Cogumelos iluminam a floresta

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Fevereiro 2010

Fevereiro 2010 Nº 168 R$ 9,50 ■

CAÇA À ENERGIA ESCURA INOVAÇÃO NA INDÚSTRIA DA CERÂMICA

PESQUISA FAPESP

UNIVERSIDADES UNIDAS PELA BIOENERGIA ENTREVISTA

ELISALDO CARLINI MACONHA COMO REMÉDIO

Cogumelos

iluminam a floresta ISSN 1519-8774

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>> ESPECIAL CRODOWALDO PAVAN 29.01.10 22:21:46


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WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

> CIÊNCIA 42 BIOLOGIA CELULAR

A manipulação da autodigestão celular inspira novas estratégias para combater doenças CASSIUS STEVANI/USP

48 MEDICINA

92 ENGENHARIA NAVAL

Laboratório da Poli-USP amplia o estudo de projetos de navios, plataformas e da exploração de petróleo no mar

> HUMANIDADES REPRODUÇÃO/GILDA DE MORAES ROCHA

Efeitos nocivos limitam potenciais usos terapêuticos da curcumina 52 COSMOLOGIA

ACERVO HANS BURLA/COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

> ENTREVISTA 8 Especialista em psicofarmacologia, Elisaldo Carlini diz que é hora de reconhecer as qualidades médicas da maconha no Brasil

> ESPECIAL 63 CRODOWALDO PAVAN A contribuição à biologia, à política científica e tecnológica e à difusão da ciência

> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 26 COOPERAÇÃO

Com investimentos do governo paulista, das universidades estaduais e da FAPESP, será criado o Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia 30 BIOENERGIA

Laboratório em Campinas vai investir em gargalos da pesquisa do álcool de celulose 32 ENSAIOS CLÍNICOS

Rede de pesquisa em hospitais de ensino é ampliada

Astrônomos e físicos do mundo todo tentam desvendar do que são feitos 96% do Universo 58 QUÍMICA

Fluorescência de raios X dá acesso à intimidade de pinturas do século XIX

> TECNOLOGIA 84 ENGENHARIA DE MATERIAIS

Inovações nos processos e esmaltes especiais colocam indústria paulista de revestimentos cerâmicos em novo patamar de qualidade

34 HOMENAGEM

Oscar Sala aliou excelência científica à liderança institucional

88 Parceria entre

94 LITERATURA

Projeto recupera trajeto da criação de Mário de Andrade 100 MÚSICA

Villa-Lobos deixa de ser ícone nacionalista para ressurgir como grande compositor moderno 104 HISTÓRIA

Os anos no Brasil marcaram a vida e a obra do historiador francês Fernand Braudel

indústrias de Pedreira e centro de pesquisa resulta em ganhos na produção de produtos de decoração

CAPA MAYUMI OKUYAMA | FOTO CASSIUS STEVANI/USP

> CAPA 14 Mecanismo que faz cogumelos brilharem leva a método para detectar contaminação

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 4 CARTAS 5 CARTA DA EDITORA 6 MEMÓRIA 20 ESTRATÉGIAS 38 LABORATÓRIO 62 SCIELO NOTÍCIAS 80 LINHA DE PRODUÇÃO 108 RESENHA 109 LIVROS 110 FICÇÃO 112 CLASSIFICADOS

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IMAGEM DO MÊS

Dino em cores

JIM ROBINS/UNIVERSIDADE DE BRISTOL

Numa descoberta pioneira, paleontólogos do Reino Unido, da Irlanda e da China conseguiram vislumbrar a cor de um pequeno dinossauro bípede e carnívoro, de pouco mais de um metro de comprimento. Segundo pesquisa publicada na revista Nature, o Sinosauropteryx, encontrado na região de Jehol, no nordeste da China, era laranja e branco e tinha a cauda listrada. Estruturas vinculadas à pigmentação de pele e penas, conhecidas como melanossomos, foram identificadas em cerdas da cauda de um fóssil de mais de 100 milhões de anos. Melanossomos são organelas que contêm cor e são encontradas na estrutura das penas e pelos de pássaros e mamíferos. Como integram uma estrutura rígida de proteína, podem resistir por centenas de milhões de anos. A pesquisa, liderada por Mike Benton, da Universidade de Bristol, também encontrou melanossomos em partes do corpo de um fóssil do pássaro primitivo Confuciusornis. Foram encontrados padrões nas cores branca, preta e marrom-alaranjada.

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CARTAS cartas@fapesp.br

Copenhague Parabéns pela reportagem “Sob o signo de Copenhague” (edição 166), de Fabrício Marques. O artigo relaciona os efeitos da falta de freios ao problema das emissões de CO2 no planeta, que deveriam ter sido a tônica da conferência. Além de quantificar os efeitos, o artigo projeta as consequências sociais sobre as regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil, concluindo, muito sabiamente, pelo aumento do problema social nestas regiões brasileiras devido à falta de decisões das nações ricas e seu desinteresse pelo futuro das regiões mais pobres. Francisco J.B. Sá Salvador, BA

Reinaldo Guimarães Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos/Ministério da Saúde Brasília, DF

Pesquisa clínica Sobre a reportagem “Ensaio de orquestra” (edição 166) gostaria de fazer alguns comentários: 1) a pesquisa clínica para a avaliação de segurança, eficácia e efetividade de medicamentos talvez seja o único campo de pesquisa em saúde no Brasil cujas decisões fundamentais não são tomadas no país. São os escritórios centrais de grandes empresas multinacionais que tomam essas decisões, segundo as suas prioridades. Temos, portanto, a necessidade de atender as prioridades brasileiras. Infelizmente, a reportagem não foi capaz de perceber esse aspecto; 2) para tentar modificar esse quadro, desde 2005 o Ministério da Saúde (MS), em cooperação com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), vem construindo a Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Hospitais de Ensino, que hoje reúne 32 centros nos quais já foram investidos R$ 52 milhões. A reportagem ignorou a iniciativa; 3) a existência da Rede tem também cumprido o papel de melhorar o padrão de relacionamento entre os contratantes de ensaios e os contratados. É preciso institucionalizar essa relação, pois até alguns anos atrás pesquisadores utilizavam meios públicos para realizar pesquisas con4

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tratadas direta e privadamente com eles mesmos; 4) o Brasil possui um sistema de revisão ética de pesquisa de seres humanos de excelente qualidade. Em relação a outros sistemas nacionais de revisão ética, o sistema CEP’s – Conep não se subordina ao governo, mas ao Conselho Nacional de Saúde; 5) o sistema entende – e o MS também – que sua principal tarefa é garantir a integridade física e psíquica dos sujeitos da pesquisa. A competitividade do Brasil no mercado mundial de pesquisa clínica é importante, mas deve subordinar-se àquela tarefa; 6) a Rede Brasileira de Pesquisa sobre o Câncer é também uma iniciativa conjunta do MCT, através do CNPq, e do MS.

Nota da Redação: Leia reportagem na página 32 desta edição.

Lévi-Strauss Pesquisa FAPESP sempre me faz evoluir na condição humana, de educadora, com temáticas atuais, bebendo diretamente da mais “saudável” fonte que ilumina o universo, a ciência. Atrevo-me a dizer que a reportagem que traz Lévi-Strauss (“A tristeza dos trópicos”, edição 166) deixou um gosto de quero mais, e desde já peço desculpa pela ousadia, visto que pouco sei sobre diferença, diversidade, estruturalismo, alteridade, antropologia, mas, assim sendo, ela poderia ser mais extensa e mais “povoada” de olhares. Andréia Viviane Correa Igrejinha, RS

lizados artigos de Pesquisa FAPESP. Em primeiro lugar, queria parabenizá-los pelas publicações, que aparentam ter um altíssimo grau de qualidade. Lucas Sales Fidelis Santo André, SP

Nota da Redação: Mais informações na página 24 desta edição.

Vídeos no site Muito bom o vídeo das saúvas na nova área do site de Pesquisa FAPESP (www. revistapesquisa.fapesp.br). Agradeço o compartilhamento das informações. Que a autora do vídeo, Joana Fava Alves, possa realizar muitos mais. I.R. Hesse Guarulhos, SP

Correções A Universidade Hasselt fica na Bélgica e não na Holanda como consta na nota “Embalagens animadas”, da seção Linha de Produção (edição 167). A palavra lazer foi grafada erroneamente como laser na nota “Quem faz menos exercícios físicos” (edição 167). Os povos maias não foram extintos, como se afirmou erroneamente na nota “O dia a dia dos maias”, publicada na página 40 da edição 166. Seus descendentes somam quase 6 milhões de pessoas que vivem no México e em países da América Central. O título “Leitor, amigo meu, meu igual, meu irmão”, que consta da edição 162, se refere ao verso “Hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère”, do poema Au lecteur, de Charles Baudelaire.

Vestibular da Unicamp Sou um estudante em época de vestibular e já realizei o exame da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no qual, na prova de química, foram uti-

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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CARTA DA EDITORA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Matérias luminosas e escuras

CELSO LAFER

PRESIDENTE JOSÉ ARANA VARELA

VICE-PRESIDENTE

Mariluce Moura - Diretora de Redação

CONSELHO SUPERIOR CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI

DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER

DIRETOR ADMINISTRATIVO

ISSN 1519-8774

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CYLON GONÇALVES DA SILVA, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOÃO FURTADO, JOSÉ ROBERTO PARRA, LUÍS AUGUSTO BARBOSA CORTEZ, LUÍS FERNANDES LOPEZ, MARIE ANNE VAN SLUYS, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, SÉRGIO QUEIROZ, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA) EDITORES ESPECIAIS CARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA ARTE MARIA CECILIA FELLI JÚLIA CHEREM RODRIGUES FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), CELSO MAURO PACIORNIK, DANIELLE MACIEL, EDUARDO GERAQUE, EVANILDO DA SILVEIRA, JOSELIA AGUIAR, LAURABEATRIZ, LUIZ EDMUNDO MAGALHÃES, MARCOS GARUTI, SALVADOR NOGUEIRA E YURI VASCONCELOS

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO PARA ANUNCIAR (11) 3838-4008 PARA ASSINAR FAPESP@TELETARGET.COM.BR (11) 3038-1434 FAX: (11) 3038-1418 GERÊNCIA DE OPERAÇÕES PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3838-4304 e-mail: rute@fapesp.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 37.300 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO

C

ogumelos povoam há muito tempo o imaginário infantil. Mais coloridos ou menos coloridos, eles podem, como nos contos de fada, ser muito grandes e servir de abrigo para fadas e gnomos, recordaram-me crianças antenadas. E quando luminosos, lembraram-me elas, podem funcionar como belas luminárias em labirínticos formigueiros, a exemplo do que se vê no filme de animação Vida de inseto. É certo que cogumelos também alimentaram sonhos juvenis, delírios lisérgicos rasgados de luz, em décadas inclinadas a experiências perceptivas radicais. Mas é mesmo à fantasia de Vida de inseto que a reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP remete logo nas primeiras linhas do texto para contar com graça os bons resultados da pesquisa com cogumelos bioluminescentes que vem sendo empreendida há quase uma década por um grupo da USP. Tal empenho os levou à descoberta, entre 2002 e 2007, de 12 das 71 espécies de cogumelos luminescentes já identificadas em todo o mundo até hoje, o que não é desprezível. Para além do simples encontro dos cogumelos, Cassius Stevani e sua turma estão empenhados em entender os mecanismos químicos que geram a luz desses fungos e, nessa busca, já depararam com um potencial uso prático que eles podem ter na detecção da contaminação do solo por metais. Tudo isso é relatado em detalhes pela editora assistente de ciência, Maria Guimarães, a partir da página 14. No processo livre de associação a que tanto nos acostumou a poderosa influência de Freud sobre a cultura no século XX, os cogumelos alucinógenos acima mencionados levam naturalmente ao texto que nesta edição trata da maconha – ou melhor, das razões farmacológicas, alegadas por diferentes grupos de cientistas, para que a maconha seja aceita para uso médico no Brasil. Refiro-me à corajosa entrevista de Elisaldo Carlini, 79 anos, concedida ao editor chefe, Neldson Marcolin, e ao editor de ciência, Ricardo Zorzetto, em que ele explica em termos científicos e históricos por que, em sua visão, o país precisa deixar de lado a demonização da maconha e admitir o lado positivo da Cannabis sativa. Carlini, que é, aliás, contra o uso de qualquer droga para fins recreativos, há 50 anos pesquisa obsessivamente a ação da Cannabis sobre o organismo humano, daí a autoridade e a tranquilidade com que ele discorre sobre o tema e os preconceitos que o cercam, a partir da página 8. É uma prosa de especial sabor que não se deve perder. A seção de ciência tomará mais um pedaço desse editorial porque é imprescindível destacar a reportagem que trata da participação de brasileiros na série de experimentos internacionais,

alguns em andamento, outros previstos para iniciar nos próximos anos que procuram desvendar o que realmente são a energia escura e a matéria escura que, tudo indica, compõem quase 96% do Universo. Esses dois tipos de, digamos, elementos, descobertos nos últimos 80 anos, permanecem tão intrigantes, apesar de toda a pesquisa teórica e experimental que têm mobilizado, que não chega a soar estranho que ainda se possa dizer da energia escura em relação à matéria escura que se trata de “algo que não se sabe muito bem o que é afetando de alguma forma outra coisa sobre a qual não se tem o menor conhecimento”, conforme escreveu o autor da reportagem, o editor de ciência, Ricardo Zorzetto (página 52). O destaque na seção de política científica e tecnológica vai para a reportagem sobre o Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia (página 26), fruto de um acordo de cooperação celebrado entre o governo do estado, as três universidades estaduais paulistas e a FAPESP no último dia de 2009. Como relata o editor Fabrício Marques, o que se busca com essa iniciativa é criar uma forte base científica para ampliar a competitividade internacional da pesquisa paulista e brasileira em energia obtida de biomassa. Em tecnologia, duas reportagens combinadas, ambas da editora assistente Dinorah Ereno, mostram a partir da página 84 como a indústria paulista de revestimentos conquistou qualidade com inovações nos processos e esmaltes especiais e, ainda, como a parceria do setor industrial com centros de pesquisa nesse segmento da cerâmica resultou em considerável redução na perda de produtos, sempre melhores. Para mostrar os efeitos da pesquisa tecnológica sobre o setor, Dinorah, depois de abordar a cerâmica de Santa Gertrudes, foi até Pedreira, cidade na qual é sensível a influência do Centro de Cerâmica, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) apoiados pela FAPESP. Para concluir, peço atenção à reportagem de abertura da seção de Humanidades (página 94). Nela, o editor Carlos Haag trata de um projeto de pesquisa em que se busca desvendar o processo de criação literária de Mário de Andrade a partir de seus próprios manuscritos e de sua correspondência. De presente para o leitor, esse pequeno trecho que dá início à reportagem, no qual o escritor discorre sobre seu processo criativo: “Isso corria o mês de abril. Peguei um resto de caderno em branco, e na letrinha penteada dos calmos começos de livro comecei escrevendo. Mas logo a letra ficou afobada, rapidíssima, ilegível para os outros, frases parando no meio com ortografias mágicas...” Maravilhoso, não? PESQUISA FAPESP 168

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() MEMÓRIA Mais de 5 milhões de pessoas são contaminadas a cada ano pelo HIV. O médico Dráuzio Varella (abaixo) pede atenção e prevenção

AIDS

INFLUENZA

AS PESTES

A

Museu de Microbiologia do Instituto Butantan inaugura a exposição itinerante As grandes epidemias | Neldson Marcolin

pandemia de gripe suína que assustou o planeta no ano passado trouxe à lembrança um fato que andava esquecido: não importa quanto conhecimento, tecnologia e informação estejam disponíveis, sempre existirá o risco de epidemias. A peste negra (ou bubônica) foi responsável por pelo menos 10 epidemias entre 1400 e 1720, quando se estima que tenham morrido 25 milhões de pessoas no total. A varíola matou e deformou milhões na metade do século XVII na Europa. A meningite causou enormes transtornos na saúde pública até a metade dos anos 1970 no Brasil. A Aids e a gripe – esta de modo sazonal – seguem infectando pessoas em todos os países. A exposição As grandes epidemias, que pode ser visitada no Centro de Difusão Científica do Instituto Butantan, em São Paulo, fala de um assunto que continua relevante nos dias de hoje. “Queremos informar e alertar o público para o perigo que as epidemias representam”, explica Gláucia Colli Inglez, coordenadora do Museu de Microbiologia do Instituto Butantan e curadora da exposição ao lado

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de Alessandra Fernandes Bizerra e Milene Tino de Franco, a diretora do museu. “Certamente a população e os envolvidos com a área da saúde devem se preocupar com as epidemias”, diz Isaias Raw, do conselho técnico-científico da Fundação Butantan. É dele a concepção da exposição, imaginada há alguns anos e concretizada agora com apoio FAPESP/Vitae. Na mostra há painéis ilustrados e cinco filmes de até sete minutos. Cada um deles trata de uma epidemia: peste, varíola, meningite,

Aids e influenza (gripe). Os filmes foram feitos pelo cineasta André Luiz de Luiz a partir do roteiro das curadoras e são didáticos, repletos de imagens e de entrevistas com o próprio Raw, o médico Dráuzio Varella e o secretário estadual da Saúde, Luiz Roberto Barradas Barata. Todos usam uma linguagem simples para falar de história, saúde, ciência e, principalmente, da importância da vacinação. A exposição, gratuíta, deverá ser levada a outras regiões da capital paulista em breve.

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PESTE NEGRA

A infecção era atribuída aos miasmas e castigo divino. Em 1894, Alexandre Yersin e Shibasaburo Kitasatu identificaram o agente responsável pela doença, a bactéria Yersinia pestis

A gripe espanhola matou cerca de 40 milhões na primeira metade do século XX. Hoje, Isaias Raw (ao lado) defende a vacinação para prevenir a gripe suína

MENINGITE

A epidemia de meningite foi censurada pelos militares por dois anos. Segundo Barradas (abaixo), a vacina foi aplicada na população paulista em 15 dias

FOTOS MUSEU DE MICROBIOLOGIA/ INSTITUTO BUTANTAN

VARÍOLA

A varíola matou e deformou milhões, mas foi extinta em 1984. Foi a primeira vez que uma doença infecciosa foi abolida da Terra graças à vacinação

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ENTREVISTA

Elisaldo Carlini

O uso medicinal da maconha Especialista em psicofarmacologia diz que já está mais do que na hora de reconhecer as qualidades médicas da droga no Brasil

Neldson Marcolin e Ricard o Zorzet to

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mente para tratar dessa questão. Carlini vê grande preconceito contra a maconha, mas aposta que se os pesquisadores insistirem na direção correta, com o apoio da ciência, essa aprovação será obtida algum dia. É preciso ressaltar que esse médico de 79 anos é contra o uso dessa e de outras drogas para fins recreativos. Carlini tem uma atuação social que, por vezes, ofusca o cientista. Ele é o criador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) – um importante fornecedor de informações para a formulação de políticas de educação – e da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), em 1990. Entre 1995 e 1997 esteve à frente da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, órgão predecessor da atual Anvisa, onde enfrentou a espinhosa missão de combater a corrupção no setor. Com sucesso, diga-se. Atualmente está no sétimo mandato como membro do Expert Advisory Panel on Drug Dependence and Alcohol Problems, da Organização Mundial da Saúde (OMS). Tem seis filhos e cinco netos. Em dezembro, entre uma reunião e outra, Carlini deu a entrevista abaixo.

1888, que guardo até hoje, com a receita da maconha para vários males. Era uma terapêutica corrente no mundo todo, inclusive no Brasil. O simpósio internacional terá o título “Uma agência brasileira da Cannabis medicinal?”. A Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece que a maconha pode ser medicamento – apesar da proibição da Convenção Única de Entorpecentes, de 1961 – desde que os países oficializem uma agência especial para Cannabis e derivados nos seus ministérios da Saúde. Já há uns 10 países que fazem esse uso: Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Itália, França, Alemanha, Espanha, Suíça, entre outros. Quando e como o senhor decidiu eleger a maconha como objeto de estudo? — Quando entrei na Escola Paulista de Medicina [a EPM, hoje Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)] em 1952. E como aluno do 2º ano comecei a me interessar pela farmacologia e estagiei com o professor José Ribeiro do Valle. Ele foi o primeiro que fez trabalhos verdadeiramente científicos sobre a Cannabis sativa em animais de laboratório no Brasil. ■

Quais experimentos? — Ele procurava saber os tipos de reação [comportamental] que os animais apresentam quando submetidos aos efeitos da maconha e queria quantificar a potência dos diferentes tipos dessa planta. Naquela época, a psicologia experimental estava pouco desenvolvida no Brasil. Em 1960 ■

■ Qual será a proposta do simpósio inter-

nacional sobre maconha, que ocorrerá em maio em São Paulo? — Vamos propor que a maconha seja aceita para uso médico no Brasil. Meu avô se formou médico no fim do século XIX e naquela época já usava um livro de

FOTOS EDUARDO CESAR

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médico Elisaldo Carlini parece ter uma obsessão como especialista em psicofarmacologia, área que ajudou a difundir no Brasil nos anos 1960 depois de uma passagem de quatro anos pelos Estados Unidos, três deles na Universidade Yale. O foco de seu trabalho é procurar entender como a Cannabis sativa – a maconha – age no organismo humano, seu alvo de pesquisa há 50 anos. Herdou esse interesse de José Ribeiro do Valle, seu professor de farmacologia na Escola Paulista de Medicina na década de 1950. Desde então tem trabalhado no sentido de desmitificar o conceito de que a maconha é uma droga maldita, sem utilidade. Nas décadas de 1970 e 1980 liderou no Brasil um grupo de pesquisa publicando mais de 40 trabalhos em revistas científicas internacionais. Esses resultados, juntamente com as investigações de outros grupos internacionais, possibilitaram o desenvolvimento no exterior de medicamentos à base de Cannabis sativa utilizados atualmente em vários países do mundo para tratamento da náusea e dos vômitos causados pela quimioterapia do câncer, para melhorar a caquexia (enfraquecimento extremo) de doentes com HIV e câncer e para aliviar alguns tipos de dores. Para ele, já está mais do que na hora de reconhecer o uso medicinal da maconha no Brasil. Em maio deste ano haverá um simpósio internacional em São Paulo especialPESQUISA FAPESP 168

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fui para os Estados Unidos com a missão de estudar técnicas mais modernas de neuroquímica e psicologia experimental para introduzir aqui. Foi o que fiz quando retornei, em 1964. O senhor foi logo depois de acabar a graduação? — Não, me formei em 1957 e trabalhei como assistente voluntário da farmacologia até 1960 com bolsa da Fundação Rockefeller. Foi quando ganhei outra bolsa, mas para ir para os Estados Unidos. Fiquei lá quatro anos e fiz o mestrado na Universidade Yale. Quando voltei não consegui lugar na EPM, apesar dos esforços do Ribeiro do Valle. Fui para a Faculdade de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, que começava a funcionar. ■

■ Por que o senhor não foi contratado pela

EPM? — Não havia vagas. Em 1964 eu era casado, tinha três filhos. Fiquei dois meses na EPM e fui para a Santa Casa, de onde saí em 1970. Foi lá que comecei a fazer de fato meus estudos sobre maconha com testes comportamentais.

Quando estudamos a história da maconha, é fácil ver que na proibição de seu uso médico não há nada de científico, e sim de ideológico

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Como o senhor voltou para a EPM? — Quando me avisaram que não queriam mais pesquisa na Santa Casa. Como não queria apenas dar aula, fui para a EPM e falei com o diretor, professor Horácio Kneese de Mello. Perguntei se ele aceitava que fosse para lá e desse um curso que não existia lá naquele tempo, de psicofarmacologia, junto ao curso de farmacologia do Ribeiro do Valle. Ele aceitou e prometeu que assim que abrisse a primeira vaga eu seria efetivado. Dois anos depois isso ocorreu. Entrei como professor-adjunto, depois me tornei titular. ■

■ Lá o senhor continuou os estudos sobre a maconha? — Continuei no assunto. Quando estudamos a história da maconha, é fácil ver que na proibição de seu uso médico não há nada de científico, e sim de ideológico. Até o início do século XX a maconha era considerada um excelente medicamento. Ela era importada da França na forma de cigarros que se chamavam Grimaldi. Depois, dos anos 1930 em diante, a maconha virou uma droga maldita. O governo egípcio chegou a dizer que ela era uma droga totalmente destruidora, que mereceria o ódio dos povos civilizados. O Brasil participou da criminalização da maconha por meio de uma mentira levada pelo representante brasileiro na Liga das Nações, antecessora da ONU. Em 1925, a Liga das Nações fez a segunda conferência internacional sobre o ópio com 44 países presentes, entre os quais o Brasil. Era para discutir como controlar o ópio, mas o Egito entrou com o tema maconha. E o representante brasileiro, Ulisses Pernabucano Filho, disse que ela era mais perigosa que o ópio no nosso país. Isso era, naturalmente, incorreto. Primeiro porque a maconha é muitíssimo menos perigosa que o ópio; segundo, o ópio nunca foi um problema aqui. O resultado disso é que a Liga das Nações condenou a maconha. Depois que a ONU foi criada houve a primeira Convenção Única de Entorpecentes em 1961, assinada por mais de 200 países colocando a Cannabis numa lista, junto com a heroína, como droga particularmente perigosa. É algo que não tem razão científica nos dias de hoje. ■ De qualquer forma, é indiscutível que a maconha tem efeitos tóxicos. — Claro que tem, como todos os medicamentos. Não existe nenhum remédio em que a bula diga “Não provoca nenhum tipo de problema”. Isso vale para as plan-

tas. Estamos desenvolvendo o programa Planfavi, Planta e Farmacovigilância, e alertamos também para os perigos dos produtos naturais. ■ Comparado com o cigarro de nicotina, o

cigarro de maconha é pior ou melhor? — Tenho dificuldade em dar uma resposta definitiva. Não há dúvida hoje de que o cigarro normal é cancerígeno. Nós sabemos que a maconha tem também substâncias cancerígenas. A folha da maconha é coberta por uma camada de cera que tem naftaleno, antraceno... Se esfregarmos o sarro da maconha na pele de rato, naqueles que nascem sem pelo, o animal passa a ter câncer depois de 50 semanas da administração. Ocorre que não se usa a maconha da mesma forma que o cigarro, com a mesma intensidade e frequência. Outra diferença é que o cigarro tem um efeito bastante sério para o coração. Já a maconha não tem esse problema. Com relação à parte clínica existem demonstrações, segundo vários autores, o que precisa ser confirmado, que o uso da maconha pode facilitar o aparecimento de câncer em certas pessoas se usada de maneira desbragada. Não conseguimos ainda fazer um estudo epidemiológico suficientemente grande como os realizados com o cigarro, em que centenas de milhares de pessoas já foram entrevistadas. Para isso é preciso acompanhar muita gente que use continuamente a maconha e seja suscetível aos efeitos dela. ■ O senhor é favorável ao uso da maconha

como recreação? — Não sou. Não sou favorável a nenhum uso de droga para “dar barato”, que altere a mente sem a real necessidade disso. Mas sou muito favorável ao uso da morfina, por exemplo, como analgésico. Seria um absurdo total proibir o uso da morfina ou do ópio porque podem produzir dependência forte. O que não posso é difundir o uso recreativo da morfina, mas devo difundir, e muito, o uso da morfina como um agente extremamente poderoso para dar qualidade de vida nos momentos finais de um canceroso que morre urrando de dor, por exemplo. No caso da maconha, há relatos científicos dizendo que a droga é uma substância de primeira linha para tratar certas dores. Não dores comuns, como uma dor de cabeça, de dente ou cólica, mas as miopáticas ou neuropáticas, que envolvem músculos e nervos. A esclerose múltipla, por exemplo, provoca esse tipo de dor.

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E a maconha tem um efeito muito bom para aliviar essas dores. No entanto, aqui no Brasil não se consegue utilizar esse recurso. Em outros países já há esse uso bastante difundido.

Esses trabalhos só serviram para os outros? — Só para o exterior. Foi a mesma coisa com a Maytenus ilicifolia, a espinheira-santa. Fizemos um trabalho imenso com ela. Mostramos, em animais de laboratório e no homem, que tem um efeito protetor para o estômago. Publicamos muito aqui e no exterior e não conseguimos fazer uma patente. O Japão é que pediu e conseguiu. O que me frustra mais é que no pedido de patente japonês está escrito mais ou menos assim: “... a Maytenus ilicifolia, pertencente à família Celastraceae, é utilizada no folclore brasileiro para o tratamento de úlcera”. ■

■ Mesmo nos Estados Unidos, que vêm de um período recente muito conservador? — Lá já existe pelo menos um medicamento. Eles sintetizam o delta-9-tetraidrocanabinol (THC), que é o princípio ativo da maconha, e vendem o composto para o mundo inteiro: Marinol é o nome comercial. Foi inicialmente propagandeado para reduzir a náusea e o vômito induzidos pela quimioterapia do câncer. Foi aprovado pela FDA [Food and Drug Administration, agência norte-americana de controle de alimentos e medicamentos] com uso controlado, como deve ser.

E é possível importar o medicamento no Brasil? — É proibido importar e usar. O interessante é que o uso terapêutico antináusea foi descoberto acidentalmente por jovens da Califórnia que tinham leucemia, o câncer sanguíneo. Eles recebiam o quimioterápico e, aos sábados, saíam para se divertir e fumavam maconha. Os jovens passaram a descrever para seus médicos que não sentiam nem náusea nem vômito quando estavam sob o efeito da droga. Os especialistas começaram a investigar, fizeram trabalhos e demonstraram claramente que havia um efeito antinauseante. Mais tarde estudaram outra consequência do uso da maconha, chamada popularmente de larica, a fome exagerada que o sujeito tem depois de fumar. Dessa vez também comprovaram os efeitos e patentearam o medicamento Marinol para a caquexia, a perda exagerada de peso que ocorre no câncer e na Aids. ■

■ É possível fazer chá em vez de fumar? — Não, porque os compostos que estão nas folhas não são solúveis. O delta-9THC é vendido em cápsulas gelatinosas, dada a sua natureza lipídica. Há também um canabinoide sintético, chamado Nabilone, utilizado no Canadá. E acabou de ser lançado também no Canadá e na Inglaterra uma mistura de duas cepas de maconha. Ambas são de Cannabis sativa. Uma delas produz canabidiol, que é o precursor do delta-9-THC. E outra possui alto teor de delta-9-THC. A firma inglesa GW Pharmaceuticals faz dois extratos dessas plantas. A estratégia é misturar os dois, de maneira a ter uma quantidade adequada do canabidiol e do

A história se repetiu. — Isso é comum. As tentativas oficiais de fazer a medicina aceitar no Brasil a maconha como medicamento vêm antes da década de 1990. Em 1995, como secretário nacional da Vigilância Sanitária, eu coordenava o registro de medicamentos no país. Falei para o ministro da Saúde, Adib Jatene, que desejava organizar dentro da Vigilância Sanitária uma reunião para discutir se o delta-9-THC poderia ser licenciado como medicamento contra náusea e vômito na quimioterapia do câncer. Ele concordou e falei com o presidente do Conselho Nacional de Entorpecentes, Luiz Mathias Flack, que também aceitou. Os dois abriram a reunião. Mas não conseguimos fazer nada. Os médicos não aceitaram. ■

delta-9-THC. Essa mistura foi lançada com o nome comercial de Sativex dentro de uma bombinha, como as de asma, para usar direto na boca. Cada dose libera 5 miligramas do delta-9-THC. Qual a indicação? — Dores neuropáticas, náusea e vômito da quimioterapia do câncer, caquexia e esclerose múltipla. O interessante é que quem pela primeira vez mostrou que misturando canabidiol com delta-9THC em determinadas concentrações se modula melhor o efeito da maconha foi o nosso Departamento de Psicofarmacologia da Unifesp. Daqui se originou o trabalho na Inglaterra. Isso é reconhecido internacionalmente. O canabidiol modula o efeito do delta-9-THC, de tal maneira que o delta-9-THC, na presença do canabidiol, gera menos ansiedade e age por um tempo maior. ■

Quando vocês demonstraram isso? — São estudos da década de 1970 e 1980 com trabalhos publicados na British Journal of Pharmacology, Journal of Pharmacy and Pharmacology e European Journal of Pharmacology, revistas de alto nível. Mas nunca conseguimos tirar nada de positivo desses trabalhos aqui no Brasil para gerar algum produto. Não é prioridade para o país. ■

Qual a razão dessa resistência? Seria o fato de a maconha ser conhecida como uma porta de entrada para outras drogas? — Mas nós estávamos falando de medicamento, não de recreação. Organizamos outras reuniões, inclusive uma aqui na Unifesp, em 2004, com especialistas do exterior. Essa deu um primeiro resultado positivo. O general Paulo Yog de Miranda Uchôa, da Senad [Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas], estava presente e aceitou que o governo brasileiro deveria solicitar à ONU, por meio do Itamaraty, que a maconha fosse retirada da lista das drogas malditas, dado ter sido o próprio governo brasileiro quem havia colocado a maconha nessa situação. Esse pedido está sendo encaminhado à ONU. ■

■ O senhor não é a favor da legalização da

maconha de modo geral? — Sou contra a legalização porque acho que o ser humano não precisa usar drogas que apenas poluem corpo e mente com objetivos recreativos. Sou a favor da PESQUISA FAPESP 168

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mento. Essa é nossa linha atual. O projeto é longo e deve demorar até ter resultados mensuráveis. No momento recrutamos pacientes alcoolistas para participarem da pesquisa. [A adesão pode ser feita pelo telefone (11) 5084-1084, com Valéria.] Como o senhor vê a política de redução de danos, como distribuição de seringas para viciados? — Acho muito bom. É algo combatido por parte da sociedade porque não se reconhece que dependência é doença. Para algumas pessoas, quem tem de receber seringa é o diabético, e não o “viciado”. O que não se sabe é que o grau de dependência e sofrimento dele é imenso. Ele tem de ser tratado como um doente. ■

■ Podemos dizer que os trabalhos dos anos

maconha como medicamento, usado sob controle. A descriminalização já existe no Brasil. Ninguém mais vai preso, nem se faz boletim de ocorrência, se é pego com poucos gramas hoje. A não ser que o policial assim queira. O senhor fuma? — Maconha não. Fumei cigarro normal durante muito tempo. Parei há mais de 20 anos por um motivo curioso, quando ainda não havia provas cabais dos prejuízos do fumo. Eu estava no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, recém-inaugurado. Tudo era muito novo, o carpete, as cadeiras, tudo. Fui pegar um café e deixei o cigarro na ponta do cinzeiro. Quando voltei ele tinha caído e provocado um rombo no carpete novinho. Aquilo me deu uma vergonha enorme. Parei de fumar depois disso e não sinto falta. ■

■ O senhor citou a morfina como um me-

dicamento também muito temido pelos médicos. — Na minha época na Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária acreditava-se que apenas 5% dos pacientes com dor severa, que precisavam de morfina para minorar o sofrimento – gente com câncer terminal, queimados graves, politraumatizados –, recebiam a droga. As razões são múltiplas e ocorrem no mundo inteiro. Existe um conceito chamado opiofobia. O médico não prescreve opiáceos, dos quais a morfina é um exemplo, por medo de induzir à dependência. É óbvio que a dependência é horrível, mas não para um doente terminal ou para um politraumatizado. É muito difícil vencer essa fobia dos médicos. 12

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Estamos falando de drogas e ainda não citamos o álcool. — O álcool é uma droga psicotrópica. Produz efeito no sistema nervoso central e gera dependência. Uma droga psicoativa é aquela que age no sistema nervoso, mas não gera dependência porque não tem propriedades reforçadoras. Já a droga psicotrópica age no cérebro, produz seu efeito – analgesia, sono, euforia, alegria, relaxamento – e ao mesmo tempo reforça essas sensações no indivíduo. Ele sente bem-estar ou prazer, que é muito importante para ele. Facilmente a pessoa se torna dependente. Para mim, o álcool é a droga mais terrível que existe no mundo. No Levantamento Domiciliar de 2005, feito pelo Cebrid, foi aplicado nas 108 maiores cidades do país um teste para verificar o risco de haver dependência do álcool. Deu que 12,3% da população entrevistada corre esse risco. É gente demais, corresponde a mais de 20 milhões de brasileiros. No momento, fazemos um trabalho apoiado pela FAPESP para tentar melhorar a adesão dos alcoólatras ao tratamento. ■

■ Como é esse projeto? — Começamos conversando com o paciente, procurando entendê-lo. Depois expomos quatro opções terapêuticas, inclusive com um filme ilustrativo. Deixamos que ele vá para casa com um folheto explicativo, pense no que quer fazer, discuta com a família e finalmente diga para nós qual seria o melhor tratamento. Ele é que vai escolher a técnica que julgar mais conveniente. Temos uma expectativa de que o doente, sendo senhor da situação que o envolve, possa aderir mais ao trata-

1960 sobre privação de sono e agressividade de ratos resultaram nas linhas de pesquisa sobre sono e no próprio Instituto do Sono, liderado pelo professor Sérgio Tufik? — O Sérgio foi meu aluno na Faculdade de Medicina da Santa Casa e no doutorado. Os primeiros trabalhos sobre privação de sono paradoxal e maconha nós fizemos juntos. Não há dúvida de que saiu daqui. Ele é de uma inteligência incomum e se encaixa naquele perfil raro de cientista que vê o que todos veem e pensa o que ninguém pensou. Como nasceu o Cebrid? — Eu queria muito conhecer a situação das drogas no Brasil assim que voltei dos Estados Unidos, mas não conseguia. Já tinha começado um esboço do Cebrid na Santa Casa e percebi que teria de produzir as informações porque havia poucos dados confiáveis. O jeito foi começar a fazer a coleta dos dados para deixá-los disponíveis em um arquivo. Começamos procurando trabalhos sobre abuso de drogas em todas as bibliotecas aqui de São Paulo. Logo no início do trabalho viemos para a Unifesp e montamos um banco de trabalhos de pesquisadores brasileiros que escreveram sobre isso. Hoje são quase 4 mil, todos disponíveis para quem quiser pesquisar. Boa parte dos trabalhos era antiga e achamos que teríamos de produzir outros estudos, mais atuais. Fizemos o primeiro levantamento entre estudantes nas capitais brasileiras e entre meninos de rua em 1987. Repetimos em 1989, 1993, 1997, 2004 e devemos fazer mais um neste ano. Esses dados são utilizados no Brasil como fonte de informações para se elaborarem políticas públicas educacionais. ■

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■ Existe um grande interesse sobre os possíveis resultados dos estudos sobre plantas medicinais, especialmente pela enorme biodiversidade brasileira. Mas a expectativa de achar moléculas ou princípios ativos que possam virar medicamentos parece muito difícil de concretizar. Por quê? — De fato é difícil seguir apenas por esse caminho. Se analisarmos os medicamentos importados que chegam ao Brasil atualmente, há um número grande que é feito não mais pelo princípio ativo, mas pelo extrato seco da planta. Acredito que cometemos um erro tático de procedimento. Nós sempre corremos atrás do princípio ativo da planta. Mas ela tem dezenas, às vezes centenas de substâncias e temos de pesquisar cada uma delas para saber qual é a responsável pelo efeito que desejamos. Quando se usa um extrato e ele produz o efeito desejado, está ótimo, não é preciso mais pesquisar substância por substância. Há também outra vantagem: esses extratos vêm quase sempre de plantas que foram usadas popularmente por séculos e, provavelmente, não são muito tóxicas. Talvez, de fato, não seja a melhor estratégia utilizar um princípio ativo isolado e único. A pesquisa com algumas plantas está demonstrando que a interação entre componentes é a responsável pelo efeito desejado. Nosso problema é que não há prioridade para esse tipo de pesquisa no Brasil. A começar pelos próprios órgãos do governo, que não acreditam nisso e criam limitações como as impostas pelo CGEN [Conselho de Gestão do Patrimônio Genético], do Ministério do Meio Ambiente. O CGEN sem dúvida tem boas intenções e, como nós, visa proteger nosso patrimônio genético de modo que não caia em outras mãos e também, como nós, pretende conferir direitos àqueles que são na realidade os donos do conhecimento popular. Mas na prática estabeleceu regras tão estapafúrdias que acabou por impedir que o cientista brasileiro trabalhasse com plantas. E há outro problema: trabalho com plantas dá pouco índice de impacto, o que gera pouco interesse de outros pesquisadores e das agências de fomento. ■ Pesquisa FAPESP nº 70, de 2001, publi-

cou uma reportagem sobre o trabalho da bióloga Eliana Rodrigues, orientado pelo senhor, que havia identificado 164 espécies vegetais usadas pelos índios Krahô com fins medicinais. Os índios cobraram da Unifesp uma indenização de R$ 25 milhões. Como se resolveu a situação?

Talvez não seja a melhor estratégia usar um princípio ativo único. Pesquisa com plantas está demonstrando que a interação entre componentes é a responsável pelo efeito desejado — Não se resolveu. Até hoje a situação é complicada. Somos acusados de ser ladrões da biodiversidade brasileira. Recentemente recebemos uma carta do Ministério Público querendo uma prova de que não publicamos esse trabalho em nenhuma revista do exterior. Na mesma época, centenas de trabalhos de brasileiros foram publicados por diferentes universidades brasileiras no exterior em associação com indústrias estrangeiras e, mais do que isso, há quatro estudos com plantas exclusivas do Brasil feitos apenas por universidades de fora. E nós fomos escolhidos para prestar contas, não sabemos a razão. Para poder pesquisar uma planta brasileira, nós, farmacólogos, temos de provar que não estamos fazendo uma bioprospecção. Bioprospecção, por definição, é qualquer coisa do campo da ciência que pode gerar no futuro um interesse comercial. Ora, farmacologia é o estudo de medicamentos, algo que sempre poderá gerar um produto comercial, mesmo que o pesquisador não queira. Pode ser um remédio, um cosmético, uma tinta qualquer. ■ Vocês

são processados pelos índios?

