Caderno de pesquisa encenação do documentário de eduardo coutinho

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Sumário

Apresentação ......................................................................................................... 2 A performance em Edifício Master – uma análise de personagem a partir de Cláudio Bezerra - Evanize Silva ......................................................................................... A encenação da vida real - Rafael Beck ............................................................... O dispositivo multi performático no filme Moscou de Eduardo Coutinho - Marcos Vinicius .................................................................................................................. O documentário e o aparelhamento - Tiago de Melo Araujo ................................ Performance e documentário - Rafael Rauedys ................................................... A partícula mínima de encenação sobre a luz: Análise sobre as performances das personagens no documentário Jogo de cena(2007) de Eduardo Coutinho - Paloma Cristina ................................................................................................................... A construção da performance nos documentários de Eduardo Coutinho: a relação entrevistador e entrevistado performers - Luane Batista ...................................... A voz do documentarista na voz da personagem - Geilane de O. Souza ..............

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APRESENTAÇÃO

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

A performance em Edifício Master – uma análise de personagem a partir de Cláudio Bezerra Evanize Silva

A obra de Eduardo Coutinho segundo a análise de Cláudio Bezerra* no título A personagem no documentário de Eduardo Coutinho (2014), é marcada por procedimentos fílmicos e estéticos que determinaram a construção de uma identidade em três fases. A primeira, à serviço do telejornalismo, tem a influência da interação do cinema verdade e ao mesmo tempo do recuo do cinema direto, didático e esclarecedor. De um lado há a abordagem crítica e sociológica, e de outro há um tom pessoal do diretor afirmando suas impressões. Essa unidade tempo-espaço que faz alusão a uma espécie de diário de viagem nos seus filmes é um dispositivo que foi se tornando parte de seu estilo. Em sua segunda fase, Cabra marcado para morrer (1984) afirma sua trajetória como cineasta. Críticos e pesquisadores brasileiros são unânimes em considerar o filme um marco por trazer inovações importantes sobretudo para o cinema documentário do Brasil. O filme rompe com a tendência dominante no documentário político, a de apresentar uma mensagem fechada do tipo sociológico com causas e efeitos articulados cronologicamente. É a construção de um filme dentro de outro filme que orienta o trabalho de resgate da história reatando os nós entre o autor e o seu projeto fílmico. Se difere, no entanto, de outras obras no mesmo período, e o autor julga como um tempo de maturação do seu estilo. * Termo referente ao artigo homônimo de Jean-Louis Comolli publicado no 5° Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Em meio à roteirização das relações sociais e do audiovisual, Comolli defende que o documentário deve rejeitar a programação excessiva, pois a imposição do roteiro evita a fricção com o real e com aquilo que lhe escapa, evita o confronto e tudo que estaria fora do calculado, propondo uma visão de mundo limitada.

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A virada para a terceira fase do documentarista acontece em Santo Forte (1999). A partir desse filme o diretor pensa e filma de um jeito próprio por meio de um conjunto de procedimentos e características formais que definem a obra de autor, a promoção de um acontecimento fílmico capaz de estimular um processo de transformação criativa nas pessoas em que se tornam personagens fabuladoras. Edifício Master (2002), objeto de análise deste ensaio, reforça a sua então marca pessoal que consiste em um cinema fundado na palavra e na imagem do corpo em seu potencial expressivo, oral e gestual, realizando uma performance. O conceito de performance pode ser trazido ao campo do documentário com o intuito de dialogar com a realidade bruta do mundo da narrativa, permitir uma conexão ativa entre o indivíduo e a necessidade de representação do ego. Bezerra elenca modalidades de performance às quais as personagens coutinianas

estão

submetidas:

divertida,

melodramática,

xamanística,

educativa, provocadora, musical, exibicionista, esotérica e indecisa. Essa taxonomia se refere aos aspectos que se destacam na atuação da personagem como performers. Esteticamente, o documentário de personagem de Coutinho tem uma caracterização bem marcada. Como não há um tema evidente, se faz do dispositivo para produzir um cinema exclusivamente de personagens peculiares que sabem narrar de maneira pessoal fragmentos de sua história de vida, investindo na intensa imagem do corpo, uma imagem de revelação e credibilidade. Um corpo falante, cheio de teatralidade oscilando para o drama ou para a tragédia, para a ironia ou para o humor, é um corpo performático. A duração do plano é a chave para a evolução da personagem com seus gestos e habilidades verbais. Há pouca variação de enquadramento, tudo em função da atuação performática. A curiosidade pela vida privada revela como os últimos trabalhos do cineasta se relacionam com as tendências do audiovisual contemporâneo, particularmente os reality-shows. Em referência, Edifício Master. Sem um roteiro prévio, o diretor realizava um documentário “sob o risco do real*”, na tentativa de capturar o gesto, um jeito espontâneo e particular de 37 moradores

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de um edifício homônimo no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro. A equipe de filmagem se hospedou por uma semana em um dos apartamentos a fim de para além de registrar os depoimentos, se inserir no espaço fílmico. A primeira sequência traz Vera, que introduz o documentário após a chegada da equipe, apresenta de forma trágica porém otimista a vida no prédio. Sérgio, o síndico demonstra todo seu orgulho na administração do edifício contando os méritos de transformar aquele lugar. Maria do Céu também faz parte dessa retrospectiva trazendo histórias pitorescas que faziam parte

do

cotidiano

do

edifício.

Vera

e

Maria

do

Céu

se

portam

tragicomicamente, contando mortes e farras, numa performance divertida. A matéria-prima de um performer divertido é ele mesmo ou seu entorno narrados de maneira peculiar, expressando uma visão dúbia do mundo, na qual o riso e o sério andam juntos. Enquanto uma é mais introvertida e tomada por ironia sutil, a outra fala alto, gesticula e dá gargalhadas. Nove personagens apresentam esse viés performático, o que traz uma leveza ao filme perto de todo enclausuramento que ele apresenta. Sérgio por sua vez, tem uma performance exibicionista, aposta no excesso e nas frases de efeito, exibe suas conquistas e expressa uma grande capacidade fabuladora. Este ainda oscila entre a performance educativa quando expõe suas teorias e de certo modo, sua arrogância de quem tem o poder de definir e aplicar regras. A partir daí, o envolvimento do espectador pode ser bem maior e os depoimentos vão moldando um retrato de Copacabana que não se vê geralmente, o da pluralidade e possível identificação com uma classe média além

dos

clichês.

Esse

envolvimento

começa

com

a

performance

melodramática de Esther, uma senhora que conta a história da tentativa de suicídio depois do assalto que sofreu, no entanto oscila entre a diversão e o exibicionismo quando mesmo emocionada relata de forma bem-humorada e exaltando seu amor-próprio. Tal tipo de performance se caracteriza pelo excesso de dramaticidade, sentimentalismo, provocados pelo modo de narrar e/ou pelo seu conteúdo. A performance musical está presente em grande parte dos filmes de Coutinho

e

em

Edifício

Master,

oito

personagens

apresentam

essa

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característica. Essas performances produzem um efeito de intimidade baseado numa conversa confessional, pois marcam a presença do diretor mostrando que seus atores atendem à sua demanda, reforçando o vínculo entre o cineasta e as personagens, além disso, rompem o regime estético do documentário contido nas entrevistas. É comum que o fator melodramático se faça presente, como no depoimento de Henrique, que apresenta uma postura ponderada até se confrontar com a música de Frank Sinatra, My Way. Sua identificação com a letra e a relação com a música são comoventes e neste momento do filme, onde Henrique canta e chora ao som de Sinatra, a montagem de ritmo crescente colabora para que a performance seja a mais dramática possível. Toda performance é por essência uma provocação. No entanto, a performance

denominada

provocadora

excede

esse

caráter

do

ser

performático. Sua intenção é romper a zona de conforto e comodismo das convenções estabelecidas, sair dos limites do tolerável. No documentário de Coutinho essas performances não carregam um alto teor de agressividade mas ainda apresentam um nível de tensão que leva ao desequilíbrio da aparente tranquilidade do diálogo, como a Maria Pia, personagem emblemática que apresenta um ponto de vista polêmico quando questionada sobre a pobreza. Sua postura e semblante mudam ao defender sua opinião confrontando o diretor, põe em xeque o politicamente correto, se contradiz, é preconceituosa. A maneira irônica e enfática de suas colocações a aproxima também de uma performance exibicionista, sugerindo superioridade até em relação ao documentarista como se o mesmo fosse desprovido de informação. Dentre as personagens de destaque, Daniela se apresenta por meio de uma performance esotérica, que compreende a ideia de mistério, segredo ou do seguimento de correntes filosóficas. Daniela marca presença através de um mistério, da busca por autoconhecimento, pela inaptidão em manter padrões de comportamento socialmente aceitos, gestos intensos e alterações no modo de falar, expõe suas dificuldades, em momentos se retrai. No ápice da sua performance fala da terapia que é a pintura, divagando sobre suas experiências.

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A última personagem a ser entrevistada é Fabiana, jovem e inexperiente, indecisa, como o modo de sua performance. Demonstra certo desinteresse, fala pouco e não tem o dom da oratória, sua indecisão pode parecer uma estratégia para escapar de questionamentos. Apenas é segura enquanto fala de seu passado, a infância com os avós vivendo no interior, pois parece alheia ao presente e não tem ideias para o futuro. Edifício Master é a essência do documentário de personagem que revela a riqueza em expressividade da obra de Eduardo Coutinho, trata da oposição ao assujeitamento dos corpos aos códigos normativos da sociedade e aposta no potencial criativo da performance em transformar uma pessoa comum em performer-personagem através do espaço fílmico, a partir deles mesmos, de suas experiências de vida e da sua relação com o “outro”. A imagem então, se transforma num espaço virtual no qual as pessoas realizam performances de suas vidas. A ligação entre arte e vida se mostra presente resgatando a função social do narrador e sua maneira peculiar de contar uma história.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

A encenação da vida real Rafael Beck

Eduardo Coutinho foi um dos maiores cineastas da história do cinema brasileiro. Com uma carreira de 50 anos, destacou-se como documentarista quando lançou o longa-metragem Cabra marcado para morrer em 1984. Coutinho trabalhou no teatro, na televisão e no cinema, sempre reinventando e adaptando os meios com os quais se comunicava. Em janeiro de 2014, Eduardo Coutinho e a esposa foram assassinados pelo filho, que sofre de doença mental. A morte do cineasta fez reacender as discussões sobre seu cinema e sobre as abordagens por ele feitas em seus filmes, além de ter gerado uma série de homenagens que trouxeram sua obra mais para perto do público. Durante o ano de 2016, o livro utilizado pelo pet Cinema foi A personagem no documentário de Eduardo Coutinho, livro de Claudio Bezerra pesquisador e professor do curso de jornalismo da Unicamp e colaborador de Coutinho em trabalhos audiovisuais, como objeto de pesquisa sobre encenação e narratividade. Após a leitura do livro, os bolsistas apresentaram um seminário, discutindo o conteúdo do livro. Em A personagem no documentário de Eduardo Coutinho é feita uma análise dos filmes do cineasta com

base

nos

personagens

representados

por

seus

entrevistados;

performances reproduzidas frente às câmeras; criações dos imaginários de inúmeras pessoas; personagens que representam indivíduos que são reflexos das normas vigentes na sociedade; representantes, acima de tudo, do povo brasileiro. Inicialmente, Fernão Pessoa Ramos, pesquisador na área do cinema documentário, no prefácio do livro, e Claudio Bezerra, na introdução, apresentam de forma bastante sucinta o conteúdo do livro, o primeiro, tecendo

