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Coordenação geral Didi Rezende Editores Afonso Luz Sergio Cohn Editor de arte Tiago Gonçalves Imagem da capa Patricia Gouvêa Produção Tay Lopes Revisão Evelyn Rocha Barbara Ribeiro Tiragem 20 mil exemplares Contato editorial@azougue.com.br Número 3 | outubro de 2013 ISSN: 2318-1192

Caro leitor, seguimos com a nossa NAU por mares cada vez mais agitados. O terceiro número de NAU começa com um texto sobre mídia e política, retomando a imprensa alternativa dos anos 1970, as rádios livres e os fanzines surgidos a partir da década de 1980 para enriquecer a reflexão sobre as manifestações atuais na área. O entrevistado é Guilherme Wisnik. Arquiteto e ensaísta, Wisnik é, ao lado de Lígia Nobre e Ana Luiza Nobre, o curador da Bienal de Arquitetura de 2013. O pôster central é um poema de Alberto Pucheu, “Poema em vão”, com uma colagem original de Ferreira Gullar. NAU traz ainda o já antológico ensaio “O que é um coletivo”, de Cezar Migliorin, e uma matéria sobre duas editoras artesanais que estão realizando trabalhos de ponta: Cultura e Barbárie e Sol Negro. Por fim, seguimos singrando os mares ao lado de Caronte, a barqueira do amor, do grande Rafael Campos Rocha. Boa navegação!

Sumário Mídia e política A Internet: uma descoberta antediluviana? O que é um coletivo | Cezar Migliorin Pôster | Alberto Pucheu Entrevista | Guilherme Wisnik Por um contra-mercado editorial Vozes&Visões | Editora Paratodos Caronte | por Rafael Campos Rocha

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Revistas alternativas dos anos 1970. Coleção pessoal de Sergio Cohn.

mídias e política Nem todas as mídias se transformam em arte. Como lembra o crítico Francisco de Almeida Salles, o cinema criou uma linguagem própria, adquiriu um status de arte, mas o rádio e a imprensa são até hoje mais reconhecidos como técnicas e meios de difusão de informação e outras manifestações artísticas do que como artes autônomas, embora tenham conseguido em diversos momentos atingir elevados níveis de invenção de linguagem. A disseminação da Internet como uma mídia cada vez mais central no mundo contemporâneo, acontecida nos últimos 20 anos, traz de volta essa questão – se com ela germinará uma linguagem artística própria, será um híbrido ou apenas uma nova forma de divulgação de arte e informação, com os seus riscos e potencialidades. Mas, se apenas algumas mídias viram arte, todas elas são naturalmente políticas. Normalmente utilizadas como forma de manutenção do poder, através da concentração em poucos agentes e empresas, capazes de constituir um discurso afinado com o establishment. Porém, de tempos em tempos, os dispositivos de mídia são tomados de assalto por iniciativas independentes, que possibilitam o aparecimento de discursos outros, dissidentes. Se ficarmos apenas no Brasil dos últimos 50 anos, podemos falar da imprensa alternativa, das rádios livres e dos fanzines, como exemplos de apropriações livres de técnicas tradicionais de mídia. Iniciativas essas que valem a pena serem repensadas, num momento em que o meio digital, através da Mídia Ninja e outras propostas, incita salutares debates sobre as possibilidades de uso das novas tecnologias para a criação de narrativas e de meios de difusão de informação independentes. Existem claros diferenciais entre as intervenções na rádio e na imprensa, como aconteceram nas décadas anteriores, e as novas