— Não, eles estão a nosso favor. Eles vieram até aqui e ficamos três dias com autoridades públicas. Um dos líderes, que fala melhor o português, nos disse, “que fique bem claro, se a pesquisa não sai é por culpa de vocês brancos, porque nós queremos”. Estamos nessa briga. É o governo contra o governo, porque, afinal, a Unifesp é federal. Nosso projeto já havia sido aprovado pela FAPESP. Fechei questão em um ponto: queria que os índios tivessem direito à patente. Como índio é tutelado pelo Estado e não pode assinar nada, tentei interessar a Funai, mas naquele período mudaram três ou quatro ministros da Justiça e os respectivos presidentes da Funai. A solução foi fazer um contrato “ético” entre a universidade e os índios de modo que eles tivessem assegurados os direitos aos royalties pela própria universidade. Tudo foi assinado – e depois morreu completamente. Como foi sua passagem pela Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, a atual Anvisa? — A Vigilância Sanitária tinha uma fama medonha de corrupção, conhecida nacionalmente. Quando aceitei o convite do ministro Adib Jatene, a missão era moralizá-la e modernizá-la. Pedi a colaboração dos funcionários para mudar a fama do lugar e acho que fui atendido. Eu recebia muitos presentes, relógios, canetas Mont Blanc, eletrodomésticos e decidi não devolvê-los para não criar novas inimizades. Eu agradecia e mandava a secretária colocar em uma estante específica. Eram dezenas e dezenas de presentes. Depois levava as pessoas que davam os presentes para verem o que era a estante. No final do ano chamava todos os funcionários da Anvisa e fazia um grande sorteio com esses presentes. Também afastei 15 funcionários e “fechei” de 100 a 150 laboratórios fantasmas, todos com registros normais e vários participando de concorrências públicas. Isso dá uma ideia do nível de desacertos do período. Também cancelei mais de 300 registros de farmácias magistrais que faziam as famigeradas fórmulas para emagrecer. Mas adiantou pouco. Saindo o Jatene e eu deixando a Vigilância Sanitária tudo voltou ao que era antes. Felizmente, logo depois um outro ministro da Saúde assumiu, foi criada a Anvisa e nos dias de hoje acredito que aquela negra fase jamais voltará. O interessante é que, depois de tanta luta, ganhei bastante respeitabilidade entre o pessoal da indústria e na própria Vigilância Sanitária. ■ ■

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CAPA

Luzes vivas

N

o filme de animação Vida de inseto, toda a iluminação interna do formigueiro é feita com cogumelos luminosos. “Há um tanto de licença poética na criação”, comenta Cassius Stevani, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), “mas na essência é verdade”. De fato existem cogumelos que emitem luz, ou bioluminescentes, e muitas formigas cultivam fungos em suas tocas – mas não desse tipo. Stevani está empenhado em entender o mecanismo químico que gera essa luminosidade e qual a sua função no organismo. No caminho já encontrou um uso prático: detectar contaminação por metais no solo. Bastou meia década para Stevani e colegas descobrirem 12 espécies de fungos luminescentes no Brasil. Entre elas estão a amazônica Mycena lacrimans, encontrada por Ricardo Braga-Neto, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e uma espécie parecida com um guarda-chuva invertido que nasce na base de palmeiras como a piaçava ou o babaçu, no Piauí. No mundo são 71 espécies, de acordo com um artigo de revisão feito por Stevani em colaboração com o biólogo norte-americano Dennis Desjardin, da Universidade Estadual de São Francisco, na Califórnia, que em março estampará a capa da revista Mycologia. “Deve haver muito mais espécies por descobrir”, imagina o químico, “ainda não descritas porque são difíceis de encontrar; pouca gente anda sem lanterna pela mata em noites sem luar”. Até 2002 não se tinha notícia de fungos bioluminescentes no Brasil. Ou melhor, havia uma espécie, descrita no século XIX pelo britânico George Gardner com o nome científico Agaricus phosphorescens

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(mais tarde rebatizada como Pleurotus colaboração com a primatóloga Patrígardneri), mas hoje os especialistas em cia Izar, do Instituto de Psicologia da fungos questionam essa classificação, USP – que ele imediatamente procubaseada em espécies semelhantes na rou em busca da pista do cogumelo. Europa. E ficava difícil corrigir o erro É uma dessas histórias de acaso, em porque a única amostra preservada que informações precisam correr o mundo antes de chegarem quase ao está num herbário na Inglaterra. Um cogumelo que parece ser da mesmo lugar. mesma espécie foi recentemente enconDeu certo: o dono da propriedade trado brilhando na base de uma palonde Dorothy e Patrícia trabalhavam, meira-piaçava pela primatóloga norteMarino Gomes de Oliveira, secou ao -americana Dorothy Fragaszy, que tersol e mandou a Stevani 4 quilogramas minava a jornada de perseguição aos do cogumelo brilhante. Agora os pesmacacos mais tarde do que o habitual quisadores estão perto de corrigir a no Piauí. Fascinada, ela mostrou as identificação, com o exame detalhado fotos a um conterrâneo do Jardim Bodos cogumelos pelos micólogos (espetânico de Nova York, que entrou em cialistas em fungos) Marina Capelari, contato com Dennis Desjardin, consido Instituto de Botânica de São Paulo, derado um dos maiores especialistas na e Desjardin. Ele tem se dedicado a exidentificação desses organismos. Este, plorar florestas pouco conhecidas pelo por sua vez, avisou Stevani. mundo afora, inclusive no Bastou ao brasileiro uma pesBrasil, e diz que os esforços “Pleurotus” quisa na internet para descoinéditos de seu grupo têm sigardneri: brir que Dorothy estava no do responsáveis por muitas redescoberto Brasil para um trabalho em descobertas. “Recentemente no Piauí

liderei uma expedição para uma ilha na Micronésia, no oceano Pacífico, onde os cogumelos nunca tinham sido documentados; das 128 espécies que encontramos, sete eram luminescentes”, conta, deixando claro que os fungos brilhantes são minoria. O Brasil é promissor porque tem uma imensa área de floresta cujos fungos ainda não foram estudados, diz Desjardin. “Sabemos muito pouco sobre os cogumelos do Brasil, então esperamos encontrar muitas novas espécies, luminescentes ou não.” Ele explica também que, para encontrar fungos luminosos, é preciso pensar nisso. A maior parte dos micólogos que estudam diversidade de fungos descreve os cogumelos durante o dia (quando eles também emitem luz, mas o pesquisador não enxerga) e os seca imediatamente para preservação; é preciso examiná-los primeiro no escuro para determinar se há luminescência e só depois secar. “Por isso, especulo que

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FOTOS CASSIUS STEVANI/USP

Mecanismo que faz cogumelos brilharem leva a método para detectar contaminação | Maria Guimarães

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OS PROJETOS 1. Estudo da bioluminescência de fungos e suas aplicações em química ambiental 2. Bioluminescência e atividade farmacológica de cogumelos

MODALIDADE

1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa 2. Jovem Pesquisador COORDENADOR

CASSIUS STEVANI – IQ/USP INVESTIMENTO

1. R$ 328.413,09 2. R$ 457.741,18

Mycena luxaeterna: luz concentrada nos talos, ou estipes

vários dos fungos tropicais raros sejam luminescentes, mas não percebemos ainda.” Apesar de ainda pouco conhecidos, há muito tempo que se tem notícia de cogumelos luminosos. Aristóteles, o filósofo da Grécia Antiga, foi o primeiro a relatar o fenômeno há mais de dois milênios, quando descreveu o brilho vivo e determinou que era diferente do fogo. Mas os estudos científicos sobre esse fenômeno só tiveram início nos anos 1950 e apenas agora começam a contribuir para a compreensão da bioluminescência nesses organismos especialistas em decompor madeira e outros tipos de matéria orgânica. Sinalização - O interesse de Stevani

pelos fungos brotou de seu trabalho anterior com vagalumes e outros insetos. Em 2002, durante uma viagem para coleta de material com Etelvino Bechara, renomado especialista em bioluminescência de vagalumes, agora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele aproveitou para procurar os cogumelos de que Bechara lhe tinha falado. E encontrou: enquanto fixava os olhos na escuridão de uma área de vegetação úmida próxima a uma cachoeira em meio ao Cerrado em Mato Grosso do

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Sul, ali estava uma luz verde diferente – constante, ao contrário do pisca-pisca dos vagalumes. Eram cogumelos, e deram origem ao projeto que o pesquisador da USP desenvolveu a partir de 2002 com auxílio da FAPESP no programa Jovem Pesquisador. Antes mesmo de o trabalho começar, os fungos luminosos deram prova de não serem restritos ao Mato Grosso do Sul. Durante trabalho de campo no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), no sul do estado de São Paulo, o ecólogo João Godoy, agora professor na Faculdade de Engenharia São Paulo, foi guiado por seu mateiro até um fungo luminoso. Surpreso, avisou o amigo químico, que assim pôde concentrar suas atividades de campo no Petar, mais perto de seu laboratório. Algumas dessas espécies estão ajudando a desvendar as minúcias da bioluminescência de fungos, e para isso Stevani conta com a ajuda de três doutorandos financiados pela FAPESP. Por meio de exaustivos ensaios químicos, o doutorando Anderson Oliveira analisou três espécies da Mata Atlântica do Petar – Gerronema viridilucens, Mycena lucentipes e Mycena luxaeterna

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–, além do fungo “Pleurotus” gardneri, encontrado numa região de Cerrado no município piauiense de Gilbués. Os resultados mostram, em artigo publicado em 2009 na Photochemical & Photobiological Sciences, que o mecanismo de produção de luz é semelhante ao que se observa nos vagalumes e nas bactérias bioluminescentes: enzimas chamadas luciferases oxidam uma substância – ou substrato, como os químicos preferem chamar – conhecida como luciferina, liberando energia na forma de luz. Oliveira usou o que há de mais moderno nos laboratórios de química, mas a base do ensaio para caracterizar a reação enzimática foi descoberta há mais de um século. Em 1885, o fisiologista francês Raphaël Dubois esmagou os órgãos luminosos do vagalume Pyrophorus e misturou com água fria. A solução emitiu um brilho verde, que aos poucos se evanesceu. Era a luciferina sendo consumida pela reação química, ele concluiu. Em seguida, Dubois aqueceu uma solução semelhante, desintegrando as enzimas presentes, sensíveis ao calor. Ao misturar as duas soluções – a fria, onde sobravam as enzimas já sem luciferina, e a quente, que continha só a luciferina –, ele viu a mistura emitir luz. Essa história está no livro

Bioluminescence, publicado em 2006 pelo farmacêutico japonês Osamu Shimomura, pesquisador do Laboratório Biológico Marinho em Woods Hole, nos Estados Unidos. Shimomura ganhou o Prêmio Nobel de Química em 2008 justamente por seus estudos com bioluminescência: ele isolou em águas-vivas a proteína fluorescente verde (GFP), que acusa a atividade de genes específicos quando

acoplada ao DNA de um organismo estudado em laboratório. A proteína luminosa se tornou essencial em muitos laboratórios de genética, aspiração que não está longe da mente de Stevani, visto que os mecanismos de bioluminescência são semelhantes, mesmo entre organismos muito diferentes. Isso não quer dizer, porém, que a composição química da luciferina e a da luciferase seja semelhantes em inMycena fera: cogumelos brilham o tempo todo, mas só são vistos no escuro

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setos e fungos. “Luciferina é o nome que damos a qualquer substrato que dê origem à bioluminescência, mas as luciferinas de organismos distintos podem ser moléculas completamente diferentes”, explica Stevani. Todos os fungos já estudados por seu grupo, porém, brilham por meio dos mesmos substratos e das mesmas enzimas, sugerindo uma origem comum para todos. Mas nem todos os fungos bioluminescentes são parentes próximos, alerta Desjardin. “Hoje sabemos que há quatro linhagens de fungos com espécies bioluminescentes, mas elas nem sempre têm parentesco próximo entre si”, conta. “Algumas espécies brilhantes Oliveira conseguiu separar do extrato de fungo uma solução contendo a lude Mycena são mais aparentadas a espécies sem brilho do que com outras ciferina – ela brilha quando misturabrilhantes do mesmo gênero.” da a uma solução enzimática. Mas a O grupo da USP está agora à caça substância deve estar em concentração da estrutura da molécula que faz com muito baixa, porque o químico Antonio Gilberto Ferreira, da Universidade que minúsculos cogumelos, às vezes com 0,5 centímetro de circunferência, Federal de São Carlos (UFSCar), não se assemelhem a adesivos star fix colaconseguiu detectá-la por ressonância dos ao tronco de uma árvore ou como magnética nuclear de prótons. “É preciso extrair uma quantidade maior ou que semeados em meio ao folhedo que empregar um equipamento mais senrecobre o chão da floresta. Ao contrário sível”, planeja Stevani. dos fungos, que produzem a própria luz, star fix são adesivos fosfoO químico da USP emrescentes que armazenam a luz barcou nessa empreitada por Galhos ambiente e por isso brilham pura curiosidade científica, recobertos à noite, criando constelações mas considera essencial enpor hifas nos quartos de crianças de tocontrar usos práticos que invisíveis das as idades. Por enquanto, tragam benefícios para ouà luz do dia

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tros pesquisadores e para a sociedade. Parece estar no caminho certo: o brilho dos fungos Gerronema viridilucens pode ajudar a detectar altos níveis de contaminação no solo por metais de vários tipos, como mostrou Luiz Fernando Mendes, outro doutorando de Stevani, em artigo no prelo na Environmental Toxicology and Chemistry. Sensores biológicos - Mendes cul-

tiva o fungo em placas de vidro com 35 milímetros de diâmetro, sobre uma gelatina à base de algas conhecida como ágar, o meio de cultura mais comum em laboratórios biológicos. Depois de crescer 10 dias, os fungos ainda não chegaram à forma de cogumelo. Nessa fase eles são compostos por filamentos

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Mycena asterina: luminescência restrita ao chapéu dos cogumelos

microscópicos, as hifas, que representam a maior parte do ciclo de vida de qualquer fungo e, em algumas espécies, também produzem o brilho verde. O pesquisador mede a luminosidade emitida por cada uma dessas placas e deposita ali uma pequena amostra de extrato de solo a ser analisado. Depois de 24 horas numa câmara climática, o fungo passa a emitir menos luz caso a amostra esteja contaminada, o que os químicos interpretam como uma forma de dano ao organismo. Mendes obteve gráficos que representam a intensidade da luz emitida na presença de diferentes concentrações de 11 metais diferentes – cálcio, sódio, magnésio, cádmio, cobalto, manganês, potássio, lítio, zinco, cobre e níquel – e indicam a toxicidade da amostra analisada. O trabalho já rendeu uma patente registrada no Brasil sobre o uso dos fungos em ensaios de toxicidade ambiental. Basta medir a intensidade de luz que emana do fungo para estimar quanto desses metais está numa forma que pode ser absorvida e utilizada pelos seres vivos. “Não se trata de medir a concentração total das substâncias químicas, isso não teria significado biológico nem utilidade prática”, ressalta Stevani. O problema é que Gerronema viridilucens é pouco sensível, talvez exatamente porque vive no solo e está adaptado mesmo a condições adversas. “O que importa é que o bioensaio

funciona, agora é preciso encontrar espécies mais sensíveis que possam ser testadas da mesma maneira”, afirma o químico. Estratégias - Por consumir oxigênio

em suas reações químicas, a bioluminescência poderia desempenhar um papel antioxidante que protegeria os fungos e outros organismos, até mesmo os vagalumes, de espécies reativas produzidas a partir do oxigênio consumido na respiração. Essa proteção do organismo é uma possibilidade para explicar os benefícios de se brilhar em meio à mata. Mas quando é preciso pegar em armas contra um estresse oxidativo intenso, o grupo de Stevani mostrou que o organismo dos fungos privilegia reações mais especializadas em cumprir essa função e desliga a luminescência. É o que indica o trabalho ainda não publicado de Olívia Domingues, também aluna de doutorado de Stevani. Ela verificou que na presença de metais em concentrações elevadas as células dão preferência a usar a coenzima NADPH para produção de glutationa reduzida, que evita a ação deletéria dos metais. Como a glutationa reduzida compete por recursos com as enzimas que produzem a luminescência, o fungo aos poucos se apaga. É por isso que os fungos do bioensaio de Mendes perdem a luminosidade em solo contaminado por metais.

Os resultados de Olívia ajudam a explicar por que os fungos bioluminescentes servem como bioensaio de toxicidade, mas não elucidam qual seria o benefício para o fungo de emitir o brilho esverdeado. Stevani aposta em hipóteses ecológicas, mostrando fotografias de moscas pousadas em cogumelos. Como uma lâmpada em torno da qual voejam insetos diversos, o brilho verde talvez ajude a atrair insetos. Pode parecer que não é vantagem anunciar sua presença aos famintos de plantão, mas a função dos cogumelos no ciclo de vida dos fungos é efêmera, como os frutos das árvores: quando um animal come parte do cogumelo, leva junto esporos, as estruturas microscópicas que vão gerar novos fungos se forem depositados em locais propícios. Ou talvez a luz seja um aviso de perigo, no caso de cogumelos tóxicos, como acontece com animais venenosos de cores vibrantes. “O que não é provável é que a bioluminescência de fungos tenha evoluído para iluminar formigueiros ou servir como sinalização de voo, como em Vida de inseto”, brinca. As descobertas do químico deixam claro que muitos mistérios continuarão perdidos entre as folhagens enquanto mais biólogos e químicos não resolverem apagar as lanternas e contemplar a escuridão da floresta, por vezes salpicada de verde. ■

> Artigos científicos 1. DESJARDIN, D. et al. Luminescent Mycena: new and noteworthy species. Mycologia. no prelo. 2. MENDES, L.F. STEVANI, C.V. Evaluation of metal toxicity by a modified method based on the fungus Gerronema viridilucens bioluminescence in agar medium. Environmental Toxicology and Chemistry. v. 29, p. 320-26. 2010. 3. OLIVEIRA, A.G. e STEVANI, C.V. The enzymatic nature of fungal bioluminescence. Photochemical & Photobiological Sciences. v. 8, p. 1.416-21. Out. 2009.

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Colaborações entre cientistas de diferentes países nunca foram tão frequentes, segundo relatório divulgado pela norte-americana National Science Foundation, e o exemplo mais forte dessa tendência vem da União Europeia. Entre os artigos científicos produzidos em 2007 pelos países do bloco, a metade teve coautorias internacionais, nível duas vezes maior que o dos Estados Unidos ou da Índia. No caso das nações europeias, trata-se do resultado de políticas que estimularam a integração de seus cientistas. “Mas o fenômeno está espalhado pelo mundo inteiro e permeia todas as disciplinas”, disse à revista Nature Loet Leydesdorff, especialista em cienciometria da Universidade de Amsterdã. András Schubert, editor da revista Scientometrics, explica a tendência pelo crescimento de um tipo de esforço de pesquisa, conhecido como Big Science, que requer investimentos gigantescos e atuação de vários países – consórcios para sequenciamento de genomas e o acelerador de partículas LHC são exemplos recentes. Mas Schubert lembra que a queda no custo das comunicações e as facilidades propiciadas pela internet também tiveram um efeito dramático na aproximação de cientistas. “A grande motivação dos cientistas é o reconhecimento de seu trabalho. As colaborações internacionais são uma forma de difundir suas ideias em círculos cada vez maiores”, afirma. O Brasil, que não foi citado no relatório, produziu em coautoria 30% de seus artigos indexados na base Thomson Reuters em 2006.

PARCEIROS POR TODA PARTE

> Inovação aberta A gigante farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK) colocará em domínio público cerca de 13.500 princípios ativos com algum potencial para se tornarem drogas contra a malária. O executivo-chefe Andrew Witty disse que a empresa decidiu flexibilizar sua política de propriedade intelectual trabalhando dentro do conceito de inovação aberta, a fim de resolver problemas de pesquisa complexos. “Estamos tentando 20

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desenvolver uma abordagem mais pluralista. Temos de ter a mente aberta e tentar coisas novas”, afirmou. De acordo com a estratégia, qualquer pesquisador ou empresa terá acesso a estruturas químicas e a dados relacionados a mais de 13,5 mil compostos que podem ter atividade contra o parasita Plasmodium falciparum. A empresa também vai criar um “laboratório aberto” num centro de pesquisa sediado na Espanha. Nele, 60 pesquisadores selecionados serão autorizados a usar a infraestrutura da GSK

para desenvolver projetos e receberão dela US$ 8 milhões em capital semente. Witty disse que a empresa não desistiu de investir em drogas contra a malária. Segundo ele, há pelo menos cinco remédios em testes.

> O IPCC na

2035, o Himalaia perderá toda a sua cobertura de gelo. O presidente do IPCC, Rajendra Pachauri, admitiu o equívoco e teve de desmentir rumores de que renunciaria. A informação foi recolhida de uma reportagem da revista New Scientist, de 1999, e teve como fonte uma

defensiva Voltaram a sofrer críticas os métodos adotados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) para prever os efeitos do aquecimento global. Os relatórios do painel divulgados em 2007 erraram ao dizer que, até

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> Sob o sol marroquino

megawatts (MW). Dependente do petróleo de fora, Marrocos quer reduzir em 12% suas importações do óleo. O projeto ocupará áreas em cinco diferentes pontos do país, num total de 10 mil hectares, e usará sistemas de energia solar térmica concentrada (CSP, na sigla em inglês), ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

O governo de Marrocos anunciou o plano de desenvolver um grande projeto de energia solar térmica destinado a produzir 38% da eletricidade do país em 2020, o equivalente a 2 mil

tecnologia capaz de produzir eletricidade convertendo a energia solar em calor de alta temperatura. O custo estimado é de US$ 9 bilhões e, segundo o governo, está prevista a participação da iniciativa privada. “O projeto ajudará o país a reduzir suas emissões de gases causadores do efeito estufa. Serão 3,7 milhões de toneladas de carbono a menos por ano”, disse à agência SciDev.Net Said Mouline, diretor do Centro para o Desenvolvimento de Energias Renováveis de Marrocos. A especialista argelina Fatiha Bouhired elogiou as ambições do

em Porto Príncipe

projeto, mas teme por seu futuro. “É que os governos acabam não investindo o que prometem em projetos de longo prazo”, afirmou.

> Equador quer mais doutores A Secretaria Nacional de Ciência e Tecnologia do Equador (Senacyt) lançou um programa de bolsas de pós-graduação voltado a reforçar a formação dos docentes e pesquisadores. Dos 27.737 professores de universidades públicas e privadas do país, 6.933 são mestres e apenas 358 são doutores. Serão investidos US$ 6 milhões para reduzir o déficit de doutores em 29 universidades públicas. Cada instituição deverá indicar 10 professores para a Senacyt, que fará a seleção final – neste ano haverá 87 bolsas. Cada uma delas valerá cerca de US$ 70 mil, cobrindo despesas com matrículas e mensalidades, gastos com pesquisa, seguro saúde, edição da tese e passagens aéreas, entre outros.

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Pesquisadores norte-americanos e franceses programaram visitas ao Haiti nas semanas seguintes ao terremoto de 12 de janeiro em busca de dados que ajudem a explicar o desastre. De acordo com a revista Nature, Eric Calais, geofísico da Universidade Purdue, viajou para o Haiti com o geólogo Paul Mann, da Universidade do Texas, para trabalhar na análise das marcas produzidas pelo sismo, que matou mais Escombros de catedral de 170 mil pessoas e teve 7 graus de magnitude na escala Richter. Mann descreveu em 1995 a falha geológica de Enriquillo, a origem do sismo. Já Calais divulgou um trabalho em 2008 apontando uma tensão perigosa na falha haitiana, suficiente para produzir um terremoto de 7,2 graus de magnitude. Os dados de campo obtidos pela dupla irão abastecer um modelo que tentará calcular as áreas de maior tensão entre as placas tectônicas e os locais com maior risco de sofrer novos terremotos. Sismólogos das universidades de Nice e Brest, na França, desembarcaram no Haiti com sismógrafos portáteis. Da Universidade de Miami, Tim Dixon e Falk Amelung já estudam dados obtidos por um radar do satélite japonês Advanced Land Observing para detectar deformações da superfície antes do terremoto.

RASTROS DA CATÁSTROFE

entidade ambientalista, o WWF. Em dezembro, o IPCC viveu outra crise: uma polêmica sobre e-mails divulgados por hackers em que pesquisadores do painel pareciam desdenhar evidências importantes (mas que, diga-se, acabaram incorporadas aos relatórios). A química Pauline Midgley, que participará da elaboração dos relatórios de 2014, disse ao blog da revista Science que será reforçado o treinamento dos cientistas do painel para ajudá-los a conviver com pressões e a “lidar com artigos contrários à visão consensual”. Mudanças no processo de revisão deverão garantir que os comentários de todos os especialistas sejam considerados. Para Kevin Trenberth, cientista envolvido na polêmica dos e-mails, tais medidas são desnecessárias. “Os processos do IPCC funcionam bem”, afirmou.

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> Controle de

CIÊNCIA DUVIDOSA

Uma fraude agitou a comunidade científica chinesa. Editores da revista britânica Acta Crystallographica Section E descobriram que são falsas 70 estruturas de cristais publicadas pelos pesquisadores Zhong Hua e Liu Tao, da Universidade Jinggangshan, na província de Jiangxi. A falsificação foi flagrada por um software capaz de sinalizar erros ou características químicas incomuns. O programa identificou grande número de estruturas cristalinas que não fazia sentido quimicamente e a verificação indicou que os pesquisadores mudaram um ou mais átomos de um composto existente, apresentando o resultado como novo. Hua e Tao foram demitidos. Universidades chinesas frequentemente oferecem prêmios em dinheiro e auxílios-moradia, entre outras vantagens, para pesquisadores que publicam em revistas de impacto – e a pressão parece estar crescendo. Um estudo da Universidade de Wuhan estima que o mercado da chamada ciência duvidosa, que envolve contratar desde quem escreva um artigo até quem simule pesquisas inexistentes, foi da ordem de US$ 150 milhões em 2009 - cinco vezes o montante de 2007.

qualidade

os graus mais elevados. “Concordamos que este sistema é arcaico”, disse à revista Nature Oleg Yordanov, físico do Instituto de Eletrônica em Sofia. “Mas é preciso garantir um mínimo de qualidade.”

> Em grade e em nuvem A Unesco, braço das Nações Unidas para a ciência, cultura e educação, está ampliando um esquema que busca reduzir o êxodo de ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

Três anos após aderir à União Europeia, a Bulgária trabalha para melhorar seu desempenho científico, mas um projeto de lei que busca aperfeiçoar o ambiente de pesquisa atraiu protestos dos próprios cientistas. A lei propõe o fim de uma comissão que concede graus acadêmicos e supervisiona as universidades. Em seu lugar, cada instituição seria responsável pela concessão de seus diplomas, como acontece no resto da Europa. Alguns pesquisadores dizem que a medida vai eliminar o controle de qualidade dos trabalhos de doutoramento e pós-doutoramento, tido como essencial nas novas universidades. A Bulgária tinha apenas quatro universidades em 1990. Agora elas são 53. Um grupo denominado Movimento Civil de Apoio à Ciência e à Educação da Bulgária pediu ao Parlamento mudanças no projeto, como a criação de um esquema de credenciamento das universidades antes de permitir que elas ganhem autonomia para conceder

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pesquisadores dos países africanos e árabes, garantindo a eles acesso a redes científicas internacionais e a recursos computacionais. A Brain Gain Initiative, fruto de uma parceria com a fabricante de computadores Hewlett-Packard, permite aos pesquisadores colaborar com especialistas de todo o mundo através de recursos da computação em grade e em nuvem. A computação em grade combina o poder de processamento de vários

computadores em uma rede para trabalhar em um mesmo problema científico, enquanto a computação em nuvem permite o acesso a aplicações recentes da web e a bancos de dados. Segundo a agência SciDev.Net, dois projetos da Universidade de Ouagadougou, de Burkina Faso, vão beneficiar-se desse esquema: a modelagem do movimento de poluentes na bacia de drenagem do rio Sourou e a implementação de uma rede de computação de alto desempenho.

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ALERTA NAS ENCOSTAS

O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) estudam uma parceria para monitorar o risco de deslizamentos de terra em metrópoles e cidades serranas. O projeto, que ainda está em discussão no âmbito do governo paulista, seria baseado num sistema de alerta ancorado em previsões e modelos climatológicos desenvolvidos pelo Inpe e na expertise do IPT na avaliação de risco de deslizamentos – o instituto é o braço técnico do plano de prevenção de riscos que identifica áreas ameaçadas em municípios de Morro da Carioca, em Angra dos Reis: deslizamentos em janeiro São Paulo. Um dos desafios do projeto é criar sistemas robustos de coleta de dados, capazes de monitorar as chuvas e o movimento das encostas reconhecer pesquisas intitulado “Cardiomiopatia continuamente, para abastecer os modelos. O Inpe tem exseminais”, afirma Galvão. induzida por ácido periência no estudo da dinâmica dos deslizamentos de terra Os candidatos devem ser 3-nitropropiônico (3-NP) que ocorrem em períodos de muita chuva em áreas da serra indicados por pelo menos em camundongos – possível do Mar. Mas, para viabilizar o projeto, seria necessário coletar cinco cientistas de renome. modelo de estudo para uma quantidade bem maior de dados sobre as característiAs indicações serão a doença de Huntington cas das áreas de risco, a fim de desenvolver novos modelos. analisadas pela Comissão (DH)”, foi escolhido entre Outros pontos a serem desenvolvidos são a integração das do Prêmio, integrada por 83 inscritos. O estudo informações das duas instituições – avaliando, por exemplo, pesquisadores. O ganhador, tem apoio da FAPESP dados sobre chuvas intensas em sobreposição à situação das que vai receber R$ 20 mil, na modalidade bolsa de encostas da região atingida pela água – e a estratégia de será conhecido em maio. doutorado e está sendo divulgação dos alertas para a população em risco. orientado por Antonio

> Contribuição seminal O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, recebe até 19 de março indicações de nomes para a primeira edição do Prêmio CBPF de Física, que será concedido a um pesquisador de fora dos quadros da instituição que tenha realizado trabalho científico de excelência na

> Trabalho área. Segundo o diretor do centro, Ricardo Galvão, a ideia é premiar contribuições pontuais de excelência no campo da física. “A intenção do prêmio é reconhecer descobertas e desenvolvimentos singulares que tenham impulsionado o conhecimento na área de física. Por essa razão ele não será concedido para coroar cientistas pelo conjunto da obra, mas sim para

premiado O doutorando Fernando Vagner Lobo Ladd, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ganhou o Prêmio José Carlos Prates 2009, concedido pela instituição aos melhores trabalhos apresentados durante o 12o Congresso do Programa de Pós-graduação em Morfologia, realizado em dezembro. O trabalho,

Augusto Coppi, responsável pelo Laboratório de Estereologia Estocástica e Anatomia Química (LSSCA) da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP). A doença de Huntington é uma moléstia neurodegenerativa hereditária que afeta principalmente o sistema nervoso central e atinge cerca de 50% dos filhos de pais e mães portadores da desordem.

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FOTOS EDUARDO CESAR

REFERÊNCIA PARA ESTUDANTES

Todas as 12 questões da prova de química da segunda fase do vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ministrada no dia 11 de janeiro, foram formuladas a partir de reportagens de Pesquisa FAPESP. Desde 1987, quando o vestibular da Unicamp deixou de ser unificado, foi a primeira vez que a universidade baseou sua prova de química em apenas uma fonte de informação. As questões exploraram um pouco da diversidade de temas científicos expostos na publicação. A primeira pergunta, por exemplo, foi formulada com base numa reportagem publicada no número 163 da revista, de setembro de 2009, que trata da descoberta de estrelas da Via Láctea com núcleo quase totalmente cristalizado. A segunda foi inspirada num texto da edição 146, de abril de 2008, que fala de um sistema de reciclagem de lâmpadas fluorescentes. A terceira é baseada em reportagem da edição 163, que enfoca as pesquisas sobre o etanol de segunda geração. A formulação de uma prova baseada numa única publicação não tem precedentes em vestibulares, de acordo com Carlos Alberto Ciscato, coordenador de química do curso pré-vestibular Intergraus, de São Paulo. Segundo ele, a iniciativa se enquadra numa tendência de contextualizar as questões. “Nenhuma prova deixa mais as questões soltas e uma forma de contextualizá-las é usar textos da imprensa ou de livros”, afirma ele. Segundo Renato Pedrosa, coordenador da Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest), a ideia partiu da banca de professores que formulou o exame. “Normalmente não fazemos isso”, afirma Pedrosa. “Mas Pesquisa FAPESP é uma boa revista de divulgação científica, é da FAPESP, que é do estado de São Paulo e não tem fins lucrativos. Esperamos que, com esse gesto, os jovens conheçam a revista.” Ele explica que essa deve ter sido a primeira e a última vez que uma prova da Unicamp se baseou numa única fonte. Afinal, a universidade não pode dar pistas de onde vai retirar as ideias para suas provas. 24

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Reportagens que inspiraram a prova da Unicamp

> Torres espetadas na floresta Até o ano que vem, cinco torres serão instaladas na Reserva Florestal de São Sebastião do Uatumã, no Amazonas, equipadas com instrumentação tecnológica para experimentos científicos e monitoramento contínuo da atmosfera. Trata-se do Programa Amazonian Tall Tower Observatorium (ATTO), que terá investimentos de € 8 milhões, divididos entre o ministério brasileiro da Ciência e Tecnologia (MCT) e o governo da Alemanha. Estão envolvidos no projeto a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia do Amazonas (Sect), a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), o Instituto Max Planck de Química, da Alemanha, e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). As torres, uma com

320 metros de altura e quatro com 60 metros, vão permitir o desenvolvimento de pesquisas ligadas, por exemplo, à avaliação do grau de influência da Amazônia nos processos químicos e físicos da atmosfera do planeta, em especial a emissão e absorção de gases causadores do efeito estufa, ou ao papel da floresta no ciclo hidrológico da região e do mundo. De acordo com seus organizadores, o programa fará da Amazônia um dos principais centros

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mundiais de medidas e observações científicas em estudos atmosféricos de regiões tropicais. A reserva Uatumã, de 400 mil hectares, situa-se a 250 quilômetros da capital Manaus.

> Indicações para o Nobel

O programa Biota-FAPESP terá uma agenda movimentada em 2010 para acompanhar o Ano Internacional da Biodiversidade, declarado pelas Nações Unidas. No dia 22 de maio, o Biota vai realizar um evento em São Paulo para comemorar o Dia Internacional da Biodiversidade, com a participação de Thomas Lovejoy, biólogo conservacionista que introduziu o termo “diversidade biológica” nos anos 1990. Ele atualmente dirige o Centro Heinz para Ciência, Economia e Meio Ambiente. O foco do evento será a terceira edição do Global Biodiversity Outlook, publicação da Convenção sobre Diversidade Biológica que avalia a situação atual e tendências da biodiversidade. Dois workshops internacionais do Biota estão previstos. Um deles, no final de fevereiro, abordará o tema “Metabolômica no contexto dos sistemas biológicos”. No início de dezembro, o programa sediará outro workshop para marcar o final do Ano Internacional da Biodiversidade e o início do Ano Internacional das Florestas (2011). Em outubro, representantes do Biota vão acompanhar em Nagoia, no Japão, a Conferência das Partes sobre Diversidade Biológica (COP 10). “Os países terão que demonstrar o que fizeram para atingir compromissos assumidos em abril de 2002”, diz o coordenador do Biota-FAPESP, Carlos Joly. Outro objetivo, segundo Joly, é definir o regime internacional que vai regulamentar o acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios, negociação que se arrasta há vários anos.

AGENDA MOVIMENTADA

a FCM publicou 4.318 artigos e resumos em periódicos internacionais e mais de 5 mil em periódicos

> Centro de pesquisa no Brasil

nacionais, além da publicação de livros e patentes. Uma comissão coordenada pela

LAURABEATRIZ

A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi convidada a indicar concorrentes ao Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 2010. O convite, inédito na instituição, foi recebido por meio da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). “A Unicamp ser vista como uma instituição credenciada para a indicação de candidatos ao Nobel é sinal de reconhecimento da qualidade do trabalho de nossos pesquisadores, particularmente da FCM. Isso é motivo de orgulho”, disse ao Jornal da Unicamp o pró-reitor de Pesquisa da instituição, Ronaldo Pilli. Para o diretor da FCM, José Antônio Rocha Gontijo, um dos motivos da indicação da faculdade é a repercussão internacional de suas pesquisas. De 2004 a 2008,

Pró-Reitoria de Pesquisa e formada por professores e pesquisadores da FCM, do Instituto de Biologia (IB), da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) e outros pesquisadores convidados, foi convocada para elaborar uma lista de até 10 nomes de cientistas.

A gigante General Electric (GE) anunciou que abrirá um centro de pesquisa e desenvolvimento (P&D) no Brasil, voltado para as áreas de petróleo e gás, energia e aviação (turbinas), que concentram os principais negócios da empresa no país. Ainda não foram definidos o investimento no centro de pesquisa, que deverá gerar 300 empregos, e a sua localização. As negociações para receber a unidade concentram-se em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, estados onde se localizam fábricas brasileiras da empresa. Será a quinta unidade de P&D da GE no mundo, que mantém centros na China, Índia, Alemanha e Estados Unidos, e a primeira na América Latina. “Com uma forte base industrial, universidades de primeira linha e importantes clientes das mais diversas indústrias, o Brasil é a escolha lógica para a nossa próxima instalação”, disse o executivo-chefe da empresa, Jeff Immelt, que visitou o Brasil em janeiro. Segundo Immelt, a GE investe anualmente US$ 6 bilhões em pesquisa no mundo.