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uma opinião e convencendo o leitor a apreciar a obra. O segundo, já resumindo um pouco por quais águas iremos navegar na leitura do livro. Antes de abordar essas performances, Bezerra faz um breve apanhado da vida profissional do cineasta no Capítulo 1. Evolução Estilística de Coutinho. Nele, o autor já inicia narrando diretamente a vida profissional do cineasta, contando como começou sua carreira artística nos teatros, pulou para o cinema e se firmou como documentarista na televisão, voltando a se destacar no cinema no início dos anos 2000. Como grande parte dos livros que abordam a vida profissional do personagem central, este também começa com um breve resumo da vido indivíduo estudado, e escolhe uma limitação sobre o que se fala, aqui, a performance da personagem de Coutinho. Assim, o capítulo traça um panorama inteligente sobre os estilos de Coutinho, trazendo exemplos de seus produtos e já analisando seu estilo, as mudanças do mesmo e comparando com a contextualização social das épocas em que o cineasta realizou seus filmes. No segundo capítulo, intitulado Trajetória da personagem coutiniana, Bezerra apresenta três fases dos filmes documentário de Eduardo Coutinho, dividindo-as segundo os personagens explorados pelo cineasta. A primeira fase é do personagem vítima ou herói, onde as vítimas são aquelas personagens marginalizadas e que sofrem de alguma forma pelas pressões e convenções sociais, pelo preconceito, pelo descaso; e os heróis, aqueles que vencem os obstáculos e se destacam na vida. Dentre os filmes de personagens vítimas destacam-se Seis dias de Ouricuri (1976), onde os personagens são vítimas da estiagem, O pistoleiro da serra talhada (1977) e Exu, uma tragédia sertaneja (1979), as personagens são vítimas de assassinato e seus familiares. Dentre os filmes com personagens heróis, destaca-se: O menino de Brodósqui (1980), onde vemos Candido Portinari ir do menino pobre do interior ao maior artista plástico brasileiro. Destaque para Theodorico, imperador do sertão (1978), onde vemos o herói em Theodorico e as vítimas nos seus empregados. A segunda fase é marcada pelo personagem contraditório, não há vítima nem herói, com personagens com diversas opiniões, com movimentos e enquadramentos de câmera que documentam de forma multifacetada, com crescimentos de personalidade, com personagens diferentes e abertas à diversidade. Destacam-se os filmes: Cabra marcado para morrer (1984), Santa

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Barbara: duas semanas no morro (1987), O fio da memória (1989) e Boca de lixo (1992). A terceira fase é caracterizada pelo personagem performática, que será o foco do livro de Claudio Bezerra. Sobre ele, Bezerra diz: “Alguém que encena a sua vida para a câmera com palavras, gestos, expressões e posturas, muitas vezes singulares, surgidas espontaneamente, “no calor da hora” da filmagem, durante a interlocução com o diretor, sua equipe e a câmera, como uma presença “viva” do espectador” (BEZERRA, p. 42)

O autor ainda cita Ramos (2008) e conclui que essa personagem oscila entre a encenação-locação – quando as personagens são filmadas no lugar onde vivem- e encenação atitude – quando as personagens são altamente influenciadas pela presença da câmera e da equipe. Nessa fase, Bezerra destaca: Santo forte (1999), Babilônia 2000 (2001), Edifício Master (2002), Peões (2004), O fim e o princípio (2006), Jogo de cena (2007), Moscou (2009), As canções (2011) Sobreviventes de Galileia (2014) e A família de Elizabeth Teixeira (2014). No Capítulo 3 – Performance e documentário, o autor dedica-se a compreender o que é a performance nas artes e a incluí-la no processo de realização de Eduardo Coutinho, dividindo o capítulo em quatro partes: Performance, performer e personagem documentária, Perfil de personagens de Coutinho, Procedimentos de filmagem e Procedimentos de montagem. Na primeira parte, vale-se de vários teóricos para falar sobre performance. Já destacando a performance no documentário, cita Nichols (1994), que definiu o documentário performático como uma forma de “enfatizar os aspectos subjetivos da experiência e da memória, numa combinação livre entre real e imaginário”. Traz, também, a definição de Glusberg (2003) sobre o que é performance: performance vem do francês , cuja raiz etimológica vem do latim (per-formare, “realizar”). Hoje em dia, entretanto, é muito abrangente. Bezerra propõe que observemos a palvra como referente “à realização de determinados atos em situações definidas, envolvendo certo nível de eficiência em sua execução”. Defende, ainda que, na performance, mais importante que aquilo que se conta, que a história que se narra, é como se conta. No cinema, segundo o autor, a performance representa soma entre o corpo natureza do indivíduo e a câmera. Zumthor (2000) e Shaviro (1994) são

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escolhidos para explicar o cinema e a performance. O primeiro, acredita ser possível entender a performance como um processo de construção criativo e indutivo, alegando que o filme não traduz apenas o fato vivenciado nas filmagens, mas a própria performance, e sua tradução não se dá apenas pelo conteúdo, mas também pela forma de dizer. O segundo, acredita que o corpo cinemático é produzido em certas circunstâncias e determinações de filmagem e montagem, mas possui uma autonomia de vida no universo peculiar dela. Ao falar sobre o perfil dos personagens de Coutinho, Bezerra conclui que o realizador converte pessoas comuns em personagens. Essas pessoas comuns, ainda segundo o autor, devem possuir seis condições básicas: anonimato, oralidade, espontaneidade, fabulação, teatrealidade e experiência de vida. Coutinho, assim, escolheria suas personagens por identificar nelas pessoas excelentes narradoras desconhecidas que não tem problemas em se expor e que estejam dispostas a sair do cotidiano utilizando o corpo e a voz de forma diferentes para contar fatos pessoais que geram interesse. Em Procedimentos de filmagem, Bezerra discute métodos e dispositivos utilizados por Coutinho para realizar seus filmes. Inicia salientando que para Coutinho, o mais importante de tudo era “como filmar” o que se desejava e que o cineasta tinha o costume de criar um dispositivo segundo as condições de produção de cada filme, ou seja, o dispositivo, mesmo que semelhante de um filme para o outro, é sempre diferente de alguma forma. Bezerra, então retoma o cineasta francês Jean Rouch, que aproveitou a intervenção da relação câmera/personagem de forma produtiva e das características do “cinema verdade” para defender que um dos procedimentos de Coutinho baseia-se na oralidade e em não expor uma realidade antes do filme. Bezerra aponta, também, as diferenças entre Rouch e Coutinho, lembrando que o primeiro convivia previamente com os entrevistados/atores e pedia claramente que houvesse encenação durante as filmagens, ao passo que apenas a equipe de Coutinho conhecia os entrevistados previamente e ele não pedia encenação. Em relação aos dispositivos, Bezerra lembra Lins (2004): “Não há um mesmo dispositivo para todos os trabalhos porque ocorrem „alterações intimamente ligadas ao que será filmado‟. Ela ressalta que, mesmo quando os procedimentos mais comuns se repetem (a locação única, o uso de equipamentos de vídeo e a

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presença da equipe nas imagens etc.) „repetem-se na diferença e são rearticulados a novas determinações.” (BEZERRA, p. 64)

O dispositivo criado, entretanto, não visava, ainda, à performance da personagem. Segundo Bezerra, foi só em “Santo Forte que os procedimentos de filmagem começam a aparecer de maneira mais articulada no documentário de Coutinho, numa proposta explicita de cinema que se constrói no dispositivo”. Santo forte, foi gravado em vídeo analógico e depois passado para película, houve uma pesquisa prévia e adotou-se o “plano fixo” no tripé como enquadramento. Em Babilônia 2000, houve apenas uma locação e pesquisa prévia e o filme foi gravado com cinco equipes portando, cada uma, uma câmera digital que permitia gravação continua de uma hora (contra os vinte minutos do vídeo em Santo Forte). Edifício Master, tem uma maior concentração espacial (apenas o prédio), a pesquisa consistiu em a equipe morar em um apartamento durante três semanas e a metalinguagem se faz presente através da câmera do sistema de vigilância do edifício. Em Peões, também gravado em vídeo, a motivação é participar de um momento importância da história brasileira (o novo sindicalismo), a pesquisa foi feita através de vídeos e fotografias da década de 1970 (quando iniciaram as manifestações). O fim e o princípio é diferente dos filmes anteriores: não há pesquisa prévia, Coutinho apenas vai para o sertão nordestino para filmar de forma aleatória, a motivação é encontrar e registrar “um mundo realmente isolado”. Entretanto, Bezerra conta que Coutinho não conseguiu realizar o filme por motivos vários e voltou para o Rio de Janeiro. Na volta para o sertão, sua “produtora” local havia feito uma pesquisa e Coutinho conseguiu realizar um filme que, segundo Bezerra, é um “documentário divertido e questionador sobre a existência humana”. Em Jogo de Cena (2007) Coutinho faz um anúncio em um jornal e as pessoas vêm até ele para se submeterem a um “teste”, as selecionadas “contracenam” com atrizes famosas. A locação é uma só (um teatro sem plateia) e há “uma maior presença da técnica cinematográfica, ainda que o minimalismo estético permaneça dominante na filmagem da palavra”. Em Moscou, Coutinho convida um grupo de teatro profissional para compor e ensair uma peça que não seria montada, e o diretor filmaria todo o processo (numa única locação – o galpão do grupo), que deveria durar três semanas. No filme, o diretor pouco conversa com os personagens, não há

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entrevista e não há pessoas comuns, o que, segundo Bezerra, rompe com duas das principais características desta terceira fase de Coutinho. As personagens de As canções foram convidados como em Jogo de cena: através de anúncios em jornais e internet e cartazes nas ruas; os selecionados ficaram de frente com Coutinho na sua forma mais habitual de entrevistador e contaram e cantaram suas experiências pessoais em um espaço único e sombrio, induzindo os entrevistados a realizarem performances. Segundo

Bezerra,

Coutinho

tinha

procedimentos

que

fizeram

performances eclodirem. Dentre deles, estariam: a pesquisa prévia para encontrar bons narradores e informações sobre eles; a locação única, que serve de confinamento, sendo amplo como uma favela ou restrito como um teatro; o uso do “plano fixo” para tornar a câmera mais discreta e poder olhar os personagens nos olhos; o fato de os entrevistados conhecerem o realizador apenas na hora da gravação; e a idade do diretor. Bezerra observa que através de todas essas características criava-se um ambiente de espontaneidade, capaz de facilitar o desempenho performático de seres humanos comuns diante de uma câmera. E, depois, Coutinho voltava a intervir nesse processo performático durante a montagem do filme. Em Procedimentos de montagem Bezerra defende que é na montagem que o corpo – que, durante a gravação, entregou-se a uma performance – ganharia uma “forma propriamente fílmica”. Durante o processo de montagem, segundo o autor, Coutinho procurava manter e adensar as performances. De forma geral, é importante, para Bezerra, observar que Coutinho opta por uma montagem considerada “demonstrativa” – onde o termo deve ser visto como uma montagem sem começo, meio e fim, já que o que Coutinho apresenta ao público é uma espécie de colagem das entrevistas que resultam em performances – e direta, com cortes secos, sem trucagens e retoques, optando por enfatizar o “ao vivo”, a realidade nua e crua. A montagem de Coutinho, entretanto, inicia nas gravações, já que opta, quase sempre, por dois tipos de planos: o fechado e o aberto. O primeiro para filmar os entrevistados e enfatizar a performance, sobretudo a oral; o segundo, para filmar a equipe, destacando a presença dos entrevistados. Outra etapa fundamental da filmagem era apresentar um ou mais cortes para algumas