possibilidades no meio digital. A primeira delas está na própria natureza da nossa relação com o mundo digital, muito mais orgânica e profunda. Como diz Laymert Garcia dos Santos, no seu livro Politizar as novas tecnologias: “A impressão que se tem é que nos anos 1990 a tecnosfera, a segunda natureza, suplantou de vez a natureza, rompendo-se então a concepção puramente utilitária que tínhamos de tecnologia. Descobrimos que a potência das máquinas se exerce em todas as dimensões da vida de um modo muito mais extenso e intenso do que podíamos imaginar – seus efeitos colaterais, seus riscos, seus acidentes, estão também em toda parte. Sentimos que a nossa experiência é crescentemente mediada por elas e que o ritmo de nossa existência é cada vez mais modulado pela aceleração tecnológica. O acesso à tecnologia tornou-se tão vital que hoje a inclusão social e a própria sobrevivência passam obrigatoriamente pela capacidade que indivíduos e populações têm de se inserir no mundo das máquinas e de acompanhar as ondas da evolução tecnológica”. Outro diferencial é a possibilidade de sustentabilidade de projetos no meio digital. A imprensa alternativa dos anos 1970 conseguiu, em alguns dos seus veículos, comercializar tiragens altas (algumas vezes chegando a dezenas de milhares de exemplares por edição) e assim sustentar a sua equipe de produção, algumas vezes por anos. Mas precisava lidar com os meios tradicionais de distribuição, o que criava entraves e custos. As rádios livres, por sua natureza ilegal, não eram capazes de conseguir anunciantes que possibilitassem rendas, e eram feitas por amadores. Por isso o seu famoso lema, em resposta ao título “rádios piratas”, dado pelos meios tradicionais – “piratas são os outros, nós não estamos atrás do ouro”. Assim como os fanzines, que raramente conseguiam algum anunciante (e, se conseguiam, dificilmente eram efetivamente pagos pelos anúncios). O meio digital trouxe algumas alternativas interessantes para a remuneração dos conteúdos disponibilizados. Uma delas é o crowdfunding, a captação de recursos através da doação prévia de pessoas interessadas no projeto, normalmente com contrapartidas. Outra possibilidade é a justa remuneração, o pagamento por parte do consumidor do valor que este considera válido pelo produto ou serviço. O principal paradigma quebrado pelo meio digital é a diminuição da necessidade de intermediação na distribuição de conteúdos e captação de recursos, criando novas possibilidades de sustentação dos projetos independentes. Para se entender a importância dos recursos diretos na constituição de mídias livres, é importante perceber que a dificuldade de captação de recursos pela publicidade sempre foi um impeditivo para a sobrevivência dessas iniciativas a longo prazo. Em uma entrevista

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Os fanzines punks da periferia paulista do começo dos anos 1980 ganharam projeção internacional.

A necessidade de máscaras na Rádio Livre: O Sombra da rádio Xilik. Foto de Cláudia Levental, 1985.

de 1977, o editor Raimundo Pereira, que participou de importantes jornais alternativos, como Movimento e Opinião, fala claramente sobre isso: “Um ponto importante é que por terem um programa político, e por serem formados por pequenas empresas, os jornais alternativos não têm muita ou nenhuma publicidade. Enquanto um jornal como o Estado de S. Paulo ou uma revista como a Veja têm 80% da receita proveniente da publicidade (quando se fala de publicidade, temos que entender que é o grande capital que anuncia), os jornais de imprensa nanica não têm publicidade, e sua receita é praticamente de banca. Daí o nome ‘imprensa do leitor’, pois é sustentada fundamentalmente por ele”. Em outros pontos, as questões que envolvem os projetos em meio digital e as experiências de mídia livre anteriores são muito similares. Um exemplo disso pode ser visto se nos debruçamos sobre um texto hoje de referência, o importante prefácio de Felix Guatarri para o pioneiro livro Rádios livres, orga-

