Aletria, v. 23, n. 2 (2013)

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revista de estudos de literatura

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor : Clélio Campolina Diniz; V ice-R eitor a: Rocksane de Carvalho Norton FACULDADE DE LETRAS Diretor: Luiz Francisco Dias; Vice-Diretora: Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet CONSELHO EDITORIAL Ana Lúcia Almeida Gazzola, David William Forster, Eneida Maria de Souza, Francisco Topa, Jacyntho José Lins Brandão, Letícia Malard, Luciana Romeri, Luiz Fernando Valente, Marisa Lajolo, Rui Mourão e Silviano Santiago C O L E G I A D O DO PROGRAMA D E P Ó S -G R A D U A Ç Ã O E M E S T U D O S L I T E R Á R I O S Coordenadora: Graciela Ines Ravetti de Gomez; Subcoordenadora: Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa; Docentes: Maria Cecília Bruzzi Boechat, Teodoro Rennó Assunção, Julio Cesar Jeha, Lyslei de Souza Nascimento, Sabrina Sedlmayer Pinto (titulares); Constância Lima Duarte, Antônio Orlando de Oliveira Dourado Lopes, José de Paiva dos Santos, Elisa Maria Amorim Vieira e Georg Otte (suplentes); Discentes: Alex Alves Fogal, Paulo Roberto Barreto Caetano (titulares), Alex Sander Luiz Campos e Gustavo Henrique Montes Frade (suplentes); Secretária: Letícia Magalhães Munaier Teixeira. EDITOR Sabrina Sedlmayer O RGANIZAÇÃO Elcio Loureiro Cornelsen (UFMG) Thomas LaBorie Burns (UFMG) Volker Karl Lothar Jaeckel (UFMG) CAPA Foto da capa: Arlington National Cemetery, em Arlington County, Virginia (USA); autoria de Marisa Vieira Cornelsen Foto da contracapa: The War Children’s Victims Monument, em Lídice (República Tcheca); autoria de Luiz Gustavo Leitão Vieira (membro pesquisador do NEGUE) REVISÃO

Pi Laboratório Editorial F ORMATAÇÃO Marco Antônio Durães e Alda Lopes P ROJETO G RÁFICO Paulo de Andrade e Sérgio Antônio Silva T IRAGEM 200 exemplares I MPRESSÃO Imprensa Universitária da UFMG


ISSN: 1679-3749

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n. 2

MAIO/AGO 2013

MEMÓRIAS DE GUERRA


© 2013, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (FALE/UFMG). Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Os conceitos emitidos em artigos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Ficha catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias da Faculdade de Letras da UFMG

ALETRIA: revista de estudos de literatura, v. 6, 1998/99 - Belo Horizonte: POSLIT, Faculdade de Letras da UFMG. il.; 28 cm. Histórico: Continuação de: Revista de Estudos da Literatura, v. 1-5, 19931997. Resumos em português e em inglês. Periodicidade quadrimestral. ISSN: 1679-3749 1. Literatura – História e crítica. 2. Literatura – Estudo e ensino. 3. Poesia brasileira – Séc. XX – História e crítica. 4. Teatro (Literatura) – História e crítica. 5. Cinema e literatura. 6. Cultura. 7. Alteridade. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. CDD: 809

POSLIT/FALE/UFMG Av. Antônio Carlos, 6627 – Pampulha 31270-901 Belo Horizonte, MG – Brasil Tel.: (31) 3409-5112 Fax: (31) 3409-5490 www.letras.ufmg.br/poslit e-mail: poslit@letras.ufmg.br


sumário APRESENTAÇÃO Elcio Cornelsen Tom Burns Volker Jaeckel

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DOSSIÊ SESSÃO 1. A ROTINA

PRIMEIRA GUERRA MODERNA NA LITERATURA

DE GUERRA E ENTOMOLOGIA : OS DIÁRIOS DE GUERRA

DE ERNST JÜNGER E TEMPESTADES DE AÇO

WAR

ROUTINE AND ENTOMOLOGY : ERNST JÜNGER ’S WAR DIARIES

AND TEMPESTS OF STEEL

Helmut Galle

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

SESSÃO 2. MEMÓRIAS A

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15

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37

E IMAGENS DE GUERRAS CIVIS

ESCRITA FEMININA DO TRAUMA DE GUERRA E A RE- SISTÊNCIA

DO REAL EM A CASA DAS SETE MULHERES, DE LETICIA WIERZCHOWSKI

WOMAN ’S

WRITING OF WAR TRAUMA AND THE RESISTANCE OF THE REAL

IN LETÍCIA WIERZCHOWSKI ’ S A CASA DAS SETE MULHERES

Denise Borille de Abreu CRIATURAS

. . . . . . . . . . . . . . . .

DE LA GUERRA. MEMORIAS TRAUMÁTICAS DE LA

GUERRA CIVIL EN EL CINE ESPAÑOL CONTEMPORÁNEO

CHILDREN

OF THE WAR . TRAUMATIC MEMORIES OF THE CIVIL WAR

ON SPANISH CONTEMPORARY CINEMA

Manuel Nicolás Messeguer THE

. . . . . . . . . . . . . . . .

47

TET OFFENSIVE AND THE BATTLE OF KHE SANH AS WATERSHED

OF THE VIETNAM WAR: MICHAEL HERR ’S DISPATCHES

A

OFENSIVA TET E A BATALHA DE KHE SAHN COMO DIVISOR

DE ÁGUAS DA GUERRA DO VIETNÃ : DISPATCHES , DE MICHAEL HERR

Luis Carlos Rocha

. . . . . . . . . . . . . . . . . .

.

65


DA

FILOLOGIA DA GUERRA À DIVISÃO DO

“EU”

FEMININO

EM AS DUAS SOMBRAS DO RIO, DE JOÃO PAULO BORGES COELHO

FROM

PHILOLOGY OF THE WAR TO THE FEMININE AMBIVALENCE

IN AS DUAS SOMBRAS DO RIO , BY JOÃO PAULO BORGES COELHO

Nazir Ahmed Can

. . . . . . . . . . . . . . . . . .

SESSÃO 3. SEGUNDA

GUERRA MUNDIAL: MEMÓRIAS DA CATÁSTROFE

GUERRA

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77

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93

. . . . . . . . . . . . . . .

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109

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119

AÉREA NA LITERATURA ALEMÃ E O CASO DE VERGELTUNG,

DE GERT LEDIG

AERIAL

WARFARE IN GERMAN LITERATURE AND THE CASE

OF GERT LEDIG ’ S VERGELTUNG

Valéria Sabrina Pereira O

SILÊNCIO DO ANJO

THE

SILENCE OF THE ANGEL

Ana Maria Portugal Saliba THOMAS THOMAS

BERNHARD E WALTER BENJAMIN : POR UMA ORIGEM REDENTORA BERNHARD AND WALTER BENJAMIN : FOR A REDEMPTIVE ORIGIN

Helano Jader Ribeiro E

. . . . . . . . . . . . . . . . .

UMA ROSA SE ABRE: A GUERRA E A FLOR NA POESIA DE DRUMMOND

AND

A ROSE BLOOMS: WAR AND THE FLOWER IN DRUMMOND ’S POETRY

Ivana Ferrante Rebello Valéria Daiane Soares Rodrigues . . . . O

. . . . . . . . . . .

129

DIÁRIO CINEMATOGRÁFICO DE CESARE ZAVATTINI :

MEMÓRIAS DA GUERRA E DEVER DE NÃO ESQUECER

EL

DIARIO CINEMATOGRÁFICO DE CESARE ZAVATTINI :

MEMORIAS DE LA GUERRA Y DEBER DE NO OLVIDAR

Paula Regina Siega HANNA HANNA

. . . . . . . . . . . . . . . . . .

137

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167

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175

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185

KRALL E OS CAMINHOS TORTOS DA MEMÓRIA E DA IDENTIDADE KRALL AND THE CROOKED WAYS OF MEMORY AND IDENTITY

Piotr Kilanowski

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SESSÃO 4. IMAGENS O

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MEMORIALISTAS PÓS-1945

CHOQUE DESENCADEIA MEMÓRIAS DE GUERRA:

STÖRFALL, DE CHRISTA WOLF

M EMORIES

OF WAR DUE TO SHOCK: STÖRFALL , BY CHRISTA WOLF

Rosani Umbach AMÓS

. . . . . . . . . . . . . . . . . . .

OZ E FIMA : POLÍTICA E LITERATURA

AMÓS OZ AND AND / WITHOUT

RESSENTIMENTO

RESENTMENT

Maria Clara Castellões Oliveira POR

(S ) E ( M)

THE THIRD CONDITION : POLITICS AND LITERATURE

. . . . . . . . . . . . . .

