – O caderno branco”.


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inscreve-se, justamente, pelo fato de que é pela linguagem, somente por ela, que podemos entrar onde teimamos em manter distância, ou seja, na paisagem. Esse lugar guarda o sonho de uma outra leitura do mito de Babel que se inscreve, em segredo, nestas palavras de Llansol: Sonho com o dia em que a presença que de nós ficará dos textos não será a do nome próprio. Em que os signos de nossa travessia serão destroços, toques de leveza […].

5. LLANSOL. “O sonho de que temos a linguagem”, p. 17.

Os poetas deixarão de submeter-se à poesia. Quem escreve irá além da mágoa. Os animais, fascinados pela benevolência do Buda, sensata e moderadamente, indicam o pacto de bondade que a todos nos une. Os homens saem de sua identidade. E o texto arrasta-nos para os lugares da linguagem onde seremos seres de fulgor, indeléveis e diáfanos.5

Com essas palavras de Llansol, escrevo o sonho que me guiará nestas páginas: o sonho de conceber a literatura como um suporte por onde deslizam, não somente as paisagens criadas pelos homens, mas aquelas escritas pelas penas dos pássaros, o sulco das rochas, os pelos e couros das bestas. O sonho de ler a literatura como o lugar de passagem daquilo que restou em silêncio nas ruínas de Babel: a paisagem inumana e, no entanto, demasiado humana, do homem. ***

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A literatura encerra em seu corpo algo de apocalíptico, seja pela potência de revelação que sustenta, seja porque é atravessada pela morte. O que ela nos conta, inscreve-se no litoral do mundo e, portanto, a possibilidade do fim é sempre iminente. Mas, por situar-se no litoral, o começo também lhe é precioso. Sua força apocalíptica também advém de sua estrutura de abismo, ou seja, do fracasso da relação entre as palavras e as coisas, pois a literatura faz ressoar o eco incessante das ruínas de Babel e, com ele, a certeza, perturbadora, de que não temos a linguagem6. Sua potência de apocalipse é resultado das marcas de uma maldição: transmitir o que excede os limites do próprio corpo. Por ser maldita ela deve ser bem dita, palavra por palavra, letra a letra, para que possa, a todo momento, nascer e morrer... para nascer de novo... e morrer, em um movimento infinito. Destruir, ela diz7, pois, segundo Duras, literatura e escrita são comparáveis à caça pré-histórica de quando nenhuma palavra tinha sido, ainda, escrita. Uma força, portanto, que levantou os homens, um apetite de carne fresca, de matança, de marcha, de consumação da força8. Mas o que a literatura quer destruir? Com sua força de destruição e sua dose de apocalipse, ela só pode mirar o fim, o fim do mundo. Mas que mundo seria esse? *** Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro trazem em seu livro Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os

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6. Referência ao título do texto de Maria Gabriela Llansol “O sonho de que temos a linguagem”.

7. Referência ao título do livro Détruire, dit elle, de Marguerite Duras.

8. Fragmento da quarta capa do livro Emily L., de Marguerite Duras, e trata-se de um depoimento da autora à revista Nouvel Observateur.


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9. CASTRO; DANOWSKI. Há mundo por vir?, p. 25.

10. CASTRO; DANOWSKI. Há mundo por vir?, p. 26.

11. CASTRO; DANOWSKI. Há mundo por vir?, p. 26.

12. CASTRO; DANOWSKI. Há mundo por vir?, p. 26.

fins, a noção de Antropoceno, nome para a possível era geológica em que vivemos e que teria tido início na Revolução Industrial e se intensificado desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Ela é marcada pela insígnia do fim, o fim da espécie humana, pois o homem deixou de ser um simples agente biológico para se transformar em uma força geológica9, isto é, de um simples habitante, como qualquer outra forma que habita o mundo, o homem transformou-se em um ser capaz de interferir nas forças que movem o planeta. Essa “colisão dos Humanos com a Terra”10, segundo os autores, é paga com “a intrusão de Gaia no mundo humano, dando ao Sistema Terra a forma ameaçadora de um sujeito histórico, um agente político, uma pessoa moral”11. O resultado disso é o que vemos atualmente: mudança climática, elevação dos níveis dos oceanos, extinção de inúmeras espécies, grandes períodos de estiagem, escassez de recursos naturais etc. Tendo isso em vista, só é possível falar de um “mundo humano” porque o homem criou o seu, fora do mundo de Gaia, construindo uma espécie de redoma que “ao mesmo tempo nos separava e nos elevava infinitamente acima da Natureza infinita lá fora”12. Porém, essa redoma foi quebrada, sobretudo, ao longo da história do capitalismo, onde o homem começou a conceber Gaia menos como casa e lugar de partilha, e mais como um território a ser explorado, colonizado, comercializado e, assim, segundo Danowski e Castro, a humanidade

tornou-se “uma catástrofe, um evento súbito e devastador na história do planeta, e que desaparecerá muito mais rapidamente que as mudanças que terá suscitado no regime termodinâmico e no equilíbrio biológico da Terra”13, o que faz com que os autores afirmem: “O Antropoceno é o Apocalipse”14. O homem, portanto, criou para si um mundo incompatível com a sua própria existência e, por isso, viver tornou-se um estado de emergência, como se a todo instante fôssemos confrontados com a ideia do fim – finda-linha15. Nesse estado de emergência, restam-me, somente, mais perguntas: o que a literatura pode nos contar nesse mundo em que tudo parece já estar perdido, onde “a sensação de estarmos acordados possa ser um pesadelo a mais”16? Por que falar sobre literatura, se o mundo que conhecemos está prestes a ruir? O que escrever quando já não resta mais nada? Como retirar a literatura da redoma em que o homem a guardou e, uma vez fora dela, o que fazer para que ela não se perca nas mil e uma paisagens de Gaia? Será possível vislumbrar para ambos, literatura e homem, uma paisagem além do fim? *** Biogaia17 é como Michel Serres propõe que vejamos o mundo, isto é, espaço ancestral onde terra e vida se misturam, “grito anterior a nossas línguas, sem elas, sob elas, fora delas, sob suas linhas, antes que brote o sentido do que digo.”18 O que

13. CASTRO; DANOWSKI. Há mundo por vir?, p. 27. 14. CASTRO; DANOWSKI. Há mundo por vir?, p. 35. 15. Noção formulada por Lacan a respeito da personagem Antígona da tragédia homônima de Sófocles. Para Lacan, Antígona encontra-se “na-finda-linha”, ponto extremo em que “a solidão definida em relação ao próximo está longe de se esgotar”, por este estar situado em “uma zonalimite entre a vida e a morte” [LACAN. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p. 321]. Na zona limite de um “até”, encontrase Antígona, “porque alguma coisa de para além dos limites da Até tornou-se para Antígona seu próprio bem que não é o de todos” [LACAN. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p. 320]. 16. CASTRO; DANOWSKI. Há mundo por vir?, p. 31 17. O título do livro de Michel Serres, em francês, é Biogée. Sua tradução para Biogaia é de minha autoria. As traduções dos fragmentos desse livro foram feitas por mim, exclusivamente para este trabalho. 18. SERRES. Biogée, p. 43.

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19. SERRES. Biogée, p. 35. 20. SERRES. Biogée, p. 35. 21. Esse “empacotamento” a que se refere Michel Serres tem a ver com o furor do sentido, isto é, o impulso excessivo do homem para dar sentido para as coisas, seja porque “o sentido nos protege do medo”[SERRES. Biogée, p. 38.], seja porque acredita, realmente, que a palavra é a morte da coisa e, assim, o mundo inerte possa se tornar seu mais facilmente. Sobre esse movimento, Serres dirá: “Eu gostaria de escutar as coisas livres de seus pacotes, como se apresentavam antes de se encontrarem nomeadas. […] Assim, cada objeto inerte, e vivo também, dorme sob sua capa de signos, um pouco como hoje, mil cartazes estourando de mensagens e cores berrantes inundam, como um dilúvio sujo, as paisagens, ou melhor, excluem-nas da percepção porque o sentido, quase nulo, dessa falsa língua e dessas imagens baixas, forma um ponto de atração irresistível para nossos neurônios e olhos. Essa apropriação cobre de feiura a beleza do mundo.” SERRES. Biogée, p. 40.

se pode ouvir dela não são mais que barulhos, ora violentos, como as trovoadas em meio à forte tempestade, ou a terra abrindo-se em um terremoto; ou fracos, como o murmúrio do mar em um dia de calmaria, ou o estalar de gravetos durante uma caminhada na mata. Porém, o homem, ao longo de sua história de colonização do mundo, distanciou-se de Biogaia, assumindo-se como sujeito detentor de um saber perigoso: o da nomeação. Nomear as coisas foi o que garantiu ao homem a dominação do mundo, pois dar nome às coisas cria a cisão entre sujeito – aquele que nomeia e, portanto, detém o poder –, e objeto – aquilo que está sempre à mercê de quem o nomeou. Ao longo da história do homem, que se confunde com a história do capitalismo, pode-se dizer que essa cisão entre sujeito e objeto é a mesma entre dono e propriedade, ou seja, ao dar nome às coisas, o homem transformou o mundo em sua propriedade. E, como donos, como sujeitos, segundo Serres, “nós pavimentamos o mundo […] de objetos, assim nomeados por nós porque são jogados diante de nós, rejeitados, melhor, descartáveis”19 e construímos ao longo de nossa história uma “Terra-lixo” de “ar viciado, mares mortos, aves domésticas de bateria, patas soldadas no cimento, mundo imundo, lixão, emporcalhado por nós para nos apropriarmos dele.”20 Assim, munido de palavras como se fossem armas, o homem promove uma espécie de “empacotamento”21 de tudo que habita o mundo, o que torna, cada vez mais

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difícil, ouvir o canto das coisas antes de serem nomeadas22 e reduz a linguagem somente a uma convenção que se passa entre os locutores sem a consulta da coisa nomeada que, de repente, se torna propriedade de quem a recobre de imagens e sons.23 Foi nesse movimento de “empacotamento” do mundo que a ciência evoluiu, acentuando cada vez mais o abismo entre o sujeito e as coisas, sem se interessar em escutar o canto ancestral do mundo. É a partir dessa objetivação e em nome do que acredita ser sua função – a manutenção do poder do homem sobre as coisas –, que a ciência transformou o mundo em um campo de obras: pavimentou a terra; reduziu as florestas a parques, a reservas, ou as substituiu por plantações; poluiu os rios, os mares e o ar em uma velocidade inacreditável; fez do homem um animal racional, social e político, a ponto de fazê-lo confundir sua existência com a da ciência. Em outras palavras, os meios de conhecer, construídos pela ciência, são excludentes, pois excluem o mundo. Para Michel Serres, as ciências duras encaixam-se nesse perfil, pois são aquelas responsáveis por tomarem “de um lado o sujeito pessoal ou coletivo, nobre, e do outro os objetos passivos e submissos, reduzidos a algumas dimensões de espaço, de tempo, de massa, de energia e de potência, quase nus, despidos, exangue”24 contrapondo-se às ciências da vida e da terra que, segundo o autor, ROCHA. Ética da paisagem

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22. Cf. SERRES. Biogée, p. 39.

23. Cf. “Si le langage se réduit à une convention, elle se passa entre les locuteurs, sans consulter la chose nommée, devenue, du coup, propriété de ceux qui, ainsi, la recouvrirent de leur productions dessinées ou sonores”. SERRES. Biogée, p. 41.

24. SERRES. Biogée, p. 35.


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25. SERRES. Biogée, p. 35-36. 26. Refiro-me ao título do livro O partido das coisas, de Francis Ponge.

praticam uma maneira de conhecer mais partilhada, aberta, religada, onde aquele que conhece participa das coisas que conhece, renasce delas, tenta falar sua língua, escuta sua voz, respeita seu habitat, vive a mesma história evolutiva, encanta-se com suas narrativas, limita, enfim, por elas e para elas, seu poder e sua política, tão curiosamente nomeados pela cidade de onde se ausenta a Biogaia. As ciências da vida e da Terra costuram de novo o rasgo que separava o sujeito de seus objetos. Ouso dizer que elas se tornam humanas? Sim, eu sou o que eu penso e isto também sou eu; eu sou quem acaricio e o que eu sinto. Desafogado de suas prerrogativas exclusivas e decidido a ceder uma parte, o sujeito conhecedor se objetivisa, o objeto se cognitivisa.25

É preciso, portanto, tomar o “partido das coisas”26, como escreveu o poeta Frangis Ponge. Dessa maneira, podemos ver essa relação entre sujeito e objeto como um jogo, ou melhor, um objeu, palavra criada por Ponge e que promove, em um só golpe, o “encontro inesperado do diverso” – objeto (ob), sujeito (je) e jogo (jeu). Nesse jogo, no qual esses três elementos formam uma mônada – objeu – não há espaço para uma ciência que insiste em separar sujeito e objeto, para a qual o jogo confunde-se com a falta de rigor e pode ser interpretado como mero entretenimento. Mesmo que Serres tenha dividido as ciências entre duras – aquelas que reforçam a cisão entre o homem e o mundo EM  TESE

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– e as da Terra e da vida – mais próxima da partilha com o mundo–, insinuando que estas últimas se tornariam ciências humanas, acredito que o significante “ciência” ainda traz, muito forte, esse desejo de ruptura entre o homem e as coisas. Seja ela dura, da Terra, da vida ou humana, a ciência parece não ser compatível com o movimento proposto pela palavra criada por Ponge, objeu: colocar em abismo o objeto, a linguagem e, consequentemente, o sujeito. Nesse sentido, não se pode mais falar de ciência, mas de experiência, pois o sujeito nomeia, mas também é nomeado. Este é o jogo, objeu: os nomes são lançados e apagados para serem criados novamente em outro lugar, em outro corpo, em outras paisagens. Nomear não é um jogo pertencente somente ao sujeito, pois aqui ele é atravessado por aquilo que está no exterior, o objeto, o Outro, e dessa maneira já não pode empacotar, engessar as coisas através das palavras, pois nesse jogo elas também são coisas e como tais podem ser renomeadas, a qualquer momento, mas também podem nomear o sujeito. Por isso, sujeito e objeto são sempre abismados e o mundo é, a todo momento, novo. E não é a ciência o que sustentará esse objeu, mas a literatura, pois, como experiência, ela está sempre por se fazer, no limite do perigo – inclusive do perigo de se tornar uma ciência. A literatura pode ler uma árvore, sem precisar das informações taxonômicas de sua espécie, pois sabe, como ROCHA. Ética da paisagem

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27. PONGE. O partido das coisas. 2000, p. 137. 28. Cf. : “Je voyais comme la mer”. SERRES. Biogée, p. 17. 29. Cf.: “Mon corps pense comme la Terre”. SERRES. Biogée, p. 32. 30. Cf.: “Sempre me senti paisagem”. LLANSOL. O senhor de Herbais, p. 195.

31. Cf. : “Eu brotei de sua água [do rio Garonne], da mesma água nasceu o mundo” [“Je jaillis de son eau, de la même eau naquit le monde”]. SERRES. Biogée, p. 29. 32. SERRES. Biogée, p. 29.

atesta Ponge, que as árvores exprimem-se por suas poses, não podem guardar nenhuma ideia secreta, desdobram-se inteiramente, honestamente, sem restrição; onde quer que nasçam, por mais escondidas que estejam, só cuidam de levar a cabo sua expressão: preparam-se, adornam-se, aguardam que venham lê-las.27 A literatura pode fazer o homem ouvir a língua quase ininteligível da paisagem, que ele veja como o mar28 e que seu corpo pense como a Terra.29 Ela faz com que o homem se sinta paisagem30 e que se coloque no mesmo ramo dos outros seres que habitam o planeta. A literatura faz com que o tempo tome outro caminho, pois o eterno não mais será marcado somente pela premissa de Heráclito, pois, na Biogaia, só nos banhamos no mesmo rio, nas mesmas águas, já que brotamos da mesma água de que brotou o mundo.31 Portanto, as águas que habitam o planeta são as mesmas e, por isso, “nos banhamos sempre nessa mesma água que corre, estatisticamente, cujo relógio circular marca menos o temporal que o eterno.”32 Dessa maneira, a literatura não pode ser mesmo uma ciência, mas um saber anônimo e, portanto, um saber da terra, das águas, dos ventos, dos abismos, da flora, da fauna, do fogo… Um saber do vivo. *** Eis que surgem, com a leitura e a escrita, as contaminações33, pois é assim que, sobreimpressos, esses dois espaços me aparecem: Vivo e Biogaia. Michel Serres definirá, assim, EM  TESE

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o que movimenta a Biogaia: “a Vida, Bio, sabemos, habita a Terra e a Terra, Gaia, se mistura à Vida.”34 Mesmo que misturados, ainda vemos uma certa divisão entre vida e terra, no espaço construído por Serres, embora nele haja um esforço para abolir a hierarquia criada pelos homens em relação aos seres que habitam com ele esse espaço. Mas, mesmo assim, ainda há uma divisão, seja no âmbito da palavra, pois Biogaia é um substantivo composto o que reforça uma certa separação desses dois espaços, Vida e Terra; seja porque a terra ainda está separada da vida. É verdade que essa divisão é acentuada mais pela linha que demarca um litoral do que pelas linhas de uma fronteira, mas a cisão cria, ainda assim, uma distância, sempre presente, entre eles. De um outro lado, temos o “vivo”, escrito pelo texto de Maria Gabriela Llansol. Ele também abole as hierarquias entre os vivos – tudo o que faz esse lugar cumprir o destino do seu nome –, pois, na horizontalidade construída por essa não hierarquia, é possível a partilha das singularidades, diferentemente do que acontece na estrutura verticalizada do poder, em que, no lugar da partilha, sedimenta-se o movimento unilateral da imposição. No “vivo”, terra e vida são uma coisa só, pois tudo é “vivo no meio do vivo”35. Aqui, todo vivo escreve, pois toda forma de encontro é uma escrita. Escrever, no vivo, é contaminar e ser contaminado pelo outro, é fazer das letras que restam desse embate os caminhos labirínticos de uma vida. E tais encontros não se ROCHA. Ética da paisagem

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33. Refiro-me, aqui, à noção de “contaminação” formulada por Peter Pal-Pelbart. Segundo o autor, a “contaminação” é uma das formas da leitura, pois inscreve-se no movimento dos encontros e dos afetos, como podemos ler neste fragmento de Peter Pal-Pelbart: “Encontrar é afetar e ser afetado, conforme o ensinamento de Espinosa, mas é igualmente envelopar aquilo ou aquele que se encontra. Os heterogêneos se contaminam, mas cada qual também envelopa aquilo ou aquele que encontra, apodera-se de sua força, sem no entanto destruí-lo. […] Em todo caso, num encontro, a partir da distância que Deleuze chamou de ‘polidez’ – Outy, de ‘gentileza’; Barthes, de ‘delicadeza’; Guattari, de ‘suavidade’ –, há ao mesmo tempo separação, vai-e-vem, sobrevoo, contaminação, envelopamento mútuo, devir recíproco”. PAL-PELBART, Peter. Como viver só. 2008, p. 276. 34. Quarta capa do livro Biogée, de Michel Serres. 35. LLANSOL. Lisboaleipzig 1: o encontro inesperado do diverso, p. 120.


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dão somente entre humanos, pois, aqui, o homem é uma paisagem, isto é, ele é um “vivo”, como qualquer outro, no meio do “vivo”. E, nesse campo, uma ética desponta no horizonte: a ética da paisagem. ***

36. Cf. CELAN. Arte poética: o meridiano e outros textos, p. 55: “uma das esperanças do poema é precisamente a de, deste modo, falar também em causa alheia […] falar em nome de um Outro, quem sabe em nome de um radicalmente Outro.”

Por muito tempo a ética foi uma questão prioritariamente humana, já que se referia às formas de interação entre os homens em seu convívio social. Mesmo nos padrões éticos em pesquisas com animais, foi sempre pautada no sofrimento humano e, a partir disso, estabelecem-se as metodologias, os protocolos, que deverão ser seguidos para a melhor forma de intervenção nos corpos dos animais. É a partir do humano, sempre, que se pensa a ética. Porém, e se a pensarmos do ponto de vista de um radicalmente Outro36, como aponta Celan? Se pensarmos o homem como uma paisagem, como um vivo, o que isso nos diria? Como isso interferiria na ética? Que ética poderíamos pensar se concebermos o humano como mais uma paisagem dentre tantas outras que formam o planeta? O que diríamos da literatura, se a retirássemos da prisão que a submete ao homem, como se somente este escrevesse? Que passo a literatura poderia avançar, se ela não fosse mais sinônimo de ficção, mas uma verdadeira potência de criação de mundos no mundo? O que seria do homem se o céu desmoronasse? O que traria a ele essa espécie de apocalipse? EM  TESE

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Primeiro, creio, ele poderia ver o mundo com seus olhos de paisagem e, então, veria o fosso profundo que criou entre si e a natureza e o ódio profundo que esta nutre pelo “homem, no ciclo do carbono, representar uma solução de facilidade e de felicidade relativamente a outras formas naturais e ser, cada vez mais, uma espécie autista, proliferante e conquistadora.”37 Escrever com olhos e mãos de paisagem é perceber essa fenda aberta entre os sexos do homem e o da paisagem. Isso não quer dizer que a escrita, nesse ponto, sirva para tamponar essa fenda, ou desfazê-la, pois, dessa maneira, ela se configuraria como uma tentativa de volta a um tempo paradisíaco, como se pudéssemos passar uma borracha na história. Se tratarmos a escrita da paisagem como uma espécie de busca do éden, isto é, uma forma de apaziguar essa fenda construída pelo homem, trataríamos o texto como se fosse um texto ecológico, no sentido de trabalhar para uma certa pacificação entre homem e natureza, o que, de certa forma, retiraria dele sua potência criadora de atrito. Além disso, como bem marca Llansol, “o texto, todavia, não é ecologista, não vê a natureza como um todo, como um fundo harmónico da espécie humana.”38 Portanto, a escrita da paisagem não está ali para tamponar, destruir, diminuir ou maquiar a fenda que separa homem e natureza, mas para fazer da fenda um litoral onde cada vivo “é responsável por todo o vivo”39, isto é, se tudo no mundo

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37. LLANSOL. Onde vais, DramaPoesia?, p. 187.

38. LLANSOL. Onde vais, DramaPoesia?, p. 187.

39. LLANSOL. Onde vais, DramaPoesia?, p. 187.


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escreve, cada vivo é responsável pelo texto que dá a ler. Essa responsabilidade por aquilo que se escreve – pois um escrito é como uma flecha rumo ao peito de quem o encontra – é um movimento ético e, porque não é um privilégio do homem e muito menos um dano adquirido, podemos chamá-la de ética da paisagem. Essa ética está bastante clara nesta passagem de Onde vais, Drama-Poesia: o Jade é responsável, o pinheiro Letra é responsável, Prunus Triloba é responsável; eu, Maria Gabriela Llansol, sou responsável pelo texto que dou a ler, ser-se humano é evolutivamente um progresso de leitura mas não é um privilégio, nem uma superioridade, nem um dano adquirido, é um lado mais legível do que os outros para dar continuidade 40. LLANSOL. Onde vais, DramaPoesia?, p. 187-188.

e orientação à emergência do vivo no seio do universo.40

E aqui a emergência surge, pelo menos, em seus dois sentidos: aparecimento e urgência. É urgente que o vivo apareça para que possamos, como escreveu Llansol, abrir a ética às aranhas.41 E, com essa abertura, fica evidente que a questão ética não é exclusivamente humana, já que o humano só pode existir porque há um fora que o nomeia como tal. Assim, se o homem é, ele próprio, uma paisagem, e escreve como toda e qualquer outra forma que constitui o “vivo”, a ética não deve ser um acontecimento exclusivo do homem, mas de tudo que, no mundo, escreve; se cada vivo é responsável por aquilo que dá a ler, ou seja, por sua participação na dança dos afetos que faz girar o mundo, a ética da paisagem é a responsabilidade de cada forma, humana ou não, sobre os traços, indeléveis, que deixa pelo caminho. Traços que contaminam e são contaminados pelas múltiplas formas do vivo. A ética da paisagem se configura, assim, como uma ética limite, litoral, na qual o homem só é homem quando é nada42, ou ainda, quando é paisagem. E, em uma ciranda sem fim, vai se traçando a narrativa infinita do vivo sobre a Terra. ***

Porém, quando se fala de uma ética da paisagem, resta, calada, uma questão: como falar de algo intrinsecamente do campo do humano, a ética, fora dele? Ora, tal questão só se coloca assim, tão imperativa, porque ela é elaborada do lugar onde a fenda que separa homem e natureza ainda não é litoral e, portanto, não se encontra espaço para a emergência do vivo.

Os traços escritos pelos corpos que formam o vivo – o texto – já se imprimiram sobre muitas superfícies. Muito antes do papel, eles já se imprimiam sobre as pedras, lascas de madeira, cascas de árvores, cascos de animais, ossos, placas de argila, folhas de palmeira, bambu. Sobre as tiras entrelaçadas

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41. Referência a este fragmento de Os cantores de leitura: “Estava feliz a Ética. Um livro feliz era felicidade para nós. Bento, Baruch, Benedictus, Espinosa mantinha-se pobre entre os espectadores, e para chamar a si o perdão dos insectos que matara por curiosidade científica, abria a Ética às aranhas. Com lucidez” (p. 154).

42. Referência à questão posta por Édipo, na tragédia Édipo em Colono, de Sófocles: “Hoje, que nada sou, volto então a ser homem?”. SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, p. 123.


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do caule de uma planta chamada papiro, os egípcios escreveram. Assim, também, fizeram os Maias sobre um papel produzido a partir da casca da figueira, o Kopó. Sobre tábuas de madeira revestidas por cera, corria o texto dos romanos. Também sobre a pele animal, pois dela se produzia o pergaminho, correu o texto, para depois passar para os cadernos e, muito tempo depois, para as telas digitais. Mas o que o suporte do texto pode nos dizer sobre ele?

43. LLANSOL. O jogo da liberdade da alma, p. 12.

44. AGAMBEN. Ideia de prosa, p. 27. 45. AGAMBEN. Ideia de prosa, p. 27. 46. AGAMBEN. Ideia de prosa, p. 27.

Em O jogo da liberdade da alma, Llansol escreve: “o caderno não é o escrevente do texto mas o lugar onde o texto aprende a materialidade do lugar por onde corre.”43 Do texto, portanto, também participa a materialidade dos suportes por onde passa, isto é, os cascos de tartaruga, as lascas dos troncos de árvores, as folhas, as penas que feriam as superfícies para imprimir as tintas do texto, as pedras. Tudo por onde correu faz parte do texto e, nesse sentido, o texto é, também, uma paisagem. Porém, esse movimento não é evidente, pois pode tornar turvas as imagens que o texto, pautado pela verossimilhança, preocupado com uma certa abstração da materialidade da língua e implicado com a indiferença em relação aos suportes por onde o texto corre, esforça-se em deixá-las tão cristalinas. O texto-paisagem segue outro caminho, o da “substância lenhosa da língua”44, pois, como aponta Agamben, “onde acaba a linguagem, começa não o indizível, mas a matéria da palavra”45, essa floresta fechada, como viam os antigos, onde se está livre das prisões da representação46. É EM  TESE

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nessa “substância lenhosa da língua” que se inscreve o litoral do mundo, onde as palavras não carregam somente conteúdos, sentidos, mas o cheiro por onde passaram, o desenho das letras, os sons impressos de acordo com um ritmo, as texturas e as nervuras impregnadas no seu corpo pelo atrito com as múltiplas superfícies sobre as quais passou, o sabor singular que imprimem no paladar, as chagas e as carícias que deixam sobre a pele e a beleza e o espanto com que nos brindam, ao nos confrontar com a sua nudez. Para receber esse texto, para lê-lo, é necessária uma certa operação que, ao lado de Maria Gabriela Llansol, chamaria de “vegetalização”. Esse movimento foi descrito nesta bela passagem de Ardente texto Joshua: Vegetalizar é uma operação de inervar, tornar lúcidas as nervuras do texto, operação delicada que pode tornar turva a imagem que surge e se transforma em texto. É mais fácil compreender quando se olha o texto com a língua dos pássaros, sons, ritmos, morfemas, que ora são língua, ora são imagem, ora são este corpo que escreve, ora são nada diz-se, por vezes, palimpsesto, ROCHA. Ética da paisagem

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mas não

[…] a Coisa só se apresenta a nós na medida em que ela acerta na palavra, como se diz acertar na mosca. No texto de Freud, a maneira pela qual o estranho, o hostil aparece na primeira experiência da realidade para o sujeito humano é o grito. Esse grito, eu diria que não precisamos dele. Gostaria aqui de fazer referência a algo que está mais inscrito na língua francesa do que na língua alemã – cada língua tem suas vantagens. Em alemão, das Wort é, ao mesmo tempo, a palavra e a fala. Em francês, a palavra mot tem um peso e um sentido particular. Mot é essencialmente nenhuma resposta. Mot, diz La Fontaine a certa altura, é o que se cala, é justamente aquilo para o qual nenhuma palavra é pronunciada. As coisas que estão em questão – e que alguns poderiam contestar-me como sendo por Freud colocadas num nível superior ao desse mundo de significantes sobre o qual lhes digo o que ele é, ou seja, o verdadeiro móvel do funcionamento no homem do processo qualificado de primário – são as coisas enquanto mudas. E as coisas mudas não são exatamente a mesma coisa que as coisas que não têm relação alguma com as palavras.49

compreender um texto é como compreender um cão, uma previsão do tempo, ou seja, é aceitar que não se fala, que se não compreende, excepto pela companhia, é não confiar no tempo que fará vê-lo como prometido e como incerto 47. LLANSOL. Ardente texto Joshua, p. 74.

48. Cf. LLANSOL. O livro das comunidades, p. 10: “Escrever vislumbra, não presta para consignar. Escrever, como neste livro, leva fatalmente o Poder à perca da memória. E sabe-se lá o que é um Corpo Cem Memórias de Paisagem”.

como nadas objectivos que podem ser o algo concreto a que meu corpo se liga.47

Tornar lúcidas as nervuras do texto, deixar claras as marcas da paisagem que ele carrega e o fazem ser um corpo “cem memórias de paisagem”48, ou seja, com menos sentido e mais terra, mais água, mais cão, mais fogo, mais matéria, é a operação de “vegetalização”. Ela nos permite ler um texto através da companhia, pois, não passando pelo sentido, a leitura se dá pelos afetos e, da mesma maneira que fazemos com um cão, uma árvore ou uma tempestade, lemos esse texto: pelas memórias indeléveis que ele deixa na paisagem. Ainda sobre as palavras, sua “substância lenhosa” e sua parte vegetal, ouçamos Lacan:

É preciso tempo para alguma coisa nascer. Tempo e palavras. Na voz de Lacan, foram palavras o que encontrei. Encontrei-as mudas, com a Coisa a acertá-las como uma flecha. Porém, encontro-as agora, na leitura, nuas, mudas, mas não sem voz, não sem corpo. É de fato uma dádiva que cada língua tenha seu valor, pois assim como Lacan

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49. LACAN. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p. 71.


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aprofundou-se no francês a partir do alemão, posso avançar na língua portuguesa e tocar na palavra como se tocasse na superfície movediça e inconstante de um espelho d’água. A palavra, para mim, como um dia me escreveu Maria Gabriela Llansol, “vem sempre à tona de água”. Com Lacan, recebo-a muda. Porém, na minha língua, sinto o impulso de desdobrar a palavra “muda”. Assim: de um lado a mudez e do outro a muda, como se diz de uma planta. A palavra é também muda – potência vegetal. Ela é muda, pois está prestes a nascer – já nascida. Também é muda porque todo nascimento é precedido de um longo silêncio. A palavra também muda, isto é, sempre pode ser outra coisa. É em direção à palavra-muda que conduzo essa passagem de Lacan. A palavra-muda carrega consigo o silêncio da paisagem e, por isso, está sempre a ponto de ser outra coisa. Está sempre a nascer – ininterruptamente. Porque não é semente, não traz o peso da moral que salgaria o solo por onde cai. Definitivamente, não se pode confundi-la com “semente”, pois, assim, faríamos como Padre Antônio Vieira que, ao semear a palavra-semente, desejava criar uma alma para aqueles que julgava não a possuirem, mas o que fez, de fato, foi contribuir para o extermínio daqueles corações selvagens que encontrou por aqui. Extermínio este que perdura até hoje. É preciso também dizer que a palavra-muda não catequiza, pois cresce sempre no campo do fora e é pelo toque,

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e não pela oratória, nem pela moral, que ela pode alcançar o corpo dos homens. Com ela, a natureza deixa de ser transcendente e, não estando além nem aquém, ela se encontra no meio de nós. Talvez, a palavra-muda possa nos fazer enxergar o que lutamos, a todo momento, para esquecer: o fato de que somos apenas uma forma de ser, dentre milhares que habitam o planeta, e que não há, nisso, algum privilégio. A palavra-muda, talvez, nos ajude a conceber a literatura não mais como “o que consiste mesmo em dar ‘forma’ a uma visão da realidade pelo artista que retira da natureza a sua inspiração e experiência, recusando-a ou transfigurando-a.”50 A palavra-muda não retira nada da natureza, porque faz parte dela, escreve com ela e nos aponta a vida, o vivo. E, nesse movimento, ela impõe uma ética – a ética da paisagem –, pois não concebe o homem como um ser destacado dos outros que caminham sobre o mesmo chão. Portanto, a palavra-muda reforça a ideia de que a literatura não é um privilégio do homem, pois ela está em toda parte, dado que tudo no mundo escreve, sempre escreveu. É verdade que o homem ficou, por muito tempo, preso em si mesmo, exilado pela própria fenda que criou entre si e a natureza, mas, com ela, literatura e homem são levados a ler tudo o que antes lhes parecia mudo e invisível, são levados à força de uma descoberta: ler e escrever com a paisagem. ROCHA. Ética da paisagem

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50. COUTINHO. Notas de Teoria Literária, p. 28.