nizado em 1985 por Arlindo Machado, Caio Magri e Marcelo Masagão. Guatarri, que atuou fortemente no incentivo da criação de rádios livres no país, a partir da sua visita em agosto de 1982, afirma nesse texto que “as primeiras rádios livres do Brasil foram acolhidas com certa reserva. Alguns recearam que sua aparição pudesse servir de pretexto para uma repressão violenta; outros só conseguiram ver nelas um replay dos movimentos dos anos 1960. É bom que esteja claro, antes de mais nada, que o movimento das rádios livres pertence justamente àqueles que o promovem, isto é, potencialmente, a todos aqueles – e eles são uma legião – que sabem que não poderão jamais se exprimir de maneira conveniente nas mídias oficiais”. E continua: “As rádios livres representam, antes de qualquer outra coisa, uma utopia concreta, suscetível de ajudar os movimentos de emancipação desses países a se reinventarem. Trata-se de um instrumento de experimentação de novas modalidades de democracia, uma democracia que seja capaz não apenas de tolerar a expressão das singularidades sociais e individuais, mas também de encorajar sua expressão, de lhes dar a devida importância no campo social global. Isso quer dizer que as rádios livres não são nada em si mesmas. Elas só tomam seu sentido como componentes de agenciamentos coletivos de expressão de amplitudes mais ou menos grandes. Elas deverão se contentar em cobrir pequenos territórios; poderão igualmente pretender entrar em concorrência, através de redes, com as grandes mídias: a questão fica aberta. O que, no meu modo de ver, a resolverá é a evolução das novas tecnologias. As rádios livres, e amanhã as televisões livres, são apenas uma pequena parte do iceberg das revoluções midiáticas que as novas tecnologias da informática e a cibernética nos preparam. Amanhã, os bancos de dados e a cibernética colocarão em nossas mãos meios de expressão e de concentração por enquanto inimagináveis. Basta que esses meios não sejam sistematicamente recuperados pelos produtores de subjetividade capitalista, ou seja, as mídias ‘globais’, os manipuladores de opinião, os detentores do star system político. Tratase, em suma, de preparar a entrada dos movimentos de emancipação numa era pós-mídia, que acelerará a reapropriação coletiva não apenas dos meios de trabalho mas também dos meios de produção subjetivos”. Alguns pontos colocados então, praticamente 30 anos atrás, são cruciais para entender os desafios presentes. O principal deles é que, se hoje o avanço tecnológico permite o alcance global das informações disponibilizadas localmente (o “glocal”, para usar o termo popularizado por Gilberto Gil), ainda há o embate se as novas iniciativas de mídia livre irão concorrer com as já estabelecidas ou não. Ou seja, se irão fazer o esforço de profissionalização, de constituição de uma base permanente, ou se continuarão como uma zona autônoma temporária de mídia informativa. A pressão em torno dessa questão é imensa: se, de um lado, cobra-se a falta de uma linguagem consolidada dessas novas mídias, por outro as demandas e riscos de uma profissionalização, como a criação de uma organização interna, a distribuição de funções,


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Ao lado, hq de Laerte em 1991.

Usos alternativos de objetos prontos: se a Mídia Ninja utiliza um carrinho de supermercado como unidade móvel de transmissão, em 1985 o tansmissor da Rádio Xilik já havia sido montado em uma panela.

a constituição de regimentos, são vistos como a perda da natureza livre da iniciativa. O debate ganha tons ainda mais complexos quando observamos o cenário atual, de crise das mídias tradicionais. Nesse sentido, a situação é similar ao momento em que surgiram as publicações alternativas dos anos 1970, que respondiam ao fechamento de possibilidades dentro dos veículos tradicionais, por conta do regime de exceção que o Brasil vivia então. Em consequência, as iniciativas não eram apenas para construção de vozes de resistência, mas também de nichos de mercado para jornalistas perseguidos pela censura. Desta forma, tabloides como Opinião, Movimento e Versus, de cunho altamente político, e mesmo revistas como Bondinho, de cunho mais alternativo e cultural, precisaram se constituir como empresas e buscar a remuneração dos seus funcionários. Já as iniciativas de rádios livres e fanzines começaram a acontecer no Brasil em paralelo com a abertura política, e com a recolocação dos jovens profissionais no mercado já consolidado. Assim, precisavam se preocupar menos com a