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pessoas, afim, inclusive, de observar possíveis espectadores para aquelas performances. Bezerra observa, ainda na análise dos procedimentos de montagem, que, a partir de Santo Forte, há uma vontade nítida de Coutinho em assumir radicalmente o “acontecimento fílmico” gerado pelo dispositivo. Assim, além das cenas da equipe, o que, usualmente, seria cortado é incorporado ao produto final, como: pessoas recebendo cachê, pessoas conversando com a equipe, os encontros de Coutinho com os entrevistados. A partir de Edifício Master, defende Bezerra, Coutinho passa a rejeitar qualquer tipo de elemento visual ou sonoro que não tenha sido gravado de forma direta - o que respeita a já citada máxima do “ao vivo” -, e opta por intercalar as entrevistas com imagens dos corredores, imagens da câmera de vigilância e de ambientes internos dos apartamentos . Em O fim e o princípio, mais que em qualquer outro, Coutinho se insere no filme de forma performática, como os demais entrevistados e enfatiza o corpo deles. Já em Jogo de cena, onde intercala depoimentos de atrizes famosas e outras mulheres desconhecidas, o corte é ainda mais seco, não havendo, quase nunca, mudanças de enquadramento ou de cenário. Em Moscou, é o momento onde a montagem demonstrativa mais é evidenciada: as entrevistas com personagens performáticos são substituídas por fragmentos dos mais diversos materiais – conversas com os envolvidos, workshops, encenações, conversas sobre a vida real dos atores. “Nenhuma cena”, diz Bezerra, “tem um sentido em si, nada se conclui de modo claro, do começo ao fim do documentário”. Segundo o próprio Coutinho, foi um filme angustiante de ser montado, ao contrário de sua produção seguinte. As canções era um filme onde o diretor sabia o que queria e como queria fazer. Como em Jogo de cena, a aparição de cada personagem é feita de forma estratégica: algumas cantam e falam, outras apenas cantam, há quem aparece mais de uma vez, algumas explicam a música escolhida. Nos últimos filmes de Coutinho, A família de Elizabeth Teixeira e Sobreviventes da Galileia, são usadas muitas imagens de arquivo – de formas diferenciadas em cada um deles e “prevalece o corte seco entre as imagens, não há trilha sonora adicional, e as personagens aparecem na ordem em que foram filmadas”.

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No Capítulo 4 do livro, Performances no documentário de Coutinho, finalmente, Bezerra analisa as personagens de Coutinho segundo nove tipos de performances (Bezerra definirá, mais adiante, performance como um “ato de exibição): xamanística, musical, provocadora, exibicionista, divertida, educativa, esotérica, melodramática e indecisa. A primeira faz referência ao xamanismo – “alguém que está excitado, comovido ou elevado” -, alguém que passeu pelo universo do desconhecido e relata experiências de transformação e revelação ocorridas

em

outras

realidades,

outras

dimensões.

Os

personagens

destacados por Bezerra são: Dona Thereza, André, Carla e Vera (todos do filme Santo forte). Dona Thereza é emblemática, agindo como uma espécie de xamã e evocando espíritos. Carla, por outro lado, relata sofrimento, mas confessa que recebeu muitos bens dos orixás. A performance musical é aquela onde há um “efeito de intimidade”. Na terceira fase de Coutinho, todos os filmes apresentam pessoas cantando, só em Edifício Master são oito, e, em As canções, todos. Bezerra cita alguns: Fátima (Babilônia 2000), Henrique (Edifício Master), Isabell, Sílvia, Lídia e Maria Aparecida (As canções). A performance provocadora é quando o performer exacerba um caráter básico da performance: provocar, irromper com os padrões sociais, incomodar, cutucar a ferida. Bezerra cita: Maria Pia e Roberto (Edifício Master), Leocádio e Chico Moisés (O fim e o princípio). Maria Pia provoca, especialmente, por sua ironia, pelo riso ao tratar de assuntos sérios como a discriminação racial; Roberto, dá uma dura em Coutinho e suspende a autoridade. A performance exibicionista é aquela onde há o excesso da exibição através de gestos, traços, autoelogios, onde vemos personagens orgulhosos, defensores de suas causas, vaidosos natos. Bezerra destaca: Nato (O fim e o princípio), João José (Sobrevivente da Galileia), Sérgio, Renata e Luiz (Edifício Master). Nato chega a levantar (movimento acompanhado pela câmera) para falar de si mesmo, e Renata faz questão de ressaltar o quanto o namorado americano é perfeito. A performer divertida se caracteriza por construir uma imagem alegre de si, levando a vida na esportiva, provocando o riso, narrando acontecimentos da vida de forma desprendida, com humor e auto ironia. As personagens citadas são Vera, Maria do Céu e Alessandra (Edifício Master) e Mariquinha (O fim e o princípio), sendo Alessandra uma das grandes personagens da história do documentário de Coutinho, uma garota de

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programa libertária que se autodenomina mentirosa e um dos motivos de Coutinho decidir realizar o longa. A performance educativa é aquela onde há simplicidade, delicadeza, humildade e onde o ensinamento vem de maneira involuntária. Os destaques de Bezerra são: Elizabeth Teixeira (Cabra marcado para morrer), Assis, Zé de Souza e Rita e Zequinha (O fim e o princípio) e José Carlos (Edifício Master). Elizabeth com o desejo de partilhar a trajetória de sua vida e de sua luta, Rita e Zequinha falando sobre a vida a dois, e José Carlos expondo preconceitos sociais. A performance esotérica se relaciona com o termo esoterismo ao passo que este faz referência a uma forma de pensamento que reúne uma infinidade de conhecimentos e doutrinas, modernamente, também faz referência ao autoconhecimento. E é o autoconhecimento e o jeito misterioso que caracterizam essa performance. Bezerra destaca Daniela e Eugênia (Edifício Master) e Lica e Zequinha Amador (O fim e o princípio). Daniela é notória, com modulação de voz peculiar, gestualidade intensa e inaptidão para manter certos padrões comportamentais sociais. A performance melodramática é caracteriza pelo excesso de dramaticidade, com histórias de abandono, traição ou

traumas

com

marcas

profundas.

Algumas

das

performances

melodramáticas citadas são: Carlos e Maria Regina, Esther e Antônio Carlos (Edifício Master) e Gisele Alves, Sarita Houli e Aleta Gomes (Jogo de cena). Carlos e Maria Regina apresentam uma atuação que faz lembrar casais de programas sensacionalistas. Esther conta como foi roubada e como pensou em se suicidar. A performance indecisa, por fim, é aquela onde se enquadra uma só personagem: Fabiana (Edifício Master), uma jovem sem muita experiência de vida que não sabe o que falar, que não tem o dom da oratória e que não sabe os rumos que sua vida irá tomar e que “acaba por transferir ao próprio filme uma ausência de amarração no encerramento, cuja síntese é a expressão: „Só‟”. Nas Considerações finais, Bezerra esclarece que o que procura é revelar que o amadurecimento de questões ao longo da carreira e o que foi preservado, descartado ou aperfeiçoado é que forma o que ele chama de “estilo” Coutinho. Conclui, também, que o documentário de personagem, não discutindo mais um tema, aposta no encontro do diretor com os entrevistados e naquilo que surge desse encontro: as performances. Para finalizar, o autor

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retoma os nove tipos de performances elencadas e detalhadas durante o livro e ressalta que esses personagens provam que o documentário de Coutinho é um cinema político que está pronto para afrontar a sociedade midiática e os códigos normativos construídos por ela, apostando no “potencial criativo da performance em transformar uma pessoa comum em performer-personagem”. O livro de Claudio Bezerra traz, em seus primeiros capítulos uma contextualização sobre a vida profissional de Eduardo Coutinho e sobre, como diz o título do Capítulo 2, a trajetória da personagem Coutiniana durante as três fases observadas pelo autor. Dessa forma, cerca o leitor de informações para começar a delinear seu foco: as performances no documentário de Coutinho. No capítulo 3, Bezerra estabelece os limites, as características dos personagens da terceira fase de Coutinho e as sustenta de alguma forma. Inicialmente, falando sobre os conceitos de performance, depois, definindo nitidamente o perfil desses personagens. Na sequência, quando fala sobre os dispositivos de Coutinho, Bezerra sustenta sua teoria de que Coutinho procurava pessoas comuns com características muito definidas e através da exemplificação dos dispositivos (forma de procura de personagens, locação escolhida, equipamento utilizado, noções de linguagem cinematográfica escolhidas). Ao falar da montagem, defende-se que cada personagem é único – e é mostrado por Coutinho como tal pela montagem demonstrativa. Todas as performances estão atreladas àquilo que Bezerra define como as características básicas dos personagens escolhidos por Coutinho. De forma inteligente e bastante agradável, o autor explica cada um dos tipos de performance e exemplifica-as, destacando esta ou aquela personagem de determinados filmes. As características atribuídas a cada performer atiça a curiosidade de quem lê o livro para procurar os filmes citados e se deliciar com uma maratona de filmes de Coutinho, permitindo-se identificar os tipos de performances e, quem sabe, até pesquisar e encontrar outros tipos não destacados pelo autor. Mesmo que, como todo o livro, essa análise seja bastante acadêmica, é a leitura mais interessante que Bezerra produz ao longo de seu estudo. No livro, Bezerra dedica-se a descrever o processo de criação do cineasta Eduardo Coutinho, optando pelas performances dos personagens da terceira fase do realizador. Bezerra apresenta fatos, revela estudos e

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entrevistas, analise os personagens dos filmes de Coutinho; documenta de forma muito organizada e sistemática um grande número de situações, relações, personagens, performances, ao longo de dez filmes do cineasta. E, mesmo que seja bastante acadêmica a forma de revelar seus estudos, é interessante observar os seres humanos a partir do olhar de Coutinho. Para sustentar suas ideias, Bezerra recorre a renomados teóricos. Alguns destacados no campo do cinema são: Fernão Pessoa Ramos, Bill Nichols, Consuelo Lins, Steven Shaviro, Gilles Deleuze. Alguns destacados no campo da performance são Roselee Goldberg, Renato Cohen, Paul Zumthor. Além de entrevistas que Coutinho concedeu ao longo de sua vida e ao próprio autor. O livro pode ser encontrado somente à venda em lojas especializadas e deve ser apreciado não somente por estudantes, pesquisadores e realizadores na área do cinema, mas, por sua linguagem simples, explicativa e didática, por qualquer interessado em cinema documentário, especialmente no trabalho de Eduardo Coutinho.