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REFERÊNCIAS

Toda revelação, toda descoberta traz consigo uma força apocalíptica. A cada dia corremos o risco de deparar-nos com o inesperado e, diante disso, somos convocados à imobilidade, fonte do medo, ou a continuarmos a marcha, mas em outro ritmo, com outros passos, por outros caminhos. A ética da paisagem surge, então, como uma força de revelação. Mirando na “substância lenhosa da língua”, ela faz o homem questionar o exílio em que se colocou em relação à natureza. Lembra-lhe que o poema é escrito pelos traços não só do humano, mas do húmus, dos rios, dos pássaros e dos vermes que habitam o planeta. Fazendo emergir o vivo, a ética da paisagem reforça a potência anônima da literatura e a mistura com as matérias que constituem o vivo. Com ela, a leitura é mais uma experiência sensorial que intelectual, e, assim, podemos sentir as texturas, os sabores, o canto das palavras nuas e mudas. A literatura, aqui, cede lugar ao canto das florestas que, em meio ao caos, reúne um concerto de vozes que também devem contar a história do mundo. A ética da paisagem lança o homem para dentro do vivo e, aí, ele poderá ouvir o canto lento e silencioso da escrita dos dias e com ele traçar o melhor caminho face à violência de revelação de um apocalipse, pois o mundo sempre chega, ao final de cada dia, ao seu fim. Para nascer de novo.

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AGAMBEN, Giorgio. Ideia de prosa. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. BJÖRK. Jóga (excerto). In: Homogenic. Brasil: Polygram, 1997. CD. BRANCO, Lucia Castello. A pedra dura ao luar – O caderno branco. InComunidade, ano 3, ed. 27, out. 2014. Disponível em: http://www.incomunidade.com/v27/art_bl.php?art=4. Acesso em: 04 abr.2015. BUESCU, Helena Carvalhão. Paisagem literária: imanência e transcendência, Revista Colóquio/Letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, n. 179, jan./abr. p. 9-18, 2012. CASTRO, Eduardo Viveiros de; DANOWSKI, Déborah. Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Babárie: Instituto Socioambiental, 2014. CELAN, Paul. Arte poética: o meridiano e outros textos. Trad. João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1996. COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria Literária. São Paulo: Vozes, 2008. DURAS, Marguerite. Détruire, dit-elle. Paris : Les Éditions de Minuit, 1969. DURAS, Marguerite. Emily L. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

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SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LLANSOL, Maria Gabriela. Ardente texto Joshua. Lisboa: Relógio D’água, 1998. LLANSOL, Maria Gabriela. Contos do mal errante. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004. LLANSOL, Maria Gabriela. O jogo da liberdade da alma. Lisboa: Relógio D’água, 2003. LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades. Lisboa: Relógio D’água: 1999. LLANSOL, Maria Gabriela. O senhor de Herbais. Lisboa: Relógio D’água, 2002. LLANSOL, Maria Gabriela. O sonho de que temos a linguagem, Revista Colóquio/Letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, n. 143/144, jan. 1997. p. 5-18. LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, drama-poesia?. Lisboa: Relógio D’água, 2000. LLANSOL, Maria Gabriela. Os cantores de leitura. Lisboa: Assírio e Alvim, 2007. PAL-PELBART, Peter. Como viver só. Catálogo da 27ª Bienal de São Paulo. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008, p. 267-276. PONGE, Francis. O partido das coisas. Trad. Adalberto Müller Jr., Carlos Loria, Ignácio Antonio Neis, Júlio Castañon Guimarães, Michel Peterson. São Paulo: Iluminuras, 2000. SERRES, Michel. Biogée. Paris: Éditions Le Pommier, 2013.

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ALVORADA LÁ NO MORRO, QUE BELEZA! HERMÍNIO, A PAISAGEM E AS CORES DO SAMBA

Francisco Antonio Romanelli*

RESUMO: Há, nas letras de alguns sambas que falam sobre as paisagens dos morros cariocas, riqueza de descrição, e uso de fala lírica, que acabam por representar pinturas na imaginação dos apreciadores. Neste texto, foram reunidas algumas dessas canções, em uma disposição adequada para a satisfação estética do observador, como se ele estivesse passando por quadros em exposição na mostra de arte focando paisagens típicas do morro carioca, priorizando-se as “pinturas” elaboradas pela escrita do poeta e letrista Hermínio Bello de Carvalho. PALAVRAS-CHAVE: Samba; morro; paisagens.

* faromanelli@gmail.com Mestre em Letras pela Universidade Vale do Rio Verde - UNINCOR.

ABSTRACT: There’s, in the lyrics of some sambas talking about the landscapes of slums on the hills in Rio, a wealth of description and a speech of great lyricism, which end up creating real paintings in the imagination of connoisseurs. In this paper, we have been brought together some of these songs in a proper disposition for aesthetic satisfaction and observer’s accurate assimilation, as if he were going through paintings displayed in art gallery, focusing on typical landscapes of Rio’s slum hills, giving priority to the “paintings” drawn up by lyrics of the poet and lyricist Hermínio Bello de Carvalho. KEYWORDS: Samba; slum hills; landscapes.


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Deus, dando a paisagem, Metade do céu já é meu [...] Deus, dando a paisagem, O resto é só ter coragem Hermínio Bello de Carvalho, Zé Keti

Quando se fala em pinturas desvelando o universo do samba, pensa-se logo na faceta pictórica da arte do mestre Heitor dos Prazeres. Com seus quadros fartamente coloridos, mostra a vida peculiar desse mundo, construída nas rodas de canção e dança, nos terreiros ou nos botequins. Existem, porém, no mundo do samba, canções que, no imaginário dos ouvintes, constituem perfeitos quadros, matizados por cores brilhantes, retratando paisagens daqueles lugares que, a despeito de oprimidos, reprimidos, contestados e perseguidos, se metamorfoseiam, na poética do cancioneiro popular, em utópicos reinos encantados, esbanjando traços e cores.

1. CAETANO. 54 anos de música popular brasileira, p. 48.

2. FAUSTINO. Que é poesia?, p. 70.

Aqui, não se pretende enfrentar a discussão, nunca pacificada, de se comparar letra de música a poema, ou separar uma do outro, ou a de apontar poesia nas artes visuais. Como diz Pedro Caetano1, referindo-se à primeira das discussões, não se deve confundir as duas coisas já que “embora todo poeta possa ser letrista, nem todo letrista consegue ser poeta”. Quanto à segunda discussão, melhor se ater, por ora, ao esclarecimento de Mário Faustino2 para quem, pelo entendimento canônico atual, poesia “se trata EM  TESE

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antes de tudo, de uma maneira de ser da literatura, ou seja, da arte da palavra, da arte de exprimir percepções através de palavras”. Naturalmente, escritas. De difícil comparação também os fazeres artísticos da canção com a arte pictórica. Gêneros absolutamente distintos que, ainda que por vezes dialoguem, nunca se confundem, no que pesem experiências de “pinturas literárias”, “livros de artista” e “poesia visual”. O que não impede que se busque, como aqui se pretende fazer, para além dos horizontes da imaginação, a visualização de “quadros” mentais instigados pelo fazer poético das letras de canções, evocando paisagens dignas da acuidade perceptiva do ouvinte, receptor-expectador. A comparação entre linguagem (incluindo a letra de canção) e pintura só é possível, no dizer de Merleau-Ponty, invocando Malraux, na concepção de expressão criadora3, enquanto outros elementos homólogos ou de contato interartes vão ser trazidos por interdiscursividade, intertextualidade ou dialogia. Sob a visão da Literatura comparada é que se pode perceber a proximidade relacional entre imagem e texto, o que, no dizer Karl Erik Schøllhammer, “abre um campo fértil para o estudo da Literatura numa cidade cada vez mais absorvidas pelas dinâmicas da cultura da imagem”, além de permitir “formar um melhor entendimento acerca do funcionamento das imagens, compreendidas como mediações significativas da realidade”4. ROMANELLI. Alvorada lá no morro, que beleza! Hermínio, a paisagem […]

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3. MEARLEAU-PONTY. A prosa do mundo, p. 95-96; 107-108.

4. SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Além do visível: o olhar da Literatura, p. 11.


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5. A notícia pode ser vista, na rede mundial de computadores, na publicação “GQ” on line de 21 fev. 2015, no endereço <http://gq.globo.com/Cultura/ noticia/2015/07/musicos-fazeminstalacoes-sonoras-inspiradasem-pinturas-famosas.html>.

Pela evocação da imagem mental na canção e sua aproximação com a maneira de fruir esteticamente a apreciação de pinturas, é que se encontram as relações comparativas invocadas neste texto. A profundidade distintiva de gêneros não impede a relação homológica. Não raro, o relacionamento prático música-pintura é evidenciado em exposições, em livros ou em outros meios de comunicação e, apenas como um singelo exemplo, cita-se aqui a mostra Soundscapes promovida por The National Gallery de Londres, entre 8 de julho e 6 de setembro de 2015, quando Jamie xx, da banda The xx, Gabriel Yared, vencedor Oscar pela música de O Paciente Inglês, e Susan Philipsz, vencedora do Prêmio Turner, compartilharam e exploraram, junto a outros renomados artistas da música, as sensações percebidas em quadros de grandes pintores, também expostos5.

em “Rei vagabundo”, parceria com Roberto Martins, gravada por Carlos Galhardo em 1935: “lá em Mangueira eu tenho um castelo / o mais belo que há neste mundo / tem uma deusa que é minha rainha / em Mangueira, sou um rei vagabundo”. Ataulfo, a propósito, foi um dos compositores “pintores” do samba, usando, no lugar da paleta, do pincel e das tintas, os acordes nostálgicos do violão que caracterizam suas composições e que, muitas vezes, são usados para definir sua mineiridade. Quem não vagueia mentalmente e devaneia, em sincera admiração, como se estivesse frente a um valioso quadro em exposição, quando ouve “Meus tempos de criança”?

Heitor dos Prazeres, que também e originariamente era músico e sambista, pintou quadros que dialogam francamente com o mundo das canções do samba. Por outro lado, ainda que não haja um diálogo direto, na composição de sambas, algumas letras invocam imagens marcantes, muitas vezes usando linguagem que lembra a descrição de pinturas e que, se pintadas, atrairiam significativo interesse. E, assim, constroem cenários idealizados, transfigurando a cena do real na paisagem ideal. Ataulfo Alves, o sambista da “pequenina” Miraí, na Zona da Mata mineira, o mostra

O presente texto pretende restringir-se a um local que, se, por um lado, deu corpo e sustento a uma grande parcela do mundo do samba, como meio físico, por outro, eternizou-se na metáfora do lugar “pertinho do céu”, próximo do poder divino: o morro. Como diz “Ave Maria no morro”, de Herivelto Martins, gravada pelo Trio de ouro, em 1942, uma das canções pioneiras a metaforizar o morro como reino encantado e sede da fantasia, o barracão de zinco, lá no morro, sem telhado e sem pintura, se transforma em bangalô, ou, pelas palavras de Ataulfo, no castelo “que há de mais belo neste mundo”. Na letra de “Chão de estrelas”, parceria com Sílvio Caldas, gravada por este em 1937, Orestes Barbosa, depois de descrever, com singular expressividade,

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a paisagem do morro e cenas do barracão, “pinta” um chão salpicado de estrelas pela luz da lua que fura o zinco carcomido do barraco. As canções citadas adentram as profundezas da paisagem por meio de profunda idealização: no morro não se há que procurar pela felicidade que um arranha-céu oferece, ou por um bangalô. O morro é mais alto que tudo isso e sua metafórica altura, que faz o chão encontrar-se com estrelas, transmuda a tristeza em êxtase. Por isso, em “Ave Maria no morro”, se diz que “quem mora lá no morro / já vive pertinho do céu”.

6. OLIVEIRA; MARCIER. A palavra é: favela, p. 64.

7. SIQUEIRA, Magno Bissoli. Samba e identidade nacional: das origens à Era Vargas, p. 138.

O universo das canções que citam, enaltecem ou descrevem a vida no morro é vasto. Jane S. Oliveira e Maria H. Marcier relacionaram 163 delas, que evidenciam conteúdo relevante para análise das condições socio-históricas dessas localidades6. Por isso, as letras das canções visitadas neste trabalho, se restringem a apenas algumas que evocam paisagens típicas, com formulações simbólicas que trazem à mente o brilho e cores daquele mundo que, embora sofrido e “acinzentado” pela pobreza7, é realçado pela criação artística. Nela, a crueza da carestia da vida física, por exemplo, é mostrada como paródia da paisagem encantadora do mundo ideal. Por isso, perde nitidez e definição no confronto com o arroubo estético: a favela física, corpo desgastado e pobre, está condenado, ou abençoado, a carregar a alma da beleza da criação divina. A expressão cancionista das letras de samba

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cria obras virtuosas quando acessa o poder do vislumbre e da visualização pictóricas, que, aqui, metaforicamente, são equiparadas a quadros da pintura artística, emoldurados por melodias de reconhecida beleza. Retomando “Ave Maria no morro”, vê-se que o artista, “compositor-pintor”, completa habilmente a paisagem encantada: “tem alvorada / tem passarada / alvorecer / sinfonia de pardais / anunciando o anoitecer / E o morro inteiro / no fim do dia / reza uma prece / Ave Maria”. É uma paisagem comovente, tal como na apreciação de um quadro, pela exibição do mundo idealizado, no sonho do morro perfeito, bonito e utópico. O compositor apresenta o morro ideal, digno de protagonizar contos da fantasia, desde o “era uma vez” até o “viveram felizes para sempre”. E, note-se que não se trata, nesse aspecto, de se ter por reconhecida a estética “da feiura”. Não é o feio, pela arte, que se expõe, mas a beleza visitada pela alma e pelos olhos do artista que, atormentado pelo feio cotidiano, extrai dele uma visão do belo, ainda que sofrendo, como bem cabe às expressões artísticas. Observe-se, porém, que outras canções focam paisagens da feiura que existe na pobreza, na carência, na injustiça, esse farto material sobre o qual se construiu a vida dos morros. O samba, como arma de resistência cultural dos negros, que se viram confinados a guetos de miséria no período pós-abolicionista do Rio de Janeiro, então capital federal, e que

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8. SIQUEIRA, Magno Bissoli. Samba e identidade nacional: das origens à Era Vargas, p. 139. 9. NAVES. Canção popular no Brasil, p. 20.

10. NAVES. Canção popular no Brasil, p. 25. 11. NAVES. Canção popular no Brasil, p. 23.

foram compulsoriamente empurrados para as encostas dos morros8, sempre teve linguagem ferina de denúncia social, ainda quando transborda lirismo ou cria paisagens utópicas de beleza singular. Santuza Cambraia Naves9 vê na canção popular do país, “sobretudo a partir da bossa nova” (marco quase sempre relacionado à resistência ao regime militar de exceção política), um componente marcante que é um “veículo por excelência do debate intelectual, operando duplamente com o texto e com o contexto”, transformando-se em canção crítica. No entanto, esse debate já acontecia, desde as origens do samba, voz de constante enfrentamento.

que o dos anos de início da bossa nova. Ao “poeta da Vila” e “filósofo do samba”, coube criticá-lo, usando como veículo a arte da canção popular em tom, muitas vezes, irônico e dúbio. Soube dosar eficientemente a amálgama que, se por um lado possibilitou a união de significativa poética com técnica composicional12, por outro, uniu expressão artística à denúncia social.

Acrescenta a pesquisadora que, no plano textual, “pode-se afirmar que a forma canção atingiu a sua plenitude no Brasil com a bossa nova”10, e reconhece que “coube aos compositores populares a tarefa de articular a arte com a vida”11. No que pese o autor deste ensaio concordar com a afirmativa de que os anos iniciais da bossa nova e a instauração do regime militar, principalmente no que se refere à motivação política, foram a argamassa para solidificar e avolumar a crítica cancionista, como instrumento prático de denúncia e contestação, enriquecendo-se, ainda, com a adesão de renomados poetas e escritores, resguarda e ressalta o entendimento no sentido de que a canção crítica e a articulação entre vida e arte, nasceram e amadureceram no samba, com e a partir da obra de Noel Rosa, nos anos 1930 e seguintes, dentro de um contexto social acentuadamente mais ferino

É o que, também em tempos mais recentes, se viu pelas frestas textuais, em não ditos, metáforas ou apagamentos, das “canções-pinturas” constituídas por alguns sambas do morro. Ao morador das favelas, penalizado pelo cotidiano, não raro oprimido e reprimido, muitas vezes materializando cruel metáfora de proximidade com o inferno da desdita, dá-se a compensação psicológica e simbólica de “viver pertinho do céu”, no mais belo castelo, sobre estrelas salpicadas no chão, no paraíso idealizado e que, seguramente, arroubos poéticos à parte, nunca será alcançado, mas que evoca a glória utópica do “dia seguinte” concretizada, assim na terra, como no céu. Esse paradoxo é bem retratado por Pedro Caetano e Luiz Reis na canção “Ventania no morro”. O eu-lírico, preocupado, após reconhecer “tenho um amigo no morro / e quando há tempestade / eu fico aqui na cidade / morrendo de aflição / de ver aquele coitado / que vive lá pendurado / num troço desconjuntado / que chamam de barracão”, se acalma, pois confia que “tem alguém segurando / e ele sabe quem é / por isso, muito tranquilo / e certo da

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12. PINTO, Mayra. Noel Rosa: o humor na canção, p. 23.


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13. CAETANO. 54 anos de música popular brasileira, p. 49.

proteção / ele diz ao barracão: / não precisa se afligir, / o céu fica ali pertinho / e Deus, nosso bom vizinho / não vai nos deixar cair”13.

se deixando quebrar, o morro pede uma outra história, uma história de igualdade, de justiça social e econômica (utopia invocada no não-dito).

No entanto, quando se inverte a visão e, ao contrário de enaltecer o belo que transcende o feio, se coloca frente-a-frente com a feiura da realidade, a canção-paisagem se despe da aura sonhadora para realçar dramaticamente a feiura e a amargura que a constrói, e transforma-se em instrumento ferino de denúncia social, econômica ou política. Aí, deriva para a estética do feio e, fria e secamente, acusa: “feio não é bonito”. Na canção que leva esse título, de autoria de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri, gravada em 1963 por Jair Rodrigues, o eu-poético sambista denuncia: “Feio, não é bonito / O morro existe / mas pede pra se acabar / canta, mas canta triste / porque tristeza / e só o que se tem pra contar”.

Percebe-se, sem muito esforço, que a grande arma de resistência do morro, na desigualdade da luta, é o samba,14, com seu ritmo sincopado15 sua voz constituinte, como bem explicita a canção “Não deixe o samba morrer”, de Édson e Aluísio, gravada em 1975 por Alcione: “não deixe o samba morrer / não deixe o samba acabar / o morro foi feito de samba / de samba pra gente sambar”. É o mesmo sentimento que exsuda de “Barracão”, composição de Luiz Antônio e Oldemar Magalhães, gravado por Heleninha Costa em 1952: “Ai, barracão / pendurado no morro / e pedindo socorro / à cidade a seus pés”. E, ainda: “Tua voz eu escuto / não te esqueço um minuto / porque sei / que tu és / barracão de zinco / tradição do meu país / barracão de zinco / pobretão infeliz...”.

É uma imagem expressiva e esteticamente valiosa, apesar de chocante e incômoda. Não se percebe, no exemplo, traços de utopia. Há um piso duro de realidade e um caminho que aponta, ao contrário, para um provável futuro distópico e ameaçador, quando pede para se acabar. Afinal, apesar de o morro ser “cheio de glória” por produzir e apresentar desfiles carnavalescos que alegorizam e enaltecem as riquezas do país, por meio de “escolas que falam no samba”, a despeito de continuar cantando, canta de tristeza, porque “tristeza é só o que se tem pra contar”. Mesmo sendo valente e nunca EM  TESE

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O barracão, um dos símbolos da tradição nacional, é presença forte na imaginação identitária do país16, por relacionar-se aos morros e, consequentemente, ao samba e, portanto, se faz presente na intelecção não só das escolas de samba como, também, da própria definição da identidade do povo brasileiro, gestada e constituída, acentuadamente, no mundo miserável do morro. A paisagem, no entanto, é sombria, cinzenta, sem brilho, é o “pobretão” símbolo da ROMANELLI. Alvorada lá no morro, que beleza! Hermínio, a paisagem […]

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14. Outra grande arma, e há até quem diga que é a maior de todas, é o carnaval. No entanto, nunca se pode esquecer que o carnaval só pode ser assumido pela tradição negra depois da invenção do “samba de sambar do Estácio”. Antes, era requinte da diversão de brancos, nos cordões, mestiçagem cerimonial, nos ranchos, ou brincadeira agressiva e violenta nos entrudos, sempre tendo componente de forte discriminação racial em qualquer um deles. 15. SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo, p. 33.

16. LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra, p. 203.


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vida do morro, e, em grande parte, da nação, que se exaure, “pendurado”, buscando ajuda na cidade que, apesar de tudo, está inerte “a seus pés”, recusando-lhe olhar e visão. Há uma individualização metafórica de um problema coletivo: o barracão representa não só os barracões de todos os guetos de pobreza, mas, também, todos os demais problemas que fazem o morro padecer; o barracão, na canção, ganha vida e alma e se converte no “tu” da letra, o outro, aquele a quem se fala e que, transversalmente, recebe, como ouvinte e autoridade, as denúncias da crueza da realidade perversa para reverberá-lo pelo universo da canção e da cultura populares. Ao estabelecer diálogo com tal símbolo de tradição, mas, contraditoriamente, também de carência, o compositor aguilhoa transversalmente a cidade que, deitada a seus pés, se nega a elevar sua vista e descortinar efetivamente a paisagem do morro, entristecido pelas carências e pela injustiça.

me deixando tristeza, a alegria levou”. Apesar da pobreza e da tristeza “hoje choro com saudade do meu barracão”. Ela “mora num arranha-céu” e ele só canta ao léu, unindo sua tristeza à tristeza de seus dois suportes tradicionais: “pobre do meu violão / já não tem mais alegria / triste do meu barracão / que é só nostalgia”. Ou, a resistência, tendo o morro e o “lugar pertinho do céu” como suportes. É o que se vê da canção “Opinião”, de Zé Keti e gravada por Nara Leão em 1964: “Podem me prender / podem me bater / podem, até, deixar-me sem comer / que eu não mudo de opinião / daqui do morro / eu não saio, não / se não tem água / eu furo um poço / se não tem carne / eu compro um osso / e ponho na sopa / e deixa andar // Fale de mim quem quiser falar / aqui eu não pago aluguel / se eu morrer amanhã, seu doutor / estou pertinho do céu”.

Na crueza da realidade, o barracão é a denúncia da pobreza, mas, apesar de tudo, o sambista do morro se acalenta em dois símbolos básicos: o violão e o barracão e, para se constituir, os incorpora. Muitas vezes, quando se confronta com uma potencial ou sonhada mudança de vida, opta pela permanência ou retorno ao barracão, com todas as consequências que essa decisão possa lhe trazer. Como canta Floriano Belham em “Saudades do meu barracão”, de Ataulfo Alves, gravada em 1935, no barracão, “toda riqueza que havia era um violão / e uma morena faceira / que me desprezou / só

O morro convalidou-se como metafórico berço do samba e do carnaval. Existem, até hoje, discussões acaloradas, pesquisas e estudos aprofundados sobre as origens do gênero, música popular tipicamente brasileira, partícipe da formação da identidade nacional17. A maioria, em forte coro, confirma que o gênero samba, música brasileira, é o “autêntico” samba urbano carioca, que teria nascido em novembro de 1916, quando o músico Donga (Ernesto dos Santos), que não era morador dos morros, mas da Cidade Nova, depositou junto à Biblioteca Nacional a partitura de “Pelo telefone”, denominando-o “samba carnavalesco”. No entanto, a

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17. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (19171933), p. 133.


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identificação morro e samba é permanente e definitiva no imaginário musical e composicional do país, independentemente da verdadeira origem ou domicílio do sambista ou compositor.

18. MOURA. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro, p. 93. “Pequena África no Rio de Janeiro” é uma feliz identificação atribuída por Heitor dos Prazeres à região próxima ao centro da cidade e à Praça XV – Cidade Nova, Gamboa, Mangue, Cais do porto etc. – , que chegou a ser uma das maiores concentrações negras no mundo, fora da África.

19. FRANCESCHI. Samba de sambar do Estácio, p. 109.

Isso faz bastante sentido quando se vê que, depois de dez anos, transitando prioritariamente a “Pequena África no Rio de Janeiro”18, em 1927, o samba passa por outra mudança e firma definitivamente o ritmo do gênero hoje reconhecido como a música do Brasil. Isso aconteceu pelas mãos (e pés) de um grupo de sambistas moradores do Bairro Estácio de Sá, que, tomando a cadência característica dos ritmos tradicionais negros, praticada nas rodas de samba e batucadas do morro, redefiniram o modo de tocar o samba urbanizado e comercializável e firmaram essa nova forma rítmica como gênero definitivo. Como as raízes do ritmo definitivo se lançavam ao morro, para muitos pesquisadores e estudiosos e para muitos efeitos, o verdadeiro samba urbano carioca é o samba do Estácio, gestado pelo sêmen do morro19. Este é o samba que permitiu a complexidade poética da elaboração de letras preocupadas com as minúcias do cotidiano, e que, a partir das mãos e da “bossa” de Noel Rosa, pode se converter em cronista da vida sofrida dos morros e cantar “pinturas” de algumas expressivas paisagens de mundos idealizados e encantados, ou denunciadoras. Também, graças a essa nova formatação EM  TESE

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rítmica foi possível o nascimento das escolas de samba, viabilizando espetaculares apresentações na cidade que, deitada aos pés do morro, olha o espetáculo do carnaval, mas não socorre o morro ou os sambistas, que permanecem lá no alto, nos bastidores da explosão de alegria e beleza. Não é sem razão que o samba, mensageiro da alegria carnavalesca, se converteu n’ “A voz do morro”, como se vê na composição de Zé Kéti através da canção que leva esse nome, gravada por Jorge Goulart em 1955: “Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo sim senhor / Quero mostrar ao mundo que tenho valor / Eu sou o rei do terreiro / Eu sou o samba / Sou natural daqui do Rio de Janeiro / sou eu quem levo a alegria / para milhões de corações brasileiros / Salve o samba, queremos samba / Quem está pedindo é a voz do povo de um país / Salve o samba, queremos samba / Essa melodia de um Brasil feliz”. No entanto, não se pode esquecer que, de qualquer forma, carrega forte mensagem de exaltação ao Brasil, uma maneira de compor incentivada (na prática, imposta) pelo governo de Getúlio Vargas entre os sambistas, principalmente os dos morros. A “domesticação” do morro pela elite “civilizada” e branca era necessidade governativa do caos social em que se transformara o Rio de Janeiro, além de os governos populistas municipal, de Pedro Ernesto, e federal, de Getúlio, terem percebido a necessidade política de incorporar os habitantes ROMANELLI. Alvorada lá no morro, que beleza! Hermínio, a paisagem […]

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do morro à cidadania brasileira, contribuindo para constituir a identidade nacional. Uma das primeiras “convenções” desse acordo foi a reforma das letras dos sambas, que deveriam veicular mensagens contrárias à malandragem e que exaltassem as qualidades nacionais; outra, foram os enredos carnavalescos que, da mesma forma, deveriam louvar apenas as boas coisas do país. Desde “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, gravada em 1939 por Francisco Alves, essa forma de composição pertence ao subgênero “samba-exaltação”, que tem, como objetivo, o enaltecimento das belezas do país e a valorização do trabalho útil, honesto e dedicado do operariado. Essa aderência a um estilo cancioneiro panfletário, no entanto, não prejudica de nenhuma forma, a qualidade musical ou poética da canção, nem seu apelo social, já que o samba, rei do terreiro, natural do Rio de Janeiro, que leva a alegria para milhões de corações brasileiros, tem que pedir permissão para mostrar ao mundo inteiro o seu valor.

20. PAVAN. Timoneiro: perfil biográfico de Hermínio Bello de Carvalho, p. 43-44.

O objetivo deste trabalho, porém, é o de apresentar algumas letras de canções de autoria de Hermínio Bello de Carvalho, descritivas de paisagens dos morros e sugestivas de formulações pictóricas. Já aos 19 anos, o letrista, escrevia poemas e crônicas e tinha se iniciado no mundo radiofônico e jornalístico20. Na canção, Hermínio não se amarrou ao gênero samba, nem ao saudosismo da canção tradicional dos EM  TESE

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morros. No entanto, com poética aclamada no meio musical, “pintou”, pelo samba, alguns dos mais importantes quadros das paisagens dos morros. Mangueirense convicto, sempre se refere ao Morro da Mangueira, forte musa inspiradora. Jairo Severiano21 aponta o letrista como sendo um dos expoentes da “geração que fixou a moderna canção brasileira” dentre um “numeroso grupo de artistas consagrados fora dos festivais, embora deles tenham também participado”. Hermínio é um artista multitarefas, conhecido em todas as áreas do mundo da canção popular: da poesia às colunas de jornais e revistas; do violão, às letras de música; do rádio às promoções culturais (foi um dos promotores culturais do fenômeno “Zicartola”, dentre outros de relevância similar). “Parceiro e amigo de Pixinguinha, Cartola, Chico Buarque e outros ases”, lembra Jairo Severiano22 “o poeta, compositor e produtor cultural [...] possui uma vasta folha de serviços prestados à cultura nacional que inclui, além de uma memorável série de projetos bem-sucedidos, a descoberta” de grandes artistas de nossa canção, como, por exemplo, dentre outros, Clementina de Jesus e Paulinho da Viola. Serão vistas aqui cinco canções, em que cuidou da letra e, portanto, da carga imagética e pictórica da mensagem, cada uma delas descrevendo paisagens peculiares. Pela ordem cronológica, são elas: “Cicatriz”, composição feita em parceria com Zé Kéti, gravada em 1965 por Nara Leão; “Alvorada”, ROMANELLI. Alvorada lá no morro, que beleza! Hermínio, a paisagem […]

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21. SEVERIANO. Uma história da música popular brasileira, p. 379-380.

22. SEVERIANO. Uma história da música popular brasileira, p. 413.


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parceria com Cartola e Carlos Cachaça, gravada em 1968 por Odete Amaral; “Sei lá, Mangueira”, parceria com Paulinho da Viola, gravada também em 1968 e também por Odete Amaral (ambas no mesmo álbum, “Fala, Mangueira!”); “A Mangueira é lá no céu”, parceria com Sebastião Tapajós, gravada em 1970 por Clementina de Jesus, e “Chão de esmeraldas”, parceria com Chico Buarque e gravada por este em 1997.

23. PAVAN. Timoneiro: perfil biográfico de Hermínio Bello de Carvalho, p. 42, 46, 57.

nome de música e é música. Chega de repente, entra pelos olhos, acorda os ouvidos, para, continua, ressoando, pondo reflexos na solidão que criou”24. E conclui, observando agora a veia pictórica da poética: “Clarão tornado sombra. Sombra tornada clarão. Silêncio dissolvido em alma”.

Para que se faça um passeio por essas canções, à semelhança de uma visita à exposição de pinturas, e, inspirando-se em Mussorgsky, um trânsito coerente e refletido entre os quadros dessa peculiar exposição, a ordem cronológica será deixada de lado e observada a seguinte sequência: “Cicatriz”, “A Mangueira é lá no céu”, “Alvorada”, “Chão de esmeraldas” e, finalmente, “Sei lá, Mangueira”. Este, o passeio que, ressalvada a preferência de cada apreciador, se apresenta, pela visão e pela pena do escritor, como de mais adequado impacto imaginativo dentro da estética das paisagens expostas. Antes, uma observação. O lirismo acentuado do letrista é filho de sua veia poética. Muito antes de trilhar o caminho de cancionista, já violonista, publicara livros de poemas, se aconselhara com Carlos Drummond de Andrade e confrontara Manuel Bandeira23. Não bastasse sua paixão anterior pelo violão, seus contatos radiofônicos, suas amizades, a veia musical era francamente notada em sua poesia, a exemplo do comentário crítico de Álvaro Moreyra, sobre o livro de poemas “Ária & percussão”, lançado em 1962: “O livro tem

Em “Cicatriz”, a primeira canção da lista, e da exposição, o letrista contesta a pobreza das favelas e reclama “pobre nunca teve gosto / a tristeza é a sua cicatriz”. Ainda, pontua o aumento da miséria: “pobre não é um / pobre é mais de dois / muito mais de três”. Denuncia: “reparem bem que só de vez em quando / pobre é feliz / ai, quanto desgosto! / Assim a vida vale a pena? Não!” No entanto, aponta para a riqueza que contribui para valorizar a vida ruim do pobre do morro e para que ela seja suportada e superada: a paisagem. A paisagem é o elemento que ameniza a dor da carência. Se não se tem quase nada de bens materiais ou dinheiro, tem-se muito no maravilhamento da paisagem: “Deus, dando a paisagem / metade do céu já é meu / [...] / Deus, dando a paisagem / o resto é só ter coragem”. É o alento da espera na intervenção de um ente superior que pode – e, utopicamente, vai – amenizar o tormento, mas que se mostra, no agora, presente apenas na grandiosidade da paisagem, da paisagem que só quem vive no morro é que conhece, pois é quem “vive pertinho do céu”. Do mesmo céu que enfeita a cúpula celeste do morro da Mangueira e que faz o artista figurar o quadro seguinte, a canção “A Mangueira é lá no céu”.

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Esta é uma canção que homenageia grandes mestres cancionistas da Mangueira, tais como Cartola, Geraldo Pereira, Zé com Fome, Carlos Cachaça e Gradim, dentre os “demais compositores / daquela escola tão genial”. E ao visitar o morro e se aproximar metaforicamente do céu estrelado, o letrista procura alcançar a memória dos grandes artistas: “Vou visitar lá em Mangueira / o divino mestre Cartola / e os demais compositores / daquela escola tão genial // Vou pedir que me levem lá pro céu / que cada dia chega mais perto do morro / e onde já viram Deus compondo / um samba para escola desfilar”. Como se vê, a percepção e a apreensão da paisagem pelo artista traz o céu cada vez mais para perto do pobre morador do morro. É disso que o morro carece; é isso que o morro merece: o céu e as bênçãos do Divino, porque o resto parece impossível de se atingir. O compositor, em uma ânsia lírica de esperança, afirma e crê que o céu “cada dia chega mais perto do morro”, até que um dia, enfim, o bafeje com suas bênçãos. Não é, evidentemente, o céu das estrelas físicas, o espaço cósmico pontilhado das luzes das estrelas, que o artista pincela, mas o céu de que carece o morro, o céu da felicidade e do amparo social, o céu do reconhecimento e do acolhimento.

mãos ao pobre morador, a exemplo de “A criação de Adão”, de Michelangelo Buonarroti, famoso afresco do teto da Capela Sistina, no Palácio Apostólico, no Vaticano. A vez do morro é o que se espera para logo, e com tanta expressividade que o delírio poético de ver Deus compondo um samba para a escola desfilar, faz todo sentido de materialização do samba-enredo perfeito, divinamente inspirado. É o sagrado momento em que as mãos de Deus e do sambista se tocam, ainda que apenas pelas pontas dos dedos, mas de dedos que tangem as cordas do violão. Ampliando ao máximo a idealização da música perfeita, o eu-lírico pretende pedir aos grandes talentos do morro que o levem para o céu, claro que por meio de uma canção divinamente inspirada, que eleva o nome dos artistas às esferas celestiais, às altas possibilidades sagradas nos sonhos de homenageá-los: “Juro, não sei o que faria / se eu fosse dono lá do céu / em cada estrela escreveria / o nome de um compositor”. Cada compositor, diz a canção, merece ser inscrito em um trono celestial para distribuir seu brilho eternamente, como estrela da arte que é, nos céus metafóricos do universo do samba.