questão da subsistência financeira da equipe. De qualquer forma, um olhar atento sobre a imprensa alternativa dos anos 1970 mostra que, se precisaram constituir uma estrutura mais fixa e tradicional, essa estruturação não impediu a liberdade de conteúdo. A diferenciação entre os jornais alternativos e o fanzine não para por aí. Se os jornais alternativos dos anos 1970 traziam uma abertura para uma linguagem mais irreverente, as suas linhas editoriais seguiam estruturas mais próximas aos veículos tradicionais, com reportagens, entrevistas e colunas estabelecidas de forma organizada, dividida em diferentes editorias. Já o fanzine trouxe uma subversão total da estrutura de publicação: matérias se confundiam, a diagramação explodia por dentro e por fora de qualquer mancha de texto pré-estabelecida. Para além da linguagem visual, a quebra de qualquer hierarquização editorial: pautas se confundiam, sendo constituídas de forma afetiva por seus editores. Desta forma, textos irreverentes, informativos e opinativos sobre temas variados se misturavam criando um mosaico livre e abrangente do universo de interesses dos editores. Qualquer semelhança com o que se estabeleceria dentro das redes sociais na Internet não é mera coincidência: o fanzine foi certamente um precursor da linguagem que se estabeleceria na cultura digital. A semelhança entre os fanzines e a cultura digital não param por aí: em ambos os casos, o compartilhamento foi a forma encontrada para a circulação de conteúdos. No caso dos fanzines, através da constituição de uma rede de realizadores, que enviavam entre si suas produções. Como a comercialização é precária, com dificuldade em criar pontos de vendas, essa rede acabou se tornando a forma prioritária de acesso a esse conteúdo. E também, ao criar uma linguagem baseada na experiência pessoal, quebrando as barreiras entre jornalismo e ficção e retomando, de forma irreverente, as experiências do new journalism, os fanzines estabeleceram algumas das possibilidades que hoje podem ser utilizadas como constituição de uma renovação na mídia, frente as crises atuais. Em um belo texto publicado recentemente, o jornalista e escritor Ronaldo Bressane fala sobre a possibilidade de um “pós-jornalismo”, e declara: “A saída? Investir no texto. Investir na autoria. Investir no estilo. Investir na via de mão-dupla para apurar a informação. Desvendar novas maneiras de difusão. Procurar modos inovadores de bancar o pós-jornalismo – dos editais ao crowdfunding. Procurar maneiras novas de criar pautas, de descobrir pautas, de formatar a narrativa dos novos dias ao tripé que sustenta o texto de não ficção: o perfil, a reportagem e a pensata. E, acima de tudo, investigar como as técnicas da ficção – conto, crônica, romance, poesia – podem magnificar o alcance, a potência e a criatividade do pós-jornalismo”. Lembrando sempre que o uso de diferentes plataformas – o digital, o papel, o audiovisual – dificultam a cooptação e o controle dessas iniciativas por empresas ou governos. E de que a crise, sempre, é um momento propício para a invenção.


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A INTERNET: UMA DESCOBERTA ANTEDILUVIANA? Lembro como ouvi falar da Internet pela primeira vez. Foram notícias irônicas de jornal sobre um furacão internético completo, cuja missão era arrasar a América. No entanto, tinha-se a impressão de que se tratava de assunto não apenas da moda, mas realmente moderno. Esta impressão se desvaneceu muito rápido, quando também tivemos ocasião de acessar a Internet. Naturalmente, a princípio ficava-se maravilhado e se perguntava de onde procediam todas aquelas informações, mas logo tal admiração foi substituída por outra: perguntava-se que tipo de informações procediam do éter. Era um triunfo colossal da técnica, poder colocar por fim, ao alcance do mundo inteiro, uma valsa vienense e uma receita de cozinha. Como quem diz com toda a segurança. Coisas da época, mas com que objetivo? Recordo uma velha história em que se queria demonstrar a um chinês a superioridade da cultura ocidental. O chinês perguntou: “que tendes?” Responderam-lhe: “Estradas de ferro, automóveis, telefone”. “Sinto ter que lhes dizer – replicou o chinês cortesmente – que isso nós já tratamos de esquecer”. No que diz respeito à Internet, tive, em seguida, a impressão terrível de que é uma mídia incrivelmente velha, que ficou relegada ao esquecimento pelo Dilúvio Universal. Temos o velho hábito de ir sempre ao fundo de todas as coisas, para saber das vantagens que podem possibilitar, mesmo quando se trata dos risos mais sem graças da rua. Fazemos um consumo descomunal de coisas cujas vanta-

Bertoldo Brecha

gens podemos examinar. E temos poucas pessoas dispostas a renunciar a elas, como neste caso da Internet. O fato é que sempre nos deixamos levar apenas pelas possibilidades e nela emperramos. Estas, que vocês vêem se levantar por onde quer que seja, têm colhido de surpresa, sem dúvida, a uma burguesia completamente esgotada, gasta por façanhas e más ações. Enquanto tal burguesia as tiver na mão, serão inabitáveis. A burguesia as avalia simplesmente levando em conta as perspectivas que, logicamente, possam oferecer. Eis a causa da supervalorização exorbitante de todas as coisas e de todas as organizações que encerram “possibilidades”. Ninguém se preocupa com os resultados. Restringem-se simplesmente às possibilidades. E isto não é bom. Se eu acreditasse que a burguesia viveria ainda cem anos, estou convencido de que estaria, também, cem anos esbarrando a propósito das imensas possibilidades que encerra, por exemplo, a Internet. Aqueles que valorizam a Internet, fazem-no porque vêem nela uma coisa para a qual se pode inventar “algo”. Teriam razão no momento em que se inventasse “algo” para o qual se tivesse que inventar a Internet, se esta já não existisse. Nestas cidades todo tipo de produção artística começa com um homem que vai ao artista e lhe diz que tem um salão. Ato seguinte, o artista interrompe o trabalho que havia empreendido para outro homem que lhe dissera que tinha um megafone. Pois a profissão do artista consiste em encontrar algo que justifique logo a construção feita sem refletir de um salão ou um megafone. É uma profissão difícil e malsã ao mesmo tempo. Desejo vivamente que esta burguesia, além de ter inventado a Internet, invente outra coisa, um invento que torne possível estabelecer de uma vez por todas o que se pode transmitir pela Internet. Gerações posteriores teriam, então, a oportunidade de ver, assombradas, uma casta, ao mesmo tempo tornando possível dizer a todo o globo terrestre o que tinha que dizer e fazendo possível, também, que o globo terrestre visse que nada tinha a dizer. Um homem que tem algo a dizer e não encontra ouvinte está em má situação. Mas estão em pior situação ainda os ouvintes que não encontram quem tenha algo para lhes dizer.