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

COOPERAÇÃO

Esforço multiplicado Com investimentos conjuntos do governo paulista, das universidades estaduais e da FAPESP, será criado o Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia Fabrício Marques | ilustrações Marcos Garuti

N

o último dia de 2009 o governo do estado de São Paulo, a FAPESP e as três universidades estaduais paulistas celebraram um acordo de cooperação que marcou o lançamento do Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia, uma iniciativa que busca criar uma base científica para ampliar a competitividade da pesquisa paulista e brasileira em energia obtida de biomassa. Pelo convênio, a Secretaria de Ensino Superior do estado vai repassar R$ 18,4 milhões para as universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp) e Estadual Paulista (Unesp), que serão usados para a construção de laboratórios, eventuais reformas e compra de equipamentos. As universidades, por sua vez, se comprometeram em contratar pesquisadores em diversas áreas da pesquisa em bioenergia, que trabalharão em conjunto com os pesquisadores já atuantes neste campo nas três instituições, num esforço integrado. Já a FAPESP assumiu a missão de selecionar e financiar os projetos em bioenergia vinculados ao centro, além de participar da coordenação de seu conselho superior, cuja sede será na Fundação. “O Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia vem complementar os esforços no país para a criação de conhecimento e tecnologia em bioenergia, reforçando a parte de ciência básica e a formação de recursos humanos, objetivos nos quais nossas três universidades estaduais são excelentes”, explica o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. O formato do novo centro, que foi alvo de discussões ao longo de todo o ano de 2009, é baseado numa partilha de investimentos e de responsabilidades. Cada um dos três atores envolvidos – governo, universidades e FAPESP – vai investir montantes equivalentes. O con-

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vênio veio em resposta a uma proposta amadurecida pelas universidades e pela FAPESP, que foi apresentada ao governo estadual. “A Fundação e as universidades estaduais paulistas discutiram longamente a ideia de se implantar um centro de pesquisa em bioenergia, sediado nas três universidades”, diz Brito Cruz, que coordenou a proposta. “O governo estadual aprovou a proposta formatada, dedicando os recursos orçamentários para uso na infraestrutura necessária. O plano apresentado previa investimentos do governo estadual para infraestrutura, pela FAPESP para projetos de pesquisa e pelas universidades para admissão de professores”, afirmou. Os R$ 18,4 milhões do convênio assinado em dezembro correspondem ao investimento do governo estadual para a primeira fase da implantação do centro. O governador de São Paulo, José Serra, afirmou durante a inauguração do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), no dia 22 janeiro, que os recursos para o Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia deverão superar R$ 150 milhões, o que projeta um investimento superior a R$ 50 milhões para cada uma das partes. Os novos laboratórios deverão ter um caráter multidisciplinar e envolver pesquisadores de áreas como agronomia, química, biologia, física, matemática, engenharia e ciências sociais. “A aglutinação de competências das universidades é o forte desse projeto e o objetivo é que o Brasil avance no que diz respeito ao conhecimento em bioenergia”, diz o reitor da Unesp, Herman Voorwald. Para o reitor da Unicamp, Fernando Costa, a experiência pode definir um modelo novo de fazer pesquisa. “A parceria entre universidades, governo e FAPESP é uma experiência inovadora”, diz. “Temos agora o desafio de

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procurar os melhores pesquisadores, aqui no Brasil ou no exterior, para preencher as vagas que serão criadas”, afirma Costa. Segundo o reitor da USP, João Grandino Rodas, a parceria prevista no centro revela uma abertura das universidades a demandas da sociedade. “O fato de a universidade ser autônoma não significa que ela deva se fechar em seus próprios interesses. A bioenergia é um desses temas que precisam reunir esforços de todos os segmentos possíveis, pois tem impacto tanto na qualidade de vida das pessoas quanto no desenvolvimento do país. E o avanço na pesquisa nesse campo vai render benefícios para a sociedade e também para nossos alunos e professores”, disse o reitor. O físico José Goldemberg, reitor da USP entre 1986 e 1990, ressalta que a arquitetura do novo centro dá uma resposta aos desafios mapeados pela Comissão de Bioenergia do governo paulista, coordenada por ele entre 2007 e 2008. “Ficou claro para a comissão que a expansão da produção do etanol no estado exigia um aumento de produtividade e que era necessário avançar em pesquisa para desenvolver novas tecnologias”, diz Goldemberg. Segundo ele, foram aventadas outras possibilidades para enfrentar o problema, como a criação de um instituto estadual de bioenergia. “Creio que essa solução foi interessante, pois vai trazer pessoal novo para a pesquisa em bioenergia e envolve os pesquisadores das universidades nesse esforço. Não é só o governo que está colocando dinheiro”, disse. Segundo Franco Lajolo, vice-reitor da USP que assumiu a reitoria interinamente no final de 2009 e participou das negociações do novo centro, a iniciativa é “um jogo em que todos os participantes vão ganhar”. O essencial, segundo ele, é garantir que não faltem recursos para as próximas etapas do

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centro. “A colaboração entre universidades, governo e FAPESP vai ampliar nossa capacidade de resolver grandes problemas em bioenergia, condição fundamental para não perdermos a nossa competitividade.” A pesquisa em bioenergia vem crescendo no país, principalmente em São Paulo, estado que concentra boa parte da produção de cana do país, e envolve iniciativas federais, estaduais e do setor privado. O Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia, de acordo com seus idealizadores, quer diferenciar-se de iniciativas já existentes mirando em avanços na fronteira do conhecimento, associados à formação de recursos humanos qualificados. Pós-graduação - Uma das ambições do novo centro,

cuja viabilidade ainda está sendo avaliada, é criar um programa conjunto de pós-graduação envolvendo as três universidades. As três instituições têm tradição em estudos de bioenergia, sobretudo na área de agronomia, com destaque para a USP e a Unesp, na de conversão de biomassa, que é bem desenvolvida na Unicamp, e em genômica, no âmbito do Programa FAPESP Sucest (Sugar Cane Est), que mapeou os fragmentos de genes funcionais da cana. Mais conhecido como Genoma Cana, este projeto foi iniciado em 1999 por cerca de 240 pesquisadores liderados pelo professor Paulo Arruda, da Unicamp, com financiamento da FAPESP e da Cooperativa dos Produtores de Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Coopersucar). Depois de 2003, Glaucia Mendes Souza, do Instituto de Química da USP, assumiu a coordenação do Sucest e iniciou o Projeto Sucest-FUN, composto por uma rede de pesquisadores dedicados à análise funcional dos genes da cana e à identificação de genes associados a determinadas características agronômicas. O centro também promoverá a ampliação do número de pesquisadores trabalhando no campo da bioenergia no estado de São Paulo. Na fase de implantação, as três universidades deverão contratar 17 docentes e pesquisadores. Esse número deve chegar a cerca de 50, à medida que novos investimentos no centro forem feitos pelo governo. Um mapeamento dos profissionais atuantes nas três instituições paulistas foi realizado pelo Comitê de Pesquisa em Bioenergia, que organizou a proposta do centro, composto pelo diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, e pelos professores Antonio Roque Dechen, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, Nelson Ramos Stradiotto, do Instituto de Química da Unesp, e Luís Augusto Barbosa Cortez, da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp. 28

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O Brasil tem tradição em pesquisa em bioenergia, mas há limitação de recursos humanos em áreas como motores automotivos e biorrefinarias

No mapeamento foram consultados 456 docentes e pesquisadores, sendo que 365 deles, ou 80% do total, responderam ao questionário. A conclusão foi que existe um número significativo de pesquisadores das três universidades que desenvolvem pesquisa em bioenergia e que a capacitação concentra-se na produção de biomassa e nos processos industriais ligados à produção de bioenergia. “A presença brasileira no âmbito das publicações científicas é grande na área de agronomia e de desenvolvimento de variedades da cana, mas não é tão expressiva em outras áreas”, diz Cortez, da Unicamp. “Precisamos investir em pesquisa para que o Brasil busque a liderança em todas as áreas, pois não basta ser forte em apenas algumas delas”, afirma. Há um número relativamente baixo de pesquisadores que atuam, por exemplo, na área de motores automotivos, o que coloca um problema para o futuro dos motores flexíveis para álcool e gasolina – eles só existem atualmente no Brasil, não são alvo de investimentos vultosos pelas filiais das montadoras e tendem a perder competitividade para os motores a gasolina e diesel, cujo desenvolvimento é impulsionado pelas matrizes dos fabricantes de carros. “Com a identificação dos pontos de estrangulamento, poderemos definir melhor onde alocar recursos humanos, reforçando áreas já existentes e suprindo lacunas nas menos pesquisadas”, afirma Antonio Roque Dechen, da Esalq-USP. Para Nelson Stradiotto, da Unesp, a ampliação do contingente de pesquisadores e o estímulo à formação de doutores permitirão que o país conte com uma nova geração de cientistas trabalhando em temas de fronteira num horizonte de 10 anos. “Temos que pensar alto, pois é isso que os Estados Unidos estão fazendo hoje”, afirma. Outra área que conta com um número limitado de pesquisadores é a de biorrefinarias, que busca desenvolver

insumos químicos e polímeros verdes, estimulando a substituição de petróleo por etanol como matéria-prima. “A meta do centro não é simplesmente produzir mais combustível com custos menores, mas produzir riqueza a partir do conhecimento. Se quisermos que a biomassa seja sucedânea dos combustíveis fósseis, precisamos torná-la lucrativa como o petróleo, investindo em novas aplicações, como a geração de energia e a alcoolquímica, que ampliam a renda para o setor e a sociedade”, afirma Cortez. Vantagem competitiva - A base cien-

tífica produzida pela iniciativa busca ajudar o Brasil a competir com outros países, notadamente os Estados Unidos, na transição para as tecnologias de segunda geração, aquelas que prometem extrair energia de celulose. O Brasil, que dispõe da tecnologia mais eficiente de etanol de primeira geração, extraída da sacarose da cana-de-açúcar, tem uma vantagem competitiva na corrida da tecnologia de segunda geração, que é uma enorme disponibilidade de biomassa, na forma de bagaço e palha de cana. Tais substratos correspondem a dois terços da energia disponível na cana e hoje são aproveitados na queima e geração de eletricidade. Mas o país não tem investido tanto quanto seus competidores na superação dos desafios tecnológicos que persistem – hoje ainda não há tecnologia economicamente viável para extração de energia de celulose. Para vencer esses desafios e buscar conquistas de impacto, o centro investirá em pesquisa básica, deixando para outras iniciativas já existentes a preocupação com avanços incrementais. A pesquisa aplicada e o desenvolvimento tecnológico realizados no centro deverão acontecer em cooperação com o setor privado. O novo centro vai incorporar-se ao esforço do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), lançado

em julho de 2008 com o objetivo de avançar em ciência básica e em desenvolvimento tecnológico relacionados à geração de energia obtida de biomassa. Além de buscar a competitividade econômica do biocombustível brasileiro, o centro tem uma meta socioambiental, que é produzir conhecimento capaz de melhorar os indicadores de sustentabilidade da cadeia produtiva da cana-de-açúcar. “A estratégia fundamental do centro é aumentar o número de cientistas em áreas de ciência básica relacionadas aos temas do Programa Bioen da FAPESP em São Paulo”, disse Brito Cruz, diretor científico da Fundação. “É muito significativo que o governo estadual tenha aprovado a proposta da FAPESP e das universidades, garantindo apoio adicional com investimento direto, para um programa de pesquisas organizado pela Fundação”, afirmou. Os programas de pesquisa do centro deverão compreender as mesmas áreas previstas na criação do Bioen, e que envolvem toda a cadeia produtiva da cana-de-açúcar. São elas a produção da biomassa para bioenergia, a pesquisa de meios de produção de bioenergia, as biorrefinarias e alcoolquímica, a área de aplicação em motores automotivos e, por fim, os aspectos de sustentabilidade, como os impactos econômicos, sociais e ambientais do uso da bioenergia. Cada uma dessas linhas de pesquisa promoverá iniciativas nas áreas de educação e de difusão, a fim de estimular a transferência para a sociedade do conhecimento produzido. Duas áreas consideradas fundamentais para ampliar a produtividade da cana são as dos mecanismos que envolvem a fotossíntese na cana-de-açúcar e a das relações funcionais da genômica da cana. No caso da fotossíntese, a ambição é conhecer melhor o processo pelo qual a planta fixa o carbono, convertendo a energia solar em energia química. Tal processo é reconhecido PESQUISA FAPESP 168

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como de baixa eficiência e, no caso da cana-de-açúcar, não tem despertado a curiosidade dos pesquisadores. Em relação à genômica, a intenção é criar vias de manipulação genética para obter variedades adaptadas a diferentes ambientes de produção, como clima, disponibilidade de água, fertilizantes e tolerância a herbicidas. Ainda hoje, a obtenção dessas variedades é feita com base em técnicas tradicionais de melhoramento genético. Sustentabilidade - A pesquisa em sus-

tentabilidade, um tema que se tornou tão essencial quanto o da produtividade, também será intensificada. “Para o desenvolvimento da bioenergia no Brasil, é fundamental associarmos os esforços pelo aumento de produtividade ao objetivo da sustentabilidade. Só a bioenergia sustentável terá um futuro no século XXI”, afirma Brito Cruz. No campo da agricultura, existem temas emergentes como a utilização de técnicas de plantio direto, já usadas nas culturas do milho e da soja, mas ainda uma novidade na cana-de-açúcar, para reduzir a compactação do solo causada pela colheita mecanizada. A proibição das queimadas nos canaviais abrirá campos de pesquisa relacionados à fertilidade do solo, o uso de herbicidas e questões relativas à biodiversidade. “A melhoria de indicadores ambientais e 30

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sociais está diretamente relacionada à definição de uma nova agricultura da cana, que comece por entender a fotossíntese e a genômica da cana e passe pela redefinição das mais importantes etapas que levarão à aceitação do etanol de cana-de-açúcar como um combustível líquido efetivamente renovável e com atributos ambientais inequívocos, principalmente quanto à sua capacidade de mitigar os gases de efeito estufa”, diz Antonio Roque Dechen, da Esalq-USP. A inspiração para o novo centro vem da experiência de países como Austrália, Estados Unidos, África do Sul, Espanha e França, mas talvez as principais referências sejam os dois centros criados pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos (DOE, na sigla em inglês). Um deles, o National Renewable Energy Laboratory (NREL), é voltado a pesquisas de conversão de biomassa em energia. O outro, o Oak Ridge National Laboratory (ORNL), dedica-se mais à pesquisa envolvendo a produção da biomassa. Tais centros desenvolvem pesquisa conjunta com centros de pesquisa ligados a várias universidades norte-americanas. “Estes centros no exterior, notadamente os do DOE, envolvem forte colaboração com boas universidades americanas e podem nos servir de modelo”, diz Cortez, da Unicamp. “Em conjunto com a iniciativa privada, pode haver uma

boa complementaridade nas ações e objetivos da pesquisa básica e suas aplicações”, afirma. A coordenação do centro caberá a um conselho superior, sediado na FAPESP e composto por sete membros: um representante da FAPESP, um de cada universidade, um do governo estadual e dois de empresas do setor do açúcar e do álcool. Esse conselho irá determinar a orientação geral do centro, acompanhar o processo de implantação, estimular a integração de esforços das três universidades e propor parcerias. Para assessorar o conselho superior será formado um conselho científico consultivo internacional, que se reunirá uma vez por ano para avaliar cientificamente os programas e os resultados alcançados. O conselho científico será constituído por pelo menos seis especialistas de renome internacional, atuantes em pesquisa básica nas áreas correlatas com as atividades do centro. Está em desenvolvimento um acordo de colaboração com a Unesco, o braço das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, que prevê o status de centro associado à Unesco na categoria II (centros de pesquisa não administrados pela Unesco e reconhecidos por ela como de classe mundial). O objetivo é garantir um maior relacionamento internacional. O recrutamento de bons alunos e pesquisadores no exterior também é considerado estratégico por auxiliar o conjunto de políticas que compõem a chamada agenda de diplomacia brasileira do etanol: ao mesmo tempo que promove a liderança tecnológica do Brasil também ajuda a garantir mercados de outros países. O matemático Jacob Palis, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), elogiou o caráter internacional do centro e disse que a TWAS tem interesse em estabelecer parcerias com a iniciativa. “O novo centro poderá propiciar a formação de pesquisadores não só do Brasil, mas também de outras nações, em particular da África, que dispõe de áreas degradadas que poderiam ser destinadas à produção do etanol”, afirma. “Será interessante haver um fluxo de doutores e pós-doutores de países em desenvolvimento para o novo centro”, diz Palis. ■

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BIOENERGIA

Centro

iremos levar o álcool para vender no mundo inteiro”, afirmou. Para o governador de São Paulo, José Serra, o centro será um espaço propício para colaboração entre os governos federal e estadual. “Para nós, a criação do CTBE é uma notícia grata e se soma ao esforço de pesquisa feito no estado no campo da bioenergia”, disse Serra. Laboratório em Campinas vai investir em gargalos “Na prática, a integração já existe. Toda pesquisa do álcool de celulose dos os três diretores do centro são pesquisadores de universidades estaduais paulistas. Um é pesquisador da USP e oram inauguradas em Campicooperação com o Imperial College, da os outros dois da Unicamp”, afirmou. nas (SP), no dia 22 de janeiro, Inglaterra, e a Universidade Lund, da Serra citou a criação do Centro Paulista as instalações do Laboratório Suécia, com os quais desenvolverá pesde Pesquisa em Bioenergia, no final de Nacional de Ciência e Tecnoquisas conjuntas. Também foi celebrado 2009, que irá integrar os pesquisadores logia do Bioetanol (CTBE), um um acordo com a Empresa Brasileira de das três universidades e contratar novos centro de pesquisa voltado para Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em pesquisadores em temas de fronteira, torno de estudos no campo da susteno desenvolvimento do etanol no âmbito do Programa FAPESP de tabilidade da cultura da cana. de segunda geração, aquele produzido Pesquisa em Bioenergia (Bioen). a partir da celulose. O laboratório foi Presente à inauguração, o presidenSegundo o diretor científico do CTBE, Marcos Buckeridge, a abranconcebido em 2007 e já contou com te Luiz Inácio Lula da Silva ressaltou a R$ 69 milhões de investimentos do goimportância do CTBE para que o Brasil gência dos trabalhos do novo centro verno federal. Algumas pesquisas em dê um novo salto tecnológico. “Espero coincide com a do Bioen, que deverá andamento têm apoio da FAPESP, num que este laboratório possa utilizar todo contribuir com o laboratório e também montante de R$ 2 milhões, segundo o seu potencial para que a gente possa se beneficiar da sua infraestrutura. “EsMarco Aurélio Pinheiro Lima, diretor transformar o etanol no combustível tá em formação um sistema brasileiro do CTBE. Além de desenvolver projede bioenergia que reunirá os trabalhos mais utilizado do mundo”, disse. Lula tos de pesquisa relacionados a todas lamentou o aumento no preço do etanol de uma elite de especialistas espalhaas etapas de produção do etanol, o combustível e criticou os usineiros que dos pelo país”, anuncia Buckeridge, que centro tem a ambição de oferecer uma reduziram a produção de também dirige o Instituplataforma que possa ser utilizada por to Nacional de Ciência e álcool para fabricar mais Laboratório pesquisadores de todos os lugares do açúcar. “Se a gente passar Tecnologia do Bioetanol do CTBE, em Brasil, e também da América Latina, para o mundo a ideia de e é membro da coordenaCampinas: fôlego em moldes semelhantes aos do uso das ção do Bioen. ■ que não estamos dando para o sistema instalações do Laboratório Nacional conta sequer do nosso de pesquisa em bioenergia Fabrício Marques de Luz Síncrotron (LNLS). O LNLS, mercado interno, nós não o CTBE e o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) dividem o mesmo campus em Campinas e são coordenados por uma instância que acaba de ser criada pelo governo federal, o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).

avançado

EDUARDO CESAR

F

Desafios - Segundo o diretor Marco

Aurélio Lima, a ideia de criar o laboratório surgiu de um estudo que levantou os desafios da produção brasileira de etanol para os próximos 15 anos. Uma das metas era responder o que o país precisaria fazer para produzir etanol capaz de substituir 10% da gasolina consumida no planeta no ano de 2025. “Muitos dos gargalos identificados demandam investimentos em ciência para resolvê-los”, diz Lima. O centro firmou acordos de PESQUISA FAPESP 168

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ENSAIOS CLÍNICOS

Demandas do SUS Rede de pesquisa em hospitais de ensino é ampliada

O

s ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia anunciaram no final de 2009 a ampliação da Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Hospitais de Ensino (RNPC), cuja estrutura passou de 19 para 32 centros espalhados pelo país. A rede, criada em 2005, tem um duplo objetivo. De um lado, busca institucionalizar a pesquisa clínica em hospitais de ensino de vários lugares do país, fazendo com que ganhem competência na realização em ensaios clínicos, uma expertise que, até pouco tempo atrás, se limitava a instituições hospitalares de grandes metrópoles. De outro, dá ênfase a demandas da saúde pública, testando medicamentos, procedimentos e dispositivos para diagnóstico de doenças de interesse do Sistema Único de Saúde (SUS). “A ideia da rede é dar uma chance ao SUS de ter estudos clínicos que atendam a suas necessidades”, diz o secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Reinaldo Guimarães. “Até poucos anos atrás, a contratação de protocolos de estudos clínicos pelas empresas farmacêuticas era habitualmente realizada em padrões privados, diretamente com um pesquisador, sem nenhuma intervenção institucional, a despeito de as pesquisas usarem infraestrutura e pessoal das instituições públicas. Com a colaboração de universida-

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des e hospitais, essa prática tende a ser residual hoje em dia”, afirma. Segundo Guimarães, a rede não pretende atrapalhar a relação direta entre laboratórios farmacêuticos e pesquisadores, mas oferecer uma alternativa institucional que tenha como meta o interesse público. “A apropriação das tecnologias envolvidas em testes clínicos não é habitualmente prevista nos protocolos contratados por empresas farmacêuticas”, diz. “Nesses casos, a equipe recebe um protocolo pronto e fechado, adquire os dados dos pacientes e os envia para uma central fora do país. O aprendizado é pobre.” Segundo um levantamento do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, entre 2006 e 2007 foram iniciados 942 projetos de pesquisa clínica em 16 centros dos 19 então participantes da rede. Foram financiados pelo SUS 113 deles, 380 por agências federais e estaduais de fomento e 337 por empresas privadas. Nos três primeiros anos de operação a rede teve investimentos de R$ 35 milhões. Não estão previstos recursos adicionais para a sua expansão.

FOTOS EDUARDO CESAR

Tradição - A RNPC reúne instituições

instituições brasileiras e é coordenado por Eduardo Moacyr Krieger, do Instituto do Coração da FMUSP. Consiste no estudo de 2 mil pacientes por um período de 12 meses em que as diretrizes de tratamento são seguidas utilizando medicamentos e infraestrutura da rede SUS para identificar os pacientes resistentes ao tratamento convencional com até três drogas contra a hipertensão. Outro projeto de destaque é o Prever – Prevenção de eventos cardiovasculares em pacientes com pré-hipertensão e hipertensão arterial. O objetivo deste estudo, coordenado pelo professor Flavio Fuchs, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é comparar, por meio de ensaio clínico, a eficácia da associação de duas drogas, a clortalidona e a amilorida, em baixas doses, na prevenção de doença cardiovascular e hipertensão arterial sistêmica em pacientes com pré-hipertensão arterial. Também busca comparar a eficácia da droga losartana com a associação de clortalidona e amilorida, na prevenção de eventos cardiovasculares em pacientes com hipertensão arterial severa. “Esses dois projetos demonstram interesse no

desenvolvimento de experiência multicêntrica na rede de pesquisa clínica, treinando profissionais para a elaboração de projetos e coleta de dados para responder a questões de pertinência social, de interesse do gestor em saúde e não de corporações farmacêuticas”, diz Guimarães. Um dos novos centros a aderir à rede é o Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC), de Tubarão (SC). Segundo Daisson José Trevisol, que é integrante do Departamento de Ensino e Pesquisa do HNSC e coordena a unidade hospitalar de ensino da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), instituição comunitária e sem fins lucrativos, a expectativa é ampliar as possibilidades de pesquisas clínicas tanto da universidade quanto do hospital, treinando e equipando os núcleos de pesquisa. “Esperamos tornar a pesquisa autossustentável, permitindo que nossos alunos aprendam a pesquisar e que nossos professores tenham a possibilidade de publicar artigos em revistas internacionais de impacto na comunidade científica”, afirmou. ■

Fabrício Marques

com tradição em ensaios clínicos, como o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), cujo comitê de ética em pesquisa recebe cerca de mil protocolos de pesquisa por ano para avaliar e cuja adesão à rede resultou no aprimoramento da estrutura já existente, a unidades hospitalares que começaram recentemente a participar de ensaios. Um exemplo é o Hospital Universitário João de Barros Barreto, da Universidade Federal do Pará, que, com os recursos financeiros recebidos por meio da rede, desenvolveu uma unidade de pesquisa clínica integrada a outros centros de investigação da universidade. “Essa integração é saudável. Com o trabalho em rede, as instituições mais tradicionais repassam sua experiência para as demais”, diz Reinaldo Guimarães. Um dos exemplos de pesquisa de interesse do SUS realizada pela rede é um estudo que busca identificar pacientes com hipertensão resistente, entre as diversidades regionais da população brasileira, e determinar a melhor abordagem terapêutica para este subgrupo. O estudo envolve 25 PESQUISA FAPESP 168

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HOMENAGEM

Entre o laboratório

e o gabinete

Oscar Sala aliou excelência científica à liderança institucional Neldson Marcolin

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ACERVO IF/USP

comum pesquisadores mudarem a direção de uma extraordinária geração de físicos brasileiros. suas atividades principais com o passar dos “Já tinha lido um pouco sobre radiação cósmica e anos. Alguns optam por se tornarem gestores fiz algumas perguntas a ele, que perguntou o que de ciência e tecnologia e acabam absorvidos eu fazia e, afinal, me convenceu a sair da Poli e a pela burocracia de tal maneira que raramenentrar para a Física.” As experiências faziam parte te voltam a frequentar laboratórios ou salas da expedição liderada pelo norte-americano Arthur de aula. Mas há uma classe de cientistas que Compton, que visitou o Brasil em 1941. No mesmo consegue conciliar todas as diferentes atividades com ano Sala começou como aluno da Física e se formou a mesma aptidão e qualidade durante a maior parte em 1945. Ainda estudante, colaborou com o Exérda vida. Oscar Sala foi uma dessas invulgares persocito brasileiro construindo transmissores portáteis nalidades da ciência brasileira, a julgar por todos os usados na campanha na Itália durante a Segunda depoimentos sobre ele. Morto no dia 2 de janeiro em Guerra Mundial. consequência de uma parada cardíaca, aos 87 anos, Em 1946 tornou-se assistente da cadeira de físifoi um dos principais físicos do país e um gestor comca geral e experimental, regida por Marcello Damy petente e importante, intimamente ligado à história da FAPESP como seu diretor científico, entre 1969 e 1975, e presidente, entre 1985 e 1995. Deixou esposa, Rosa Augusta, três filhos e seis netos. Oscar Sala nasceu em Milão, na Itália, de pai brasileiro e mãe italiana. Veio com a família para Bauru, no interior paulista, aos 2 anos. Formou-se em música no conservatório da cidade, mas optou por cursar engenharia na Escola Politécnica. Sua passagem para a física se deu durante o período de férias em Bauru. “No campo de aviação havia uma grande movimentação com os balões que eram soltos a grandes altitudes para medirem a radiação cósmica. Um dia estava lá e comecei a conversar com um senhor, que era justamente o Gleb Wataghin”, contou Sala em entrevista a Amélia Império Hamburger, publicada no livro Cientistas do Brasil (SBPC, 1998). Wataghin, russo radicado na Itália, foi um dos professores estrangeiros que ajudaram a consolidar a Universidade de Os físicos: Ernst Hamburger (em pé), Sérgio São Paulo (USP), responsável por Mascarenhas, Damy, José Goldemberg e Sala PESQUISA FAPESP 168

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Sala em julho de 1977, ano da reunião da SBPC na PUC-SP, invadida pela polícia

CLAUDINE PETROLI/AGÊNCIA ESTADO

de Souza Santos, outro discípulo de Gleb Wataghin. No mesmo ano ganhou bolsa da Fundação Rockefeller e foi estagiar na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, sob a orientação de Maurice Goldhaber, para trabalhar com física de nêutrons. Em 1948 mudou-se para a Universidade de Wisconsin, no mesmo país, e projetou com Ray Herb o acelerador eletrostático, do tipo Van de Graaff, para ser instalado na USP. Esse foi o primeiro equipamento a utilizar feixes pulsados para estudos sobre reações nucleares com nêutrons rápidos, importante para a pesquisa na área de energia nuclear. E, já em 1972, montou no Instituto de Física da USP o projeto parcial do acelerador Pelletron, que substituiu o Van de Graaff. Ação e reação - “Sala percebia bem

o momento em que as coisas aconteciam e sabia como reagir a elas”, diz o físico e historiador Shozo Motoyama, do Centro Interunidade de História da Ciência da USP. Assim, por exemplo, logo depois da Segunda Guerra Mundial, percebendo a importância que a física nuclear experimental poderia ter no Brasil, empenhou-se para consolidá-la. Soube escolher bem os aceleradores de partículas adequados ao magro orçamento brasileiro em ciência e tecnologia, mas capazes de contribuir com resultados científicos relevantes naquele momento histórico. Foi dentro dessa percepção que montou o Van de Graaff na década de 1950 e o Pelletron nos anos 1970. Em torno dessas máquinas formaram-se pelo menos duas gerações de físicos nucleares brasileiros. “Em 1981, Sala recebeu o Prêmio Moinho Santista graças, em grande parte, a esses trabalhos”, afirma Motoyama.

Nos anos 1960 conquistou a cátedra de física nuclear e começou a atuar de modo sistemático em organizações do Brasil e do exterior para tratar de temas relacionados à sua especialidade e de assuntos relativos à política científica e tecnológica. Integrou o Comitê Internacional sobre Estrutura Nuclear (Kingston, 1960) e o Conselho Deliberativo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, 1964-1968), entre vários outros organismos. Foi, ainda, um dos fundadores e o primeiro presidente da Sociedade Brasileira de Física (1966). PESQUISA FAPESP 168

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Sala e César Lattes, um dos descobridores do méson-pi: interação

Em 1969 o então diretor científico da FAPESP, Alberto Carvalho da Silva, foi afastado do cargo pelos militares. O presidente do conselho superior da Fundação, Antonio Barros Ulhôa Cintra, ex-reitor da USP, fez um apelo a Sala para que assumisse a diretoria. “Ele me disse que se não aceitasse a FAPESP seria fechada”, contou Sala a Amélia Hamburger para Cientistas do Brasil. “Durante mais de um ano fui à casa do Alberto todas as semanas, para discutir diretrizes, e criamos uma amizade muito grande.” Com habilidade, firmeza e bons contatos, o físico conseguiu manter o regime militar a uma boa distância da Fundação, sem atrapalhar sua rotina. “O interessante é que ele formou uma dupla influente com o Alberto Carvalho da Silva durante muitos anos”, afirma Amélia. “Sala foi diretor científico em um momento muito delicado. Sua atuação foi decisiva no processo de consolidação dos ideais da Fundação”, diz Celso Lafer, presidente da FAPESP. “Ele teve enorme influência no bom desenvolvimento da FAPESP na diretoria científica e na presidência da instituição”, corrobora o diretor científico Carlos Henrique de Brito Cruz. José Fernando Perez, ex-diretor científico (1993-2005) e atual presidente da empresa Recepta Biopharma, diz que o físico foi “um campeão” na permanente afirmação da 36

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autonomia da Fundação. “Sala soube protegê-la com sabedoria e firmeza de ingerências políticas”, lembra. Grandes projetos - No ano em que se

tornou diretor científico ele apresentou um plano para apoiar grandes projetos, aprovado pelo conselho superior da FAPESP. De acordo com a ata do conselho de 1969, o objetivo era “destinar 30% do total da verba de amparo à pesquisa ao custeio de projetos através dos quais possam ser resolvidos ou bem equacionados importantes problemas de determinadas áreas”. A partir dessa data a nova política de apoio resultou em Iniciativas e Projetos Especiais. Uma das consequências imediatas foi o Plano para Desenvolvimento da Bioquímica na Cidade de São Paulo, o Bioq-FAPESP, com 14 projetos científicos e investimento inicial de US$ 1 milhão, previsto para três anos. “O Bioq eliminou hierarquias, principalmente a científica: elaborava projetos quem queria e ganhava quem podia ou fazia um bom projeto”, conta o bioquímico Walter Colli, pesquisador do Instituto de Química da USP, dirigido por ele em duas ocasiões (1986-1990 e 1994-1998). “Uma grande quantidade de jovens montou os seus laboratórios de pesquisa, elaborando relatórios e publicando trabalhos.” De acordo com Colli, todos os

que participaram do programa foram bem-sucedidos. A participação de Oscar Sala não se limitou à proposta do plano. “Ele montou um comitê externo com três cientistas estrangeiros presididos pelo norte-americano Marshall Nirenberg, Prêmio Nobel de Medicina (1968), que veio várias vezes ao Brasil. Esse comitê acompanhava o progresso dos diferentes grupos entrevistando-os um a um”, lembra o bioquímico. “Como esse era um projeto para a cidade de São Paulo havia uma distribuição racional de equipamentos entre os diversos grupos.” O Bioq-FAPESP resultou na formação de dezenas de projetos, grupos e laboratório, envolvendo aproximadamente duas centenas de pesquisadores, além do intercâmbio com cientistas estrangeiros e a vinda de professores visitantes, de acordo com o livro Prelúdio para uma história – Ciência e tecnologia no Brasil, organizado por Shozo Motoyama (Edusp/FAPESP, 2004). O projeto para a área de meteorologia foi outra iniciativa importante da diretoria científica daquele período. Como esse campo se encontrasse em estado precário no começo dos anos 1970, apesar da importância estratégica para a agricultura, a FAPESP financiou a vinda de James Weiman, do Departamento de Tecnologia da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos. Weiman analisou a situação e recomendou a instalação de um radar meteorológico. Iniciado em 1974, o Projeto Especial denominado Radasp foi instalado no Instituto de Pesquisas Meteorológicas, da Fundação Educacional de Bauru, depois incorporado à Universidade Estadual Paulista (Unesp). Os resultados surgiram imediatamente – os jornais paulistas passaram a usar os dados das previsões do tempo publicadas e a disseminar essas informações. “Pesquisador emérito, Sala muito contribuiu para o desenvolvimento científico do estado de São Paulo e do Brasil”, diz o diretor administrativo da FAPESP, Joaquim José de Camargo Engler. “Convivi e trabalhei com ele como conselheiro

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portância que teria a informatização e a conexão em rede para a pesquisa e direcionou a Fundação para essa linha”, avalia Shozo Motoyama. “A atuação de Sala foi decisiva quando a FAPESP garantiu inicialmente o acesso da comunidade de física de São Paulo, via e-mail, ao Fermilab, dos Estados Unidos”, diz o ex-diretor científico José Fernando Perez. “Foi a partir dessa semente que a Fundação se tornou referência para a internet brasileira. Até há bem pouco tempo a FAPESP foi responsável pela atribuição de domínios da rede, até mesmo para a internet comercial.” Segundo o engenheiro eletrônico Demi Getschko, convidado por Sala para integrar o Centro de Processamento da FAPESP, em 1986, a própria parceria com o Fermilab só foi possível graças aos contatos do então presidente. “Foi ele quem bancou todo o projeto, montou a equipe e apoiou tudo aquilo”, disse à Agência FAPESP Getschko, hoje diretor presidente do

Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). Além das relações delicadas enfrentadas no período como diretor científico da FAPESP, entre 1973-1979 Sala foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Sua principal realização foi conseguir com que a tradicional reunião anual não deixasse de ocorrer. A de 1977, proibida inicialmente pelo governo federal de se realizar em Fortaleza, ocorreu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e foi especialmente conturbada, com a invasão do campus pela polícia. “Ele presidiu a SBPC com ousadia e habilidade em um período difícil da vida brasileira, resistindo ao arbítrio e defendendo o desenvolvimento da ciência no Brasil”, diz Brito Cruz. “Mais ainda, Sala foi um dos grandes cientistas brasileiros, aliando excelência científica e liderança institucional e sendo um modelo de carreira para gerações mais jovens.” ■

FOTOS ACERVO DA FAMÍLIA

e, depois, como diretor administrativo, num relacionamento sempre muito cordial e respeitoso.” Oscar Sala deixou a diretoria científica em 1975. Mas voltou à Fundação em 1985 como presidente do conselho superior e tomou a frente do processo de informatização da FAPESP. O objetivo era desenvolver bancos de dados e sistemas de gerenciamento de bolsas e auxílios concedidos. Seu apoio foi importante para algo que começava a surgir com força no Brasil: as discussões a respeito da conexão brasileira às redes internacionais, precursoras da internet, que ainda engatinhava na década de 1980. Foi criado o programa Rede ANSP (Academic Network at São Paulo), um dos principais pontos de conexão da internet com o exterior e responsável pela interligação das redes acadêmicas universitárias, institutos e centros de pesquisa paulista. “O seu senso de oportunidade funcionou mais uma vez quando percebeu a im-

Sala trabalhando com colaborador: escolha correta de máquinas, adequada ao orçamento da C&T brasileira

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LABORATÓRIO MUNDO

A história de que o físico inglês Isaac Newton teria concebido a lei da gravitação universal ao observar a queda de uma maçã de uma árvore tem sido ora negada, ora alimentada. A mais recente indicação de que pode realmente ser verdadeira foi a publicação on-line, pela Royal Society, de Londres, das 100 páginas do manuscrito do físico William Stukeley, Memórias da vida de Newton. É a primeira descrição da experiência de Newton com a maçã mais famosa da ciência. Um trecho: “Depois do jantar, fomos ao jardim e tomamos chá, sob a sombra de algumas macieiras. Ele me contou que estava antes na mesma situação quando a noção de gravidade veio à mente dele. Foi em decorrência da queda de uma maçã, e ele sentou-se contemplativamente. Por que deveria aquela maçã sempre cair perpendicularmente em direção ao solo, pensou ele”. Publicados em 1752, os textos de Stukeley eram consultados apenas por acadêmicos. Os manuscritos são um dos sete documentos históricos a ganhar a internet como parte das celebrações dos 350 anos da Royal Society, uma das mais importantes sociedades científicas do mundo.

A MAÇÃ DE NEWTON

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REPRODUÇÃO

Na internet: manuscrito conta origem da lei da gravitação universal

> Riscos de cesáreas desnecessárias Um levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre saúde materna indicou que o risco de morte é maior para mulheres submetidas a cesárea sem indicações médicas do que para aquelas em que esse procedimento cirúrgico é realmente necessário. As cesáreas devem ser realizadas somente quando há indicação médica, de acordo com o estudo coordenado por Metin Gülmezoglu, do 38

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departamento de pesquisa e saúde reprodutiva da OMS, sediada em Genebra, Suíça. Publicado em janeiro na revista Lancet, esse trabalho indicou que o risco de internação era de 6% entre as mulheres submetidas a cesáreas sem indicação médica e de apenas 0,6% nas que fizeram parto normal. Os casos de transfusão de sangue e de bebês prematuros internados em unidades de terapia intensiva também eram mais comuns quando as cesáreas eram eletivas. As cesáreas representaram

27,3% dos 107.950 partos realizados em nove países – Camboja, China, Índia, Japão, Nepal, Filipinas, Sri Lanka, Tailândia e Vietnã. A OMS recomenda que as cesáreas não ultrapassem 15% do total de partos, por causa da possibilidade de trazer riscos à saúde do bebê e da mãe quando realizadas sem necessidade. Entre os países analisados, a China apresentou a proporção mais alta de cesáreas, com 46,2% do total de partos, seguida pelo Vietnã, com 35,6%.

> O cheiro da fertilidade Por muito tempo a fertilidade das mulheres era tida como oculta, ao contrário das outras fêmeas primatas que anunciam o período receptivo com cores e comportamentos típicos. Mas dados recentes mostraram que, mesmo que não tenham consciência disso, os homens sentem algo no cheiro de uma mulher no período fértil (Psychological Science). Os norte-americanos Saul Miller e Jon Maner,

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> Estreito regula o clima na Terra

NOÇÃO MATEMÁTICA

Nos laboratórios da Universidade de Tübingen, Alemanha, Sylvia Bongard e Andreas Nieder geraram imagens com poucos ou muitos pontos e ensinaram a macacos rhesus as noções de “mais de” ou “menos de”. Variando a disposição dos pontos para garantir que a distriMacacos: conceitos de “mais” e “menos” buição e a densidade não interferissem na percepção, os pesquicalor e salinidade nos sadores mostraram que os macacos distinguiam "mais" e oceanos Atlântico e "menos", um conceito matemático básico. A capacidade de Pacífico, de acordo com diferenciarem placas com mais ou menos pontos se deve um estudo do National à ativação de neurônios do córtex pré-frontal, que podem Center for Atmospheric representar com flexibilidade regras matemáticas altamente abstratas. De acordo com o experimento, esses circuitos Research (NCAR) neuronais do córtex dos rhesus podem ter sido adaptados ao (Nature Geoscience). longo da evolução dos primatas como resultado do processaAs temperaturas de verão mento de números em sistemas matemáticos formais (PNAS). variaram de amenas a frias Para os dois pesquisadores, esses achados elucidam os meem algumas regiões canismos neurobiológicos de operações numéricas e abrem da América do Norte caminho para uma melhor compreensão do processamento e Groenlândia, fazendo com das regras matemáticas básicas no cérebro de primatas. que blocos de gelo

se expandissem ou encolhessem, modificando o nível do mar em todo o planeta. Embora pequeno – atualmente 80 quilômetros entre a Rússia e as ilhas do oeste do Alasca –, o estreito permite que as águas circulem do Pacífico Norte ao Atlântico Norte, mais salgado, pelo oceano Ártico.

Esse fluxo é importante para regular a força de uma corrente marinha conhecida como circulação meridional, que dirige o calor dos trópicos aos polos. As conclusões desse estudo, mesmo que não digam respeito diretamente

ao aquecimento global atual, evidenciam a complexidade do sistema climático da Terra e o fato de que mudanças aparentemente insignificantes podem levar a mudanças climáticas radicais, especialmente no Ártico ou nas proximidades. NASA

As oscilações dos níveis do mar no estreito de Bering podem ter ajudado a regular os padrões do clima global durante a era do gelo, há mais de 100 mil anos. Aberturas e fechamentos contínuos do estreito que separa a América do Norte da Ásia, em consequência da flutuação dos níveis do mar, influenciaram as correntes marinhas que transportavam

J.M. GARG/WIKIMEDIA COMMONS

da Universidade Estadual da Flórida, pediram a mulheres que usassem uma mesma camiseta para dormir por três dias, que depois apresentaram a jovens voluntários. O achado veio da comparação do nível de testosterona desses rapazes antes e depois de cheirarem as camisetas femininas: esses teores aumentaram com a exposição ao odor de uma mulher por volta do dia da ovulação. É o primeiro estudo a demonstrar alterações fisiológicas nos homens em resposta ao período fértil feminino, um mecanismo importante em aumentar as chances de fertilização.

Bering: extensão do gelo afeta nível do mar e clima no planeta inteiro PESQUISA FAPESP 168

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LABORATÓRIO BRASIL

SANNA SAUNALUOMA

construções geométricas definidas como geoglifos, em forma de quadrados, retângulos e círculos perfeitos, unidos por estradas muradas, vieram à tona em uma região da Floresta Amazônica no estado do Acre, próxima da fronteira do Brasil com a Bolívia. Espalhando-se por 250 quilômetros ao longo do eixo da atual BR 317, Geoglifos no Acre: bem antes dos europeus

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na revista Antiquity no final de 2009, ainda não sabem se as construções tinham finalidades defensivas ou cerimoniais. Elas indicam que sociedades regionais organizadas e densamente povoadas viveram nessa região entre os anos 1250 e 1378, antes da chegada dos colonizadores europeus, em uma região de ocupação antes considerada improvável.

CDC/JANICE HANEY CARR E JEFF HAGEMAN

ASSÍDUAS EM HOSPITAIS

Um estudo em hospitais paulistas detectou uma alta prevalência de bactérias resistentes a antibióticos. Em geral, 31% das variedades de Streptococus aureus se mostraram resistentes à oxacilina, antibiótico bastante usado contra essa bactéria causadora de infecção hospitalar, e a maioria das bactérias multirresistentes sobreviveram a três medicamentos (clindamicina, ciprofloxacina e levofloxacina), de acordo com um estudo de Streptococcus aureus: pouco suscetível a antibióticos Ana Gales e Helio Sader, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em > Círculos perfeitos colaboração com pesquisadores de hospitais do Distrito sob a Amazônia Federal, Florianópolis e Santa Catarina. Segundo os autores, os achados enfatizam a importância de inclusão de drogas Sinais do que poderia ter ainda eficazes contra variedades multirresistentes, como a vancomicina, linezolida e daptomicina, desde o início do sido uma civilização antiga desconhecida pode estar tratamento de infecções hospitalares. Detalhado na revista emergindo no rastro de Brazilian Journal of Infectious Diseases, esse levantamento árvores caídas da Amazônia. consistiu em análises de 3.907 amostras de bactérias coDuas centenas de lhidas de pacientes tratados em quatro hospitais paulistas entre janeiro de 2005 e setembro de 2008, como parte de um programa internacional de vigilância antimicrobiana que inclui 120 centros médicos nas Américas, Europa e Ásia.

essas figuras geométricas escavadas no solo da floresta estão a distâncias variáveis de dois a cinco quilômetros de rios e geralmente próximas a fontes de água fresca. Martti Pärssinen, do Instituto Iberoamericano de Finlândia, na Espanha, Denise Schaan, da Universidade Federal do Pará, e Alceu Ranzi, da Universidade Federal do Acre, os especialistas que apresentaram os geoglifos

> Vinhos com mais gosto e aroma Reforçar o teor de taninos fez com que vinhos Cabernet Sauvignon cultivados na região de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, ganhassem em aroma e sabor, de acordo com um estudo realizado por Vitor Manfroi, da Universidade Federal do MAURO CELSO ZANUS/EMBRAPA UVA E VINHO

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E.W.ROBINSON/REPRODUÇÃO DE NATURALIST ON THE RIVER AMAZONS

Rio Grande do Sul (UFRGS), publicado na Ciência Rural. Manfroi e outros especialistas da UFRGS, Embrapa Uva e Vinho e da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) aplicaram dois taninos comerciais – o de quebracho, de origem argentina, e o de castanheira, italiano – em três dosagens diferentes em três momentos distintos – dois dias, oito dias e quatro meses após o esmagamento das uvas. Um grupo de 14 avaliadores do grupo de degustação da Embrapa Uva e Vinho e enólogos de

Morder ou fugir? Depende do tamanho dos próprios teiús

empresas fez as análises sensoriais. A acidez e a maciez foram menores nas amostras que receberam tanino de castanheira, que levou a um vinho com mais corpo que o tratado com tanino de quebracho. Os vinhos com tanino de quebracho tendiam a apresentar mais amargor que os de castanheira. O objetivo do uso do tanino, autorizado pela legislação internacional sobre vinhos, é facilitar a precipitação de proteínas em excesso e auxiliar na clarificação. Há relatos de taninos usados também para melhorar aromas e gostos e estabilizar a cor dos vinhos.

> Memórias que ficam A memória de longo prazo é um mistério para os neurocientistas: o que faz com que fique gravada no cérebro? O enigma está mais perto da solução, graças a pesquisadores do Brasil e da Argentina coordenados por Jorge Medina e Iván Izquierdo, Cabernet Sauvignon: dose extra de tanino

Símbolos de preguiça por ficarem estirados ao sol, os lagartos na verdade estão mais próximos de baterias solares. Incapazes de aquecer o corpo sem fonte externa de calor, eles precisam lagartear para acumular energia para a vida cotidiana, que inclui fugir de predadores. Em busca de entender a relação entre comportamento anti-predatório, temperatura ambiente e tamanho do corpo, a bióloga Tiana Kohlsdorf, da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, coordenou um trabalho com teiús, lagartos que chegam a ter 1,5 metro de comprimento. O risco ficou por conta do mestrando Fábio Cury de Barros, que fez as vezes de predador dando tapinhas junto à base da cauda dos lagartos – o que lhe rendeu algumas mordidas. Os resultados, publicados em janeiro na revista Animal Behaviour, mostram que a estratégia de defesa dos teiús varia conforme o tamanho e a temperatura a que estão submetidos. Jovens com menos de 100 gramas sempre fogem, mesmo quando estão frios e não conseguem correr (neste caso se afastam devagar). Já os adultos, de quase 1 quilograma, só correm quando estão quentes. No frio, compensa mais enfrentar o predador com uma dolorosa mordida.