REFERÊNCIA BEZERRA, Claúdio. A personagem no documentário de Eduardo Coutinho cap. 3 Perfomance e documentário. 1. Ed. São Paulo: Papirus Editora. 2014.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

O dispositivo multi performático no filme Moscou de Eduardo Coutinho Marcos Vinicius

Levando-se em consideração o conceito de dispositivo determinado por JeanLouis Baudry, este trata-se de uma associação de uma ideia à imaginação, através da qual o expectador entra em conexão com um amplo mosaico de fantasias, mitos, realidades, imaginários e projeções espaço-temporais. “Baudry em seus dois ensaios seminais, Efeitos Ideológicos Produzidos pelo Aparelho de Base (1970) e Dispositivo: Aproximações Metapsicológicas da Impressão de Realidade (1975), lança as bases para a discussão do dispositivo como responsável pelos efeitos específicos produzidos pelo cinema sobre o espectador (“efeito cinema”). Estes efeitos não dependem tanto dos filmes como organização discursiva (ou linguagem na ótica da semiologia do cinema), mas do dispositivo do cinema considerado em seu conjunto (câmera, moviola, projetor, etc.) bem como das condições de projeção (sala escura, projeção feita por trás do espectador, imobilidade do espectador, etc.)” – (PARENTE, 2007 p.11) “O dispositivo define a possibilidade de existência ou não do filme. A cada trabalho, Coutinho estabelecia uma maneira especifica de filmar, basicamente de acordo com as condições de produção” – (BEZERRA, 2014, p. 62)

No filme Moscou (2009) de Eduardo Coutinho, o dispositivo se encontra no convite a um grupo de teatro profissional para compor e ensaiar, em apenas três semanas a construção de uma peça que não seria montada. O grupo escolhido por ele foi o Galpão, uma das companhias mais importantes do cenário teatral brasileiro contemporâneo, cuja origem está ligada à tradição do teatro popular e de rua. Criado em 1982, o grupo desenvolve um teatro que alia rigor, pesquisa, busca de linguagem, com uma montagem de peças que possuem grande poder de comunicação com o público. Coutinho propôs a trupe de teatro documentar o ensaio de uma peça de sua escolha, no caso três irmãs, clássico russo de Anton Tchekhov. Já o diretor

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do ensaio foi escolhido pelo grupo, o ator e diretor Enrique Diaz, com quem eles nunca haviam trabalhado. As peças e contos do escritor russo giram em torno de pessoas simples e suas vidas sem muitas alegrias, consumidas pelo cotidiano. Coutinho também é um cineasta que sempre trabalhou com a vida das pessoas simples, força motriz de seu cinema. O que Moscou traz, então, são ensaios que Enrique Diaz propõe aos atores, como se estivesse montando a peça. Mas Coutinho não é um documentarista que se contenta em colocar a câmera na frente de seu objeto, no caso os atores, e simplesmente documentar. Sendo assim, é correto pensar que em Moscou, Coutinho não se utiliza meramente do Grupo de teatro Galpão ou ainda a montagem do espetáculo Três irmãs de Tchekhov, o diretor em uma perspectiva mais abrangente e vanguardista nutre seu documentário à partir das relações interpessoais do grupo de teatro, bem como das personagens reveladas durante a montagem do projeto cênico. Tendo ainda a performance do próprio Eduardo Coutinho manifestada de forma híbrida onde o mesmo desempenha papeis de diretor (do filme) e parte formadora do processo cênico da peça teatral. Moscou rompe com duas das principais características do documentário da terceira fase de Coutinho: a interlocução direta do diretor com as personagens e a participação de pessoas comuns que, por meio dessa interlocução, tornam-se personagens performáticas. – (BEZERRA, 2014, p.70)

À partir do momento em que o dispositivo fica mais palpável, observamos as escolhas técnicas que Coutinho faz, não deixando que o filme se limite apenas aos espaços de ensaio. O diretor entende que o processo cênico extravasa a sala de ensaios e perpassa os camarins, as reuniões do grupo e finalmente chega no âmago de cada ator com suas trajetórias e memórias que influenciam na formação de suas duas personagens: aquela vivida no texto de Tchecov e aquela que representa sua própria vida.

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Coutinho consegue dessa forma extravasar os limites do documentário e proporciona uma experiência etnográfica mais ampla, pois não se limita ao mero registro de um grupo de teatro em processo de montagem de seu espetáculo, mas introduz o expectador num olhar mais profundo que produz uma espécie de amálgama entre o expectador que se sente grande observador do processo de encenação, da própria encenação e das dinâmicas sociais dos atores de si para si mesmo. Tal como no “cinema-verdade” de Jean Rouch, o documentário da terceira fase de Coutinho também é baseado na oralidade das personagens e não expõe uma realidade prévia ao filme, porque aposta na intervenção e no potencial de revelação de um “acontecimento fílmico”. – (BEZERRA, 2014, p.63)

Em sua terceira fase, Coutinho nos proporciona um inquietamento em relação à sua obra, pois não podemos ter certeza da veracidade daquilo que está nos sendo dito. Não há registro documental, não há enfrentamento das oralidades, há apenas e sobretudo, a crença naquilo que está sendo dito como verdade irrefutável, ou mentira escandalosa, sabemos apenas aquilo o que nos é dito e fica a cargo da subjetividade do expectador o julgamento e validação do discurso que o interlocutor nos diz através do documentário. O documentário, tal qual a obra Três irmãs de Tchekhov nos fala sobre as inquietações da alma. Se no texto de Tchekhov, a capital russa é fonte dos mais variados sentimentos aos personagens, é também um sonho longínquo que se enterra nas memórias dos personagens que a deixaram. Coutinho tenta se aprofundar naquilo que o ator mais se debate ou seja quais seus sonhos e angústias em seus solilóquios particulares. Num olhar mais pueril da obra de Coutinho, a força motriz de seu cinema são as pessoas simples e seus cotidianos, no entanto, sua obra não se limita à estes paradigmas e sim às angustias e liberdades desse cotidiano que pode ser simples mas jamais simplista, pois caracteriza a vivência de todo ser humano. Através da exposição de fotografias e demais objetos de acervo de memória o diretor induz uma mistura entre a vida das personagens e a história que Tchekhov nos conta, se hora a conversa é entre os atores e hora a

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conversa é entre as personagens, temos uma obra envolta num certo ar de incerteza sobre o que estamos assistindo e naturalmente a história acaba se unindo em uma só. Mesmo as memórias dos atores reverberam-se na história de Tchekhov e vice-versa, não nos dando a certeza de qual história estamos vendo ao mesmo tempo que observamos uma história se desenhando em nossas pálpebras. O resultado que se vê na tela é singular. O filme não é o making off da montagem da peça, mas uma investigação sobre a relação entre arte e realidade, busca explorar a importância da memória na vida do indivíduo.

Referências Bibliográficas BEZERRA, Cláudio. A personagem no documentário de Eduardo Coutinho. 1. Ed. São Paulo: Papiros Editora. 2014. MOSCOU. Direção: Eduardo Coutinho, Produção: João Moreira Salles, Mauricio Andrade Ramos, Guilherme Cezar Coelho. VideoFilmes, 2009. PARENTE, André - Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo publicado em Estéticas do digital - cinema e tecnologia, Livros LABCOM;

2007.

Acessado

em:

https://pesquisacinemaexpandido.files.wordpress.com/2011/05/cinema-emtrc3a2nsito-do-dispositivo-do-cinema-ao-cinema-do-dispositivo.pdf no dia 10 de dezembro de 2016 às 13h.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

O documentário e o aparelhamento Tiago de Melo Araujo

No livro de Cláudio Bezerra – A personagem no documentário de Coutinho, é debatido a singularidade da

representação das pessoas no escopo

cinematográfico do referido diretor. A partir de análise de diversas conjunturas que validam a posição adotada pelo realizador, Bezerra traça um panorama de características ao longo da sua filmografia. Inspirado pelo estudo e utilizando uma dos axiomas debatido no livro, esse texto pretende expandir o conceito de performance presentes nos filmes contemporâneos, através do aparelhamento do mesmo pelo registro audiovisual.

O Documentário Contemporâneo e o Aparelhamento da Performance

Em um espaço que antes se buscava a naturalidade excessiva dos agentes em cena, como um ato complementar do mundo real, hoje em dia, os documentaristas

estão

cada

vez

mais

atentos

para

aceitar

que

o

estranhamento natural com a câmera passe para um campo de invólucro, simulação

e

atuação

dos

corpos

diante

do

dispositivo

colocado

e

consequentemente isso guie essas narrativas. Essa importante e rígida mudança na gênese da maneira de filmar as pessoas, acabou fazendo com que nos documentários contemporâneos o termo performance seja algo bastante presente, debatido, aceito e influenciado pelos realizadores e pelo próprio público. A Performance dentro dos documentários é algo que vem se desenvolvendo desde a década de 70 com as ideias de múltiplas identidades dentro dos filmes, que ao romper as barreiras colocadas entre realidade e ficção,

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aprofundava na composição de personagens menos robóticos e verborrágicos. No entanto, a diferença de simulacros à nível particular e subjetivo também se faz presente, fazendo com que diferenças de níveis de performance transitem entre a performance pessoal e a performance social, complexidades na forma e no sentido que dá ao mesmo tempo uma pluralidade de identidades. A questão se coloca da seguinte maneira: não há a irrupção de uma presença corporal pura, pois os próprios corpos já são atravessados e conformados pelo poder performativo da linguagem. O corpo se constitui performaticamente em nossa inserção na linguagem (SALIS, 2007, p.104).

Ao transpor a vida para o cinema, é importante perceber as diferenças com os formatos usuais que são colocados diariamente na grande tela, pois na sua vertente clássica o cinema se desenvolveu e se consolidou com um determinado formato que utiliza de parâmetros universalizados que tem na invisibilidade da forma, a gênese de contar algo, em vídeo. O campo do cinema documentário foi se desenvolvendo e alterando a sua própria forma no curso de sua história. Como também acontece no campo do cinema ficcional, o desenvolvimento do cinema sonoro, a cor, a montagem, os estudos de mise en scène e recentemente o próprio cinema digital, alteraram a forma de fazer, ver e viver a “realidade” dessa forma de arte. Esse campo que antes não possuía suas especificidades cinematográficas bem delimitadas, foi se alterando com o tempo, e o encantamento de somente filmar algo material fazendo uso da nova técnica foi se perdendo, fazendo com que se buscasse alternativas para a apresentação de abordagens diferentes, assim ao ligar uma câmera e filmar alguém, surgia primitivamente a noção de personagem. O personagem surge dessa representação. A representação diante do dispositivo técnico é a cerne da ficção, no documentário está ligado diretamente ao campo da naturalidade. Ambos, herdando os conceitos primitivos da dramaturgia: o corpo, o verbo e o espaço. Eduardo Coutinho é no documentário brasileiro um dos agentes da mudança, de forma mais incidente, com a quebra desses parâmetros, ao colocar as lentes cinematográficas sobre o corpo e a performance, com mais força e poder do que o verbo. Algo contrário ao sentido hermenêutico que vinha se

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buscado na maior parte de sua história. Não é difícil encontrar nos documentários contemporâneos a liberdade da performance mais marcada que na próprio ficção, cada vez mais contida. Por muito tempo buscou-se no cinema a noção de simplesmente mostrar mas não de “como mostrar”. Fazendo com que atualmente, o avanço dos estudos e técnicas mudassem essa perspectiva, e colocando soluções e problemas que implicam no ato em que Não importa tão somente o que se diz, mas como se diz. O campo não-hermenêutico propõe incluir na experiência do mundo a performance do corpo, performance esta que se dá em relação à “materialidade”, deslocando então o interesse pela identificação ou atribuição do sentido para as condições em que o sentido emerge. (MARTINS; CARDOSO FILHO, 2010, pag. 149) O espaço é portanto o primeiro axioma que está presente nessa

perspectiva de liberdade da performance. Desde sempre o cinema teve que lidar com o ponto de vista sobre o qual quer apresentar algo, pois o mesmo nunca foi livre, no cinema moderno temos a noção que sempre ao posicionar a câmera está se dizendo algo. O que para o diretor é uma liberdade, para o expectador é uma obrigação, e observamos do ponto de vista que foi definido para nós. A planificação é um Conceito que surgiu a partir de pessoas como Griffith e suas regras que ampliavam as possibilidades de visão e ao mesmo tempo, controversamente, restringia esse mesmo campo de visão. Porém, mudanças nesse sentido é um dos instrumentos do aparelhamento dessa performance, que por sua vez, é nos documentários da atualidade, aquilo que de melhor e singular os personagens podem oferecer para a narrativa: uma volta ao poder da complexidade do corpo e da corporeidade, ou seja, superar o simples verbo, que por si só, já se bastou na literatura. Não se trata de dispensar a fala, e sim de a potencializar, pois na oratória também existe performance, e assim novos meandros surgem como uma gama de possibilidade para o filme, que busca nos personagens novas formas de se expressar pelas metáforas, pelas pausas, pelo olhar e nas potenciais figuras de linguagem e exploração do corpo e dos espaços. Como colocado por Bezerra (2014) “O corpo é cultural, se comunica por gestos, palavras, posturas, silêncios, etc. historicamente construídos no tecido social”.