A visão do céu, tido como uma das paisagens mais marcantes do morro, evoca a aproximação utópica do real feliz, pela intervenção do deus que mora nas alturas e que estenderá as

A união de Hermínio com outros dois expoentes do cancioneiro pátrio, Cartola e Carlos Cachaça, oferece à arte nacional a canção “Alvorada”. Com acentuada dose de lirismo, a canção retrata o morro no acordar ainda sonolento, na felicidade sonambúlica do quase encontro com a possibilidade

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de se ver consumada a utopia do novo dia que nasce. É a antevisão, só possível nos entremeios do mundo real com o dos sonhos, do “novo dia”, que bem poderia ser hoje, finalmente instaurado. Alheia ao cotidiano da realidade, a beleza se constitui e se faz presente naquele instante mágico, construindo a paisagem do morro na aurora. Afinal, “Alvorada lá no morro / que beleza / ninguém chora / não há tristeza / ninguém sente dissabor / O sol colorindo é tão lindo / é tão lindo / e a natureza sorrindo / tingindo, tingindo”

para a Mangueira passar”. É ali, naquele instante apoteótico, que, do eu-lírico, jorra sangue de pura poesia, metáfora que dialoga com a passagem cristã da paixão do Cristo oferecendo vinho, simbolizando sangue, para tingir o tapete por onde a escola desfila e samba. Instaura-se a realeza da arte do samba manifestado em desfile, pelas mãos, pés e alma dos bambas da escola que apresentam o garbo e a soberba da expressão carnavalesca que, inexprimível, se materializa em um singelo cata-vento, verde e rosa, a girar.

O passeio pelos “quadros” desta exposição leva o observador aos caminhos pavimentados de pedras preciosas, mais precisamente, de esmeraldas, que dão indescritível brilho ao chão do morro da Mangueira, na canção “Chão de esmeraldas”, evidente diálogo com “Chão de estrelas”. E, por esse caminho iluminado, o compositor faz com que o observador passeie e seja atraído ao cerne da paisagem encantada, ao reino da fantasia, à morada do sublime e do belo. A canção atua como um portal que atrai hipnoticamente a um mundo do esteticamente perfeito, materializado pelo samba: o morro da Mangueira, que, no desfile carnavalesco, atinge o ideal da beleza pura: “Me sinto pisando / um chão de esmeraldas / quando levo meu coração / à Mangueira / Sob uma chuva de rosas / meu sangue jorra das veias / e tinge um tapete / pra ela sambar / é a realeza dos bambas / que quer se mostrar / soberba, garbosa / Minha escola é um cata-vento a girar / É verde, é rosa / Oh, abre alas

O arroubo de paixão do letrista pelo morro, esse morro que fala por canções e pela escola de samba, encontra a expressão mais comemorada em “Sei lá, Mangueira”. A canção entrou para o folclore musical do samba como foco de constrangimento para um de seus compositores, que trabalhou a melodia, o poeta-pensador do samba, mas portelense de coração, Paulinho da Viola. A letra já fora escrita e estava engavetada pelo amigo e parceiro Hermínio e este, em um dos encontros com o portelense, pediu que a musicasse. Paulinho o fez, mas a intensa expressividade da canção, na adequada combinação de letra e música, que a transformou em sucesso imediato, acabou por elevá-la a um dos consagrados hinos do morro da Mangueira, causando um certo mal-estar entre os portelenses.

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Para se redimir, Paulinho compôs “Foi um rio que passou em minha vida”, gravada pelo autor em 1969, enaltecendo,

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25. MÁXIMO. Paulinho da Viola: sambista e chorão, p. 85-87.

de maneira não menos lírica, a Escola de Samba Portela, do bairro Oswaldo Cruz25. O eu-poético, nesta canção, começa justificando-se pela infidelidade e pelo “desvio”, em contrito mea culpa, por ter pecado contra a sacralidade dos laços que o une à escola, mas, esclarece, o fez apenas porque tem a mania de amar e o amor é universal: “se um dia meu coração for consultado / para saber se andou errado / será difícil negar. / Meu coração tem mania de amor”. Conclui a canção enaltecendo as cores e a beleza da Escola, e reafirmando solenemente o fiel amor de portelense: “não posso definir / aquele azul / não era do céu / não era do mar. / Foi um rio que passou em minha vida / e meu coração se deixou levar”. Perdão concedido de imediato, absoluto e eterno. Retomando o passeio pelos “quadros” da exposição, estaca-se frente à nova e exuberante paisagem do morro da Mangueira: “Vista assim do alto / Mais parece um céu no chão / Sei lá / em Mangueira a poesia fez um mar, se alastrou / e a beleza do lugar, pra se entender / tem que se achar / Que a vida não é só isso que se vê / é um pouco mais / que os olhos não conseguem perceber / e as mãos não ousam tocar / e os pés recusam pisar / Sei lá não sei... / Sei lá não sei... // Não sei se toda beleza de que lhes falo / sai tão somente do meu coração / Em Mangueira a poesia / num sobe e desce constante / anda descalça ensinando / um modo novo da gente viver / de sonhar, de pensar e sofrer / Sei lá não sei, sei lá não sei não / A Mangueira é tão grande / que nem cabe explicação”. EM  TESE

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O eu-lírico observa o morro da Mangueira, de forma panorâmica, por um ângulo espacialmente elevado, bastante acima do nível do solo, podendo visualizar todo o conjunto de habitações. Demonstra-se embevecido com a visão descortinada diante de si, uma das expressivas paisagens da canção brasileira. Do alto, observa como se já no céu estivesse. Tanto o céu se achegou ao morro, que há uma transfiguração no encontro. Céus e morro se alcançam e a partir da visão divinamente inspirada, é possível tentar compreender a grandeza do encontro. Para o observador, as luzes das residências, acessas, passaram a repetir o céu no chão, como se o espelhasse. O céu, que a cada dia mais se aproximava do morro, acabou por derramar-se em um mar de poesia que se alastrou pelas encostas. No entanto, tal encantamento é privilégio do observador que acorda para a inspiração e vê, não um espaço pontilhado por luzes, mas, ao contrário, a vida que o constitui e anima. Percebe que a vida não é só o que se vê, é mais que isso, sagrada para os olhos que não ousam tocar, e para os pés, que recusam pisar. É a transgressão do natural, a que se é habituado, pela superação do real; a força da beleza que emana da compreensão artística transcende os sentidos físicos. Por trás da visão física, do contato material de mãos que tocam e pés que pisam, há sopro da essência original da vida, dando expressão ao mundo criado pela arte.

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26. ROMANELLI. Roda de samba, roda da vida: filosofia de botequim em Noel, Paulinho e Chico, p. 167.

Quem se privilegia do olhar da arte verá mais do que é possível à simples capacidade de admirar e refletir, e alcançará a possibilidade de imergir no substrato da criação, no “ser-em-si” que há por trás do mundo das aparências. A capacidade de enxergar as profundezas e transcender o aparente, recriando o mundo, é o que instaura a arte e valida o artista. Na canção, o sujeito poético se arrebata ao “ver” o mar de luzes espalhado pela encosta, e ao sentir a alma da paisagem. Nas potencialidades de um simples cotidiano, cáustico para os moradores que transitam pela vida pobre do morro, resgatou a força e a expressão do movimento perpétuo da poesia. E dali extraiu a essência artística do “sobe e desce” constante e banal da existência. Nesse movimento, de pessoas que transitam na simplicidade do existir, o eu-lírico percebe a sabedoria de uma ancestralidade perdida nos séculos e nas distâncias da tradição, “um conhecimento tradicional que ensina a sonhar, a pensar e a sofrer; a alma do mundo e da filosofia do Samba. O sonho produz arte; o pensamento, reflexões, e o sofrer, a sabedoria de vida”26. É um universo de plena harmonização, de poética irresistível e de uma beleza “tão grande / que não cabe explicação”. Sei lá, não sei.

REFERÊNCIAS CAETANO, Pedro. 54 anos de Música Popular Brasileira: o que fiz, o que vi. 2. ed. ilustrada e aumentada. Rio de Janeiro: Pallas, 1988. FAUSTINO, Mário. Que é poesia? In FAUSTINO, Mário. Poesiaexperiência. São Paulo: Perspectiva, 1977. FRANCESCHI, Humberto M. Samba de sambar do Estácio: de 1928 a 1931. 1. reimp. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2014. LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. MÁXIMO, João. Paulinho da Viola: Sambista e chorão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. (Col. Perfis do Rio). MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2012. MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995. NAVES, Santuza Cambraia. Canção popular no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. OLIVEIRA, Jane Souto de; MARCIER, Maria Hortense. “A palavra é: favela”. In ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (org.). Um século de Favela. 5. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. PAVAN, Alexandre. Timoneiro: Perfil biográfico de Hermínio Bello de Carvalho. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2006.

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PINTO, Mayra. Noel Rosa: o humor na canção. São Paulo: Ateliê: Fapesp, 2012. ROMANELLI, Francisco A. Roda de samba, roda da vida: filosofia de botequim em Noel, Paulinho e Chico. Varginha: Ed. do autor, 2015. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). 2. ed. ampl. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Além do visível: o olhar da Literatura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2008. SIQUEIRA, Magno Bissoli. Samba e identidade nacional: das origens à Era Vargas. São Paulo: Unesp, 2012. SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2 ed., 2 reimp. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.

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EXPERIMENTAR CON LA LITERATURA DESDE UN PENSAMIENTO OTRO

Cesar Augusto López*

RESUMO: O nosso texto procura refletir sobre a triada ontologia, estética e política, posto que consideramos que os regimes de poder (política) se estruturam a partir do ordenamento do ser (ontologia) como regra do sentir (estética). A diferença que queremos introduzir neste panorama corresponde ao pensamento indígena, tal como é proposta por certas pesquisas antropológicas pós estruturalistas a modo de crítica de uma episteme insuficiente para abordar produções literárias que nascem de um modelo mítico como princípio artístico. Em outros termos, queremos descobrir as possibilidades xamânicas da literatura como princípio descolonizador e partícipe da construção do mundo. PALAVRAS CHAVE: Ontologia; estética; política; pensamento indígena; teoria literária.

* usatuilusion_1993@hotmail.com Cesar Augusto López Nuñez (Callao 1986). Es licenciado en Literatura por la Universidad Mayor de San Marcos con la tesis Óscar Colchado Lucio: la propuesta cosmopolítica de Rosa Cuchillo (2015). Actualmente realiza estudios de maestría en Teoría Literaria y Literatura comparada en la Universidad Federal de Minas Gerais.

RESUMEN: Nuestro texto busca reflexionar sobre la triada ontología, estética y política, ya que consideramos que los regímenes de poder (política) se estructuran desde el ordenamiento del ser (ontología) como regla del sentir (estética). La diferencia que queremos introducir en este panorama corresponde al pensamiento indígena, tal como lo proponen ciertas investigaciones antropológicas pos-estructurales, a modo de crítica de una episteme insuficiente para abordar producciones literarias que parten de un modelo mítico como principio artístico. En otros términos, queremos descubrir el lado chamánico de la creación literaria en la búsqueda de una teoría descolonizada y partícipe de la construcción del mundo. PALABRAS-CLAVE: Ontología; estética; política; pensamiento indígena; teoría literaria.


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La perspectiva desde la que queremos partir es una de corte amerindio, tal como la plantea Eduardo Viveiros de Castro en sus diversos estudios antropológicos. Sumada a ella, aprovecharemos la relación de su pensamiento con la filosofía deleuzo-guattariana. ¿Qué quiere decir esto? Que buscamos proponer que ciertos autores poseen un eje, en sus obras más ambiciosas, alejado de una lógica clásica de pensamiento (léase modalidad eurocéntrica). Es decir, cabe la posibilidad de hacer un trabajo cartográfico que logre localizar ciertas líneas de fuga que desterritorializan lo que en un principio puede parecer estable o sin señal alguna que pueda generar posibles interpretaciones otras. En este trabajo no pretendemos sumar otra interpretación en un flujo ya conocido, sino que intentaremos explanar una postura otra, fuera de un círculo de comprensión desgastado y extraña a él. Esta forma de situar el adjetivo “otro” es tomada del libro Historias locales/ diseños globales. Colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo en el que Walter Mignolo desarrolla la idea de un pensamiento de frontera que no responde a una pugna dicotómica, sino que emerge como una síntesis híbrida, fuera de lugar, en relación a epistemes conocidas: una especie de tercera vía de conocimiento. La única salvedad por anotar es que este pensador aún continúa inmerso en ideas transculturales, mientras que nosotros queremos reactivar un modelo cognitivo aún vigente que ha penetrado en algunos textos literarios. EM  TESE

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En nuestro caso, sería válido detectar escritores que se propusieron hacer una lectura de mundo en la que Latinoamérica se entiende como locus de conocimiento y como necesidad imperiosa de sentir (estética) de otro modo las estructuras de poder (política) a fin de que pueda llevar a cabo un desenvolvimiento acorde con su realidad heterogénea. Pero, ¿cuál sería ese principio diferenciante? Ese principio sería el del mito, pero llevado hasta consecuencias radicales en cuanto a su potencial de acción sobre el mundo. El mito, ya buen tiempo, se ha entendido como un modo de pensamiento, pero sin las capacidades epistémicas que impuso el racionalismo – otro mito más, claro – a través de su carga hegemónica. Uno de los aparentes problemas del mito sería que no puede distinguir entre naturaleza y cultura, además de no respetar la linealidad del considerado pensamiento “civilizado”. En este sentido, la ventaja radical de la episteme racionalista y de su método, sería la capacidad de hacer cortes en la realidad para desentrañar su “verdad” y colocarla en anaqueles para su observación y clasificación respectivos. Su metodología sería orgánica puesto que cumple con un orden cuantificable de relaciones progresivas en un conjunto dado y estable. Tenemos, por otro lado, el asunto del mito como forma de estructurar la experiencia del mundo sin cortes radicales y sin disposición alguna para crear fronteras infranqueables entre

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diversos estratos existenciales (sociedad, economía, política, historia, vida, muerte, espacio, etc.). El mito sería un corte vivo sin la menor intención de limpieza en su narrativa, porque mantendría un flujo continuo de transformaciones antes que saltos evolutivos. En otros términos, éste reconocería la simultaneidad de tiempos y espacios en la explicación del mundo, y la constante mezcla de elementos que corresponden a un plano de composición que éste presenta a la experiencia. De aquí que muchos mitos permitan la participación de espíritus, dioses y animales en la construcción de una política generalizada o cosmopolítica que comienza en el sentir. En cuanto al orden que plantea, el mito se caracteriza por su no linealidad y su aparente azar de relaciones. No existiría lo cuantificable, sino lo cualificable. La medición fragmentada y progresiva no sería su procedimiento, sino la intensidad que presenta y liga uno u otro elemento del mundo según su afinidad expresiva. Un caso de este tipo lo tenemos en el agenciamiento GuesaSousândrade en el que personaje mítico y personaje real se compenetran en diversos puntos existenciales como el viaje o el delirio “infernal” que exhibe una multiplicidad de vidas que reflexionan sobre el estado del indígena latinoamericano y el capitalismo naciente en el Canto II y X, respectivamente, de su extenso poema.

1. VIVEIROS. Metafísicas caníbales, p. 238.

tipos de pensares o regímenes de pensamiento que estructuran modos de comprensión del mundo. Esta es una generalización, porque no todos los colectivos humanos poseen las mismas configuraciones cognitivas, pero, para el caso de este trabajo, solo nos remitiremos a dos grandes bloques que poseen, sin lugar a dudas, sus matices. En este punto somos deudores de un trabajo ambicioso sobre tipos de ontologías, titulado Más allá de naturaleza y cultura de Philippe Descola. En él, el antropólogo francés nos expone cuatro tipos de ordenamiento del ser que son vigentes en el planeta: naturalismo, animismo, totemismo y analogismo.

Un resumen de nuestra postura, en relación a lo expuesto hasta ahora, es plantear que “[C]ontra el mito del método, [se fortalezca] el método del mito”1. Tenemos, pues, dos

Mencionemos ahora que uno de los factores imprescindibles para que un proyecto estético-político sea posible es necesaria, a modo de a priori, una ontología sobre la que pueda descansar su despliegue. Las ontologías a las que nos referimos en este texto son la naturalista u occidental y animista o amerindia2. Para nuestro caso específico, la triada ontología-estética-política nos permitiría ver de manera clara el sentido de muchos textos y, más aún, su ética. La ideología dejaría paso a un primer movimiento de comprensión que muchas veces queda velado al tenerse más en cuenta los instrumentos analíticos, antes que su procedencia o sus posibilidades de penetración e interpenetración del acontecimiento estético. Es urgente notar, en este punto, que mucha de la teoría que se desarrolla y que marca la pauta de innumerables investigaciones tiene origen en la ontología

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2. Es importante mencionar que para Eduardo Viveiros de Castro, el perspectivismo amerindio es un modo de pensamiento diferente al del animismo, pero con puntos de encuentro.


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3. LIBRANDI-ROCHA. Por uma teoria literária ameríndia, p. 184.

naturalista y, por ende, responde, de manera coherente, a producciones que la tienen como origen. En otros términos, producciones que no poseen un origen ontológico común al ya mencionado, serán distorsionadas o insuficientemente explicadas por la inadecuación del instrumento de pesquisa. Al respecto, Marília Librandi-Rocha escribe lo siguiente: “talvez haja uma espécie de incompossibilidade entre nossos artefatos artísticos e nossas epistemologias, cosmologia e ontologia. Se essa hipótese for válida, heuristicamente, por que não supor que outras diferentes epistemologias, cosmologias e ontologias possam ser mais afins aos nossos textos literários?”3. Hagamos algunas precisiones sobre la triada onto-estético-política y su lógica. En cuando al primer punto – la ontología –, debemos tener en cuenta que ella es el modo de distribución de los entes en el cosmos. En la ontología platónica, por ejemplo, los entes son réplicas del ser que se encuentra fuera de ellos de manera perfecta, creada por un Dios, y que les brinda en la materialidad, o en la praxis, su existencia. Hay una idea de bien o de silla o de hombre: nosotros percibimos solo muestras distorsionada de la idea proyectada a la que el filósofo tiene acceso de modo “epifánico” para el bien de la polis y de la ciudadanía. En el caso cristiano, su ontología tiene por cumbre a la creación humana venida de un Dios que hace las cosas ex nihilo. Todos los seres, materiales e inmateriales son creación de un ser EM  TESE

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superior. Lo que podemos notar, en ambos casos, es la verticalidad del orden de los seres y de los entes, una inteligencia que desciende y una producción que debe ascender. El ciclo comienza en lo metafísico y llega a lo físico con fallas que deben ser subsanadas por una capacidad cognoscitiva a modo de don. Para el caso de la ontología animista o perspectivista no existe una división radical de seres porque el principio común de ellos es la humanidad y la comunidad. No existe un principio rector conocido como Idea o Dios; existe la humanidad y humanidades como principios de los que devinieron diferenciaciones materiales. No caso ameríndio, os humanos são os primeiros a chegar, o restante da criação procede deles... os nomes, em sua infinita variedade, existiam... antes-junto das coisas (os Yanomami pecaris, o Povo jaguar, a Gente canoa) estas não esperaram um arquinomeador humano para saber que eram e o que eram. Tudo era humano, mas tudo não era um. A humanidade era multidão polinômica; ela se presentou desde o início sob a forma da multiplicidade interna, cuja externalização morfológica, isso é, a especiação, é precisamente a matéria da narrativa cosmogônica. É a Natureza que nasce ou se “separa” da Cultura e não o contrário, como para nossa antropologia e filosofia4

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4. DANOWSKI y VIVEIROS Há mundo por vir?, p. 92.


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Podemos resumir los tres modelos expuestos de la siguiente manera: Idea(s), materia, diferenciación material en relación a la(s) Idea(s), para el primero; para el segundo, Dios, materia, diferenciación material que culmina en el hombre que se remite a Dios y, en tercer lugar, humanidad, materia, diferenciación de humanos según su materialidad.

5. VIVEIROS. Perspectivismo y multinaturalismo na América indígena, p. 360.

Como hemos podido observar, estas variaciones son cardinales porque de ellas nace el modo de sentir (estética) como operación básica de la existencia. En los dos primeros casos, tenemos lo trascendental como hecho paradójicamente estésico; en el tercero, inmanencia de relaciones empíricas. Los dos primeros preguntan por un qué, una res, mientras que el último pregunta por un quién, un personae. Las direcciones gnoseológicas y estéticas mostradas poseen coordenadas distintas. En el primero, un sujeto percibe objetos; la relación es asimétrica y descendente tal como plantean sus ontologías. En el segundo, un sujeto percibe sujetos; la relación es simétrica, horizontal. “Em suma, se no mundo naturalista da modernidade um sujeito é um objeto insuficientemente analisado, a convenção interpretativa ameríndia segue o princípio inverso: um objeto é um sujeito incompletamente interpretado. Aqui, é preciso saber personificar, porque é preciso personificar para saber” 5.

es gratuito, porque la fusión de estos dos patrones de pensar, gracias a las prácticas imperiales romanas, nos condujeron a un sistema más o menos equilibrado de concebir el mundo y que tiene plena vigencia en nuestra era. Esto no impidió, por supuesto, que se desarrollaran filosofías atípicas al molde naturalista, pero sin la repercusión dominante de sus bases en la práctica vital del hombre occidental. La ontología, o cómo se conciben los seres que pueblan el mundo, es el principio rector del sentir. Toda cultura posee una estética: las percepciones van calibradas según el ordenamiento de los entes dentro de una comunidad perceptiva. La lente ontológica es intermediaria de las sensaciones, de las expectativas del cuerpo frente a lo desconocido o por conocer. El sentir nace en las narrativas del ser; por tal razón, sentir objetos o sujetos en un mundo parcelado, y con el hombre como cumbre de la multiplicidad de seres que habitan el planeta, implica manipulación de cosas adscritas a un solo ente. En resumidas cuentas, antropocentrismo.

Que hayamos expuesto el modelo gnoseológico griego hegemónico (Platón no fue el único en proponer una modalidad de conocimiento en Grecia) y el judeo-cristiano no

Para expresarnos en términos generales, todo es objetualizable, incluso las relaciones más subjetivas de un colectivo, dentro del naturalismo. Pero, ¿qué sentimos los habitantes del naturalismo? Sentimos evoluciones, progresos, hechos que van de un menos a un más que tiene su límite en el hombre. Lastimosamente, no es el hombre, así, en amplio, el depositario de este crecimiento – ad infinitum – que se ofrece, sino un hombre muy específico: aquel que se encuentra

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seguro bajo la égida de la ontología hegemónica. Todo aquel cogitar que no se adecue a ésta será inferior o pintoresco y, por ende, pertenecerá a una humanidad venida a menos, que no ha conseguido entender las urgencias de la “evolución” – v.g. los pueblos indígenas.

6. Boaventura Santos califica este hecho de epistemicidio en su texto Descolonizar el saber. Reinventar el poder (p. 51-61). 7. DANOWSKI y VIVEIROS. Há mundo por vir?, p. 121.

Todo lo anterior sería simple perora, si el poder no fuese un factor imprescindible en esta trama. Cada mito, o construcción gnoseológica, ya sea platónica, judeo-cristiana o amerindia tiene como origen relaciones de poder, ejercicio bajo el cual subyace la sobrevivencia. En estas circunstancias, el colectivo que tiene al naturalismo como pauta de ser y de sentir es el dominante y, dada su capacidad metodológica, divide el mundo y sus habitantes según criterios de utilidad ontológica. Todo pueblo humano que no se adhiera a la prédica naturalista no tendrá parte en el banquete epistemológico y será condenada a la destrucción6. Todo colectivo que no sepa emplear las herramientas onto-empíricas naturalistas y se afinque en otro modelo de ser y de sentir, será exterminado o minimizado hasta la inanición: sus integrantes serán considerados “delincuentes ontológicos”7. En este punto juega un papel importantísimo Platón y su poderosa intuición del poder. Para él, quienes podían tener acceso al ser, al mundo de las ideas, eran los filósofos por excelencia, ya que su vida estaba destinada a iluminar la oscuridad del conocimiento de los hombres. En la República, EM  TESE

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específicamente en el libro X, sabemos que la poesía – y lógicamente los poetas – es expulsada de la polis por engañar el sentir de los ciudadanos8. Vemos entonces, que un marco ontológico posee, además de una disposición de entes y una forma de percibirlos, un personaje clave, un puente, un hombre capacitado para la diplomacia; es decir, un lector del ser y de la potencia que pueda ofrecer éste, en sus distintas presentaciones, a la Nación. La contracara del filósofo es el poeta porque establecería una relación nociva o negativa con el ser y, como consecuencia, la estesis generada por él perjudicaría la formación del Estado9; incluso, con la expulsión de los creadores, se elimina el último resquicio del sentir con el fin de programar un gobierno que aspire siempre a un ideal inalcanzable para un cuerpo que debe ser siempre mantenido a raya. Podemos notar que las estructuras estatales del marco naturalista contemplan el olvido del soma como política maquínica y totalitaria. Cada cuerpo debe ser un engranaje que sirva al Ideal y toda amenaza que active el sentir, fuera de pautas establecidas por el gobierno, debe ser eliminada. En este sentido, y hasta ahora, la condena platónica se efectúa contra el poder del poeta al sacarlo de su participación del terreno político dada la insustancialidad de su quehacer. Tal vez uno de los combates más encarnizados y silenciosos de la historia del poder tenga que ver con el acontecimiento LÓPEZ. Experimentar con la literatura desde un pensamiento otro

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8. PLATÓN. República, X, 595 a-c. 9. Walter Benjamin detectó este atisbo platónico de manera magistral en una ponencia pronunciada en París el 27 de abril de 1934 en el Instituto para el estudio del fascismo: “Ustedes recuerdan cómo Platón, en el proyecto de su Estado, procede con los poetas. En interés de la comunidad les prohíbe que residan en él. Platón tenía un alto concepto del poderío de la poesía. Pero la tuvo por dañina, por superflua, bien entendido que en una comunidad perfecta. Desde entonces no se ha planteado a menudo con la misma insistencia la cuestión del derecho a la existencia del poeta…” (BENJAMIN. El autor como productor, p. s/n).


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10. Cf. BENJAMIN, Walter. “El narrador”, p. 133.

11. DELEUZE y GUATTARI. ¿Qué es la filosofía?, p. 178.

político y el artístico. Esta situación bifronte se ha desarrollado en las formas de lo que debe ser y lo que puede ser, respectivamente. El primero con sus juegos verticales y el segundo con sus movimientos horizontales, uno ascendente y otro descendente, uno aséptico y otro contaminado. Es aquí que la emergencia del pensamiento amerindio se enlaza con las posibilidades de concebir otro mundo, siempre en cuando sus herramientas conceptuales sean efectuadas. A diferencia del genio kantiano queremos proponer el artista-artesano10 de corte chamánico. Este no es un giro de tuerca; aclaramos, es simplemente la puesta en práctica de algo existente, pero invisibilizado. ¿Cuál sería la relación del poeta con una ontología, estética y política animista o perspectivista? En resumen, la relación tiene que ver con una propuesta de sentir el poder desde una óptica distinta ya que el poeta es ese rezago de prácticas míticas que Platón quiso eliminar, pero que no pudo, dado que todo gobierno precisa de cuerpos para efectuarse y la poesía es sentir posibilidades de existencia. Precisamente, la alianza que se puede establecer entre el pensamiento indígena y el artístico responde a formas otras de conocer el mundo, de vivirlo y de construirlo. Queremos hacer retornar al poeta a la polis desde su propia esfera: percibir potencias del mundo, convocar “un pueblo que todavía falta”11.

Esta es una variación del ordenamiento del ser al que la episteme que se nos ha dado por alimento no se adscribe. Si el principio es humano, la cultura es una y los modos de sentir son diversos porque es en el cuerpo donde reside el modo de comprensión. Tenemos un cuerpo con un máximum de estesis para el poder y su multiplicidad cósmica. No hay ideas, o en todo caso, hay ideas-cuerpos, no hay Dios sin cuerpo, sino Dios(es) con muchos cuerpos o manifestaciones. Danowski y Viveiros de Castro continúan explicando: […] os ameríndios pensam que há muito mais sociedades (por tanto humanos) entre o céu e a terra do que sonham nossas antropologias e filosofias. O que chamamos de “ambiente” é para eles uma sociedade de sociedades, uma arena internacional, uma cosmopoliteia. Não há portanto diferença absoluta de estatuto entre sociedades e ambiente, como se a primeira fosse o “sujeito”, e a segunda o “objeto”. Todo objeto é sempre um outro sujeito, e é sempre mais de um.12

Hasta ahora hemos explicado con mayor detalle el naturalismo; aún faltan algunas anotaciones sobre el animismo.

Si todo es humano, se sienten humanidades corporizadas heterogéneamente y la ética se centra en entender las percepciones de los cuerpos que se nos presentan o narran. En este plano, la literatura no deja de mostrar universos que se agencian rizomáticamente con el mundo. La política de este régimen, en consecuencia, no es solo destinada a los cuerpos de forma humana, sino a todo soma que se manifiesta en el

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12. DANOWSKI y VIVEIROS, Há mundo por vir?, p. 94.


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13. GLOWCZEWSKI, Barbara. Devires totémicos.Cosmopolíticas do sonho, p. 106.

14. Un texto, sin lugar a dudas, que podría ayudarnos en nuestro proceso de deseducación sería A queda do céu, de Davi Kopenawa y Bruce Albert (presente en la bibliografía).

cosmos, porque su participación siempre tendrá que ver con tramas de poder delicadísimas que construyen el mundo. La antropóloga Bárbara Glowczewski lo dice del siguiente modo: “[O]s povos indígenas dizem que são tanto espiritual quanto carnalmente ligados à paisagem, aos animais, às plantas e às estrelas”13. Nosotros estamos irremediablemente ligados además de todo lo anterior a una larga lista de comunidades de papel. Esa continuidad humana y discontinuidad somática pone en jaque muchos de los presupuestos, o casi todos, aprendidos hasta hoy14; nos abre la posibilidad de delinear unas cuántas ideas acordes con un desborde interpretativo inclinado a re-animar el mundo, y más aún, en nuestro caso específico, las potencialidades del quehacer literario y su importancia nunca perdida, mas soterrada.

Precisamente, no existiría literatura sin agenciamiento con el espacio y, por ende, con el medio de desenvolvimiento de la vida situada en los cuerpos que donan su carnalidad a una diversidad de voces prestas a donar su conocimiento y que entran en el mundo a través del poeta-artesano-chamán.

Esta larga discusión nos lleva a un punto de quiebre ¿Es que acaso la producción literaria no ha gozado de un estatus interpretativo adecuado desde el comienzo? ¿Qué posibilidades tiene de ser leída adecuadamente? ¿Qué consecuencias acarrearía un modo otro de leer la literatura? Si el mito y la poesía fueron expulsados de la cosa pública, pero nunca fue eliminada de la práctica vital humana, significa que no ha perdido en ningún momento su poder de virtualizar la realidad. Tomar entonces como piedra de toque una nueva alianza teórica con la ontología amerindia implica encarnar una antigua modalidad de pensar la creación que no ha cesado de producir crítica sobre las relaciones con la tierra.

Nuestra fórmula puede parecer rimbombante, pero expliquémonos. Al haber sido arrancado el mito para la ciudadanía, fue velada una parcela del conocimiento humano y, por ende, una capacidad del pensamiento. La irrelevancia a la que fue y es sometida la literatura no se encuentra lejos de las propuestas indígenas sobre cómo hacer política, solo que ellos inician el camino desde un punto que nunca perdieron y que ha sido depredado por algunas antropologías y por los poderes estatales que solo ven tierra en un mundo lleno de poblaciones entre las que no destaca la humana como la única. Intentar leer la literatura desde la ontología animista sería revitalizar la participación de diversos mundos en la vida del mundo porque “[L]as obras literarias no solo pasan por la historia y los sujetos sociales, sino que éstos pasan por ellas para construir y reelaborar su destino”15. Este es uno de los detalles que el pensamiento indígena no ha perdido de vista: todos pasamos a través del mito para habitar una tierra que no nos pertenece exclusivamente y que compartimos continuamente con los mentados seres de ficción y con otras comunidades “no humanas” que ejercen un poder fáctico que ha dejado de ser percibido en una oleada de olvido

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15. HUAMÁN. Fronteras de la escritura, p. 22.


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generada por una ontología inadecuada para interpretar un mundo altamente heterogéneo y de la que podemos ver sin problema sus efectos destructivos. Al respecto, reelaborar una teoría literaria desde el pensamiento indígena sería abrir la posibilidad de experimentar una simultaneidad de planos de existencia, de territorios y pueblos no atendidos hasta hoy y que pugnan por ser oídos desde el texto – un tipo de tierra – que el escritor-artesano no deja de tejer-agenciar con el afán de expandir la labor política a un espacio de traducción continua entre diversas naturalezas. Tal como lo hace el chamán en sus rituales que recrean un suspenso nutritivo y participativo de la totalidad del cosmos, los textos deben retomar su valor de habla musical sobre y con la vida en común. 16. Reconocemos sus limitaciones espacio-temporales, pero nuestra labor se centra en enfocar lo indígena de su producción.