ENERGIA SOLAR

da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Testes com ratos que guardaram más memórias de uma caixa em que levavam choques nas patas mostraram um novo papel para o c-fos, uma protína relacionada à aquisição de memória (PNAS). Não basta entrar em ação logo após o acontecido, como de fato acontece; para que a memória se consolide no longo prazo, é preciso um segundo pico

de atividade do c-fos no hipocampo, a área do cérebro mais ligada ao armazenamento de memória, 12 horas depois, seeguido de síntese proteica 24 horas depois. Os pesquisadores viram que essa atividade tardia só acontece se o choque tiver sido de intensidade suficiente para gerar uma memória de longo prazo. A descoberta abre caminhos para a pesquisa sobre a persistência da memória.

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CIÊNCIA

BIOLOGIA CELULAR

AUTOFAGIA PARA A SOBREVIVÊNCIA A manipulação da autodigestão celular inspira novas estratégias para combater doenças Carlos Fioravanti

S

omos todos autofágicos – e isso é bom. A todo momento nossas células se digerem e se renovam, desfazendo e reaproveitando proteínas, por meio de um mecanismo biológico chamado autofagia. Vista antes apenas como um processo de morte celular, essa forma de autodestruição seletiva de componentes celulares mostra-se agora como um artifício de sobrevivência dos organismos – só quando não há mais conserto possível é que as células se apagam. Como aparentemente pode ser acelerada ou retardada, a autofagia tornou-se uma estratégia nova para combater doenças e prolongar a vida das células, cujo interior deve guardar tanto movimento quanto os quadros do artista plástico Jackson Pollock. De imediato, a autofagia está abrindo perspectivas de aplicações novas para velhos medicamentos. Por exemplo, o lítio, usado para tratar pessoas com transtorno bipolar de humor, marcado por saltos repentinos da euforia à depressão profunda, pode ser útil para deter o mal de Alzheimer, uma forma de degeneração dos neurônios que tende a se agravar com o envelhecimento. A cloroquina, além de aplacar a malária, pode ajudar a combater tumores. A rapamicina, antibiótico usado para evitar a rejeição de órgãos transplantados, prolongou a longevidade de um grupo de camundongos, em comparação com outro grupo, que seguiu o curso normal do envelhecimento. “Estabelecer a segurança de usos e acertar as dosagens de novas aplicações de medicamentos já aprovados é bem mais fácil do que começar tudo do zero”, argumenta Soraya Soubhi Smaili, professora da Universidade Federal de São Paulo

Jackson Pollock, Number 3, 1949: Tiger

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A AUTOFAGIA TEM UM PAPEL DUPLO: AJUDA A SOBREVIVER E A ELIMINAR CÉLULAS DE TODO TIPO, SAUDÁVEIS OU TUMORAIS

(Unifesp), à frente de um dos poucos grupos de pesquisa nessa área no país. Cláudia Bincoletto, também professora da Unifesp e pesquisadora da equipe de Soraya, mostrando por que essa estratégia de busca de novos remédios poderia ser conveniente para países de recursos financeiros limitados como o Brasil, acrescenta: “Drogas novas são muito mais caras que as mais antigas”.

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ambém há espaço para a pesquisa de remédios novos. Na Unifesp, Cláudia estuda os efeitos promissores de compostos derivados do elemento químico paládio sobre a autofagia como forma de combater tumores. Ela tem verificado que a possibilidade de regular a autofagia por meio de compostos químicos pode ser um caminho para aumentar a eficiência de compostos antitumorais, diminuindo a dosagem e os efeitos indesejados sobre outras células. Em um estudo recém-concluído na Universidade de São Paulo (USP), Renato Massaro, orientado por Silvya Maria-Engler, testou um composto extraído de raízes e folhas de um arbusto da Mata Atlântica, a pariparoba, contra uma linhagem de células humanas de tumor de cérebro que cresciam em um meio de cultura apropriado, mantido em laboratório. Os resultados que ele colheu indicaram que esse composto, o 4-nerolidilcatecol ou 4-NC, pode estimular a autofagia nesse tipo de tumor, chamado glioma, e acionar os caminhos bioquímicos que levam não só à reciclagem, mas também à morte celular. Os gliomas se originam das chamadas células glias, muito mais numerosas no cérebro que os neurônios. Massaro observou que o 4-NC também reduzia a capacidade de as células tumorais invadirem o espaço das células sadias. Era um bom sinal. O problema é que outros grupos de 44

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pesquisa já haviam indicado que as células tumorais podem adquirir resistência aos estímulos que induzem à morte celular. Uma das características típicas da célula tumoral é justamente a capacidade de escapar da morte celular geneticamente programada. Como a apoptose e a autofagia se relacionam, uma estimulando ou freando a outra, Massaro adotou a estratégia inversa: acrescentou um composto que bloqueia a autofagia, o 3-metil-adenina ou 3-MA, à cultura de células tumorais humanas. O 3-MA ampliou o efeito do 4-NC e a morte dos tumores aumentou 30%, provavelmente estimulando outro mecanismo de morte celular, em comparação com o grupo de células que receberam apenas o 4-NC. Na Unifesp, com outros compostos, Cláudia Bincoletto chegou a resultados semelhantes, que indicam que a autofagia não induz à morte, mas à sobrevivência das células – portanto, quando inibida, compostos antitumorais tornam-se mais efetivos. “Essa tem sido uma estratégia defendida por muitos grupos em busca de novos tratamentos contra tumores”, comenta Soraya. “Agora nosso desafio é encontrar a dosagem que elimine apenas as células tumorais, sem lesar as normais”, diz Silvya. Segundo ela, alterar os níveis normais de autofagia em células saudáveis poderia gerar desequilíbrios nos processos genéticos ou respostas inflamatórias indesejadas. A equipe da USP havia indicado em 2008 que o 4-NC pode estimular a apoptose de células de tumor de pele ou melanoma mantidas em cultura de células.

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a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a equipe de Guido Lenz tem estudado os efeitos do resveratrol, composto natural encontrado na casca de uva, frutas vermelhas e amendoim, sobre a vida e a

morte das células. Sob sua orientação, Eduardo Chiela comparou os efeitos de resveratrol e da temozolomida, um dos principais medicamentos usados contra gliomas que, já se sabia, pode induzir à morte por autofagia. O estudo, em fase final de redação, indicou que o ingrediente da casca de uva (principalmente as escuras) estimula os dois mecanismos de morte celular, a autofagia e a apoptose, em culturas de células humanas tumorais. Em um estudo anterior, Lauren Zamin, Guido Lenz e outros pesquisadores da UFRGS avaliaram os efeitos do resveratrol e da quercetina, outro componente da uva e de outras frutas: a casca de uva contém cerca de 50 a 100 microgramas por grama de resveratrol e 40 de quercetina; o vinho tinto, cerca de 7 a 13 de resveratrol e 7,4 de quercetina. Uma combinação das duas substâncias fez células de glioma de ratos entrarem em senescência, processo de envelhecimento irreversível que pode culminar em autofagia e do qual as células normais se valem como forma de evitar que se tornem cancerosas. Sob o efeito dessas duas substâncias, as células tumorais se agigantaram e depois se romperam. Os testes prosseguem em animais e reforçam o papel duplo do resveratrol, que, de modo inverso, apresenta um efeito antienvelhecimento em células saudáveis. “O resveratrol parece perceber quando uma célula é saudável ou tumoral”, observa Lenz. “Não será fácil, mas temos muito interesse em prosseguir a pesquisa, à medida que os resultados em ações sejam positivos, rumo a aplicações em seres humanos.” Outros estudos já haviam descrito o resveratrol como um composto capaz de deter outros tipos de tumores, estimular a autofagia e deter o envelhecimento. “A autofagia representa um enfoque promissor para tratar melanomas (cânceres de pele)”, comentou Damià Tormo, pesquisador do Centro Espanhol de Pesquisa sobre Câncer, em Madri, em uma apresentação em janeiro na USP.

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MIGUEL BOYAYAN

Ele coordenou a construção de uma estrutura sintética de RNA (ácido ribonucleico) que aciona proteínas específicas e promove autofagia, como descrito em um artigo de 2009 na revista Cancer Cell. Tormo trabalha também em sua empresa nascente, a BiOnco Tech, para levar adiante o desenvolvimento dessa molécula, que se mostrou eficaz para deter o crescimento de tumores de pele, que com frequência se tornam resistentes a medicamentos, nos primeiros experimentos realizados em cultura de células e em camundongos geneticamente modificados.

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esmo com novas substâncias com efeitos promissores e aparentemente de baixa toxicidade, não será fácil prosseguir. Em primeiro lugar, por causa das dificuldades para desenvolver novos medicamentos no Brasil. Em segundo lugar, por conta do próprio papel – igualmente duplo – da autofagia, que ajuda a sobreviver ou a eliminar tanto as células normais quanto as tumorais. Em vários estudos, observa Guido Kroemer, pesquisador do Instituto Gustaf Rouassy de Paris, mostrou-se que a autofagia pode ter funções diferentes, de acordo com o tipo de célula. Em neurônios, células do coração e outros tipos de células que se reproduzem normalmente, esse mecanismo poderia ajudar na limpeza, eliminando resíduos, além de preparar a célula para a morte por apoptose. Em células que se multiplicam de modo descontrolado – ou seja, com potencial para formar tumores –, a autofagia poderia favorecer a sobrevivência e, portanto, a eventual resistência a compostos ou estímulos externos usados contra elas. Reconhecida nos anos 1970 por Daniel Klionsky, pesquisador da Universidade de Michigan, Estados Unidos, a autofagia passou quase três décadas vista apenas como uma forma, inicialmente sem muita importância, de a célula se livrar de si mesma. Por essa raAntitumorais zão, foi chamada de à mão: morte celular proa casca de gramada tipo 2 para uva contém diferenciar da apopresveratrol e quercetina tose, ou morte tipo 1, PESQUISA FAPESP 168

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Faxina no interior das células

muito mais estudada. “Pode-se dizer que a autofagia antecede a morte celular ou que é cruzada à morte celular, mas hoje não é mais correto afirmarmos que a autofagia seja um tipo de morte celular”, comenta Soraya. Os genes que controlam a autofagia começaram a ser identificados em 1997, inicialmente em leveduras, organismos unicelulares, empregados na fabricação de pão, vinho, cerveja e álcool combustível. A partir dos genes, os especialistas conheceram quais são e como interagem as proteínas que levam adiante esse mecanismo flexível de reciclagem de componentes celulares. Além de desmontar o que não está funcionando direito, a autofagia tem outras funções ao longo do desenvolvimento das células, nem sempre levando à morte. É necessária, por exemplo, para as leveduras se reproduzirem e para as larvas de insetos se transformarem em pupas. “Hoje vemos que a autofagia está mais para sobrevivência e resistência do que morte celular”, observa Soraya. “Diante de um estímulo agressor ou de um defeito celular, a célula pode entrar em autofagia como uma tentativa de reparo e só quando não há mais conserto é que entra em processo de morte celular.” Vários estudos sugerem que os genes e as proteínas que estimulam a autofagia podem bloquear a apoptose, ou o contrário, a partir de estímulos muito bem definidos, estabelecendo assim uma conversa cruzada entre esses dois fenômenos. Quando recebem estímulos internos ou externos, as duas dezenas de genes já identificados que controlam a autofa46

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gia acionam a produção de proteínas, que aos poucos se encaixam formando membranas que cercam os componentes celulares a serem desmontados antes de causarem problemas. Em seguida, movida por outras proteínas específicas, a membrana se funde com os lisossomos, compartimentos da célula ricos em enzimas que rotineiramente fragmentam proteínas.

O

s lisossomos digerem proteínas defeituosas celulares mais lentamente que outro mecanismo de limpeza celular chamado proteossomo. Embora mais lentos, os lisossomos podem eliminar estruturas celulares maiores, quando danificadas ou deficientes, principalmente as mitocôndrias, compartimentos celulares que convertem a energia obtida dos alimentos em moléculas de ATP, fundamentais para a manutenção das células. Na Unifesp, sob orientação de Soraya, Juliana Terashima irrigou células com um composto conhecido pela sigla FCCF, extremamente tóxico para as mitocôndrias. Em resposta, as células entraram em autofagia, que, uma vez acionada, ajudou a remover as mitocôndrias que haviam sido danificadas pelo composto. Ao participar da linha de desmontagem celular, os lisossomos permitem às células construir novas moléculas mesmo quando não são abastecidas por matéria-prima habitual, vinda dos alimentos. A fusão das membranas com os lisossomos leva à formação

1h

de grandes bolsas, chamadas vacúolos autossômicos, que levam adiante a transformação de resíduos em matéria-prima para moléculas novas. Segundo Lenz, aparentemente é o número de mitocôndrias eliminadas por esses vacúolos que marca o momento em que a célula sai da fase da reciclagem para a da destruição completa. O problema é encontrar esse limite. Ou, em termos práticos, descobrir quantas mitocôndrias uma célula precisa perder – uma célula possui em média 200 mitocôndrias – para entrar no caminho irreversível da morte celular. O conhecimento sobre essa linha de desmontagem celular, à medida que encorpava, levantou as primeiras possibilidades, hoje mais concretas, de intervir nessa cadeia de reações bioquímicas para prolongar a vida das células sadias e reduzir a das tumorais. Em um estudo publicado em fevereiro de 2008 na revista PNAS, pesquisadores italianos mostraram que o lítio, aplicado durante 15 meses em um grupo de 44 pessoas, poderia adiar a progressão da esclerose lateral amiotrófica, uma doença neurodegenerativa. Um mês antes uma equipe da Universidade de Cambridge havia mostrado na Human Molecular Genetics as possibilidades de uso do lítio e da rapamicina, combinados, para tratar a doença de Huntington, outra enfermidade com perda contínua da funcionalidade dos neurônios. “A autofagia parece remover os agregados de proteínas malformadas, que atrapalham o funcionamento das células nervosas e estão presentes em doenças neurodegenerativas como a de

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Huntington, Parkinson e Alzheimer”, observa Soraya. Segundo ela, estudos realizados em seu laboratório com células de pacientes com Huntington mostraram que estimular a autofagia pode retardar o aparecimento da morte celular por apoptose. Uma célula que se limpou por meio da autofagia pode viver mais, de acordo com um estudo realizado nos Estados Unidos e publicado na Nature em julho de 2009. Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores cuidaram de cerca de 3 mil ratos idosos, com uma idade equivalente a 60 anos em seres humanos. Administraram rapamicina, composto que estimula a autofagia, a uma parte dos animais e esperaram todos morrer naturalmente, de cinco a sete meses depois. Os camundongos que receberam rapamicina apresentaram um tempo de vida de 28% a 38% maior que os do grupo que não recebeu nada.

E

sse experimento impressionou pela grandiosidade, já que o número de animais raramente é tão elevado, mas sua aceitação não foi consensual – e muitos pesquisadores argumentaram que os camundongos podem ter vivido mais por outras razões ou que esse resultado não é o bastante para associar o controle da autofagia ao prolongamento da vida celular. De todo modo, os mecanismos de funcionamento da autofagia tornam-se mais claros. Outros experimentos sugeriram que a simples privação de nutrientes pode

4h

estimular esse tipo de limpeza celular. “Recebendo menos glicose”, comenta Soraya, “a célula vai produzir menos energia pelas vias metabólicas habituais, mas também produzirá menos resíduos que aceleram o envelhecimento, além de estimular a autofagia, que pode remover mitocôndrias e proteínas malformadas”. Em um artigo publicado em 2006 na Cancer Cell, Melanie Hippert, Patrick O’Toole e Andrew Thorburn, da Universidade de Colorado, em Denver, Estados Unidos, reconhecem que a manipulação da autofagia deve ser útil para deter a evolução de tumores e aumentar a eficiência dos tratamentos contra câncer. O problema é que a autofagia tem um papel duplo: pode inibir ou favorecer o crescimento de tumores, dependendo das circunstâncias. Por essa razão, a autofagia poderia ser estimulada para evitar a formação de tumores em pessoas com risco de câncer, mas reduzida se um tumor já tiver se estabelecido no organismo. Depois de encontrar um composto adequado, o desafio seguinte será definir a melhor dosagem, para que apenas as células tumorais morram. Chi Dang, da Universidade John Hopkins, Estados Unidos, relatou em janeiro de 2008 na Journal of Clinical Investigation que a cloroquina, um antimalárico, pode ajudar a prevenir a evolução de tumores. Ele advertiu, porém, que o uso prolongado desse composto, que inibe a autofagia e estimula a apoptose, pode ter efeitos colaterais ainda não previstos, já que o conhecimento sobre o equilíbrio celular ainda é rudimentar.

Células do cérebro (astrócitos) recebem um marcador de autofagia fluorescente, que no início (0h) se distribui de modo homogêneo. A aplicação de um composto tóxico para mitocôndrias provoca autofagia, marcada pela concentração de pontos fluorescentes. A concentração de pontos indica que as células, por autofagia, estão removendo as mitocôndrias danificadas.

“Não acredito que os novos antitumorais apenas estimulem a autofagia”, comenta Lenz. “Seria arriscado. A saída talvez seja algo, como o resveratrol, que possa ter múltiplos alvos e ativar mais de um processo bioquímico que leve à morte dos tumores, inclusive por autofagia.” Mesmo que novos compostos não cheguem logo, a capacidade de induzir ou bloquear a morte celular deve tornar-se uma característica dos medicamentos em geral, ajudando a explicar como atuam no organismo – muitos medicamentos antitumorais já em uso, por sinal, podem induzir à autofagia. Pode ajudar também a retomar muitas pesquisas interrompidas. “Fármacos que falharam em testes clínicos talvez precisem ser revisitados”, cogita Silvya Stuchi Maria-Engler, da USP, “porque podem se tornar excelentes se usados com outros, capazes de induzir ou inibir a autofagia”. ■ > Artigos científicos 1. ZAMIN, L.L. et al. Resveratrol and quercetin cooperate to induce senescence-like growth arrest in C6 rat glioma cells. Cancer Science. v. 100, n. 9, p. 1.655-62. 2009. 2. HIPPERT, M.M. et al. Autophagy in cancer: good, bad, or both? Cancer Research. v. 66, n. 19, p. 9.349-51. 2006. 3. HARRISON, D.E. et al. Rapamycin fed late in life extends lifespan in genetically heterogeneous mice. Nature. v. 460, p. 392-5. 2009. 4. TORMO, D. et al. Targeted activation of innate immunity for therapeutic induction of autophagy and apoptosis in melanoma cells. Cancer Cell. v. 16, n. 2, p. 103-14. 2009.

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JULIANA TERASHIMA E SORAYA SMAILI/ UNIFESP

2h

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> MEDICINA

O veneno

do

remédio Efeitos nocivos limitam potenciais usos terapêuticos da curcumina

Salvad or No gueira

A

curcumina, substância encontrada no pó amarelo-alaranjado extraído da raiz da curcuma ou açafrão-da-índia (Curcuma longa), aparentemente pode ajudar a combater vários tipos de câncer, o mal de Parkinson e o de Alzheimer e até mesmo retardar o envelhecimento. Usada há quatro milênios por algumas culturas orientais, apenas nos últimos anos passou a ser investigada pela ciência ocidental, com resultados surpreendentes em alguns casos e alarmantes em outros. Estudos conduzidos na Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (USP-RP), interior do estado, indicam que em dosagem baixa a curcumina previne danos no material genético das células provocados por compostos tóxicos. Em teores elevados, porém, a curcumina pode até matá-las. Recentemente a curcumina vem sendo tratada como panaceia pelos meios de comunicação ávidos por dicas de saúde. Corante rotineiro na indústria alimentícia, ela está presente nos mais diversos produtos, de biscoitos a sorvetes, de sopas a margarinas. Também é a base de condimentos como o curry. Na Índia, aliás, seguindo a dieta típica do país, as pessoas chegam a consumir ao redor de dois gramas de curcumina por dia. Nos países ocidentais, onde a quantidade nos alimentos é bem menor, a expectativa de que a curcumina possa melhorar a qualidade de vida e prevenir doenças a transformou num suplemento alimentar.

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Curcuma: usado como tempero, extrato obtido do açafrão-da-índia é rico em curcumina

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WWW.SXC.HU

Mas alguns pesquisadores alertam: vale a pena levar em conta um velho ditado segundo o qual a diferença entre o remédio e o veneno está na dose – uma adaptação do que teria escrito no século XVI o médico, botânico e alquimista suíço Paracelso. É basicamente isso que vêm sugerindo as pesquisas realizadas pelo grupo de Lusânia Maria Greggi Antunes, pesquisadora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP em Ribeirão Preto. “Foi muito divulgado no final do ano passado, até em programas de TV, que a curcumina teria um efeito

protetor contra o câncer, e só foi dito que quanto maior o consumo, maior a proteção”, afirma Lusânia. “Mas a gente sabe, pelos dados disponíveis, que não é bem assim.” Pesquisadores da Universidade de Sevilha também alertaram para o risco-benefício da curcumina como agente terapêutico. O interesse inicial do grupo de Ribeirão era estudar o potencial antimutagênico da curcumina, ou seja, sua capacidade de diminuir danos e alterações no material genético (DNA) das células. “Começamos nossos estudos

tentando observar redução de danos na estrutura dos cromossomos e depois na sequência do próprio DNA”, conta a pesquisadora. Os testes foram feitos tanto com células (in vitro) como em animais (in vivo) para verificar se a curcumina, com atividade antioxidante já demonstrada, também evitaria mutações no material genético celular. Essas pesquisas iniciaram-se mais de 10 anos atrás e hoje formam um corpo que justifica o alerta. Nos primeiros testes, o grupo de Lusânia usou uma cultura de células de ovário de PESQUISA FAPESP 168

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Neuroproteção - Mais recentemente, alguns trabalhos começaram a sugerir que a curcumina, além de suas propriedades antioxidantes – ela reduz a formação de radicais livres prejudiciais às células –, também poderia apresentar um efeito neuroprotetor, o que a tornaria uma potencial candidata a combater doenças neurológicas hoje incuráveis, como Parkinson ou Alzheimer. O farmacêutico Leonardo Mendonça, do grupo de Lusânia, também colocou essa assertiva à prova em 2009, com um estudo in vitro feito com células de rato denominadas PC12, originárias da glândula adrenal e precursoras de neurônios. Para induzir os danos às células, os pesquisadores usaram cisplatina, um quimioterápico agressivo, em diferen50

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A essa altura, estava mais claro que o efeito da curcumina nem sempre era protetor. Mas por quê? Aparentemente, após uma determinada dose, a substância passava a contribuir para a formação de radicais livres, em vez de impedi-la. O mecanismo molecular exato ligado a esse efeito, porém, ainda está longe de ser esclarecido. E o mais intrigante é que os experimentos da equipe de Lusiânia com ratos não permitiram verificar as mesmas propriedades nocivas vistas nos estudos com células em cultura. Parecem ser duas as razões para o fato de os estudos in vivo não mostrarem os mesmos efeitos danosos dos tesEm flor: açafrão-da-índia, nativo do sul da Ásia tes in vitro. A primeira é que a chamada biodisponibilidade da curcumina, a capacidade tes concentrações. Como nos estudos de o organismo a absorver, é bastante com as células de ovário, usaram doses baixa. Isso significa que as doses advariadas da curcumina para avaliar um ministradas pelo grupo de Lusânia aos possível efeito protetor. Os resultados animais podem ter sido baixas demais foram basicamente os mesmos: nas para provocar algum efeito deletério. concentrações menores, a curcumina A segunda razão é que no organismo a ajudou a proteger as células da ação curcumina é metabolizada no intestideletéria da quimioterapia. Mas, nas no, antes mesmo de entrar na corrente doses mais altas, o efeito se inverteu e os sanguínea, e depois novamente no fígado, o que terminaria por protegê-lo danos foram ainda maiores que os obde uma eventual dose excessiva dessa servados entre as células tratadas com substância. cisplatina, mas não com curcumina. LUCIEN MONFILS/WIKIMEDIA COMMONS

hâmster chinês, escolhidas pelos cromossomos grandes. Depois de tratar as células com o quimioterápico bleomicina, de conhecido poder mutagênico e usado contra leucemia, e com radiação, também capaz de induzir danos no material genético, os pesquisadores aplicaram em três grupos de células concentrações diferentes de curcumina. A expectativa era que a substância encontrada na curcuma reduzisse as alterações nos cromossomos. Mas aí veio a surpresa. As doses menores (2,5 e 5 microgramas de curcumina por mililitro) produziram um efeito antimutagênico, enquanto a dosagem mais alta, 10 microgramas por mililitro, provocou a reação contrária: mais mutações do que as observadas nas células não tratadas com curcumina. Ante esses resultados, concluiu-se que nem sempre a curcumina produz um efeito benéfico. Uma quantidade grande demais pode ter um efeito oposto ao de concentrações menores. É o remédio se transformando em veneno.

Como um cometa A sequência de imagens ao lado mostra danos no material genético de célula de fígado provocados por compostos mutagênicos

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O PROJETO Neurotoxicidade induzida pelo quimioterápico cisplatina: possíveis efeitos citoprotetores dos antioxidantes da dieta curcumina e coenzima Q10

MODALIDADE

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa COORDENADORA

LUSÂNIA MARIA GREGGI ANTUNES – USP-RP INVESTIMENTO

LABORATÓRIO DE BROMATOLOGIA E NUTRIÇÃO E NUTRIGENÔMICA/FCFRP-USP

R$ 117.914,06

Ante essas dúvidas, a equipe volta à bancada em 2010 com o objetivo de criar um modelo in vitro que esteja mais próximo do que se vê in vivo. “Estamos começando o estudo com células que conseguem fazer essa metabolização e que devem permitir comparar melhor os resultados [in vitro com os in vivo]”, explica Lusânia. Caso esse esforço seja bem-sucedido, deve se tornar possível começar a especular sobre qual seria a dosagem máxima segura para ingestão oral por seres humanos. Hoje os estudos só são capazes de mostrar que, depois de uma determinada quantidade, a curcumina faz mal. Mas, como quase todos os testes foram in vitro, não permitem calcular a dosagem ameaçadora para um organismo. Isso porque a ingestão de alguns gramas de curcumina resulta em concentrações muito baixas no sangue, medidas em nanogramas, bem menos do que a quantidade a que as

células são submetidas em laboratório. O grupo também pretende investigar quais genes a curcumina ativa e desativa dentro das células, numa tentativa de elucidar o mecanismo molecular por trás de efeitos tão diversos. Se por um lado a questão da dosagem e a da toxicidade preocupam, por outro, alguns estudos, feitos por brasileiros inclusive, mostram resultados animadores do uso da curcumina contra certos tipos de câncer. O grupo do urologista Miguel Srougi, da Faculdade de Medicina da USP, tem trabalhado com a perspectiva de usar a curcumina contra tumores de próstata e de bexiga. Nas culturas de células em laboratório, eles observaram um efeito impressionante: a curcumina levou as células dos tumores ao suicídio – acionou a apoptose, a morte celular autoinduzida. O resultado é particularmente surpreendente se levar-se em consideração o fato de que os tumores em geral são formados por células que sofreram mutações e se recusam a morrer, multiplicando-se furiosamente. Ação localizada - No estudo do cân-

cer de bexiga, a equipe de São Paulo foi mais longe: realizou uma série de experimentos in vivo, com camundongos. Os testes mostraram um efeito localizado contra as células cancerosas, sem danos colaterais nos animais. “Está nos planos fazermos no futuro próximo testes clínicos com a curcumina contra o câncer de bexiga, possivelmente para ser usada como segunda linha de tratamento”, explica Kátia Leite, pesquisadora do grupo de Srougi. A vantagem no caso dos tumores de bexiga é a facilidade de aplicação direta da curcumina. É possível injetá-la dire-

tamente na bexiga, via uretra, de forma que as concentrações que chegam ao tumor são suficientes para afetá-lo. Quando a administração é por via oral, isso se torna mais difícil, em razão da pouca capacidade de absorção do organismo. Essa constatação ajuda a explicar por que muitos pesquisadores dizem que as pessoas não deveriam se animar muito em incluir curcumina na dieta por seus potenciais efeitos medicinais. Mas, de novo, nem mesmo como medicamento, com uso específico e dosagem controlada, a curcumina é a solução para todos os males. Um estudo realizado pelo americano Mark Miller, da Universidade Wake Forest, e apresentado em novembro de 2009 em um congresso em Ouro Preto, interior de Minas Gerais, mostrou que, em testes contra câncer de pulmão feitos com camundongos transgênicos, a curcumina agravou o problema, em vez de combatê-lo. O desafio agora é decifrar precisamente como a curcumina age no organismo, para compreender como ela pode, em alguns casos, fazer bem, e em outros, mal. “Ainda estamos muito longe de entender os mecanismos exatos de ação da curcumina”, explica Kátia. “Por isso mesmo ainda precisamos de muitas outras pesquisas.” ■

> Artigos científicos 1. MENDONÇA, L.M. et al. Evaluation of the cytotoxicity and genotoxicity of curcumin in PC12 cells. Mutation Research. v. 675, p. 29-34. 2009. 2. LEITE, K.R.M. et al. Effects of curcumin in an orthotopic murine bladder tumor model. International Brazilian Journal of Urology. v. 35, p. 599-607. Set./Out. 2009.

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COSMOLOGIA

Ricard o Zorzet to

Universo Astrônomos e físicos do mundo todo tentam desvendar do que são feitos 96% do Cosmo

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A

Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) divulgou no final de janeiro uma imagem mostrando a concentração de galáxias a diferentes distâncias em uma pequena região do Universo. Cada ponto colorido da imagem (veja ao lado) corresponde a um agrupamento com centenas a milhares de galáxias – cada uma delas formada por centenas de bilhões de estrelas e uma quantidade elevada de gás muito quente. São o que os astrônomos chamam de aglomerados de galáxias, as estruturas em equilíbrio de maior dimensão e massa já identificadas no Cosmo. Calculando o número de corpos celestes que podem existir ali, fica difícil imaginar que eles contribuam para compor apenas 4,6% de tudo o que existe no Universo. O restante, na verdade quase tudo, não pode ser visto. Os outros 95,6% são formados, de acordo com a vasta maioria dos físicos e dos astrônomos, por dois tipos de elementos descobertos apenas nos últimos 80 anos: a matéria escura e a energia escura, sobre as quais quase nada se sabe além do fato de que precisam existir para que o Universo seja como se imagina que é. Alvo de uma série de experimentos internacionais que contam com a participação de brasileiros, alguns já em andamento e outros previstos para iniciar nos próximos anos, essa forma de matéria e de energia não absorve nem emite luz e, portanto, é invisível ao olho humano. Nenhum equipamento em atividade até o momento foi capaz de detectá-las diretamente. Mas os físicos preveem a existência das duas em seus modelos de evolução do Cosmo, e os astrônomos inferem a presença delas a partir de assinaturas que deixam na estrutura do Universo, identificáveis em imagens como essa produzida pela ESA, resultado do Levantamento sobre a Evolução Cosmológica (Cosmos) – esse projeto usa os maiores telescópios em terra e no espaço para vasculhar uma região Aquarela cósmica: do céu do tamanho de oito luas cheias. cada círculo Foi apenas no último século que a comrepresenta preensão do Universo se complicou tanto. Na um agrupamento década de 1920 o astrônomo norte-ameride galáxias, cano Edwin Hubble percebeu que o Cosmo as mais próximas era formado por grandes agrupamentos de em azul e as estrelas – as galáxias – e que elas estavam se mais distantes afastando umas das outras. A constatação de em vemelho

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XMM-NEWTON/ESA/COSMOS

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chamada de energia escura –, fazia o Cosmo crescer a velocidades cada vez maiores como um lençol de borracha puxado pelas pontas. Poucos cientistas duvidam hoje da existência da matéria escura e da energia escura, também conhecidas como a componente escura do Universo. O principal desafio – muitos pesquisadores a consideram uma das questões mais importantes a serem resolvidas – é determinar a natureza de ambas, ou seja, o que de fato as compõem. Sobre esse ponto, físicos e astrônomos nada sabem com segurança. Quando muito, têm bons palpites. E, como os demais habitantes do planeta, devem continuar às escuras até que uma avalanche de dados sobre mais agrupamentos de galáxias e outras estrutuColisão de titãs: ras do Universo o choque de dois mais antigas do aglomerados de que as observagaláxias separou das hoje comece a matéria comum a alimentar seus (rosa) da matéria computadores. escura (azul)

HST/CXC/NASA

que o Universo estava se expandindo levou físicos e astrônomos a reverem suas ideias, pois até então acreditava-se que ele fosse estático e finito. Estudando as galáxias, o astrônomo búlgaro Fritz Zwicky, considerado por muitos um mal-humorado, notou em 1933 que elas precisariam de 10 vezes mais massa do que tinham para se unirem em aglomerados apenas pela atração gravitacional, a força proposta por Isaac Newton para explicar a atração de corpos de massa elevada a distâncias muito grandes, como os planetas e as estrelas. A massa que não se conseguiu enxergar foi chamada de matéria escura. A energia escura só seria proposta cerca de 70 anos mais tarde, quando os grupos de Adam Riess e Saul Perlmutter, que investigavam supernovas, estrelas que explodiram passando a emitir um brilho milhões de vezes mais intenso, estavam se afastando de nós cada vez mais rapidamente. O Universo não se encontrava apenas em expansão, mas em expansão acelerada. Algo desconhecido, uma espécie de força contrária à da gravidade – mais tarde

“Nunca nossa ignorância foi quantificada com tamanha precisão”, comenta o astrônomo Laerte Sodré Júnior, da Universidade de São Paulo (USP), referindo-se aos cálculos mais aceitos hoje da quantidade de matéria escura e de energia escura existentes no Cosmo: 22,6% e 72,8%, respectivamente. Há quase 30 anos Sodré estuda os aglomerados de galáxias, que reúnem cerca de 10% das galáxias existentes e podem ser compreendidos como sendo as metrópoles cósmicas: assim como as metrópoles da Terra, são poucas, mas têm dimensões absurdas e são muito populosas. Com base em informações sobre aglomerados de galáxias e outros astros muito antigos e distantes, os físicos teóricos Élcio Abdalla, Luis Raul Abramo e Sandro Micheletti, todos do Instituto de Física (IF) da USP, em parceria com o físico chinês Bin Wang, decidiram recentemente verificar se os dados dessas observações astronômicas confirmavam uma ideia apresentada anos antes por outro brasileiro, o físico Orfeu Bertolami, pesquisador do Instituto Superior Técnico de Lisboa, em Portugal. Quase uma década atrás, pouco depois de identificadas as primeiras evidências de que a energia escura existe, Bertolami propôs que, se a matéria escura e a energia escura interagissem, como havia sugerido o astrônomo italiano Luca Amendola, essa influência mútua deixaria sinais em estruturas muito grandes do Cosmo, a exemplo dos aglomerados de galáxias. Partículas - Para quem não está habi-

tuado, pode parecer estranho imaginar que algo que não se sabe muito bem o que é afete de alguma forma outra coisa sobre a qual não se tem o menor conhecimento. Mas não é o que os físicos pensam. Seja qual for a natureza da matéria escura e da energia escura, espera-se que o comportamento de ambas na escala do infinitamente pequeno (o mundo das partículas atômicas) influencie o mundo do infinitamente grande. Por isso, conhecer a interação entre elas – e delas com a matéria visível – pode ajudar a compreender como e em quanto tempo o Universo se formou e se tornou o que é, possibilitando inclusive a existência de vida. “Se acreditarmos minimamente no modelo padrão da física de partículas, que explica 54

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NASA/WMAP SCIENCE TEAM

A expansão do Cosmo Há 13,7 bilhões de anos uma explosão colossal, o Big Bang, gerou toda a matéria e a energia existentes no Universo, além do próprio tempo. À medida que expandia e esfriava, o Cosmo sofreu influência de elementos como a matéria escura e a energia escura, que predominaram em diferentes fases de sua evolução

Formação dos átomos e emissão de radiação cósmica de fundo (380 mil anos)

Era de trevas

Formação de mais estrelas, planetas e aglomerados de galáxias sob ação das matérias comum e escura (2 bilhões de anos)

Início da expansão acelerada por influência da energia escura (9,5 bilhões de anos)

Fase inicial de inflação

satélite WMAP

Grande explosão

Surgimento das primeiras estrelas e galáxias sob influência da matéria escura (400 milhões de anos) Expansão desde o Big Bang 13,7 bilhões de anos

a composição da matéria bariônica [a matéria comum, composta de prótons, nêutrons e elétrons, e formadora das estrelas, dos planetas e de tudo o mais que se conhece] e, como as partículas que a formam interagem entre si, não há motivo para duvidar que também possa existir interação entre a matéria escura e a energia escura”, afirma Abdalla. Inicialmente Abdalla, Micheletti e Bin Wang, da Universidade Fudan, em Xangai, elaboraram um modelo rudimentar no qual descreveram a matéria escura e a energia escura com propriedades semelhantes às de líquidos e gases como a água e o ar – os físicos os chamam de fluidos, materias formados por camadas que se movimentam continuamente umas em relação às outras e, nesse deslocamento, podem se deformar reciprocamente. Na construção do modelo, uma série de equações matemáticas que tentam descrever o que aconteceu no passado e predizer o que ocorrerá no futuro levou em consideração infor-

mações obtidas durante anos por meio da observação de quasares, núcleos de galáxias muito brilhantes e antigos; supernovas, estrelas que explodiram e passaram a emitir uma luz milhões de vezes mais intensa que o normal; e da radiação cósmica de fundo em micro-ondas, uma forma de energia eletromagnética produzida nos instantes iniciais após o Big Bang, a explosão inicial que gerou o Universo e o próprio tempo 13,7 bilhões de anos atrás. Mesmo sem determinar o modo como a matéria escura e a energia escura interagiam – apenas supuseram que a interação ocorreria –, eles verificaram que, ao resolver essas equações mais as formuladas por Einstein na teoria da relatividade geral, obtinham um Universo semelhante ao que se conhece hoje: em expansão acelerada, com tudo o que existe nele se afastando cada vez mais rapidamente, segundo artigo apresentado em junho de 2009 na Physical Review D. Na interação, de

acordo com esse modelo, a energia escura liberaria radiação e se converteria em matéria escura – uma consequência da famosa equação E=m.c2, segundo a qual, em determinadas condições, matéria pode se transformar em energia e energia em matéria. Interação - Mas não era o suficiente.

Com o físico Luis Raul Abramo, Abdalla aprimorou o modelo e, dessa vez, procurou uma assinatura da interação entre energia escura e matéria escura nas informações obtidas de 33 aglomerados de galáxias, 25 deles estudados anos atrás em detalhes por Laerte Sodré e Eduardo Cypriano, pesquisadores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. Em colaboração com Sodré, Abdalla, Abramo e Wang usaram três métodos conhecidos para estimar a quantidade de matéria (massa) dos aglomerados de galáxias. Se não houvesse interação, os resultados teriam de ser iguais ou, PESQUISA FAPESP 168

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HIGH-Z SUPERNOVA SEARCH TEAM/HST/NASA

Nos confins do Universo: observação de supernovas, explosões estelares como esta (ponto brilhante abaixo da galáxia), revelou expansão acelerada do Cosmo

no mínimo, muito próximos. Já se a matéria escura se transformasse em energia escura, ou vice-versa, um desses valores, sensível a essa conversão, diferiria dos demais. No trabalho publicado em 2009 na Physics Letters B, eles afirmam que há uma possibilidade real, ainda que pequena, de que a interação de fato ocorra, com a energia escura se convertendo em matéria escura. Mesmo o próprio grupo vê esse resultado com cautela, porque há uma série de incertezas na medição das massas dos aglomerados de galáxias. Algumas dessas técnicas dependem de que esses agrupamentos estejam em equilíbrio e não interajam com outras galáxias ou aglomerados. Mas isso é pouco provável porque a massa dos aglomerados é muito elevada e atrai tudo o que está por perto. “A incerteza na medição da 56

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massa de cada aglomerado é grande”, comenta Abramo. “Esse modelo terá de ser testado por alguns anos. Analisamos 33 aglomerados de galáxias, mas, para ter segurança, teríamos de avaliar de centenas a milhares deles”, afirma Sodré, que atualmente negocia com astrônomos e físicos espanhóis a participação brasileira no projeto Javalambre Physics of the Accelerating Universe Survey (J-PAS), destinado a entender melhor as propriedades da energia escura e a evolução das galáxias medindo com mais precisão a que distância se encontram. Estruturas do Universo - Abdalla, que

teve a iniciativa de verificar os sinais dessa interação alguns anos atrás, sabe que muitos discordam de sua proposta. “Uma vez um referee [revisor científico] mal-educado disse que esse trabalho era especulação ao quadrado”, lembra o físico da USP. “Mas, se estivermos certos e essa interação for bem definida, poderá ser verificada em experimentos de física de partículas.” Há cerca de cinco anos os físicos teóricos brasileiros Gabriela Camargo Campos e Rogério Rosenfeld, ambos

do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp), criaram um modelo de interação entre matéria escura e energia escura que também as tratava como fluidos. No trabalho – feito em parceria com Luca Amendola, do Observatório Astronômico de Roma, o autor da ideia de interação entre esses elementos –, a dupla brasileira levou em consideração tanto informações sobre supernovas como sobre a radiação cósmica de fundo. Feitas as contas, concluíram que essa conversão não deve ocorrer, de acordo com artigo de 2007 na Physical Review D. Com as informações disponíveis hoje sobre as estruturas do Universo, porém, fica difícil saber quem tem razão. “Há poucos dados e eles são fragmentados”, comenta Cypriano, astrônomo do IAG-USP. “Necessitamos de dados homogêneos e em grande quantidade.” Por esse motivo, mais de uma dúzia de projetos internacionais de grande porte já passaram pelo menos do estágio de planejamento. O estudo da estrutura e da evolução das galáxias leva boa parte dos físicos e astrônomos a darem por certo que a matéria escura de fato existe – e que sua composição será descoberta em breve, talvez em até uma década. “Se for composta por partículas frias de massa muito elevada, vários modelos de física de partículas preveem que poderá ser produzida no Large Hadron Collider [LHC]”, afirma Abramo. Instalado na fronteira da Suíça com a França, o LHC começou a funcionar em fase experimental no final de 2009 e deve lançar, umas contra as outras, partículas atômicas viajando a velocidades próximas à da luz, desfazendo-as nos seus menores componentes. Já a resposta para a natureza da energia escura deve levar bem mais tempo, pois depende de levantamentos extensos das galáxias e estrelas encontradas em diferentes regiões do céu. Um desses levantamentos, previsto para começar no segundo semestre de 2011, é o Dark Energy Surgey (DES), do qual devem participar cerca de 30 brasileiros (entre pesquisadores, estu-

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Força repulsiva - Mesmo antes de o

MPE/V.SPRINGEL

experimento começar, Nicolaci sabe que ele não trará uma resposta definitiva sobre a natureza da energia escura, a força repulsiva, uma espécie de antigravidade, que faz os objetos se afastarem a velocidades cada vez maiores no Universo. “No início desta década um grupo internacional de pesquisadores se reuniu e tentou delinear os experimentos mais adequados a serem realizados em quatro

NASA/ESA/STSCL

dantes e técnicos) de instituições no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Esse projeto pretende usar uma supercâmera digital – com capacidade de produzir imagens de altíssima resolução (500 megapixels), 40 vezes maior do que as das câmeras comuns – acoplada ao telescópio Blanco do Observatório Interamericano de Cerro Tololo, no Chile, para coletar ao longo de quatro anos informações de aproximadamente 400 milhões de galáxias. “Queremos estudar a distribuição de massa dos aglomerados de galáxias a diferentes distâncias”, conta Luiz Alberto Nicolaci da Costa, astrônomo do Observatório Nacional (ON), no Rio de Janeiro, coordenador da participação brasileira no DES. Dependendo da massa total do Universo e da existência ou não de interação entre matéria escura e energia escura, pode haver um número maior ou menor desses aglomerados a determinadas distâncias.