AUSENTE, POR VENCIDO. CONTAR MALVINAS DESDE LA FICCIÓN

ABSENT

AND DEFEATED . NARRATING THE FALKLAND ISLANDS FROM FICTION

Luz Celestina Souto

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RESENHAS RIBEIRO, MARGARIDA CALAFATE ; VECCHI, ROBERTO (ORG.). ANTOLOGIA DA MEMÓRIA POÉTICA DA GUERRA COLONIAL. PORTO: EDIÇÕES AFRONTAMENTO, 2011. 646 P. Jaime Ginzburg . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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RIBEIRO, MARGARIDA CALAFATE ; VECCHI, ROBERTO (ORG.). ANTOLOGIA DA MEMÓRIA POÉTICA DA GUERRA COLONIAL. PORTO: EDIÇÕES AFRONTAMENTO, 2011. 646 P. Sabrina Sedlmayer . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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TRANCHE, RAFAEL R.; SÁNCHEZ-BIOSCA, VICENTE. EL PASADO ES PROPAGANDA Y CINE DEL BANDO NACIONAL EN LA GUERRA CIVIL. MADRID: CÁTEDRA/ FILMOTECA ESPAÑOLA, 2011. 519 P . E DVD. Volker Jaeckel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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SELLARS, SIMON; O’HARA, DAN ( ORG.). E XTREME METAPHORS: SELECTED INTERVIEWS WITH J. G. BALLARD, 1967-2008. LONDON: FOURTH ESTATE, 2012. 510 P . Pedro Groppo . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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EL DESTINO.



apresentação

A experiência da guerra é inesquecível para quem dela participa, soldados ou civis. Por que, afinal de contas, contar estórias de guerra se a memória é, frequentemente, tão dolorosa? Para os civis, testemunhas ou historiadores, a guerra exige ser lembrada, mesmo que seja somente por sua condição de atividade humana duradoura que pode sempre nos reiterar seu alto custo em vidas e sofrimento. A necessidade de um registro honesto é um imperativo para podermos tentar compreender quais guerras devem ser enfrentadas e, nesse caso, se os objetivos são dignos do custo, uma vez que há sempre uma discrepância entre um e outro: a violência organizada, em larga escala, mesmo de guerras limitadas, tende a fugir ao controle. Para os soldados, há sempre o desejo completamente humano de justificar as ações para si mesmo e para os outros. Para o combatente, a guerra é, acima de tudo, uma provação pessoal, da qual sempre se deseja fornecer um relato de seu comportamento e do de seus companheiros e superiores. Veteranos contam estórias similares: pessoais, testemunhais, de amadurecimento forçado e mesmo aquilo que tem sido chamado de “estórias de conversão”. A questão da verdade é primordial em tais narrativas. Com mais ou menos sofisticação, a alegação de verossimilhança pode ser reduzida a uma elaboração formal: “Eu estava lá; era desse jeito; isso não é inventado”. No entanto, as memórias de guerra, seja relatos factuais, seja ficcionais, de soldados ou civis, devem estabelecer sua autoridade não por meio de aspectos extratextuais, mas pelo poder que sua linguagem possui para fazer o leitor consentir com a realidade evocada. O estudo da literatura de guerra tem sido, com raras exceções, geralmente negligenciado no Brasil, embora haja sinais de renovado interesse nesse tema em outras partes do mundo. O Núcleo de Estudos de Guerra e Literatura (NEGUE), que conta com professores, pesquisadores e alunos da Universidade Federal de Minas Gerais, foi fundado em 2009, no intuito de conduzir, aprofundar e divulgar, sistematicamente, os estudos sobre guerra e literatura. Com esse propósito, publicamos, em 2010, a coletânea de ensaios Literatura e guerra (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010), à qual se seguiu a publicação da coletânea de ensaios Revisiting 20th Century Wars (Stuttgart: Ibidem-Verlag, 2012). Nesse sentido, a organização do dossiê “Memórias de Guerra” para a revista Aletria, composto por artigos que contemplam diversos enfoques sobre o registro da experiência de guerra na literatura, nos mais variados conflitos bélicos, representa mais um passo no processo de consolidação de atividades do NEGUE.


A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) começou com o assassinato do arquiduque da Áustria, Francisco Ferdinando, em Sarajevo, em junho de 1914. Sem dúvida, tal acontecimento alterou não só a história das guerras, mas também a própria escritura da guerra. Desde os tempos remotos, a guerra foi apresentada em textos ficcionais como um ato de heroísmo e como um espaço em que homens destemidos lutavam, corpo a corpo, uns contra os outros, mirando nos olhos do inimigo. Com as novas armas e seu poder de destruição, o inimigo se tornou invisível: submarinos, tanques, minas, gás, artilharia de longo alcance e aviões fizeram com que a Primeira Guerra Mundial se transformasse em paradigma da guerra moderna, distinguindo-se de todos os conflitos bélicos anteriores. Pela primeira vez, encontramos textos literários antiguerra, escritos por combatentes que nos relatam os horrores das batalhas, o sofrimento e o medo dos soldados nas trincheiras do front. Diante do significado dessa terrível guerra, cuja eclosão completará, em agosto de 2014, cem anos, decidimos abrir o dossiê com a sessão “A primeira guerra moderna na literatura”, elegendo o ensaio “Rotina de guerra e entomologia: os Diários de guerra de Ernst Jünger e Tempestades de aço”, de Helmut Galle, que propõe um estudo crítico e atualizado de uma das principais obras sobre a Primeira Guerra Mundial, na qual Jünger relata suas vivências como combatente, tendo por base seus inúmeros diários de guerra escritos durante o conflito. Por sua vez, a segunda sessão do dossiê – “Memórias e imagens de guerras civis” – reúne ensaios que contemplam conflitos bélicos fratricidas, em diversas épocas e em quatro continentes diferentes. A referida sessão se inicia com o ensaio “A escrita feminina do trauma de guerra e a re-sistência do real em A casa das sete mulheres, de Leticia Wierzchowski”, de Denise Borille de Abreu, que propõe uma reflexão sobre a ficcionalização do trauma das personagens femininas no referido romance, que enfoca a Guerra dos Farrapos, travada no Sul do Brasil de 1835 a 1845. Para isso, a pesquisadora estabelece aproximações entre literatura e psicanálise. Cem anos mais tarde, na Europa, ocorreria a Guerra Civil Espanhola, de 1936 a 1939, considerada a guerra civil de maior impacto mundial, por ter envolvido não só espanhóis, como também cidadãos das mais variadas nacionalidades, que participaram ativamente do conflito. Em “Criaturas de la guerra. Memorias traumáticas de la Guerra Civil en el cine español contemporáneo”, Manuel Nicolás Messeguer elege filmes do cinema espanhol contemporâneo, que apresentam a Guerra Civil a partir de recursos fílmicos e temáticos típicos do cinema fantástico e de terror, associados ao olhar infantil para o conflito bélico. No continente asiático, uma guerra civil ganharia também proporções internacionais, inserindo-se no contexto da chamada “Guerra Fria”, com intervenção militar estrangeira: a Guerra do Vietnã. No ensaio “The Tet Offensive and The Battle of Khe Sanh as watershed of the Vietnam War: Michael Herr’s Dispatches”, Luis Carlos Rocha interpreta a referida obra não ficcional, que reúne impressões e fantasias de soldados norte-americanos, além de várias facetas da guerra. No último ensaio da segunda sessão do dossiê, intitulado “Da filologia da guerra à divisão do ‘eu’ feminino em As duas sombras do rio, de João Paulo Borges Coelho”, Nazir Ahmed Can aborda um dos vários conflitos fratricidas ocorridos no continente africano ao longo do século XX: a Guerra Civil Moçambicana, de 1977 a 1992, durante

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o processo de descolonização de Portugal. O enfoque principal do ensaio recai sobre as personagens femininas do romance de Borges Coelho, as quais se diferenciam das personagens de outros romances sobre o tema, uma vez que o romancista não as constrói com um caráter passivo ou com uma postura de espera diante do conflito. A terceira sessão do dossiê – “Segunda Guerra Mundial: memórias da catástrofe” se constitui de ensaios que enfocam obras associadas tematicamente ao conflito bélico de maior magnitude na história das guerras modernas, não só pelo ímpeto de destruição, mas também pelo alto custo de vidas a diversas nações, tanto nos campos de batalha e nas cidades quanto pelos genocídios perpetrados em massacres coletivos ou em campos de concentração e de extermínio nazistas. A referida sessão é aberta pelo ensaio “Guerra aérea na literatura alemã e o caso de Vergeltung, de Gert Ledig”, de Valéria Sabrina Pereira. Trata-se de uma temática polêmica, que suscitou o escritor W. G. Sebald a se ocupar do tema da ausência, em obras no pós-guerra, de imagens literárias dos bombardeios contra cidades alemãs, levados a cabo pela aviação aliada. A obra de Gert Ledig representa uma exceção, pois é um relato chocante de um ataque aéreo à cidade de Munique. Na mesma linha temática, em “O silêncio do anjo”, Ana Maria Portugal Saliba retoma a questão levantada por Sebald em seu famoso ensaio Guerra aérea e literatura, ao apontar para o silêncio dos escritores alemães acerca dos ataques aéreos aliados a várias cidades alemãs, a partir de uma abordagem psicanalítica, sobretudo com os estudos de Freud e Lacan, e também do filósofo Alain Badiou. Para isso, a autora se vale de referências a obras de escritores alemães do pós-guerra, como Heinrich Böll, Alexander Kluge e Hans Erich Nossack. Por sua vez, no ensaio “Thomas Bernhard e Walter Benjamin: por uma origem redentora”, Helano Jader Ribeiro estabelece uma relação entre o conceito benjaminiano de Ursprung (origem) e as ideias veiculadas pelo escritor austríaco em obras de caráter autobiográfico, publicadas em português sob o título de Origem, marcadas, sobretudo, pelas experiências traumáticas durante a Segunda Guerra Mundial. De modo distinto dos ensaios anteriores que compõem a terceira sessão do dossiê, Valéria Daiane Soares Rodrigues e Ivana Ferrante Rebello propõem uma reflexão sobre o olhar latino-americano para a Segunda Guerra. No ensaio “E uma rosa se abre: a guerra e a flor na poesia de Drummond”, as autoras enfocam o livro A rosa do povo, escrito durante a guerra, na qual o poeta mineiro trabalha com a simbologia da flor que contrasta com um mundo em franca decadência de valores, no qual imperam destruição e morte, e que representa também a própria crise do “eu” diante do status quo e de um acontecimento destrutivo de tal magnitude. Retomando o enfoque no olhar europeu para a Segunda Guerra Mundial, o ensaio “O Diário cinematográfico de Cesare Zavattini: memórias da guerra e dever de não esquecer”, de Paula Regina Siega, pauta-se por uma reflexão sobre a memória individual e a memória coletiva frente a uma memória nacional manipulada pelo regime fascista de Benito Mussolini. Centrado em textos esparsos do cineasta italiano Cesare Zavattini, um dos expoentes do neorealismo italiano, publicados durante a guerra, a autora relaciona as reflexões do cineasta acerca da memória com os pensamentos de Italo Calvino, Primo Levi e Elio Vittorini.