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Para Bazin (1992), figura que está no centro da mudança do papel do Cinema na metade do século, a maior dificuldade do sétima arte não é os seus limites que se cruzam com a literatura, a pintura e o teatro, e sim a vontade de querer superar esses limites sem potencializar a cerne do próprio cinema que nasce desse encontro e que o configura e o reconfigura a todo instante: a documentação do mundo, que se faz ao ligar uma câmera em um espaço. Após o desenvolvimento do cinema e de toda a transformação que a técnica causou na arte em geral inaugurando uma nova forma de pensar e fazê-la, mudanças significativas na recepção também são indiscutíveis, os processos criativos foram redefinidos e configurou-se um novo desafio que inclui a forma de se relacionar com a interação entre o objeto filmado e o meio em que se desenvolve. O aparelhamento da performance dentro dos documentários seria um instrumento dessa dita “documentação” do mundo, pois a performance que aparece como uma “instância catalisadora da história da arte” vem a partir da quebra de paradigmas que eram colocados pelas hierarquias dominantes, e para romper com

isso e apontar novas propostas na descoberta artística,

apelava-se ao recurso da performance, que é portanto um diálogo artístico entre o eu real e o eu figurado, fazendo com que novas linguagens e métodos possam surgir unificando diferentes olhares e plurificando as camadas dessas intersecções. Como colocado por Bezerra (2014) compondo como um mix de mídias, ou como um “entre-lugar” para o cruzamento de diversas linguagens artísticas. No documentário atual o aparelhamento da performance seria o jogo entre o personagem e o diretor, pois o corpo que transmite algo é posse unicamente daquele que o dispõem, mas a forma de mostrar trata-se de uma escolha direcionada por parte do realizador, que retoma essas escolhas nos processos como por exemplo na posição da câmera na filmagem e na escolha dos planos na montagem. Esses instrumentos criam assim mais do que simples significados da atuação cênica para a criação de uma experiência. A performance nos direciona a uma nova dimensão sensorial, pois nos levanta inúmeras emoções e nos leva a

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momentos e lugares que não necessariamente conhecemos, mas podemos sentir, significar e relacionar com nossos sentimentos, memórias e lembranças. O performer é produtor e produto de imaginários, de si mesmo e do outro.

Bibliografia

BAZIN, André. O Cinema - Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1992. BEZERRA, Cláudio. A personagem no documentário de Eduardo Coutinho. 1. Ed. São Paulo: Papirus Editora. 2014. CARDOSO FILHO, Jorge; MARTINS, Bruno. Presença e materialidade na experiência contemporânea. Alceu (PUCRJ), v. 11, p. 145-161, 2010. SALIS, Fernando Álvares. O documentário corretivo: performance e performatividade na teoria de Bill Nichols, in: MACHADO JR. (et al.). Estudos de Cinema - Socine VIII, São Paulo: Annablume; Socine, 2007, pp.101-109. BAZIN, André. O Cinema - Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1992.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Performance e documentário Rafael Rauedys

O filme documentário por ter um leque disposto e possível de encaixar novas referências e estilos, a partir dos anos 90 passou a ser tomado por uma geração de filmes com recortes pessoais, fugindo do aspecto social e de denúncia, lugar comum e familiar do gênero. Dessa forma, a performance passou a permear o campo do documentário de forma autoral e autobiográfica. Michael Renov, em Bezerra (2014, pag. 47) sugere que essa nova autobiografia caminhava de encontro a uma forma de construir e compor o local da subjetividade como um campo de múltiplas interpretações, de instabilidade. O autor também questiona que as novas mudanças dentro do documentário, possibilitando a grande aparição de filmes que fazem uso de técnicas que abrem espaço para o acaso e para o questionamento a partir da subjetividade do próprio espectador frente à um leque de subjetividades do que ali fora posto em jogo no documentário, proporciona um momento para refletir sobre a função antes estabelecida de caráter informativo, questionador e completamente objetivo. Nesse novo modus operandi de se pensar e realizar documentários tão pessoais, a performance desponta como uma nova maneira do realizador se colocar perante ao mundo de forma inacabada, em constante construção e transformando o filme em um objeto processual e aberto à distintas conclusões possíveis. O autor sugere, a partir desse raciocínio, que o documentário performático possa vir a ser herdeiro dos filmes de Jean Rouch e das ideias de Annette Kuhn. Mas foi Bill Nichols que sistematizou a nova tendência contemporânea de possibilidades de se discursar sobre o real, propondo dessa forma, um novo bloco dentro do gênero: o documentário performático. Nichols observa que tais

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filmes se aproximam do cumprimento inicial do se fazer documentário, a partir do recorte social que tais filmes possuem, pois mesmo carregados de subjetividades muito específicas, são ainda inerentes à condição social do realizador e não fogem do caráter etnográfico. A performance posta à prova no documentário, não exige e muito menos pressupõe surgir com ideias conclusas ou apresentações sociais responsáveis com um contexto possível a partir de seus recortes. Bezerra, a partir da discordância da fala de Nichols, reitera que, nos filmes performáticos não há a necessidade de ruptura com o mundo, mas sim, a possibilidade de inserir parênteses a partir dos fatos, e dessa forma abordá-los a partir de um outro olhar possível. Para exemplificar tal argumento, cita o filme Tongues untied (1989), de Marlon Riggs, que tem no seu início uma sequência hipnótica em que surge em letreiro “De irmão para irmão, de irmão para irmão” seguida de homens negros abraçados e brincando entre eles. As sequências seguintes revelam um policial batendo em um jovem negro e encerra-se com o próprio realizador, Riggs, dançando em câmera lenta até surgir gradativamente nos braços de outro homem negro. Dessa forma, o realizador abordou diversas questões sociais de forma política, mas sem adequar-se ao discurso informativo ou conclusivo. São exatamente as evocações surgidas sequência após sequência que denunciam o ambiente hostil de um homem negro e homossexual, a partir da noção de pertencimento do espectador; é o convite a sentir-se como ele, é o diálogo que surge do convite à experiência do que fora visto. Assim, de encontro com o que foi dito acima, Bill Nichols sugere que a performance surge no documentário como uma nova forma de abordagem politica, baseada em aspectos reais do cotidiano, deixando de lado a pesquisa, o texto acadêmico inserido nas entrelinhas do documentário, para assim se propor a dialogar e causar a reflexão à partir da experiência. Possibilita-se a inserção de discurso entre sujeito e mundo, entre o eu e o outro “corporificando socialmente

uma

situação

existencial”,

que

carregada

de

afetos

e

individualidades, comunica-se por outros canais, que não mais, o informativo e fechado por verdades concluídas.

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Molfetta (pag. 49) atenta que há de se considerar questões como da recepção, pois se não há argumento articulado e fechado, pressupõe-se que tais filmes se direcionem a um público minimamente habituado com a abordagem experimental da performance em um filme. Fernando Salis (pag. 50) também contrapõe-se a respeito do tema, mesmo considerando as teorias de Nichols, considera uma problemática não distinguir o caráter social do caráter individual do conteúdo da performatividade. Há de se ponderar a questão da linguagem desses corpos e considerar a dimensão em que a performance se adequa a noção do conceito em si. Afinal, o corpo por ser um objeto por si só, é cultural e carregado de todas as características pessoais, físicas e emocionais possíveis para se compor uma apresentação de si mesmo, a partir da experiência do afeto e da individualidade do realizador. No texto surge a reflexão sobre a necessidade de se repensar o tema e especificamente o uso exaustivo da palavra “performance” por ela se adequar em diversas áreas, adquirindo outras significações de uma mesma palavra para outros sentidos possíveis. O que facilmente banaliza seu significado e seu uso, sugere-se assim, que haja maior reflexão a partir dos conceitos em torno da semântica da palavra. Enquanto no cinema a palavra “performance” surge para exemplificar uma forma de dialogar a partir da experiência, da sugestão, da alegoria dos corpos e dos afetos; em áreas como por exemplo da informática, o termo é usado para medir o desempenho de hardwares e softwares, ao tempo que na área econômica, fala-se de performance como desempenho da economia de determinado setor ou país. Roseles Goldenberg (pag. 51, 52 e 53) foi pioneira em abordar e discutir o conceito de performance no campo artístico. A autora afirma baseada em sua pesquisa, que a partir do século XX, a performance surge como uma “instância catalisadora da história da arte” e baseada nesse conceito, sempre que um artista procuravam romper com moldes e categorias dominantes, afim de apontar novos propostas e ousar na descoberta artística, encaminhavam-se à performance. Expressionistas, dadaístas, surrealistas, cubistas, minimalistas, etc, são considerados performáticos, pois mesmo tendo passados por orientações específicas em escolas artísticas, inovaram e foram precursores, trouxerem para o meio clássico a possibilidade de se expressar individualmente

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em suas obras, exercendo assim, suas distintas performances como artistas. Goldenberg sugere que a performance no século XX contribui para ser “a vanguarda das vanguardas”. A noção artística de performance teve seu auge na década de 70 em manifestações conceituais artísticas preocupadas em romper com o teor comercial e alienador da arte, fazendo com que as obras aproximassem se o máximo da experiência real do cotidiano. O corpo do artista era ora base, ora a própria arte de seu desempenho, tornou-se o corpo e os afetos em campos possíveis para concentrar e dissipar a ideia de arte. A autora propõe que a história da performance, no século XX, fez-se a partir do reflexo de uma mídia limitadora e permissiva, de artistas insatisfeitos com as formas deterministas estabelecidas para se executar a arte em si, e também, como leva-la ao público. O rompimento com as regras fixas no campo artístico, deram vez e voz à artistas que gostariam de se dirigir ao seu público de formas possivelmente mais humanas e reais, em diálogo direto. Dessa forma, a definição “performance” para o campo artístico canaliza o conceito à partir da noção de que, quando houver a ruptura de moldes convencionais e padronizados para se conduzir um diálogo artístico, a performance surge como um agregado de novos métodos e linguagens, que balanceiam a inovação para sugerir novos olhares e diálogos.

Referências BEZERRA, Cláudio.

A personagem no documentário de Eduardo

Coutinho. 1. Ed. São Paulo: Papiros Editora. 2014.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

A partícula mínima de encenação sobre a luz: Análise sobre as performances das personagens no documentário Jogo de cena(2007) de Eduardo Coutinho. Paloma Cristina

Este

ensaio

analisa

a

inovação

proposta

na

performance

do

documentário Jogo de cena (2007) de Eduardo Coutinho. O filme coloca em pauta a representação e a atuação a partir das quais se apresentam as histórias de suas personagens, propondo assim uma performance do real. Usando como base o livro de Claúdio Bezerra intitulado A personagem no documentário de Eduardo Coutinho (2014), especialmente os capítulos 2, 3 e 4, este ensaio analisa a forma de filmar de Coutinho, e apresenta as classificações que Bezerra formula sobre as performances encontradas nos documentários de Coutinho, destacando as que se apresentam em Jogo de cena; por fim, analisa as performances realizadas durante o filme com o propósito de demonstrar que por mais autêntico que pareça sempre há partículas de encenação sobre a luz.