Líneas arriba nos referimos a Sousândrade como un autor con atisbos de una lectura otra de mundo16. Podemos agregar a nuestra lista a João Guimarães Rosa (Brasil) y su Grande Sertão: Veredas; José María Arguedas (Perú) y El zorro de arriba y el zorro de abajo; Óscar Colchado Lucio (Perú) y Rosa Cuchillo, Mario de Andrade (Brasil) y Macunaíma; Juan Rulfo (México) y Pedro Páramo, Raúl Bopp (Brasil) y Cobra Norato, todos ellos signados por un principio mítico que será la punta de lanza para futuras investigaciones que hagan hincapié en ese combate que realizan epistemes sobre el terreno del libro en un proceso de desterritorialización del EM  TESE

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mismo y de reterritorialización de la tierra en la superficie textual17. Como insisten Deleuze y Guattari sobre el devenir, no nos referimos a productos de la imaginación18; figuras retóricas, en el sentido esteticista del término, o ficciones, sino de acontecimientos que penetran en el Caos y expresan un continuum existencial; una muestra de que el ser, el sentir y el hacer político no están restringidos a una sola sociedad y en una sola dirección: atender a las oscilaciones del arte desde un punto inverso, creemos, no debe ser tomado como un error científico, antes bien, una potenciación hermenéutica. La reciprocidad como principio frente a la obra literaria sería reconocer que “[E]l asunto histórico que la obra aborda tiene que leerse a partir de las respuestas que ofrece”19. No tenemos un objeto pasivo, sino un mapa del presente que extiende el pasado y el futuro en un proceso siempre inacabado llamado por nosotros de virtualización antes que de ficción. El libro es una piel20 habitada y por habitar a modo de prismas de carácter múltiple de entrada en la que el hilo conductor pertenece a una lógica en la que los escritores-artesanos permitieron la entrada de voces no humanas en un acto de apertura al sueño como hecho que falta en la enseñanza occidental según Davi Kopenawa21. El sentido de esta reflexión sería la posibilidad de detectar esos creadores que se dejaron llevar por líneas de fuga y las siguieron hasta construir obras, en un sentido cartográfico, proféticas y que LÓPEZ. Experimentar con la literatura desde un pensamiento otro

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17. DELEUZE y GUATTARI. Mil mesetas, p. 16. 18. DELEUZE y GUATTARI. Mil mesetas, p. 244.

19. EAGLETON. El acontecimiento de la literatura, p. 218.

20. Davi Kopenawa expone que el papel es piel imagen en donde se hacen dibujos rituales a través del cual se puede atender la historia de los espíritus (KOPENAWA y ALBERT. A queda do céu, p.64) 21. KOPENAWA y ALBERT. A queda do céu, p. 63.


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complementan un vasto campo de saber que falta por incorporar al pensamiento como parte de la solución a diversos problemas que aquejan a la vida en este mundo, sin olvidar, que muchos mitos tienen plena carnatura y ejercicio en la vida cotidiana del llamado occidente, y frente al que el arte merece tener un diálogo simétrico siempre que se parta de sus reglas. Para finalizar quisiéramos hacer eco de las palabras de otro autor-artesano de corte chamánico llamado Gamaliel Churata (Perú):

22. CHURATA. El pez de oro, p. 213, 904.

23. “Pensar se hace… en relación al territorio y la tierra” (DELEUZE y GUATTARI. ¿Qué es la filosofía?, p. 86).

El único mandamiento de la belleza viva: ¡engendrar! Plato [Platón]?. Para el americano de América: ¡engendrar!, ¡engendrar! Engendrar hasta la profundidad del Tawantinsuyu… Es decir que el pueblo que no regrese a la Caverna, vivirá enfermo y hambriento, mientras pueda subsistir” . 22

Entender ya no la tierra como objeto por taxonomizar, como un simple paisaje por explotar, sino como un lugar repleto de habitantes por conocer a través de la voz literaria asentada en la tierra23, porque sobre, y gracias a ella, sentimos la belleza del exigente pensar.

BENJAMIN, Walter. El narrador. En: Para una crítica de la violencia y otros ensayos. Iluminaciones IV. Trad. Roberto Blatt. Madrid: Taurus, 2001.

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A SEMIOSFERA DO SEXO EM IRRÉVERSIBLE

Paulo Gerson Rodrigues Stefanello*

RESUMO: Este trabalho propõe uma análise que concerne à esfera representativa do sexo no filme Irréversible (NOÉ, 2002). Embasando-me na teoria semiótica russa, busco caracterizar fronteiras de significação interligadas por essa temática em distintos momentos ao longo do filme. O caráter de irreversibilidade presente no drama faz-se associado ao tempo e às suas características destrutivas. Nesta análise, por meio de signos observados semioticamente, infiro que o caráter de irreversibilidade está associado não exclusivamente ao tempo mas, sobretudo, ao sexo. Palavras-chave: Irreversibilidade; semiosfera; sexo.

* pgrstefanello_@hotmail.com Doutorando em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.

ABSTRACT: This paper purposes an analysis concerning to the representative sphere of sex in the film Irréversible (NOÉ, 2002). Based on Russian semiotics theory, I intend to characterize the meaning borders interconnected by this theme in different scenes throughout the film. The character of irreversibility in this drama is associated with time and its destructive characteristics. In this analysis, from the signs semiotically observed, I infer that the irreversibility is associated not exclusively with time but, especially, with sex. Keywords: Irreversibility; semiosphere; sex.


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INTRODUÇÃO

A motivação para a escrita deste artigo surgiu após assistir, pela primeira vez, ao filme Irréversible, ou Irreversível, em português, durante uma aula de tradução na universidade. Lançado no ano de 2002, a produção francesa sob direção do argentino Gaspar Noé trata da vingança de dois amigos, Marcus (Vincent Cassel) e Pierre (Albert Dupontel), que saem à procura do homem que teria estuprado e espancado Alex (Monica Bellucci), então namorada de Marcus e ex-namorada de Pierre.

primeiro plano, norteando configurações de significação, o objetivo do presente texto consiste em abordar as fronteiras do sexo, atentando para códigos e modelizações que carregam consigo aspectos culturais identificados na referida obra fílmica. Amparado na semiótica de vertente russa, discuto de maneira breve o conceito de semiosfera e aponto alguns contextos de cenas em que o sexo é apresentado como tema central, o que me permite entendê-los como semiosferas e traduzir o ato sexual.

A ordem cronológica inversa sob a qual o filme foi planejado, traz num primeiro momento do filme cenas obscuramente explícitas de violência e sexo durante a busca de Marcus e Pierre a Le Tenia (Jo Prestia), que se inicia nas ruas de Paris e termina no interior da boate Rectum. Com o segundo momento do filme, pode-se compreender o motivo do desespero dos amigos e do caráter vingativo pelo qual eram guiados, uma vez que mostra Alex sendo estuprada por Le Tenia no túnel de uma passarela urbana e espancada após o assédio. Um terceiro momento apresentado já ao final do filme (mas tratando o início deste), enfoca o relacionamento amoroso de Marcus e Alex e a descoberta de sua primeira gravidez.

A semiótica de linha russa, conhecida por semiótica da cultura, advém dos estudos desenvolvidos na Escola de Tártu-Moscou, liderados por Iuri Lotman (1922-1993). Nessa ciência a cultura passa a ser vista como um grande texto, que mantém relações necessárias com distintos sistemas de significação, para que se constitua como tal. A cultura aqui fica condicionada a outros textos, a outras traduções, a outros fenômenos sociais, históricos, ideológicos, que, diante de alguma concatenação instituem o aspecto cultural de uma sociedade.

Ao notar que a prática sexual ocorre em diferentes espaços e momentos do filme, ora como pano de fundo, ora em

Um dos conceitos basilares da teoria semiótica cultural é a semiosfera, um todo de espaço que permite a tradução de

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significações viabilizada pelo caráter fronteiriço de sistemas particulares que a compõem. As fronteiras, na semiosfera, interligam o espaço semiótico e o não semiótico, partindo das compreensões matemáticas acerca das noções de fronteira e limite, isto é, significa assumir a existência de pontos infinitos que possibilitam a conexão entre dois ou mais sistemas distintos, de modo que, apesar das distinções, essa interligação exerce um papel historicizador e de influência de um sistema sobre outro. 1. Cf. LOTMAN. La Semiosfera I.

Quanto à organização interna da semiosfera, sua estrutura divide-se em núcleo e periferia,1 sendo que no primeiro se manifesta a essência dos sistemas semióticos. No entanto, à medida que um dado sistema atravessa os limites do núcleo de uma semiosfera a, saindo em direção às periferias de outra semiosfera b, tem-se um outro espaço em que aqueles signos que constavam em a não mais tenham a mesma carga de significados. Para o autor, significa que há um conjunto de pontos concomitantemente pertencentes ao interior e ao exterior da semiosfera. Essa fronteira é o espaço de maior tensionamento na semiosfera, pois é o espaço onde ocorre a tradução de um mundo para o outro (interior e exterior). De acordo com Henn (2010), Lotman propõe a existência da semiosfera, que confere materialidade ao ambiente conforme a cultura se manifesta em textos ou em sistemas sígnicos. É possível compreender a semiosfera, portanto, como EM  TESE

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um espaço em que texto e contexto são inseparáveis e interdependentes. A semiose, portanto, só pode ocorrer dentro desse espaço, tal como a vida só ocorre dentro da biosfera2. Reconhecendo a necessidade de um espaço específico no qual possa ocorrer semiose, cria-se, automaticamente, uma oposição entre o que está dentro e o que está fora desse sistema de significação. Toda atividade humana é desenvolvida conforme a espacialidade e a diferenciação contextual existente em tal espaço, determinando, destarte, uma relação entre o próprio e o alheio, sendo isso possível somente por meio de processos tradutórios manifestados numa dada atividade social3. Nesse sentido, Lotman atribui dois traços distintivos e caros à semiosfera: o caráter delimitado e a irregularidade semiótica. O primeiro equivale “a determinada homogeneidade e individualidade semióticas”,4 quer dizer, há alguma coerência do que se inscreve na semiosfera, tornando-se possível, assim, relacionar o que está dentro e fora de seu espaço operativo. Não obstante, ao tomar em consideração seus limites, sua fronteira, a semiosfera pode estipular relação entre seus elementos internos, bem como entre todo texto encontrado fora dela. É na fronteira que ocorre a tradução do sistêmico (semiótico) com o extrassistêmico (extrassemiótico), é nela que há certa mediação entre a semiosfera e os textos culturais externos, e nunca exclusivamente dentro de uma mesma semiosfera já constituída.

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2. Conferir a publicação de Vernadski (1997), em que aborda considerações concernentes à geosfera, noosfera e biosfera, sobre as quais Lotman se apoia para delinear a semiosfera.

3. Conf. Osimo.

4. LOTMAN. La semiosfera, p. 24.


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5. MACHADO. Escola de semiótica, p. 13.

A cultura é alimentada por dados materiais que a caracterizam como um sistema capaz de armazenar informações, processá-las e transferi-las para outro. Toda materialidade cultural gera signos, promove significações necessárias de serem consideradas e interpretadas. Para a Escola de TártuMoscou, as distintas formas de expressão integram um conjunto de signos mais complexos de serem codificados do que o gráfico-visual do alfabeto verbal5. A teoria da semiosfera, nessa perspectiva, em muito auxilia a discussão de componentes naturais do espaço semiótico sobre os quais propomos nos inclinar em momento devido, tais como a heterogeneidade de informação e conversão da informação em texto. A articulação desses componentes é altamente variável de acordo com o espaço semiótico em que se manifesta, não abandonando o fato de que a própria informação já é uma tradução do fato em questão. Conforme explicitado anteriormente, a originalidade de um fato é momentânea e exclusiva a ele próprio, ou seja, toda e qualquer compreensão e possíveis desdobramentos são decorrentes de um processo de apreensão e tradução, assim, híbridos. Para Bakhtin (2011), o encontro de dois sistemas (indivíduos) possibilita o (re)conhecimento do interlocutor, isto é, um percebe o outro a partir de como um entende si próprio. Enquanto “o monologismo nega ao extremo, fora de si, a existência de outra consciência isônoma e isônomo-responsiva, EM  TESE

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de outro eu (tu) [...], a vida é dialógica por natureza”6, o dialogismo é inerente às experiências da vida humana e fundamental à instauração cultural. Tal conceito admite a existência do homem nas formas do “eu” e do “outro”, isto é, representa o exercício da linguagem sempre pautada nas relações sociais, tornando-a um processo de interação verbal e social por meio do qual os indivíduos são, significativamente, “construídos”. É, portanto, no espaço da semiosfera que se pode verificar de que forma as culturas interagem entre si (passando, aqui, a entender a cultura como um texto) e como a essa interação (ocorrência de diferentes semioses) assegura um campo de constante semiodiversidade que, viciosamente mantém viva a própria semiosfera. Utilizando-me desse viés analítico sigo para os próximos itens que compõem o artigo, chamando atenção justamente para as relações sociais e, portanto, dialógicas, constituídas entre o “eu” e o “outro”, representados aqui pelas personagens centrais de cada cena escolhida para tratar. Ao passo que traço um percurso da semiosfera do sexo no filme em estudo, trabalho com sistemas modelizantes que o fundamentam. O SEXO NA RECTUM

Como mencionado nas linhas iniciais do texto, o filme Irreversível possui ordem cronológica inversa, ou seja, as STEFANELLO. A semiosfera do sexo em Irréversible

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6. BAKHTIN. Estética da criação verbal, p. 348.


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FIGURA 1 Fonte: http://nerdgeekfeelings. com/wp-content/uploads/2014/10/ irreversivel-rectum.jpg FIGURA 1

ações apresentadas no início vão sendo compreendidas de acordo com a apresentação contextual que se desenrola até o final da obra.

extintor, o rosto de um homem que pensou ser quem eles procuravam, momentaneamente satisfazendo seu desejo de vingança.

A perseguição a Le Tenia alcança a boate Rectum, em cenas que trazem uma ambientação escurecida com sombras e luzes vermelhas. A procura pelo estuprador de Alex leva vários minutos e culmina em um pseudo-sucesso, no momento em que Pierre desfigura, com pancadas de

Durante todo o tempo da cena, a prática sexual gay aparece como pano de fundo das ações que transcorriam. Associada às técnicas de filmagem, rotação das câmeras, espaços pouco definidos que caracterizavam as orgias, a prática sexual reúne características de caos, de desordem.

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7. Cf. REY. Parasitologia. 8. Cf. GEMMELL et al. Guidelines for surveillance prevention and control of taeniasis/cysticercosis.

O nome da boate é uma forma, senão a principal, de modalizar a prática sexual. Advindo do latim, rectum intestinum, refere-se à parte inferior do intestino reto que termina no ânus. Ademais, o nome da personagem Le Tenia, aparentemente responsável pela boate, faz uma clara alusão ao parasita do gênero Taenia, pertence à família Taenidae, à classe Cestoidea e à ordem Cyclophyllidea,7 que se hospeda no intestino humano após a ingestão de carne contaminada, crua ou mal cozida, contendo cisticercos.8

Dessa forma, os signos constantes da boate Rectum atribuem valor ao ato sexual estritamente anal, podendo ser categorizado como doentio, no sentido lato do termo e de infecção generalizada, como as cenas do filme sugerem ao propor um espaço inteiramente orgíaco, no interior do qual Le Tenia estaria. A CENA DO ESTUPRO ANAL

Em um segundo momento do filme, Alex frequenta uma festa junto a Marcus, seu namorado, e Pierre, seu

FIGURA 2 Fonte: http://poracaso.com/wpcontent/uploads/2014/10/111.jpg FIGURA 2

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ex-namorado, quando decide ir embora sozinha após uma discussão com o namorado por conta do uso exagerado de drogas que estava ingerindo para que conseguisse divertir-se. No caminho para casa, devido ao grande fluxo de carros na rua que tentava atravessar, entra no túnel de uma passarela, e se depara com uma tentativa de agressão da personagem Le Tenia a uma travesti, que consegue escapar. Alex e Le Tenia ficam então sozinhos no túnel e acontece, então o estupro e a agressão. A cena é impactante. Outra vez a baixa luminosidade e o tom avermelhado do ambiente fechado da passarela são elementos característicos da ambientação de Le Tenia. Se em momento anterior, dentro da Rectum, o sexo adquiria valor positivo aos que estavam envolvidos, agora se têm duas perspectivas opostas. Para Alex, a esfera do túnel, estreito, com as extremidades abertas, pelas quais poderia passar alguém que interferisse o abuso, passara a ser trágico. Para Tenia, a mesma esfera parecia propícia.

Para Tenia, o uso de poppers9 durante o abuso revela o prazer que estava tendo. Para Alex, o sofrimento físico, psicológico e moral de um estupro anal transcende os próprios elementos constituintes da cena, e o desprazer toma o controle de suas mãos, que se movimentavam na direção da câmera, como pedindo ajuda ao espectador. A CONVERSA NO METRÔ ACERCA DA SATISFAÇÃO SEXUAL

Pouco antes, estavam Alex, Marcus e Pierre, que saíram juntos do apartamento do casal no intuito de tomar um metrô que fosse em direção à festa. Até a chegada ao destino dos três, a esfera do sexo faz-se constante na conversa, revelando-se outra vez prazerosa, não pela prática em si, sobre a qual Pierre questionava seu insucesso quando ele e Alex namoravam, tentando reconhecer as diferenças entre seu relacionamento, já finalizado, e o relacionamento entre Alex e Marcus.

A posição da câmera é estática durante os aproximados dez minutos ininterruptos de cena, exatamente como o fotograma abaixo apresenta, proporcionando um desconforto ao espectador do filme, que é colocado em estratégica posição de voyeurismo, acompanhando todos os movimentos, tentativas de grito, olhares, ameaças e desespero.

As fronteiras da satisfação e da insatisfação ficam identificáveis na semiosfera do sexo e ilustram com propriedade, mesmo que de maneira simples, a noção de semiosfera que apresentei anteriormente. De um lado, Pierre e o vínculo historicizado com a insatisfação que proporcionava a sua antiga companheira. De outro, Marcus, que convive com Alex numa relação de satisfação para ambos. Alex, no

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9. Poppers é uma droga que promete aumentar a duração da sensação de prazer durante o ato sexual, retardando a ejaculação. Nos anos de 1970 era utilizada medicinalmente, com o intuito de reduzir dores de pacientes cardíacos. Atualmente, muito comum no meio homoafetivo, a substância é encontrada facilmente nos Estados Unidos e Europa, embora no Brasil tenha certa discrição, sendo comercializada como aromatizador de ambientes ou removedor de esmaltes. O nome alude ao som produzido no momento da abertura do frasco em que a droga está contida.


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FIGURA 3 Fonte: http://2.bp.blogspot.com/W1FDkdymzIo/Tp5ou7mS4VI/ AAAAAAAAfwU/a B948BekHj4/ s1600/ FIGURA 3

entanto, pode ser compreendida, quando refiro-me ao sexo em minha análise, como o elo, um ponto de interconexão entre Marcus e Pierre. O SIMULACRO DA MATERNIDADE NO FIM DO FILME

A parte final da obra, que consiste, retomo, no início do drama, considero, talvez, tão impactante quanto a cena do estupro. Não há violência, não há abuso, nem sequer EM  TESE

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qualquer prática sexual. A ambientação é completamente oposta ao que vinha constituindo o filme. Agora tem-se um ambiente aberto, claro, luminoso, ao ar livre. Alex aparece deitada sobre um pano disposto na grama, com um livro na mão. À medida que o campo de visão oferecido pela lente da câmera vai-se ampliando, aparecem crianças brincando próximas a ela. Pouco tempo antes, ainda no apartamento do casal, Alex realiza um teste rápido de gravidez, e confirma a suspeita que vinha tendo há alguns dias dali.

2015 IASCA. Mesa redonda: Condições presentes da crítica de arte p. XXX-140

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FIGURA 4 Fonte: http://mundobla.com.br/ wp-content/uploads/2015/02/ irreversible-2002-06.jpg FIGURA 4

A semiosfera do sexo nessa última parte do filme é constituída exclusivamente por símbolos: a gravidez, a aparição de crianças brincando num jardim e a desejada projeção da maternidade se conjugam no calmo semblante de Alex.

O objetivo deste texto não foi promover uma análise crítica do filme estudado, nem tampouco uma tradução ou uma análise semiótica da trama como um todo, mas sim, compreender a projeção do sexo como uma semiosfera,

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um espaço de significação vinculado a outros espaços de significação, de modo que alguma influência seja exercida na representação das ações dos indivíduos. A temática foi escolhida após perceber que o sexo faz-se presente no filme a todo momento, ora como prática, ora como diálogo, ora como simulacro, estando representado por características positivas e negativas, a partir de concepções que integram diferentes culturas que se inter-relacionam, de alguma maneira, permitindo traduções da parte das personagens e, obviamente, de minha parte como espectador. Na cena do estupro, por exemplo, à semiosfera do sexo pode-se atribuir características positiva e negativa caracterizada por ambos os personagens que participam da cena. De um lado, Alex caracteriza a semiosfera de maneira negativa, de outro, Tenia caracteriza a mesma semiosfera como positiva. Também na cena da conversa sobre sexo que envolvia Alex, Marcus e Pierre, a semiosfera detinha de vieses contrários. Marcus e Alex caracterizavam-na a partir de um elemento positivo, evidenciado pelos sorrisos e tons irônicos e cômicos da conversa. Pierre, por outro lado, enfatizando suas opiniões e questionando a ex-namorada sobre a então insatisfação sexual que culminou no término do

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relacionamento, caracterizava a mesma semiosfera utilizando-se de elementos aparentemente negativos, justificados por suas ações passadas e pelo oculto desejo de reatar o relacionamento, desejo que fica explícito apenas pouco antes de Alex deixar a festa em que estava para ir-se para casa. Com aporte teórico inscrito na semiótica da cultura, é possível atestar os campos semiológicos aos quais o sexo é elemento atrelado e motivador de comportamentos e sensações como prazer e satisfação, a partir de uma óptica positivamente caracterizada pelas personagens, e sofrimento e ódio, considerando um viés negativamente caracterizado pelas personagens. Elemento importante para a composição de minha análise, mas que acredito merecer melhor análise, sob outra perspectiva, é o tempo. O início do filme deixa clara a importância do elemento tempo para a trama. A intenção é, possivelmente, associar o título do filme ao tempo, de fato, irreversível. Posiciono-me, contudo, associando o sexo ao título do filme, em especial porque, uma vez considerando a cena do estupro como o auge da obra, me é impossível deixar de reconhecer como irreversível o teor danoso ocasionado pelo ato sexual forçado, que certamente seria eternizado por Alex, sem a possibilidade de qualquer reversibilidade.

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O NAVEGANTE POUND, EZRA. ‘THE SEAFARER’, EARLY POEMS, DOVER PUBLICATIONS, NEW YORK, 1996 (ISBN: 0-486-28745-9)

Ezra Pound Tradução: Marcelo Fonseca Ribeiro de Oliveira*

* marceloprof2011@gmail.com Graduação em Filosofia. Mestrando em Filosofia Moderna na Universidade Federal de Minas Gerais.

Que por mim mesmo soe verdadeiramente esta canção. Como eu, em dias severos, no jargão das jornadas, Muitas vezes adversidades as suportei. Amargas preocupações no peito arrostei, Sabendo, no meu barco, controlar inquietações E ondas oceânicas medonhas. Inúmeras vezes atravessei, À proa, rigorosas rondas noturnas, Enquanto a balsa arremessava próxima aos rochedos. Friamente aflito, meus pés foram entorpecidos pelo gelo. Desalento é este cativeiro. Lamentos e escoriações Cortaram completamente o meu coração e a fome tornou O meu humor extenuado. Para que o homem não desconheça Que ele, na terra seca, vive amavelmente, E ouça como eu, no frio mar de gelo, ansioso e desventurado, Suportei o inverno, pária infortunado


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Dos seus conterrâneos privado. Coberto por duros flocos de gelo, onde flutuavam saraivas. Salvo o severo mar, eu lá nada ouvia, Enquanto o cisne chorava as ondas de gelo glacial, O clamor do mergulhão cantou para as minhas rimas, Para mim foi piada o ruído das aves marinhas, As gaivotas cantavam enquanto eu bebia. Tempestades chocavam-se de encontro aos rochedos e na popa eu sentia Penas glaciais, repleto do grito da águia com gotículas em suas asas. Nenhum protetor Deve fazer um homem feliz necessitado de mudanças. Nisso ele pouco crê, quem, sempre em vida cativante, Resiste, burguês, a algum trabalho duro, Opulento e inflamado pelo vinho; como eu, em fadiga constante, Sobre a água salgada tive que velar. Na tempestade de neve vinda do norte, próxima à erva-moura, O granito abate a terra e a geada congela o campo, e então, Os mais frios grãos. Não retumbaram na terra Os pensamentos passionais de que eu, sobre altas torrentes, Atravessei o tumulto das ondas salgadas em solidão. Minha mente esteve sempre perdida em súplicas Para que eu seguisse adiante e, mesmo distante, Procurasse estrangeiro e sólido pouso.

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POUND; OLIVEIRA. O navegante

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Não há para homem soberbo sobre a terra, Que, embora bem a si tenha feito na ávida juventude, E não importa a audácia do seu ato e a fidelidade ao seu rei; Ele deve ter desgosto pelo mar, Não importando a vontade de seu senhor. Ele que, sem aliança nos dedos, não tem coração para arpejos, E nem atrações e encantos para uma esposa ou para delícias mundanas. Nada o salva dos golpes constantes das ondas, E a saudade cobre-o, e a água cobra o seu quinhão. O bosque floresce, nasce a beleza dos morangos, Viçosa torna-se a terra, encanto para os campos, Tudo isso lembra o homem ávido de ânimo, E volta o coração a viajar. E então ele pensa Nos dilúvios dos caminhos distantes, longes da partida. O pássaro em desalento chama com choro, Ele canta, pressagiando desgostos, a vigília no estio, O sangue amargo do coração. O burguês não sabe – Ele, o homem próspero – que tipo de conquistas Estarão imaginando e que serão longamente empreitadas. Por isso, meu coração rompe no meu peito, No meio do oceano, meu ânimo Irá longinquamente devanear sobre a imensidão de uma baleia. Vem constantemente a mim do abrigo terrestre, Ligeiro e ávido, o voador solitário e choroso. Um coração é aperitivo para o apetite da baleia, Vendo que, sobre os rastros do oceano, de alguma forma, EM  TESE

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Meu Senhor atribuiu a mim esta vida morta E temporária sobre a Terra. Não acredito Que um conforto sempre almejado, Seja ou não trágico, Faça um homem disposto recuar antes da partida. Velhice, doença ou o ódio da vingança Aceleram a respiração de um corpo destinado à gripe. Todo Conde, para tal falo, depois para outros – Que alardeiam última palavra de louvor à vida, Desejará trabalhar antes que se vá. E sua malícia, carcaça contra os inimigos sobre a terra formosa, É uma atividade audaciosa… Devem honrá-lo, então, todos os homens E, além disso, que permaneça entre os ingleses o seu louvor. Aye! Para sempre uma última rajada de vida E o deleite entre os valentes. Pouco duráveis os dias, Toda a arrogância dos mundanos e ricos, Nem reis nem Césares agora vêm, Nem senhores dados ao ouro, como estes foram. Que seja em magnífico júbilo, Quem quer que vida mais digna vivera, Que entristeça toda essa excelência e os infindáveis deleites! Declina o tempo, mas permanece o mundo. O túmulo oculta o dilema. Lentamente o remo é cantado. EM  TESE

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Seca e envelhecida a glória terrestre. Nenhum homem indo aos portões da terra, O tributo dos anos contra ele, sua pálida face, Padece de cabelos acinzentados, idas companhias conheceu. Nobres homens oferecidos para a terra, Ele não deve cobrir a carne onde a vida cessou, Nem comer o doce, ou sentir pena, Nem agitar a mão ou pensar profundo. E, embora ele semeie o túmulo com o ouro, Seus amigos natos, seus corpos enterrados São um inauspicioso e valioso tesouro.

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A RELAÇÃO ENTRE OS MANNON E AS FIGURAS DOS COROS EM ELECTRA ENLUTADA (1931), DE EUGENE O’NEILL: EXEMPLARIDADE, INTERTEXTO E TRAGICIDADE Pedro Leites Jr.*

RESUMO: Propomos neste artigo um estudo sobre a manifestação do trágico na trilogia Electra enlutada (1931), do dramaturgo estadunidense Eugene O’Neill. Em específico, buscamos entender como o elemento trágico se expressa a partir da construção e inter-relação dos Mannon, família que representa o centro da ação trágica, com personagens que dialogam com a estrutura do Coro da tragédia grega. Para tanto, consideramos a intertextualidade que a obra mantém com o mito grego de Electra e, em particular, com a Oréstia (458 a.C.), de Ésquilo. Nesse sentido, temos ainda em conta o quanto o engendramento trágico e a constituição dos personagens assumem nuances de exemplaridade, o que se manifesta de diferentes formas na obra. PALAVRAS-CHAVE: Mito de Electra; Electra enlutada; coro; tragicidade.

* neanderthalstradivarius@hotmail.com Doutorando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

RESUMEN: Proponemos en ese artículo un estudio sobre la manifestación del trágico en la trilogía A Electra le sienta bien el luto (1931), del dramaturgo estadunidense Eugene O’Neill. Más específicamente, buscamos entender como el elemento trágico se expresa en la construcción e inter-relación de los Mannon, familia que representa el centro de la acción trágica, con personajes que dialogan con la estructura del Coro de la tragedia griega. Para eso, consideramos la intertextualidad entre la obra y el mito griego de Electra y, en particular, con la Orestíada (458 a.C.), de Esquilo. En ese sentido, llevamos en consideración todavía como el engendramiento trágico y la constitución de los personajes asumen matices de ejemplaridad, lo que se manifiesta de diferentes maneras en la obra. PALABRAS-CLAVE: Mito de Electra; A Electra le sienta bien el luto; coro; tragicidad.


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INTRODUÇÃO

1. RABELO. Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O’Neill e de Nelson Rodrigues. 2. LEDUR. Um mito, três mulheres: aproximações e distanciamentos entre Electra (Eurípides), Electra Enlutada e Senhora dos afogados. 3. A volta ao lar está para Agamêmnon como Os perseguidos está para Coéforas e Os fantasmas se ajusta em certa medida a Eumênides. 4. Não há muito receio por parte do leitor/público minimamente contextualizado com o referente grego em vincular Ezra a Agamêmnon, Christine a Clitemnestra, Brant a Egisto, Orin a Orestes e Lavínia a Electra, seja pelo encadeamento dos fatos, seja já de início pela proximidade eufônica dos nomes. 5. O’NEILL. Electra enlutada, p. 33.

Uma análise sistemática e comparativa apontando aproximações e distanciamentos entre Electra enlutada (1931), do dramaturgo estadunidense Eugene O’Neill, e a Oréstia (458 a.C.), do tragediógrafo grego Ésquilo, mostraria que há aí um processo de releitura bastante direta, como acertadamente contextualizam os estudos desenvolvidos por Adriano de Paula Rabelo1 e Daniela de Freitas Ledur2: o encadeamento dos acontecimentos, especialmente a correspondência fechada das partes da trilogia,3 assim como dos personagens,4 não deixa muita margem a contestações. Evitando uma delongada descrição, parece-nos suficiente para as reflexões aqui propostas pontuar, como exemplo, que a indicação de personagens, no início da obra (escrita), como referência à dramatis personae do chefe da família, realça a releitura de Agamêmnon: “BRIGADEIRO-GENERAL, EZRA MANNON”.5 O resgate, como se vê, é tão declarado e reafirmado ao longo da trilogia que não seria de todo descabido o uso do termo “adaptação”. Pensando nos procedimentos de estudo que partem das aproximações e distanciamentos, é interessante reparar como grande parte da bibliografia sobre a obra de O’Neill tem se dedicado a estabelecer reflexões a partir de métodos comparativos mesmo quando um dos enfoques não se refere à obra de Ésquilo. No mais das vezes, o que se encontra são cotejos do dramaturgo com expoentes do pensamento EM  TESE

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e da estética modernos ou então reflexões sobre o esforço do autor em atualizar princípios estéticos e filosóficos gregos antigos. Piqué6 comenta como tal ponte entre O’Neill e os clássicos foi intermediada pela leitura de Nietzsche e Freud. Efetivamente, poder-se-ia afirmar que o direcionamento trágico da proposta dramatúrgica do autor é mais nietzschiana que aristotélica, assim como concordamos com Piqué sobre ser o comportamento dos personagens o’neillianos mais vinculados ao pensamento freudiano que ao Éros euripidiano, por exemplo. Ledur,7 por sua vez, destaca certo naturalismo de influência de Zola, indicando em Electra enlutada que forças como hereditariedade e meio ambiente influem diretamente na formação do caráter, no comportamento e nas escolhas tomadas pelos personagens. Já Rabelo8 aponta para a proximidade entre passagens de Electra enlutada e de Hamlet. Em direção adjacente, Piqué9 vai mais além e propõe um paralelo entre as dramaturgias (no sentido de conjunto de obras dramáticas) do autor norte-americano e de Shakespeare. Centrando-se na permanência de aspectos do trágico em tal mímema de O’Neill, Rabelo,10 apesar de ressaltar a “construção do texto conforme os parâmetros aristotélicos”, argumenta, em contrapartida, que a força da trilogia americana decorre do magistral desenvolvimento de um senso de destino inevitável decorrente do sentimento de culpa, elemento crucial tanto no universo puritano

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6. PIQUÉ. Eugene G. O’Neill y los dioses del Olimpo.

7. LEDUR. Um mito, três mulheres: aproximações e distanciamentos entre Electra (Eurípides), Electra Enlutada e Senhora dos afogados. 8. RABELO. Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O’Neill e de Nelson Rodrigues. 9. PIQUÉ. Eugene G. O’Neill y los dioses del Olimpo. 10. RABELO. Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O’Neill e de Nelson Rodrigues, p. 93.


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11. RABELO. Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O’Neill e de Nelson Rodrigues, p. 93.