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No sexto ensaio da sessão “Segunda Guerra Mundial: memórias da catástrofe”, intitulado “Hanna Krall e os caminhos tortos da memória e da identidade”, Piotr Kilanowski propõe uma leitura do romance Sublokatorka (A sublocatária), de Hanna Krall, escritora polonesa de origem judaica, a partir de seus elementos centrais: a discussão do tema da identidade polonesa, judaica e judaico-polonesa a partir do olhar de uma menina, sobrevivente da Shoah. A quarta e última sessão do dossiê – “Imagens memorialistas pós-1945” –reúne três ensaios que se referem a conflitos bélicos ocorridos após a Segunda Guerra Mundial. O primeiro deles, intitulado “O choque desencadeia memórias de guerra: Störfall, de Christa Wolf”, de Rosani Umbach, estabelece uma relação entre memória e guerra como estratégia ficcional no romance Störfall (Acidente), da escritora alemã Christa Wolf, abordando o desastre atômico de Chernobyl, nos anos 1980, e o contexto da chamada “Guerra Fria”. O ensaio seguinte, “Amós Oz e Fima: política e literatura (s)e(m) ressentimento”, de Maria Clara Castellões Oliveira, estabelece uma relação entre o romance Fima, do escritor israelense Amós Oz, e a obra Ressentimento, de Maria Rita Kehl, articulados a partir das noções de “excesso de memória” (Oz) e de “ressentimento” (Kehl), frente a conflitos que se estabelecem entre árabes e judeus no Oriente Médio. Por fim, o terceiro ensaio da sessão “Imagens memorialistas pós-1945”, intitulado “Por ausente, por vencido. Contar Malvinas desde la ficción”, de Luz Celestina Souto, discute a relação entre guerra e literatura a partir do principal conflito bélico ocorrido no Cone Sul, no pós-guerra: a Guerra das Malvinas. Em seu ensaio, a autora chama a atenção para o fato de que, com o início do novo milênio, a literatura argentina tem produzido obras nas quais são asseguradas as memórias tanto daqueles que morreram no conflito quanto dos veteranos, injustamente esquecidos. Portanto, o dossiê “Memórias de Guerra” contempla um amplo leque de abordagens sobre a relação entre literatura e guerra, bem como de conflitos bélicos que se tornaram objeto de obras de ficção ou de caráter biográfico e testemunhal. Não obstante as diversas vozes que ecoam das obras analisadas, parece haver entre elas um ponto em comum: independentemente de suas várias facetas, em todas as épocas e partes do mundo, as guerras trazem consigo apenas uma coisa: destruição, sofrimento e morte, aniquilação e assassinato. Elcio Cornelsen (UFMG) Tom Burns (UFMG) Volker Jaeckel (UFMG)

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SessĂŁo 1 A primeira guerra moderna na literatura

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ROTINA

DE GUERRA E ENTOMOLOGIA

os Diários de guer ra de Er nst Jünger e Tempestades de aço

WAR ROUTINE AND ENTOMOLOGY: ERNST JÜNGER’S WAR DIARIES AND TEMPESTS OF

STEEL

Helmut Galle* Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO Durante seus quatro anos na Primeira Guerra Mundial, Ernst Jünger anotou, quase diariamente, suas observações em pequenos cadernos, que depois serviram como base para seu livro Tempestade de aço (In Stahlgewittern1 ), de 1920, e suas seis revisões, realizadas até 1978. Esse livro sempre foi visto como manifestação ideológica no contexto do entreguerras, mas também atraiu o interesse por suas descrições sóbrias da violência e sua linguagem imagética. Em 2010, a transcrição comentada dos cadernos – incluindo os registros coleopterológicos do pesquisador amador – foi editada por Helmuth Kiesel, dando acesso público às anotações originais do autor. Uma vez que a crítica geralmente considerou o livro uma espécie de diário redigido ou “ficcionalizado”, o presente artigo tem por objetivo comparar essas anotações com a primeira versão de Tempestades de aço. Aqui, será analisado, além da questão da ficcionalidade, em que medida os textos divergem em extensão, assuntos, estilo, voz narrativa e cor ideológica.

PALAVRAS-CHAVE Primeira Guerra Mundial, diário, ficcionalização

Em 2014, completarão cem anos desde o início da Primeira Guerra Mundial, mas, como seminal catastrophe (George Kennan) do século XX, sua importância para nosso presente permanece inalterada, e, apesar da distância e da intensa pesquisa historiográfica, sua representação hoje não parece menos problemática que naquele tempo. Entre os livros que imediatamente enfrentaram o desafio de contar da experiência da guerra a partir da perspectiva do soldado comum, o livro Tempestades de aço (In

* hgalle@usp.br 1 Fico extremamente grato a Oliver Lubrich por ter me facilitado uma cópia da rara edição de 1920 do livro de Jünger.

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Stahlgewittern), de Ernst Jünger, tem sido o mais polêmico desde sua publicação, em 1920, e, a despeito das críticas fundamentais (e dos louvores “do lado errado”), o livro ocupou um lugar central no cânone da literatura sobre a “Grande Guerra” e a guerra moderna em si. 2 É sabido que o autor revisou seu primeiro livro seis vezes (em 1922, 1924, 1934, 1935, 1961 e 1978) 3 e que a primeira versão foi baseada nos diários de guerra que o autor escreveu de dezembro 1914 até seu último ferimento, em agosto 1918. O conjunto dos 15 cadernos foi entregue como “espólio antecipado” (Vorlass) ao Arquivo de Literatura Alemã em Marbach já em 1995, mas somente em 2010 sua transcrição foi publicada, possibilitando, assim, uma recepção pública e facilitando a comparação dos manuscritos originais com o livro e suas revisões subsequentes.4 Até hoje, boa parte da reputação do livro Tempestades de aço se relaciona a seu suposto teor experiencial. 5 O subtítulo das primeiras três edições era “Do diário de um líder de tropa de choque” (“Aus dem Tagebuch eines Stoßtruppführers”), e nas versões até 1935, “Um diário de guerra” (“Ein Kriegstagebuch”), reclamando para o livro as qualidades que são atribuídas ao diário: o “imediatismo das impressões” e o “frescor das vivências”, como Jünger escreveu no seu prefácio.6 Ter sido redigido a partir de anotações feitas no meio das batalhas criou uma aura de autenticidade que até justificou certos desajeitamentos estilísticos do jovem autor. Por outro lado, o hábito de alterar seu livro durante o processo da vida pode levantar a suspeita de que, já na primeira redação, o autor tenha submetido as anotações do diário a modificações que iam muito além daquilo que ele mesmo admitiu sobre a origem do livro: “[s]urgiu do conteúdo dos meus diários de guerra, ao qual se deu forma”. 7 Ainda que o livro tenha sido considerado autobiográfico tanto pelo público quanto por grande parte da crítica, as transformações podiam ser entendidas como “ficcionalização”, mesmo sem exame mais preciso.8 Com

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Desde cedo, Jünger provocou tanto elogios por leitores como Jorge Luis Borges, André Gide, Erich Maria Remarque e Joseph Goebbels quanto duras críticas por ter preparado o campo do nazismo; nas últimas décadas, o livro e seu autor foram objeto de importantes estudos de Klaus Theweleit, Karl Heinz Bohrer e Helmut Lethen, para mencionar alguns. O currículo básico para os colégios de Niedersachsen (2009) coloca Tempestades de aço ao lado dos romances de Remarque e Koeppen e do drama de Karl Kraus como leitura exemplar sobre a Primeira Guerra. 3 Ver LUBRICH. Das Schwinden der Differenz, p. 154; KIESEL. Ernst Jünger im Ersten Weltkrieg, p. 648. 4 Antes da publicação, o manuscrito foi analisado nas teses de doutorado de John King, Wann hat dieser Scheißkrieg endlich ein Ende?, e José Antônio C. dos Santos, Vivência biográfica, escrita diarística e representação de guerra (Universidade Nova de Lisboa, 2008). 5 Não será discutida aqui a questão, levantada por Walter Benjamin, de se a guerra moderna é acessível à experiência (num sentido enfático) ou não. É evidente que fenômenos como a Primeira Guerra superam a capacidade humana e não podem ser representados e integrados à experiência de forma “adequada”. Isso não afeta o fato de que o ser humano continua, nessas condições, a ter percepções que se juntam para vivências, e que essas vivências, posteriormente, são assimiladas à memória autobiográfica como experiências. Analisar até que ponto a representação de tais experiências nos parece insuficiente ou interessante é a tarefa da crítica. 6 JÜNGER. In Stahlgewittern, p. VII. Doravante, St. Todas as traduções neste artigo são de nossa responsabilidade. 7 JÜNGER. St, p. VII. 8 SÜSELBECK. Totale Tinte, p. 1.