A performance de Coutinho Coutinho dispunha de dispositivos de filmagem muito claros em seus filmes: a câmera no tripé, o espaço único ou limitado, o tema, a personagem, etc. Esse conjunto de dispositivos não buscava a história perfeita, mas a oralidade, marca de seus filmes. O grande segredo de seus documentários não eram as histórias, mas os seus contadores. A “atuação” de forma imaginativa ou criativa nascia de questões indicadas em pesquisas prévias, e se moldavam na mão de um entrevistador que também aliava características importantes para

a

interação

com

o

entrevistado.

Primeiramente,

Coutinho

era

desconhecido do grande público e isso o aproximava das pessoas, e sua idade

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madura passava confiabilidade. Como ele mesmo dizia: “Eu jamais digo: invente uma história, nem me conte uma história; eu peço para contar a história da vida dela, e aí entram as que sabem contar mesmo” (BEZERRA, 2014). Essa afirmação deixa claro o propósito de provocação de uma performance, considerada autêntica, única, algo que está intrínseco na pessoa e além do que ela fala. Para enfatizar essa performance oral Coutinho opta por planos fechados que enquadram e destacam o corpo da personagem. Após o registro fílmico dessas performances o diretor passava à etapa de montagem. Nessa etapa temos uma reconstrução dessa performance pelas mão de Coutinho, a partir de suas escolhas: qual texto vai ser mostrado, que imagem dessa pessoa e o que será exibido previamente e posteriormente, recriando ou enfatizado as sensações que uma performance ou um conjunto delas pode causar. Sua montagem é considerada por Bezerra como “demonstrativa”, ressaltando a característica de Coutinho em não narrar uma história unitária no sentido clássico, com começo, meio e fim. Na prática seus filmes apresentam performances autônomas que são montadas conjuntamente sem haver relação de continuidade entre elas.

As Classificações de performance A partir das cinco classificações de performance propostas por Roselee Goldberg, Bezerra identifica nove definições de performance nas personagens dos documentários de Coutinho, são elas: esotérica, xamanística, educativa, provocadora, divertida, melodramática, exibicionista, musical e indecisa. A performance esotérica apresenta uma busca por autoconhecimento ou mesmo uma personagem misteriosa. A performance

xamanística é relacionada à

encenações ritualísticas no que diz respeito a experiências espirituais e de transformação causadas pelo desconhecido. A performance educativa é caracterizada pelo desejo de ensinar algo, e pela simplicidade gestual que a personagem apresenta. A performance provocadora rompe com os limites do que é esperado na cena, colocando em xeque o diretor do filme ou até mesmo questões e valores sociais. A performance divertida apresenta uma personagem que ri das adversidades e não se deixa abater, lutando contra a

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opressão social com criatividade, humor e até auto ironia. A performance melodramática apresenta sentimentalismo em torno de histórias caracterizadas por traumas, romances, abandono, violência ou qualquer tema que deixe marcas profundas. A performance exibicionista consegue ir além do exibicionismo comum que já existe em uma performance, intensificando gestos, traços e autoelogios. A performance musical como o próprio nome já diz apresenta uma música em cena que nos documentários de Coutinho são interpretadas por suas personagens. Por fim a performance indecisa apesar de ser praticamente uma exclusividade da personagem Fabiana do filme Edifício Master (2002), causa interesse em Bezerra a ponto de classifica-la, isso ocorre de acordo com o texto pelo fato de que a personagem não apresenta as características gerais buscadas por Coutinho: Oralidade, fabulação e experiência de vida, apresentando indiferença ao mesmo tempo que insegurança.

As performances de Jogo de cena Jogo de cena é marcado por performances melodramáticas, por histórias fortes e que trazem uma carga emocional significativa, porém analisando mais profundamente cada entrevista podemos encontrar características de outras classificações. A primeira entrevistada Mary Sheila, conta de sua entrada no grupo de teatro “nós do morro”, e como isso a ajudou, a melhorou, sua performance tem alto teor educativo, ela torna-se um exemplo de mulher negra da comunidade que torna-se atriz por meio da persistência. A segunda entrevistada que intercala com Andrea Beltrão, Gisele Alves Moura tem como destaque na sua entrevista a perda de um bebê, mas na experiência espiritual que ela descreve durante a narração mora um dos grandes ápices da performance

trazendo

o

xamanístico

para

dentro

de

uma

história

melodramática. A terceira entrevistada é a atriz Débora Almeida representando a entrevistada/personagem Nilza, essa entrevista traz fortes características de performance

divertida

e

educativa,

apresentando

uma

personagem

espontânea, forte e que sorri diante das adversidades, vendo sempre o lado bom das coisas, mas também demonstrando o que aprendeu com sua história.

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A quarta entrevista é de Fernanda Torres que conta uma experiência xamanística com a tia Aurinha partindo de uma experiência melodramática de depressão causada pela perda de um bebê. A quinta entrevistada Sarita Houli Brumer reaparece no final do filme fazendo uma performance musical da cantiga popular “ Se essa rua fosse minha”, em uma tentativa de aliviar a melodramaticidade de sua primeira entrevista que é intercalada com a interpretação de Marília Pêra. A sexta entrevista é interpretada pela Atriz Lana Guelero a partir da entrevistada/personagem Claudiléia Cerqueira de Lemos e mesmo sendo uma performance majoritariamente melodramática há uma passagem xamanística quando elas relatam um sonho com o filho assassinado sendo coroado como um anjo e como isso muda a vida de Claudiléia. A sétima entrevista é de Jackie Brown e sua performance é marcada pela sua história com a música e pela interpretação de seu próprio rap, porém além disso ela se mostra provocadora ao falar abertamente de sua sexualidade e de como lida socialmente com a situação. A sétima entrevistada, Maria de Fátima Barbosa apesar de apresentar histórias melodramáticas envolvendo seu pai e seu marido, não deixa o seu lado divertido, pelo menos é assim que ela se apresenta à Coutinho. A oitava entrevista é de Aleta Gomes Vieira, intercalada com a interpretação de Fernanda Torres. Apesar de relatos melodramáticos há um tom educativo em suas falas enquanto uma jovem mãe que busca seguir seus sonhos. A nona entrevista de Marina D‟élia é uma performance que apesar de contar uma história melodramática, é encenada a princípio com um tom provocador , a forma tranquila de Marina contar suas vivências espanta. Por fim, uma experiência xamanística de sonho com o pai é a forma como ela finaliza sua performance. A décima entrevista é da própria Andrea Beltrão contando sua divertida relação com a empregada Alcedina.

A performance em “Jogo de cena”

“O performer não encarna um tipo ou personagem exterior a si mesmo. Não se anula em prol de um outro ´ser` fictício, é sempre ele, em pessoa que está atuando” ( BEZERRA,2014:p.53).

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O documentário Jogo de Cena nos apresenta uma situação diferenciada até mesmo de outros trabalhos de Coutinho. Aqui nos são apresentadas histórias contadas por mulheres que realmente as viveram e também por atrizes que encenam essas histórias. Afinal se há encenação ainda pode-se chamar documentário? A discussão que permeia as definições complexas sobre os termos “documentário” e “performance” não serão discutidas nesse ensaio, porém foi levantada a questão para análise de um trabalho com uma ideia nova e que me chamou à pesquisa justamente por seu caráter de experimentação com performance, documentário e encenação. De acordo com Cohen (apud BEZERRA), a performance pode ser considerada uma forma de teatro por que também é uma expressão cênica e dramática. Ele considera a relação ao vivo de texto, atuante e público como base para a comparação. No documentário de Coutinho temos além dessa tríade, o próprio espaço como ajudante nessa relação de performance e espetáculo, isso por que o filme se passa dentro de um teatro, onde todas suas personagens entram pela coxia, espaço onde os atores esperam por sua entrada no palco. Sentadas de costas para a plateia, as personagens encaram a plateia-equipe do documentário que representa no ao vivo o público que todas elas vão ter posteriormente nas exibições do filme. A performance das personagens de Coutinho, apesar de guiadas por ele e induzidas pelo espaço são resguardadas para que haja espontaneidade. Há em Jogo de cena uma linha sútil entre atuação e “performance da realidade” construída durante o filme para confundir o espectador, conduzindo-o ao efeito surpresa. Para isso há duas opções de caminho, tornar a “performance da realidade” próxima à atuação, ou a atuação próxima à “performance da realidade”. Coutinho escolhe seu caminho, e não esconde do espectador, deixando visível no filme a direção feita com as atrizes: Andreia Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra. A atuação é feita com base nas entrevistas das personagens, porém as atrizes também são convidadas a contar suas histórias e ficam desarmadas da atuação, assim como o espectador fica desarmado do que é verdadeiro ou não.

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O irônico de Coutinho é que todas as histórias são verdadeiras e ele apresenta suas donas e também quem pode ser apenas uma representante, mas o filme levanta o desejo de descobrir qual delas é a mais espontânea, qual delas tem tanto domínio a ponto da história lhe pertencer. Coutinho nos prende em sua teia, afinal o documentário também é um filtro do real, não estávamos lá, esse filme foi dirigido, estamos a mercê do olhar do diretor, e posteriormente de uma montagem. Quando suas personagens, ou qualquer outra pessoa nos conta algo também estamos submetidos a um olhar e a forma escolhida para se contar, não há fuga, estamos presos às performances. Porém o respiro do espectador e justamente detectar o filtro da interpretação, essa ação que toma para si uma história que não é sua e coloca seu corpo a disposição de senti-la. É uma reformulação, praticamente algo novo, considerando que o representante não tem memória para reprodução do fato, e mesmo assim assistimos ao filme na corda bamba buscando o máximo do real.

A Personagem Segundo Bezzera, as personagens de Coutinho detêm algumas características gerais são elas: anonimato, oralidade, espontaneidade, fabulação, teatralidade e experiência de vida. Em Jogo de Cena temos exceções dessas características com o uso de atrizes globais e personagens jovens, já que Bezerra conta do uso de entrevistados com mais de trinta anos como uma característica também comum de Coutinho. Todas as personagens em Jogo de cena, porém são mulheres, um ponto em comum que especifica o filme e como ele se desenvolve. Além disso, o próprio método de filmagem utilizado é novo na estilística de Coutinho. Ele limita o espaço a um palco de teatro, com as mesmas características para todas as entrevistas. Não há disparidade entre elas construída pelo espaço. Ao tempo que Coutinho não conduz propositalmente

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ou diretamente uma performance, ele constrói seus métodos de filmagem e montagem na busca que eles ressaltem imageticamente o que deve ser visto. Antes de serem afetadas pelo espaço as entrevistadas de jogo de cena foram afetadas por um método de seleção de histórias diferente do que vinha sendo utilizado por Coutinho até o momento. A equipe dos filmes realizados sempre buscaram pelas histórias no espaço indicado por Coutinho, e pela primeira vez essas histórias foram solicitadas a partir de um anúncio de jornal. Lê-se no anúncio: “Se você é mulher com mais de dezoito anos, moradora do rio de janeiro, tem histórias pra contar e quer participar de um filme documentário, procure-nos”. Essa abordagem de teste já em si um chamado à performance aliado de um espaço que posteriormente reforçará essa ideia.

A partícula Apesar de não serem entrevistadas juntas, as atrizes assistem aos depoimentos de quem elas devem interpretar e também comentam a performance das personagens, inclusive apontando o que torna a entrevista enquanto performance.