12. O’NEILL. Working Notes and Extracts from a Fragmentary Work Diary.

13. RABELO. Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O’Neill e de Nelson Rodrigues. 14. PIQUÉ. Eugene G. O’Neill y los dioses del Olimpo, p. 69.

dos personagens como na psicologia moderna [tomada pelo autor no sentido de “conjunto de conhecimentos sobre a psicologia humana advindos dos estudos freudianos”].11

A atualização, então, na esteira da interpretação de Rabelo, se daria na conversão do sentido de destino grego, correlato dos deuses, em algo que poderíamos definir como uma concepção moderna de que os acontecimentos são dependentes – e resultam preponderantemente – da psicologia humana. Tal afirmação, há que esclarecer, reproduz declaração do próprio O’Neill em diário escrito durante a idealização e confecção da obra dramática. O’Neill12 assevera mesmo que intentara uma vinculação ao sentido (grego) de destino a partir de uma abordagem em acordo à psicologia moderna impulsionado pelo questionamento de se a problemática grega expressa no mito de Electra se faria sentir por um público inteligente porém alheio ou afastado de crenças em divindades ou no sobrenatural. Problematizando tal premissa, Rabelo distingue o peso que a sexualidade ou os impulsos sexuais tomam em tal conjuntura. Com efeito, tal estudioso parece defender mesmo uma correlação estrita entre a hybris grega e a libido. Já para Piqué,14 em sentido mais amplo “existe la hybris con el arrebato de varios fuegos, de amor y odio, de vida y muerte, de rebeldía, venganza, o ternura, compasión”. O autor, ainda que siga no mesmo sentido de Rabelo no que se refere ao 13

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sentido freudiano da manifestação de tal conceito grego, o coloca como motivador para todo tipo de desvio praticado pelos personagens. Mesmo que Piqué não faça explicitamente em seu trabalho essa associação, na terminologia freudiana sua análise parece entender que a hybris transforma-se, na obra de O’Neill, em espécie de revelia do id contra o superego. Outrossim, atentando para que o tange ao confronto entre o sublime e o grotesco15 – como constituintes do humano segundo uma perspectiva moderna de entendimento do mundo formada sobre bases judaico-cristãs – e no que isso corresponde, em certa medida, ao conflito trágico de forças antagônicas, poderíamos sugerir, em termos de equivalência, que a dialética entre id e superego são determinantes da fortuna humana na composição mimética de O’Neill, bem como o trágico se engendraria a partir de tal linha de resoluções. Tal qual Rabelo,16 Piqué busca no interior da mente a força motriz do destino humano: En O’Neill la hybris está en el inconsciente. El inconsciente es el sucedáneo de los antiguos dioses. Pero al igual que si se hacía de los dioses únicos árbitros de los destinos humanos se destruía al hombre, ahora se destruye al hombre si se le impone como único árbitro al inconsciente, con sus devaneos

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15. HUGO. Do grotesco e do sublime.

16. RABELO. Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O’Neill e de Nelson Rodrigues.


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17. PIQUÉ. Eugene G. O’Neill y los dioses del Olimpo, p. 70.

18. LESKY. A tragédia grega.

19. Essa relação é abordada detidamente e desde diferentes enfoques por Freud em O malestar na civilização.

y peregrinaciones, peregrinaciones que tan fácilmente llevan por la carrera de la autodestrucción del hombre.17

Notamos, de princípio, que tal configuração aponta para uma perspectiva o’neilliana de mundo cerradamente trágica, segundo a proposição de Albin Lesky,18 já que as determinações do inconsciente, tomado como natural – parte constitutiva – do ser humano, governariam o modo de agir de toda e qualquer pessoa. Visto o inconsciente como estância de ultrapassagem da medida, como desencadeador do infortúnio, o trágico assume caráter universal.

de entendimento do humano a partir de um processo mimético que tem como fulcro a intertextualidade. A RELAÇÃO ENTRE OS MANNON E O CORO20

No processo intertextual, evidentemente, entra em cena um filtro que é o olhar do dramaturgo em direção ao redimensionamento dos elementos particulares que compõem a obra e na convergência disso ao arranjo global do mímema. Este, todavia, não necessariamente cooptará o direcionamento argumentativo do mímema tomado como referente principal na linearidade da obra.

Ainda assim, cabe considerar, não obstante, quais são os elementos outros que circundam ou se relacionam com o inconsciente. Ou seja, há a possibilidade, em teoria, de ver o inconsciente como também determinado por forças exteriores,19 o que nos leva para questões de ordem social. Nessa esfera, pois, é de se considerar se e em que medida a internalização dessa realidade exterior é força motriz do inconsciente e de que maneira se dá a absorção – representação – das forças extrínsecas. Mais além habita, ainda, a indagação sobre que tipo de concepção – representação – do social é apresentada na obra de O’Neill. A percepção de que haveria uma marcada base naturalista de entendimento do mundo nos dá um ponto de partida nesse sentido, mas nos deixa em aberto como pode convergir com uma perspectiva freudiana

Segundo a linha de reflexão exposta por Rabelo,21 o diálogo realizado por O’Neill é, quanto a Ésquilo, de aproximação na superfície e afastamento na estrutura profunda. Exemplo do que diz o estudioso pode ser observado no modo de constituição do coro. A função primeira de tal coletivo é o de, ao modo grego, contrapor as ações dos protagonistas por meio de juízos de valor. Seguindo o modo clássico, não interferem diretamente nos fatos. Excluindo-se daquilo que sucede, estão mesmo no meio-termo entre personagem e espectador, tal qual, ao seu modo, funcionava o Coro grego, sobretudo nas tragédias de Ésquilo.

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No primeiro Ato da trilogia, a rubrica inicial aponta que “essas três figuras [o carpinteiro Amós Ames, sua esposa Louisa e sua prima Minnie] são mais tipos populares da cidade do que

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20. Grafaremos em minúsculas “coro” quando nos referirmos à obra de O’Neill porque, ainda que desempenhe papel de equivalência ao “Coro” grego, o conjunto de personagens não atua, efetivamente, como conjunto de vozes, tampouco aparece indicado nos diálogos da obra como tal.

21. RABELO. Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O’Neill e de Nelson Rodrigues.


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22. O’NEILL. Electra enlutada, p. 36.

23. HUGO. Do grotesco e do sublime.

24. O’NEILL. Electra enlutada, p. 36.

25. O’NEILL. Electra enlutada, p. 37-38. 26. O’NEILL. Electra enlutada, p. 37.

mesmo personalidades”.22 O modelo se repete ao longo da obra, variando as figuras que compõem o coro. Ocorre que, ao contrário do que sucede na Oréstia, na obra o’neilliana se rebaixa o caráter elevado de tais figuras, isto é, daqueles que tecem os julgamentos, avaliam o certo e o errado do que se passa. No caso em específico de A volta ao lar, mexeriqueiros, uns mais maliciosos – Louisa – e outros menos – Amós –, são figuras bem mais estapafúrdias, grotescas nos termos de Victor Hugo.23 São aplicadas não à moral no sentido da vigilância dos valores sociais como modo de correção e ajustamento, mas ao especular sobre as faltas dos demais – em especial os de alta estirpe – como forma de satisfazer seus próprios anseios. Amós, falador, parece mesmo necessitar de atenção; Louisa busca no pecado do outro um modo de se colocar superior; Minnie “é o tipo humilde e suave, que se deleita em ouvir os outros”,24 em espécie de entretenimento novelesco desinteressado do questionamento ético das coisas.

Coerente com o sentido cíclico da obra, a abertura de Os perseguidos remonta ao início de A volta ao lar, tendo em lugar dos espalhafatosos Ames, representantes da classe mais popular, um conjunto de figuras que representam uma classe intermediária27 e que se fazem presentes por oportunidade do velório de Ezra: um médico (Joseph Blake), um ministro da Primeira Igreja Congregacional (Everett Hills) e sua esposa, um gerente da Companhia de Navegação dos Mannon (Josiah Borden) e sua esposa (Emma). Contudo, tanto a dinâmica permanece inalterada como a descrição dos personagens proposta na didascália procura explorar o estrambótico no corpóreo e o desproporcional ou descabido no comportamento. Vejamos apenas um excerto da prolongada caracterização: [EMMA] é a mulher típica da Nova Inglaterra, de pura ancestralidade inglêsa, cara cavalar, dentes salientes, pés grandes, maneiras defensivamente ásperas e dogmáticas. HILLS é o tipo do ministro bem alimentado de uma próspera congregação de cidade pequena – corpulento e untuoso, pretensioso e insinuante, cônscio da fiel observação das leis de Deus, mas tímido e sempre tateando seu caminho.28

A classe social baixa de tais personagens contrasta, claro, com a dos Mannon, porém a decadência moral é generalizada. Se os ricos se excedem ao menosprezar os pobres – “SETH [a Minnie]: Saiba que não é todo mundo que vê a casa dos Mannon tão de perto assim. Êles não gostam de gente estranha invadindo isto aqui”25 –, estes tampouco deixam de invejar os ricos e “erram” por admirar seus excessos – “MINNIE: Puxa vida! Que baita casa!”.26

A aproximação ao animalesco coloca os indivíduos em espécie de condição de rebaixamento quanto ao Mannon e, mais que isso, quase de sub-humanização. Não obstante, isso não significa uma perda da condição humana: estão dispostos

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27. O’NEILL. Electra enlutada, p. 149: “Essas pessoas [...] tipos citadinos, côro representativo, como os outros [os Ames] eram, mas numa camada diferente da sociedade, a cidade tomada como fundo humano de cenário para o drama dos MANNON”.

28. O’NEILL. Electra enlutada, p. 150.


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às mesmas formas e regras de funcionamento de mundo que recaem sobre os moradores do palácio. No entanto, no que diz respeito à elevação de caráter, ao refinamento e à sutileza de espírito, parecem ocupar lugar subalterno. A decaída dos Mannon é grandiosa porque os crimes praticados são grandiosos, assim como a constituição do ser, as questões do humano que afligem são, proporcionalmente, grandiosas. Tanto os Ames como os visitantes do funeral engendram-se em conflitos mundanos, corriqueiros. Ainda assim, são eles, quantitativamente, que representam a população geral. Se os Mannon são exemplares é porque mostram as possíveis e estrondosas quedas potencialmente provocadas pela constituição humana, avassaladoras e assustadoras – como os heróis gregos, têm a função de mostrar ao indivíduo comum aquele tipo de erro que não faz parte da realidade hodierna mas que parte dos mesmos princípios que as faltas praticadas no cotidiano. Os sujeitos do coro o’neilliano, no revés, refratam justamente a concreção desses princípios na realidade do sujeito típico.

Esse fator se presentifica mesmo, em Emma, na referência à ancestralidade. A ideia em si de uma “nova” Inglaterra, seja em Emma, seja na ambientação geral da trilogia, nos remete ao paradigma do desdobramento. Emma é desdobramento de seus ascendentes ingleses e, por extensão, conserva uma espécie de laço de irmandade com os estadunidenses em geral.29 A história dos Mannon, por sua vez, é desdobramento da história dos atridas e é desdobramento também da História inglesa e norte-americana. O que há de universalizante quanto ao humano, está claro, parece ser resgatado do referente grego. Em complemento, o conjunto de valores estabelecido, sabidamente influenciado pelo ideário judaico-cristão, é tomado da tradição britânica.

Este sujeito, pois, é exemplar em um viés horizontal. Se o possível distanciamento histórico e geográfico pode significar uma não identificação e uma ridicularização de tais figuras, seguindo a máxima realista do micro pelo macro, tais personagens, por outro lado, poderiam ser transpostos aos mais distintos contextos, já que são os vícios e as atitudes o que realmente os compõem.

O untuoso Hills se deleita pela gula enquanto cumpre o papel de fiscal das leis de seu deus. O puritanismo, efetivamente, parece governar o julgamento desse coletivo coral em particular e da quase generalidade dos personagens da trilogia. Na transição do dogma à ação, claro, é que a questão torna-se problemática, seja para os Mannon, seja para os demais, em espécie de conflito que, nos termos freudianos, implicaria na disputa entre id e superego. No plano subjetivo da psicologia dos personagens, tal fator parece realmente assim se resolver. Sem obstar, no plano social, se expande como espécie de parâmetro para as relações sociais e disputas de poder, sendo o dogma – e/ou a moral que o sustenta

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29. É evidente que a formação do povo norte-americano não se limita a tal caminho de filiação. No entanto, entendemos, em acordo à estrutura da obra, que paira no inconsciente coletivo de tal coletividade, materializada, como entidade, na ideia de nação, a prerrogativa de que são pais de filiação britânica, haja vista o idioma, por exemplo.


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e dele decorre – moeda de troca e objeto da chantagem. Isso ocorrerá exponencialmente entre Orin e Lavínia e entre esta e Christine.

30. FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 188.

Não bastassem, pois, a autorrecriminação do individuo e a tentativa constante de convencer a si mesmo, o senso comum personificado nos demais traz à tona, a todo momento, pela vigilância, os desvios de comportamento. Isso é possível porque os Mannon estão em espécie de lugar (histórico-cultural) de transição entre uma organização normativa em que o ente modelar (a família aristocrática, o rei, o rei-deus, entre outras formas de centralização de poder e de verdade sobre a realidade) cede espaço à lei como elemento transcendente ao indivíduo. Interessante reparar, aliás, como o próprio Ezra Mannon personaliza tal transição, já que, além de líder militar, fora destacado juiz e também prefeito. Ao poder anterior que exercia pela posição genealógica, justapõe o poder institucional. Nesse percurso, avaliza-o e dá-lhe força para adquirir autonomia, conforme processo histórico, evidentemente, que se encaminha também na mesma direção. Entramos, nesse momento, em consonância com as proposições de Foucault em seu célebre Vigiar e punir, quando o autor francês discorre sobre o deslocamento de poder que ocorre no fenômeno da “troca de eixo político da individualização”.30 Para ele:

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Quanto mais o homem é detentor de poder ou de privilégio, tanto mais é marcado como indivíduo, por rituais, discursos, ou representações plásticas. O “nome da família” e a genealogia que situam, dentro de um conjunto de parentes, a realização de proezas que manifestam a superioridade das forças e que são imortalizadas por relatos, as cerimônias que marcam, por sua ordenação, as relações de poder, os monumentos ou as doações que dão uma outra vida depois da morte, [esses e outros procedimentos constituem] uma individualização “ascendente”. Num regime disciplinar, a individualização, ao contrário, é “descendente” à medida que o poder se torna mais anônimo e mais funcional, aqueles sobre os quais se exerce tendem a ser mais fortemente individualizados; e por fiscalizações mais que por cerimônias, por observações mais que por relatos comemorativos, por medidas comparativas que têm a “norma” como referência, e não por genealogias que dão os ancestrais como pontos de referência; por “desvios” mais que por proezas. [...] Todas as ciências, análises ou práticas com radical “psico”, têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização. O momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas

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31. FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 188-189.

32. ELIADE. Mito e realidade.

em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo.31

Reparemos como, a partir das palavras de Foucault, podemos pensar em uma incorporação em Ezra de uma dualidade expressa já, em alguma medida, na disputa entre Antígona e Creonte na tragédia sofocliana. Sobre a Antígona (442 a.C.) é conhecida a interpretação que coloca em evidência o conflito entre uma lei “antiga”, defendida pela filha de Édipo, e uma lei “nova”, representada pelo rei. A primeira, como se sabe, presta reverência à tradição, à genealogia e à religião olímpica – é a lei dos deuses; a segunda refere-se à lei escrita, à lei da polis, à lei do homem – ainda que na figura de Creonte esta se materialize. A primeira conserva aquilo que Foucault cita como individualidade ascendente, já que os Entes Sobrenaturais32 personificam e representam, em si, o sentido da justeza, a norma, o dogma. No segundo caso, estamos diante da troca do eixo da individualização: a lei é objetiva, devendo ser empregada, de cima para baixo, aos indivíduos como um todo, indiscriminadamente. Ezra, pois, pela genealogia, como Ente/ser que é exemplar e assume em si o sentido da justeza, ao passo que transfere para a posição que ocupa na esfera social tal sentido, descola a norma da pessoa e passa, também ele, e principalmente seus descendentes, a estar sujeitos à norma abstrata.

abstrata, dirigindo a atenção aos Mannon. Nitidamente, a hipocrisia é o elemento que corrói a legitimidade de tal procedimento. Ainda assim, apesar do que haja de desumanização dos Mannon em vários sentidos ao longo da trilogia, no que se refere ao estar sujeito às leis de deus, do destino e ao crivo dos pares concidadãos – mesmo que estes não sejam os nobres anciãos da tragédia grega –, a família e seus integrantes respondem à sua condição humana e revelam seu declínio moral, tal qual quaisquer outros indivíduos.

Com efeito, o que fazem as figuras dos coros o’neillianos é cumprirem o papel de porta-vozes e fiscais dessa norma

A exemplaridade, nesse pormenor, age na contramão do sentido tradicional, já que promove uma centralização de olhares inquisidores. Conforme o que o cânone instituiu na literatura, aquele que por tradição é exemplar deve ser posto à prova para demonstrar, sempre, sua legitimidade. É na revelação das tomadas acertadas de decisões, nas proezas assombrosas realizadas, nas mostras de virtude que os heróis se constroem como tais: para que sejam exemplos, para que doutrinem, para eles se deve mirar, sobre eles se deve falar. Nem Ente Sobrenatural nem indivíduo comum, ou um pouco dos dois, Ezra e o génos agem na transição da norma ascendente à descendente e invertem o sentido grego da exemplaridade: segundo a premissa da tradição grega, o herói é valoroso, por isso exemplar, modelo a ser seguido, mas ainda assim cai, por conta de uma falha justificada em sua condição humana; no caso dos Mannon, os sujeitos são decaídos, por isso exemplares, modelos a não serem seguidos,

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a serem recriminados, ainda que tal reconhecimento se dê por um processo complexo, já que a caída pressupõe um estágio anterior de altivez, o que determina um sentido de subjacente e/ou velado de estima, de apreço. O trabalho operado pelos demais cidadãos, entre idas e vindas, pois, é o de paradoxalmente quebrar esta sobrevalorização, ao passo que subsiste um apego ao sentimento de valorização; já que o modelo foi e é seguido, já que fundador de princípios, já que representante da coletividade e desdobramento dela: acusar a debilidade dos Mannon é revelar a debilidade também dos demais e daquele que delata. Tal movimento de ida e vinda gera um potencial desconforto no ato da recriminação. Tratase de um censurar que ao mesmo tempo se deleita pela desgraça alheia e padece ou se remói em tal atuação; o que aparece ao longo da obra nas figuras dos coros e também em Seth, mas que tem exemplo maior na contraposição entre Hills e Blake, que ocasionalmente representam os lados opostos dessa balança, conforme excerto transcrito em seguida. 33. ELIADE. El mito del eterno retorno: arquetipos y repetición.

El mensaje del Salvador es en primer lugar un ejemplo que debe ser imitado. Después de lavar los pies a sus apóstoles Jesús les dice: «Porque ejemplo os he dado para como yo he hecho a vosotros, vosotros también hagáis». La humildad no es sino una virtud; pero la humildad que se ejerce siguiendo el ejemplo del Salvador es un acto religioso y un medio de salvación: «… Que os améis los unos a los otros, así como yo os he amado…». Ese amor cristiano está consagrado por el ejemplo de Jesús. Su práctica actual anula el pecado de la condición humana y diviniza al hombre.34

Este “amor” é oposto à ideia de “faísca” apontada por Brandão35 quando trata do caráter inebriador que o sentimento amoroso causa no herói da mitologia grega. Se um é salvação, outro é perdição, se um acusa a condição humana, o outro é redenção dessa condição e aproximação/transcendência à origem divina. “El que cree en Jesús puede hacer lo que El hizo; sus límites y sus impotencias quedan abolidos”.36

Considerando as reflexões de Eliade,33 se por um lado temos de considerar o cristianismo como agente de uma mentalidade histórica – e mais linear – em contraposição à perspectiva a-histórica – e preponderantemente cíclica – da realidade conjecturada pelo pensamento do homem arcaico, por outro lado também nos ritos judaico-cristãos está presente um imitatio Dei.

Ora, é o ajuste ou desajuste à imitação o parâmetro de julgamento dos personagens ao modo correto ou recriminável de se comportar. Em O’Neill, a primeira parte do primeiro Ato de Os perseguidos é quase um quadro à parte em que as citadas figuras que compõem o coletivo discutem os desvios de conduta dos Mannon, com especial enfoque em Christine e Lavínia, por ocasião do ocorrido no velório de Ezra. Tomemos como exemplo dois excertos:

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34. ELIADE. El mito del eterno retorno: arquetipos y repetición, p. 30. Grifos do autor.

35. BRANDÃO. Mitologia grega, p. 193.

36. ELIADE. El mito del eterno retorno: arquetipos y repetición, p. 30. Grifos do autor.


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SRA. BORDEN: Nunca pensei que [Christine] gostasse tanto do marido. É verdade que tem sido sempre uma espôsa cumpridora de seus deveres, tanto quanto se sabe.

BLAKE: (Melindrado) Desculpem, mas essa é uma tolice dos diabos! Conheci Ezra Mannon tôda a minha vida, e para aquêles que desejava conhecer era tão natural e simples...

SRA. HILLS: Sim. Parece ter sido boa espôsa.

HILLS: (Ràpidamente) Naturalmente, doutor. Minha espôsa entendeu mal o que eu disse.38

SRA. BORDEN: Bem, isso só serve para se compreender como se pode julgar mal uma pessoa, sem ter má intenção, especialmente quando se trata de gente da família Mannon. Não são pessoas fáceis de se entender. É estranha a diferença entre ela e Lavínia, a maneira pela qual cada uma delas vê essa morte. Lavínia está fria e calma como uma pedra de gelo. 37. O’NEILL. Electra enlutada, p. 151.

SRA. HILLS: É verdade. Não parece tão triste como seria de se esperar.37

E logo: HILLS: Que tragédia, ser levado assim, em sua primeira noite em casa, depois de ter passado incólume por toda a guerra! BORDEN: Eu não consegui acreditar, quando soube. Quem jamais suspeitaria...? É estranho... Coisas do destino. SRA. HILLS: (Interrompendo, sem tato algum) Talvez fosse o destino. Lembra-se, Everett, que você sempre disse, a respeito dos Mannon, que o orgulho se vai quando há uma queda, e que algum dia Deus os humilharia em seu orgulho pecaminoso? (Todos fixam os olhos nela, chocados e irritados) HILLS: (Atarantado) Não me lembro de jamais ter dito... EM  TESE

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Nos trechos retirados da obra de O’Neill chama a atenção primeiramente o tom especulativo de Sra. Borden e Sra Hills, que tem por base algo como “o modo correto ou ajustado de reagir à ou comportar-se após a morte de um familiar próximo”. Não lhes chega à mente, todavia, que há um agir dissimulado por parte de Christine, assassina do marido, e um sentido oculto na frieza de Lavínia, que é conhecer ou suspeitar das ações da mãe – o que vai além ou se soma, claro, ao que há de caracterização da personagem como alguém estática e “fria”. Apontamos para esse pormenor por um motivo bastante preciso: ainda que os sujeitos avaliadores não sejam corrompidos, que ajam deliberadamente convergindo o julgamento aos interesses próprios, ou mesmo que não fossem, como são as figuras do coro de O’Neill, movidos por uma hipocrisia da qual não têm consciência, seriam incapazes de bem julgar os acontecimentos e os sujeitos a que miram, já que não é dada ao humano a possibilidade de onisciência sobre a “verdadeira face dos acontecimentos”. É dizer, todo julgamento será equivocado porque feito pelo humano, limitado à condição humana, ao alcance de seus LEITES JR. A relação entre os Mannon e as figuras dos coros […]

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38. O’NEILL. Electra enlutada, p. 153.


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39. LIMA. Representação social e mímesis.

sentidos, intelecto e emoções, prezo a sua perspectiva subjetiva; segundo as reflexões de Lima,39 determinado pelas formas de classificação do real de que dispõe. Em acordo às tragédias gregas que tratam do mito de Electra, existe uma problemática que habita nas formas humanas de reconhecimento da “verdade”. Aquilo em que se crê a partir daquilo que se lhe apresenta. A questão anteposta nos indica uma concepção o’neilliana de inadequação insuperável entre a “norma” e a capacidade humana de segui-la e, não obstante, também entre o “desvio da norma” e a capacidade humana de identificá-lo e avaliá-lo ajustadamente. Ademais, referida inconformidade não se exprime como própria da estrutura social, é elementar na constituição do humano. Há, irrefutavelmente, implicações severas do social em tal conjectura, porém, são reverberações de um princípio inerente ao homem. O direcionamento trágico que identificamos em Electra enlutada em parte se explica a partir de tal constatação. No seio da tragédia grega, sobretudo a esquiliana, os deuses como avaliadores das ações humanas são, mesmo que com alguma ressalva, seres apropriados para exercer o julgamento, haja vista a Oréstia. No drama moderno do autor estadunidense, seres tão débeis e tão desajustados quanto os avaliados é que avaliam, já que não há um sentido elevado de justiça que não seja a incorporação de princípios impessoais em pessoas, de normas “desindividualizadas” aplicadas por e para indivíduos. EM  TESE

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Perde-se, nesse processo, no direcionamento argumentativo do mímema, não acompanhado amiúde pelos personagens que nele atuam, o sentido elevado da norma, da regra, do dogma. Passa de expressão da vontade divina a manifestação de elucubrações morais, culturais, do homem. Isso destitui da existência humana, efetivamente, um valor transcendente e acusa um fundo trágico universal. Tanto os julgadores como os julgados, aqui, ocupam espaços análogos e transitórios, mesmo que na esfera social aloquem-se em lugares distintos ou mesmo antagônicos. Poder-se-ia ponderar, logo, sobre como essa conjectura assinala a transgressão das fronteiras entre as classes sociais no que se refere ao sistema de abrangência do trágico. Isso coaduna com a linha de raciocínio segundo a qual é na psicologia humana que o dramaturgo buscará o sentido da tragicidade ou a atualização da ideia de destino: o que une a todos é a condição humana. Estaríamos todos sujeitos, nesse sentido, aos determinantes da mente humana, que funcionaria de maneira mais ou menos análoga. Os determinantes sociais, destarte, influiriam no modo como o destino se fecha, porém não construiriam variáveis suficientes para promover uma superação das problemáticas humanas. O conflito trágico, na acepção o’neilliana, ao que se nota inicialmente, seguiria a esteira do que Lesky40 define como conflito trágico cerrado. Isso posto, mister seria considerar o direcionamento argumentativo de Electra enlutada como oposto ao da Oréstia, em movimento intertextual que, LEITES JR. A relação entre os Mannon e as figuras dos coros […]

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40. LESKY. A tragédia grega.


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41. JENNY. A estratégia da forma.

42. HUGO. Do grotesco e do sublime.

de acordo com as reflexões de Jenny,41 apontariam para uma atualização como inversão dos sentidos. Ainda com vistas à tríade Amós, Louisa e Minnie, a nosso ver, além do que há de verossímil como expediente do retrato social, desponta com destaque, como antecipamos, o desajuste que o julgamento moral puritano mantém com a práxis social em tal contexto. Não obstante, as “feiuras” descritas por Hugo42 como expressão do grotesco, como têm seu lugar próprio no ambiente terreno, se revelam de forma mais proeminente quando ao desgaste moral se soma uma construção bizarra ou então ridícula dos caracteres físicos, e isso se dá com o suposto coro da obra de O’Neill: os três apresentam corpo exageradamente gordo e comportamento em certa medida espalhafatoso; a corpulência, por si só, é imagem da inadequação e do excesso. Neste ponto, se contrapõem aos Mannon, que projetam efígies agradáveis – isto é, mais condizentes aos gostos e/ou padrões estéticos de fisionomia e vestimenta inculcados no inconsciente coletivo. Tal diferenciação nos leva, conseguintemente, a três considerações que cremos importantes de serem destacadas.

A ridicularização faz a ponte com o segundo ponto a comentar, qual seja, a abertura ao cômico. Desde o início da trilogia está marcado o tom burlesco que cercará as figuras corais. A cena de abertura, em que aparece também Seth, velho e esquálido, acentua ainda mais tal fator. Não estamos diante, claro, de um tipo de comicidade que desperta o riso escrachado. No revés, parece que o que se busca é uma espécie de contraponto à inflexão trágica que, porém, não afasta a ação como um todo de sua severidade: se há exagero, ele não desconstrói o verossímil porque se disfarça de retrato de caracteres, postos de maneira estereotipada; o risível está sempre adjacente ao movimento trágico, que se vai construindo ao longo da obra, como estratégia que usa da dessemelhança para dar suavidade e/ou promover a quebra, por momentos, da gravidade própria da tragédia.

O contraponto com os coros gregos perpassa os mais variados pontos de construção de sentido – a capacidade de julgamento dos que julgam é posta em dúvida, na obra de O’Neill, seja pela baixa estirpe, pela moral questionável, pela falta de manifestação de sabedoria, ao que se completa a imagem do ridículo.

Em terceiro lugar, há que se ter em conta, como já defendia Victor Hugo,43 que o drama moderno coloca ao lado do belo o feio. Na obra do dramaturgo estadunidense, a dialética entre ambos ressalta a tragicidade pelo jogo de contrastes e está relacionada com o sentido de trágico que se agencia: os personagens adjuvantes distanciam-se, quanto a sua imagem, do núcleo trágico constituído pelos Mannon, porém a eles se aproximam em termos de índole. Contudo, comicamente, os servos e as pessoas do povo revelam suas “feiuras”, do início ao fim; as manifestam na completude de seus seres, da gordura à picuinha, do corporal ao “espiritual” como diria Hugo,

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43. HUGO. Do grotesco e do sublime.


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mas que mais bem poderíamos chamar, na obra de O’Neill, de “moral e psicológico”. Em todas as instâncias do ser se manifesta claramente o desregramento. Já a família aristocrática da Nova Inglaterra representada na trilogia esconde sob uma imagem de altivez e pureza, isto é, “beleza”, da casa, dos corpos, da postura, da fala, toda a feiura “moral e psicológica” que será responsável por crimes e autodestruição.

44. O’NEILL. Electra enlutada, p. 41.

45. O’NEILL. Electra enlutada, p. 103. 46. O’NEILL. Electra enlutada, p. 109.

Essa oposição entre aparência e interior se expressa bem no comentário de Amós ao observar Christine: “Parece estar se escondendo por trás de uma máscara. Todos os Mannon são assim”.44 Com efeito, tanto para Christine como para Lavínia, Orin, Adam Brant e Ezra Mannon, O’Neill usa a comparação a uma máscara para se referir à lividez e rijeza do rosto, acentuando a noção de falsidade e agregando-a alguma nuance de “ausência de vida”, o que aproxima o público/leitor, juntamente aos personagens que compõem o coro, de predicações como “falta de escrúpulo” e/ou de que tratam-se de indivíduos com menor predisposição à comiseração ou afeto. Tal sentido se prolonga na imagem por completo de Lavínia (que coaduna com as declarações anteriormente citadas do coro) – “sua figura esguia, rigidamente sentada, [...] parece a de uma estátua egípcia”45 – e de Ezra – “seus movimentos são exatos e duros como os de um boneco articulado [...] em atitudes posadas que sugerem estátuas de heróis militares”46 – e se

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estende à casa, na rubrica que abre o terceiro Ato de A volta ao lar, em construção com nuances de prosopopeia em que a fachada da mansão é tomada como se fosse a sua face: São nove horas da noite, uma semana depois [em relação aos dois primeiros Atos]. A luz do luar cai em cheio sôbre a casa, dando-lhe um aspecto algo fantástico e irreal. A alva e pura fachada de templo parece mais do que nunca uma incôngrua máscara fixada na sombria casa de pedra.47

Em complemento à máscara, o que há de “irreal” e de “fantástico” na cena, usando da lua e do clima noturno como um todo em contraste com a alvura da edificação, promove a abertura ao mítico (no sentido de história falsa) e, por extensão, flexibiliza o rigor do verossímil, como que se abrindo um tom de sonho, ilusão e encantamento. Tanto a máscara, como a imersão em atmosfera de afastamento do “real” aludem, com algum teor de metaficcionalidade, ao caráter de reverberação que a realidade apresentada conserva em relação a um referente anterior, que habita o imaginário coletivo. A máscara, mais que denotar características dos Mannon, coloca-os como “reencarnação” dos rostos dos atridas e nos remete ao teatro como forma de representação da realidade, das coisas e dos seres. O clima fantástico, em complemento, insere a ação, os acontecimentos em uma espécie de limbo em que não se sabe ao certo qual a natureza do que se passa, LEITES JR. A relação entre os Mannon e as figuras dos coros […]

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47. O’NEILL. Electra enlutada, p. 103.


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48. LIMA. Representação social e mímesis. 49. ELIADE. El mito del eterno retorno: arquetipos y repetición.

qual o grau de “realidade”, de “verdade”, de “ficcionalidade”. Ou então, e em complemento, alude à impossibilidade de saber-se, em definitivo, onde termina o “verdadeiro” e onde começa o “falso”. Ou, ainda, e também de maneira complementar, que não há, efetivamente, distinção entre tais esferas de significação a não ser o sentido de tal a elas atribuídas pelo humano: tudo, ao fim e ao cabo, é produto das classificações, do amolduramento, da capacidade e disposição do humano em dar sentido às coisas, ou melhor, construir sentidos e, assim, construir as coisas em sua mente, como aponta a perspectiva teórica de Lima.48

Conforme a linha de raciocínio que temos seguido a respeito da obra do dramaturgo estadunidense, se o trágico é universal, já que aplicado a todos pela natureza psicológica

própria do humano, parece que o sentido e/ou forma de manifestação da tragicidade é consideravelmente maleável e, por vezes, contraditória, estando dependente também de aspectos do social. O modo de declínio trágico dos Mannon é o “canônico”; ou seja, caem como caiam os gregos, por erros que se expressam pelo sentimento de vingança, de individualidade, de excessos relacionados ao poder e à paixão avassaladora: é o palácio dos Mannon como desdobramento da casa de Atreu. O declínio dos pobres, por outro lado, é menos “nobre”; é a decaída advinda das miudezas do dia a dia, dos excessos pequenos, dos erros contínuos e tão diminutos que não engendram um ciclo trágico complexo: é o errar que nada mais faz que deixar o indivíduo já sofrido e devastado por sua condição de existência no lugar de sempre. É a derrota diária do ficar onde se está porque não se consegue superar as próprias debilidades, fraquezas, faltas, para achar uma solução para a situação – social – deplorável. Ao contrário do que ocorre na Electra (413 a.C.) de Eurípides, não há em Electra enlutada um deslocamento que inverte o sentido da altivez dos poderosos para os humildes, como espécie de re-dimensionamento das noções de honra e nobreza. Em O’Neill, tais valores não se sustentam em nenhum personagem, ao fim e ao cabo; tratam-se de conceitos, no máximo, perseguidos inutilmente, como ocorre com Peter, por exemplo, ou usados como artimanha, por Christine, ou ainda, internalizados de forma deturpada por Ezra, que se

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Assim, no sentido atribuído por Eliade,49 a ideia de ciclo, retorno, repetição, desdobramento, se estende à esfera ficcional, ou tomada como ficcional em parte. Os princípios da repetição e do desdobramento, ambivalentemente, aplicam-se, em uma instância, ao que há de consciência sobre o processo escritural/composicional, isto é, criador e artístico, e em instância correlata, ao modo mesmo de consciência da realidade, à forma de classificação do real, que entrecruza em um mesmo plano de significação, o “real” e o “ficcional”, que assumem massa multiforme; sem fronteiras rigidamente delimitadas.