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Hayden White, poder-se-ia supor que a transformação das entradas do diário em relato autobiográfico fosse análoga à transformação de crônicas ou anais em relato historiográfico, uma vez que os fatos vivenciados são submetidos ao emplotment argumentativo e ideológico. A presença massiva de metáforas e imagens no livro de 1920 levou Oliver Lubrich a constatar que “In Stahlgewittern é uma tentativa forçada de dar um sentido à guerra fazendo uso de metáforas, e ao mesmo tempo que a inconsistência dessa tentativa se torna reconhecível, ela é a confissão do seu fracasso”.9 Diante da elaboração composicional, narrativa e estilística do livro de 1920, podem-se considerar as anotações diárias uma representação mais próxima aos acontecimentos e às sensações do autor, uma representação mais fiel à realidade da guerra, e que Jünger tenha traído essa realidade já quando decidiu usar o “material” para uma publicação dedicada “à memória dos meus camaradas caídos” e à apoteose de sua própria valentia, destacando inúmeras vezes sua competência como soldado e líder. Essa hipótese de que as anotações sejam mais fiéis aos fatos reais ainda será questionada. Em primeiro lugar, porém, serão comparadas as descrições do diário com o livro, sistematizando as categorias de omissões e ampliações, verificando a presença de metáforas e outras caraterísticas estilísticas nas duas versões. Serão discutidas a atitude ética do autor e as tendências ideológicas subjacentes aos dois textos. No final, será oportuno perguntar se as diferenças constatadas justificam o termo “ficcionalização”.

D IÁRIOS

DE GUERRA

O diário é um tipo textual que oferece certas dificuldades para a compreensão por ser uma “comunicação” que, em geral, não se dirige a um destinatário a não ser o próprio autor. Por isso, geralmente carece de muitas informações e marcadores textuais que facilitam a recepção de textos “normais”, porque a constituição do texto do diário não toma em consideração outro sujeito com conhecimento e experiência diferentes. Existe, porém, um obstáculo principal para a compreensão. Lendo os diários de Goethe, Kafka anota, no dia 29 de setembro de 1911, que “um homem que não tem diário está numa posição errada diante de um diário”.10 Se não estamos acostumados à prática de anotar o cotidiano, não entendemos as especificidades do “diálogo” entre um sujeito e si mesmo, tampouco possuímos um registro tão minucioso de nossas atividades que nos obrigue a reconhecer sua existência. Para jovens alemães na virada do século XX, não era incomum manter um diário. O culto do indivíduo, do mundo interior, e a importância da literatura para toda a classe média moveram muitas pessoas a protocolarem vivências, reflexões e sentimentos, mesmo sem qualquer intenção literária. 11 Uma viagem ou uma fase especial da vida

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LUBRICH. Sprachbilder des Krieges, p. 80. KAFKA. Tagebücher I, 36. 11 Para Wilhelm Dilthey, um dos filósofos mais influentes da época, a história se torna compreensível somente a partir da vida do indivíduo, e essa vida só pode ser compreendida a partir de suas experiências. A escrita autobiográfica como expressão da vivência – o diário e a autobiografia – é o meio pelo qual o homem entende a si mesmo. Ver DILTHEY. Das Erleben und die Selbstbiographie. 10

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justificariam ainda mais a “contabilidade” íntima, conservando as impressões frescas contra o efeito destruidor da memória. Num conto posterior de Jünger, de 1925, o narrador/ protagonista (com muita semelhança ao autor) fala sobre suas motivações ao escrever o diário de guerra: “Eu já tenho uma série deles [cadernos] em casa, enchidos por relatos cotidianos, reflexões breves e desenhos furtivos, e imagino que seria bom folheá-los mais tarde, com toda a calma, em tempos pacíficos, e me lembrar: assim você passou seus dias naqueles anos estranhos”. 12 A observação não garante que o autor, de fato, tenha escrito os diários com esse intuito (ainda mais porque o conto apresenta mais indícios de ficcionalidade que o livro de 1920).13 O fait accompli da publicação do livro pode nos seduzir a supor que o autor tenha escrito o diário, desde o início, para um público maior. Houve, porém, muitos soldados que mantiveram diários – incluindo seu irmão, Friedrich Georg 14 –, e a maioria deles não foi publicada, a não ser muito mais tarde por historiadores. Para identificar melhor a função do diário de Jünger, seria necessário recorrer às caraterísticas dos cadernos e do texto. O primeiro dos 15 cadernos se aproxima ao formato A6 (12 cm por 14,3 cm), com 47 páginas quadrilhadas, e podia ser levado num bolso do uniforme. Em tinta violeta, já esmaecida, lê-se “Diário de guerra”, seguido pela data da primeira entrada, 30/12. Mais tarde, foram acrescentados, com tinta azul, “do voluntário de guerra Ernst Jünger” e “Ia parte”. 15 Quando o autor começou o diário, aos 19 anos de vida, sendo transportado para a frente ocidental na França, ele não comentou quais eram suas intenções, mas o acréscimo posterior do nome parece indicar que, no primeiro momento, foi pensado como registro das vivências, um apoio para a memória. Inicialmente, ele anota, em palavras-chave, as estações da viagem e a comida, e, em frases completas, algumas impressões pessoais. Logo que se aproxima da frente e observa fenômenos desconhecidos, o texto se torna mais detalhado, registrando a destruição da terra: “A região está ficando com uma face marcial”.16 Às vezes, discriminando sua posição ao escrever (“escrevo isto num buraco de terra muito avançado, cerca de 150 m da fossa inimiga”), o tom se assemelha a uma carta, como se fosse dirigido a alguém, mas esse destinatário pode ser o próprio sujeito que pretende fixar as situações inusitadas para um futuro menos sensacional. Típico do gênero do diário é, segundo Peter Boerner, que este “esteja destinado, em primeiro lugar, ao próprio escrevente, enquanto a carta se dirige, a priori, a um tu”.17 Helmuth Kiesel opina, porém, que as anotações de Jünger foram produzidas para servir como base para um “livro de aventura de guerra” e já eram destinadas a outros leitores, apontando

12

JÜNGER. Das Wäldchen 125, p. 303. Enquanto o Diário de guerra e as Tempestades de aço mantêm o pretérito como tempo verbal, o conto é escrito no presente, uma técnica que presentifica o passado e estabelece uma relação não realista entre autor/narrador e os acontecimentos. 14 Ernst cita o diário do irmão em JÜNGER. St, p. 104 ss. 15 Ver a descrição em KIESEL. Ernst Jünger im Ersten Weltkrieg, p. 470 e a foto no catálogo de GFREREIS. Ernst Jünger: Arbeiter am Abgrund, p. 110. 16 JÜNGER. Kriegstagebuch, p. 7. Doravante, Kt. 17 BOERNER. Tagebuch, p. 13. 13

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toma cuidado ao escrever sobre assuntos de futura relevância estratégica 24 e rabisca trechos que lhe parecem vergonhosos.25 Mas isso não legitima constatar que os cadernos tivessem sido escritos já com a ideia de um leitor específico ou de uma publicação. A decisão de redigi-los deve ter surgido somente na primavera de 1918 em conversas com o pai, quando passou três meses convalescendo em casa.26 Interrompendo27 a entrada do dia 17 de junho de 1918 no penúltimo caderno (XIVa), encontra-se uma instrução programática para o prefácio de um livro: Apontar, no prefácio, que anotações tão detalhadas dificilmente foram realizadas por um [outro] soldado da frente, que estas folhas, portanto, são um espelho das grandes e pequenas vivências do infantarista da linha mais avançada. Além disso, que essas folhas não colorem nada e não querem florear nada, mas somente alvejam uma descrição exata da vida cotidiana dos guerreiros no campo, na trincheira, na calma e no combate, com todas as suas exaltações e com todas as dificuldades abertas e ocultas que, muitas vezes nem ficaram claras para aquele que participava. A única consideração que só possibilita uma publicação é aquela que desrespeita aos participantes vivos.28

Aqui, sim, fica evidente que o autor começa a escrever para um certo destinatário que não compartilha a experiência da frente. As “considerações” que ele pretende não tomar devem ser as ilusões do público alemão que ainda mantém ideias antiquadas sobre a guerra e, talvez, os oficiais da etapa que, no diário, muitas vezes são responsabilizados veementemente por perdas massivas e gratuitas. No último caderno (XIVb), encontramse, de novo, instruções para a redação do livro, não na sequência das anotações, mas no final, usando as últimas páginas de cabeça para baixo. “A. O que é meu propósito? / B. Descrever os atos dos infantaristas, para isso, infelizmente, preciso partir de mim mesmo”. 29 Essa intenção já indica uma alteração: as vivências individuais não são um objetivo em si, mas o meio para representar, de forma generalizante, a vida do soldado da frente. Ele constata que as anotações feitas no fervor da batalha são uma boa base para seu projeto, uma vez que “as impressões se apagam rapidamente, tomam facilmente outra tonalidade após poucos dias. Medo, fraqueza e pusilanimidade foram esquecidos já na primeira noite de descanso, quando se relata suas vivências para os camaradas, com uma taça. Imperceptivelmente, nós timbramos de herói”.30 Nesses trechos, o autor já indica duas importantes conclusões que ele tirou da experiência extrema: 1) “o homem é incalculável” e 2) seu “coração está fortemente vinculado à causa pela qual ele lutou e sangrou”. 31 Essas observações se soltam da perspectiva do cotidiano da guerra e são

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JÜNGER. Kt, p. 368. JÜNGER. Kt, p. 371. 26 Ver KIESEL. Ernst Jünger im Ersten Weltkrieg, p. 580. 27 Escrito de forma transversal sobre duas páginas, o texto foi colocado, provavelmente, antes da entrada do dia 17 ou inserido depois em duas páginas que ficaram em branco por acaso. 28 JÜNGER. Kt, p. 402 ss. (Ortografia e pontuação não foram padronizadas.) 29 JÜNGER. Kt, p. 432. 30 JÜNGER. Kt, p. 432. 31 JÜNGER. Kt, p. 433. 25