A atriz Marília Pêra comenta sobre a questão das

lágrimas do depoimento que ela interpreta: “Quando o choro é verdadeiro a pessoa sempre tenta esconder... na frente de uma câmera ou de uma análise.., Quando o sentimento é doloroso e verdadeiro a pessoa tenta esconder a lágrima, e o ator, principalmente o ator hoje tenta mostrar a lágrima”

Logo após, Coutinho lhe pergunta qual foi sua atitude em relação às lágrimas durante a encenação e ela revela que tentou segurar para tornar mais emocionante. Essa análise nos revela o quanto uma performance pode ser sútil, pode ser o fato de reprimir algo, como por exemplo as lágrimas, para aparentar força diante de uma situação vivida. A atriz rapidamente capta essa característica e tenta reproduzir. Andrea Beltrão também não consegue conter as lágrimas ao interpretar Gisele, ou seja, sua encenação é corrompida pelo seu sentimento natural e envolvimento com a história. Seria um toque realismo e autenticidade na interpretação ou uma interpretação afetada pela encenação de Gisele?

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Fernanda Torres ao interpretar Aleta, busca estar o mais próximo da personagem, mas relata o fato de sentir que sua interpretação não alcança a essência da personagem real. A performance da performance é confrontada, como uma desafio de reprodutibilidade e se apresenta enquanto produto exclusivo de cada pessoa. A Aleta de Fernanda Torres é uma Aleta impecável e seria possível que Andrea Beltrão também o fizesse, mas seria outra performance, outra sensação, a própria Aleta passados quase dez anos refazendo o mesmo texto ainda sim seria outra performance, por que é possível reproduzir o filme, mas impossível reproduzir o momento, o exato espaço-tempo que a encenação atravessou a luz e tornou-se eterna.

Referências Bibliográficas BEZERRA, Cláudio. A personagem no documentário de Eduardo Coutinho. 1. Ed. São Paulo: Papiros Editora. 2014. JOGO DE CENA. Direção: Eduardo Coutinho, Produção: João Moreira Salles, Mauricio Andrade Ramos, Guilherme Cezar Coelho. Video Filmes, 2007.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

A construção da performance nos documentários de Eduardo Coutinho: a relação entrevistador e entrevistado performers Luane Batista

O livro de Cláudio Bezerra A personagem no documentário de Eduardo Coutinho traz um retrato panorâmico de toda a obra de Eduardo Coutinho, traçando um perfil evolutivo desde os primeiros trabalhos até a consolidação de um estilo próprio, que o consagrará como um dos mais importantes documentaristas brasileiros. O livro divide essa trajetória em fases. No capítulo 4, foco dessa análise, apresenta uma classificação para a performance das personagens que aparecem nos filmes, fazendo referências e citando detalhadamente passagens desses filmes que corroboram o seu argumento. O filme no cinema documentário baseia-se na prerrogativa da falta de controle absoluto daquilo que será registrado, isso implica uma certa vulnerabilidade que a equipe assume ao iniciar o projeto. O resultado depende da forma como o realizador reage aos imprevistos e da relação que consegue estabelecer com o ou os personagens do seu documentário. É nesse quesito que o cinema documentário coutiniano apresenta seu grande diferencial. (COMOLLI, 2001) Partindo desse pressuposto, é praticamente impossível estabelecer qualquer análise no cenário do cinema documentário sem fazer referência ao texto intitulado Sob o risco do real, de Jean-Louis Comolli (2001), que defende justamente essa característica fundamental. Nos filmes como Edifício Master (2002), onde Bezerra (2014) aponta uma performance provocadora, na qual o performer (entrevistado) faz questionamento a Eduardo Coutinho (que nesse momento também assume um papel de performer) deixando-o numa situação

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visivelmente embaraçosa, fica absolutamente claro que não há como ter total controle nesse formato de filme. É importante também salientar que a simples presença da câmera gera no entrevistado (e porque não dizer no próprio diretor-performer) uma mudança natural de comportamento, porque essas pessoas sabem que serão vistas posteriormente por outras pessoas. Por isso, o próprio Bezerra coloca que, em certa medida, toda performance é exibicionista, em maior ou menor grau. (BEZERRA, 2014) Nos filmes tomados como exemplo para esse capítulo 4, percebemos que Coutinho opta por deixar claro que houve um contato anterior com o entrevistado. Isso é um indicativo de uma tentativa de controle e pesquisa sobre o que seria interessante ou não para aquele filme. Mas, mesmo com esse contato anterior e uma certa condução do diretor, é seguro dizer que essa performance final que chega ao espectador é diferente da primeira entrevista, antes das câmeras. No filme Santo Forte (1999), a decisão de deixar no produto final a cena em que uma pessoa da equipe de gravação paga ao personagem pela entrevista, gera uma dúvida sobre até que ponto vai o acordo estabelecido entre as partes: em que medida a entrevista sofreu interferência da equipe para aquele resultado final, mesmo que saibamos que o performer em questão não é um ator profissional. Ao longo da evolução da linguagem documental, passamos por formatos bastante característicos e engessados como é o caso do cinema verdade, cujo principal expoente é Jean Rouch, no qual o diretor atuava incisivamente com o objetivo de extrair do personagem a “verdade”. A grande questão desse cinema é o quanto interfere na verdade daquele personagem. Outra abordagem é a do cinema direto, na qual o realizador busca interferir o mínimo possível na expressão da personagem e no desenrolar dos fatos registrados. (COMOLLI, 2001)

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Tendo como referência estes dois estilos de documentário, podemos a partir de filmes como As canções (2011), Edifício Master (2002) e Santo Forte (1999) traçar uma reflexão analítica sobre a atuação de Eduardo Coutinho. É fato que ele assume também o papel de performer, conduzindo a cena em quase equivalente grau performático que seu personagem performer, como percebemos em Santo Forte e principalmente, em Edifício Master. Mas em muitos momentos ele parece assumir uma conduta mais próxima do cinema direto, deixando que o personagem exerça sua performance com o mínimo de interferências possível, como percebemos muitas vezes em As canções. Podemos certamente dizer que Coutinho teve influência dessas duas escolas do cinema documentário, mas o que torna o seu cinema absolutamente notável são as nuances singulares ele consolidou. (BEZERRA, 2014) Nos filmes de Eduardo Coutinho, fica claro (mais abertamente ou não) o processo por trás da câmera, a relação que ele e a equipe estabelecem com as pessoas que participam do filme, o grau de intimidade que eles constroem antes das gravações, a intensa pesquisa que é realizada e além de tudo, o quanto o próprio Eduardo Coutinho se permite vulnerabilizar (no sentido de se expor em situações até embaraçosas, em certo ponto, como ocorre em performances provocadoras) e deixar isso no resultado final. Todos esses pontos passam a compor uma característica particular do seu cinema, podendo ser verificadas em seu próprio filme Edifício Master. De certo modo, a característica fundamental de Coutinho é apostar no risco do real, como aborda Comolli (2001), se obstina a enganar previsões, impossibilidade do roteiro, necessidade do documentário. Esse conceito deixa claro que a forma do documentário dependerá muito da realidade que encontrará no momento da gravação e muito daquilo que o personagemperformer mostrar. Os realizadores então se adaptarão a isso e tentarão fazer disso

uma

vantagem,

colocando-se

além

de

diretor-performer

como

personagem-performer, uma vez que ele torna-se personagem fundamental do filme, ultrapassando o papel de realizador e condutor do discurso do entrevistado. Essa ambivalência que ele assume, unida à relação (de confiança e intimidade não forçada) que estabelece com aquelas pessoas, desperta uma

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aura de empatia que perpassa a tela e chega ao espectador, tornando mais fácil a identificação não só com a história contada e a personagem, mas com o próprio Coutinho e seu trabalho. O papel de Coutinho torna-se fundamental para o produto final do filme porque ele afirma-se enquanto personagem-performer e mesmo que por algumas vezes o documentário se prenda ao formato clássico da entrevista, a relação que se estabelece entre ele e o entrevistado, e entre estes e a câmera, não é rígida como costumamos ver na maioria dos documentários desse estilo. (BEZERRA, 2014) É importante também destacar que os diversos tipos de performance estão mesclados em cada performer, e mesmo que seja possível identificar as características marcantes deste ou daquele estereótipo, o que enriquece o filme é justamente a diversidade e multiplicidade dessas características performáticas em cada um, conferindo-lhes complexidade. A opção de Bezerra em trazer os exemplos da obra de Coutinho apontando o filme, o trecho e descrevendo a passagem de interesse para justificar sua colocação, facilita e muito a leitura, tornando-a mais didática. Entretanto, o fato de muitas vezes haver repetição de filmes para diferentes tipos de performance torna a leitura em certo ponto maçante e cansativa. Bezerra divide os tipos de performance em nove: xamanística, exibicionista, provocadora,

melodramática,

divertida,

musical,

indecisa,

esotérica

e

educadora. Cada uma dessas corresponde a um tópico, e como o autor faz questão de frisar ao longo do capítulo, a complexidade de cada pessoa apresentada permite que um mesmo personagem possa apresentar diferentes tipos de performance. Isso faz com que os mesmo exemplos sejam repetidos diversas vezes em diferentes momentos. A intertextualidade é o ponto chave para a leitura e aproveitamento desta obra de Cláudio Bezerra. Seu recorte principal é o cinema de personagem de Coutinho, tomando como base seus últimos trabalhos, estabelece um método de análise ao dividir os tipos de performance, mas na

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maioria das vezes, se limita a um texto descritivo. Ainda assim, se configura num importante instrumento para uma análise crítica mais aprofundada sobre o trabalho de Eduardo Coutinho.

Referências BEZERRA, Claúdio. A personagem no documentário de Eduardo Coutinho. 1. Ed. São Paulo: Papirus Editora. 2014; Capítulo 4: Performances no documentário de Coutinho. COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In Catálogo do Forumdoc.bh.2001. Belo Horizonte, 2001. COUTINHO, Eduardo. As Canções (2011); Edifício Master (2002) e Santo Forte (1999).

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

A voz do documentarista na voz da personagem Geilane de O. Souza

Este ensaio visa analisar os filmes Edifício Máster de Eduardo Coutinho1 e Um lugar ao sol de Gabriel Mascaro², de maneira a relacionar os conceitos abordados nos textos Performances no documentário de Coutinho de Cláudio Bezerra e Como filmar o inimigo? de Comolli. Por suas características, a performance provocadora encontrada em personagens dos dois documentários evidencia que a forma de abordagem escolhida pelos diretores exerce grande influência sobre o caráter performático adotado pelos personagens ao longo dos filmes. Quando as entrevistas deixaram de ser apenas uma amostra para o estudo apresentado pelo documentarista e o sujeito passou a ser o foco das atenções e aprofundado, um novo tipo de relação surgiu. O diretor não podia mais tomar a postura de detentor de uma verdade e em várias vezes foi questionado e tensionado pelo seu novo objeto de estudo por conta de suas particularidades antes pouco exploradas. Com o tempo, as personagens se tornaram mais sagazes e já produziam exatamente o que o documentarista procurava ouvir, ou seja, passaram a sair do estado cotidiano para um novo diante da câmera e tal fenômeno não pôde ser ignorado. Estudar esse comportamento é refletir essa nova relação que se baseia na criação de uma autoimagem para a câmera invés de desmascarar-se. Portanto é necessário entender como isso se dá e como o documentarista tira proveito. Coutinho é reconhecido especialmente pela sua longa jornada em busca do particular e pelo fascínio diante ao modo de representar-se diante da câmera, portanto é natural e lógico que o tomemos como ponto de partida da jornada para vislumbrar seu jogo que, consequentemente, influenciou a forma como os documentaristas passaram a lidar com as personagens. Em especial Gabriel Mascaro, que consciente desse processo de reinvenção o utilizou de modo