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crê e tenta sustentar-se como honrado ao passo que esconde um passado deshonrado. Tal constatação, ademais, assevera um certo teor de crítica social que reproduz não só na ação como na estrutura da obra o papel tangencial que a classe subalterna ocupa na organização social – no que diz respeito, claro ao protagonismo e ao desfrutar de status e/ou privilégios da posição social. Todos os demais, são, pois, como sombras dos Mannon. Se na estrutura grega aristocrática a manifestação disso na tragédia denota algo como “é o povo a seguir seus líderes”, na disposição dos estados modernos capitalistas se converte em “uma luta de classes que de luta realmente pouco há”, resumindo no seguir ou aproximar-se aos detentores de poder e ver-se neles representados em alguma medida por querer-se no lugar deles estar. Essa espécie de flerte com o poder está presente no coro que abre a trilogia como nas figuras do coro que vão ao funeral de Ezra e, não obstante, nos cinco homens que constituirão o coro da terceira obra da trilogia: um grupo formado por Seth mais quatro homens alcoolizados (Abner Small, Ira Mackel, Joe Silva e Amós Ames) que, estando diante da casa dos Mannon abandonada por ocasião da viagem ao estrangeiro dos últimos remanescentes da família, Orin e Lavínia, brincando com e temendo os fantasmas ali presentes, como outra forma de manifestação das idas e vindas no “recriminar” e “estimar” que comentávamos com destaque em Blake e Hills, se deixam encantar ao passo EM  TESE

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que têm pavor em conhecer os mistérios da casa/família. A dinâmica gira em torno do desafio proposto por Seth a Small que entre na casa e ali passe a noite. Esse “flerte” com os Mannon, pois, é signo do desejo de experimentar o protagonismo, mesmo que se saiba ou suponha o consequente infortúnio que daí advenha. JOE: Por Deus, se os espíritos são como os viventes, eu bem que deixava o fantasma da mulher de Ezra sentar no meu colo! M’m! (Estala os lábios lascivamente) AMES: Eu também! Ela era uma uva! SMALL: (Com uma olhadela receosa para a casa) O povo anda falando que é o fantasma dela que assombra o lugar, não é mesmo?50

O “flerte” com o poder, no caso em específico, se funde com o “flerte” no sentido mais próximo ao do uso cotidiano, ligado à libido, e o álcool é o elemento encorajador, está claro, que substitui o vinho grego como catalizador da hybris como modo da “saída de si”. O desafio, em forma de aposta de dez dólares, aponta ainda outro elemento impulsionador: a ganância. Após prolongada cena cômica em que os amigos zombam do desafiado, Small acaba por entrar na casa – “SMALL: Vocês pensam que me assustam? Fantasmas não existem!”51 – e, pouco depois, de lá sai esbaforido e apavorado, acreditando ter visto algum fantasma: LEITES JR. A relação entre os Mannon e as figuras dos coros […]

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50. O’NEILL. Electra enlutada, p. 257.

51. O’NEILL. Electra enlutada, p. 258.


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52. O’NEILL. Electra enlutada, p. 264.

SMALL: (Alcançando-os – aterrorizado) Deus Todo-Poderoso! Eu os escutei, vindo atrás de mim, e corri para o quarto do outro lado, e vi o fantasma de Ezra com a roupa de juiz vindo através da parede – e, por Deus, eu corri! (Arranca uma nota do bolso e atira-a em SETH) Aqui está o seu dinheiro, seu amaldiçoado! Eu não ficaria lá nem por um milhão! (Isso quebra a tensão, e os velhos dão largas [...] gargalhadas, esmurrando as costas uns aos outros).52

ciclo cômico de encontros e desencontros. Afinal, a comicidade é o elemento próprio da desconstrução da altivez, da grandiosidade. No entanto, subjacente ao espectro risível se fundamenta uma direção trágica da existência humana.

Podemos tomar tal passagem como simulacro com tom de pastiche da condição geral dos personagens que circundam os Mannon. Por questões mais ou menos “nobres” e pelo foco de interesse no que ali se passa, incorrem em excessos, desmedidas, atitudes longe de serem os crimes cometidos no circulo familiar que envolve o génos mas que, sempre, parecem apontar para um vindouro desfecho que não pode ser o da aventurança. Os dez dólares e vontade de passar-se por corajoso frente aos companheiros é o que faz com que Small enfrente suas debilidades não por valentia honrosa, mas por enfrentamento desmesurado do perigo. Se o perigo era “real” ou imaginário, é questão em aberto, porém se materializa para o sujeito como punição e, para ele, efetivamente, se faz presente e impulsionador do malogro.

Por outro lado, como não enfrenta as “grandes questões” do humano de frente, ao sujeito comum nem mesmo é dada a condição de reconhecimento da razão do sofrimento: a vida é um eterno martírio, superada pela ignorância, por divertimentos passageiros e por anestésicos da consciência tal qual a bebida.

Como o declínio, aqui, se dá nas pequenezas e no aparentemente transitório, o ciclo trágico parece converter-se em

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Aos Mannon, cada qual a seu modo, o fundo trágico do destino se revela à consciência, ao menos em alguma medida e em algum momento. Há, assim, a experimentação avassaladora do sofrimento trágico.

Estamos diante, assim, de uma espécie de tragicidade fluida, dissolvida no cotidiano. Esse é constituído de eternos retornos de fechamento e abertura que se confundem e entrecruzam: não há como saber qual a punição correspondente a qual ação; se há justiça por detrás de tal movimento ou ao menos equivalência de forças. A massa confusa dos acontecimentos parece esconder a significação profunda das coisas na pequenez com que, na superficialidade, se manifestam. Assim, se ambas as formas de manifestação da tragicidade têm caráter universal porque concernentes à condição humana, LEITES JR. A relação entre os Mannon e as figuras dos coros […]

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o modo clássico, expresso e revitalizado nos Mannon, dá ao indivíduo ao menos a possibilidade de reconhecimento da queda e compreensão de seu sentido – algo que pode ser visto, objetivamente, como um atenuante ou, subjetivamente, do ponto de vista do herói trágico, como um intensificador do sofrimento. O modo moderno e diluído que recai sobre o indivíduo comum, expresso nos coros de Electra enlutada, teria, por outro lado, na impossibilidade de percepção e ausência de sentido transcendente, um agravante, do ponto de vista do observador, porém, do ponto de vista do sujeito anestesiado, um sofrimento igualmente diluído e, portanto, mais facilmente suportado. Isso explicaria, finalmente, o desfecho da obra, que é, ainda que infortunado para todos, mais nefasto ou atroz para os Mannon que para os demais, que seguem com sua vida miserável. REFERÊNCIAS BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. v. 3. ELIADE, Mircea. El mito del eterno retorno: arquetipos y repetición. Tradução para o espanhol de Ricardo Anaya. Madrid: Alianza; Buenos Aires: Emecé, 1972. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Tradução de Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2000. ÉSQUILO. Oréstia: Agamênnon, Coéforas, Eumênides. Tradução de Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

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NOVA YORK SELVAGEM: IMAGENS DA CIDADE EM MAGGIE: A GIRL OF THE STREETS, DE STEPHEN CRANE

Adriana Carvalho Conde*

* conde_adriana@hotmail.com Doutora em Letras na área de Literatura e Vida Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, São Paulo.

RESUMO: Analisamos a participação de Nova York no romance de Stephen Crane, Maggie: a Girl of the Streets, publicado em 1896, que enfatiza a atuação do meio ambiente no destino das pessoas, trazendo à tona a representação daqueles que vivem sob as pressões da miséria em um meio ambiente urbano e hostil. O romance é dotado de uma visão naturalista, em que a personagem Maggie Johnson experimenta a decadência nos bairros dos tenements, em Nova York, em pleno desenvolvimento industrial, no século XIX. Há vários enquadramentos da cidade, os quais ilustram as impressões do autor sobre sua influência na vida dos personagens e permitem investigar o contexto externo a fim de reconhecer que Crane segue o mesmo modelo da maioria dos escritores americanos que possuem a visão de wicked city, acreditando na decadência dos valores humanos e morais da região dos tenements, provocados pela vida na grande cidade.

ABSTRACT: We have analyzed the participation of New York on the novel by Stephen Crane, Maggie: a Girl of the Streets, published in 1896, which emphasizes the environmental performance in the fate of people, bringing up the representation of those who live under the poverty pressures in a way urban and hostile environment. The novel is endowed with a naturalist view in which the character Maggie Johnson experiences the decay in the neighborhoods of tenements in New York, in the industrial development in the nineteenth century. There are several city frameworks which illustrate the writer’s impressions of his influence in the lives of the characters and allows to investigate the external environment in order to recognize that Crane follows the same model of most Americans writers who have the vision of wicked city, believing in decay of human and moral values ​​in the area of tenements, caused by life in the big city.

PALAVRAS-CHAVE: Stephen Crane; Maggie: a Girl of The streets; Nova York; tenements; romance urbano.

KEYWORDS: Stephen Crane; Maggie: a Girl of the Streets; New York; tenements; urban novel.


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Em Maggie: a Girl of the Streets (1896), Stephen Crane elege a cidade de Nova York não apenas como cenário da história de Maggie, a jovem descendente de imigrantes irlandeses que se torna prostituta de rua, mas também como um organismo vivo que exerce influência constante sobre o comportamento e as ações de seus habitantes. Segundo Vahnenbruck, assim como outras obras naturalistas, Maggie é um dos romances americanos que realizam uma crítica relevante sobre a influência do meio ambiente proporcionado pela cidade de Nova York no final do século XIX. Evidenciando a significativa participação da cidade na obra de Crane, afirma que:

1. VAHNENBRUCK. Fiction of New York: the City as a Metaphor in Selected American Texts, p. 17. Todas as traduções presentes neste artigo são de minha responsabilidade.

[...] torna-se óbvio quando os leitores notam que a protagonista Maggie não possui muitas ações nem no primeiro nem no último capítulo do romance. Além do mais, o título da primeira versão de 1893, Maggie: a Girl of the Streets (A Story of New York) indica que o autor é, ao menos, mais preocupado com a Cidade que com Maggie.1

A personagem protagonista Maggie cresce na Rua Bowery em uma atmosfera confusa e angustiante; ela é apresentada como produto do meio social, pensamento que corresponde perfeitamente às ideias de Herbert Spencer, filósofo britânico, considerado no século XIX o mais importante pensador, comparado a Charles Darwin. Em The Data of Ethics (1879), EM  TESE

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um trabalho posteriormente incorporado em Os princípios da ética (1892-1893), Spencer observou que “as pessoas se adaptavam aos seus ambientes ao se submeterem à vontade do organismo social ou comunidade à qual pertenciam”.2 Aparentemente, segundo a crítica, a essência naturalista é caracterizada pelo determinismo, que de acordo com Walcutt “expressa a resignação ou até mesmo o desespero diante do espetáculo da impotência do homem em um universo mecânico”.3 A maioria dos capítulos tem o início parecido, por meio da descrição do cenário, como uma espécie de congelamento do espaço e preparação dos leitores para o drama que eles contêm. Em tese, Maggie: a Girl of the Streets é muito realista, influenciado pelos expoentes Willian Dean Howells e Hamlin Garlan, acreditando detalhar fielmente a realidade, pois o realismo desejou retratar o homem e a sociedade abstendo-se da idealização romântica, e o naturalismo, expressão do realismo, relacionou o homem comum à sociedade através da denúncia dos problemas sociais, influenciados pelo pensamento darwinista e pela doutrina filosófica do determinismo de Spencer, que toma o indivíduo não como sujeito de sua própria história, mas como alguém que pode ser manipulado por forças morais, econômicas e sociais que estão além de seu controle. O realismo destaca as cores locais, descrevendo a vida de gente comum, definida pelas lutas sociais, aspecto das nações CONDE. Nova York selvagem: Imagens da cidade em Maggie […]

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2. HAYES. Maggie: a Girl of the Streets: a Story of New York, p. 7.

3. WALCUTT. American Literary Naturalism: a Divided Stream, p. 20.


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em modernização. Transita, mais tarde, para o naturalismo, nos Estados Unidos com o expoente Stephen Crane, que demonstra, claramente, que a força do meio ambiente determina o destino de seus personagens. A história aparece cronologicamente em detalhes e é percebida pelo leitor como se este estivesse vendo um álbum de fotografias:

4. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 39.

O interior do lugar era coberto de papel de parede oliva e matizes de bronze imitando couro. Um bar de massividade falsificada se estendia ao longo do lado da sala. Atrás, um grande aparador aparentemente de mogno alcançava o teto. Sobre as estantes ficavam pirâmides de vidros cintilantes que nunca foram perturbados. Espelhos colocados em frente ao aparador os multiplicavam. Limões, laranjas e guardanapos de papel, arranjados com precisão matemática, Sentavam entre os vidros [...].4

Henry James, Willian Howells, Edgar Fawcett e até mesmo Theodore Dreiser. Fine esclarece que esses autores possuem uma visão romântica da região dos tenements, expressando uma perspectiva de certo modo sensacionalista da realidade da classe baixa, e pronuncia o seguinte a esse respeito: A pobreza é raramente degradante; mais frequentemente é enobrecedora. Os homens são trabalhadores honestos e cordatos; as mulheres, abnegadas, corajosas, invioláveis ou cruelmente traídas. Se a heroína cede às investidas de seu sedutor, é apenas após ter travado uma longa e dura luta, como no caso de Cora Strang, a bela flor da “favela” em Edgard Fawcett, The Evil That Men Do (1889).5

Ao selecionar o romance de Crane, verificamos que as figuras que ilustram a narrativa são caracterizadas como vilões, alcoólatras, prostitutas; como uma massa de pessoas degradadas pelo ambiente. A obra chamou a atenção da crítica ao tocar ironicamente em questões referentes à proliferação dos vícios e da violência na cidade de Nova York. Ao escrever Maggie: a Girl of the Streets, Crane rebela-se contra a representação pitoresca da pobreza, adotada na escrita de importantes romancistas cosmopolitas que frequentemente denunciavam os problemas sociais, como Jack London, Frank Norris,

Stephen Crane oferece em sua narrativa o suporte ideal à crítica, que percebe a evidência da crença no determinismo delineando as ideias do romance. Ambos, estilo e tema podem confirmar o indício. De acordo com Barry R. Schaller,6 o romance de Crane reproduz a desilusão do autor em relação ao American Dream, “porque ele tenta mostrar que o ambiente é algo tremendo no mundo e frequentemente molda vidas”. Segundo o crítico Eric Solomon,7 Maggie seria um ataque em forma de paródia aos romances que mascaravam a realidade vivenciada pela classe pobre. Os textos de Crane possibilitam uma reconstrução retórica da realidade, cuja função é cultural e ideológica.

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5. FINE. Abraham Cahan, Stephen Crane and the Romantic Tenement Tale of Nineties, p. 98.

6. SCHALLER. A Vision of American Law: Judging Law, Literature, and the Stories We Tell, p. 104.

7. SOLOMON. Stephen Crane, from Parody to Realism, p. 4.


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8. Slum fiction ou tenement fiction são obras literárias que escolhem como tema a vida da classe baixa, dos moradores dos tenements. A gênese da tenement fiction tanto na Inglaterra como na América pode ser traçada primeiramente pela propagação de cortiços ao longo de cidades como Londres, Nova York e Chicago no final do século XIX e pelas advertências sobre as consequências sociais dos cortiços.

9. GANDAL. Stephen Crane’s “Maggie” and the Modern Soul, p. 759. 10. Tenements são habitações também chamadas de tenement houses. Constituemse de apartamentos apertados superpovoados na área pobre da cidade de Nova York. São moradias similares aos cortiços. 11. Manhattan, no final do século XIX, era divida em Lower, Midtown e Uptown.

Crane faz parte do movimento intitulado slum fiction ou tenement fiction,8 pois traz à tona o drama da classe operária, retratando os danos das forças econômicas nos que vivem sob as pressões da miséria, em um meio ambiente urbano e hostil, onde são expostas as contradições da vida experimentada nos lugares mais lúgubres de Nova York, trazendo uma protagonista que está longe de ser a nobre heroína doce, educada e resignada esperada pelos leitores de romances da época. O inovador em Stephen Crane reside no fato de representar a classe pobre em sua complexidade e vulnerabilidade, o que implicou quebrar paradigmas e estereótipos difundidos pela literatura romântica, pois revela a exímia crítica feita da situação de uma sociedade fora de controle. A complexidade de Maggie é sentida pela fluência dos diálogos e posicionamentos ideológicos que expressam a visão moral do autor. Keith Gandal declara que: “O romance é um tour de force, uma espécie de contramanifestação. Ele toma um conto familiar, mantém o enredo, mas refaz as caracterizações ou a ação mental, bem como o julgamento moral [...]”. 9 O romance narra a história de uma jovem pobre e sensível, Maggie Johnson, integrante da classe trabalhadora que vivia em um cortiço – tenement10 – experimentando a decadência física e moral, nos bairros do Lower East Side11 de Nova York, no século XIX, época em que a cidade EM  TESE

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apresentava transformações expressivas, com o advento da modernidade, por meio do desenvolvimento industrial e da expansão demográfica, adquirindo já naquela época conformações de uma metrópole. Juntamente com sua família desestruturada, formada por pais alcoólatras e ignorantes, vive na Rua Bowery,12 uma área em Manhattan frequentada por boêmios, artistas, escritores e também criminosos, bêbados, prostitutas, vindo a se tornar, nos anos 1800, um lugar da moda. Ansiosa por escapar da vida familiar violenta, apaixona-se e é abandonada por Pete, amigo do irmão, Jimmie, dois valentões de “personalidade beligerante”. Quando é desamparada pela família, retorna às ruas e começa a trabalhar como prostituta para sobreviver. Desesperada e vencida pela vida insípida, atira-se nas águas escuras do East River.13 É relevante dizer que na primeira edição do romance, em 1893, o autor indica a existência de um homem, no episódio final, que segue Maggie até o rio, fazendo o leitor acreditar que ela possa ter sido assassinada por esse “huge fat man”. Porém, na edição de 1896, Crane sugere que Maggie possa ter cometido suicídio, e é nessa publicação que fundamentamos nossas reflexões. Sendo assim, adotamos a posição defendida pelo crítico Pizer,14 que insiste no argumento de que Maggie tenha cometido suicídio, confirmando suas afirmações com base em artigos publicados nos anos 1800, nos quais verifica que era muito comum encontrar casos reais de prostitutas que cometiam suicídio se atirando no East River. CONDE. Nova York selvagem: Imagens da cidade em Maggie […]

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12. O nome da Rua Bowery deriva da palavra irlandesa bowerij, que significa “fazenda”.

13. O autor não esclarece o episódio do suicídio, apenas sugere o evento, por meio da utilização de metáforas, o que possibilita pelo menos duas interpretações distintas. O final de Maggie é um assunto controverso na crítica. Alguns críticos apresentam visões opostas. Uns creem que tenha cometido suicídio, e outros que possa ter sido homicídio. 14. PIZER; DOWLING. A Cold Case File Reopened: Was Crane’s Maggie Murdered or a Suicide?, p. 36.


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15. SCHÄTZLE. The Reflection of the Metropolis in Stephen Crane’s Maggie: a Girl of the Streets, p. 191.

16. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 18.

O tema demonstra que o último refúgio para o indivíduo desesperado é o suicídio, e Schätzle relata que a morte de Maggie, certamente, pode ter sido provocada pela influência da cidade de Nova York, pois a cidade em Maggie: a Girl of the Streets tem um papel não menos importante que o da protagonista e condiz com a mentalidade dos autores naturalistas, que procuravam provar que o ambiente tem força poderosa ao moldar o comportamento das pessoas.15 A história trágica de Maggie, irradiada pelo determinismo sórdido, funde elementos de pobreza, ignorância, intolerância, abusos, em um contexto violento e cruel. Em um ambiente imundo e em ruínas, a personagem percorre o caminho, em uma escala descendente, de garota simples, romântica, a prostituta de rua, até cometer suicídio. Crane cria para Maggie um mundo urbano caótico, com ares de pesadelo, que beira à alucinação e à histeria, ao contar a experiência de uma garota que nasce em um lugar descrito como “lamaçal”: “A garota Maggie floresceu em uma poça de lama. Ela cresceu para ser a mais rara e maravilhosa produção de um distrito habitacional, uma garota bonita”,16 descreve o narrador. O contraste suscitado pela oposição entre os dois termos, remetendo às “flores do mal”, expressa a ideia de que é possível nascer uma “flor no lixo”. Maggie “Floresceu em um atoleiro”, revela o narrador, e parece se tratar de um lugar que a aprisiona, confinando-a ao distrito dos tenements.

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A imagem de Maggie, desde os capítulos iniciais, é irônica, porque ela é uma vítima da força destruidora da sociedade. Ela não tem espaço entre a raça humana, pois em tal mundo apenas os fortes sobrevivem. Ela tem de morrer, porque é traída pelas próprias circunstâncias naturais.17 A narrativa de Crane evolui para a idealização da realidade de Maggie. Primeiramente ela contempla as novas sensações sugeridas nos encontros com Pete e nos passeios pelas ruas. Começa a vislumbrar a expectativa de uma vida, que, segundo ela, seria maravilhosa, depois passa por um estado de melancolia e cansaço, na busca frustrada da satisfação dos seus desejos, e morre. Maggie é apresentada como uma garota dilacerada pela impossibilidade de realização de seus anseios. São sonhos fadados ao fracasso, prenunciando um final que ponha fim à sua trágica história. No início, Maggie sai com Pete e vai a lugares que a deixam extasiada quanto à quantidade de luzes e à efervescência da Rua Bowery, o que causa nos leitores a impressão de um lugar onde a vida flui freneticamente: Numa divertida sala havia vinte e oito mesas e vinte e oito mulheres e uma multidão de homens que fumavam. Fazia um forte barulho em u um palco erguido num dos cantos da sala, uma orquestra composta por homens que pareciam terem se encontrado ali por acaso. Garçons ensebados corriam de um lado para o outro, precipitando como abutres sobre os incautos da multidão.18 CONDE. Nova York selvagem: Imagens da cidade em Maggie […]

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17. A ideia de estar inserida num mundo onde não há como fugir da herança biológica adquirida pela hereditariedade reflete a teoria proposta por Charles Darwin sobre a sobrevivência das espécies. De acordo com ele, apenas as espécies biologicamente resistentes e fortes podem sobreviver num mundo onde as espécies mais fracas são fadadas a desaparecer.

18. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 50.


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19. SCHALLER. A Vision of American Law: Judging Law, Literature, and the Stories We Tell, p. 104.

20. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 29.

O mundo degradante de Maggie é descrito em suas minúcias, e Crane mostra aos leitores os detalhes desagradáveis da existência humana, por meio da representação de um espaço “[...] onde a ideia americana de progresso e bondade não existe”.19 A linguagem adotada no romance é a linguagem das ruas, dos guetos, de gírias do século XIX carregadas de violência (go teh hell!, ye damm!). A linguagem torna o romance pesado e triste, o que fez com que muitos editores se recusassem a publicar a história de uma menina esquálida que perambula pelas ruas de Nova York trabalhando como prostituta. Os leitores, críticos e editores acharam que o livro apresentava um tratamento sórdido demais da lower class. Maggie é considerado um romance urbano em que há vários enquadramentos da cidade de Nova York. Crane parece ser condescendente muito mais culturalmente que moralmente com a visão de “wicked city” dos autores anteriores (Harling, Howells, Dreiser, Fawcett, entre outros), bem como acredita na decadência dos valores humanos e morais da região dos tenements. A cidade aparece como um lugar dominado pelas pessoas e pelas máquinas. “O ar da fábrica de golas e punhos a sufocava”,20 diz o narrador. A atmosfera densa combina com o espaço também denso, expondo o crescimento urbano, a imigração, refletindo a nova ordem da cidade ditada pela industrialização.

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Margolis21 aponta essa questão ao observar que: “A visão de uma New York sombria era, certamente, tão real para Crane como era para a maioria dos americanos, mas ele consideraria quaisquer mitos de uma cidade iníqua como condescendência cultural e não como prova de imoralidade”, e que: Em suma, a Nova York de Crane é uma espécie de miniatura metafísica que ele viria a adotar em muitos de seus escritos subsequentes; ou seja, a cidade é uma versão de um universo amoral desprovido de sentido, indiferente à presença do sofrimento da humanidade insignificante.22

O mito de que Nova York era o centro da devassidão atingiu proporções enormes, encerrando a ideia de uma “selva de pedras”, hostil e ameaçadora. Os escritores naturalistas, Dreiser, Fawcett entre outros, consideravam as grandes cidades, como Chicago e Nova York, um verdadeiro “caldeirão do inferno”.23 No imaginário popular do século XIX, a cidade era tida como um símbolo da destruição moral. As mulheres do interior, corrompidas pela vida urbana, eram penalizadas por irem buscar melhoria de vida nas grandes cidades. Joaquim Miller, escritor da tenement fiction norte-americana, refere-se a Nova York como Gottam, em seu livro The Destruction of Gottam (1886), e explica que: “Se Gottam não passar por algum tipo de mudança para melhor, ela pode encontrar a fatalidade do destino da conhecida e glorificada CONDE. Nova York selvagem: Imagens da cidade em Maggie […]

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21. MARGOLIS. New York and Literary Imagination: the City in Twentieth Century Fiction and Drama, p. 99.

22. MARGOLIS. New York and Literary Imagination: the City in Twentieth Century Fiction and Drama, p. 99.

23. HAPKE. Girls Who Went Wrong: Prostitutes in American Fiction, 1885-1917, p. 15.


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24. HAPKE. Girls Who Went Wrong: Prostitutes in American Fiction, 1885-1917, p. 15.

25. ALSBURY. As gangs de Nova York: uma história informal do submundo, p. 175.

cidade de Babilônia”.24 Alsbury, ao descrever a cidade de Nova York, mostra em que experiências a ideia de cidade corrompida é baseada: No encerramento da Guerra Civil [...] Nova York entrou numa era de perversidade sem paralelo [...] Por mais de 25 anos as classes criminosas se regalaram numa orgia de vício e crime, e a metrópole – que na época abrangia apenas a ilha de Manhattan – merecia muito bem o título de “moderna Gomorra” [...].25

O espaço ocupado pela cidade grande no século XIX passa a ser considerado o principal antagonista, e os autores desse período o expressam como sendo responsável pela sina, pela prostituição e pelo fim trágico das personagens. Sendo assim, a cidade torna-se um tema bastante explorado na literatura, pois seria o lugar predileto para inspirar os autores na criação de obras cuja realidade das ruas fosse incansavelmente descrita, como na obra de Edgar Fawcett, com a publicação de The Evil That Men Do (1889), em que narra a vida de Cora Strang na cidade de Nova York; Jacob Riis, em How the Other Half Lives (1889), uma coleção de artigos, acompanhados por fotografias das cercanias de Nova York; Edward W. Towsend, com Daughter of Tenements (1895), em que descreve a vida nos bairros italianos; Willian Norr, que pinta o retrato da comunidade EM  TESE

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chinesa em Stories of Chinatown; Abrahan Cahan, que revela o East Side habitado por judeus em Yekl (1896), entre outros.26 Dowling diz que em Crane a cidade é quase uma “entidade física” que impulsiona, aglomera e aprisiona os moradores dos tenements em espaços minúsculos, sem lhes proporcionar nenhum tipo de saída.27 Verificamos em cenas frequentemente descritas pelo autor o constante fluxo de pessoas, em que a cidade adquire aspectos imensos no que diz respeito ao crescimento da população de Nova York. As construções e os prédios são antropomorfizados e, à noite, são os bares que seduzem ou mesmo sorriem: “Em uma esquina, um edifício de fachada de vidro lançava um olhar amarelado sobre as calçadas. A boca aberta do salão chamava sedutoramente os que passavam para entrar”.28 Durante o dia “portas de entradas repulsivas despejavam montes de criancinhas”. Existem casas que estão “fechadas como lábios austeros” e outras construções com “severidade de solidez construída sobre suas características”. Dos efeitos dessas imagens emana um tipo de energia que impulsiona os moradores dos cortiços a se manterem confinados em espaços ínfimos. As portas são caracterizadas como “incansáveis”, provocando no leitor a ideia de que muita gente entrava e saía do bar. Mais uma vez o autor acentua o grande número de pessoas que compõem o cenário da Nova York onde a boemia é latente:

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26. FINE. Abraham Cahan, Stephen Crane and the Romantic Tenement Tale of Nineties, p. 99. 27. DOWLING. Slumming in New York: from the Waterfront to Mythic Harlem, p. 64.

28. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 39.


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29. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 79.

30. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 56.

As portas incansáveis dos botequins, em constante vaivém, exibiam filas animadas de homens diante de balcões e garçons que corriam de um lado para outro. Uma sala de espetáculos enviava, para a rua, sons enfraquecidos de uma música frenética, maquinal, como se um grupo de músicos fantasmas se estivesse aviando.29

te rua transversal. Uma dúzia de carros de aluguel, de cocheiros envoltos em capas cortava as ruas de um lado para outro. Zumbindo baixinho, lâmpadas elétricas projetavam um brilho fosco […] Dois ou três teatros derramavam uma multidão nas calçadas varridas pela tempestade […] Transmudaram-se as calçadas em mares ondulantes de guarda-chuvas.31

Nas impressões da cidade de Nova York do século XIX, Crane expõe os aspectos modernos que a transformavam em plena industrialização. Os elementos que modernizam a cidade são apontados com a presença da eletricidade e do número de pessoas que transitam pelas ruas freneticamente. O leitor pode imaginar as ruas úmidas cheias de gente, a agitação da cidade moderna. A cidade age como personagem da história. O autor insiste em destacar a multidão, o caos da grande cidade e a solidão de seus transeuntes: “Uma mulher desolada percorria a avenida iluminada. A rua estava cheia de pessoas desesperadamente atarefadas. Uma multidão sem fim disparava das escadas das estações mais elevadas e as charretes iam repletas de donos de pacotes”.30 A cidade com suas regiões escuras aparece ao leitor tão real quanto pode ser dada a conhecer, graças às longas descrições feitas pelo narrador:

A decadência de quem reside nos tenements está evidenciada na proliferação desses moradores que se infiltravam nos becos e ruas nas cercanias da Rua Bowery: “As nacionalidades de Bowery iluminavam o palco de todas as direções”.32 O autor expõe o aspecto de coletividade enfatizando a numerosa população e lançando mão de recursos narrativos que evidenciam o grande contingente populacional do lugar. As imagens da cidade explodem no romance de Crane e recebem do autor vida própria, como quando ele se refere à chuva que cai nas calçadas tornando-se “mares de guarda-chuvas”. Há evidentes construções metafóricas visuais e teatrais. Na descrição meticulosa do distrito dos tenements e da atmosfera da Bowery, Crane revela-se poético, eloquente e entusiasmado, traços percebidos pelo leitor quando o autor acentua a ideia de região lúgubre dos tenements de Nova York, descrita como se segue:

Numa noite úmida [...] duas filas intermináveis de carros, puxados por cavalos que deslizavam, chocalhavam em importan-

Uma região escura onde, de um edifício ornamentado, dezenas de portas de entrada repulsivas despejavam montes de crian-

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31. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 62.

32. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 25.


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33. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 6.

cinhas na rua e na sarjeta. O vento do princípio do outono levantava a poeira amarela das pedras da rua e arremessava-a nas centenas de janelas. Longas flâmulas de roupas tremulavam nas escadas de emergência. Na rua, crianças brincavam ou brigavam umas com as outras ou permaneciam sentadas, no caminho dos veículos […] Pessoas apáticas, em curiosa postura de submissão, ou algo assim, sentavam fumando cachimbos nos cantos obscuros. Milhares de odores de comida sendo preparada invadiam a rua. O edifício estremecia e rangia com o peso da humanidade.33

O leitor tem a noção de como a população de trabalhadores pobres vivia em Nova York no século XIX. Percebem ser uma rua escura com crianças que brincam e brigam no meio da sujeira, podendo intuitivamente ouvir os rumores barulhentos e sentir os cheiros exalados pelos interiores das moradias, bem como sentir a força dos edifícios que rangiam por causa da aglomeração de pessoas que ali habitavam. Stephen Crane faz uso de adjetivos similares, destacando a atmosfera sombria e ameaçadora, cujos prédios e estrutura são escurecidos pela sujeira das fábricas e pela constante fumaça. Há, por exemplo, “escadas escuras”, “corredores frios e sombrios”, “paredes manchadas pela poeira escura” e “mobília rústica e escassa”, que juntos compõem o cenário decadente em que Maggie está inserida com a família. Por causa desse ambiente insalubre Maggie morre no final do EM  TESE

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romance, demonstrando a força que esse ambiente exerce na vida dela e das pessoas de sua classe. Não é por acaso que a rua é o palco principal, na obra de Crane. O título do romance deixa evidente o tema. Ela é uma “girl of the streets”, refere-se à “dama da noite”, indicando que a personagem é a mais baixa forma de prostituta, uma “street walking”. O nome “Maggie” é uma gíria em inglês comumente usada para identificar as prostitutas, e a girl of the streets indica que é uma prostituta de rua, tal como qualquer outra garota moradora dos tenements. Irving declara que: A experiência vivida pela personagem é um exemplo fértil da percepção da rua como o espaço da liberdade, da expressão e da extensão da vida doméstica, o que acarretou ideias polêmicas sobre a mulher que vive dentro das casas e as que transitam pelas ruas.34

A ideia de evasão transparece no romance. Tudo se direciona para o lado de fora, para a rua. A vida na Bowery pode ser resumida em brigas, consumo de cerveja, miséria; até mesmo o enredo favorece essa interpretação. A Bowery é descrita como um campo de batalha onde todos travam disputas contra todos. O episódio da briga entre as gangues rivais no capítulo inicial simboliza perfeitamente a atmosfera ofensiva que a rua possui, revelando o tom: “Um garotinho franzino estava em cima de um monte de pedregulhos, CONDE. Nova York selvagem: Imagens da cidade em Maggie […]

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34. IRVING. Gendered Space, Racialized Space: Nativism, the Immigrant Woman and Stephen Crane’s Maggie, p. 40.


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35. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 3.

36. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 3.

defendendo a honra da Rum Alley, arremessando pedras contra uns moleques da Devil’s Row que gritavam e circulavam loucamente o monte, atirando as de volta”.35 O ambiente hostil das ruas de Nova York é simbolizado já nesse capítulo inicial, na briga travada entre Jimmie, irmão de Maggie, e os moleques de uma gangue rival. A valentia como meio de sobrevivência é enfatizada nesse episódio, demonstrando a existência de um espaço impregnado de violência e de uma lei que governa a luta pela vida: Uma pedra havia sido arremessada na boca de Jimmie. Sangue borbulhava sobre seu queixo e ao longo de sua camiseta rasgada. Lágrimas faziam sulcos em suas bochechas machadas de sujeira. Suas pernas magras começaram a tremer e a perder a força, fazendo com que seu pequeno corpo sucumbisse. Suas pragas gritadas na primeira parte da luta haviam mudado para um falatório blasfemo.36

Crane se esmera na descrição dessa briga, em que revela a brutalidade e a violência existentes nas ruas. É importante notar que a honra pela qual Jimmie defende, pondo-se em rivalidade com garotos de gangues de rua, equivale aos conceitos de honra e de moral definidos não pela classe média, e sim pela classe baixa. Ao pensarmos que Jimmie vive em um ambiente cuja moral é definida por outros conceitos que não os que definem o termo “honra”, como princípios que levam as pessoas EM  TESE

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a terem condutas virtuosas, percebemos a inversão irônica de Crane, utilizada para acentuar as contradições morais entre duas classes distintas presentes na sociedade de Nova York. Acreditamos que esteja evidente um dos principais conflitos da época, relacionado ao choque entre os conceitos morais de classes distintas, uma burguesa, conservadora, que ditava a moral da sociedade, e outra pobre, de trabalhadores excluídos dessa sociedade, com princípios morais divergentes da sociedade vitoriana da classe média em Nova York. Maggie tentou fugir, mas teve seus anseios frustrados ao se deparar com a realidade também brutal dos becos e vielas da cidade turbulenta. O romance não parece representar o início de uma cultura na Bowery, mas o final dela, de acordo com Dowling, pois os moradores aceitavam a cultura prevalente da classe média como se os valores morais agissem em julgamentos morais, inconscientes dos códigos de comportamento exteriores à região da Bowery, e acrescenta que: As personagens de Crane são prostradas pelas contradições psicoculturais que aconteciam. Apesar de Crane mencionar os serviços para a nova cultura de consumo que os habitantes da Bowery aproveitavam, ele não apresenta os teatros, salões de dança, e tavernas como veículos para a dissidência cultural; qualquer dissidência, ao menos na Bowery, teria sido vestígios de um tempo passado. Maggie, em suma, é uma história não de rebelião, mas do conformismo cego à convenção.37 CONDE. Nova York selvagem: Imagens da cidade em Maggie […]

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37. DOWLING. Slumming in New York: from the Waterfront to mythic Harlem. p. 51.


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Os personagens de Crane simbolizam fragmentos de uma cultura que se rompeu com a industrialização, o comércio, a mentalidade da classe média vitoriana e os efeitos destes sobre a cultura da classe trabalhadora na Bowery. As estratégias narrativas demonstram ideias contraditórias, que revelam as diferenças culturais e morais existentes entre as duas classes sociais distintas. Está claro o significado de lutas de classes, pois certamente Crane aponta que a razão para a falta de crescimento individual de seus personagens está intimamente relacionada aos males existentes na grande cidade. Nesse aspecto, Dowling afirma que:

38. DOWLING. Slumming in New York: from the Waterfront to Mythic Harlem, p. 52.

39. MARGOLIS. New York and Literary Imagination: the City in Twentieth Century Fiction and Drama, p. 93.

[...] não há dúvidas de que existia um conflito cultural muito real entre grupos competidores, há uma aura de inevitabilidade como efeito da urbanização na Bowery, esteja isto nas mãos dos Vitorianos ou em alguma outra força cultural de fora [...] reflete a supressão, não a ascendência, daquela cultura singular.38

em um ringue, cuja luta é seguida de perto por espectadores curiosos, que torcem para que haja um vencedor no final. Sendo assim, o autor pode demonstrar a desvalorização do caráter e da moral dos moradores dos tenements, acentuando hiperbolicamente os elementos desumanizantes dos personagens que os transformam em guerreiros sanguinários ou mesmo em demônios ávidos por sangue, como na briga de Jimmie com Pete, seu parceiro e quem, aos olhos dele, arruinou a vida de sua irmã Maggie ao seduzi-la: “Os braços dos combatentes rodopiavam no ar feito clavas. Os rostos dos homens, a princípio avermelhados pela cólera, já começavam a adquirir a palidez dos guerreiros mergulhados no sangue e no calor da batalha”.40

Em Maggie: a Girl of the Streets, Crane descreve as divergências sociais posicionando os adversários como se estivessem

Compreendemos que a violência em Maggie é componente essencial do mundo dos personagens de Crane. Há lutas corporais constantes representativas de ânimos flamejantes. Jimmie, ao perceber ter brigado com a gangue rival sozinho, sem a ajuda dos outros membros, começa, enfurecido, a atacar os outros garotos: “Atiraram-se uns ao outro se engalfinharam e rolaram sobre as pedras”.41 É importante ressaltar que o autor descreve a cena buscando a expressividade máxima nos adjetivos, como em “faces convulsionadas”, que enfatiza a ferocidade das crianças “endemoniadas” ou “verdadeiros assassinos”, vista na utilização dos termos cuja força expressiva faz surgir uma cena espetacular representativa da desordem constante nos bairros da classe trabalhadora:

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O próprio Stephen Crane declarou certa vez que: “[...] as energias frustradas das subclasses frequentemente as voltam umas contra as outras em vez de contra suas regras. Em outras palavras, os pobres podem não ser sempre violentamente conscientes sobre a classe como alguns cientistas sociais querem nos fazer acreditar”.39

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40. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 43.

41. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 5.


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42. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 3.

43. SCHALLER. A Vision of American Law: Judging Law, Literature, and the Stories We Tell, p. 106.

Urros de ira revigorada emanaram das gargantas da Devil’s Row. Moleques esfarrapados à direita golpearam furiosamente o monte de cascalho. Em suas pequenas faces convulsionadas brilhavam os sorrisos de verdadeiros assassinos. Ao se aproximarem, atiravam pedras e estridentemente o amaldiçoavam e saiam correndo.42

Ao crescerem nesse ambiente hostil, desconfortável e aflitivo, as crianças são condicionadas a ser também hostis. Não há leis que possam protegê-las, o que as deixa livres para se tornarem adultos violentos e criminosos. Schaller43 reconhece que os dois personagens são representativos da violência existente nesse romance, que se configura um ambiente onde a moral é peculiar, e diz que: “A lei, no mundo de Maggie, basicamente, permite que um código das ruas prevaleça e governe, [...] as raízes da violência estão próximas à superfície no mundo urbano de Maggie. A violência é aceitável na cultura do cortiço”. É o código agressivo das ruas que molda a personalidade beligerante de Jimmie, permitindo sua sobrevivência, mais uma mostra da influência determinista na obra estudada: As fibras inexperientes dos olhos do garoto endureceram-se bem cedo. Ele tornou-se um rapaz viril. Ele passou alguns anos amargos, sem emprego. Durante esse tempo adquiriu um sorriso crônico de escárnio. Ele estudou a natureza huEM  TESE

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mana na sarjeta, e não a encontrou pior do que imaginava ou acreditava julgá-la. Ele nunca teve respeito pelo mundo, porque ele não possuía ídolos os quais esmagara.44

Irving crê que a força dos relacionamentos se dava fora de casa.45 A descrição minuciosa torna o ambiente palpável, real, sobre o qual Irving aponta que: “O cortiço expõe sua mórbida humanidade, as descrições repulsivas de seus habitantes dissimulando uma ansiedade quase escondida em uma natureza que não se contém de sua alteridade bestial”.46 O romance explora a luta por espaço nas ruas congestionadas assim como nos cortiços e bares. As pessoas compõem uma grande massa de indivíduos que disputam os espaços relatados por Crane nesse trecho: “A vasta multidão tinha um ar, dos pés à cabeça, de ter acabado de sair do trabalho [...] O grande corpo da multidão era composto por pessoas que mostravam que todos trabalhavam com suas mãos”.47 O leitor tem a chance de perceber o ambiente das ruas, abarrotadas de gente se esbarrando umas nas outras no frenesi da cidade grande Transmudaram-se as calçadas em mares balouçantes de guarda-chuvas. Homens adiantavam-se para chamar bondes ou carruagens, erguendo os dedos em variadas formas de polidas solicitações ou exigências imperativas. Interminável procissão endereçava-se às estações elevadas.48

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44. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 15.

45. IRVING. Gendered Space, Racialized Space: Nativism, the Immigrant Woman and Stephen Crane’s Maggie, p. 34. 46. IRVING. Gendered Space, Racialized Space: Nativism, the Immigrant Woman and Stephen Crane’s Maggie, p. 35.

47. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 62.

48. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 62.


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49. MARGOLIS. New York and Literary Imagination: the City in Twentieth Century Fiction and Drama, p. 94.

50. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 37.

51. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 64.

Edward Margolis49 observa que os personagens moradores dos cortiços fazem parte integral do ambiente. Aparecem olhos em todos os cantos do conjunto habitacional: “Através das portas abertas, olhos curiosos fitavam Maggie”. Os moradores participam dos acontecimentos, espionando a vida dos outros moradores, por trás das portas e janelas dos cortiços, como vemos neste trecho da obra: Eu estava à porta na noite passada quando sua irmã e o namorado dela chegaram tarde, muito tarde. E ela, coitadinha, chorava como se o seu coraçaozinho fosse partir-se […] Foi a coisa mais engraçada que já vi! E bem aqui na minha porta ela perguntou a ele se ele a amava. 50

As cercanias do East River são descritas, onde Maggie, enfim, tira a própria vida. A narração de Crane, nos momentos derradeiros de Maggie, sinaliza o fatídico final e recria a atmosfera lúgubre e mórbida propiciada pela descrição do ambiente “[...] escuros distritos perto do rio [...] Ela penetrou a escuridão […] As venezianas dos altos edifícios estavam fechadas como lábios cruéis”.51 Penetrou a sombra do derradeiro quarteirão. As venezianas dos altos edifícios estavam cerradas como lábios cruéis. As estruturas pareciam ter olhos que olhavam por cima delas, além delas, para outras coisas. Ao longe, rutilavam as luzes

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das avenidas como se luzissem de uma distância impossível. As campainhas dos bondes tilintavam com um soar jubiloso.52

52. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. xiii.

E termina da seguinte forma: Ao pé dos altos edifícios surgiu o mortal negrume do rio. Alguma fábrica escondida projetou um clarão amarelo, que iluminou por instantes as águas oleosas, que acavalavam vigamentos de madeira. Os diversos sons da vida, alegrados pela distância e por aparente inacessibilidade, chegaram, timoratos, e morreram no silêncio.53

Pensamos que, uma vez que a realidade social do momento está ligada à historicidade de seu tempo, a escrita literária de Crane revela ser uma espécie de testemunho histórico, pois relata e recria o universo de relações sociais existentes naquela época. Portanto, Crane, mesmo partindo de uma percepção pessoal, por meio da familiarização com os problemas na Rua Bowery faz importantes referências sobre as relações sociais, suas influências culturais, tanto internas como externas ao ambiente criado por ele em Maggie. Crane dá uma explicação sociológica ao romance. Ele privilegia a ideia de que o meio ambiente no qual as pessoas vivem exerce influência com força suficiente para que estas não consigam resistir. Maggie enfatiza o fato de que crescer nos cortiços delineia a moral, as crenças e o comportamento das CONDE. Nova York selvagem: Imagens da cidade em Maggie […]

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53. CRANE. Maggie: a Girl of the Streets, p. 65.


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54. SCHALLER. A Vision of American Law: Judging Law, Literature, and the Stories We Tell, p. 104.

pessoas. Nova York é desenhada como personagem antagonista, torna-se um obstáculo intransponível para a realização dos desejos da personagem. Por meio de Maggie e de Nova York o autor previne os leitores sobre um ponto de vista de que a virtude oprimida pelo ambiente corrompido e destrutivo pode ser fatal. De acordo com Barry R. Schaller,54 o romance reproduz a desilusão do autor em relação ao American Dream, “porque ele tenta mostrar que o ambiente é algo tremendo no mundo e frequentemente molda vidas”. A história da ruína de Maggie é carregada de traços melodramáticos que expõem a fragilidade do ser humano ante as artimanhas da cidade grande, providenciando o tema para uma geração de escritores americanos que repetidas vezes incluíram histórias semelhantes à desenvolvida por Stephen Crane. Constatamos que, em Crane, o drama ficcional da protagonista Maggie espelha uma realidade social conflituosa e cínica, embora o tom de denúncia seja disfarçado pela ironia presente na obra. Por apresentar uma escritura peculiar e inovadora, o autor registra as impressões e faz um retrato crítico da sociedade de sua época. A Maggie das ruas nasce e morre no romance para que seja uma heroína que contraste com as ideias anteriormente desenvolvidas sobre a representação da personagem nos romances naturalistas. Crane previne os leitores, por meio da personagem, sobre um ponto de vista de que a virtude oprimida pelo ambiente corrompido e destrutivo pode ser fatal. EM  TESE

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PARTILHA DA APORIA: DIÁLOGOS COM ALBERTO PUCHEU

Alberto Pucheu Entrevista por: Cleber Araújo Cabral* e Rafael Lovisi Prado**

Como apresentar um rosto e(m) suas muitas faces e, ao mesmo tempo, escapar às capturas que uma rostificação implica? Funções, titulações, instituições, publicações, orientações: traços que, por um lado, permitem entrever a potência produtiva de nosso entrevistado – mas que, por outro, podem ocasionar o engendramento de semblantes encerrados na imobilidade dos signos, clausura que age justamente através desse mais de um rosto a que dão forma. Talvez então, nesta tarefa irremediável, seja melhor que ele se delineie nas orlas da poesia e da filosofia pelos murmúrios e marulhos que transitam pela voz daquele que, por hora, põe-se a falar. Deixar que ele se torne clandestino na fala que partilha conosco, que se ponha um pouco à deriva nas marés do diálogo que lhe foi proposto, às margens do disciplinar, nas arrebentações e aporias do contemporâneo. *

* clabrac1980@gmail.com ** rafa_lovisi@yahoo.com.br Doutorandos em Teoria da Literatura e Literatura Comparada – FALE/UFMG. NO ENSAIO “EFEITOS DO CONTEMPORÂNEO”, DE SEU LIVRO APOESIA CONTEMPORÂNEA, VOCÊ DIZ QUE NOSSO TEMPO “NÃO SE DEFINE POR UM PENSAMENTO ESPECÍFICO, MAS, ANTES, PELA ABERTURA DAS POSSIBILIDADES DO PENSAMENTO QUE DIZ RESPEITO A TODAS AS FORÇAS – IRRECONHECÍVEIS – NELE ATUANTES”.1 COMO APROXIMAR (OU APRESENTAR) O OLHAR E O PENSAMENTO DESTA “MIRAGEM DO INFORME”, “AGORA” MARCADO PELA ILEGIBILIDADE E RESISTÊNCIA À APREENSÃO, UMA VEZ QUE, “COMO A POESIA, O CONTEMPORÂNEO NÃO PODE SER ESSENCIALMENTE HISTORICIZADO SEM QUE ELE MESMO SE ELIMINE COMPLETAMENTE”?2

O conceito de contemporâneo, com um valor atrelado a ele, é muitas vezes um termo em disputa, com uma pessoa se querendo “mais contemporânea” do que a outra, querendo que sua arte ou a de alguém valorizada seja “mais contemporânea” do que outras. Não é raro ouvir que uma das artes, as visuais, por exemplo, seja “mais contemporânea” do que outra,

1. PUCHEU, Alberto. Efeitos do contemporâneo. In: apoesia contemporânea, Rio de Janeiro: Azougue Editorial/ CAPES/FAPERJ, 2014, p. 325. Disponível em: http://www. albertopucheu.com.br/pdf/livros/ apoesiacontemporanea.pdf 2. PUCHEU, Alberto. Efeitos do contemporâneo. In: apoesia contemporânea, Rio de Janeiro: Azougue Editorial/CAPES/ FAPERJ, 2014, p. 326.


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como, por exemplo, a poesia. Entendo haver um grande equívoco aí, uma tentativa de se colocar, então, do lado do poder unilateral, perdendo a complexidade das movimentações da criação e do pensamento. O que digo no livro é que se o contemporâneo é inacessível, colocando-se como essa abertura incondicional de possibilidades que não pode ser apropriada nem fechada, nós temos acesso não exatamente a ele, mas a seus efeitos, àquilo que o contemporâneo produz. Daí o título de um dos ensaios do livro ser “Efeitos do contemporâneo”. É com os efeitos que lidamos... e com a abertura inapropriável. Entendo ser um equívoco atrelar o contemporâneo a um de seus efeitos específicos como modo de domesticá-lo, como modo de perder sua complexidade maior, como modo de perder seu indizível, como modo de reduzir o tamanho, imenso, da abertura. Em relação diretamente à pergunta de vocês, eu responderia brevemente que, enquanto aqueles que criticam o contemporâneo ou o que é chamado de poesia contemporânea ou arte contemporânea parecem realizar exatamente uma tentativa de bloqueio, de atravancamento, de entulhamento ou de obstrução da abertura incondicional do contemporâneo, e enquanto outros querem garantir um “mais contemporâneo” atrelando o contemporâneo a alguns de seus efeitos, eu diria brevemente que o aspecto seletivo que mais me interessa é regido pelo princípio afirmativo (o único para mim capaz de ser usado neste caso) de serem escolhidos alguns dos efeitos que, ao trepidarem sobre o contemporâneo, mantêm a

imanência do contemporâneo, inacessível, trepidando. É preciso garantir a todo custo esse inacessível, esse inapropriável, do contemporâneo, de modo que, não recalcando seu desimpedimento, ele retorne a cada momento como exclamação capaz de gerar possibilidades e perguntas que preservem sua abertura. É preciso dizer que só lidamos com o contemporâneo de modo singular e que este modo singular pelo qual cada um de nós é movido pela ideia do contemporâneo, aceitando-a cada um à sua maneira tal qual foi por ela impelido, se manifesta nos efeitos que a cada momento conseguimos imaginar; mas, mesmo tendo produzido um efeito qualquer do contemporâneo, se nossa vida é lançada no contemporâneo, é porque preferimos permanecer na força maior que caracteriza o intervalo entre a ideia do contemporâneo e seus efeitos.

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RETOMANDO A QUESTÃO QUE DÁ TÍTULO AOS ENSAIOS ‘UM CRÍTICO, PARA QUE SERVE?” E “DOIS CRÍTICOS, PARA QUE SERVEM?”,3 O TEXTO CRÍTICO, PARA QUE (OU A QUEM) SERVE? E, EM ECO À BLANCHOT, PARA ONDE VAI OU EM QUE DIREÇÕES CAMINHA?

Os dois ensaios que vocês mencionam são certamente textos pares que abordam a questão por posições diametralmente opostas. O primeiro é um texto de combate a quem quer recusar em bloco tudo o que faz parte da poesia e da escrita contemporâneas; chega a ser lastimável que tal crítico (ou tais críticos), querendo abordar o contemporâneo, não se lembre(m) nem mesmo das palavras de Machado de Assis

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3. Ambos publicados em PUCHEU, Alberto. O amante da literatura. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010. Disponível em: http://www. albertopucheu.com.br/pdf/livros/ oamantedaliteratura.pdf


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4. Disponível em: http://www. albertopucheu.com.br/pdf/livros/ pelo_colorido.pdf

em “O ideal do crítico”: “A crítica, que, para não ter o trabalho de meditar e aprofundar, se limitasse a uma proscrição em massa, seria a crítica da destruição e do aniquilamento”. O segundo texto mencionado tem como ponto de partida críticos que realizam o contrário do(s) anterior(es); os casos abordados nele realizam o que poderia chamar de uma crítica filosófica e de uma crítica poética, ou de uma crítica poético-filosófica ou filosófico-poética, que garantem a inacessibilidade e a inapropriabilidade do texto abordado ao mesmo tempo em que, com isso, se asseguram igualmente enquanto texto criador, como discurso primeiro, sem que haja qualquer discurso rebocado por outro. Para mim, os dois textos estão ainda atrelados a um terceiro, intitulado “Literatura, para que serve?” (do livro Pelo colorido, para além do cinzento; a literatura e seus entornos interventivos)4, fazendo com que, de certo modo, crítica e literatura sejam experiências afins. Entendo o fazer crítico-teórico como um fazer literário. Poemas, diálogos, tratados, cartas, confissões, diários, ensaios, fragmentos, aforismos, seminários... foram modos, desde o princípio, a um só tempo de invenção teórica e poética. Não dá para separar essas dimensões. Nesse sentido, parece-me que tanto a crítica como a literatura, para ainda manter os dois termos, servem às intensidades da vida, constituindo-se como um caminho vital intensivo de modo a tornar vida real, de maneira a realizar vida. Para mim, há dois modos inultrapassáveis de se pensar a arte, a literatura, a poesia: um nos foi dado por

Nietzsche, em Nietzsche contra Wagner, ao se perguntar se “foi o ódio à vida ou o excesso de vida que aí se fez criativo”; outro, foi Bernardo Soares quem, no Livro do desassossego, nos ofereceu essa fórmula surpreendente: “Toda literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade direta”. Assim, penso que, como literatura, a crítica serve ao “excesso de vida que se [faz] criativo” e a “um esforço para tornar a vida real”.

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SOBRETUDO A PARTIR DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII, ASSISTIMOS A UMA SEGMENTAÇÃO DISCIPLINAR DOS DISCURSOS QUE VERSAM SOBRE AS ARTES OU QUE, DE ALGUMA FORMA, GIRAM EM TORNO DESTAS. DENTRE AS DIVERSAS NOMENCLATURAS E POSSIBILIDADES DE SE APREENDER TAIS LINHAS DISCURSIVAS, PODEMOS CITAR AQUELA SUGERIDA POR MÁRIO PERNIOLA, NA QUAL ENCONTRAMOS A “TEORIA DOS ARTISTAS” (REFLEXÕES DOS PRÓPRIOS CRIADORES ACERCA DAS OBRAS ARTÍSTICAS), A “ESTÉTICA” (SEGMENTO FILOSÓFICO STRICTO SENSU, DE ELABORAÇÃO CONCEITUAL) E O “PENSAMENTO POETANTE” (EXPERIMENTAÇÕES DE CARÁTER HÍBRIDO, TALVEZ PRÓXIMAS ÀQUELAS EMPREENDIDAS POR NIETZSCHE E BLANCHOT). LEVANDO EM CONTA OS LIMITES APONTADOS POR ESTE CENÁRIO, EM QUE MEDIDA OS MURAMENTOS, AS REPARTIÇÕES DISCIPLINARES OU QUERELAS METODOLÓGICAS AINDA ASSOMBRAM OS ESPAÇOS TANTO DA CRIAÇÃO LITERÁRIA COMO DA CRÍTICA?

Sem sombra de dúvidas, essa tripartição dos modos de se pensar a arte em “teoria dos artistas”, “estética” e

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“pensamento poetante” ajudam a flagrar maneiras de se pensar a arte que alargam nosso horizonte. Nela mesma entretanto tenho dificuldades de enquadrar alguns dos pensadores que mais me movem. Contrariamente à leitura hegemônica, não consigo pensar em Platão, por exemplo, em um filósofo, se entendermos aí uma experiência que não seja já poética. Não sei onde colocar Platão nessa tripartição. Schlegel tampouco, se lembrarmos que em sua invenção do fragmento, junto com Novalis, o levou a escrever, caracterizando o marco histórico de sua e de nossa época tal como ele pensava: “O que se pode fazer, enquanto filosofia e poesia estão separadas, está feito, perfeito e acabado. Portanto é tempo de unificar as duas”. Nietzsche tampouco; aos vinte e poucos anos, quase dois anos antes da primeira edição de O Nascimento da Tragédia, numa carta a Erwin Rohde, ele atesta que a miscigenação entre o filosófico e o artístico é o destino de seu pensamento, cuja plena realização depende apenas de uma questão de tempo: “No momento, ciência, arte e filosofia crescem, simultaneamente, em mim, de tal maneira que, aconteça o que acontecer, engendrarei, qualquer dia, um centauro”. Como em O Nascimento da Tragédia a ciência aparece submetida à arte, o centauro adquire, então, seu corpo biforme, monstruoso, instintivamente sábio, de filho híbrido gerado pela simultaneidade de arte e filosofia. Entre nós, a partir de Os sertões, pode ser traçada uma linha intensiva

de desguarnecimentos de fronteiras entre o poético e o ensaísmo, entre aquele e o teórico, entre estes e a ciência, evidenciada, aliás, numa carta a José Veríssimo, através da frase completamente afirmadora daquilo de que tal livro, de modo decisivo, foi, entre nós, abrindo o século XX, precursor: “o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano”. Lembremos ainda que Euclides ainda salientou a diferença de sua escrita como um “estilo algo bárbaro”, “destinado aos corações” e que “devem compreendê-lo admiravelmente os poetas”. A partir de tudo isso, e de muito mais que não foi dito aqui, penso que vivemos um momento de possibilidade de exploração de uma inespecificidade nas artes e na crítica. A amiga e crítica argentina Florencia Garramuño tem feito um trabalho de grande importância nessa direção. Bem como Roberto Corrêa dos Santos. Bem como todos que ao longo de décadas vêm trabalhando com o “campo expandido” ou “campo ampliado”, conceito de Rosalind Krauss. Além de poemas, poetas se abrem à realização de desenhos, vídeos etc. (vejam os exemplos de Victor Heringer, Marília Garcia, Ricardo Aleixo, Laura Erber e tantos outros). Eu mesmo tenho tentado, ainda que precariamente, além dos poemas e ensaios e dos interstícios possíveis entre eles, a fazer instalações e trabalhos em filmagens que sejam a um só tempo poéticos e teóricos (como é o caso, por exemplo,

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5. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=FIAlxyfKQMc 6. http://gabrielacapper.wix.com/ audiovisual

dos vídeos “Hermes, a tartaruga e a lira”5 e “Arranjo em busca de um paradigma para relação entre o crítico literário e o poeta”). Esses e outros trabalhos intermídia tenho feito em colaboração com Gabriela Capper,6 que, por sua vez, tem feito trabalhos audiovisuais a partir de poemas contemporâneos.

ALMEJA COMPROVAR A VERDADE OU FALSIDADE DE UMA HIPÓTESE, A LITERATURA E O PENSAMENTO TERIAM HORIZONTES OUTROS, JÁ QUE SERIAM EXPERIMENTOS QUE NÃO AMBICIONAM A VERDADE. ADMITINDO-SE ESSA PERSPECTIVA, QUAL SERIA, PARA VOCÊ, A RELEVÂNCIA DE TAIS CONSTRUTOS ERRANTES?

EM ALGUM LUGAR DE SEUS ESCRITOS, GIORGIO AGAMBEN DIZ QUE A LITERATURA E O PENSAMENTO TAMBÉM FAZEM EXPERIMENTOS, TAL COMO A CIÊNCIA. MAS, ENQUANTO ESTA ÚLTIMA

Vou responder em grego-brasileiro, dessa vez. Seguindo Platão, que, no Teeteto, havia escrito ser o espanto a origem da filosofia, Aristóteles, na Metafísica, faz uma colocação decisiva, que me alimenta em muito do que faço, sendo uma dessas colocações que jamais me abandonam: “Através do espanto, pois, tanto agora como desde a primeira vez, os homens começaram a filosofar [...]. Mas aquele que se espanta e se encontra sem caminhos [em aporia] reconhece sua ignorância. Por conseguinte, o filômito é, de certo modo, filósofo: pois o mito é composto do admirável, e com ele concorda e nele repousa”. Parece-me haver, pelo menos, três assertivas em tal passagem. A primeira, inteiramente platônica: a de que, para haver filosofia, tem de haver espanto, pois é através dele que, desde sua origem até sempre que ela existir, a cada vez, inevitavelmente, a filosofia se faz; na segunda, para a sorte de todos nós, indo além do Platão citado, uma breve explicação de quando o espanto se dá: o espanto se instaura quando, imersos na aporia, imersos no impasse, imersos na ausência de alternativas a serem seguidas, reconhecemos nossa ignorância, mergulhando no não saber que a caracteriza; por fim, é exatamente o compartilhar dessa

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NA ENTREVISTA INTITULADA ESSA ESTRANHA INSTITUIÇÃO CHAMADA LITERATURA, JACQUES DERRIDA DIZIA SONHAR COM UMA ESCRITURA QUE NÃO SERIA NEM FILOSOFIA, NEM LITERATURA, NEM MESMO UMA FORMA CONTAMINADA POR UMA NEM POR OUTRA, AINDA QUE MANTIVESSE A MEMÓRIA DA LITERATURA E DA FILOSOFIA EM SEU CORPO: A INDECIDIBILIDADE PERANTE OS GÊNEROS. COMO ESTE SONHO DO FILÓSOFO FRANCÊS, QUE DIZ DOS ATRAVESSAMENTOS E DAS PASSAGENS ENTRE OS VÁRIOS LUGARES DA LINGUAGEM, POVOA SUA OBRA?

Poderia dizer simplesmente que este é um dos sonhos mais fortes (ainda que não o único, claro) que “povoam”, em diversos níveis, o que venho tentando fazer. Fico feliz que vocês tenham observado isso. Nesse ponto, entretanto, acerca do “como” esses “atravessamentos” e “passagens” dos “vários lugares da linguagem” se dão em minha “obra”, preferiria mais escutar do que falar.

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experiência do impasse e da ignorância, o compartilhar, portanto, da aporia, que faz com que o filósofo e o poeta, de alguma maneira, sejam o mesmo. Impasse, ignorância, espanto, os nomes para dizer o impossível da poesia e da filosofia enquanto sua maior possibilidade. Os nomes para dizer a impotência da poesia e da filosofia, seu não saber o que dizer e dizer de dentro desse impasse, resguardando-o no que diz. Aristóteles conseguiu sintetizar e, criando, atualizar de modo absolutamente magnífico aí o que, de algum modo, atravessa a tradição grega. Logo após Tirésias revelar ser Édipo o assassino procurado pela morte de Laio, o coro, no verso 485, diz, em tradução de Trajano Vieira: “Aporia: dizer o quê?”. Diante do quê, a contragosto, se mostra, diante do mais inquietante ou do terrível, diante do insuportável, diante do inaceitável, diante do real, que não se pode com tranquilidade aceitar nem refutar, diante do que, apesar da necessidade, não se consegue dizer, ou só se o diz pela falta de o quê dizer, eis o coro, desarticulado em um impasse diante de uma vida, a vida do personagem Édipo. Se, como diria Derrida em Morada, a literatura, moderna por excelência, poderia ser pensada como “o nome sem a coisa”, a poesia, ao menos a grega, ao menos como a interpretada desde a interrogação do coro, coloca sua ênfase na aporia da coisa sem o nome. Na tragédia, o coro indica pensar que a experiência da vida do personagem Édipo é a que mais precisaria ser dita, mas é ela mesma que não permite que se encontre,

na abertura da passagem, uma saída para dizê-la, gerando o impasse afirmado, que oblitera qualquer possibilidade de encontrar palavras para dizê-la, apesar de ser nessa direção que ele – o coro – tenta ir. Para mim, é ainda essa aporia, essa ignorância e esse espanto que garantem a errância, a instabilidade, as experimentações que, como vocês disseram, “não ambicionam a verdade”, se por verdade se entende algo do âmbito de uma positividade garantida qualquer.

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NO VÍDEO “ARRANJO EM BUSCA DE UM PARADIGMA PARA A RELAÇÃO ENTRE O CRÍTICO LITERÁRIO E O POETA”, ASSISTIMOS SURFISTAS SE COLOCANDO EM SITUAÇÕES LIMITES, INSINUANDO-SE EM ONDAS GIGANTES, “EXCEDENDO OS LIMITES DA PRÓPRIA ONDA E DE SUAS REGRAS NÃO ESTABELECIDAS”.7 EM MOMENTO ALGUM, NO TEXTO QUE VOCÊ LÊ NO VÍDEO, SÃO MENCIONADOS O CRÍTICO LITERÁRIO E O POETA. NAS PRÁTICAS DE AMBOS, COMO NO SURF, SÃO MOVIMENTOS EM QUE CORPO E PENSAMENTO CONFLUEM EM PERFORMANCES POR TERRITÓRIOS SEMOVENTES (O MAR, A LINGUAGEM). SENDO BOXE, SURF, ENSAÍSMO, FILOSOFIA, CRÍTICA E POESIA ALGUMAS DAS ONDAS QUE VOCÊ PEGA, GOSTARÍAMOS QUE VOCÊ FALASSE DESSAS PARCERIAS E SUAS DOBRAS – POESSURFIA, FILOSSURFIA. COMO UMA COLOCA A OUTRA EM RISCO, EXPANDE E/OU REFLUI NA OUTRA? RETOMANDO O VÍDEO, QUEM PILOTA O JET SKI – CRÍTICO, ENSAÍSTA, FILÓSOFO OU POETA? SE O “OCEANO É O LIVRO DO SURFISTA, SUA PRANCHA UMA CANETA, E CADA ONDA UM POEMA”,8 SERIA A POESIA OS OCEANOS, O POETA UM DE SEUS HABITANTES E UMA FOLHA (OU UMA TELA) A PRANCHA NA QUAL DESLIZA PELAS CORRENTES SUBMARINAS?

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7. LINS, Daniel. Deleuze: o surfista da imanência. In.: LINS, Daniel; GIL, José. Nietzsche/ Deleuze: jogo e música. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 53.

8. LINS, Daniel. Deleuze: o surfista da imanência. In.: LINS, Daniel; GIL, José. Nietzsche/ Deleuze: jogo e música. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p.75.