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feitas com seu término como horizonte, colocando o autor numa posição entre os ideólogos conservadores (para os quais a dignidade do soldado é inquestionável) e os pacifistas republicanos (que consideram a guerra inteira um empreendimento errado e fracassado). É de se supor que essas atitudes tenham tido impacto na forma como as entradas do diário foram transformadas em narrativa contínua. Mais concretamente, Jünger explica em duas folhas soltas, inseridas nesse caderno, como ele pretende alterar o diário: A linguagem ainda é, muitas vezes, demasiado seca, precisa ser reavivada por diálogos. [...] O diário na sua forma primeira é somente uma moldura, na qual se deve inserir as descrições da paisagem, do respectivo humor da tropa, da alimentação, do alojamento, dos exercícios táticos etc. [...] Cada trecho deve ser planejado de forma exata anteriormente. Somente as condições gerais e pressupostos, depois a execução. Sempre escrever de um jeito que permita ao leitor ver situações claras, não colocar nomes desconhecidos, singulares.32

O autor está ciente da forma segmentada de seus registros, que, para formarem uma história, precisam de exposições, disposições composicionais, articulação, detalhes, pano de fundo e psicologia. O trecho mostra também que ele se preocupa com a necessidade de proporcionar ao leitor uma experiência generalizada a partir da vivência individual. Tudo isso deixa claro que o livro já não será um diário. O subtítulo indica corretamente que o texto foi escrito só “a partir do diário do líder de uma tropa de choque” (“Aus dem Tagebuch [...]”). Trata-se de uma mistura de diário e relato autobiográfico. O relato se constitui a partir da memória de longo prazo e organiza a vida em forma narrativa e retrospectiva, atribuindo-lhe um significado a posteriori, enquanto o diário (verdadeiro) registra as vivências momentâneas antes que elas sejam filtradas pelo esquecimento, mas também em sua incoerência. A “falta óbvia de um emplotment convincente”, constatada por Hans-Harald Müller,33 resulta dessa hibridez: a redação não foi suficientemente radical para assimilar todas as vivências contingentes que compõem o diário. Essa insuficiência pode ser vista, ao mesmo tempo, como virtude do livro: os elementos não subordinados à grande narrativa – da pátria, da coragem, dos heróis – permitem que o livro seja lido hoje como fonte de conhecimento sobre essa guerra. O que mais interessa não é a supercodificação por motivos ideológicos, mas a permanência da percepção imediata. Isso não quer dizer que o diário seja mais interessante que sua adaptação para o livro: a concentração e a “poetização” do texto também podem produzir efeitos reveladores sobre as possibilidades de representar a guerra.

A

TRANSFORMAÇÃO EM LIVRO

Quais são as transformações que Jünger aplicou ao seu material? Müller observou corretamente que as repetições estereotipadas da guerra das trincheiras exigiam ser resumidas. Dessa forma, os primeiros cadernos (I-IV), que cobrem 18 meses,

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JÜNGER. Kt, p. 434. MÜLLER. Im Grunde erlebt jeder seinen eigenen Krieg, p. 20.

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correspondem somente a 34 páginas no livro. Os capítulos dedicados às grandes batalhas (Somme, Flandres, a ofensiva alemã de 1918) se estendem cada vez em capítulos maiores que tratam muitas vezes de poucos dias. Por outro lado, são essas batalhas que, já no diário, receberam entradas muito longas e detalhadas, escritas não raramente no hospital, onde o autor se recuperou das feridas que devem ter sido a condição de sua sobrevivência: ao sair ferido do campo de batalha, ele não sofreu o mesmo destino que os camaradas que ficaram. O clímax da composição do livro, segundo Müller, “culmina na formação das tropas de choque e descreve a atividade ‘anárquica-natural’ de grupos na luta homem contra homem como auge das batalhas abertas do ano 1918”. 34 Para o crítico, essa operação se deve a uma concepção de heroísmo derivada da Ilíada35 que Jünger projeta nos acontecimentos com “reinterpretação violenta e metáforas rebuscadas”, ignorando o vazio caótico do campo de batalha após a artilharia ter preparado as trincheiras inimigas para o ataque. 36 Essa crítica de Müller corresponde, grosso modo, à imagem que a historiografia nos apresenta da Primeira Guerra: o ataque alemão foi bloqueado no norte da França, e assim se estabeleceu um novo formato de guerra (a guerra de exaustão). Houve várias tentativas frustradas dos dois lados de superar essa situação mediante o massivo uso de artilharia, gás e bombas, extinguindo milhares de pessoas sem qualquer avanço essencial. Por outro lado, a crítica ignora que Jünger, nos últimos anos da guerra, procurou e encontrou várias oportunidades de lutar diretamente com infantaristas inimigos. A crítica não reconhece que uma mudança foi atingida, de fato, mediante a nova tática do militar alemão, na qual o empenho das tropas de choque, em conjunto com o apoio massivo e pontual da artilharia, teve maior “sucesso” em termos de terreno ganho. 37 Isso foi percebido tanto por Jünger quanto pelo comando alemão. O desejo de Jünger pela luta direta entre os homens pode ser um desejo arcaico e disfuncional no contexto da guerra de exaustão, em que o melhor que o soldado pode fazer é se proteger contra os bombardeios. Parece ufanismo que ele lamente, no dia 4 de setembro de 1916, que já tenha vivenciado tanto nessa guerra (inclusive vários ferimentos), “mas o alvo das minhas vivências de guerra, o ataque direto e o choque da infantaria, ainda não me foi concedido. Atirar no inimigo, estar diante dele, homem contra homem, isso é diferente dessa eterna guerra de artilharia”. 38 Jünger entende

34

MÜLLER. Im Grunde erlebt jeder seinen eigenen Krieg, p. 20. Além do mundo homérico, bem conhecido por jovens como Jünger em adaptações prosaicas de Gustav Schwab, é o wild west de Karl May que ocupa seu imaginário, como se percebe bem no diário. 36 MÜLLER. Im Grunde erlebt jeder seinen eigenen Krieg, p. 22. 37 O cinismo do raciocínio dos generais não considerava o número de vidas sacrificadas. Na perspectiva deles, a nova tática apresentou, a princípio, a superação do empate da guerra de trincheiras. Na grande batalha da Somme, o ataque massivo dos aliados resultou em um milhão de soldados mortos nos dois lados, sem poder mudar a linha da frente por 10 km. A ofensiva de primavera dos alemães, em 1918, quando a “batalha de material” (excessiva e contínua barragem de artilharia) foi combinada com o princípio das tropas de choque, matou ainda mais que 500 mil, mas permitiu uma entrada na frente de 65 km. Diante da supremacia dos aliados em termos de material e soldados, o sucesso inicial não podia ser aproveitado. 38 JÜNGER. Kt, p. 185. 35

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muito bem que ele pode morrer como “carne para canhões” nas trincheiras, uma vítima gratuita e arbitrária dos corpos explosivos. Ele prefere, porém, encontrar a morte ou a sobrevivência lutando como Heitor e Aquiles, apostando em sua sorte, mas também em sua inteligência e em seus instintos, afinados pelos anos na guerra – na medida em que as condições ainda permitirem isso. Após ter tentado, em vão, ser transferido da infantaria para a força aérea, Jünger é designado líder de uma tropa de choque em 6 de julho de 1917 e aprecia a nova tarefa perigosa: “é isso que torna a guerra interessante”.39 A partir disso, ele se empenha cada vez mais em empreendimentos perigosos, adquirindo o respeito de seus camaradas, ferimentos e condecorações. A nova forma de combate corresponde a sua sede por aventuras e seu desejo de lutar contra adversários igualitários: sobretudo oficiais britânicos que estão em cargos semelhantes. Sobrevivendo a todas essas situações arriscadas, Jünger descobre que seu desejo por confronto direto corresponde a uma efetiva virada na guerra: os sucessos da sua unidade se devem ao seu empenho pessoal e à disciplina brutal que ele exerce em seu grupo. As conclusões que ele tira, portanto, não são completamente erradas, e ele será chamado, após a guerra, para integrar uma comissão que desenvolve uma nova tática, baseada na tropa de choque.40 Para nós, vivendo numa época na qual o pacifismo é quase consenso na maioria dos países, parece grotesco que alguém tenha se submetido a essa orgia de destruição industrial, sobrevivido a ela, mais por sorte que por mérito, e ainda postule a possibilidade de provar seu valor individual nessas condições. Para Jünger, porém, essa conclusão era motivada por suas experiências, e o livro somente organiza essa ideia que já está plenamente desenvolvida no diário. É verdade que um orgulho insuportável sai dos trechos que comentam como ele, tendo sido atingido, sequer tirou o cachimbo da boca, ou então continuou a combater o inimigo. Por outro lado, esse excesso de narcisismo comprova justamente o prazer que havia em se envolver nessas aventuras.

O MISSÕES

E INCLUSÕES

A omissão de grandes partes do diário se deve não somente à densificação e à construção de um clímax. Uma vez que o diário contém várias referências a dúvidas, vaidades e até insubordinações, o autor eliminou uma série de aspectos que ele deve ter considerado vergonhosos. John King, ao comparar o manuscrito do diário às diversas versões posteriores, estabeleceu oito categorias de assuntos suprimidos no livro: “1. a biografia não militar [o episódio na Legião Estrangeira e as infrações escolares do aluno Jünger], 2. aventuras sexuais, 3. vandalismo alcoolizado, 4. sonhos de fuga e dúvidas radicais [na guerra], 5. casos disciplinares [conflitos do soldado Jünger com seus

39

JÜNGER. Kt, p. 275. Após a guerra, Jünger foi convidado para uma comissão da Reichswehr sob o general V. Taysen, que “deveria considerar as experiências da Grande Guerra”. Jünger foi responsável pela concepção das formações pequenas e escreveu um artigo para uma revista militar em 1920. O trabalho e as publicações devem ter apoiado as vendas do livro Tempestades de aço e sua segunda edição numa renomada editora militar (SCHWILK, Ernst Jünger: ein Jahrhundertleben, p. 228. Ver KIESEL. Ernst Jünger: die Biographie, p. 163 ss.).