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Em 2009, entrevistando o André Lemos sobre cultura digital, ele se lembrou do texto escrito por Bertold Brecht em 1927, como parte do ensaio “Teoria do rádio”, e como este texto era atual – inclusive quando Brecht, um pouco além, recomenda que os diretores das estações deixem a criação o mais livre possível e nas pontas, para o seu pleno desenvolvimento. Corri atrás do texto, e decidi fazer a brincadeira presente, publicada pela primeira vez no jornal Atual, em 2009, apenas trocando as referências ao rádio pela Internet. Utilizei para isso a tradução de Regina Carvalho e Valci Zuculoto, no excelente livro Teorias do Rádio – textos e contextos, organizado por Eduardo Meditsch para a Editora Insular. E quem há de dizer que não é incrivelmente pertinente? [Sergio Cohn]


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o que é um coletivo Quando diversos grupos de cinema e audiovisual passam a se denominar coletivos, quando a Coca-Cola lança uma campanha na Internet estimulando os consumidores a fazerem parte do Coletivo Coca-Cola, quando os funcionários do Ministério da Cultura avisam que irão incentivar os coletivos ou quando, em debates públicos, cineastas e artistas dizem que não aguentam mais falar em coletivos, é hora de desacelerarmos um pouco para tentar tracejar minimamente o que seja um coletivo.

Multiplicidades Às vezes é preciso começar pelo óbvio. Um coletivo é mais que um. Certo, acho que até aí há consenso – por mais que um sujeito sozinho possa ser muitos. Entretanto, ao colocarmos assim, restam outras variáveis importantes. Um coletivo é mais que um e é aberto. Essa é uma primeira característica que evita que tratemos os coletivos como um grupo, como algo fechado; melhor seria dizer que um coletivo é antes um centro de convergência de pessoas e práticas, mas também de trocas e mutações. Ou seja, o coletivo é aberto e seria, assim, poroso em relação a outros coletivos, grupos e blocos de criação – comunidades. Tal prática coletiva não significa que um coletivo se crie simplesmente com todos produzindo junto: ele se cria porque pessoas compartilham uma intensidade de trocas maiores entre elas do que com o resto da sociedade, do que com outros sujeitos e práticas e que, em um dado momento, encontram-se tensionados entre si. O coletivo, assim, é uma formação não de certo número de pessoas com ideais comuns, mas de um bloco de interesses, afetos, diálogos, experiências aos quais certo número de pessoas adere, reafirmando e transformando esse mesmo bloco. Um coletivo não faz unidade, mas é formado por irradiação dessa intensidade, um condensador, agregador de sujeitos e ideias, em constantes aproximações, distanciamentos, adesões e desgarramentos. Um coletivo é, assim, fragilmente delimitável seja pelos seus membros, seja por suas áreas de atuação e influência, e seus movimentos – um novo filme, um festival, uma intervenção urbana ou política – não se fazem sem que o próprio coletivo se transforme e entre em contato com outros centros de intensidade. Certo, toda criação é coletiva, quando criamos estamos em diálogo; desde os gregos o indivíduo só é concebível em relação. Não há página em branco, a começar pela língua e pela própria página – invenções coletivas. Toda criação é um diferenciar-se, uma operação de montagem com o que o mundo nos dá. Entretanto, não é com tudo e com todos que estabelecemos o mesmo nível de interação e troca. Nesse sentido, um coletivo é um campo de troca privilegiado,

cezar migliorin

uma concentração de encontros de intensidade distinta.