A cruz de Einstein: galáxia no centro da imagem curva o espaço e transforma em quatro um único quasar, comprovando efeito previsto pelo físico alemão

fases para tentar descobrir o que é a energia escura”, explica o astrônomo do Observatório Nacional. Os mais simples já terminaram e o DES é da fase três. “Com o DES, esperamos restringir os candidatos a energia escura”, conta Nicolaci. Uma das mais cotadas é a chamada energia do vácuo, que, ao contrário do que se pensa, não é vazio. O vácuo é rico em partículas muito fugazes que surgem e desaparecem antes que possam ser detectadas e poderiam fornecer a força antigravitacional que faz os corpos celestes se afastarem. Para a física de partículas, a força do vácuo é o correspondente à constante cosmológica, termo que Albert Einstein acrescentou às equações da relatividade geral para que sua teoria representasse um Universo estático. “Mas essa seria uma solução feia, porque a densidade de energia do vácuo teria de ser 10120 [o número um

seguido de 120 zeros] maior do que a observada pelos astrônomos”, comenta Élcio Abdalla. Pode ser também que a energia escura seja uma espécie de fluido desconhecido, chamado pelos astrônomos de quintessência, em alusão aos quatro elementos que se acreditava que compunham o Universo (ar, água, fogo e terra). Ou ainda, que ela não exista, e os efeitos atribuídos a ela sejam consequência de o Universo não ser homogêneo como se imagina e a Via Láctea se encontrar em uma região contendo muito pouca matéria. O astrofísico Filipe Abdalla, pesquisador da University College London e filho de Élcio Abdalla, trabalha em dois Em 12 bilhões experimentos de anos: sob a mais avançados, ação da matéria escura, gás se que integram a aglomera e quarta fase da forma estrelas busca da enere galáxias gia escura e só (áreas brilhantes), devem começar que passam a funcionar em a se afastar alguns anos: o empurradas pela do satélite Euenergia escura clid e o do telescópio de micro-ondas Square Kilometre Array, a ser construído na África do Sul ou na Austrália. “Se for alguma incorreção nas equações de Einstein, que explicam bem a atração gravitacional nas galáxias”, comentou Filipe durante uma visita a São Paulo em agosto de 2009, “esses experimentos nos permitirão saber”. ■ PESQUISA FAPESP 168

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> QUÍMICA

Segredos debaixo

da tinta

Fluorescência de raios X dá acesso à intimidade de pinturas do século XIX Maria Guimarães

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urante mais de um século, a jovem retratada pelo pintor Eliseu Visconti no quadro Gioventú escondeu um estudo para outra obra de arte do mesmo autor, Recompensa de São Sebastião. A revelação vem do trabalho arqueométrico da química Cristiane Calza, pesquisadora do programa de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ). Em vez do estereótipo do laboratório repleto de tubos de ensaio e substâncias fumegantes, seu ambiente de trabalho é em meio a obras de arte de todos os tempos, desde as pinturas que decoram sarcófagos do Egito Antigo até quadros do século XIX, passando por tangas de cerâmica do povo marajoara – que ocupou a ilha de Marajó, no Pará, entre os séculos V e XIV. Ao examinar pinturas até o detalhe dos átomos com auxílio das técnicas de fluorescência de raios X e de radiografias, ela põe a nu segredos que se escondem debaixo da tinta, caracteriza os pigmentos que compunham a paleta de cada pintor e aponta retoques e desgastes nas telas, orientando futuros trabalhos de restauração. Convidada a analisar obras do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, Cristiane – que sempre teve uma queda por arqueologia, história e artes plásticas – se apaixonou pela pintura brasileira do século XIX e acabou por analisar 33 quadros de artistas como Rodolfo Amoedo, Eliseu Visconti e Félix Émile Tau-

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nay por meio de fluorescência de raios X, que revela os átomos que compõem as camadas de tinta, e de radiografias computadorizadas. O objetivo central era caracterizar os pigmentos usados por cada pintor e integrar essas informações num banco de dados que ficará à disposição de restauradores, conservadores, estudantes de arte e pesquisadores. O trabalho foi possível porque no doutorado Cristiane desenvolveu um sistema portátil de fluorescência de raios X sob medida para analisar obras de arte e arqueológicas. É uma caixa um pouco maior do que um livro, que ela pode levar ao museu e já carregou até o Peru, para analisar ouro pré-colombiano. Obras muito grandes ou valiosas (o quadro Primeira missa, de Victor Meireles, uma das obras estudadas pela especialista, está segurada em US$ 3 milhões) não podem ser transportadas para laboratórios equipados com o aparelho comum de fluorescência de raios X. “A técnica não é invasiva e não causa dano às obras de arte”, frisa a pesquisadora. O aparelho lança um feixe focalizado de raios X num círculo de meio centímetro e produz um processo conhecido como efeito fotoelétrico: enquanto se movimentam para restabelecer o equilíbrio, os elétrons também emitem raios X, que o equipamento detecta e reproduz na tela do computador na forma de curvas de emissão de energias. A energia emitida é característica para cada elemento químico e, de posse dessa informação, Cristiane pode inferir o pigmento usado naquele ponto do quadro.

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CRISTIANE CALZA/COPPE-UFRJ

Suscipsusto exeu feum inut ersit nulput veliqui corba feum inut ersit nulput

Pedro Américo: equipamento portátil esquadrinha o quadro Moisés e Jocabed

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REPRODUÇÃO

CRISTIANE CALZA/COPPE-UFRJ

Eliseu Visconti: sob a tinta de Gioventú (acima), um esboço de Recompensa de São Sebastião

O importante é que alguns pigmentos são reveladores da época em que foi feita a pintura. De aparência semelhante, o que distingue a tinta usada são os elementos químicos que a compõem – e que a pesquisadora da Coppe consegue enxergar. O branco de zinco, usado até hoje, começou a ser produzido no século XVIII, mas só em 1835 chegou a um preço acessível para a maior parte dos pintores; já o branco de titânio surgiu apenas no século XX. Um ponto azul analisado por fluorescência de raios X pode revelar a presença de átomos de ferro ou de cobalto, por exemplo. No primeiro caso, o pintor usou o pigmento azul da prússia, criado em 1704; o segundo indica azul de cobalto, em uso desde 1807. Os pigmentos de ocre não ajudam: desde a pré-história colorem as pinturas rupestres de cavernas e são usados até hoje. “São pigmentos baratos, obtidos a partir de terras argilosas”, explica Cristiane. Outros pigmentos, por outro lado, hoje são proibidos por serem cancerígenos, como aqueles à base de mercúrio, arsênio e chumbo. Na análise, a pesquisadora analisa múltiplos pontos para caracterizar os quadros e evitar que retoques em períodos posteriores levem a erro. “Se virmos grandes extensões de um pigmento mais recente do que a data suposta de produção da obra, sabemos que é uma falsificação”, conta. Remendos de rasgos na tela também são reveladores: a tela é restaurada com uma mistura de carbonato de cálcio, ou crê, com cola de peixe. Por cima, aplica-se uma camada de tinta branca antes de retocar o quadro. A tinta branca ajuda a datar a restauração, porque alguns pigmentos brancos são muito característicos de determinadas épocas. É o que revela o branco de titânio que Cristiane encontrou nas telas O último tamoio e Busto da senhora Amoedo, pintados por Rodolfo Amoedo em 1883 e 1892, respectivamente. De acordo com artigo de 2009 na X-Ray Spectrometry, só em 1921 entrou no mercado uma tinta adequada para propó60

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sitos artísticos à base desse pigmento, indicando que os quadros foram retocados no século XX. Cristiane caracterizou a paleta de pigmentos usada por oito pintores do século XIX em 12 quadros. Os resultados já estão aceitos para publicação na revista especializada Applied Radiation and Isotopes e mostram, por exemplo, que Eliseu Visconti e Henrique Bernardelli usaram azul de cobalto, enquanto Pedro Peres adotou o azul da prússia. E confirmam algumas coisas que já se sabia informalmente, como o fato de os brasileiros do século XIX fazerem tons de vermelho misturando vermelho ocre e vermilion. Saber isso será fundamental para que restauros futuros empreguem pigmentos semelhantes aos originais, sempre que ainda possam ser adquiridos. Camadas expostas - Achados mais

intrigantes vieram do exame do quadro Gioventú, que rendeu a Eliseu Visconti uma medalha de prata na Exposição Universal de Paris em 1900. Uma radiografia computadorizada – semelhante à usada por radiologistas para investigar ossos fraturados em pacientes – revelou outra pintura oculta pela jovem representada no quadro. É, sem dúvida, um estudo para outra pintura, a também premiada Recompensa de São Sebastião,

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junto com o então mestrando Renato Freitas, a química da Coppe examinou 400 fragmentos das tangas que vestiam a região púbica das mulheres da ilha de Marajó. O elemento mais abundante nas peças de cerâmica é o ferro, explicando a cor avermelhada do barro usado. A caracterização, publicada em 2009 na X-Ray Spectrometry, indica matéria-prima de mais de uma origem: os marajoaras talvez usassem argila de várias fontes para produzir suas tangas, ou as diferenças podem indicar que o acervo estudado foi produzido em tribos distintas. Seria necessário associar os dados químicos a informações arqueológicas para entender melhor a história desse povo tão pouco conhecido. A análise de fragmentos de sarcófago egípcio e de tecido usado para envolver uma múmia também revelou a utilidade potencial da técnica de fluorescência de raios X. Além de caracterizar os pigmentos usados – que se revelaram coerentes com o que estava disponível na época –, Cristiane indica em artigo de 2008 na Applied Physics A que o tecido, de origem bem documentada, é da mesma época dos fragmentos de sarcófagos que examinou. Capaz de contribuir para elucidar mistérios do passado, Cristiane está com a agenda lotada de solicitações, entre museus e construções históricas que passam por reforma. Ela conta com a ajuda do agora doutorando Renato Freitas – que talvez passe a repartir o trabalho quando ficar pronto o novo equipamento, ainda menor do que o atual. ■ > Artigos científicos 1. CALZA, C. et al. Characterization of Brazilian artists palette from the XIX century using EDXRF portable system. Applied Radiation and Isotopes. no prelo. 2. CALZA, C. et al. Analysis of the painting Gioventú (Eliseu Visconti) using EDXRF and computed radiography. Applied Radiation and Isotopes. no prelo.

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que ganhou a medalha de ouro na Exposição Internacional de Saint Louis, nos Estados Unidos, em 1904. Nas imagens de raios X o anjo coroando de louros o São Sebastião amarrado a uma árvore aparece ainda com mais nitidez do que a moça de Gioventú. O pintor parece ter mudado de ideia depois do estudo porque, em vez de louros, no quadro terminado o anjo põe uma auréola sobre a cabeça do santo. A radiografia, realizada em colaboração com os colegas Davi Oliveira e Henrique Rocha, mostrou também que o quadro está num ótimo estado de conservação, só com pequenas regiões de desgaste da tela em alguns pontos próximos à moldura. “Isso é bastante comum, pois nessa região a tela sofre um desgaste maior devido ao estiramento do tecido e ao atrito com a madeira do chassi e da moldura. Essas áreas não aparecem a olho nu, pois a pintura foi restaurada anteriormente cobrindo os buraquinhos com massa e tinta”, detalha Cristiane. Detectar falhas encobertas pela tinta pode ser de grande ajuda para os trabalhos de conservação e restauro da pintura. A análise de fluorescência de raios X do mesmo quadro permitiu caracterizar a paleta usada por Visconti, considerado a ponte entre os séculos XIX e XX por ser um pioneiro do impressionismo no Brasil. No véu amarelo que cobre a menina, a presença de ferro e chumbo revelam que ele usou branco de chumbo, que deixou de ser usado no século XX, misturado com amarelo ocre. Na vegetação do fundo se revelam as misturas com que o artista criou diferentes tons de verde: viridian, óxido de cromo, amarelo ocre e azul de cobalto. Em mergulhos num passado mais distante, Cristiane já avaliou também tangas marajoaras e peças egípcias do acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro. A cerâmica marajoara é considerada uma das mais sofisticadas representações da arte pré-colombiana e,

Rodolfo Amoedo: Estudo de mulher, pintado sobre branco de chumbo

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias Literatura

Saudosismo de Gilberto Freyre

REPRODUÇÃO

No artigo “Saudosismo e crítica social em Casa-grande & senzala: a articulação de uma política da memória e de uma utopia”, Alfredo César Melo, da Universidade de Chicago, Estados Unidos, procura analisar a retórica de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, fora da moldura dualista na qual a obra costuma ser avaliada. Para isso, Melo demonstra como partes da obra, díspares nos seus princípios constitutivos (por exemplo, trechos memorialistas, análises antropológicas), articulam-se para propor ao leitor de então um pacto da memória, no qual eram relembradas liricamente as experiências do Brasil rural, ao mesmo tempo que eram refutados por meio de retórica científica os estereótipos racistas produzidos pelo mesmo Brasil rural. De um lado, de acordo com Melo, procura-se aproveitar essa dimensão afetiva da vida privada, enquanto, de outro, descartam-se os preconceitos produzidos por aquele mesmo mundo – há um decantamento da memória, uma dialética sutil entre lembrança e esquecimento. Estudos Avançados – vol. 23 – nº 67 – São Paulo – 2009

Medicina

Alergia à penicilina O teste cutâneo para alergia imediata à penicilina é o único teste validado internacionalmente, sendo que sua grande utilidade reside na avaliação de pacientes com história positiva de alergia à penicilina. O teste positivo para determinantes principais e secundários da penicilina apresenta um valor preditivo positivo de 50% e valor preditivo negativo de 99%. O Ministério da Saúde disponibiliza um protocolo para o preparo dos reagentes, uma vez que eles não estão disponíveis comercialmente. Como esse protocolo não apresenta muitos detalhes sobre o cuidado relativo às etapas de preparo das soluções, os autores do artigo “Implementation of a penicillin allergy skin test” se propuseram a operacionalizar o teste, avaliando de forma crítica e minuciosa cada etapa, de forma que outros profissionais possam reproduzi-lo de maneira mais segura e eficaz. Os autores são Aparecida

Tiemi Nagao-Dias, Ana Carla Pereira, Michelly Freitas e Silva e Janete Elisa Soares Lima, da Universidade Federal do Ceará, Eugenie Desiree Rabelo Néri e José Wilson Accioly, do Hospital Universitário Walter Cantídio. Brazilian Journal of Pharmaceutical Sciences – vol. 45 – nº 3 – São Paulo – jul./set. 2009

Biologia

Efeitos do pisoteio O aumento da atividade turística em áreas costeiras nas últimas décadas faz necessária a adoção de estratégias de manejo para reduzir os impactos gerados às comunidades de costões rochosos. A região costeira do Sudeste brasileiro possui bons exemplos de degradação causada pelo turismo e desenvolvimento industrial. Dentre os diferentes distúrbios causados pela visitação, o pisoteio tem sido estudado de forma intensa e pode representar uma fonte significativa de impacto para as comunidades da zona entremarés. No projeto “Impactos do pisoteio humano na fauna de um costão rochoso do litoral de São Paulo, no Sudeste brasileiro”, de M.N. Ferreira e S. Rosso, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, foi aplicado um desenho de blocos randômicos para avaliar experimentalmente os efeitos de duas intensidades de pisoteio na riqueza, diversidade, densidade, recobrimento e biomassa da fauna de um costão situado na praia do Obuseiro, em Guarujá (SP). Os blocos foram alocados em dois povoamentos diferentes, dominados, respectivamente, pela classe de crustáceo Chthamalus bisinuatus (Cirripedia) e pelo molusco Isognomon bicolor (Bivalvia, foto). O pisoteio foi aplicado durante três meses, simulando a temporada de férias no Brasil, e os blocos foram monitorados nos nove meses seguintes. Os resultados indicaram que Chthamalus bisinuatus é vulnerável aos impactos do pisoteio. Estratégias de manejo devem envolver o isolamento de áreas sensíveis, a construção de passarelas, a educação dos visitantes e o monitoramento das comunidades impactadas.

WWW.JAXSHELLS.ORG/822E.HTM

Brazilian Journal of Biology – vol. 69 – nº 4 – São Carlos – nov. 2009

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no site da Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

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PAVAN NO LABORATÓRIO OAK RIDGE, 1966 | ACERVO COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

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Crodowaldo

PAVAN A contribuição à biologia, à política científica e tecnológica e à difusão da ciência

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Um ambiente favorável à genética Crodowaldo Pavan contribuiu de modo marcante para o avanço da ciência no Brasil E VAN I LD O

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m 2009 o Brasil perdeu um de seus mais destacados cientistas. Vítima de falência múltipla de órgãos e sistemas, causada por um câncer e um infarto anteriores, o biólogo e geneticista Crodowaldo Pavan morreu no dia 3 abril, aos 89 anos, no Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP), na qual fez a maior parte de sua bem-sucedida carreira. Nascido em Campinas, graduado em história natural pela USP em 1941, Pavan foi um dos fundadores da genética no Brasil. Ao longo de uma trajetória científica de mais de meio século, realizou descobertas importantes, que resultaram em trabalhos publicados com repercussão internacional, além de ter formado dezenas de pesquisadores no Brasil e nos Estados Unidos e dirigido algumas das instituições científicas mais prestigiadas do país. Para o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a história de Pavan, que foi seu orientador no doutorado, em 1955, está intimamente associada à da genética no Brasil. “É impossível falar de uma sem recorrer à outra”, diz Salzano, que assumiu, em dezembro do ano passado, a cátedra Crodowaldo Pavan do Instituto Mercosul de Estudos Avançados, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), localizada em Foz do Iguaçu (PR). “Mas ele também contribuiu marcantemente para o desenvolvimento da genética em nível mundial, por meio de pesquisas das mais importantes.” O biólogo André Perondini, professor titular do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, do Instituto de Biociências da USP (IB-USP), lembra que a entrada de Pavan – de quem foi orientando na pósgraduação – no mundo acadêmico, em 1938, coincidiu com um período de especial importância no desenvolvimento da genética no Brasil. Ele diz, num obituário de Pavan escrito com seu colega do IB João Morgante, também professor titular e aluno de Pavan na graduação, que o ensino dessa ciência começou no Brasil em 1918, na então chamada Escola Agrícola de Piracicaba. Em seguida, em 1927, foi a vez da Faculdade de Medicina da USP e, em 1933, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). “Mas o grande impulso foi dado com a criação da cátedra de biologia geral, ocupada pelo professor André Dreyfus, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, em 1934”, conta. “A ela se somou a cátedra de citologia e genética geral, comandada pelo professor Friedrich Gustav Brieger, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, campus de Piracicaba, em 1936.” 64

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O impulso decisivo na verdade ocorreu, no entanto, em 1943, com a chegada ao Brasil de ninguém menos do que Theodosius Dobzhansky, russo naturalizado norte-americano, responsável pela unificação da teoria da evolução de Charles Darwin com a genética mendeliana. “Dobzhansky estava no auge de sua carreira, era um deus”, lembra Luiz Edmundo Magalhães, professor titular de genética e evolução e ex-diretor do Instituto de Biociências da USP, que foi o primeiro aluno de doutorado de Pavan. “O seu livro Genetics and the origin of species, lançado pela Columbia University Press, em 1937, foi um grande sucesso.” A história da vinda de Dobzhansky para a USP é bem conhecida e foi contada várias vezes por Pavan. Em parte ela se deveu à Segunda Guerra Mundial. Na época a Fundação Rockefeller apoiava pesquisas científicas em vários países. Por causa do conflito, ela não podia mais financiar pesquisadores da Europa, Ásia e África. Então se voltou para a América Latina. Seu representante no continente, Harry Miller Jr., procurou Dreyfus para propor que ele fosse estagiar um ano nos Estados Unidos, por conta da fundação. A princípio, o brasileiro aceitou. Mas depois disse que não poderia ir, pois seus assistentes, Rosina de Barros e o próprio Pavan, eram muito jovens e não teriam condições de tomar conta de seu laboratório pelo período de um ano. Miller Jr., assim, propôs a vinda de Dobzhansky, o que foi aceito com entusiasmo por Dreyfus. O russo-americano impôs, no entanto, uma condição para vir ao Brasil: queria conhecer a Amazônia e ficar pelo menos dois meses lá fazendo pesquisa. O que também foi aceito. Coube a Pavan acompanhá-lo. Magalhães lembra que Dobzhansky havia sido um dos primeiros pesquisadores a usar moscas do gênero drosófila (a mosca-de-frutas, organismo-modelo para o estudo em genética), como material experimental de pesquisa para os estudos de evolução, o que se tornou uma grande moda na época, adotada em todos os principais centros de pesquisa do mundo. “Foi assim que o uso desses insetos nas pesquisas foi introduzido no Brasil”, conta. “Dobzhansky ensinou os conhecimentos básicos de drosófila, a sistemática e a criação das espécies em laboratório.” Pavan soube como ninguém tirar proveito desses ensinamentos e da proximidade com o pesquisador russo-americano. “Em 1943 ele já tinha os seus dois primeiros trabalhos de pesquisa publicados, ambos em colaboração com Dobzhansky”, conta Magalhães.

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“Um deles, sobre sistemática, saiu em um boletim do Departamento de Biologia Geral [da FFCL]. O outro, sobre os cromossomos das espécies brasileiras de drosófila, foi publicado nada mais, nada menos do que no Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), uma das revistas nas quais é mais difícil de conseguir aceitação de trabalho para publicação. Essa foi, sem dúvida, uma excelente estreia. E bastante rápida também.”

A entrada de Pavan no mundo acadêmico, em 1938, coincidiu com um período de especial importância para a genética no mundo

ACERVO HANS BURLA/COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

Entusiasmo Mas Pavan não foi o único beneficiado. Dessa época até pelo menos 1962 a Fundação Rockefeller financiou os estudos de vários pesquisadores, os primeiros dos quais faziam parte do grupo pioneiro da genética no Brasil. Além de Pavan, em torno do líder do grupo, Dreyfus, orbitavam nomes como Antonio Brito da Cunha e Newton Freire-Maia, ambos da USP, Antonio Lagden Cavalcanti e Chana Malogolowkin, do Rio. E à frente dessa empreitada da Fundação Rockefeller no Brasil estava o próprio Dobzhansky. Chana, hoje morando em Israel, lembra bem da influência dele. “Posso até dizer, sem medo de errar, que foi ele, com o seu entusiasmo, que formou o primeiro grupo de jovens geneticistas no Brasil”, afirma. O prestígio de Dobzhansky se fez notar logo após sua chegada. Num artigo publicado na Revista Brasileira de Cultura, em

2008, Thomas F. Glick, professor de história da Universidade de Boston, diz que um mês depois de chegar ele ministrou um curso sobre evolução que se tornaria um marco na genética brasileira. “As aulas eram dadas no Departamento de Química da USP”, escreve Glick. “Cerca de 20 estudantes se matricularam, mas a maioria dos biólogos também assistia às aulas, assim como representantes de outras entidades locais, como o Instituto Biológico, um grupo que incluía Henrique da Rocha Lima, Clemente Pereira e Zeferino Vaz. O curso influenciou todos os biólogos de São Paulo. De Piracicaba e Campinas vieram Carlos Krug e Friedrich Brieger, respectivamente, cada um trazendo consigo de 15 a 20 de seus estudantes.” O próprio Pavan se refere a esse curso, numa entrevista publicada no livro 50 anos do CNPq contados pelos seus presidentes, organizado por Shozo Motoyama (FAPESP, 2002). “Após um mês de sua chegada, [Dobzhansky] ministrou um curso extraordinário, com duração de um mês e frequentado por cerca de 100 intelectuais de São Paulo, Campinas e Piracicaba”, contou. “Para esse curso, ele escrevia a sua aula, o Dreyfus traduzia para o português, o Brito da Cunha e eu o ouvíamos falar e corrigíamos a sua dicção. Dessa forma, deu aula em português. Quando havia qualquer dúvida, falava em inglês.”

Pavan ao volante do Ford Mercury com Brito da Cunha ao lado e Sophie Dobzhansky (atrás) durante trabalho de campo no litoral

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de 12 horas por dia, com prazer, disposição e afinco, mesmo nos sábados e domingos”, lembra Chana. “Era comum que aos domingos, de manhã, se desse uma passada pelo departamento, tivesse encontros com colegas e se programasse para a próxima semana”, acrescenta Magalhães. “À noite, também era costume trabalhar. Na verdade, o departamento era como se fosse a nossa própria casa. Havia uma grande harmonia entre todos os membros que, naquele tempo, não eram muitos. Ao todo, umas 15 pessoas.” Impacto O próprio Dobzhansky também trabalhava lá quando estava no Brasil – ele fez seis visitas ao país entre 1943 e os anos 1960. O impacto dessas visitas para a genética do Brasil pode ser medido pelo número de publicações dos brasileiros que trabalhavam com o russo. Foi o que fez o pesquisador José Franco Monte Sião em sua dissertação de mestrado em história da ciência Theodosius Dobzhansky e o desenvolvimento da genética de populações

A partilha do conhecimento e a integração do grupo pioneiro criaram as bases para que a genética animal se desenvolvesse no Brasil

ACERVO LUIZ EDMUNDO MAGALHÃES

De acordo com Pavan, foi assim que se abriu uma nova fase da genética no Brasil, na qual Dreyfus também teve um papel fundamental, pois era uma pessoa que adorava ensinar, aprender e transmitir conhecimentos e nunca guardava uma descoberta apenas para si. Pavan costumava dizer que em vez de tirar proveito da presença do Dobzhansky só para seu grupo, como é comum entre muitos cientistas, Dreyfus fazia questão de compartilhá-la, convidando pesquisadores de vários lugares do país. “Ele deu carta branca para Dobzhansky e, não só isso, colocou-o em contato com o pessoal da Esalq e com o IAC”, lembrou Pavan, em 50 anos do CNPq. “Na verdade, formávamos um grupo.” Era um grupo coeso, unido no gosto comum pela genética e pelas pesquisas, que não se importava de trabalhar muito. Era comum eles frequentarem o Departamento de Biologia Geral da FFCL, que ficava num prédio, hoje extinto, na alameda Glete, na região central de São Paulo, depois do expediente. “No laboratório, todos nós trabalhávamos muito mais

Pavan em seu gabinete nos anos 1950, no sótão do departamento, na alameda Glete

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de Drosophila no Brasil: 1943-1960, apresentada em 2008 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ele constatou que antes de 1943 não houve nenhuma publicação de autores brasileiros sobre genética de populações com drosófilas. Já entre 1943 e 1948 (período entre a primeira e a segunda visita de Dobzhansky) foram encontradas 12. O pesquisador com maior número de publicações foi Pavan, com seis trabalhos, dos quais três como autor individual e três com colegas do grupo ou com Dobzhansky. Foi esse compartilhamento do conhecimento e a integração do grupo pioneiro que criaram as bases para o desenvolvimento da genética animal no Brasil. Essa integração foi tão bem-sucedida que o grupo cresceu e aglutinou pesquisadores de outros estados, como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Paraná e Bahia. Nos 15 anos seguintes a genética no Brasil adquiriu tal maturidade que já

se encontrava entre as 10 mais desenvolvidas no mundo. Para Magalhães, Pavan, sem dúvida, teve papel importante nesse desenvolvimento. “Foi um grande promotor do progresso científico, especialmente da genética, área em que exerceu uma grande influência, de certa forma decisiva, desde o início de sua carreira”, diz. Perondini e Morgante lembram que Pavan publicou mais de 100 trabalhos científicos e ajudou a formar um contingente de pesquisadores que também orientaram muitos outros num efeito multiplicador. “Dessa forma, ele deixou para trás sua linhagem de ‘filhos, netos e bisnetos científicos’”, dizem. “Sua morte abriu uma lacuna na comunidade científica brasileira, mas o que fica é a certeza de seu enorme legado como ser humano, como um homem da ciência e como aquele que foi responsável em grande parte pelo desenvolvimento da ciência, em particular da genética no Brasil.” ■

A institucionalização da pesquisa Dreyfus, Dobzhansky e Pavan foram importantes para o desenvolvimento da genética E VANI L D O

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da cadeira de biologia geral na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da recém-criada Universidade de São Paulo e a de citologia e genética geral na Escola Superior Luiz de Queiroz (Esalq), com a chegada de Friedrich Gustav Brieger da Inglaterra. Em sua dissertação de mestrado em história da ciência, o biólogo José Franco Monte Sião nota que nesse período inicial o desenvolvimento da genética

ACERVO COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

biólogo Luiz Edmundo Magalhães costuma dizer que seu orientador teve três anjos da guarda ao longo da carreira: André Dreyfus, Harry Miller Jr. e Theodosius Dobzhansky (leia artigo na página 76). Parafraseando Magalhães, pode-se dizer que a genética animal no Brasil teve quatro, se não anjos da guarda pelo menos grandes impulsionadores: os três citados por ele mais o próprio Pavan. Eles não foram os primeiros a realizar pesquisa na área no país, mas seguramente estão entre os que mais contribuíram para desenvolvê-la e, mais do que isso, para institucionalizá-la. De uma forma ou de outra, os quatro estiveram envolvidos na criação de cursos, cátedras, linhas de pesquisa e associações que congregam os geneticistas do país, como a Sociedade Brasileira de Genética (SBG), por exemplo. De acordo com o geneticista Francisco Salzano, a fundação da SBG, em 1955, foi o ponto culminante de um processo que havia começado pelo menos 37 anos antes. Ele se refere ao início, em 1918, do ensino da genética na então Escola Agrícola de Piracicaba por três pioneiros: Carlos Teixeira Mendes, Otávio Domingues e Salvador de Toledo Piza. Outra data importante é 1927, quando André Dreyfus deu aulas desse campo da ciência pela primeira vez na Faculdade de Medicina de São Paulo. Um pouco mais tarde, em 1933, Carlos Arnaldo Krug ministrou um curso rápido de genética no Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Também merece destaque a criação, em 1934,

Dreyfus (óculos escuros) e Dobzhansky (atrás)

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no Brasil estava concentrado em três centros de pesquisa: IAC, Esalq e FFCL da USP. “Podemos dizer que nessa época as pesquisas em genética no Brasil estavam divididas em duas linhas”, diz. “Uma delas se concentrava no melhoramento vegetal e era encontrada no IAC e na Esalq. A segunda linha, ligada aos estudos dos animais, basicamente invertebrados, foi adotada pelo grupo da USP.” Nessa segunda linha, um papel de destaque coube a Dreyfus. Médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, natural de Pelotas (RS), veio para São Paulo em 1927 quando foi nomeado assistente na Faculdade de Medicina. Era um dos membros do grupo que fundou a USP. Geneticista de cultura ampla, era menos um pesquisador – embora tenha publicado trabalhos científicos, inclusive em parceria com Dobzhansky – e mais um aglutinador e incentivador do grupo que montou em torno de si no Departamento de Biologia Geral da FFCL. Em um artigo publicado na revista Estudos Avançados, em 1994, Antonio Brito da Cunha, que foi um de seus assistentes, fala do papel dos três anjos da guarda de Pavan na institucionalização da genética no Brasil. “[Dreyfus] recebeu, no seu departamento, docentes de vários laboratórios do Brasil e do exterior, contribuindo para a sua formação científica

Hampton Carson (esq.) e Edmundo Magalhães (de camisa branca) em pesquisa de campo em Mongaguá, nos anos 1950

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e didática e, através da sua influência, para a própria instalação material de seus laboratórios”, conta. Segundo Brito da Cunha, a admiração por Dreyfus e a confiança nele depositada levaram Harry M. Miller Jr., da Fundação Rockefeller, não só a trazer para o laboratório da FFCL Theodosius Dobzhansky, como também a financiar a compra de equipamentos e a pesquisa do laboratório. “Dreyfus, Dobzhansky, seus amigos e colegas Brieger, em Piracicaba, Krug, no Instituto Agronômico de Campinas, e Harry M. Miller Jr. são os primeiros responsáveis pelo desenvolvimento da genética moderna no Brasil.” Tempo integral Também colaborou para esse desenvolvimento a adoção do regime de tempo integral, em 1947, nas instituições de pesquisa do estado de São Paulo. Até então, para sobreviver, os professores precisavam dar aulas em diversos lugares, o que dificultava as atividades científicas propriamente ditas. O tempo integral contribuiu para a consolidação da genética – e outras áreas também – como ciência estabelecida. Dreyfus, por exemplo, pôde largar as outras faculdades e se concentrar apenas na FFCL para se dedicar à pesquisa. Por interferência da Fundação Rockefeller, que exigia que

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Mudança de ritmo Por esse e outros trabalhos, Simon Schwartzman diz, em seu livro Um espaço para a ciência – A formação da comunidade científica no Brasil, que Dobzhansky é lembrado como uma pessoa extremamente dinâmica e mudou o ritmo mais lento dos brasileiros com suas constantes solicitações de viagens de estudo, recursos e equipamentos. “Dreyfus não só não competiu com ele como se tornou seu principal defensor e ponto de apoio”, escreve Schwartzman. O autor lembra ainda que vários dos seus estudantes e assistentes foram completar seus treinamentos nos Estados Unidos. “Formou-se uma rede de geneticistas (trabalhando não só em São Paulo, mas em Porto Alegre, em Brasília e no Paraná) especializados em genética médica, genética das populações humanas e citogenética”, diz. Segundo Magalhães, passada a grande agitação causada pela realização desse projeto, o Departamento de Biologia Geral da FFCL voltou à calma, mas agora com mais entusiasmo. O projeto havia sido um sucesso e o departamento era visto com grande respeito. “Era um departamento bastante jovem e que, em pouquíssimo tempo, apresentava, inquestionavelmente, um nível internacional”, lembra. “É verdade que a participação de Dobzhansky foi muito importante, determinando o padrão científico do grupo, mas a equipe de brasileiros, liderada principalmente por Pavan, soube dar a resposta certa ao desafio que enfrentava.”

A institucionalização da genética não se limitou a São Paulo, no entanto. Em 1951 foi criado em Curitiba o primeiro centro brasileiro de pesquisa em genética humana, organizado por Newton FreireMaia. Em 1959 foi a vez da disciplina de genética humana na Faculdade de Medicina da USP, tendo por professor Pedro Henrique Saldanha. Na SBG, Pavan era o presidente no biênio 1958-60. “Mais uma vez Pavan foi procurado por Miller, que propôs a ele que se interessasse pelo desenvolvimento da genética humana, área essa que estava começando a se firmar no cenário mundial”, conta Magalhães. “Pavan recusou, mas pediu que a Rockefeller concedesse três bolsas de estudo para o exterior, para geneticistas brasileiros se especializarem em genética humana.” Foi o que aconteceu. Os três escolhidos foram Freire-Maia e Salzano, dois drosofilistas, e Pedro Henrique Saldanha, do Rio de Janeiro, que já havia se mudado para São Paulo e iniciado, por conta própria, pesquisas em genética humana. Nessa ocasião, Oswaldo Frota-Pessoa, outro drosofilista, agora também trabalhando em genética humana, já estava com bolsa nos Estados Unidos. “Quando retornaram ao Brasil, Pavan, como presidente da SBG, criou a Comissão de Genética Humana, para promover o desenvolvimento dessa especialidade, com auxílio financeiro da Rockefeller”, lembra Magalhães. “Pode-se, pois, afirmar que a origem e o desenvolvimento desse ramo da genética também foram frutos da visão e do empenho de Pavan.” ■

ACERVO HANS BURLA/COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

os laboratórios e pesquisadores que financiava trabalhassem em tempo integral, os estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro também passaram a adotar esse regime. Na mesma época Pavan voltou dos Estados Unidos e passou a se dedicar, junto com Dobzhansky, a planejar um grande projeto de pesquisas com drosófilas para ser realizado no Brasil. Segundo Magalhães, o cientista russo-americano estava interessado em estudar espécies brasileiras de drosófilas, que têm variabilidade muito grande em comparação com as que existem nos Estados Unidos, que são mais uniformes. Foi assim que ficou acertada a realização do projeto com vários participantes não só do Brasil, mas também de fora para ser realizado entre 1948 e 1949 com apoio financeiro da Rockefeller. Além de Dobzhansky e Pavan, ela financiou a expansão do grupo da USP, trazendo Antonio Cordeiro, de Porto Alegre, Chana Malogolowkin e Antonio Geraldo Lagden Cavalcanti, do Rio de Janeiro, Hans Burla, da Suíça, e Martha Wedel, da Argentina.

Dobzhansky, em foto de Hans Burla

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A queda de um dogma Pavan demonstrou que o número de genes não é constante nas células

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omo costuma ocorrer com muitas descobertas científicas, a mais importante realizada por Crodowaldo Pavan foi por acaso. Em uma de suas excursões para coletas de drosófilas (a mosca-de-frutas, organismo modelo para pesquisa em genética), no fim dos anos 1940, numa plantação de bananas em Mongaguá, no litoral sul de São Paulo, Pavan deu um chute numa bananeira caída e, embaixo dela, descobriu um bolo do que supôs ser vermes. O hábito e o instinto de cientista o fizeram levá-los para o laboratório. Descobriu que, na verdade, eram larvas de uma mosca do gênero Rhynchosciara, que mais tarde lhe permitiria descobrir o fenômeno da amplificação gênica, que derrubou um dogma da biologia, a constância do DNA. As larvas eram da espécie Rhynchosciara angelae (hoje conhecida como R. americana). Segundo Luiz Edmundo Magalhães, elas se revelaram um excelente material para pesquisa, por várias razões. “As larvas têm grandes cromossomos nas células das glândulas salivares”, explica. “Além disso, todas, de cada bolo, são descendentes de uma única fêmea; apresentam hábito gregário e se desenvolvem sincronicamente.” André Perondini lembra que por causa dessa última característica Pavan costumava dizer que analisar amostras de um grupo delas em dias sucessivos era como assistir a um filme de um fenômeno. As pesquisas subsequentes realizadas por ele e colaboradores com a Rhynchosciara renderam uma série de artigos científicos publicados nos anos seguintes. O mais importante deles, assinado com sua colaboradora Marta Breuer, foi publicado em 1955. O texto revelava uma descoberta revolucionária, um marco histórico da biologia, pois derrubava um paradigma da ciência. Até então se acreditava que o número de genes e, consequentemente, a quantidade de DNA eram constantes nas células de cada espécie de ser vivo. Pavan observou na Rhynchosciara o aparecimento de determinadas formações em pontos específicos dos cromossomos politênicos (cromossomos gigantes que aparecem nas células das glândulas salivares da mosca), que cresciam muito, e as chamou de pufes. “Estudando a formação desses pufes com uma técnica especial, ele

Foi com a Rhynchosciara que Pavan descobriu o fenômeno da amplificação gênica

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constatou que havia multiplicação dos genes nessa região, com síntese de DNA”, explica Magalhães. “Com essa descoberta, ficava rejeitado o dogma de que a quantidade de DNA em uma célula era constante.” Trata-se de um mecanismo conhecido hoje como amplificação gênica, pelo qual, em determinadas células e em momentos específicos do desenvolvimento, alguns genes fazem cópias adicionais, além da simples duplicação do filamento do cromossomo, como ocorre na divisão celular normal. Quando descreveu o fenômeno da amplificação gênica, Pavan também elaborou uma interpretação para ele. Ela passa pelo fato conhecido de que para o funcionamento das células cada gene é responsável pela produção de um determinado produto, e isso é feito, em certo momento, pela transcrição de RNAs específicos. Ponto culminante De acordo com Perondini, esse processo transcorre com determinada taxa por unidade de tempo e dificilmente poderia ter a velocidade aumentada dentro das condições normais do corpo do indivíduo. “Assim, suponha que em determinados momentos da vida de um organismo fosse necessária uma quantidade muito grande de um determinado produto gênico”, diz ele. “Como aumentar essa produção? Poderia ser pelo aumento da duração do processo ou da taxa de transcrição do gene. Ambas as situações são muito difíceis de ocorrer. Outro modo seria aumentar o número de cópias do gene (amplificação), fazendo, assim, com que o RNA necessário fosse produzido em maior quantidade, na mesma unidade de tempo.” Apesar de ser revolucionária – ou por causa disso mesmo –, a descoberta de Pavan demorou oito anos para ser aceita pela comunidade científica. “Durante esse período, eu apresentava os dados e o pessoal dizia: ‘Os seus dados valem, mas isso é uma exceção. É um inseto’”, contou em entrevista que consta do livro Cientistas do Brasil (CNPq, 1998). “Até que verificaram que certos genes se multiplicam mais do que outros no cromossomo, que isso não era exceção e acontecia até no homem.” As pesquisas com a Rhynchosciara foram o ponto culminante da carreira científica de Pavan. Antes disso, ele realizou pesquisas com

FÁBIO SIVIERO E EDSON DE OLIVEIRA

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EDUARDO CÉSAR

outras espécies de animais. A primeira delas foi o bagre-cego, Typhlobagrus kronci, que vive nas cavernas de Iporanga (SP), sobre o qual escreveu sua tese de doutorado, concluída em 1944. Após o doutorado, o geneticista se dedicou às pesquisas com drosófilas, influenciado por Theodosius Dobzhansky, que veio a primeira vez ao Brasil em 1943. “O grupo do qual Pavan fazia parte fez um levantamento das espécies nativas de drosófilas de praticamente todo o Brasil”, conta Perondini. “Foi um trabalho muito importante na época em que o estudo populacional de drosófilas estava ainda começando.” Nos anos seguintes, num primeiro momento, o seu trabalho foi direcionado basicamente no sentido de coleção, catálogo e descrição das espécies brasileiras dessa mosca. “Isso resultou em um detalhamento da descrição

de cromossomos, genitália e do padrão do corpo de um grande número de espécies tropicais”, explica Perondini. “Depois o trabalho progrediu com análises de correlações entre espécies e ambiente, tamanho da população e distribuição geográfica dos diferentes grupos de espécies.” Em meados dos anos 1970, Pavan demonstrou interesse por uma nova área de pesquisa. Ele sugeriu a alguns cientistas que estavam desenvolvendo pesquisas em genética básica que começassem a usar como modelo insetos de interesse econômico, isto é, que causam danos a seres humanos ou prejuízos à agricultura e pecuária, por exemplo. Assim, até o fim de sua vida continuou ligado ao laboratório. Em seus últimos anos, por exemplo, ele voltou sua atenção a outro problema biológico de grande importância, o papel das bactérias na fixação do nitrogênio. ■

Drosófilas, moscas-de-frutas: organismo modelo para pesquisa em genética

Influências e desdobramentos Brasil tem vários grupos trabalhando na fronteira do conhecimento E DUARD O G ER AQU E

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o dia 7 de março de 1953, Francis Crick (1916-2004) e James Watson (1928) entraram para a história da ciência. Resultado da pesquisa feita pela dupla: a estrutura da molécula do DNA tem a forma de uma dupla hélice. A revolução genética, que abria espaço para caminhos inimagináveis, como o Projeto Genoma Humano, na década de 1990, estava só no início. Apenas dois anos depois do famoso artigo da dupla de cientistas, em 1955, Crodowaldo Pavan publicava um trabalho sobre replicação in vivo de DNA, na revista alemã Chromosoma. Atualmente, mais de 50 anos depois, em qualquer laboratório de genética do mundo minimamente equipado existe o chamado PCR (reação em cadeia da polimerase, na sigla em inglês). Essa técnica amplifica a molécula de DNA in vitro. Por ela ser algo extremamente básico, o estudante de biologia, ainda durante a graduação, aprende a fazer o procedimento. Esse método serve, por exemplo, para a identificação de organismos geneticamente modificados. E para muitos outros que envolvem o estudo dos genes. “Os trabalhos com replicação de DNA do Pavan, obviamente, são aqueles que mais chamam a atenção”, afirma Carlos Menck, pesqui-

sador da Universidade de São Paulo (USP) e um dos líderes da área de genética no país nos dias atuais. Nos anos 1970, o atual cientista da USP assistiu a aulas de Pavan na graduação. “Na década de 1950, apenas dois anos depois do trabalho de Watson e Crick, Pavan já fazia biologia molecular de primeira linha com seus estudos sobre a replicação do DNA”, diz Menck. “Isso em uma época que ainda mal sabíamos que o DNA era realmente a molécula que guarda a informação genética.” Para ele, um olhar para os anos 1950 a partir de hoje realmente reforça a ideia de pioneirismo de Pavan. “É importante destacar que a genética feita por ele era realmente avançada naquele tempo, pelo menos no país.” O bioquímico Hugo Armelin, professor do Instituto de Química da USP, também estudou a fundo o trabalho de Pavan feito na segunda metade dos anos 1950. Ele concorda com Menck que aquele estudo era realmente importante para a história da biologia molecular feita no país. “Em minha opinião, o trabalho mais importante dele é a descoberta dos pufes de DNA em cromossomos politênicos [gigantes].” Apesar de ter acompanhado o trabalho do pesquisador Pavan, Armelin ressalta que PESQUISA FAPESP 168

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não recebeu influência direta ou indireta dele. O bioquímico era do grupo do professor Francisco Lara, também da USP. “O trabalho desenvolvido e publicado na segunda metade dos anos 1950 foi sim o ponto de partida para os projetos do laboratório do professor Lara. Mas a abordagem científica entre os dois grupos, a partir daí, foi diferente. E os trabalhos, nos anos 1960, se desenvolveram de forma totalmente independente entre os dois laboratórios”, ressalta Armelin. As pesquisas sobre amplificação gênica, de forma específica, ou sobre a genética molecular, de uma forma mais geral, não apenas ajudaram na formação de pessoas. Esses caminhos acabaram influenciando os projetos de pesquisa de outros laboratórios. Processo que, no aspecto macroscópico, culminou com novas abordagens e linhas de pesquisa também inovadoras. Com seu trabalho, Pavan estava sem saber solidificando um dos pilares da genética nacional.