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superiores], 6. extrema falta de controle, 7. natureza e entomologia, 8. descrições visuais brutais”. 41 É verdade que o autor do livro censurou muitas cenas nas quais o diário o apresenta numa luz menos favorável para um leitor externo. Mas esses aspectos não faltam por completo. No dia 31 de janeiro 1915, o soldado adormece durante uma sentinela num posto avançado e é surpreendido e castigado por um suboficial. 42 O ressentimento contra o suboficial se expressa também no livro, mas a situação é distorcida para que seja mais palatável: aqui ele se encontra numa sentinela dupla e, em vez de adormecer, coloca um cobertor sobre a cabeça para se proteger contra o frio. Dessa forma, ainda se trata de um desleixo, porém menos grave; a reação do superior parece menos adequada, e o jovem soldado se apresenta tão corajoso que sustenta um castigo desmesurado e perigoso por mera teimosia.43 Quando sua unidade é transferida para Guillemont, eles se inteiram, nas conversas com os soldados do lugar, de que naquele foco da batalha de material do Somme a brutalidade dos ataques de artilharia superava tudo o que eles conheciam até então e que a chance de sobrevivência dos infantaristas era mínima. Ele resume as informações: “O ânimo parece bom por todos os lados, ontem porém, um homem da 4ª [companhia] se suicidou”.44 O diário registra um ânimo bem mais desesperado, embora o autor não fale explicitamente de seu medo: “Então, amanhã cedo para Guillemont, mais que a cabeça isso não pode custar. Vamo!”45 Quando os soldados descansam, já perto da frente, o diário comenta: “Ao nosso redor houve um tipo de fogo [de artilharia] de uma força que eu nunca tinha ouvido antes. Nós nos sentamos no prado com pensamentos não exatamente alegres”.46 O barulho das explosões lhe causa dores de ouvido, e um suboficial “perde a razão”.47 No livro, o ânimo dos soldados antes da batalha era “excelente. Piadas voaram de um carro para o outro, acompanhadas por risadas”. 48 O suicídio, a crise nervosa, os pensamentos escuros do diário não aparecem. No livro, a descrição devastadora que eles recebem de um soldado do lugar é apresentada em voz direta, e o autor comenta: “[c]om homens assim se pode lutar” – algo que não se lê no diário nesse trecho. Tampouco encontramos no diário a luz da lua que, no livro, converte a estrada em “fita branca que se estendia sobre o terreno escuro, em direção ao trovão dos canhões”.49 Elcio Cornelsen50 observou que esse trecho ainda “romantiza” a cena do horror absoluto com ares da tradição alemã. Parece que o autor do livro incluiu algo que não aconteceu na realidade para criar um efeito literário. Por outro lado, o diário contém inúmeras referências à

41

KING. Wann hat dieser Scheißkrieg ein Ende?, p. 169. JÜNGER. Kt, p. 15. 43 JÜNGER. St, p. 7. 44 JÜNGER. Kt, p. 165. 45 JÜNGER. Kt, p. 165. No original alemão, ele usa uma expressão dialetal de Niedersachsen, “man to”, que foi entendida como “vamo”. 46 JÜNGER. Kt, p. 166. 47 JÜNGER. Kt, p. 168. 48 JÜNGER. St, p. 49 49 JÜNGER. St, p. 49. 50 CORNELSEN Cenas literárias da Primeira Guerra Mundial, p. 39 ss.

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beleza da natureza, das estrelas, etc., 51 às vezes descrevendo a destruição em termos estetizantes: “Nossa artilharia respondeu com granadas que era um verdadeiro prazer ver as nuvens negras, brancas e amarelas”.52 Como podemos julgar se a lua iluminou o caminho dos soldados ou não? O diário não registra a realidade como uma gravação, e a referência à lua pode ser uma lembrança que se tem ao escrever o capítulo do livro. O que se pode dizer é que o trecho tem certo efeito no leitor. Mas esse efeito é criado a partir de um elemento que, segundo a modalidade utilizada por Jünger para apresentar o livro, remete à realidade vivenciada por ele. Por isso, parece inadequado falar de ficção. As alterações não distorcem por completo a realidade fixada no diário, mas suprimem certos elementos em favor de uma atitude menos ambígua em relação aos soldados e uma maior ênfase em sua vontade de lutar. É inegável que Jünger teve muitos momentos românticos e humorísticos durante os quatro anos, mas a forma como ele os integra no livro contribui para dar uma imagem mais divertida da guerra que, assim, não procede no diário. É inegável também que Jünger elimina manchas escuras contidas no diário (ainda que o autor não as reconheça como tais). Suas atividades e sua pessoa devem parecer dignas das condecorações recebidas. Valentia, audácia e sensatez são as qualidades que o público deve atribuir a ele – e ao soldado paradigmático da frente, sempre em distinção dos oficiais da etapa. Avaliamos essa atitude da mesma maneira como costumamos avaliar quando alguém tenta se vangloriar: com uma boa porção de incredulidade. Se fosse uma ficção, teríamos de interpretar isso como estratégia narrativa do autor que nos deve sinalizar algo sobre o personagem.

M ETÁFORAS Analisando as alterações que Jünger aplicou ao primeiro capítulo, nota-se, após uma breve introdução de sua pessoa e do transporte para a frente, que os fatos prosaicos do diário estão sendo carregados por um significado metafórico53 e por prolepses: O diário: “Na estação de Bazancourt, descemos. Os canhões resmungaram à distância. Vimos de longe, no fundo, duas nuvens de shrapnels que se dissolveram em vapor branco”.54 O livro: “Após uma viagem de muitos dias, o trem parou em Bazancourt, uma cidadezinha em Champanhe. Nós descemos. Com incrédula piedade escutamos o ritmo lento do laminador da frente, uma melodia à qual nós iriamos nos acostumar, durante longos anos. Muito longe, a bola branca de um shrapnel se dissolveu no céu cinzento de dezembro. A respiração da luta soprava sobre nós e nos fez estremecer. Pressentíamos que quase todos nós deveríamos ser devorados em dias, nos quais este escuro murmúrio lá no fundo deflagraria num trovão incessante? Um mais cedo, o outro mais tarde?”55

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JÜNGER. Kt, p. 14, p. 106, p. 111. JÜNGER. Kt, p. 158. 53 Oliver Lubrich dedicou vários trabalhos importantes à estrutura metafórica do livro, entre eles Das Schwinden der Differenz e “Sprachbilder des Krieges”. 54 JÜNGER. Kt, p. 7. 55 JÜNGER. St, p. 1 52

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As observações, pouco chamativas e quase idílicas no diário, são tratadas como se fossem, já naquele momento, um prenúncio do futuro. Na intuição dos soldados, as manifestações da guerra adquirem uma dimensão sublime que não corresponde à distância e à falta de conhecimento que eles tinham no momento. A descrição deixa confluir a percepção com a experiência posterior. Ainda que o diário não documente o sentimento da “piedade”, o livro a coloca aqui como reação que teria sido adequada. Os próprios fenômenos da guerra são descritos por metáforas ambíguas: o “ritmo lento” e a “melodia” evocam a ideia de música e dança, a imagem do “laminador” está associada a uma máquina imensa e poderosa que converte, inabalavelmente, os materiais mais duros em lâminas por pura força física. “Respiração” e “devorar” ainda deixam pensar em animais de rapina ou fabulosos, como os lendários dragões. Em seu conjunto, as imagens representam a guerra como algo que supera a imaginação das pessoas, como se fosse um poder supremo, transcendente e inquestionável. Toda a destruição que está sendo anunciada ainda se mistura com algo sereno, na imagem da nuvem e do ritmo, como se nem fosse tão ruim se entregar a essa força escura. Os jovens soldados chegaram aborrecidos de uma sociedade materialista para experimentar o “insólito, a grande vivência, [...] o grande, forte, solene”, mas eles não iriam encontrar “o ato masculino, o alegre combate de atiradores em pastos cheios de flores e orvalho de sangue”.56 Evidentemente, essa representação não corresponde à guerra como resultado de decisões políticas e ações militares que pode ser evitado e terminado pelos seres humanos responsáveis. As imagens do dragão e da máquina “proíbem” que os sujeitos adquiram consciência para se levantar contra um tratamento desumano e uma política irracional.57 Por outro lado, o texto não reproduz as narrativas do Ancien Régime e, como observou Lubrich, evita, de forma geral, atribuir sentidos ideológicos à guerra, usando uma estratégia indireta, de processar a guerra, o radical outro da vida civilizada, pelos meios da linguagem: numa economia poética da figuração múltipla. A metaforização serve à racionalização e a fundação de sentido. A guerra é traduzida e encaixada em contextos, nos quais ela pode ser apreendida como experiência aparentemente normal.58

De forma geral, há maior frequência e a elaboração de metáforas no livro. No diário, a maioria das metáforas reproduz de forma automática o jargão dos militares que se estabeleceu na frente durante a guerra. Por outro lado, há sinais de uma reflexão sobre o uso de certas expressões metafóricas com referência a percepções inauditas: “Lê-se muitas vezes em histórias de 1870/71 a expressão ‘granizo de balas’, mas primeiro é necessário ver para que uma imagem seja criada”.59 O uso de metáforas é, portanto, uma estratégia universal da linguagem para atribuir significados. As metáforas usadas