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Gostaria de dizer que, como está já no título, esse vídeo a que vocês se referem é um arranjo, arranjo, no caso, textual e imagético. Chamo de arranjo escritos (ou no caso audiovisuais) em que não há nenhuma palavra minha. No caso, todas as frases foram colhidas das bocas de surfistas, em filmes, livros, depoimentos etc. São eles que falam e eu simplesmente escuto e arranjo. Os arranjos são então um gesto de escutar, selecionar, copiar, colar, ordenar, citar, deslocar, repetir de modo diferenciado em novo contexto, repetir, portanto, de modo diferenciado. Esse audiovisual é o primeiro que Gabriela Capper e eu fizemos, o primeiro em parceria e o primeiro para cada um de nós individualmente também. Depois, fizemos outros juntos, bem como ela fez vários sozinha e eu alguns por minha conta, mas com ela fazendo sempre a edição. Nesse a que vocês se referem, não filmamos nada; a lógica do arranjo do texto também se deu para as imagens, todas colhidas da internet. Na sonorização, sem que a Gabi soubesse, eu havia pensado em testar Ionization, de Edgar Varèse, enquanto ela, sem que eu soubesse, havia pensado em testar “Tundra’s song” (Prelude), da banda Yat Kha, formada em 1991, em Moscou, que une música tradicional russa e rock. Quando conversamos e descobrimos isso, na experimentação acabamos por chegar à sobreposição ou fusão das duas faixas e gostamos do resultado, que funde o arcaico e o contemporâneo em um ritmo que parece ficar à altura da intensidade das imagens dos surfistas pegando

aquelas ondas de até trinta metros, que é absurda. Vocês afirmam com razão que em nenhum momento do texto o poeta e o crítico literário são mencionados; em nenhum momento, eu simplesmente salientaria para quem não conhece o trabalho, senão no título, que, exatamente por isso, é minha única intervenção para além do próprio gesto de arranjar. A ideia era mesmo essa, a de criar pelo título e pelo arranjo um modo de falar da busca de uma relação entre o crítico e o poeta que viesse de um outro lugar em que se dá o encontro das duplas, o modo agir de dois que precisam trabalhar em conjunto, como os surfistas, como o crítico e o poeta. Vocês perguntam quem pilota o jet ski e um dos pontos de grande interesse para mim é que o lugar do piloto e o lugar do surfista são intercambiáveis, ambos são piloto e ambos são surfistas exímios. No caso, ser sufista significa ser piloto e vice-versa, aprender em ambos os movimentos a lidarem com as situações mais extremas possíveis, sob o risco da morte. No caso do tow in, não é quem no momento está na prancha que escolhe a onda que ele mesmo vai pegar, mas quem está no jet ski, que o vai salvar ao fim da onda. Um trabalho de parceria total, que me parece de fato paradigmático para se pensar a relação entre o poeta e o crítico, tal como tenho tentado pensar. Não gostaria de fazer uma interpretação do audiovisual justamente por ter escolhido em, pelos procedimentos utilizados, manter as possibilidades abertas. Mas gostaria de fato que esse modo estimulasse

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o pensamento de críticos e de poetas de nosso tempo; acho que tem algo extremamente necessário aí para a escrita do nosso tempo. Como vocês falam do boxe, assim como há a série dos poemas do surfe, há também uma série de poemas do boxe e, nela, um arranjo, só com frases de boxeadores. Em relação a última pergunta de vocês, serei breve. A navegação ocorre desde milênios, e eu acho incrível como os surfistas diminuíram drasticamente o tamanho daquilo que separa o homem do oceano nas condições mais adversas. Dos barcos e navios às pranchas a redução é drástica. Nas condições em que esses surfistas se colocam muitos navios naufragaram, partiram etc. E eles estão ali com apenas dois metros de prancha, ou um pouco mais, a separarem-nos da morte. A prancha me parece o verso, a linha, o caminho em movimento do poema a, com todos os riscos, cortar o informe abissal que quer deixar sua marca nela.

EXPANSIVAS E RENOVADAS DE CRÍTICA E DE LITERATURA; FESTAS E FESTIVAIS SE MULTIPLICAM, POVOADOS POR UM PÚBLICO CRESCENTE; SOME-SE A ISSO A AUTOPUBLICAÇÃO E O SURGIMENTO DE PEQUENAS EDITORAS COM PROPOSTAS OUSADAS. DIANTE DESSE CENÁRIO, ENSINAR E FAZER LITERATURA, HOJE (NO BRASIL, AINDA MAIS ESPECIFICAMENTE), PARA QUÊ?

DESDE A DÉCADA DE 1990 TEMOS VISTO INTERPRETAÇÕES MELANCÓLICAS, NECROLÓGICAS E TRÁGICAS, FOCADAS NAS CRISES, OBITUÁRIOS E PERIGOS QUE RONDAM O PENSAMENTO E A LITERATURA. SENTENCIOU-SE A MORTE DA CRÍTICA, FALA-SE NA MUSA FALIDA, NO OCASO DA LITERATURA BRASILEIRA, LAMENTA-SE A PERDA DA CENTRALIDADE, NO CAMPO DA CULTURA, DA LITERATURA E DA CRÍTICA LITERÁRIA PARA OS MEIOS AUDIOVISUAIS E DIGITAIS. NA CONTRAMÃO DESSES DISCURSOS, VEMOS ESFORÇOS ATENTOS ÀS POTÊNCIAS DA CIRCUNSTÂNCIA CONTEMPORÂNEA E SEUS DESDOBRAMENTOS EM CONCEPÇÕES

O pensamento do fim, tão presente na filosofia e no pensamento das artes desde ao menos Hegel no século XIX levou, junto com o pensamento da morte de Deus, de Nietzsche, a imensas aberturas no século XX. No que diz respeito à arte, Hegel e Nietzsche são pensadores com determinações antagônicas em muitos casos, provocando duas linhagens das mais fortes no século XX: de um lado, a da superação da arte pela filosofia, de outro, uma filosofia em seu devir artístico. Isso diz muito do século XX. Na literatura ou no cinema, as vanguardas anunciaram diversas mortes e fins. No primeiro filme de Guy Debord, está lá o fim do cinema, bem como ao longo de toda a trajetória de Godard o fim, a morte, o desaparecimento, o adeus... É uma constante nas vanguardas do século XX. Pensar o fim que não deixa de se anunciar sem, entretanto, chegar, senão por seu anúncio. Penso que esse fim se dá sempre em nome do fim de um específico ou de um próprio da arte em nome de um novo específico qualquer. No caso do cinema, parece-me significativo que os dois maiores cineastas do fim, os dois mencionados, foram os que levaram a montagem a seu extremo, radicalizando-a

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a tal ponto que fizeram filmes apenas com montagem, como se ela fosse o próprio do cinema. De algum modo, Godard leva ao extremo o pensamento do cinema russo dos anos 1920 (sobretudo Vertov, mas a ideia de montagem como fenômeno primordial do cinema também em Eisenstein e outros), fechando um ciclo da arte revolucionária ou utópica da revolução. Não tenho como não pensar que sempre que se fala em origens e fins trata-se de algum modo de um pensamento messiânico, religioso, determinado pelo gênesis e pelo apocalipse. Há todo um cinema desde então, penso, sobretudo, em Tarkóvski e Sokurov, que não aceitam mais nenhum próprio do cinema, que o cinema é impróprio, inespecífico, aberto ao que vem. Há todo um pensamento, como o de Deleuze, por exemplo, que se dá pelo meio. A literatura brasileira também se dá pelo meio, ela começa pelo meio de outras, Clarice começa um livro com reticências e por aí vai. As reticências indicam que algo já está aí, que se pega a onda já pelo meio, que se voa de asa delta já com a corrente de ar tendo começado, as reticências indicam igualmente toda a impossibilidade de dizer, um dizer que jamais se totaliza, lacunar, em falta, cesurado, rachado. É de dentro dessa racha, dessa fissura, dessa fissura pela racha, dessa fissura pela falta, dessa impotência do dizer que me parece estar a força hoje da literatura e da filosofia, em um mundo cheio de verdades totalizantes por todos os lados.

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A PAISAGEM ACRE ÁCIDA AZEDA DE MARCELO DOLABELA

Mário Alex Rosa*

Marcelo Dolabela há muitos anos vem publicando seus livros de poemas, CDs de poesia, artigos e realizando exposições de objetos e coleções de vinis de forma quase sempre “clandestina”. Além disso, sempre organizou jornais, revistas, eventos culturais na área artística de Belo Horizonte. Postura que nos parece radicalmente afinada com suas posições políticas, seja na cena literária, ou mesmo cultural. Quem teve acesso aos seus livros, como o ótimo livro-objeto Hai kaixa (1993), no formato de uma caixa de fósforos, contendo 100 haicais, poderá confirmar essa postura criteriosa do poeta e ativista. A confirmação dessa postura vem com a publicação de um novo livro acre ácido azedo (2015), assim sem pontuação. De formato modesto, independente e com tiragem de apenas 200 exemplares. Com um título acentuadamente negativo

* malexrosa@gmail.com Doutor em Literatura Brasileira pela USP, editor e poeta, autor dos livros ABC Futebol Clube e outros poemas, Ouro Preto e Via Férrea.

ao repetir três substantivos/adjetivos da mesma “família”, como se quisesse reforçar toda acidez que o leitor encontrará nos 50 poemas. Como se não bastasse o sentido individual de cada palavra, o poeta reafirma a repetição dos seus significados que se acentuam, ou melhor, multiplicam-se os seus sentidos. Portanto, esse excelente livro, requer um olhar mais vagaroso na sua acidez lírica. Quase em sua totalidade, os poemas são metrificados, decassílabos, predominando a forma do soneto com suas exigências estróficas e rimas internas, ainda que em um ou em outro a regra seja quebrada, mas sem dúvida é proposital, como, por exemplo, o desvio de um acento ou da pontuação. Aliás, esses desvios não só afirmam o domínio de Marcelo Dolabela sobre o assunto como também demonstram o rigor e o cuidado que dá aos seus sonetos. É importante dizer


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que o poeta ao usar formas fixas não está fora do contexto contemporâneo da poesia brasileira, que, atualmente, parece um vale tudo, como se o conhecido verso livre fosse a razão e a tônica do momento, e o poeta que utilize de outras formas é chamado de passadista. Ora, quase todos os poetas modernistas que utilizaram o verso livre, posteriormente mostraram o total domínio sobre a forma fixa, como fez Carlos Drummond, nos anos 1950, com o conhecido livro Claro Enigma. Mais recente, temos o poeta Paulo Henriques Britto que utiliza de formas canônicas (decassílabos, alexandrinos), porém com uma linguagem coloquial, digamos assim, para a fatura dos seus poemas. Seja em Dolabela ou Henriques Britto, o uso dessas formas definitivamente não é para mostrar virtuosismo técnico como se a expressão do poema ficasse apenas e somente na forma. Muito pelo contrário, o modo que os dois poetas constroem alguns dos seus sonetos, seja com humor, ironia ou lirismo crítico, faz com que a fatura do poema fique bem equacionada entre forma e sentido. acre ácido azedo é, sem dúvida, a confirmação substancial desse encontro raro do poeta com sua expressão e “admiração pela técnica do verso e pelos conceitos e temas – “recorrentes” – da e na poesia”, conforme escreve o poeta na contracapa do livro.

sempre, o poeta costuma visitar: a condição precária do sujeito na lírica. Desse ótimo livro, destaca-se a série de 17 poemas “Belo Horizonte, adeus” que aparece como uma alegoria da vida, por mais que que muitos dos poemas sugiram posturas mais negativas. Em “Belo Horizonte, adeus 2”, escreve: Adeus cidade. Adeus tempo. Adeus estrada. Adeus lar. Adeus tormenta. Adeus vento. Adeus batalha. Adeus bar.1

1. DOLABELA, p. 13.

No entanto, a cada “adeus” dos poemas mais parece se reafirmar a relação dialética que o poeta tem com a cidade, afinal o paradoxo se instala, como no poema brevíssimo “Autobiografia dialógica e definitiva” que diz: – ...? – ando exilado por aqui mesmo! 2

2. DOLABELA, p. 11 (itálicos do poeta).

Mas para além da técnica, os poemas de Dolabela constituem uma escrita que procura rever não só os seus procedimentos técnicos, mas o modo como certos temas, desde

Ora, o exílio aqui é também refletir a condição de sujeito lírico diante da cidade em que mesmo indiferente a sua presença, desde Baudelaire, na segunda metade do século XIX, o poeta sabe que na vida moderna ou pós-moderna a sua

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condição é um estar fora do lugar. No entanto, é dessa falta que o poeta constrói também a sua linguagem. Assim, se, por um lado, a cidade é motivo de adesão, de uma inspiração inquieta e que movimenta o poeta a concretizar formulações subjetivas, portanto de achatamento do sujeito diante do que lhe é indiferente. Por outro, esse mesmo sujeito parece saber que é dessa indiferença que ele vai desentranhar o que lhe falta, e que pode ser tudo. Nesse sentido, a lírica ácida de Dolabela ao expor a condição do sujeito na cidade reafirma, mais uma vez, como alguns poetas mantêm uma relação de adesão e negação ao falar do lugar onde nasceu ou passou a residir. A Belo Horizonte de Dolabela não é sua descrição, sua paisagem e seus contornos, muito menos uma crônica da cidade. O que se percebe é um sujeito lírico que se auto-avalia enquanto pensa sobre a cidade onde vive, como nesse soneto – “Belo Horizonte, adeus 15” –, cuja forma e sentido faz desse belo poema um guia de como se pode refletir sobre o processo de lapidação de uma escrita que em medida exata consegue condensar a difícil tarefa de não sentimentalizar a dor da partida:

quando o sol não tragou a escuridão, se caminha, sem luz, com imprecisão, nesse temer cair ou se perder. Ao meio-dia, existe outro escrever com rubras letras, sobre a vastidão, que faz de nós, pobres serpes, no chão, que faz da vida não querer viver. Não há regra, não há lei, é ilusão supor que, na dor, se pode escolher.3

3. DOLABELA, p. 26.

Com esse livro severo, tratado com rigor de quem diz “não abro mão do que cunho,/ minha mão nasce no punho”,4 só podemos celebrar esse poeta que revisa não apenas a sua trajetória histórica criadora, mas de um poeta que nesses mais de 30 anos militando na poesia e na cultura mineira, tem definitivamente o seu lugar no que já se fez de melhor nessa capital que ainda carece de reconhecer seus melhores poetas. acre ácido azedo é a confirmação de que ainda se pode fazer poesia com mãos firmes e sem badulaques. REFERÊNCIA

Existem outras formas de morrer, mesmo fora do alcance da visão, fora dos gestos e da imensidão corpórea de qualquer um, qualquer ser. Na noite, bem antes do amanhecer, EM  TESE

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DOLABELA, Marcelo. ACRE ÁCIDO AZEDO. Belo Horizonte: edição do autor, abr. 2015, 60 p.

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4. DOLABELA, p. 28.


NO ABISMO DAS CIDADES: HOSANA NA SARJETA, DE MARCELO MIRISOLA

Valdemar Valente Junior*

O encontro do escritor boêmio com uma assistente de enfermagem na noite de São Paulo é o ponto de partida de Hosana na sarjeta, de que MM, que dá pistas de ser o próprio autor, e Paulinha Denise, que recebe cinco entidades espirituais e toma remédios de tarja-preta, são os protagonistas. O escritor enxerga nesse encontro, a partir da atração que Paulinha Denise desperta nos homens, algo que lhe dá a plena segurança de tê-la. Por sua vez, o oposto de Paulinha Denise chama-se Ariela, manipuladora e mentirosa, que conhece todos os seus livros. Para MM, trair Paulinha Denise deve-se à cafonice de seu chapéu de poodle sobre a carapinha descolorida, o que contrasta com suas curvas esculturais. A representação dessas duas mulheres o faz optar pela estudante bissexual, com alto poder destrutivo, tão egoísta quanto

* valdemarvalente@gmail.com Doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ. Pós-Doutorado em Literatura Brasileira pela UERJ. Professor Assistente de Literatura Brasileira e Teoria Literária da Universidade Castelo Branco e da Faculdade Paraíso.

ele, o que se configura em elemento definido, a partir do somatório de desencontros que se converte em texto. O título do romance de Marcelo Mirisola inverte o termo bíblico, cujo sentido é “salva-nos, Senhor”, descrito em Mateus 21:8, para torná-lo sinônimo da derrocada dos que se expõem às zonas de perigo. Hosana na sarjeta evidencia a trajetória dos seres em queda, quando um tropeço representa uma descida ao limbo. No plano das relações, as feridas não cicatrizam, deixando sequelas que estigmatizam os enjeitados de todos os gêneros. Daí, a assistente de enfermagem ser rejeitada em nome da estudante. Em sua projeção de subliterato, MM não encontra lugar para a carapinha descolorida e o chapéu de poodle de Paulinha Denise, dando margem a que Ariela se imponha. No entanto, já estava quase decidido a assumir a gravidez da primeira e ir viver um cotidiano


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de apartamento financiado pela Caixa Econômica Federal e domingos de churrascos, cachorrinhos felpudos, Faustão e Galvão Bueno, quando o rebate falso põe fim a esses planos. A viagem à Serra da Canastra, em Minas Gerais, o faz rever a família, na luta diária de ordenhar a vida, assim como ele, que batalha em várias frentes no labirinto de São Paulo. Aí situa-se mais um dos abismos que separa o escritor de livros pornográficos da assistente de enfermagem, bem como do pai e do irmão, covers de Chitãozinho e Xororó, criadores de tilápias e tucunarés. A existência sem muitos mistérios representa o ponto divergente de que se afasta, a partir de sua procura pelo que lhe oferece a sensação de ter encontrado um diamante no garimpo da cidade, quando, na verdade, depara-se sempre com bijuterias. A euforia de viver em São Paulo sugere uma perspectiva de sucesso. Esse autoengano alimenta o doublé de escritor, corretor de seguros e vendedor de carros usados. A sensaboria de uma vida cujo único sentido consiste em sua absoluta falta de sentido concorre para que MM chafurde mais a fundo com Ariela em uma relação de enganos e mentiras, espécie de combustível à egolatria de que tanto necessita. Em seguida, a traição de Ariela com um subliterato com ares de escritor maldito reverbera como golpe baixo transmitido pelo Facebook. Essa Hosana na sarjeta, caída do céu cinzento de São Paulo, posta fotos ao lado do escritorzinho

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diluidor de sua obra. Assim, o diamante que lhe trouxera perde-se no vazio das coisas inúteis. No entanto, lança mão de seu plano B, ligando para Paulinha Denise, em quem diz ter pensado durante toda a viagem ao interior de Minas Gerais. A prova de seu arrependimento materializa-se em um diamante, pedra rara e sem jaça, como ela, presenteando-a para selar o reencontro. Desse modo, a narrativa situa seu foco sobre a precariedade das relações, a partir de personagens sem a possibilidade de superar a miséria moral que as aprisiona. MM se movimenta entre Paulinha Denise e Ariela de acordo com o que de melhor a situação lhe possa oferecer. Em seguida, aceita o convite do amigo Brecão, amante da socialite Maria Rita, para passarem, ele e Paulinha Denise, o réveillon no Rio de Janeiro, na cobertura duplex de seu sogro, um político corrupto. Após o desembarque no Aeroporto Santos Dumont, a bebedeira dos amigos, em uma adega em Copacabana, termina de madrugada, para espanto de Paulinha Denise, em pânico diante das cenas de agressão entre Brecão e Maria Rita. Nas saídas à Livraria Argumento, no Leblon, e ao Bar Bip-bip, em Copacabana, Paulinha Denise aproxima-se de Brecão, dizendo-lhe o mesmo que dissera ao detetive Mauro Picanha, também amigo de MM, ou seja, que cada um, Mauro Picanha e Brecão, além de MM, incorporam entidades, sendo que, no caso de Brecão, tratam-se de representações importantes na hierarquia dos orixás. VALENTE JUNIOR. No abismo das cidades: Hosana na sarjeta […] [resenha]

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De volta à cobertura, Paulinha Denise resolve sair em trajes de prostituta, atravessando a Avenida Princesa Isabel em direção à Praça do Lido e ao calçadão da Avenida Atlântica. Ao retornar, às seis horas da manhã, completamente embriagada, desfia um rosário de palavrões, o que culmina no afastamento do casal e em sua volta para São Paulo. Diante disso, Hosana na sarjeta traz à narrativa contemporânea situações levadas ao extremo, à linha limítrofe das relações, problematizando-as sem que a isso se imponha qualquer pieguice ou compaixão. À ideia de um mundo ordenado impõe-se o caos de tudo o que foge ao controle. Entre a vida e sua imitação, a narrativa promove aproximações e fugas denotando a insegurança com que ambas se efetivam nas formas desviantes de comportamento. A transgressão e as atitudes espúrias são as regras que aprofundam abismos ante situações para as quais não se conjectura qualquer solução. As personagens de Hosana na sarjeta não se esforçam no sentido de poder sair de onde estão, na medida em que não há perdão para os que se desviam. MM, Paulinha Denise, Ariela, Brecão e Maria Rita dirigem-se ao fim da linha, em uma viagem sem paradas e sem direito à passagem de volta. A narrativa afirma-se em seu aspecto destrutivo como elemento que acompanha MM em sua carreira de escritor, como se a coleção de desfazimentos que cultiva lhe fornecesse argumentos aos livros que escreve. Ao retornar a EM  TESE

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São Paulo, em plena Via Dutra, recebe um telefonema de Francisnight, o valete do forró, seu parceiro em “Forró do Nerd” e amigo de Paulinha Denise, dando conta de seu desaparecimento. Em meio a uma série de hipóteses, o corpo de Paulinha Denise é encontrado em uma casa de praia no litoral paulista. Ingerira uma superdose de barbitúricos e relaxantes e tivera uma parada cardíaca. Ao lado do corpo, cachaça, velas e doces, além de um bilhete em que acusa MM de ser incapaz e amar alguém nessa vida. Dias mais tarde, uma caixinha de perfume lhe chega às suas mãos com o diamante devolvido. Mas a vida prossegue, e o “Forró do Nerd” estoura nas paradas de sucesso sem que Francisnight lhe desse crédito na parceria. Com a morte de Paulinha Denise, MM reaproxima-se de Ariela, a sacerdotisa do vício, que trai o marido que a espanca. Mas a sentença de uma das entidades espirituais acaba por se cumprir, resultando na impotência sexual e nas dores que dele se apoderam, o que o faz se comprazer da falta de sorte na lembrança de Paulinha Denise. Assim, o acúmulo de fracassos faz do escritor pornográfico alguém que vive de amigo em amigo, pingente de um vagão que apita em cada curva, sob o risco de cair sobre os trilhos e ser esmagado. Na Serra da Canastra, local por ele descoberto, para onde a família se transfere, a companhia do irmão e do pai passa a ser o último refúgio de quem nunca saberá o que é o amor.

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Daí observa no Pesque-Pague as tilápias e os tucunarés, sendo o último um predador insaciável que, como ele próprio, a tudo devora. Na vida como no Pesque-Pague, as disputas são sempre injustas e os perdedores acabam engolidos, como fora Paulinha Denise. Tilápias e tucunarés são como amantes ao fim das histórias de amor. REFERÊNCIA MIRISOLA, Marcelo. Hosana na sarjeta. 1ª ed. São Paulo: Editora 34, 2014, 144 p.

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PINTURA A FORA Leonora Weissmann*

* Atua profissionalmente como artista plástica, designer e cantora. É graduada em Pintura e Gravura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, onde também possui título de Mestre em Artes. www.leonoraweissmann.org

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Boi da cara preta Acrílica, vinílica e colagem sobre tela 180x130cm 2014

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Onde está você? Acrílica, vinílica e colagem sobre tela 150x200cm 2010

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Isadora e o vulcão Acrílica e colagem sobre tela 100x150cm 2014

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Medo de Ser Acrílica, vinílica e colagem sobre tela 80x100cm 2012

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WEISSMANN. Pintura a fora

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Pintura a fora Acrílica, vinílica e colagem sobre tela 100x200cm 2012

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WEISSMANN. Pintura a fora

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Toca Acrílica, vinílica e colagem sobre tela 80x100cm 2012

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WEISSMANN. Pintura a fora

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PAISAGENS URBANAS QUASE SEM PAISAGENS1 Alberto Pucheu*

* Nascido em 1966, Alberto Pucheu é poeta, ensaísta e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). www.albertopucheu.com.br

1. As fotografias apresentadas fazem parte da série “Paisagens urbanas quase sem paisagens”, que pode ser vista na íntegra em: <http://www.albertopucheu.com. br/highslide-4.1.13/examples/ paisagensurbanas.html>.

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PUCHEU. Paisagens urbanas quase sem paisagens

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PUCHEU. Paisagens urbanas quase sem paisagens

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PUCHEU. Paisagens urbanas quase sem paisagens

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PUCHEU. Paisagens urbanas quase sem paisagens

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FOGLIA E PAESAGGIO DEL CERVELLO Giuseppe Penone

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Paesaggio del cervello, 1990 Ampliação fotográfica sobre acetato Marian Goodman Gallery Foto ©Michael Goodman

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PENONE. Foglia e Paesaggio del cervello

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Paesaggio del cervello, 1990 Ampliação fotográfica sobre acetato Marian Goodman Gallery Foto ©Michael Goodman

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PENONE. Foglia e Paesaggio del cervello

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Foglia, 1990 Terra de Siena sobre TNT 200 x 300 cm Coleção Musée de Grenoble (FR) Foto © Musée de Grenoble

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PENONE. Foglia e Paesaggio del cervello

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Foglia, 1990 Terra de Siena sobre TNT 300 x 200 cm Coleção Musée de Grenoble (FR) Foto © Musée de Grenoble

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PENONE. Foglia e Paesaggio del cervello

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Foglia, 1990 Terra de Siena sobre TNT 200 x 300 cm Coleção Musée de Grenoble (FR) Foto © Gérard Rondeau

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PENONE. Foglia e Paesaggio del cervello

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Foglia, 1990 Terra de Siena sobre TNT 300 x 200 cm Coleção Musée de Grenoble (FR) Foto © Gérard Rondeau

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PENONE. Foglia e Paesaggio del cervello

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Paesaggio del cervello, 1997 Foto © Arquivo Penone

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PENONE. Foglia e Paesaggio del cervello

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Paesaggio del cervello, 1997 Foto © Arquivo Penone

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PENONE. Foglia e Paesaggio del cervello

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*

1. l a volontà di un rapporto paritario tra la mia persona e le cose. PENONE apud BAILLY, 2008, p. 64. TN.

Giuseppe Penone vive e trabalha em Turim, onde realizou suas primeiras mostras a partir de 1968, juntamente com outros componentes do grupo Arte Povera. Desde então, o que o move é a “vontade de uma relação paritária entre a [sua] pessoa e as coisas”1 e toda a sua produção é conduzida pela noção de que homem e natureza são indistintos. Penone explora a cultura inerente à natureza, em absoluto detrimento das categorias criadas pelo homem para, por exemplo, dividir os animais, vegetais e minerais em reinos. De tal forma emerge, tanto na plástica de suas esculturas quanto em seus desenhos, a imbricação recíproca que existe entre os seres e os elementos que compõem o cosmo. Talvez possamos afirmar que todos os trabalhos do artista trazem a poética do devir-outro: seja o devir-outro de si no tempo, como, por exemplo, em sua obra Cedro di Versailles, 2000-03, ou devir a forma e a imagem de outra matéria, como nos trabalhos aqui apresentados, Foglia e Paesaggio del cervello, ambos realizados a partir de 1990.

2. G iuseppe Penone. Scritti 1968 - 2008. Bologna: MAMbo - Istituzione Galleria d’Arte Moderna, IKON Gallery, 2009.

O conjunto da obra de Giuseppe Penone abrange, além de esculturas, desenhos e ações performáticas, também a produção de textos, que foram compilados na edição Scritti 1968-2008 2. Cada escrito seu poderia ser pensado como um pensamento-gravura, ou seja, uma gravação, uma inscrição ou a materialização de seus pensamentos: EM  TESE

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Ocorre-me escrever algo porque a obra nasce sempre de uma reflexão. A minha é, portanto, uma nota que endereça a leitura. Às vezes procuro escrever as razões pelas quais realizo um trabalho, não com a intenção de fornecer uma explicação, mas criando uma associação de ideias e de imagens que dão origem a elementos para meditar, desenvolver e sintonizar o próprio trabalho [...]. A palavra é usada por mim como parte de uma reflexão que acaba assumindo um valor diferente e autônomo. Nasce próxima da obra, às vezes sobre um trabalho já realizado, às vezes que o precede em muitos anos. [...]3

O ato de transmutar, que faz com que o pensamento se corporifique em seus escritos, esse devir-texto do pensamento, tem lugar também, de certa forma, tanto em Foglia quanto em Paesaggio del cervello, em concordância com a reflexão do artista, escrita em 1989: A caixa craniana adapta-se à forma que protege. O osso do crânio é matéria plástica para o cérebro que o constitui, adapta-o à sua forma. O cérebro adere ao crânio sobre o qual registra as suas pulsões, mas não é capaz de ler a superfície que toca. Para compreender e ter consciência da forma da superfície interna do crânio, é preciso tocá-la com as mãos, vê-la com os olhos. PENONE. Foglia e Paesaggio del cervello

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3. M i capita di scrivere qualcosa perché l’opera nasce sempre da una riflessione. [...] A volte cerco di scrivere le ragioni per le quali realizzo un lavoro, non con intenzione di fornire elementi per meditare, sviluppare e mettere meglio a punto il lavoro stesso. PENONE apud WATKINS, 2009, p. 331.


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4. La scatola cranica si adatta alla forma che protegge. L’osso del cranio è materia plastica per il cervello che lo costituisce, lo adatta alla sua forma. Il cervello aderisce al cranio, sul quale registra le sue pulsioni ma non è in grado di leggere la superficie che tocca. Per capire ed avere coscienza della forma della superficie interna del cranio occorre toccarla con le mani, vederla con gli occhi. È un vero paesaggio, con avvallamenti, letti di fiumi, montagne, pianori, un rilievo simile alla crosta terrestre. Il paesaggio che ci circonda lo possediamo all’interno di questa scatola di protezione. È il paesaggio all’interno del quale pensiamo. È il paesaggio che ci avvolge PENONE, 2009, p. TN.

É uma verdadeira paisagem, com depressões, leitos de rios, montanhas, planícies, um relevo similar à crosta terrestre. A paisagem que nos circunda, a possuímos dentro desta caixa de proteção. É a paisagem dentro da qual pensamos. É a paisagem que nos envolve. Uma paisagem a ser percorrida, sentida, conhecida com o tato, a ser desenhada ponto por ponto.4

O pensamento, um ano depois de tomar corpo neste escrito, corporifica-se nas obras Foglia e Paesaggio del cervello, que são, por sua vez, corpos outros da paisagem do mundo, como revela a disposição de um galho sobre um de seus desenhos. Estas obras exibem, como antecipava o próprio artista, que temos gravada dentro de nós, no lugar em que as imagens se formam – em nosso cérebro – a paisagem do mundo. Para mostrá-lo, ele dispôs bandagens sobre a superfície interna de um crânio, lançando mão do frottage, ou seja, esfregando sobre elas determinados tipos de pigmento, de modo a decalcar o relevo da superfície sobre a qual se esfrega. O que Penone obteve pelo frottage do crânio são, por fim, modos de devir-outro: as imagens que vemos em Foglia e em Paesaggio del cervello, além de trazerem a paisagem do mundo corporificada em nós, são também nosso devir-paisagem, nossa topografia craniana que, por sua vez, formou-se a partir de um tipo especial de frottage, o contato travado entre cérebro e crânio. Por Marina Câmara EM  TESE

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PENONE. Foglia e Paesaggio del cervello

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ARRANJO EM BUSCA DE UM PARADIGMA PARA A RELAÇÃO ENTRE O CRÍTICO LITERÁRIO E O POETA (2014) - 7:44 Alberto Pucheu (texto)* Gabriela Capper (arranjo audiovisual)

* Nascido em 1966, Alberto Pucheu é poeta, ensaísta e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). www.albertopucheu.com.br ** Nascida em 1968, Gabriela Capper realiza vídeos-poemas e é professora de Música no Colégio Universitário da Universidade Federal Fluminense. gabrielacapper.wix.com/audiovisual

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PUCHEU. Arranjo em busca de um paradigma […]

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POEMAS DE ALBERTO PUCHEU Alberto Pucheu*

* Nascido em 1966, Alberto Pucheu é poeta, ensaísta e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). www.albertopucheu.com.br

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1. P UCHEU, Alberto. A fronteira desguarnecida; Poesia Reunida 1993-2007, p.24.

EM MAR ABERTO, Nº 11

GENEALOGIA2

um leitor de distâncias a respiração azul do mar o vento na superfície é pouco mas as linhas brancas das ondas arrastam, da areia, seu nome, seu sobrenome, para outras paragens, difíceis, mas possíveis de navegar: onde tudo é fundo, soletrando corrente em deriva, sem faltar nem mesmo sulcos da margem na amplidão

No princípio eram as letras Desarrumadas Quando nem alfabeto havia De sentido apenas a própria matéria letral Os arranjos faziam-se Por entre xsc vhal deim deu no que deu: num verbo Depois noutro e noutros A partir daí tudo ficou mais fácil As letras aprenderam a movimentar-se De seus encontros nasceram coisas como mar dobradiçasdoasfalto homens sol roldanas-do-engano chaves-de-fenda (estas últimas serviam pra desmontar os encaixes – com elas é que se descobriu que dentro de todas as coisas são letras que existem) Tempo virá em que os arranjos voltarão a lembrar estas sintaxes E traçarão outras Estrangeiras Começando sempre por onde nunca se sabe

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PUCHEU. Poemas de Alberto Pucheu

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2. P UCHEU, Alberto. A fronteira desguarnecida; Poesia Reunida 1993-2007, p.33.

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3. P UCHEU, Alberto. A fronteira desguarnecida; Poesia Reunida 1993-2007, p.53.

A FRONTEIRA DESGUARNECIDA3

EMILY DICKINSON4

Pela primeira vez, uma perna quer sair por minha boca, espremida. Um braço quer sair por minha boca. E o que ainda há de genitália, e o que ainda há de intestino, e o que ainda... Quer sair por minha boca. Uma parede, uma hélice, um vidro de janela querem sair por minha boca. Um carro acelerado, um pedaço de mar, um fuzil. Sob o testemunho pânico de alguns, uma desordem no corpo e nas coisas, uma fronteira desguarnecida entre a pessoa e a cidade.

Colocar a pergunta certa – o mais difícil. Os poetas, por exemplo, perguntando as opiniões de outros – são bons, os meus poemas?... Custa-se muito a colocar a pergunta certa. Porque nunca a escutamos antes de sua criação. Às vezes, entretanto, ela é colocada, deixando-nos percebê-la: Emily Dickinson indaga: Are you too deeply occupied to say if my Verse is alive? Na exclamação que a antecede, a grandeza da pergunta – de quem está muito mais próxima da resposta do que a pessoa a quem a pergunta se endereça: o estar vivo como régua, desmesurada, para medir o verso. Na pergunta, Emily manifesta a experiência que conduz o fazer de sua poesia: vida – o único parâmetro para avaliar o poético.

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PUCHEU. Poemas de Alberto Pucheu

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4. P UCHEU, Alberto. A fronteira desguarnecida; Poesia Reunida 1993-2007, p.208.


belo horizonte ISSN: 1982-0739

IMAGENS DESTE NÚMERO Leonora Weissman. www.leonoraweissmann.org

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3 1 2 N.

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Apoio PÓS-LIT CAPES PROEX /UFMG


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