IMAGENS: CORTESIA DE ANDRÉ LUIZ PERONDINI/IB-USP

Na fronteira O Brasil hoje tem vários grupos de pesquisa trabalhando na fronteira do conhecimento da genética. Parte disso deve-se ao que foi semeado por Pavan e vários de seus contemporâneos e discípulos como Francisco Salzano e Ernesto Paterniani, nos anos

1950 e 1960. Como explica a geneticista da USP Lygia da Veiga Pereira, uma das protagonistas da primeira linhagem de células-tronco embrionárias do país, se Gregor Mendel praticamente inaugurou o que se conhece hoje por genética clássica, Watson e Crick, com a revolução que fizeram, criaram as bases modernas da genética molecular. “Em vez dos cruzamentos entre os descendentes com base apenas na observação dos fenótipos [as características do indivíduo a partir de seus genes], os cientistas passaram a estudar também o próprio gene”, diz Lygia. A genética clássica, baseada praticamente no método da tentativa e erro, apesar de existir até hoje, deixou o campo de batalha aberto para a entrada da genética molecular. A consequência atual disso, segundo Lygia, são pelo menos dois desdobramentos científicos bastante definidos. “Passou a ser possível estudar os genes que estão produzindo um determinado fenótipo, e não apenas o contrário, e, além disso, surgiram os transgênicos, que são organismos que receberam pelo menos um gene de outra espécie para se chegar a uma determinada resposta previamente programada”, compara Lygia, também uma admiradora de Pavan. Esses são dois dos alicerces científicos que permitem ao mundo discutir hoje, por exemplo, a biologia

Artigo sobre a amplificação gênica, de 1955, e anotação de Marta Breuer sobre pufes da Rhynchosciara

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LABORATÓRIO DE LYGIA DA VEIGA PEREIRA/IB-USP

sintética – nada mais do que a construção de um organismo totalmente novo, a partir dos genes já devidamente estudados e identificados. No caso pelo menos dos organismos geneticamente modificados, por exemplo, é só consultar os arquivos das últimas reuniões anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de 2008 para trás, para

se saber a posição sempre veemente de Pavan em relação ao tema. Desde que os aspectos de segurança fossem considerados, ele era a favor das experiências com os transgênicos. Afinal, lá atrás, nos anos 1950, os estudos pioneiros sobre amplificação gênica contribuíram, de alguma forma, com o que se busca atualmente nos laboratórios de genética do país. ■

Neurônios (dir.) formados a partir de células pluripotentes (esq.): pesquisas inovadoras no século XXI

Reforço para a política de C&T Pavan atuou em diversas frentes na defesa da pesquisa nacional N E L DSO N M AR CO LI N

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argo vitalício na Universidade do Texas, família adaptada à vida em Austin, prestígio científico no exterior. Ainda assim, em 1975 Crodowaldo Pavan decidiu voltar para São Paulo, depois de sete anos nos Estados Unidos. “Analisei a situação e achei que poderia fazer mais pelo Brasil estando aqui do que lá”, disse ele posteriormente. O geneticista retomou o trabalho na Universidade de São Paulo (USP), mas ampliou consideravelmente seu espaço de atuação ao mergulhar nas questões da política científica e tecnológica como nunca havia feito antes. “Do ponto de vista meramente institucional, Pavan teve uma participação pequena até meados dos anos 1970, embora tenha integrado o primeiro Conselho Superior da FAPESP, de 1961 a 1963”, explica o físico e historiador Shozo Motoyama, do Centro Interunidade de História da Ciência da USP. Um pouco antes do retorno ao Brasil, ele participou da fundação da Academia de Ciências do Estado de São Paulo com Sérgio Mascarenhas, Oscar Sala e Shigueo Watanabe, entre outros

cientistas, em 1974. Na volta a São Paulo, em 1975, encontrou o país ainda sob o governo militar e a universidade à procura de liberdade de expressão e reivindicação. De suas conversas com o físico Alberto Luiz da Rocha Barros e com o sociólogo José Jeremias de Oliveira Filho surgiu a Associação dos Docentes da USP (Adusp), em 1976, recriando de certo modo a Associação de Auxiliares de Ensino que, embora ainda existisse no papel, havia deixado de atuar pelas pressões do regime. “Esses três formaram o núcleo inicial ao qual se juntaram outros professores influentes, como Simão Mathias e Antonio Candido”, conta. Para Motoyama, uma das características de Pavan era a ousadia. “Ele nunca teve medo de propor e fazer o que achava correto, mesmo quando as dificuldades pareciam muito grandes, como era o caso nos anos 1970.” Por 10 anos, de 1975 a 1985, Pavan coordenou o Programa Integrado de Genética, que tinha apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). PESQUISA FAPESP 168

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ELIZABETH LEE/ESTAÇÃO CIÊNCIA

Estação Ciência, em São Paulo: um centro interativo para jovens aprenderem ciência

A finalidade era ampliar os auxílios para a pesquisa e discutir as prioridades e as áreas a serem exploradas em genética no Brasil. “Tratava-se de um programa integrado no qual se discutia o que estava sendo feito, o que havia sido feito e o que deveria ser feito”, contou ele em depoimento para o livro 50 anos do CNPq contados pelos seus presidentes. De 1981 a 1984 o geneticista foi diretor presidente do conselho técnico administrativo da FAPESP e teve participação importante na recuperação econômica da Fundação, debilitada pelo atraso no repasse governamental das verbas, que, por sua vez, eram corroídas pela alta inflação. No mesmo período, por três mandatos, de 1981 a 1986, presidiu a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Pavan soube utilizar os dois cargos em instituições importantes que ocupava simultaneamente e sua reconhecida capacidade de mobilização para, junto com professores das três universidades públicas paulistas e pesquisadores dos institutos de pesquisa do estado de São Paulo, promover o simpósio “Crise, universidade e pesquisa” na Assembleia Legislativa. Como resultado da pressão política, o então deputado Fernando Leça propôs uma emenda que obrigava o governo a fazer os repasses em duodécimos (mensalmente) no próprio ano da arrecadação. Antes o pagamento deveria ser feito em quatro parcelas anuais, o que ocorria com cerca de dois anos de atraso. A Emenda Leça terminou aprovada em 1983. “A liderança de Pavan foi importante nesse episódio”, lembra Motoyama. O geneticista estava no seu terceiro mandato na presidência da SBPC quando foi convidado por Renato Archer, primeiro ministro do então recém-criado Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), para assumir a presidência do CNPq, em 1986. Pavan deixou a SBPC e por cinco anos comandou a principal agência de fomento à pesquisa do país. “Antes disso, ele foi um importante apoiador da criação do MCT”, testemunha o presidente da FAPESP, Celso Lafer. No CNPq Pavan tratou de recuperar verbas para bolsas e pesquisas agindo não só no âmbito do governo, mas amealhando apoio no Congresso Nacional. “Nós tínhamos o Ulysses Guimarães – prati74

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camente o ‘dono’ do Congresso – ajudando-nos com os líderes partidários para que nossas proposições fossem aceitas”, disse ele em entrevista. Pavan se orgulhava de ter concedido mais bolsas no país nos três primeiros anos à frente do CNPq do que nos 30 anos anteriores. Quando ele iniciou sua gestão, eram por volta de 13 mil bolsas por ano; quando saiu, deixou a concessão anual de 44.110 bolsas, no mínimo, estabelecida por lei. A agência federal conseguiu também aumentar seu valor ao vinculá-las ao salário de professores das universidades federais. Um doutorando ganhava 70% do salário do professor-assistente doutor, por exemplo. Consolidação Durante a Constituinte, em 1988, o CNPq convocou os pesquisadores para elaborar propostas. Para cada trecho que se pretendia inserir na Carta Magna nas questões de ciência e tecnologia havia um grande trabalho de preparação de textos e de convencimento pessoal dos deputados constituintes. “As discussões mais importantes se referiam à universidade, ao espaço de pesquisa em territórios (como no subsolo e na Amazônia) e às relações entre produção científica e propriedade intelectual”, conta Luiz Curi, chefe de gabinete adjunto e depois assessor especial da presidência do CNPq na época de Pavan. Depois da Constituição aprovada, começou outro trabalho: manter a vigilância e a pressão no momento da definição das emendas orçamentárias, não apenas para evitar que a pesquisa perdesse verba, mas para garantir dinheiro para outros projetos. “Pavan consolidou a política de ciência e tecnologia no Brasil”, diz Curi. De acordo com ele, também deu muita atenção às políticas estratégicas de C&T, abrindo espaço para as discussões sobre questões relativas à inovação, como novos materiais, química fina, informática e necessidade de pesquisa em fármacos. “Não foi ele quem realizou tudo isso, mas passou a lidar com esses temas, que se relacionavam à inovação”, esclarece. “Com Pavan, a política como marco de uma ação de Estado foi aprofundada.” Nos cinco anos que ficou no CNPq, Pavan conviveu com cinco ministros de Ciência e Tecnologia

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diferentes e mudanças no status da autarquia – o MCT tornou-se secretaria especial por um período e depois voltou a ser ministério. “Ele tinha grande representatividade na comunidade científica brasileira, visibilidade internacional e uma agenda muito positiva para a C&T, com resultados concretos”, diz Luiz Curi. “Era muito difícil tirá-lo do cargo, mesmo quando o ministro não gostava dele.” Duas outras iniciativas ajudaram a marcar a gestão naquele período, ambas realizadas em 1987. Uma delas foi a criação do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), instalado em Campinas, para pesquisar novas propriedades físicas, químicas e biológicas existentes em átomos e moléculas. É o único do gênero existente na América Latina e o primeiro instalado no hemisfério Sul. A segunda foi o desenvolvimento de um centro de ciências para a juventude como vinha surgindo em vários outros países na época, batizada de Estação Ciência. “O professor Pavan me chamou para coordenar o projeto e pediu para consultar cientistas de todo o Brasil com o objetivo de buscar ideias e a concordância da comunidade científica”, conta a professora de história Nely Robles Reis Bacellar, primeira diretora da Estação Ciência. O CNPq conseguiu com o governo de São Paulo a concessão de galpões no bairro da Lapa, tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) e começou os trabalhos de arquitetura e museologia para adequar o local a um centro de ciência sem descaracterizar os prédios. “O Pavan achou a localização ótima porque ficava próxima do terminal de ônibus, de trem e do metrô e facilitava a visitação de estudantes, o que efetivamente ocorreu”, conta. Quando o governo de José Sarney terminou, em 1990, Pavan saiu do CNPq e Nely da Estação Ciência. A USP negociou com a agência federal a encampação do centro e deu

continuidade aos programas de popularização da ciência para jovens. O generoso espaço sempre foi bem aproveitado na montagem de exposições e eventos e as novas tecnologias foram utilizadas para tornar mais atraente o aprendizado científico dos jovens. A atual diretora, Roseli de Deus Lopes, assumiu em 2008 e começou um projeto de resgate da memória do centro de modo a dar visibilidade a essa história. “Os registros estão todos aqui, mas senti falta de um livro, de depoimentos gravados em vídeo e de exposições sobre o que já foi feito”, diz. Hoje visitam o local mais de 400 mil pessoas por ano, entre estudantes e público em geral. “É importante que essas pessoas possam saber quem foi e o que fez Crodowaldo Pavan e quais os frutos de um centro de divulgação científica como este.” Novos projetos Em 24 de junho do ano passado, no aniversário de 22 anos da Estação e dois meses depois da morte de Pavan, foi feita uma homenagem a ele e inaugurada a obra A mosca do professor Pavan, do artista plástico José Roberto Aguilar. Neste ano estão previstos um seminário e outros projetos sobre a memória do centro, que contam com a colaboração dos ex-diretores Ernest Hamburger, Wilson Teixeira, Saulo de Barros e do atual vice-diretor Mikiya Muramatsu, além de Nely, que já doou material e deu seu depoimento sobre o início do projeto e iniciativa de Pavan. Nas décadas de 1990 e 2000, fora do governo, o geneticista continuou suas pesquisas em genética – que nunca abandonou –, mas sua atuação institucional e política esteve voltada mais para a divulgação científica e popularização da ciência. Em 2001 ajudou a fundar a Associação Brasileira de Divulgação Científica (Abradic) como decorrência de seu trabalho no Núcleo José Reis de Divulgação Científica da Escola de Comunicações e Artes da USP, onde foi um dos coordenadores. ■

Pavan se orgulhava, em seus três primeiros anos à frente do CNPq, de a instituição ter concedido mais bolsas no país do que nos 30 anos anteriores

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Reminiscências do tempo das drosófilas Homenagem póstuma a Crodowaldo Pavan L U I Z E D M UND O M AG A LHÃ ES (*)

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(*) Luiz Edmundo Magalhães é professor titular de genética e evolução e ex-diretor do Instituto de Biociências da USP. Foi reitor e doutor honoris causa da Universidade Federal de São Carlos, professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor visitante da Unifesp. Este trabalho foi feito a convite da Sociedade Brasileira de Genética e apresentado no simpósio “A presença de Crodowaldo Pavan na genética brasileira: memorial”, durante o 55o Congresso Brasileiro de Genética, em setembro de 2009 (Águas de Lindoia). 76

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reio que não houve, até a data de hoje, na história da ciência brasileira, nenhum pesquisador que tivesse um currículo tão cheio de realizações, com tão grande número de sucessos, como o do Crodowaldo Pavan. Ele foi uma pessoa de muita sorte na sua vida profissional. Teve, digamos assim, três anjos da guarda da melhor qualidade, que sempre o orientaram e o ajudaram muito, o que não quer dizer, de forma alguma, que Pavan não tivesse trabalhado muito e se dedicado integralmente à sua vida profissional para conquistar tudo o que conquistou. Os anjos foram André Dreyfus, que o orientou no início da carreira, Harry Miller Jr., que, por 20 anos, deu suporte financeiro para pesquisas, e Theodosius Dobzhansky, seu segundo orientador e colaborador até 1956. André Dreyfus, o catedrático do Departamento de Biologia, do curso de história natural da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade da São Paulo (USP), foi um grande intelectual. Oriundo do Rio Grande do Sul, foi estudar medicina no Rio de Janeiro. Conta a história que, para se sustentar, oferecia um curso de histologia que, de tão bom e famoso, era frequentado até pelos próprios docentes da Faculdade de Medicina. Ficou muito famoso e sua fama logo extrapolou a cidade do Rio. Era considerado um excelente didata e, além disso, foi um homem sempre atualizado que acompanhava de perto o desenvolvimento científico, especialmente nas áreas biológicas. Assim que se formou, foi convidado para vir lecionar na Escola Paulista de Medicina. Foi um dos poucos brasileiros, naquela época, a ocupar uma cátedra na recém-criada Faculdade de Filosofia da USP, justamente a cátedra de biologia geral que compreendia o ensino da genética e evolução. Foi ele quem aconselhou o jovem estudante Pavan a ingressar no curso de história natural da USP, num encontro ocasional, no final de uma conferência proferida por Dreyfus no anfiteatro da Biblioteca Municipal, em São Paulo. E foi isso que Pavan fez, desistiu de ingressar na Politécnica para fazer o curso de história natural, onde se licenciou e se bacharelou, em 1941. Nessa época, Pavan já havia se ligado ao Departamento de Biologia, sendo primeiro ins-

trutor de biologia e, depois de formado, terceiro assistente. Iniciou imediatamente seu doutorado, tendo Dreyfus como orientador. Em 1942 Dreyfus foi procurado pelo representante da Fundação Rockefeller para a América do Sul, Harry Miller Jr. Com o evento da Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939, os países que recebiam auxílio financeiro da fundação não tinham mais condições de continuar fazendo pesquisa. Por esse razão, a fundação havia decidido passar a investir na América do Sul. Miller queria saber se Dreyfus estaria interessado em ser ajudado, talvez recebendo uma bolsa de estudos para se aperfeiçoar nos Estados Unidos. Pavan, que estava acompanhando Dreyfus nesse encontro, vibrou de entusiasmo com essa oportunidade de receber auxílio financeiro da Rockefeller. O assunto ficou para ser decidido em uma próxima reunião, que ocorreu algum tempo depois. Dreyfus se recusava a ir para fora do Brasil e preferiu que um professor estrangeiro viesse para cá, o que seria bem mais produtivo. Após uma longa discussão, Miller acabou concordando, como conta muito bem Pavan numa rica entrevista, muito interessante, publicada em 2002 no livro 50 anos de CNPq contados pelos seus presidentes. Miller, então, tomou a iniciativa de sugerir o nome do eventual professor que seria convidado a trabalhar na Biologia: “Vou falar com o professor Theodosius Dobzhansky!”. Ele já estava no auge de sua carreira. Era um deus! O seu livro Genetics and the origin of species, lançado pela Columbia University Press em 1937, teve, na primeira edição, duas impressões, uma em 1937 e outra em 1939; uma segunda edição, em 1941 viria a ser seguida por três reimpressões, duas em 1947 e outra em 1949. Foi um grande sucesso. Além disso, Dobzhansky foi um dos principais pesquisadores que introduziram a drosófila como material experimental de pesquisa para os estudos de evolução e genética de populações, o que se tornou uma grande moda, adotada em todos os principais centros de pesquisa do mundo. Ele era o papa! Miller convenceu Dobzhansky a alterar a sua programação e aceitar o convite de vir ao Brasil. O professor, porém, fez uma exigência: queria coletar na Amazônia. Assim em 1943 ele veio

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diferentes regiões. Foi assim que ficou acertada a realização do projeto com vários participantes, não só do Brasil mas também de fora para ser levado a efeito entre 1948/49, tudo com o suporte financeiro da Fundação Rockefeller. Desse projeto resultaram nove publicações entre 1950/51. Participaram do grupo de trabalho, além de Dobzhansky, Pavan, Antonio Brito da Cunha, Antonio Cordeiro, do Rio Grande do Sul, Antonio L. Cavalcanti e Chana Malogolowkin, do Rio de Janeiro, Sophie, a filha de Dobzhansky, Martha Wedel, da Argentina, Hans Burla, da Suíça, Boris Spasky, que ficou trabalhando na Columbia University, e a alemã Marta Breuer, técnica da Biologia. Em 1949 Newton Freire-Maia e Pavan publicaram “Introdução ao estudo da drosófila”, um trabalho de divulgação, na revista Cultus, do Ibecc. Era uma obra de caráter didático, destinada a estudantes do curso secundário, mas

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Pavan, Brito da Cunha (em pé), Dobzhansky e sua filha, Sophie, na Vila Atlântica

ACERVO COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

para o Departamento de Biologia Geral, então instalado na alameda Glete. Coube a Pavan a tarefa de acompanhar o ilustre visitante em suas viagens pelo Norte. Foi uma excelente oportunidade para se firmar uma grande amizade entre os dois. Pavan gostava muito de fazer excursões; além do mais era uma pessoa extremamente gentil e sabia muito bem agradar a quem ele queria. Não é pois de admirar que tivesse cativado completamente Dobzhansky que só se referia a ele como “Pavanzinho”. Foi assim que o uso das drosófilas nas pesquisas foi introduzido no Brasil, um campo de estudos ainda completamente virgem entre nós, o que significa grandes facilidades e sucesso garantido. Dobzhansky ensinou os conhecimentos básicos de drosófila, a sistemática e a criação das espécies em laboratório. Em 1943 Pavan já tinha os seus dois primeiros trabalhos de pesquisa publicados, ambos em colaboração com Dobzhansky. Um deles sobre sistemática, publicado em um boletim do Departamento de Biologia, e outro, sobre os cromossomos das espécies brasileiras de drosófila, publicado nada mais, nada menos que no PNAS – Proceedings of the National Academy of Sciences, uma das revistas mais difíceis de se conseguir aceitação de trabalho para publicação. Essa foi, sem dúvida, uma excelente estreia. E bastante rápida também. A visita de Dobzhansky ao Brasil foi relativamente curta, seis meses, mas não significou que a cooperação entre ele e o departamento tivesse acabado. Ao contrário. Na volta para os Estados Unidos, Dobzhansky levou amostras de espécies brasileiras, principalmente de D. willistoni e D. prosaltans, para preparar com elas linhagens com letais balanceados, que seriam usadas nas pesquisas para determinar a frequência de genes letais e estéreis em populações naturais. Pavan, que concluiria o seu doutorado em 1944, recebeu da Fundação Rockefeller uma bolsa de pós-doutorado de 19 meses. Ficou trabalhando, em 1945/46, parte no laboratório de Dobzhansky, na Columbia University, seis meses na Universidade do Texas, em Austin, e ainda fez visitas a várias universidades do Canadá patrocinadas pelo consulado canadense. A partir daí, após a sua volta, Pavan e Dobzhansky passaram a planejar um grande projeto para ser realizado no Brasil. É preciso lembrar que Dobzhansky estava extremamente interessado em realizar pesquisas com espécies brasileiras de drosófila, que exibem uma grande variabilidade em comparação com as dos Estados Unidos, que são bastante uniformes. Era, pois, muito importante para o seu trabalho científico ter dados comparativos dessas duas

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ACERVO HANS BURLA/COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

seus colegas de profissão e com a atenção dos leigos. Todos sabiam que a sua doença era grave e que, a qualquer momento, o pior poderia acontecer. Nesse caso, a cátedra ficaria vaga e, pela legislação vigente, a mesma até hoje, entraria em concurso público imediatamente. Foi assim que surgiu uma forte pressão sobre Pavan para a eventual necessidade de enfrentar o concurso. Dreyfus foi quem mais o estimulou a se preparar rapidamente, a fim de poder vir a ocupar o seu lugar como professor catedrático. Era importante ter o título de livre-docente para ter chance no concurso. Era considerado difícil, um dos mais importantes marcos da vida acadêmica, o que significava maturidade científica ou, melhor dizendo, intelectual. Aceitar esse desafio fez com que Pavan passasse a se dedicar exclusiva e intensamente ao preparo desse concurso, que teve lugar em 1951. Dreyfus, Chana, Dobzhansky, Martha Wedel, Antonio Cordeiro (sentados), O estado de saúde de Dreyfus não apreHans Burla e Antonio Cavalcanti (em pé): época de grande entusiasmo sentava melhora significativa, mas ele não deixava de comparecer ao departamento e de participar, inclusive, de aulas. Com um que fez enorme sucesso, mesmo entre professores secundos derrames que sofrera, ficou semiparalítico do lado dários e estudantes de universidade. A edição se esgotou direito. Embora estivesse dispensado de ministrar as e foram feitas cópias avulsas. Essa publicação ajudou suas aulas, lá ia ele assistir às de seus substitutos e não a definir a vocação profissional de muitos alunos, que, se continha, cada vez que a exposição não lhe agradava. por isso, se encaminharam para o curso de história Sem nenhuma cerimônia, interrompia o mestre e ele natural. Considero essa uma relevante prestação à causa próprio passava a expor o tema, escrevendo no quadrodo ensino, tão desamparado no Brasil. -negro, com grande dificuldade, com a mão esquerda. Passada a grande agitação causada pela realização do Frequentemente Pavan interrompia a aula assistida projeto conjunto com os vários participantes do Brasil e por Dreyfus para medir a sua pressão arterial, com medo exterior, o Departamento de Biologia voltou à calma, do que viesse a ocorrer uma forte alteração. As turmas agora com o moral mais elevado. O projeto havia sido um eram pequenas e havia uma relação muito estreita entre sucesso em todos os sentidos e o nome do departamento alunos e docentes, de modo que esses acontecimentos era visto com grande respeito e, talvez, com uma ponta de eram aceitos com a máxima naturalidade. Éramos uma ciúmes. Era um departamento bastante jovem e que, em família! pouquíssimo tempo, apresentava, inquestionavelmente, Infelizmente não houve jeito e, em fevereiro de 1952, um nível internacional. É verdade que a participação Dreyfus faleceu, causando uma enorme consternação de Dobzhansky foi muito importante, determinando em toda a comunidade acadêmica. Ele era um excelente o padrão científico do grupo, mas há de se considerar didata, dono de vasta cultura humanística e científica, que a equipe de brasileiros, liderada principalmente por realmente uma pessoa muito especial que irradiava Pavan, deu a resposta certa ao desafio que enfrentava. simpatia. Sua morte foi muito pranteada. Foi um período de trabalho intenso, de grande entusiasComo era esperado, Pavan foi alçado ao cargo de mo, principalmente pelo intercâmbio intelectual entre professor catedrático pro-tempore até que o concurso os seus componentes. Vivia-se a ciência e, para os bons viesse a ser realizado. Como candidato ao cargo passou pesquisadores, nada pode ser melhor e mais gratificante a se dedicar integralmente ao preparo do concurso. Sua do que isso. tese se chamou “Relações entre populações naturais de Terminada essa etapa, quando se esperava um Drosophila e o meio ambiente”. Um aproveitamento período de paz e tranquilidade, eis que surgiu, para integral de quase todas as coletas que havia feito nas todos, uma grande preocupação. O querido mestre, o inúmeras excursões em várias partes do Brasil. Um concurso público é sempre um risco, ninguém grande condutor de todo o processo, o professor Dreyfus, pode estar seguro do que irá acontecer. É, pois, sempre começou a apresentar um sério problema de saúde. Sua pressão sanguínea ficou alta e ele ficou sujeito a bom prevenir. Pavan achou que, se Dobzhansky, um derrames, o que vez ou outra ocorreu, obrigando-o a voto seguro para ele, estivesse presente fazendo parte se internar no Hospital das Clínicas, onde foi cuidada banca, poucos examinadores teriam a petulância dosa e carinhosamente tratado pelos vários amigos, de ir contra a sua posição. 78

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Bahia, e Mirtes Nilo Bispo, de Pernambuco. Os demais membros eram todos do Departamento de Biologia. O projeto teve início em 1956. Infelizmente esse não foi um bom momento. Logo no início dos trabalhos, quando a equipe toda se reuniu, houve um sério desentendimento de ideias entre Frydenberg e Dobzhansky, que causou um grande mal-estar. Era difícil compreender que um jovem pesquisador, recém-doutorado, tivesse a petulância de se contrapor ao célebre e famoso velho professor Theodosius Dobzhansky, tão reverenciado no mundo todo. Não tenho dúvida de que, no caso, o jovem dinamarquês estava coberto de razão. A afirmativa da época, que Dobzhansky fez em sua defesa, era que ele só reconhecia dois tipos de pesquisa científica: as pioneiras e as não pioneiras. As pioneiras eram boas e as outras não. A pesquisa proposta era pioneira e, consequentemente, era uma boa pesquisa. É claro que esse argumento não se sustentava, como foi provado na prática, pois os trabalhos realizados tiveram resultados que nem foram publicados. Esse episódio poderá ser mais bem esclarecido por alguém com pendor pela história das ciências. Aliás, eu penso que um dia deveria haver uma reavaliação crítica da obra de Dobzhansky, que foi tão importante em nível mundial para os estudos da teoria da evolução. Findo esse período do projeto multi-institucional, as coisas voltaram ao normal. O tempo da alameda Glete estava com os seus dias contados. As obras da Biologia na Cidade Universitária estavam prestes a terminar. Em 1960 o departamento se mudou para lá, mas nunca mais foi o mesmo. ■

Pavan foi um catedrático bastante liberal, que não quis fazer uso das prerrogativas autoritárias do cargo. Foi um período pacífico, agradável e produtivo

ACERVO COMISSÃO MEMÓRIA IB-USP

A faculdade não se opôs a incluí-lo na banca. Expirado o prazo de inscrição dos candidatos ao concurso, constatou-se, com certo alívio, que apenas Pavan estava inscrito. Só isso já era metade da batalha ganha. O concurso foi longo, com várias provas e diversas cerimônias às quais, mais tarde, em carta aos amigos, Dobzhansky se incumbiu de fazer uma crítica ferina. O resultado foi um grande sucesso, Pavan foi aprovado e se tornou o professor catedrático mais jovem da USP, em 1953, com apenas 33 anos. Não houve nenhum favor na aprovação do candidato. Pavan, embora bastante jovem para concorrer a uma cátedra, havia cumprido tudo o que é necessário para atender às exigências do concurso. Além do mais, se fôssemos considerar os possíveis candidatos, salvo talvez o professor Antonio Brito da Cunha, que fidalgamente abriu mão do seu direito de se inscrever, não havia mais ninguém capacitado ao cargo. A justiça foi feita. No tempo da alameda Glete, o expediente de trabalho era de segunda a sexta-feira, das 8 até as 18 horas e, aos sábados, das 8 às 12 horas, frequentemente estendido até as 18 horas. Além disso, era comum que aos domingos, de manhã, se desse uma passada pela Biologia para encontrar os colegas e se programar para a semana seguinte. À noite também era costume trabalhar. Na verdade, o departamento era como se fosse a nossa própria casa. Havia uma grande harmonia entre todos os membros que, naquele tempo, não eram muitos. Ao todo, umas 15 pessoas. Depois foi aumentando. Pavan foi um catedrático bastante liberal, que não quis fazer uso das prerrogativas autoritárias do cargo. Pode-se dizer que esse foi um período extremamente pacífico, agradável e produtivo. As pesquisas com drosófila continuavam agora com um objetivo a mais, estudar o efeito das radiações em populações naturais. Pavan e Dobzhansky empreenderam a realização de um novo projeto no departamento, com a participação de vários pesquisadores estrangeiros. Dobzhansky tinha em mente testar algumas hipóteses novas que ele havia levantado e, para isso, necessitava de várias populações naturais isoladas. Pavan lhe ofereceu as ilhas de Angra dos Reis, um verdadeiro paraíso. Mais uma vez a Rockefeller foi acionada e arcou com o financiamento completo do projeto. Além de Dobzhansky, foram convidados os seguintes pesquisadores do exterior: Charles Birch, da Austrália, coautor com Andrewartha de uma obra recém-publicada The distribution and abundance of animals, que se tornou muito famosa pelas informações coligidas; Bruno Bataglia, da Itália, e Ove Frydenberg, da Dinamarca. Do Brasil foram convidados Cora Pedreira, da

Prédio da alameda Glete, onde funcionou o Departamento de Biologia

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LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

Na busca por fontes de energia renováveis cada vez mais eficientes, pesquisadores do Laboratório Nacional Sandia, dos Estados Unidos, criaram um tipo de célula solar fotovoltaica de dimensões micrométricas que poderá trazer soluções mais eficientes do que as existentes no mercado. A grande vantagem do novo dispositivo, que lembra minúsculas partículas cintilantes usadas em decoração conhecidas como glitter, é que ele emprega 100 vezes menos silício para produzir a mesma quantidade de energia elétrica. Os primeiros testes mostraram uma eficiência de conversão da energia solar em elétrica de 14,9%, Representação artística de microcélulas solares de silício índice que varia nos módulos solares comerciais de 13% a 20%. As microcélulas solares > Biocombustível também chamada de têm entre 14 e 20 micrômetros de espessura – cerca de um da fotossíntese alga azul ou azul-esverdeada. quinto da espessura de um fio de cabelo – e são 10 vezes mais finas do que as células solares convencionais. Por serem tão Os pesquisadores, liderados Uma bactéria geneticamente pelo professor James Liao, pequenas, além de compor painéis solares, essas microcélulas modificada foi criada na primeiro aumentaram poderiam ser usadas em superfícies de veículos, prédios e a quantidade da enzima roupas. Segundo seus inventores, o processo de fabricação Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), RuBisCo da cianobactéria, usa o mesmo princípio dos dispositivos microeletromecânicos, nos Estados Unidos, para que responde pela conhecidos pela sigla Mems, o que permitirá ter controles inteconsumir dióxido de ligentes e sistemas de armazenamento de energia na forma de chip, facilitando a integração com a rede de energia elétrica. carbono (CO2) e liberar

PAINÉIS CINTILANTES

MURAT OKANDAN/SANDIA

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Cultura de bactéria modificada geneticamente 80

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UCLA

o combustível líquido isobutanol, que apresenta um bom potencial como substituto da gasolina. A conversão é feita pela energia do sol, por meio da fotossíntese. O ponto de partida para chegar a esse novo método de produção de combustível foi a utilização da cianobactéria Synechococcus elongatus,

fixação de CO2. Depois juntaram genes de outros microrganismos para construir uma bactéria que consumisse dióxido de carbono e, pela fotossíntese, produzisse o gás isobutiraldeído. A bactéria pode produzir o isobutanol diretamente, mas os pesquisadores decidiram, por enquanto, usar um catalisador para converter o gás em isobutanol.

> Sequência expressa O trabalho de sequenciar genes poderá se tornar mais rápido e barato segundo um grupo de pesquisadores das universidades de Boston e de Nova York, nos Estados Unidos, e da Universidade Bar-llan, em Israel. Eles desenvolveram um método que usa uma quantidade reduzida de DNA, além de

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> Memória Uma memória flash totalmente feita de polímero acaba de ser inventada por um grupo de pesquisadores da Universidade de Tóquio, no Japão, do Instituto Max Planck, na Alemanha, e da Universidade de Linz, na Áustria. Esse tipo de memória eletrônica é usada em câmeras digitais, pen-drives e tocadores de MP3. A nova tecnologia, baseada em transistores orgânicos, utiliza compostos à base de carbono sobre substratos plásticos, finos e flexíveis. A novidade abre caminho para a produção de dispositivos eletrônicos flexíveis como os tocadores de música. Os pesquisadores demonstraram que o protótipo – um conjunto de 26 por 26 células de memória – mantém os dados armazenados mesmo na ausência de energia, como acontece com as memórias produzidas de semicondutores inorgânicos como o silício. Outra vantagem das memórias orgânicas frente às tradicionais é a possibilidade de serem processadas em baixas temperaturas.

> Sensor de papel e nanotubos

DNA: sequenciamento rápido sem ampliação

A detecção de microrganismos na água potável ganhou um novo sensor. O invento criado por uma equipe de pesquisadores da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, e da Universidade Wuxi,

FUJITSU LABORATORIES

flexível

Futuro nos transistores de grafeno

O grafeno, material semicondutor feito de folhas de carbono com apenas um átomo de espessura, é a aposta da empresa japonesa Fujitsu para a produção de circuitos eletrônicos. Esse material é considerado por muitos pesquisadores como o sucessor do silício quando os limites de miniaturização dos atuais componentes microeletrônicos forem atingidos. A Fujitsu conseguiu comprovar a viabilidade de fabricar chips de grafeno em escala industrial empregando equipamentos e processos normalmente utilizados pela indústria de semicondutores, como, por exemplo, a técnica de deposição de vapor químico em baixa temperatura. Os pesquisadores da empresa reduziram a temperatura de fabricação do grafeno dos habituais 800ºC a 1.000ºC para 650ºC, o que permitiu a construção de transistores sobre vários substratos. Uma importante característica do grafeno, material descoberto apenas em 2004 na Inglaterra, é sua elevada mobilidade de elétrons comparada com o silício. Essa característica poderá proporcionar uma nova geração de transistores, bem mais rápidos do que os atuais. O uso do grafeno pode ser tanto em camada única (uma espécie de folha de átomos de carbono) quanto em multicamadas, sempre em escala nanométrica.

CIRCUITOS AVANÇADOS

EDUARDO CESAR

eliminar a fase de ampliação dessa molécula. Sob a coordenação do professor Amit Meller, de Boston, a equipe possibilitou a detecção de moléculas de DNA por meio da passagem delas através de nanoporos de nitreto de silício presentes em uma estrutura semelhante a um chip. A tecnologia utiliza campos elétricos para colocar longos cordões de DNA em poros de quatro nanômetros de largura como se fosse uma agulha passando um fio num tecido. Nos orifícios são detectadas as bases químicas que compõem um gene sem a necessidade de ampliar as moléculas. Os pesquisadores preveem que o sequenciamento de um genoma com esse método passe de 800 para 8 mil pares de base em cada molécula de DNA.

na China, consiste de uma tira de papel impregnada de nanotubos de carbono e de anticorpos para a toxina microcistina-LR produzida por bactérias e que pode ser danosa ao fígado. Quando o papel é mergulhado num corpo de água contaminada, a toxina se une aos anticorpos, afetando a condutividade dos nanotubos. Essa alteração da condutividade

é detectada por um aparelho que apresenta o resultado em apenas 12 minutos. O sensor tem o tamanho de uma caixa de fósforos e sua sensibilidade se equipara à de outras técnicas como espectrometria de massa. O dispositivo pode detectar outras toxinas com a troca do anticorpo. Agora os inventores buscam parceiros para colocar a tecnologia no mercado.

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LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

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OSWALDO ALVES/IQ-UNICAMP

APARECEU O MICKEY

“Coincidência, acidente, acaso ou não, a verdade é que nano Mickeys estão lá e eles estão sorrindo”, é assim que o professor Oswaldo Alves, do Instituto de Química (IQ) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), se refere à inusitada figura que apareceu em um experimento e foi identificada por meio de um microscópio eletrônico de transmissão. Coordenador do Laboratório de Química do Estado Sólido (LQES) e vice-coordenador do Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Materiais Complexos Funcionais, Alves viu as imagens dos ratinhos depois de preparar em uma autoclave nanofios de vanadato de prata (AgVO3) decorados com nanopartículas de prata, uma nanoestrutura com ação antibacteriana quando incorporada a vários materiais como plásticos, tecidos e tintas. Um close em uma parte do nanofio revelou a imagem de Mickey Mouse, famoso personagem de Walt Disney. “Um deles estava direcionado para a frente e permitiu uma melhor visualização, mas existem outros envolvendo nanopartículas de prata”, diz Alves. O nano Mickey se perfila ao lado de outras nanofiguras que se formam espontaneamente como os nanotubos ou são construídas por pesquisadores como nanopinças, nanorrádios, nanocarros e nanosseringas. “A diferença é que a fama do Mickey pode contribuir para popularizar a nanotecnologia, especialmente entre as crianças”, diz Alves, que contou no experimento com o aluno de doutorado Raphael Dias Holtz e com o professor visitante Antônio Gomes de Souza, da Universidade Federal do Ceará, ambos financiados pela FAPESP. Para a ciência, segundo Alves, a figura do rato famoso faz surgir novas perguntas. “Ela nos traz algumas questões inerentes à nanoescala: é o nanomundo imitando o macromundo ou o macromundo que imita o nanomundo? O Mickey é uma imagem acidental? Como podemos controlar e entender essa auto-organização? Nós conhecemos muito pouco sobre os mecanismos que levam à formação desses sistemas. O que sabemos é que repetindo o experimento o Mickey aparece. Isso é importante porque a reprodutibilidade pode levar à fabricação controlada de sistemas complexos.” Para o professor Oswaldo Alves, o aparecimento do Mickey é no mínimo curioso e parece anunciar a chegada de sistemas de nanoestruturas e sistemas de nano-objetos. “Ciência e arte estão novamente de mãos dadas.”

Nanofio com nanopartículas de prata e a figura inusitada

das Nações Unidas (Unesco) e Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA). Mendonça ganhou o prêmio de US$ 1 mil e convite para uma palestra no congresso da ICTP que acontece neste mês de fevereiro na Itália. O reconhecimento é pelas pesquisas do professor na área de óptica de pulsos ultracurtos de laser, que inclui a produção de estruturas nanométricas (leia reportagem na edição 165 de Pesquisa FAPESP).