56

JÜNGER. St, p. 1. Van Creveld constata que o raciocínio estratégico da Primeira Guerra – na perspectiva dos generais – nem era tão irracional como nos parece hoje: “Com certeza, a morte de 160.000 de homens era terrível, mas com relação aos 9 milhões de soldados que a Alemanha e a França tiveram, naquele momento, quase não pesou” (VAN CREVELD. Die Gesichter des Krieges, p. 63). 58 LUBRICH. Sprachbilder des Krieges, p. 83. 59 JÜNGER. Kt, p. 154. 57

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pelos soldados ou pela propaganda podem ser inadequadas e persuasivas, mas se referem a fenômenos reais para os quais eles, provavelmente, não encontram outra expressão. Esses fenômenos não deixam de ser reais para o autor e para os leitores por causa do emprego das metáforas. No primeiro capítulo, pode-se observar ainda outra estratégia que adapta as vivências do diário a uma narrativa densa e significativa. O diarista registrou, no dia 2 de janeiro, um primeiro contato com a violência anônima. Seu grupo está repousando na escola do vilarejo Oranville. De repente, eles escutam um apito, dão uma risada e se agacham. Eles saem e veem como feridos são carregados em lonas. “O primeiro [...] estava cheio de sangue e gritou, com voz rouca e sufocada, um socorro, socorro. O segundo tinha a perna pendurada, solta da coxa”. Surge a informação de que nove pessoas foram mortas, inclusive um conhecido de Jünger. 60 Na descrição do livro, esse acontecimento é mais detalhado com respeito aos fenômenos acústicos do projétil, e toda a cena ganha um ar demoníaco. Os dois feridos são “resumidos” a uma só pessoa que grita e tem a perna solta, e o observador sente uma “aflita sensação de irrealidade”.61 A cena ainda é interpretada pelo narrador – o que não acontece no diário – como algo “enigmático e impessoal”, algo que “está completamente além da experiência”, “uma aparência fantasmagórica ao meio-dia”.62 No diário, Jünger procura o lugar da explosão e registra poças de sangue, cérebro numa pilastra e uma porta pesada de ferro, despedaçada, mas também uma placa “engraçada, pendurada lá em cima: Esquina das granadas”. 63 Uma das considerações que Jünger toma diante de seu público é, aparentemente, a referência verbal àquilo que o decoro burguês proíbe: o nojo das vísceras e o humor indecente do soldado.64 Num dos poucos comentários metanarrativos do diário, o autor anota como ele aplicou a mesma consideração numa carta ao pai de um camarada falecido: “Eu respondi à carta de acordo com os fatos, naturalmente não de forma tão realista, descrevendo os processos, como no meu diário”.65 O primeiro capítulo da versão de 1920 menciona ainda um “cavalo amarrado que farejou o perigo antes dos homens, se soltou e fugiu poucos segundos antes sem ser ferido”.66 Essa cena consta no diário no contexto de outro ataque, anos mais tarde. Sendo introduzida nesse início, carregada de significado, ela deixa de ser uma observação contingente e transmite a mensagem de que os animais dispõem de instintos mais fiéis, até em relação a fenômenos da guerra moderna. Após sua aprendizagem na frente, o protagonista disporá de algo semelhante a esses instintos, levantando-se da trincheira no meio dos bombardeios e colocando seu capacete somente em situações “efetivamente perigosas” – comprovadas a posteriori pelas feridas. A inclusão do trecho nesse ponto pode ser considerada como

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JÜNGER. Kt, p. 8. JÜNGER. St, p. 2. 62 JÜNGER. St, p. 2s. 63 JÜNGER St, p. 3. 64 Nas edições posteriores, curiosamente, tanto o sangue quanto o humor reaparecem. 65 JÜNGER Kt, p. 256. 66 JÜNGER. St, p. 3.

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supercodificação da cena com um significado implícito. Se o autor incluiu esse elemento pela razão que nossa interpretação insinua, ele deseja que a qualidade (intuição animalesca) seja atribuída a ele mesmo, não a uma personagem fictícia.

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OLHAR DO ENTOMÓLOGO

No diário, abundam anotações de percepções asquerosas, às quais o soldado está exposto e que, às vezes, até procura voluntariamente. Ele poupa o leitor de grande parte das descrições mais drásticas e também da frieza com a qual ele consegue mirar os feridos, desde o início. Resumindo, no quarto dia na frente, ele constata: “Permaneci completamente frio, tanto observando as pessoas despedaçadas por granadas quanto ouvindo todos os estalos, embora as balas, algumas vezes, cantassem bem de perto”.67 É interessante notar que Jünger esconde, no livro de 1920, essa sua qualidade, muito evidente no diário e enfatizada depois nas versões posteriores como capacidade muito especial que surgiu da experiência de guerra. A frieza, como descrita no diário, não é um embrutecimento, não surge como consequência de muitas vivências brutais. Ela está presente desde o início e deveria estar relacionada mais ao caráter psicológico de Jünger que aos efeitos da guerra. Nesse contexto, talvez seja relevante o fato de que o autor costumava caçar e colecionar besouros desde a infância.68 Aos 13 anos, ele começou, junto com o irmão, a pesquisar a natureza perto da casa de campo onde residia a família, colecionando todo tipo de naturalia, sobretudo besouros. Essa prática implica, por um lado, matar os insetos sem maiores sentimentos, e, por outro, um olhar científico e objetivo, sem envolvimento do sujeito. Suas notas na escola sempre foram desastrosas, mas o estudo da natureza, apoiado pela literatura científica já na infância, treinou o olhar e a mente do rapaz desde cedo. Durante alguns meses, ele exerceu o hobby até nas trincheiras,69 mandou fabricar armários adequados e manteve um caderno (igual aos diários) no qual, a partir do dia 29 de janeiro 1916, foram registrados 143 besouros colecionados, com data, horário e lugar exatos, condições climáticas, espécie e particularidades do achado. Dedicar-se à busca e à preparação de insetos na frente soa excêntrico e deixa transparecer várias características de sua situação: as condições privilegiadas do oficial – Jünger tem um soldado simples que lhe serve e carrega a bagagem 70 – e a relativa falta de atividades na guerra de trincheiras – de novo, o tenente não se ocupa com a escavação e a manutenção de trincheiras –, mas também a obsessão por observar a natureza por mera curiosidade. O caderno leva o título “Fauna coleopterologica douchyensis” (Douchy é a aldeia onde se encontra estacionado). A curiosidade que

67

JÜNGER. Kt, p. 10. SCHWILK. Ernst Jünger: ein Jahrhundertleben, p. 57. 69 Kiesel relata que Jünger também trouxe besouros preparados de seu serviço na Legião Estrangeira, em 1913 (KIESEL. Ernst Jünger, p. 51). 70 Ainda que o tenente viva na sujeira das trincheiras junto com seus camaradas, ele goza de condições bastante mais cômodas do que eles, como todos os oficiais até o final da Primeira Guerra.

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motiva esse passatempo (compartilhado por outros autores menos “suspeitos”) e que inclui os animais pré-históricos no calcário da trincheira coincide, supreendentemente, com a curiosidade que Jünger manifesta com frequência, em seu diário, em relação aos fenômenos da guerra. Quando dirige seu binóculo aos corpos dos franceses caídos e registra “a cor da decomposição, pálida, quase negra na cara de um deles”, 71 não se trata de impulsos mórbidos, mas de um desejo de compreender o mundo físico em todos os aspectos, o qual não se extingue diante de todas as formas de morte. Ao contrário, é exatamente a morte e a destruição do corpo humano que despertam cada vez o interesse, porque o paradoxo entre o corpo ser o portador de uma inteligência e uma vontade e, ao mesmo tempo, carne e substância químico-física nunca fica tão evidente como nessa guerra. Aos leitores do livro de 1920, Jünger se apresenta como um guerreiro, sem excentricidades e obsessões científicas, mas isso tampouco o converte em uma personagem fictícia.

É TICA

DO GUERREIRO

A partir de uma posição humanista, a crítica se dirigiu a essa atitude de Jünger como uma falta de empatia e a sua representação como prefiguração do discurso nazista. De fato, o autor do diário não tem escrúpulos no que diz respeito aos ataques contra as trincheiras inimigas e exerce um regimento rigoroso contra subordinados que fogem por medo (para Jünger: covardia), abandonando os camaradas em meio às calamidades. Por outro lado, o diário apresenta muitas cenas nas quais Jünger se ocupa com o transporte dos feridos e documenta todos os nomes de feridos e falecidos, seja oficiais, seja soldados simples. Quando, na grande ofensiva alemã de 1918, um soldado, excepcionalmente grande e valente, recebe um tiro na cabeça, Jünger observa como o homem se dobra e solta, “em intervalos cada vez mais longos, um estertor roncador, até terminar por completo. Durante as últimas convulsões ele urinou. Eu estava de cócoras ao seu lado e registrei essas ocorrências com objetividade”.72 Nessa mesma batalha, os soldados estavam exaltados por uma mistura de “agitação, sede de sangue, raiva e consumo de álcool” e atacaram as linhas do inimigo após a “preparação” por uma canhonada devastadora da artilharia. Jünger mesmo está “furioso” e, quando vê o primeiro inimigo, ainda que este esteja ferido, avança contra ele com a pistola sacada, quando ele lhe “estende, implorando, um cartão. Eu observei uma foto com uma mulher e pelo menos meia dúzia de crianças. Agora, sim, estou feliz que eu controlei minha fúria louca e perpassei por ele”.73 No livro, a cena é mais dramatizada, o protagonista já havia colocado a pistola na fronte do indefeso quando este apresenta a foto. Aqui, o autor enfatiza a sua “luta interna”, que dura segundos, até avançar sem matar a pessoa. Jünger não compartilha o chauvinismo da maioria dos alemães da época e fala com respeito sobre os oficiais inimigos que foram vítimas de seus tiros. Quando um

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JÜNGER. Kt, p. 9. JÜNGER. Kt, p. 390. 73 JÜNGER. Kt, p. 265.