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bastante controverso. Entendendo como lidam com as performances, compreendemos suas posturas. Toda forma de enunciação fala sobre o enunciador, no documentário este jogo se amplia uma vez que o documentarista também é um enunciador, pois pela forma como se colhe e recorta um depoimento é também uma forma do mesmo falar. No Brasil, Eduardo Coutinho foi o principal cineasta a explorar essas camadas para além do que é dito e posto, ampliando as questões para “como” e “porquê”. Segundo Bezerra (2014, p.39) a “personagem coutiniana” surge quando em Cabra Marcado para Morrer se compreende que todo entrevistado realiza uma performance de si para a câmera, que se reinventam diante da câmera de acordo com seu interesse de estar e como ser visto no filme e que caberia ao diretor aceitar ou por em xeque essa relação. Com Coutinho o documentário brasileiro, que até então se concentrava nos grupos e massas sociais, se direciona aos indivíduos-personagens. Buscar histórias individuais, adentrar no íntimo já implica numa relação mais próxima entre diretor e personagem, os modos de exposição adquirem novas camadas éticas quanto ao manuseio desses registros. A partir do cinema-verdade, estreado por Jean-Rouch e revitalizado por Coutinho, a relação do documentarista e a forma como os entrevistados se portam diante

da câmera

adicionaram questões quanto performance

(BEZERRA, 2014, p. 63). Para melhor compreender essas questões, Bezerra utiliza os estudos da arte performática de Roselee Goldberg para classificar, dentro deste estilo documental, nove tipos de performance em sua filmografia: esotérica, xamanística, educativa, provocadora, divertida, melodramática, exibicionista, musical e indecisa. Com o foco no privado, a vertente provocativa melhor atende a busca de dinamizar e complexificar as relações de filmagem, pois a performance provocadora exacerba o caráter ontológico de ser performático, uma vez que toda performance já é uma provocação e pode sempre incomodar alguém (BEZERRA, 2014, p.98). Rompe os limites do tolerável, esgarça a tessitura frágil dos comportamentos socialmente aceitos, irrompe a zona de conforto e o comodismo das convenções estabelecidas (tal comportamento está na base da própria arte performática). Basicamente, é possível reconhecer dois tipos de performances provocadoras: Individual e

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Social. O Individual surge quando a personagem se reporta diretamente ao diretor, questiona ou comenta algo feito ou dito pelo mesmo, colocando-o muitas vezes em situação vexatória; O Social, por sua vez, quando a personagem agride a sociedade, problematiza aspectos da realidade social ou de comportamentos dos brasileiros. Esse tipo de performance põe em xeque as relações de poder entre quem filma e quem é filmado, subvertendo na pratica os papeis de sujeito e objeto do documentário, quem pergunta e quem é perguntado (BEZERRA, 2014, p.99). Em Edifício Máster, Coutinho e sua equipe conduzem a maioria das entrevistas sem que a relação seja tensionada e extraem o que desejam até se confrontarem com Daniela. Apesar de submissa às questões de Coutinho, Daniela se revela desconfortável com a equipe e com a filmagem ao ponto de evitar ao máximo olhar para a câmera e para o diretor. Mesmo cedendo ao filme, sua postura reage contra e induz Coutinho a uma nova abordagem capaz de superar as barreiras de uma personagem de difícil aproximação. Daniela possui uma presença evasiva que sutilmente apresenta a ameaça de romper a relação que já está posta como frágil, pois em nenhum instante ela disfarça sua fobia social, pelo contrário, a reafirma constantemente e ainda faz uma constatação impressionante ao próprio meio de entrevista onde o contato desencadeia uma série de reações que geram interpretações muito além do que é verbalmente dito, e mais, que isso se deve especialmente pela presença do diretor que faz o registro. Quando Coutinho sente que Daniela se aproxima do limite encontra uma brecha e pede para que ela apresente os textos e suas produções artísticas os quais utiliza como “válvula de escape”, tendo assim reestabelecendo o contato com a personagem como encontrando outro meio de acessá-la além do que estava inicialmente acordado. A evasão de Daniela provoca Coutinho a mudar, a se flexibilizar e provocá-la de outro modo para dar continuidade. Outra personagem que tenciona é Alessandra, que por meio de sua performance adquire uma dinâmica tão complexa que Coutinho volta a explorála anos mais tarde em Jogo de Cena. Na sua busca por particularidades, Coutinho se depara com uma encenação que diz não somente sobre Alessandra, mas um relato que poderia ter vindo e exposto por qualquer uma

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de suas colegas. Como ela própria diz, nesse documentário Alessandra é uma mentirosa (pois ela não conta sua própria história), entretanto é uma mentirosa honesta, não somente por assumir a farsa como pela verdade que seu corpo e seu depoimento carregam (novamente, a história que narra como sua é uma síntese de todas as suas colegas). Nesse momento Coutinho não tem nenhum controle da performance e nem conta com armas para revidar, apenas aceita a nova reconfiguração da relação e entra no jogo no intuito de, ao menos, instigar as nuances. Por mais que em determinados momentos o diretor pode forçar uma performance, como a de Henrique cantando Frank Sinatra, sua influência se limita a vontade do individuo de se apresentar como lhe convém. Em Um Lugar ao Sol, Mascaro é uma espécie de Coutinho e, com perguntas que parecem banais, é capaz de conduzir a maioria das entrevistas e extrair o que deseja, pois deixa o entrevistado confortável o bastante para confessar coisas que normalmente não diria. Pensando justamente nesse jogo como uma estratégia de documentar seu alvo de crítica que Gabriel Mascaro usufrui da performance para filmar a classe milionária brasileira, um grupo fechado com elevada resistência de exposição. Seguindo a linha de raciocínio de guerrilha do texto de Comolli, Como filmar o inimigo? (2008, p.129), buscase compreender as escolhas e procedimentos adotados por Mascaro diante do desafio de filmar “o outro”. O documentarista adota uma postura pouco ética de infiltração sob o falso pretexto de investigar a vida em coberturas como um poema ao desenvolvimento financeiro e imobiliário para denunciar as mais elevadas contradições e assustador pensamento de uma classe minoritária que realmente exerce poder no país. Ao adotar uma postura instigadora, Mascaro alimenta os egos para provocar e colher os frutos de reinvenções exibicionistas que despontem nos mais vexatórios e preconceituosos depoimentos. Talvez o que Mascaro não tenha conseguido em Um Lugar ao Sol foi se atentar ao alerta de Comolli em não banalizar e nem inferiorizar o inimigo exposto. As performances que Mascaro captura são de uma inocência perante à relação e tão narcisicamente seguras de si que chegam ao nível de serem cômicas de tão trágicas que se apresentam. A família toda receptiva conta sobre a beleza dos tiroteios das favelas vizinhas, a emoção de estar ao lado de uma guerra urbana e ser presenteada

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com um espetáculo comparado à queima de fogos do réveillon. Sorridentes, narram o assalto que houve no prédio que não os atingiu justamente por morarem na cobertura, de poderem presenciar a violência urbana em segurança e conforto e o status social que a moradia traz junto com uma gama de privilégios. Em outro momento um empresário dono de clubes noturnos se vê arrogantemente como bem feitor por gerar 170 empregos, esnoba o próprio poder aquisitivo e seus gastos como direito básico invés de um privilégio e prega castas sociais onde há “a primeira classe e a senzala lá no fundo” como natural.

Uma estrangeira que critica, sob argumentos superficiais e um

desconhecimento social profundo do país, o descuido com a terra pelos pobres por não plantarem alimentos. De cobertura em cobertura, de personagem à personagem, a provocação de Mascaro resulta em uma amostra caricata ridícula dos personagens, pois houve um desinteresse total em torná-los mais complexos e dinâmicos por parte do diretor. Mascaro tirou proveito do narcisismo e com uma farsa se aproximou daqueles que julgou inimigo, mas diante a relação fílmica que se fez presente apenas utilizou de sua malicia para extrair exatamente o que queria com a intenção de permitir que, num autodesserviço, aqueles personagens se desmoralizassem por si próprios. A única a perceber a máscara de cumplicidade vestida pela produção foi a senhora acompanhada do filho que, num flerte de consciência, desconfia da relação, a questiona e tenta sair dela mesmo que seu filho a ignore e permaneça no jogo qual ela já tem conhecimento de não ser honesto quanto aparenta. Postos Edifício Máster e Um Lugar ao Sol lado a lado nota-se que para além das semelhanças (ambos se passam em apartamentos, entrevistam moradores, colhem relatos, são sobre classes sociais mais avantajadas e preveem um padrão de performance dos personagens), a postura dos diretores quanto seus respectivos objetos revelam enunciações totalmente diferentes. Coutinho se releva mais flexível e interessado em ir além da autoimagem, conhecendo a malícia das pessoas quanto a presença da câmera e conta com isso para jogar e desmascarar tais posturas pelas nuances, contradições e evoluções perante o processo documental. Ele investe em questionar como indivíduos se reinventam e porquê o fazem, se apega aos detalhes que

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escapam de seus enunciadores que muitas vezes falam bem mais de si do que o discurso oral. Por isso, o que escolhem falar, o que querem mostrar e como se portam diz muito sobre o inverso: o que querem esconder, mas não conseguem, apenas tentam direcionar o olhar para o outro lado. Mascaro também conta e depende desse jogo, só que prefere utilizar os discursos que incriminam os atores das performances para fortalecer o seu próprio discurso contra eles. Mesmo ambos provocando essas reinvenções de si, Coutinho atua desconfiando do ato enquanto Mascaro atua para aproveitar o que lhe é dado. Em Coutinho há mais o fator humano, individual e particular, respeitando dentro do interesse os limites da exposição dos indivíduos; em Mascaro há o interesse político que o motiva a seguir para além da ética e na urgência de por em pauta a disputa de classes que muitas vezes é invisibilizada pelas falsas relações paternalistas, pela cultura midiática e pelo desejo de ascensão. Suas posturas entram em evidência pelo modo como lidam com as enunciações - a montagem é bem expressiva já que necessita que determinadas falas entrem, quais não, sob uma determinada sequência e uma determinada narrativa responsável em interligá-las discursivamente. Como dito no começo, os diretores não enunciadores que utilizam de terceiros para se enunciarem, por mais que tentem invisibilizar as relações construídas emergem na câmera e o modo como tratam os personagens acaba sendo também uma forma de se revelar para o mundo como um personagem maior diluído e, majoritariamente, fora de quadro. As performances com que escolhem trabalhar é um registro da própria reinvenção para a realização dos filmes de acordo com os próprios objetivos, não muito diferente de seus personagens, o diretor acaba se mostrando conforme lhe convém sem escapar das nuances que ele mesmo provoca com isso. Por mais urgente que seja ver a classe rica e expor sua problemática, o método acaba colocando Mascaro num papel quase criminoso e bastante questionável. Coutinho não escapa, pois por mais que seu estudo sobre a enunciação seja importante para entendermos os limites das relações com os personagens no documentário, seu papel em permitir e muitas vezes incentivar e até mesmo montar uma encenação permite questionar a natureza dos depoimentos e sua intervenção nisso. BIBLIOGRAFIA

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BEZERRA, Cláudio. A personagem no documentário de Eduardo Coutinho. São Paulo: Papirus Editora, 1º edição - 2014. COMOLLI, Jean-Louis. Como filmar o inimigo?. In: Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 123-134. EDÍFICIO Máster. Direção: Eduardo Coutinho, 2002. 110‟, cor. UM Lugar ao Sol. Direção: Gabriel Máscaro, 2009. 71‟, cor.

1

Eduardo de Oliveira Coutinho foi um cineasta e jornalista brasileiro. É considerado por muitos

como um dos maiores documentaristas da história do cinema do Brasil. Tinha como marca realizar filmes que privilegiavam as histórias de pessoas comuns. ²Gabriel Mascaro é um cineasta e artista visual brasileiro. Iniciou sua carreira como realizador fazendo documentários em 2008.

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