> Óptica em desenvolvimento Um prêmio internacional para pesquisadores com menos de 40 anos que se destacam pelos estudos na área de óptica em países em desenvolvimento foi conquistado pelo professor Cleber Renato Mendonça, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP). O Prêmio Gallieno Denardo 2010 foi oferecido pela Comissão Internacional para a Óptica (ICO, na sigla em Inglês) e pelo Centro Internacional de Física Teórica Abdus Salam (ICTP), com sede em Trieste, na Itália, e mantido pelo governo italiano, Organização Cultural, Científica e Educacional

IFSC-USP

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Pulsos ultracurtos de laser moldam objetos

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XBOT

Robodek: conhecimento em hardware e software

> Caixinha antimicrobiana

> Auxiliar didático movimento e, por meio de um software, transmite para o robô a informação”, diz Antônio Valério Netto, diretor de tecnologia da Cientistas. Em janeiro já existiam pedidos para o robô de seis universidades, como as federais de Sergipe, Campina Grande (PB) e Viçosa (MG). O Robodek é fruto de um projeto iniciado em 2007 do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP.

Uma esfera microscópica de polímero, menor que um grão de sal, capaz de interromper o fluxo de sangue para um tumor é a proposta de pesquisadores do Laboratório de Modelagem, Simulação e Controle de Processos do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Interrompido o fluxo de sangue, o tumor morre ou diminui de tamanho”, diz o doutorando Marco Oliveira. A técnica, chamada de embolização, já é utilizada em oncologia e ganha agora a possibilidade de nacionalização com novos materiais e processos de produção para ser oferecida no mercado brasileiro a preços menores que a importada. A patente da esfera foi depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) em parceria com a empresa carioca First Line Medical que participou do projeto coordenado pelo professor José Carlos Pinto. Foram realizados testes com pacientes humanos com bons resultados. O próximo passo é incorporar um medicamento quimioterápico nas esferas, para potencializar a ação da técnica no tratamenEsferas capazes de combater um tumor to de tumores.

MINÚSCULAS GUERREIRAS

MARCO OLIVEIRA/COPPE-UFRJ

Sobre quatro rodas, o Robodek se movimenta suavemente e pode ser útil tanto como uma ferramenta didática em projetos de pesquisa e aprendizado sobre programação e maquinário robótico como em serviços de segurança ou mesmo para levar carga de até 10 quilos. Ele é uma criação da empresa Cientistas Associados, de São Carlos, no interior paulista, para outra empresa são-carlense, a Xbot, que fará a fabricação e comercialização desses robôs. O conceito do Robodek é o de ser uma plataforma em que é possível uma programação de acordo com as necessidades educativas, de pesquisa ou comercial. Entre as facilidades que apresenta há a possibilidade de ser controlado de forma remota por meio de um smartphone. “O robô possui um acelerômetro [sensor que mede a velocidade] e outros sensores como bússola GPS, temperatura e umidade, além de ultrassom e infravermelho. Quando o celular é movido, o acelerômetro capta esse

Uma embalagem plástica para acondicionar pinos para reconstrução de dentes com propriedades antimicrobianas que eliminam bactérias e fungos foi apresentada pela empresa Angelus, de Londrina, no Paraná, que em dezembro ganhou

o Prêmio Finep de Inovação na categoria Pequena Empresa. A caixa, baseada em compostos com nanopartículas de prata, evita a contaminação de produtos odontológicos. “A atividade antimicrobiana não permite contaminações cruzadas, quando o dentista, ao manusear os pinos, leva bactérias para a caixa onde estão peças que serão usadas por outros pacientes”, diz Lygia Madi, gerente de desenvolvimento de produtos da empresa. A caixa foi desenvolvida em uma parceria da equipe de pesquisa da Angelus com pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos e Universidade Estadual de Londrina.

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TECNOLOGIA

ENGENHARIA DE MATERIAIS

Requinte sobre a

matéria-prima Indústria paulista de revestimentos conquista qualidade com inovações nos processos e esmaltes especiais Dinorah Ereno | fotos Eduard o Cesar

O

Brasil tornou-se o segundo maior fabricante mundial de revestimentos cerâmicos, segmento que engloba pisos e azulejos, ao atingir a produção de 713 milhões de metros quadrados em 2008, à frente de tradicionais fabricantes como Itália e Espanha e atrás apenas da China. Desse total, 485 milhões de metros quadrados foram produzidos no estado de São Paulo, sendo que 400 milhões de metros quadrados, correspondentes a 56% da produção nacional, saíram dos fornos de empresas do Polo Cerâmico de Santa Gertrudes, que abrange, além da cidade de Santa Gertrudes, os municípios de Cordeirópolis, Araras, Iracemápolis, Ipeúna e se estende por Rio Claro, Limeira e Piracicaba. “A grande vantagem da região, representada por 47 empresas do setor cerâmico, está na excelente qualidade da matéria-prima, uma argila de cor vermelha que é plástica, portanto fácil de ser moldada, e refratária ao mesmo tempo”, diz o engenheiro José Octavio Armani Paschoal, especialista em cerâmicas especiais e presidente do Centro Cerâmico do Brasil (CCB), instituição certificadora de qualidade criada pela Associação Nacional dos Fabricantes de Cerâmica para Revestimento (Anfacer). O fato de a região ter uma argila de primeira linha é uma vantagem indiscutível, mas para que ela chegasse a ocupar um lugar de destaque no cenário nacional foi preciso um trabalho sistemático de pesquisa e desenvolvimento realizado por pesquisadores paulistas com apoio da FAPESP na modalidade Consórcios Setoriais para Inovação Tecnológica (Consitec). O projeto envolveu desde a escolha de matérias-primas mais adequadas até a criação de novas tintas e esmaltes especiais de alta dureza e resistência ao desgaste. Quando o projeto teve início, no final de 2001, o produto cerâmico para revestimento da região apresentava baixa qualidade técnica.

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Forno para ensaios do laboratório do Centro Cerâmico do Brasil

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Processo de produção cerâmica automatizado: etapas de prensagem e esmaltação de peças

“Atualmente, pelo menos 98% de cada lote produzido se enquadra na classe A, o que significa que as peças não apresentam defeito nenhum”, diz Paschoal, pesquisador recentemente aposentado do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). Em 1997, no máximo 50% do que era produzido pelas cerâmicas paulistas podia ser classificado como classe A. O restante era classificado como classe B – peças com pequenos defeitos na superfície – ou C, com defeitos mais graves. Na época, o Brasil produzia 200 milhões de metros quadrados de revestimentos cerâmicos por ano. Santa Catarina respondia por 70% do total produzido e São Paulo por 30%. “Como a cerâmica tinha um bom preço, mesmo com as perdas as empresas conseguiam se manter.” Uma situação bem diversa da enfrentada hoje, com todas as indústrias fabricando produtos com padrão internacional. “Como a margem de lucro hoje é pequena, com grande concorrência no setor, a empresa corre risco de fechar se mais do que 2% das peças apresentarem defeitos”, diz Paschoal. 86

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A produção de porcelanato – produtos cerâmicos especiais que englobam desde pastilhas até peças de grandes dimensões com alto valor agregado usada em pisos e placas para fachadas de edifícios – pelas indústrias paulistas foi uma

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O PROJETO Consórcio setorial da indústria de cerâmica para revestimento do estado de São Paulo: inovação tecnológica e competitividade nº 01/10783-5

MODALIDADE

Programa Consórcios Setoriais para Inovação Tecnológica (Consitec) COORDENADOR

JOSÉ OCTAVIO ARMANI PASCHOAL – Ipen/CCB INVESTIMENTO

R$ 586.715,13 (FAPESP)

das conquistas contabilizadas ao final do projeto em agosto de 2009. “Quando o projeto teve início, apenas três empresas paulistas fabricavam pastilhas de porcelana, que são peças de pequenas dimensões para decoração e revestimento”, diz a pesquisadora Ana Paula Margarido Menegazzo, superintendente do CCB e coordenadora de duas linhas de pesquisa no projeto. “Quando foi finalizado, 13 empresas já fabricavam o porcelanato.” O produto divide-se em duas categorias: porcelanato técnico, de altíssima qualidade, que concorre com as pedras naturais e não tem esmalte na superfície, e o esmaltado. Das sete linhas de pesquisa conduzidas durante o Consitec, três tiveram como foco o porcelanato e contemplaram o desenvolvimento de matérias-primas para fabricação dessas peças, o estudo da tecnologia de processo de fabricação e a formulação de esmaltes especiais. As outras linhas de pesquisa envolveram desde inovações na área de ensaios para avaliação de produtos, como o desenvolvimento de uma metodologia para

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lução, é preciso fazer uma adaptação dos insumos utilizados nessa tarefa”, diz Eduardo Quinteiro, gerente de projetos do CCB e coordenador de quatro linhas de pesquisa no projeto Consitec. No caso dos esmaltes decorativos para formar os desenhos de um piso ou azulejo, por exemplo, eles têm que ser depositados no ponto exato e não podem se espalhar. “As empresas paulistas de cerâmica trabalham com uma técnica decorativa que utiliza poucas camadas de tinta para formar os desenhos com a melhor resolução possível”, diz Quinteiro. Durante o projeto foi feito ainda um mapeamento das diferenças de tonalidade observadas pelo olho humano, que serviu como referência para a elaboração de uma metodologia para melhorar o uso das tintas cerâmicas utilizadas pelas indústrias do setor. Certificação cerâmica - Alguns en-

verificação da espessura da peça que diminuiu as diferenças de resultados entre os laboratórios, pesquisas na área de tecnologia de assentamento de revestimento cerâmico, até um estudo do escoamento das tintas dos materiais usados na decoração dos revestimentos cerâmicos, área da mecânica chamada de reologia. “Esse estudo é necessário porque, como as técnicas de aplicação de decoração estão em constante evo-

saios foram feitos nos laboratórios do Centro Cerâmico do Brasil e outros no Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), nos laboratórios da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e no Ipen, parceiros no projeto. Embora tenha sido criado em 1993 como organismo certificador, só com o apoio do projeto Consitec e outros da Finep e do CNPq, o CCB pôde exercer plenamente essa função, quando de um único laboratório transformou-se em um centro de inovação tecnológica em cerâmica. “Fizemos trabalhos de levantamento de qualidade e de ajuste das empresas para que elas conseguissem atender às normas e pudessem receber a certificação”, diz Paschoal, que assumiu

a presidência do CCB em 1997 em função da sua experiência no Ipen. “Nessa época, a influência de Santa Catarina era muito grande.” Prova disso é que, mesmo com uma argila totalmente diferente da encontrada em Santa Catarina, fácil de moldar mas sem resistência mecânica, as cerâmicas da região de Santa Gertrudes durante algum tempo utilizaram um processo similar, baseado no italiano. “Em Santa Catarina, é preciso adicionar na produção materiais estruturantes como feldspato e quartzo, exigindo processo de moagem úmido e posterior retirada de água por secagem ”, explica Paschoal. A argila vermelha que aflora próximo à superfície na região de Santa Gertrudes já apresenta a resistência mecânica do produto final. “Isso muda completamente as características do processo, que é feito por moagem a seco”, diz Paschoal. Em vez de várias etapas, basta uma única. Isso significa um custo industrial em torno de 50% mais baixo do que o das cerâmicas do Sul do país. Além da tecnologia da fabricação, como parte do projeto Consitec, foi feito um levantamento dos produtos fabricados em todo o território nacional. “Com base nessas informações elaboramos, junto com o setor, uma norma técnica específica para o porcelanato, a NBR 15.463, publicada em 2007”, diz Ana Paula. A norma contém requisitos técnicos obrigatórios e exigidos em todo o mundo como resistência mecânica, resistência ao desgaste, a produtos químicos e baixa absorção de água. “Essa norma, pioneira no mundo, já foi apresentada ao Comitê Internacional ISO 189, que trabalha com normas mundiais para revestimento cerâmico.” ■

Porcelanatos decorados produzidos por indústrias de Santa Gertrudes

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Cerâmica

competitiva Parceria entre indústrias e centro de pesquisa resulta em produtos com menos perdas e mais qualidade Dinorah Ereno, de Pedreira

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Canecas depois de secas, antes de irem para a etapa de queima no forno FOTOS EDUARDO CESAR

a cidade de Pedreira, localizada a 130 quilômetros de São Paulo, as principais ruas de comércio ostentam em suas vitrines uma grande variedade de objetos de decoração feitos de cerâmica, como miniaturas, pratos, copos e pinguins coloridos em vários formatos e tamanhos também conhecidos como produtos de louça. “Praticamente toda a cidade vive em função da cerâmica”, diz o professor Elson Longo, coordenador do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos 11 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da FAPESP, que desenvolve há quatro anos um projeto de parceria com 29 empresas do município para que elas possam produzir peças de melhor qualidade, baseadas no conhecimento acadêmico, com o mínimo de perdas no processo produtivo. “Começamos fazendo um controle da qualidade da matéria-prima”, diz a pesquisadora Shirley Cosin, convidada pelo CMDMC para coordenar o projeto na cidade de Pedreira e que durante 28 anos trabalhou na indústria cerâmica. No início desse processo, por exemplo, as empresas recebiam a argila com excesso de ferro magnético. “Quando a argila tem ferro em sua composição as peças ficam com pintas pretas e com um defeito no centro da peça chamado de coração negro, que só aparece após o processo de queima”, explica Longo, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara. Para avaliar se a argila tem realmente resíduos de ferro são necessários alguns ensaios feitos no Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), ligado ao CMDMC.

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Porcelanas recebem filetes de tinta à base de ouro (esq.) e canecas são moldadas na prensa

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O PROJETO Centro Muldisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos - nº 98/14324-0

MODALIDADE

Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) COORDENADOR

ELSON LONGO – Unesp INVESTIMENTO

R$ 1 milhão por ano (FAPESP)

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“Por amostragem, se alguns lotes de argila não estiverem adequados aos parâmetros previamente estabelecidos no ato da compra, eles são devolvidos ao fornecedor”, diz Shirley. Outro problema recorrente encontrado era o tamanho da granulometria do quartzo e do feldspato, matérias-primas que, junto com a argila e o caulim, compõem a massa básica usada para fabricação das peças cerâmicas. Os fornecedores nunca respeitavam o tamanho dos grãos estipulado pelas indústrias. “Em vez de grânulos menores, chamados tecnicamente de malha 200, eles recebiam os de malha 80”, relata Shirley. Isso causava sérios problemas, porque grãos maiores causam defeitos nas peças cerâmicas. “Desde que foi instituído um controle do material recebido pelas empresas, houve uma grande melhora”, diz Shirley. “Antes a argila que vinha era completamente cinza e hoje já chega branca, mais apropriada para a produção de cerâmica artística.” Toda a argila utilizada em Pedreira é comprada de um único fornecedor, da cidade de São Simão, também no interior paulista, de onde ela é extraída

de áreas de várzea. “Esbarramos em um grande problema, que é a falta de qualidade do produto, composto por 30% de umidade, 20% de turfa e de 10% a 15% de areia”, diz Longo. Ou seja, apenas 40% da matéria-prima comprada por um preço que varia de R$ 500,00 a R$ 600,00 a tonelada é efetivamente aproveitada. Como para o produto atingir outro patamar de qualidade é preciso adotar técnicas apropriadas de extração e beneficiamento – o que leva tempo –, a alternativa encontrada pelos pesquisadores foi sugerir às empresas que passassem a comprar uma argila importada da Inglaterra, com preço idêntico ao da nacional, que já está sendo usada por outras empresas no Brasil. “A vantagem da matéria-prima importada é a qualidade, que resulta em redução de etapas no processo produtivo”, diz Shirley. “Não é preciso moer nem lavar a argila, basta pesar e jogar no moinho.” Queima econômica - Como a argila

é pura, há também um ganho no processo de queima. “A queima, que era feita entre 1.280 e 1.320 graus Celsius, dependendo da quantidade do quartzo

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uma grande encomenda”, diz Shirley. O diretor e proprietário da empresa Porcelanas Lu, Valdemir Pansani, relata que com o apoio do projeto conseguiu reduzir as perdas de 40% para 10%. “Esse projeto veio na hora certa, porque eu estava enfrentando muitas dificuldades e a empresa corria sério risco de fechar”, diz Pansani. A partir do momento em que foi feita uma triagem do material, as perdas já foram reduzidas. “O trabalho de acompanhamento e controle da massa e do esmalte melhorou muito a qualidade do produto e, com isso, consegui ser mais competitivo.” Trabalho ininterrupto - A empresa,

que vinha na argila, agora é feita com uma temperatura constante de 1.200 graus”, diz Shirley. O ganho de 80 graus na temperatura representa uma significativa economia nos custos do processo. A diminuição da temperatura também significa peças com menos retrações e, consequentemente, defeitos. No início, as indústrias ficaram reticentes com a ideia de importar a argila, mas aos poucos foram aderindo. “Depois de testes piloto realizados com pelo menos 16 empresas foi feita

fundada em 1986, tem 80 funcionários que se revezam em várias funções durante 24 horas por dia. Um dos carros-chefe da Porcelanas Lu são os pinguins, produzidos em 70 modelos diferentes, que vão desde o tradicional até os mestres-cucas, músicos e famílias. A empresa fabrica ainda miniaturas, canecas com logotipos de empresas, jogos de xícaras, vasos e pratos decorativos. O objetivo do empresário, que também tem duas lojas que vendem os produtos que fabrica na cidade, é reduzir as perdas para cerca de 5%. Após o processo de queima, as peças são decoradas com decalques ou estampadas pela técnica da serigrafia. Esses processos também são acompanhados de perto pelos pesquisadores. “Um dos pigmentos utilizados para imprimir desenhos nas peças estava provocando uma série de defeitos”, relata Shirley. Isso porque o pigmento era comprado como se tivesse partículas microscópicas, mas na realidade elas

eram de tamanhos maiores. “Passamos a fazer um controle sobre o tamanho das partículas e resolvemos o problema”, diz. Recentemente, uma das fábricas começou a apresentar problemas de descolamento em 80% dos cabos das canecas após o processo de colagem, que é feito manualmente. “Isso ocorria porque a mistura não tinha homogeneidade”, relata. Ou seja, o processo de fazer a cola na viscosidade correta não era seguido à risca. A ideia de trabalhar em colaboração com o centro cerâmico partiu do prefeito Hamilton Bernardes Junior, que resolveu propor a parceria ao conhecer os bons resultados de um projeto semelhante desenvolvido com as cerâmicas de Porto Ferreira. Além dos 29 participantes do projeto, outras centenas de pequenas e microempresas do setor cerâmico também se beneficiam do conhecimento repassado. Na avaliação dos envolvidos no projeto, essa parceria não tem data para terminar, porque o conhecimento técnico transferido para as empresas tem que ser constantemente reavaliado. “Mesmo com os avanços técnicos obtidos após quatro anos do acordo firmado com a prefeitura da cidade, ainda há muita coisa a ser feita”, diz Longo. Para este ano, a Câmara Municipal aprovou uma verba de R$ 70 mil para o projeto. Uma das ideias em gestação é a criação de uma cooperativa para produção de massa cerâmica composta de argila e os demais componentes, o que resultaria em ganhos no processo industrial. “Com a criação de uma central de produção, o empresário não teria mais que se preocupar com a qualidade da matéria-prima”, diz Longo. ■

Canecas feitas sob encomenda e outras peças cerâmicas são decoradas com adesivos

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Laboratório amplia o estudo de projetos de embarcações para exploração de petróleo | Evanild o da Silveira ENGENHARIA NAVAL

ENSAIO MARINHO

A

o longo da costa brasileira, no fundo do oceano, repousam grandes depósitos de gás e petróleo, principalmente na Região Sudeste do país onde tudo indica que foram encontradas grandes reservas na camada pré-sal. Retirá-los de lá requer estruturas flutuantes – plataformas e navios – e sistemas submarinos com tecnologia de última geração e muito caros. Para saber se vão funcionar a contento e se o dinheiro investido não será perdido, esses equipamentos antes de serem construídos e lançados ao mar precisam passar por testes de validação em tanques virtuais formados por computadores e em tanques de provas físicos semelhantes a piscinas, duas formas de experimento que estão reunidas desde dezembro na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Batizado de Tanque de Provas Numérico (TPN), o laboratório virtual da Poli existe desde 2002 por meio de uma parceria com a Petrobras. Em 2006, o TPN se tornou um dos quatro nós da Rede Temática de Computação Científica e Visualização, conhecida como Rede Galileu – os outros três estão nas universidades federais do Rio de Janeiro e de Alagoas e na

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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Fazem parte ainda da Galileu outras 10 universidades e instituições de pesquisa. A ampliação e modernização do TPN atende às novas demandas surgidas principalmente com o anúncio da descoberta de petróleo e gás da camada abaixo do sal existente no fundo do mar em 2007. O sistema computacional do laboratório ganhou um novo cluster, um aglomerado de computadores, com 1.792 processadores que trabalham em paralelo. Para abrigar esse novo recurso, além do tanque físico, foi erguido um edifício com uma área construída de cerca 1.600 m² e acomodações para mais de 80 pesquisadores. No total, foram investidos R$ 9,5 milhões, dos quais R$ 9 milhões vieram da Petrobras e o restante da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). O tanque físico, chamado de Calibrador Hidrodinâmico (CH-TPNUSP), tem 14 metros (m) por 14 m de lado e 4 m de profundidade e é dotado de geradores e absorvedores de ondas (flaps). No total são 148 deles, dispostos ao longo de todo o perímetro do tanque, em que é possível criar ondas multidirecionais, regulares ou aleató-

rias. De acordo com o professor Kazuo Nishimoto, do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Poli e coordenador do TPN, com a capacidade dos flaps de absorverem ondas e não refleti-las, é possível também simular condições de mar infinito, como se o tanque não tivesse laterais e as ondas se propagassem sem reflexão. Os flaps, ventiladores e outros sistemas permitem representar, além de ondas, as principais condições ambientais que agem sobre navios e plataformas marinhas, como correntezas e ventos, desde uma leve brisa até furacões. Além disso, também é possível reproduzir a dinâmica das linhas de ancoragem – cabos fixados no solo marinho que mantêm a plataforma no lugar – e dos risers, dutos rígidos, de aço ou flexíveis, que levam o óleo extraído até a plataforma de produção. Apesar das vantagens, esse tipo de tanque também tem alguns inconvenientes. Além de custos elevados, ele tem limitações físicas para simular situações que ocorrem em ambientes com grande profundidade, não permitindo reprodução fiel da dinâmica de todo o sistema. Para melhor representar condições em ambientes com profundidades ao redor de 3 mil metros ou mais seria

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EDUARDO CESAR

Tanque físico construído na Poli-USP: simula situações ambientais como ondas e ventos

necessário um tanque de dimensões inviáveis fisicamente. Ou os modelos das embarcações e das plataformas ficariam tão pequenos que comprometeriam a representação física e a análise em escala real. Para superar essas limitações existem os tanques virtuais ou simuladores numéricos, que é o caso do TPN. Trata-se de um programa computacional capaz de representar matematicamente as mesmas condições geradas por um tanque de provas físico, com a vantagem de não haver as restrições dimensionais e obter os resultados com maior rapidez e precisão. Além disso, o simulador numérico calcula a dinâmica das unidades flutuantes, dos esforços e tensões nas linhas de amarração e nos risers. Tarefa veloz - O cluster de computado-

res é capaz de realizar centenas de simulações de diversas condições ambientais em questão de minutos. Nishimoto explica que um cluster de computadores é um agregado de processadores dedicados, que resolvem uma tarefa única de forma cooperativa e integrada. Assim, as operações de cálculo são subdivididas e distribuídas por todos os processadores que compõem o grupo, tornando a resolução dos problemas mais rápida. A

opção por esse sistema foi feita em 2002 quando foi criado o TPN. “Decidimos que, em vez de investir em supercomputadores especializados, o melhor seria desenvolver um cluster com desempenho semelhante e a um custo muito menor”, conta Nishimoto. Hoje a capacidade de processamento do TPN é de 55 teraflops, o que significa 55 trilhões de operações matemáticas por segundo. Só para comparar, os computadores pessoais mais velozes existentes não chegam a 0,1 teraflops. Flops significa floating point operations per second ou operações de ponto flutuante por segundo. As simulações realizadas no TPN serão fundamentais para o sucesso da exploração das reservas petrolíferas da camada pré-sal, segundo Luiz Levy, gerente de métodos científicos do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (Cenpes) da Petrobras. “As reservas estão muito longe da costa e em grande profundidade, o que torna um desafio sua exploração”, diz. “No TPN será possível realizar uma série de cálculos e simulações.” Além das simulações convencionais da exploração de óleo e gás, a Rede Galileu também poderá representar os processos de perfuração das camadas de sal. “Perfurar essas camadas é um grande

desafio, porque elas sofrem deformações e podem colapsar a coluna de perfuração”, explica Nishimoto. “Para cada poço é preciso criar um modelo numérico, que simule as condições do mar, do solo e calcule a dinâmica das embarcações envolvidas na exploração.” Os testes realizados no TPN geram uma quantidade de dados tão grande que é quase impossível analisá-los por processos convencionais. Para resolver esse problema foi criado o TPNView, um programa de computador de visualização, baseado em técnicas de computação gráfica em tempo real, que possibilita uma representação precisa do ambiente em realidade virtual. Ele alia a visualização em três dimensões (3D) e ferramentas de análise de dados como estatísticas, gráficos e diagramas. Apesar da sofisticação do TPN, ele não substitui o tanque de provas físico. Um complementa o outro e é justamente esse trabalho conjunto que torna o laboratório da USP raro no mundo. “Existem muitos tanques físicos na Noruega, na Holanda e no Japão, porém não existe um laboratório que acople tanque físico com numérico com cluster do porte de 55 teraflops. Assim hoje o TPN torna-se único no mundo.” ■ PESQUISA FAPESP 168

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> LITERATURA

HUMANIDADES

Nas entranhas da invenção Projeto recupera trajeto da criação de Mário de Andrade Carlos Haag

REPRODUÇÕES DO LIVRO A IMAGEM DE MÁRIO; FOTOBIOGRAFIA DE MÁRIO DE ANDRADE/MÁRIO, 1938

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sso corria o mês de abril. Peguei um resto de caderno em branco, e na letrinha penteada dos calmos começos de livro comecei escrevendo. Mas logo a letra ficou afobada, rapidíssima, ilegível para os outros, frases parando no meio com ortografias mágicas em que tanto eu botava um ípsilon na palavra ‘caderno’, como um hífen em ‘jardim’, eu escrevia com fogo. Tudo vinha dócil, pressentido com ardor apaixonado, numa adoração de mim, da minha possível inteligência, como poucas vezes me tenho gozado assim tão fácil nesta vida”, descreveu Mário de Andrade (1893-1945) sobre seu processo criativo. Como seria igualmente fácil a vida dos pesquisadores envolvidos em recriar esse processo hoje se houvesse mais textos como esse, tão explícito sobre o labor da gestação de um livro. Daí a importância do projeto temático sediado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras, apoiado pela FAPESP, coordenado pela professora Telê Ancona Lopez. “O que se pretende é descobrir como se deu toda a organização de uma invenção em busca do processo criativo. O IEB centraliza a maior parte dos dossiês de fólios deixados pelo escritor. A partir de todo esse material vai ser possível recuperar o trajeto de uma criação”, explica a pesquisadora. O objeto de estudo são 102 manuscritos em posse do IEB-USP e a classificação será di-

vulgada em um banco de dados, um catálogo analítico (catálogo raisonné) dos manuscritos literários e um índice dos títulos de todas as áreas, acompanhado de uma cronologia da criação e da publicação. “A novidade do catálogo é que se tenta montar o trajeto de criação. Os pesquisadores vão poder examinar o manuscrito no fac-símile e vão contar com a trajetória montada no dossiê, bem como com as notas de pesquisa que justificavam os caminhos tomados na organização e todas as outras informações encontradas”, avisa Telê. “Será um celeiro de pesquisas.” A classificação, no catálogo e no índice, prolonga-se na produção de cópias em fac-símile escaneadas e na microfilmagem de todos os fólios, como um recurso extra para salvaguardar os documentos do uso pelos pesquisadores. Tudo virá em detalhes: dimensão do papel usado, que tipo de caneta foi empregado na escrita do poema ou na correção de um texto, a cor etc. “Há mesmo o caso interessante do poema em que as dobras feitas mostram que Mário andou com ele no bolso, indicando que o mostrou para outras pessoas, que estava preocupado com sua escrita e assim por diante, um mistério que pode ser resolvido pelo pesquisador interessado em crítica genética e na vivência do documento. Esse tipo de análise também nos permite datar documentos por meio da comparação da filigrana do papel etc.”, afirma Telê. Outro resultado do projeto é a parceria com a editora Agir, que está publicando a obra completa de Mário de Andrade a partir de edições PESQUISA FAPESP 168 FEVEREIRO DE 2010 ■

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feitas pela equipe do temático e que já resultaram em novas versões de Amar, verbo intransitivo, Macunaíma, Obra imatura, Os contos de Belazarte, entre outros, e que vai trazer, em maio, na nova edição de Poesias completas uma série de poemas inéditos de Mário, que o escritor havia pensado em publicar, mas descartou na versão final.

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ário era um constante revisor de si mesmo em suas obras, sempre ocupado em dar uma última mão de tinta em seus escritos e deixando um espaço para mais um retoque futuro. Assim, o seu imenso arquivo pessoal de fólios deixados para a posteridade, reveladores de uma criação sempre em movimento, nunca terminada, zelosamente guardada. “O escritor, um arquivista de si mesmo, identificou e separou conjuntos documentais no fundo que compôs durante sua vida, armazenando-os em uma estante e uma grande cômoda na sua casa à rua Lopes Chaves, em São Paulo. Na série Manuscritos Mário de Andrade, os documentos do processo criativo abrigam trajetos a serem decodificados nos dossiês de inéditos, os maiores e mais ricos montados pelo escritor em envelopes verdes e pastas de cartolina, estas por sua vez reaproveitadas, como nos conta a sobreposição de cabeçalhos rabiscados”, conta Telê. “Itinerários são decodificados ou estabelecidos por via da análise e interpretação sujeita a percalços e enganos. Esse trabalho, na realidade, deve sempre se lembrar que os dossiês não integralizam materialmente o processo criativo, tanto o do artista das letras e das artes como o do ensaísta nas ciências humanas. A criação ultrapassa dossiê, arquivo e, sobretudo, a própria materialidade, ao jogar, neste último ponto, com a psique do escritor.” Daí o trabalho da equipe em cruzar um manuscrito com outras fontes do arquivo como cartas (o IEB-USP concentra a maior coleção de correspondência ativa e passiva do autor de Macunaíma), entrevistas, outros manuscritos, marginália de livros, enfim, tudo o que possa iluminar

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a leitura de uma dada obra e esclarecer o trajeto criativo de Mário, fazendo então da biblioteca do escritor o seu locus creationis, o espaço criativo por excelência, o caldeirão onde colocará os ingredientes capazes de gerar a mistura “ideal”, por mais efêmera que seja. Um conceito importante na criação de Mário são os “exemplares de trabalho”, como eram apelidados os manuscritos de textos impressos de livros ou periódicos em que ele cristalizava novas versões das obras ao colocar suas rasuras criativas com tinta preta ou a grafite, lápis vermelho ou azul. Os exemplares de trabalho juntam-se a notas, versões, planos etc. nos dossiês que os conservam. Após enviar para a editora o texto escrito e receber de volta as provas, o escritor se punha a rabiscar nos seus exemplares de trabalho as modificações que desejava. “Crítico austero do próprio labor, Mário, nos exemplares de trabalho, assume sua pena de Sísifo até o final da sua vida. Em 1944, na capa de um Macunaíma da reedição Martins daquele ano, em cujos cadernos nem sequer passou a espátula, anota apressado, fechando parênteses que não abriu: ‘Exemplar corrigido para servir a futuras reedições/M.’”, diz a pesquisadora. Ao mesmo tempo, o esforço com os exemplares de trabalho nem sempre era passado adiante. “É curioso perceber que ao poupar os exemplares de trabalho, passando a limpo as rasuras em outra cópia do livro, esta endereçada ao prelo, o copista Mário, que assim age interessado talvez no confronto com o texto na nova edição, cochila ou cumpre com displicência a tarefa. O cotejo das rasuras nos exemplares de trabalho de Amar, verbo intransitivo e Macunaíma com os respectivos textos na segunda edição aponta a ausência de certas reformulações”, observa Telê. Nesse ponto é possível perceber a noção assumida por Mário em sua criação da rasura, não como correção (salvo nos casos em que a gramática ou a coerência são feridas), e sim como nova possibilidade descoberta durante o processo criativo, acima da noção pragmática de certo ou errado,

Mário, nos exemplares de trabalho, assume a pena de Sísifo até o final da sua vida

Gabinete de trabalho de Mário na rua Lopes Chaves, São Paulo, outubro de 1945

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ARQUIVO SPHAN (SÃO PAULO) FOTO DE GERMANO GRAESER

em especial em projetos literários como os dele que têm o movimento e a inacabilidade como traços essenciais. Nesses casos, o exemplar de trabalho aparece como manuscrito de obra, dono de uma tipologia e uma dinâmica em todas as áreas de atuação de um polígrafo como o autor de Macunaíma. Um exemplo notável é novamente Amar, verbo intransitivo, criado e recriado entre 1927 e 1944 por Mário e fruto de sua correspondência e amizade com Pio Lourenço Correa, o tio Pio, em verdade um primo e amigo com quem manteve intensa troca de cartas entre 1917 e 1945. As rasuras no exemplar de trabalho do livro, lançado na fase heroica do modernismo, mostram um escritor menos afoito na sua defesa do freudismo e do cientificismo e mais flexível em aceitar as sugestões do tio Pio

em coisas como o emprego do “pra” que o amigo prefere na sua forma “para”. Na página de rosto do exemplar rasurado escreve: “A edição deverá obedecer à ortografia oficial brasileira... do momento” com a mesma tinta em que corrige o “intransitivo”, agora grafado com “s” e não com “z”. Assim a segunda fase da criação toda acontece nesse exemplar rasurado e acontece entre 1942 e 1943 com Mário já um nome conceituado nas letras brasileiras. “Vem um amigo para revermos as provas do futuro Amar, verbo intransitivo, que sai bem remodelado. Vamos ver se melhora um bocado”, escreve ao crítico Álvaro Lins em 1944, mostrando a importância da correspondência mais uma vez na consolidação do entendimento da trajetória da sua criação, assim como fora com o tio Pio.

“As cartas são o espaço onde ele encontra o entendimento de processos, caminhos, escolhas, algo como um diário de produção de Mário. Ao mesmo tempo, ao contar algo dele, ele suscita no outro uma reação: é um work in progress. Não se trata de uma obra fechada, mas há espaço para o outro que dialoga com ele dar palpites, intervir no processo criativo de Mário”, explica Marcos Antonio de Moraes, do IEB-USP, coordenador associado do temático, responsável pela correspondência do autor de Macunaíma. “Está claro que certas palavras, certos vocativos, por mais que me psicanalise, não consigo descobrir donde vieram. Mas vibram como palavras, são expressões-palavras que me parecem sugestivas e por isso deixei elas assim mesmo”, escreveu Mário em carta a Carlos Lacerda. “Ele PESQUISA FAPESP 168 FEVEREIRO DE 2010 ■

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reconhece que não sabe por que fez isso ou aquilo, mas o desejo de conhecer o mecanismo de criação impõe-se ao escritor, ao recusar a ideia do processo criativo domesticado. Mário parece impor a moral do artista verdadeiro: o ser fatalizado, consciente de sua técnica expressiva e insaciável pelo conhecimento dos subterrâneos de si e sua arte ou, como escreve a Drummond, ‘Faz uns dois anos ou pouco mais que eu me apaixonei pelo fenômeno da criação estética’”, explica o pesquisador. O diálogo mais intenso inicia-se com Bandeira e depois transfere-se para Drummond quando a conversa com o primeiro sobre os mistérios da criação parece estar se esgotando. “Principiei dando atenção mais cuidadosa aos meus processos de criação. Não pra modificar coisa nenhuma, não por conhecer a menor insinceridade nos meus processos de criação, mas para verificá-los”, escreveu ainda para Lacerda. “Localiza-se na correspondência de Mário uma constelação de depoimentos que permitem ao estudioso da crítica genética acompanhar o tortuoso processo de produção de um texto em suas diversas etapas”, nota Marcos. Ao mesmo tempo, continua o pesquisador, Mário atuou diretamente sobre o processo de criação de artistas como Di Cavalcanti, Brecheret, Mignone, Guarnieri, Anita Malfatti, Cícero Dias, entre outros. “Ele e os artistas plantam no terreno da carta a expressão essencial de seu trabalho, desenhos como expressão lúdica e esboços de obras em processo ou concluídas, desejando compartilhar o trabalho de invenção e, ao mesmo tempo, aspirando a eventuais sugestões do amigo que muitas vezes atuou como crítico de arte na imprensa. A carta torna-se território da criação e o processo de autoria se esfacela na criação a quatro mãos na troca de experiências, versos, ideias etc. Isso é totalmente moderno e o instrumento são as cartas”, diz Marcos. Mas, polígrafo exemplar, o arquivo de Mário também guarda a sua paixão pela música com partituras anotadas, cartas a compositores, textos sobre crítica musical, entre outros manus98

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critos que revelam seus diálogos com compositores e, mais importante, a sua coautoria, verdadeira parceria em obras musicais como a ópera Malazarte e a inacabada Café, em que sua participação não se restringiu ao libreto, mas também se refletiu na construção musical. “Da mesma forma em que há um espaço ocupado pela escrita literária, há um Mário que se ocupa da escrita musical, o Mário musicólogo que além de pensar versos pensa a música e quer o desenvolvimento de uma estética nacional”, observa Flávia Toni, do IEB-USP, coordenadora adjunta do temático responsável pelos manuscritos musicais. Além da coautoria nos grandes projetos musicais de compositores como Camargo Guarnieri ou Mignone, Mário também expressou sua criação por meio da música. “Há uma partitura em que se pode ver o desenho do que seria a Pequena história da música e em outra há um poema inédito composto após ele ler a música para piano. Existem três músicas, tentativas tímidas, de composições populares, compostas por Mário, mas podem existir outras”, diz Flávia.

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nas cartas, porém, que o escritor inspira os amigos a criar. Numa delas, conta a pesquisadora, arranja uma forma bastante peculiar de “arrancar” de Villa-Lobos as Cirandas “de caso pensado, sabendo que ia dar certo”, usando como argumento um compositor chileno, Humberto Allende, compositor das Doze Tonadas, melodias populares para piano, feitas para serem tocadas por alunos. “Sei que isso é bem elementar para você e nem ousaria pedir algo assim para um compositor da sua estatura, mas nem imagino quem no Brasil, além do nosso grande Villa, seria capaz de compor algo no estilo do Allende.” O peixe musical morde a isca e em breve saem as Cirandas nos moldes desejados por Mário, cujo nacionalismo, na contramão do de Villa, preconizava melodias mais folclóricas, como as das Cirandas, algo que era difícil de se arrancar do compositor carioca. O diálogo era mui-

to mais fluido com o paulista Camargo Guarnieri, músico favorito de Mário, com quem gostava de ouvir discos em sua casa e de quem foi um interlocutor privilegiado. Pedro Malazarte, como já se disse, teve, na sua concepção, para além do libreto, a coautoria de Mário e, agora, graças às pesquisas do temático, feitas por Flávia, descobriu-se o aprofundamento dessa parceria em duas melodias inéditas colhidas pelo escritor em 1927, em sua primeira viagem pelo país, e ofertadas ao músico (que as guardou em seu arquivo nos originais de Mário) e as usou na ópera. “Também há muitas análises de quase todas as óperas de Carlos Gomes, o que mostra uma vontade não apenas de atuar sobre o seu presente, mas também de tentar entender o passado, acompanhar a criação da ópera no Brasil”, fala Flávia. Para a pesquisadora, Mário parecia repetir, na música, a mesma busca feita em meados dos anos 1920, quando da escrita de Gramatiquinha da fala brasileira. “Ele pretendia dar conta do passado ao futuro musical brasileiro, construir um dia uma ‘gramática’ da construção musical brasileira, ou seja, usar determinadas construções sonoras para criar música, da mesma forma que se usavam palavras para criar versos.” O temático vai igualmente recuperar um diálogo perdido nas cartas. Sempre que recebia cartas com informações para o seu Dicionário de música, nos anos 1930, o escritor colocava a correspondência na seção de manuscritos em vez de na de cartas, já que essas entravam no processo de criação. Agora esse fluxo será restabelecido. Por fim, a marginália dos livros como manuscrito. “O que se percebe é um diálogo, já que leitura anotada, um movimento na pesquisa do artista que se desenrola em consonância com suas obsessões, subentende crítica, seleção e assimilação. A marginália em Mário é seara e celeiro convivendo paralelos ou fundidos nos arquivos da criação”, analisa Telê. “As notas marginais autógrafas fazem parte do percurso do universo da criação de outros textos e, na medida em que se enquadram no

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MÁRIO, 1932/FOTO DE GILDA DE MORAES ROCHA

percurso da escritura, duplicam a natureza documental do livro. Assim, ao texto impresso da biblioteca soma-se o manuscrito. Transformando ou selecionando, nas margens, a matéria do autor, tecendo comentários em uma leitura crítica lateral, o escritor promove uma coexistência de discursos. Esse diálogo exibe o texto nascente que se defronta com uma criação no estágio final, isto é, o livro alheio oferecido ao público.” A marginália pode funcionar, no caso do escritor como matriz implícita, quando se depara com um livro de anotações autógrafas, mas que, ainda assim, se sabe que influenciou o trabalho de Mário, como, por exemplo, Les villes tentaculaires precedées de Les campagnes hallucinées, de Emile Verhaeren, matriz confessada em cartas não apenas do título, mas do conteúdo de Paulicéia desvairada.