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tenente inglês é atingido pelo grupo de Jünger, eles procuram o morto e verificam seu nome e sua unidade. O tenente Stokes “tinha uma cara inteligente, mas contraída pela morte. Estava muito bem-vestido e levava consigo um monte de endereços de moças londrinas. Eu tinha pena do pobre diabo, como ele estava deitado lá, com um buraco de munição, os pés brancos por causa da neve”.74 Ele deseja enterrar o corpo e manda fazer uma cruz a partir de seu desenho. Não se sabe se Jünger escreveu para a família dele após a guerra, como afirma pretender nessa entrada do diário. Frequentemente, ele conta sobre as visitas à casa de um casal francês em Cambrai, onde ele foi albergado, mantendo relações amigáveis. Expressões depreciativas como “Tommy” ou “Franzmann”, que abundam no diário, referem-se aos soldados invisíveis na outra trincheira e fazem parte do jargão dos soldados. Nem quando ele descobre, com surpresa, durante um ataque noturno em maio de 1917, que os inimigos misteriosos são indianos há alguma observação racista pejorativa: “Ah, indianos então! Coisa muito fina!”. 75 Da mesma forma ele poderia ter comentado o achado de um besouro raro: com a alegria do colecionador.

F ICCIONALIZAÇÃO Como se podem avaliar as alterações que transformaram o diário em livro? Notamos que o autor submeteu o material a cortes graves, reformulou quase tudo, construiu um clímax, aplicou um estilo imagético e literarizante e até distorceu os fatos em vários episódios. Isso converte o texto em ficção? Críticos como Jan Süselbeck 76 parecem sustentar essa ideia. King não fala de ficcionalização, mas de “umschreiben”, ou seja: reescrever, alterando o significado. 77 Para Cornelsen, mesmo que ele não compare o livro com os diários,78 “a romantização em algumas cenas da obra de Jünger e a elaboração do foco narrativo, não obstante se trate de um relato de testemunho, demonstram como o escritor lidou ficcionalmente com sua matéria, aproximando-a de procedimentos tipicamente ficcionais”. Assim, o diagnóstico da ficcionalização geralmente é aplicado quando acontecimentos biográficos podem ser identificados como “material” de um romance, por exemplo, em romances autobiográficos.79 Para Frank Zipfel, a ideia da conversão de um texto de um estatuto a outro é problemática: O problema principal dos nomes “ficticiação” [Fiktivisierung] e “ficcionalização” [Fiktionalisierung], na minha opinião, consiste no fato de eles sugerirem uma ação que muda o estatuto de textos ou partes de textos [...]. Com isso eles insinuam que a ficção surge como resultado de uma operação na realidade preexistente respectivamente em

74

JÜNGER. Kt, p. 220. JÜNGER. Kt, p. 265. 76 SÜSELBECK. Totale Tinte, p. 1. 77 KING. Wann hat dieser Scheißkrieg endlich ein Ende?, p. 159. 78 CORNELSEN. Cenas literárias da Primeira Guerra Mundial, p. 51. 79 Ver HOLDENRIED. Autobiographie, p. 210. 75

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textos factuais preexistentes. [...] essa abordagem parece pouco produtiva para a descrição de ficções literárias.80

Para Zipfel, a ficcionalidade resulta de um ato de comunicação duplo: o autor convida o leitor a participar de um jogo no qual este aceita a realidade fictícia, apresentada por um narrador fictício, como se fosse verdadeira. A forma do texto em si não permite decidir se ele é ficção ou não. O que determina isso é a prática social na qual o texto é produzido e divulgado. O livro de Jünger, quando publicado pela primeira vez, não apresentou nenhum marcador de que devesse ser lido como romance (a não ser o título metafórico).81 Ao contrário: o subtítulo “Aus dem Tagebuch eines Stoßtruppführers” sinaliza que se trata de um relato factual, particularmente em conjunto com o nome do autor e a indicação das patentes militares e sua unidade, que figuram diretamente na capa (“Voluntário de guerra, depois tenente e comandante de uma companhia no Rgto. Infant. Príncipe Albrecht v. Preußen”). No frontispício, depois da homenagem aos camaradas mortos, ainda se vê uma foto do autor numa casaco de pele luxuoso aberto que deixa entrever o uniforme com todas as condecorações recebidas, incluindo a ordem “Pour le mérite”. No prefácio, explica-se que a finalidade do livro é descrever de forma sóbria o que um infantarista vivenciou como soldado simples e líder durante a grande guerra, no meio de um regimento famoso e o que ele pensou nisso. Surgiu [o livro] do conteúdo dos meus diários de guerra ao qual se deu forma. Eu me esforcei em fixar minhas sensações de maneira mais imediata possível, porque percebi como as impressões se confundem rapidamente e tomam outro matiz após poucos dias.82

Essas palavras oferecem claramente um pacto autobiográfico: o leitor deve considerar a narrativa que se segue como referencial; as vivências do soldado Jünger aconteceram no mundo histórico e não num mundo possível, inventado pelo autor. O autor insinua até que a possibilidade de erros e distorções seja reduzida pelo fato de ter anotado tudo ainda no fervor das batalhas. Sua autobiografia não se apoia só na memória duvidosa, mas nas anotações confiáveis. Será que o autor enganou seus leitores com essas afirmações, que podem ser identificadas como “retórica de autenticidade”? No seu cerne, as frases são corretas: sem o diário, a reconstrução posterior teria sido muito mais distorcida devido à interpretação que o sobrevivente lhe atribuiria após seu “final feliz”. As pessoas, os lugares, as batalhas – tudo isso não é invenção, mas realidade, tanto no diário como no livro. A reconstituição da vivência na trincheira como descrita no livro ainda se aproxima bastante do imediatismo das anotações do diário. A maneira como o autor do livro a 80

ZIPFEL. Fiktion, Fiktivität, Fiktionalität, p. 275. Schwilk observa que foi uma prática do expressionismo literário representar guerra e violência com metáforas naturais e cita formas como “Gewitter der Schlacht” (Klemm), “Traumgewitter” (Däubler), “Blutgewitter” (Benn) e “Weltgewitter” (Meidner). “O título do livro ‘Em tempestades de aço’ aponta, portanto, sobretudo à contemporaneidade do jovem autor que quer reconhecer o começo de uma nova época na Guerra Mundial, como os poetas expressionistas, admirados por ele – pois Jünger mesmo escreveu uma série de poemas expressionistas” (SCHWILK. Ernst Jünger: ein Jahrhundertleben, p. 216). 82 JÜNGER. St, p. VII. 81

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apresenta para seus leitores obedece parcialmente às anotações e parcialmente a suas crenças no momento da enunciação, em 1920. Pode-se reparar que o emplotment, a integração consciente num plano e numa interpretação geral da guerra, altera aquilo que seria representação autêntica de acontecimentos isolados e contingentes. Aí, contudo, deve-se observar que já o diário nunca é uma representação objetiva da história. Com referência aos diários de sobreviventes do Holocausto, James Young explicitou como esses escritos estavam marcados pelas condições dos seus autores: Tanto faz se o diarista escreve suas anotações durante o dia ou a noite, se ele mantém seu diário em intervalos de semanas ou meses ou – diante da situação caótica na qual ele se encontra – cada vez quando ele tem a oportunidade, a maneira como o diário é organizado como um todo é sempre marcado por certos fatores que, por sua vez, contribuem para seu significado.83

Se a transformação da realidade para a representação verbal por uma figura histórica apresenta, por si só, sempre essa caraterística, não faria muito sentido chamar esses produtos de “ficção”, porque não teríamos nenhuma possibilidade de distinguir aqueles relatos que, declaradamente, tratam de mundos imaginados. O relato de Jünger não pertence a essa categoria. Tanto o livro como o diário são textos não ficcionais, pois, para o autor e para seu público, eles devem representar a realidade. Que eles não consigam representá-la de forma fiel é um defeito intrínseco aos dois, e o leitor sequer dispõe de instrumentos válidos para decidir se o diário, ou o livro, ou os dois estão errados. Se o autor se vangloria indevidamente, se ele se silencia sobre vivências vergonhosas, se ele distorce os fatos a seu favor, todos esses procedimentos merecem ser julgados como erros e enganos em relatos autobiográficos. Dessa forma, o livro permite observar uma tentativa subjetiva de assimilar os acontecimentos como experiência: no imediatismo e na intimidade do diário, e diante de um público no livro.

AA ABSTRACT Nearly every day, during his four years in First World War, Ernst Jünger noted his observations in small booklets which afterwards served as basis for his book Tempests of Steel (In Stahlgewittern) of 1920 and the subsequent six revisions until 1978. This book has always been seen as an ideological manifestation in the German context between the wars, but it has also attracted interest because of its drastic description of violence and its imagetic language. In 2010 an annotated transcription of the original diary, including the coleopterological registers of the amateur researcher, was edited by Helmuth Kiesel. Since critics have considered the book either a kind of revised diary or a fictionalization, the present

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YOUNG. Beschreiben des Holocaust, p. 50.

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article aims to compare the annotations with the first version of Tempests of Steel. Besides the question of fictionality it will be analyzed in which way and degree the texts diverge in extension, matters, style, narrative voice and ideological colouring.

KEYWORDS World War I, diary, fictionalization

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