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udo isso não passaria de mera investigação fria e impessoal se não servisse ao autor e a seus leitores. Para tanto há a bela história de Os contos de Belazarte, que revela a necessidade de acompanhar a criação sempre em movimento de Mário, nunca terminada com seus muitos e infindos exemplares de trabalho. Em 1968, em plena ditadura militar, Valentim Faccioli, estudante de direito e revisor de uma editora, viu um livrinho cor de vinho calçando a mesa em que trabalhava. Ao pegá-lo viu que era um boneco de Belazarte (que, entre outros contos, trazia “O besouro e a rosa”) cheio de anotações feitas a lápis que julgou feitas pelo autor. Preso, perdeu o emprego e abandonou a universidade. Anos mais tarde, já professor da USP, resolveu entregar o livrinho para o IEB-USP, que, agora se sabe, é um documento importantíssimo, um exemplar de trabalho com anotações de Mário de Andrade. Para felicidade do escritor, as correções chegaram em tempo. ■

Mário em foto de 1932: corrigindo suas obras sempre

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AGÊNCIA ESTADO

MÚSICA

Muito além da

vitória-régia e do vatapá

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om boa dose de raivosa ironia, Mário de Andrade desancava certo tipo de brasileirismo musical que via permeado de “sensações fortes, vatapá, jacaré, vitória-régia”. Infelizmente para muitos, o interesse pela música de Heitor Villa-Lobos (18871959) estaria justamente na proximidade com que o compositor, pleno de ritmos e melodias, teria chegado dessa exótica mistura, aparentemente uma receita tipicamente brasileira que ele dominaria bem com sua genialidade intuitiva de arrancar da terra o que era nacional. “É preciso rebater a ideia de que o maior ou o único mérito da obra musical de Villa-Lobos esteja em seu caráter nacional, identificável pela utilização de melodias folclóricas e eventuais usos de ritmos e instrumentos de música popular brasileira. Outro ponto importante é demonstrar que as qualidades de certas obras do compositor não são resultados de mero casuísmo, mas de um labor composicional sintonizado com os problemas importantes no tempo em que foram compostas e que ainda instigam os músicos de hoje”, observa Paulo de Tarso Salles, da ECA-USP, autor de Villa-Lobos: processos composicionais (Editora Unicamp, 264 páginas, R$ 50). “Villa-Lobos é muitas vezes considerado como o ‘maior compositor das Américas’, mas esse rótulo ainda carece de substância, pois sua obra tem um mérito maior do que o mero exotismo e trouxe real contribuição à música do Ocidente, embora poucos estudiosos se debrucem efetivamente sobre essas questões”, avisa o pesquisador. “Ele é

sempre citado como um gigante da mais livres e, em 1923, o grande marco música do século XX, mas nunca mefoi a viagem a Paris, onde estabelece um receu o cartão VIP dos compositores diálogo com a música dos modernos, seminais, como Stravinsky, Schoenem especial com Stravinsky. A terceiberg, Varèse ou Messiaen, que geram ra fase, nos anos 1930, é a da volta ao teorizações e reverberam na linguagem Brasil, quando, aparentemente para gados compositores do século XXI. Em rantir a sobrevivência, em pleno regime geral, Villa-Lobos é o filho da naturevarguista, o compositor incorporou a za, que cavoucou a terra e encontrou o imagem que se queria dele como um talismã da identidade nacional, que o símbolo da cultura brasileira. A partir tornou maior entre os maiores de uma de 1948, a fase final, quando recebe o arte que intuímos ser importante, mas diagnóstico do câncer, Villa, para faque ainda não nos pertence”, concorda zer frente às despesas crescentes com o violonista Fábio Zanon, professor do tratamentos de saúde, passa a atender Royal College of Music e autor de uma encomendas e a se apresentar nos EUA recém-lançada biografia do composie na Europa. tor. Efetivamente, enquanto seus conTantas fases e tantas mudanças não temporâneos merecem análises infinseriam uma tarefa de amador, tampoudas, Villa ganhou um lugar periférico co de um autodidata casual. “Quem vê em que figura como caso exótico, um Villa como um compositor de pouca latino-americano cuja intuição teria técnica, que comporia sua música tal levado às vezes a resultados sublimes, qual a anarquia idealizada de selvas tromas quase sempre desiguais. “Ele, popicais, que teria pouquíssimo domínio rém, teve várias mudanças de estilo em da forma e das estratégias composiciosua vida que deixam entrever não um nais da tradição, parte de uma visão ‘dândi tupiniquim’, mas um compositor quase sempre baseada em gagues planque se autoimpunha uma pesada carga tadas pelo próprio Villa-Lobos, ou que de trabalho e estudo, o que contradiz simplesmente tentam fundamentar-se em uma falta de conhecimento quano mito em torno de seu autodidatismo to às obras e aos compositores com os e facilidade, no mau sentido, de invenquais a música de Villa-Lobos dialogação”, analisa Salles. Entre 1900 e 1917, temos o jovem compositor em sua fase va”, avalia o compositor e pesquisador inicial adotando modelos franceses e Sílvio Ferraz, da Unicamp. “Seus diáwagnerianos, buscando ser reconhecido logos foram marcados por encontros: pelos músicos e críticos brasiBartók, Varèse, Milhaud, leiros. A partir do contato em Revueltas. Todos defensores Compositor 1917 com o compositor Dade uma estética musical de em seu labor: rius Milhaud, a cantora Vera cunho experimental. Villa diálogo com Janacopoulos e o pianista Ardialogava com esses comos grandes positores que, por sua vez, thur Rubinstein, todos no Rio nomes traziam, assim como ele, de Janeiro, a música de Villa musicais do seu tempo apresenta formas e estruturas muito da força musical dos

Villa-Lobos deixa de ser ícone nacionalista para ressurgir como grande compositor moderno | Carlos Haag

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REPRODUÇÃO DO LIVRO A IMAGEM DE MÁRIO; FOTOBIOGRAFIA DE MÁRIO DE ANDRADE/VILLA-LOBOS, RIO DE JANEIRO, 1941

aspecto da multifacetada obra do mais importante compositor brasileiro, cuja música seja possuidora de atributos suficientes para que, através dela, seja possível estudar algumas das técnicas de composição em voga na primeira metade do século XX. As partituras de Villa revelam, além da óbvia preocupação com uma identidade nacional, a inquietação do compositor em relação a procedimentos que se tornaram acadêmicos, destituídos de significação para a música de seu tempo”, observa. “Isso se traduz em sua concepção peculiar de forma, em que os sons circulam sem a tradicional noção do desenvolvimento beethoveniano, mas de acordo com suas potencialidades acústicas.” O pesquisador, analisando os processos composicionais de Villa-Lobos, agrupou-os em três grandes modos de transformação do material composicional.

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povos de seus países. Que força seria essa? Não aquela que se imita facilmente, numa simplificação melódica à qual muitos acabaram por ceder, mas a força sonora, a força inventiva desses povos, no modo de cantar, de tocar um instrumento e na maneira como a música é feita com aparente facilidade e rapidez. Villa foi um compositor genuinamente brasileiro, no sentido de que teve de inventar o Brasil musical que lhe cabia.” Daí o aspecto acumulativo e não excludente da pesquisa de Salles, que revela ainda mais a riqueza musical do compositor. “Não pretendi substituir a já tão bem conhecida apreciação da identidade nacional presente na obra de Villa-Lobos. Meu objetivo foi apenas complementá-la com mais um

Villa na dedicatória a Mário de Andrade avisa que não é samba, mas Bach

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ntes de mais nada, é preciso reconhecer que a melodia, nota o pesquisador, é um item secundário na composição villa-lobiana, uma questão complicada num país com uma tradição tão forte na canção popular, em que a linha melódica é tão importante. Daí o primeiro processo com as transformações obtidas a partir de simetrias, que se tornam progressivamente assimétricas ou balanceadas pela ocorrência de “acidentes”. Essas transformações ocorrem como resultado da superposição entre “figura” e “fundo”, com a funcionalidade da figuração melódica interagindo sobre um fundo textural mais ou menos estático. A melodia villa-lobiana tem um papel “acidental” de transformação da textura. Assim, a música de Villa ganha uma implicação notadamente textural, ou seja, todos os componentes da obra geram uma sonoridade indivisível, um universo de timbres que são agregados sem uma hierarquia preestabelecida. “As cirandas para piano ilustram soberbamente essa questão: nelas as melodias folclóricas não são ‘harmonizadas’, mas sim inseridas em um ‘ambiente sonoro’ que lhes confere um sentido retórico, metafórico.” Esse conceito de ambiente sonoro, continua Salles, é constantemente afirmado em suas obras sinfônicas, nas suas densas orquestrações. “Em Uirapuru se descortina qual o recorte do compositor: não se trata de uma reprodução naturalista da melodia característica do pássaro. O ‘canto do uirapuru’ criado por Villa é uma melodia abstrata, um ‘hiperpássaro’. O que o atraiu foi a série simétrica de intervalos que é submetida a vários processos de alargamento e distorção. Villa se comprazia em tornar assimétrica a cuidadosa simetria

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inicial. A simetria para ele era como um estágio instável da composição”, analisa. Outro processo são os ziguezagues que ocorrem em vários pontos de suas texturas, em vários gêneros musicais, como projeção de determinados elementos, sonoridades, timbres, que estabelecem um novo estatuto do motivo, desvinculado de sua função temporal-formal para tornar-se um elemento quantitativo na consecução e fruição da obra. Na Bachianas nº 5, no martelo (2o movimento), está na própria melodia cantada pela soprano sobre o texto de Manuel Bandeira. No Choros nº 2, para clarineta e flauta (dedicado a Mário de Andrade, em época em que a amizade entre eles ainda não se rompera), o ziguezague é empregado para operar mudanças de registro entre os instrumentos. No Noneto, a mesma técnica tem implicações estruturais, anunciando mudanças seccionais e timbrísticas. Um terceiro processo composicional são as transformações por turbulência, resultantes sobretudo de procedimentos rítmicos ou timbrísticos, em que Villa gera sonoridades saturadas pelos elementos constituintes da textura, desencadeando processos irreversíveis de expansão ou contração das unidades métricas. Em síntese, ele usava a densidade do ritmo para controlar a saturação sonora da textura. Em Rude poema para piano, ouve-se como o ritmo saturado parece proporcionar diversas “erupções” ao longo do tempo. Ritmo e tempo parecem coordenar as ações em suas figurações de ostinato (linha melódica repetitiva em torno da qual outras camadas melódicas evoluem). No Choros nº 8, obra sinfônica que, nota o pesquisador, Stravinsky poderia ter assinado, Villa usou 36 ostinatos, os quais são superpostos, justapostos, montados e desmontados para gerar adensamentos texturais. “Desse modo pode-se perceber que a música de Villa dialogava com a de seus contemporâneos, como Stravinsky, Bartók, Varèse, por exemplo. Todos eles operavam num território ainda inexplorado dos sons, acima e além dos manuais de composição formal de seu tempo”, afirma Salles. “É preciso escutar um Villa-Lobos muito além da apreensão de suas melodias ou dos ritmos sincopados dos chorões, elementos superficiais que dão a ele cor local, mas não são os aspectos mais instigantes de suas obras. A série de Choros, por exemplo, é uma ampliação de possibilidades sonoras latentes em toda a música popular brasileira, não apenas a partir de parâmetros como altura e ritmo (melodia), mas essencialmente do timbre e de todas as propriedades atreladas a esse aspecto tão complexo do som como afinação, ressonância, difusão etc.”. O mesmo aconteceu com as Bachianas, observa Salles, que deram a Villa o rótulo de “fértil melodista” e praticamente sepultaram o interesse especulativo por suas criações. “Villa-Lobos não foi menos inquieto e capaz do que outros compositores em buscar e encontrar soluções interessantes para os problemas de composição musical que não se enquadram apenas na questão de identidade racial. Sendo brasileiro, foi tachado prematuramente de ‘ingênuo’ por ter tido a audácia de se lançar a uma aventura criativa sem precedentes e sem um manual escrito por um europeu. A América Latina por essa ótica está

destinada a ficar à margem da modernidade, preferindo discursar em torno da sua originalidade racial.” A ligação entre Villa-Lobos e o nacionalismo, lembra Salles, era das mais problemáticas, encarnado na figura emblemática de Mário de Andrade. Afinal, o nacionalismo brasileiro privilegiava o rural em detrimento do urbano e o vínculo de Villa com o choro carioca, além de urbano, destoava da orientação para os temas folclóricos. “Apenas ocasionalmente, como na série das Cirandas, ouvem-se melodias folclóricas. Ou em obras didáticas, como as Cirandinhas, para piano, ou o Guia prático”, nota o pesquisador. “O folclore sou eu”, gostava de dizer o compositor. Quando Vargas indicou um interventor para São Paulo e Villa manteve-se a seu lado, inclusive dedicando o Quarteto de cordas nº 5, obra nacionalista com temas folclóricos, Mário rompeu de vez com o compositor. O quarteto além de tudo trazia trechos de uma melodia gaúcha, o que fez o autor de Macunaíma perder as estribeiras e chamar o músico, em carta a um amigo, de “lambe c.” do regime. Mário preferiu como discípulo do seu nacionalismo o compositor Camargo Guarnieri. O elemento nacional, porém, não era o que mais interessava a Villa, embora tenha marcado fortemente a carreira do compositor, talvez “culpa” do próprio Villa, que, durante o Estado Novo, por interesse pessoal, nota Salles, por questões de sobrevivência, tenha deixado que se tomasse como verdade o que todos gostariam que ele fosse: o arauto da nação.

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ssa imagem ficou tão forte que mesmo músicos foram consumidos por ela e taparam os ouvidos diante da música de Villa-Lobos. Foi o caso do compositor vanguardista e pesquisador da USP Willy Correa de Oliveira, antigo detrator de Villa, que apenas recentemente voltou atrás em suas críticas ao “nacionalista sem valor” para, hoje, ver o autor de Uirapuru com olhos renovados. “Pensar Villa como compositor nacionalista é reduzi-lo. É pensar tacanho, reacionário: mesquinhamente fim de século XIX. Revela ignorância ou avaliação incorreta de sua obra. Autêntico compositor do século XX, Villa-Lobos foi homem do seu tempo, como Ives, Schoenberg, Stravinsky, Bartók, Webern. O arrojo de Villa na confecção de imagens abstratas em movimento é de tal importância que se pode emparelhá-lo com o Schoenberg maduro, com o último Scriabin, com Debussy, Varèse e até Webern. Para gaúdio de todos, Villa consta de um programa ideal, possível, focando a música do século XX no que houve de mais criativo, efetivo: em um mundo sem língua musical erudita falada, onde cada voz fosse um testemunho necessário do homem como ser criador, sobrevivendo em ambiente adverso, hostil, agressivo.” Foi com ele que o Brasil entrou, pela primeira vez, na música do século XX e, desde então, pouco se aventurou por esses caminhos, já que o compositor não deixou “herdeiros” musicais. “As novas gerações de compositores têm muito a aprender com os procedimentos técnicos de suas obras”, nota Salles. “Villa criou uma possibilidade de música brasileira, em vez de ser criado por ela. Ele ‘tornou-se’ folclore”, completa Zanon. ■ PESQUISA FAPESP 168

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HISTÓRIA

BRASIL À FRANCESA Os anos brasileiros, entre as décadas de 1930 e 1940, marcaram a vida e a obra do historiador francês Fernand Braudel Joselia Aguiar

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ara quem se via acuado entre a historiografia convencional, a vulgata marxista e o sociologismo, Braudel foi uma autêntica libertação. Ali estava finalmente um historiador que nem tinha o ranço de uma nem o reducionismo da outra nem o doutrinarismo do terceiro; e que, munido dos instrumentos da erudição mais recente, era capaz, como os grandes historiadores do século XIX, de dar corpo, alma e vida a largas fatias do passado”, escreveu o historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello. O elogio dá uma noção do encantamento que gerações experimentaram há cinco décadas com a leitura de O Mediterrâneo, obra monumental de Fernand Braudel (1902-1985) e do peso da influência do historiador francês. O que poucos sabem é que o seu pensamento, incluindo-se a criação dessa sua obra máxima, foi gestado durante sua estada no Brasil durante os anos 1930 e 1940. Essa temporada tropical de Braudel é o tema do estudo do historiador Luis Corrêa Lima, paulista, radicado no Rio de Janeiro, da PUC-RJ, autor de Fernand Braudel e o Brasil – Vivência e brasilianismo (1935-1945), recém-lançado pela Edusp, resultado de sua tese de doutorado pela Universidade de Brasília (UnB), em que analisa justamente o impacto que o país teve sobre o intelectual francês e vice-versa. “Para ele, foi uma mudança de perspectiva. A partir do contato com a sociedade brasileira e sua história, Braudel conseguiu imaginar a Europa do Antigo Regime”, explica o pesquisador. “Além disso, ele foi muito importante para o Brasil e para a USP, pois ajudou a formar toda a segunda geração de professores da universidade.” País

adotivo e o jovem se uniram para criar O Mediterrâneo e as raízes de uma nova forma de fazer história. “Se os novos leitores não perceberem com nitidez a novidade que a obra representou em sua época, isso talvez se deva, de certo modo, ao fato de o próprio Braudel ter influenciado sucessivas gerações que aderiram à Escola dos Annales, da qual fez parte. Uma escola que renovou a historiografia, aproximando-a das ciências sociais, e fez surgir novos temas e horizontes. Tratava-se, naquele tempo, de um tipo de narrativa histórica incomum.” Ao iniciar o doutorado, o período escolhido por Corrêa Lima foi justamente dos anos brasileiros de Braudel, decisivos para toda sua obra. Foi nessa época, por exemplo, que elaborou parte do mesmo O Mediterrâneo. A tese de Corrêa Lima investiga desde a chegada das missões francesas que contribuíram, nos anos 1930, para a fundação da USP até o período imediatamente posterior à volta para a França, em que esteve por cinco anos numa prisão nazista. “A França era considerada a líder da latinidade e a sua cultura, o caminho seguro da modernidade e do progresso verdadeiro. Oferecia simultaneamente tecnologia e humanismo, laicidade e religião. Por isso acreditava-se que a França poderia nos salvar da ‘barbárie’ de uma civilização meramente industrial. Os conflitos ideológicos naquela época eram bastante fortes, e a presença francesa correspondia ao projeto da elite paulista de educar a juventude nos ideais democráticos, longe do fascismo”, explica Corrêa Lima. Entre as dificuldades da empreitada, houve a própria vastidão da obra de Braudel a ser lida: como exemplo, considere-se que seus dois livros principais somam cinco

O jovem Braudel em foto tirada quando de sua estada no Brasil

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De volta à França, Braudel foi um dos responsáveis pela divulgação da obra de Gilberto Freyre

volumes e mais de 3 mil páginas. A segunda, conforme Corrêa Lima, foi quanto à questão específica que queria pesquisar: Braudel e o Brasil. “Será que haveria material suficiente para se escrever uma tese? Ou o assunto se esgotaria em um capítulo ou pouco mais?”, perguntava-se. Tal dúvida lhe provocou angústia por muito tempo. A terceira dificuldade foi o acesso aos arquivos de Braudel na França. “Foi uma longa espera até que as portas se abrissem”, conta. Entre as felicidades, houve a de encontrar documentos inéditos, conservados pela viúva do historiador, então com 87 anos, em seu apartamento em Paris. Como resultado, a obra de Corrêa Lima se concentra particularmente em anos que são pouco abordados nas duas maiores biografias do autor, escritas por Pierre Daix, na França, e Giuliana Gemelli, na Itália. Discreto, pesquisador incansável, com fama de excelente professor, Fernand Braudel iniciou sua trajetória como historiador no final dos anos 1920. Nas duas décadas seguintes viveria fora da França. De início, parte para a Argélia, onde o mar lhe provoca a primeira grande inspiração. O acaso o traz ao Brasil: o suicídio de um professor titular que já havia sido nomeado para o cargo. Traz tanto material de pesquisa que, ao se instalar em São Paulo, precisa alugar um outro quarto de hotel. Dizia Braudel que “se tornou inteligente” quando conheceu o Brasil. Para entender tal afirmação é preciso, antes, conhecer aquilo que caracteriza sua obra: trata-se, como destaca Corrêa Lima, da busca da longa duração, ou seja, das permanências e das realidades duradouras nos processos históricos, tanto nas relações do ser humano com o meio quanto nas formas de vida coletiva e nas civilizações. No Brasil ele encontrou um país novo, de dimensões continentais e natureza tropical, uma sociedade em formação contrastando com o Velho Continente, que, no en106

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tanto, o fazia imaginar o passado distante da Europa. “Foi no Brasil que ele ‘vestiu a camisa’ da renovação historiográfica preconizada pelos Annales, com um conjunto de intuições que configuraram o seu Mediterrâneo e fizeram dele um grande historiador, ao mesmo tempo original e herdeiro de Lucien Febvre”, argumenta Corrêa Lima. Coroas - Quando aqui esteve, entre

1935 e 1937, Braudel elaborava sua tese de doutorado sobre o Mediterrâneo no tempo de Filipe II. A obra o ocupou por aproximadamente 20 anos. Como exigência da universidade francesa, era preciso também preparar uma tese secundária, na qual o material pesquisado na pesquisa principal poderia ser reutilizado. Escolheu, então, estudar o Brasil do século XVI, que chegou a fazer parte do reino de Filipe II quando da união das coroas ibéricas. Na historiografia de Braudel, como explica Corrêa Lima, certas realidades coletivas ou inanimadas atuam de modo coerente como se fossem um sujeito: tornam-se “personagens”. Isso se dá, por exemplo, com o mar Mediterrâneo, que se transforma em personagem em sua história da Europa, e também com a imensidão do Brasil, seus fatores geográficos, imprescindíveis para compreender sua história. “Braudel escolheu uma perspectiva bem definida para focalizar o Brasil: uma Europa americana, ou seja, uma civilização europeia na América. E, de modo especial, a única Europa tropical e subtropical em todo o mundo com certa envergadura”, afirma o historiador brasileiro. Tal perspectiva fez Braudel lançar outro olhar sobre o passado brasileiro e, desse modo, captar as interações do país com o oceano. Braudel, porém, cedeu em parte a um etnocentrismo inaceitável, diz Corrêa Lima. “De qualquer maneira, ele teve a humildade e a grandeza de reconhecer que a história brasileira, como toda a história, é vida

e não se deixa aprisionar em uma fórmula”, acrescenta. Depois da Segunda Guerra Mundial, ao finalizar sua tese, Fernand Braudel foi autorizado a substituir a tese secundária por dois artigos já publicados sobre os espanhóis na África do Norte. E foi assim que o ensaio sobre o Brasil do século XVI permaneceu inacabado. Pouco a pouco, seus interesses de pesquisa se voltaram para o conjunto da América Latina, e mais tarde para a história mundial da vida material e do capitalismo. Desse modo, ele nunca mais retomou o ensaio. Braudel pensava que, para terminá-lo, precisaria consultar os arquivos de Portugal, que na época não estavam organizados. Em seu período brasileiro, Braudel conviveu com intelectuais, formou historiadores e até hoje fomenta novas leituras e pesquisas. Com três grandes amigos manteve a correspondência: João Cruz Costa e Eurípedes Simões de Paula, professores da USP, e o jornalista Júlio de Mesquita Filho. Como discípulas, destacam-se Alice Canabrava, Cecília Westphalen e Maria Luíza Marcílio. Durante o regime militar, empenhou-se em libertar da prisão seus amigos e conhecidos. Braudel usou seu prestígio internacional como intelectual francês e escreveu cartas aos presidentes militares brasileiros. Assim, como conta Corrêa Lima, ele conseguiu tirar da cadeia Caio Prado Jr., Milton Santos, João Cruz Costa e Yedda Linhares. Aos alunos, futuros professores, recomendava simplicidade, que resulta de clareza. De volta à França, Braudel foi um dos responsáveis pela divulgação da obra de Gilberto Freyre. Contribuiu com pesquisadores como a historiadora greco-baiana Katia de Queiros Mattoso, que assumiria pela primeira vez a cátedra de história do Brasil da Sorbonne, e o etnofotógrafo Pierre Verger, que dedicou ao historiador a sua tese Fluxo e refluxo e teve nele seu grande incentivador na volta à academia –Verger havia

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abandonado o Liceu ainda na juventude. Com seus pares franceses, Braudel formou uma geração de grandes historiadores: Jacques Le Goff, Le Roy Ladurie, Marc Ferro e Georges Dubys. Até os anos 1950, foi responsável por cursos e conferências sobre a América Latina. Quando a USP completou 50 anos, em 1984, teve o convite para vir para participar das comemorações. Como seus principais amigos brasileiros já haviam falecido, disse que seria um desgosto muito grande vir ao Brasil e não poder reencontrá-los. Nos últimos anos, têm-se multiplicado estudos sobre intelectuais franceses que viveram no Brasil no mesmo período. Estudam-se não somente sua influência no Brasil, como também a influência do Brasil em suas obras. Autores como Lévi-Strauss, Roger Bastide e Pierre Verger têm sido objeto de pesquisa acadêmica, de reedições e, muitas vezes, de primeiras edições. “Quanto a Braudel, creio que a tendência é a de crescimento de estudos críticos sobre o autor, na medida em que os campos da história da historiografia e da teoria da história estão se consolidando no Brasil, campos esses que não eram nada fortes nos anos 1990, quando fiz minha graduação. Vale dizer: há uma retomada mais reflexiva, um pouco diferente da antiga fonte de inspiração para novos ‘métodos’ e ‘abordagens’”, explica Henrique Estrada Rodrigues, professor da Universidade Federal de Ouro Preto, autor de artigo recente sobre o diálogo entre Braudel e Lévi-Strauss. Autor de uma tese de doutorado sobre Sérgio Buarque de Holanda, Estrada Rodrigues diz que a visão que se tem, hoje, da influência francesa no Brasil tem mudado. “Cada vez mais existem outras importantes referências intelectuais, como a alemã ou a inglesa, que relativizam um pouco a importância francesa, sem, claro, desmerecê-la. Isso se deve também a uma especialização cada vez mais acentuada dos programas de pós-

ROGER VIOLLET/AFP

Fernand Braudel em 1980: no Brasil conviveu com intelectuais, formou historiadores e até hoje fomenta pesquisas e ideias

-graduação, que começam a desencavar coisas muito específicas. Por exemplo: a associação entre Sérgio Buarque e a nova história francesa, muito difundida nos anos 1990, começa a conviver com estudos que apontam outras fontes de inspiração bastante diferentes ou mesmo antípodas, como a sociologia alemã, as leituras italianas do historiador ou as referências vindas da história literária”, exemplifica. Diversidade - Corrêa Lima diz que,

ante a abrangência da obra de Braudel – o mundo mediterrânico, a cultura material, os primeiros séculos do capitalismo, a França –, há muito ainda a ser estudado. E hoje, em que se interessa por outros temas como história da Igreja e diversidade sexual, a contribuição de Braudel continua bastante valiosa. “Ele ensina a identificar permanências e mudanças na vida coletiva e nas civilizações e a buscar um ‘concubinato’ entre diversos saberes. A perspectiva histórica é muito útil para enfrentar posturas intransigentes e para enxergar o novo que se avizinha”, afirma. Em uma resenha sobre o livro de Corrêa Lima, publicada na revista Carta Capital, o historiador Elias Thomé Saliba, professor da USP, elogiou as histórias

saborosas reunidas, a pesquisa meticulosa e a felicidade em documentar como o “distanciamento” experimentado aqui no Brasil se tornou um rito de passagem para a formação de Braudel. “Distanciamento” que resultaria do contato com outra realidade, diferente da sua. Absorvido pela pesquisa, localizada em outra época, Corrêa Lima afirma que também experimentou algo parecido. Certo dia, após passar várias horas conversando com a viúva de Braudel, teve um estranhamento ao sair à rua, num dia normal de primavera, com jovens, crianças e idosos circulando pelas calçadas. “Nada havia de especial. Entretanto tive a sensação de estar vindo de outro planeta, de um mundo que não tinha nada a ver com o que os meus olhos viam. Nunca havia tido esta sensação antes. O que me aconteceu foi estar tão absorvido em um passado distante no tempo e no espaço que o presente me causou um enorme estranhamento. Era como se eu retornasse de um arrebatamento”, recorda. “É claro que tudo isso é recriação do historiador a partir dos vestígios de que dispõe. Mas pode acreditar: a história tem uma força e um poder envolvente de nos transportar para mundos distantes, ainda que apenas através da imaginação.” ■ PESQUISA FAPESP 168 FEVEREIRO DE 2010 ■

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.. .. RESENHA

A exuberância da barbárie Estudo recupera pensamentos sobre a natureza brasileira Fernando Amed

A Natureza e cultura no Brasil (1870-1922) Luciana Murari Alameda Editorial, 2009 474 páginas R$ 50,00

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s discussões mais ou menos recentes acerca da teoria da história, especialmente em sua vertente anglo-americana, têm nos acostumado a um certo estado de impasse, como se não fosse mais possível conceber produtos de pesquisas que venham a nos mobilizar no exame de supostas evidências, dos preconceitos que se estabelecem no entorno de determinados conceitos e, enfim, no encetamento das suspeitas acerca das linearidades que vêm a compor a historiografia e a literatura. A esse respeito, o livro Natureza e cultura no Brasil (1870-1922), de Luciana Murari, traz contribuições para que percebamos os riscos da aderência irrefletida às últimas vagas de pensamento num mundo que se deseja globalizado. Tendo como suporte uma rica oferta de fontes, que variam “da prosa de ficção e não ficção, a crítica literária, a historiografia e o ensaísmo político e social”, a pesquisadora terminou por nuançar a utensilagem mental do campo intelectual brasileiro quando remetido às diferentes concepções acerca da natureza. A opção pelo recorte cronológico, como a autora aponta, também cumpriu a função de checagem quanto ao tipo de produção escrita que se fazia num momento ofuscado pelo aparato modernista – de produção e recepção – que se estabeleceu a partir das alusões ao ano de 1922. Assim, destoando de um coro que parece somente se mobilizar pelos marcos associados às vanguardas modernas e que, quando muito, faz concessões às obras de Machado de Assis, Joaquim Nabuco ou Euclides da Cunha, por entender que nelas já se encontra uma espécie de protomodernismo, Luciana Murari nos brindou com citações de autores abandonados pela rendição inconteste às linhas do tempo histórico ou literário.

É assim que podemos tomar contato com os escritos de Mateus de Albuquerque, Rodolfo Teófilo, Alberto Rangel, Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, Fábio Luz e Júlia Lopes de Almeida, dentre outros. Percebemos então que o conceito de natureza não se ancora em nenhuma baliza mais segura. A partir dos marcos cronológicos situados pela historiadora, observa-se que a natureza brasileira, de um ponto de vista mais tributário das concepções deterministas, já foi vista como fornecedora de um perfil diferenciado, o que demarcaria um certo caráter nacional. Outro tipo de sentimento é aquele em que a exuberância natural brasileira se coloca como um obstáculo quase que intransponível. Assim, Alfredo d’Escragnole Taunay, na Retirada de Laguna, parecia apontar que o nosso principal inimigo não eram os paraguaios liderados por Solano López, mas sim toda espécie de intempéries interpostas pela fauna e flora selvagens do Brasil. Percepção diferenciada, especialmente mais sofisticada e sutil, é a que perfizeram autores enfeixados no terceiro capítulo, que possui como subtítulo o sentimento de sertão na alma brasileira. Trata-se de reminiscências, no mais das vezes regionais, que buscavam recompor as qualidades existentes no modo de vida sertanejo. Finalmente, Alberto Torres, Monteiro Lobato e Júlia Lopes de Almeida oferecem exemplos quanto às projeções para o futuro. Ou seja, assimilaram as dificuldades consideradas inerentes à natureza brasileira, mas se colocaram como proponentes quanto ao que poderia ser feito para colocá-la a favor do progresso do país. A obra de Murari recupera um repertório necessário para que adentremos os complexos sentimentos embutidos no conceito de natureza, bem como lança luz à tensão ainda presente entre civilização e barbárie. A pesquisa fornece subsídios para que reflitamos sobre a permanência de orientações, que parecem se configurar na percepção de que temos um compromisso adiado com o futuro e que dependemos de opções corretas para que consigamos cumprir aquilo que nos parece predestinado. A quebra de continuidade para com as chaves históricas e literárias mais consagradas abre espaço para que recuperemos nossa identidade para com dilemas percebidos na virada para o século XX. Fernando Amed, doutor em história pela FFLCH da USP, professor da FAAP e do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e autor de As cartas de Capistrano de Abreu: sociabilidade e vida literária na belle époque carioca.

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.. .. LIVROS

Invenções de si em histórias de amor: Lota e Bishop

Moçambique: identidade, colonialismo e libertação

Nadia Nogueira Editora Apicuri 264 páginas, R$ 42,00

José Luís Cabaço Editora Unesp 360 páginas, R$ 49,00

Este trabalho, vencedor do Prêmio Arcoíris de Direitos Humanos, conta a história de amor de duas mulheres, Lota Macedo Soares e a poetisa Elizabeth Bishop, no Rio de Janeiro dos anos 1950 e 60. Dessa forma, busca resgatar o silêncio histórico a que estiveram submetidas as relações homoeróticas femininas, bem como desconstruir o discurso médico legal, que diagnosticou as mulheres envolvidas em tais relações como nocivas ao convívio social.

José Luís Cabaço entende as políticas de identidade como expressão de um desenho político subordinado a um poder que se pretende hegemônico. Além de se valer de autores como Althusser, Bourdieu, Hall e Derrida, o livro é um retrato da própria vivência colonial e das lutas de independência das quais Cabaço foi testemunha e agente, nos mostrando assim como foi forjada a identidade moçambicana.

Editora Apicuri (21) 2533-7917 www.apicuri.com.br

Machado de Assis e a crítica internacional Benedito Antunes e Sérgio Vicente Motta (orgs.) Editora Unesp 280 páginas, R$ 36,00

Os professores Benedito Antunes e Vicente Motta organizam neste livro uma reunião de alguns textos do simpósio “Caminhos cruzados: Machado de Assis pela crítica mundial”, realizado em 2008, no qual diversos estudiosos internacionais de Machado, como Roberto Schwarz, Jean M. Massa, K. David Jackson, Amina di Muno, entre outros, apresentaram suas críticas e olhares sobre o autor. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Sartre no Brasil: expectativas e repercussões

FOTOS EDUARDO CESAR

Rodrigo Davi Almeida Editora Unesp 136 páginas, R$ 32,00

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

São Paulo: metrópole das utopias Maria Luiza Tucci Carneiro (org.) Lazuli Editora/Companhia Editora Nacional 512 páginas, R$ 49,00

Os artigos reunidos neste trabalho versam sobre a história da repressão e da resistência na cidade de São Paulo. A partir da investigação de documentos do acervo do Deops/SP, historiadores reconstituem a trajetória política de personagens que, por “pensarem diferente” ou se distinguirem pela etnia, religião ou classe social, criaram estratégias de burlar a vigilância e a censura institucionalizadas. Lazuli Editora/Companhia Editora Nacional (11) 2799-7799 www.ibep-nacional.com.br

O império por escrito Leila Mezan Algranti e Ana Paula Megiani Alameda Editorial 608 páginas, R$ 78,00

Rodrigo Almeida aborda em seu livro os significados históricos e políticos da visita de Jean-Paul Sartre e Simone Beauvoir ao Brasil em 1960, que marcou uma geração de intelectuais, entre eles José Arthur Gianotti, Ruy Fausto e Bento Prado Jr..

O desafio deste livro é escrever uma história da leitura no mundo ibérico, quando a ideia corrente é a de que neste universo nunca houvera uma forte tradição de comunicação escrita. A pesquisa é feita a partir de documentos de papel fundamental na difusão dos valores imperiais.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Alameda Editorial (11) 3012-2400 www.alamedaeditorial.com.br

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... FICÇÃO

… ssssssss

Celso Mauro Paciornik

E

nte se expande em inquieta exultação. Escoa o tempo ondulante aos solavancos por extensões dobras refluxos. A emanação se arroja para fora para longe a bolha esferoidal infla inexoravelmente insuflada pelo avanço irreprimível agora bem mais rápido que a expansão geral das coisas para o princípio e o fim, o centro e o extremo. Ente reordena persistentemente as massas esvoaçantes de sua emanação sobrepondo subpondo envolvendo contrapondo entretecendo dados equações sensações memórias teorias significados em novas combinações estimulantes prazerosas aflitivas inquietantes. Emanar preenche expande excita apavora engolindo tempos e espaços e outras tantas coisas inapreensíveis rumo ao extremo e ao âmago da expansão cósmica. Emanar é a maneira inelutável, a potência em plenitude carregada de probabilidades possíveis e impossíveis incidentes acasos encontros, insuflada pelo sopro primitivo da rocha. A memória da emanação revasculha incansável os turbilhões do acúmulo onipresente; incontrolável sensação de ancestral riso infantil percorre as reverberações do avanço. Ente sente. Ente infere compara deduz separa recombina noções certezas lembranças harmonias em novas percepções e possibilidades, as memórias de pó e vento e pedra e fonte se interpenetram agora com sobressaltos primais dos primeiros viventes espasmos multiplicadores da bactéria, lágrimas uivos espantos de primitivos êxtases, dúvidas angustiantes de primeiras inferências, vento assobiando em frestas, marulho de águas, farfalhar de folhas, estrondos de vulcões, tormentas silvos rugidos grasnidos trinados combinam-se e transformam-se com novas vibrações em harmonias mais e mais extasiantes. Ente condensa na fina crosta inconsútil da bolha a

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memória absoluta das eras em todos seus infinitos rodeios enlaces desenlaces. Expansão se compraz comove e infla com a cósmica carga da acumulação abissal. Nada que foi está ausente, tudo que é se distende retesa no esforço condensado da busca. Quantidades ínfimas e cósmicas, abstrações voláteis e densas, certezas sólidas e fugazes, dúvidas atrozes, credos inconstantes e impotentes se recombinam e reconfiguram no avanço incessante, mistérios engendrando mistérios, a memória organizada do caos. Ente estremece sob os impulsos de um prazer muito antigo, feito o espanto no achado de uma solução de problema excruciante e o defrontar-se nos solavancos da expansão com as demais emanações no cosmos. Uma recordação insistente de matéria mortal entremeia o deleite das equações se propondo e se resolvendo nas urdiduras do tempo. Razão virou crença e vice-versa; matéria continha limitava e expandia e transmutava energia e espírito em novas singularidades vitais. Angustiante mistério de uma suspeita de explosão primordial se enovela agora com novas provisórias certezas sobre antes e depois do princípio singular, antes do princípio, depois do fim, o que é o meio, é meio? Agora. A emanação se aferra ao presente da jornada inelutável. Outras emanações no percurso traziam bagagens parecidas apenas apreensíveis, o espaço temporal de cada uma favorecia enleios e trocas provisórias e depois se rompiam e desfaziam-se os enlaces mas a emanação persistia ainda que levemente alterada. Ente sente. Emanar é um perpétuo reordenar de lembranças e sensações noções certezas dúvidas lembranças longínquas de um balé de rochas celestes rodopiando em torno de um astro radiante, de moléculas inertes transmutando-se em moléculas instáveis irrequietas, em criaturas vitais

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NASA J.P. HARRINGTON (U.MARYLAND) AND K.J. BORKOWSKI (NCSU)

e angustiadas numa busca incessante de perpetuidade, engendrando formas meios sistemas controles domínio e expansão, destruindo e reerguendo grupos e moradas, crescendo minguando adaptando-se depurando conflitos em acomodações e acertos, escapando à extinção prognosticada do rochedo natal para outras rochas cada vez mais distantes até o triunfo provisório mas estável de ente – condensação expansiva da matéria pensante da rocha primitiva natal emanando agora mais rápido que a expansão celestial. Ente sente. Em alguma porção da emanação emerge uma noção de orgasmo. A busca já não parece infinita eterna interminável. A busca é apenas compulsão essência mesma da emanação expansiva, as fronteiras do encontro supremo parecendo se acercar perigosamente. A superfície tensa da emanação estremece. Ente ausculta a iminência de um desfecho de busca, de um confronto com o limiar da expansão. Agora ente abarca na perpétua emanação a tão ansiada busca do extremo, o confronto com o limite, a angústia natural da plenitude potente se faz pavor do encerramento da busca, se confunde com o persistente deleite da expansão. Razão e fé matéria e energia abstração e concretude alegria e dor espaço e tempo ordem e caos ser e não ser materialidade e transcendência, dicotomias espalhadas nos desdobramentos pregressos do ente se entrelaçam e se dissipam na iminência do desfecho. A bolha se distende à beira do paroxismo do estouro. A emanação se pergunta o que será a busca como surdamente já vinha se perguntando desde a consciência primordial na caverna dos tempos até o surgimento do ente. Uma algaravia irreprimível de noções se entretece nas vastidões rarefeitas das entranhas da emanação expansiva em vibrações desarmônicas. Uma algaravia arrebatadora

ecoa desde o vazio central da expansão até a superfície tensa inconsútil do avanço. sens, sense, senso, sentido, sinn, , , , , , smysl, fornuft, zin...

De repentino horror ente estremece na suspeita da proximidade do limiar da expansão. Intuição lhe instiga uma suspeita de vazio, um vazio onde sentido não se cria em nenhuma acepção, o enfim da busca seria o fim da emanação da expansão o estouro ou esvaziamento inevitável da bolha, memória absoluta do sopro interior. Das revoltas vastidões vibrantes das entranhas da emanação, na irremissível solidão da sobrevivência, antigo eco de antiquíssima estrofe de um consultor de números e estrelas ecoando vibrações musicais inda mais ancestrais reverbera como um augúrio. With Earth’s first Clay They did the Last Man’s knead, And there of the Last Harvest sow’d the Seed; And the first Morning of Creation wrote What the Last Dawn of Reckoning shall read. * * [O último dos mortais fê-lo a Argila primeira./ Da última safra então lançou-se a sementeira./ E escreveu o primeiro Albor da Criação/ O que lerá um dia a Aurora derradeira]. Tradução de Jamil Almansur Haddad do rubai (quarteto) atribuído a Omar Khayyam (c.1040 – c.1125) e traduzido para o inglês pelo poeta Edward Fitzgerald (1809-1883).]

Celso Mauro Paciornik é formado em Letras pela USP e tradutor de obras de William Faulkner, Joseph Conrad, Daniel Defoe, entre outras. PESQUISA FAPESP 168

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CONCURSO: Instituto Brasileiro de Museus VAGAS PARA O MUSEU LASAR SEGALL

? 1 Museólogo ? 1 Técnico em assuntos educacionais ? 1 Analista administrativo inscrição: até 23 de fevereiro www.funcab.org/site/index.php

Comitê de Busca para o cargo de Diretor Geral do CNPEM O Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), anteriormente denominado Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS), anuncia a formação de um Comitê de Busca para o cargo de Diretor Geral da Instituição. Integram o Comitê de Busca: Rogério Cezar de Cerqueira Leite - Presidente do Conselho de Administração e do Comitê de Busca Carlos Henrique de Brito Cruz - Diretor Científico da FAPESP Celso Pinto de Melo - Presidente da Sociedade Brasileira de Física e Professor Associado do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco João Evangelista Steiner - Professor Titular do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP Pedro Wongtschowski - Membro do Conselho de Administração Os candidatos interessados devem enviar currículos para Rui Henrique Pereira Leite de Albuquerque, secretário executivo do Comitê de Busca, pelo e-mail albuq@abtlus.org.br. As entrevistas com os candidatos começam dia 15 de fevereiro deste ano. Com sede em Campinas, São Paulo, o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), do Ministério da Ciência e Tecnologia, congrega o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE) e o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio).

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