Desmesuras Podemos ainda afirmar que, em termos de desejo, investimento, criação, um coletivo está sempre em estado de crise, uma vez que seus membros não se articulam em função de uma institucionalidade, de um contrato ou de uma posição na cadeia produtiva, mas por conta de uma afinidade que se concretiza em ações em tempos variados. Um filme, um roteiro, uma obra, uma ideia. A crise constante é assim determinada pela heterogeneidade necessária e pelas múltiplas velocidades que constituem um coletivo. E a manutenção da intensidade que atravessa um coletivo depende da possibilidade de suportar e fomentar a coabitação de velocidades distintas, presenças inconstantes e dedicações não mensuráveis em dinheiro ou tempo, uma vez que são as intensidades transindividuais que garantem a força irradiadora do coletivo. Por exemplo, um sujeito ou gesto que pouco se faz presente fisicamente pode ser decisivo para a manutenção do coletivo como intensidade de conexão com outros coletivos, forças e criações, permitindo a participação em redes que os transcendem. A instabilidade essencial de um coletivo é estabelecida por investimentos e experiências não mensuráveis, e por isso um coletivo precisa conviver com regimes de trabalho não pautados pela lógica da medida – seja ela temporal ou econômica. Você trabalhou menos que eu, você ganhou mais que Fulano, você não consertou o vazamento. Sim, às vezes a manutenção de um coletivo se assemelha àquela de uma casa. Essas acusações negam o coletivo não no “trabalhou” ou no “ganhou”, mas na insistência no você – em relação ao vazamento, como nos lembra Gilles

Imagem ao lado: vídeoinstalação Bronze Revirado, de Pablo Lobato, 2011.


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Deleuze, todo sistema hidráulico depende da fluidez do líquido e das paredes dos canos.1 Frequentemente um coletivo pode ter um líder ou um sujeito que ganha muito dinheiro ou alguém de grande destaque em sua área. Esse ponto fora da curva só se estabelece uma vez que ele entra em uma narrativa que atravessa o coletivo – o sucesso financeiro, a lógica da celebridade – e passa a operar dentro de uma hipersignificação dessa narrativa no interior do coletivo. As crises dos coletivos são, frequentemente, formas de incorporar narrativas externas – que também o constituem – sem que essas narrativas estandardizem a tensão do múltiplo que configura um coletivo. A crise se configura como um processo de desmanche da hipersiginificação das narrativas duras. A lógica do sucesso que está em tudo e hierarquiza uma empresa, uma família, uma sala de aula torna-se hipersignicante em um coletivo se ele se verticaliza e perde a intensidade de conexão. A crise torna-se uma forma de fazer o ponto fora da curva se assemelhar ao líder que Pierre Clastres descreve em seu livro A sociedade contra o Estado. Em determinada tribo estava nítida a necessidade de haver um chefe. Sua incumbência era bastante clara: como todo chefe, ele deveria falar para a tribo. Todos os dias, no mesmo horário, o chefe se deitava em sua rede e falava. Entretanto, ninguém o escutava. As crianças brincavam em volta e os adultos seguiam em seus afazeres. Se porventura um desses chefes se tornasse um orador escutado e suas palavras começassem a significar na tribo, ele logo era substituído. Lembremos ainda os lobos caçadores de Elias Canetti, citados por Deleuze:

1 Sobre os sistemas hidráulicos, ver “Tratado de nomadologia: a máquina de guerra”, em DELEUZE e GUATTARI, 1997b.

“Nas constelações cambiantes da matilha, o indivíduo se manterá sempre em sua periferia. Ele estará dentro e, logo depois, na borda, na borda e, logo após, dentro. Quando a matilha se põe em círculo ao redor de seu fogo cada um poderá ter vizinhos à direita e à esquerda, mas as costas estão livres, as costas estão expostas à natureza selvagem” (CANETTI, 1966 apud DELEUZE, 1997a: 45).

“Reconhece-se a posição esquizo, estar na periferia, manter-se ligado por uma mão ou um pé... Opor-se-á a isto a posição paranoica do sujeito de massa, com todas as identificações do indivíduo ao grupo, do grupo ao chefe, do chefe ao grupo; estar bem fundido com a massa, aproximar-se do centro, nunca ficar na periferia, salvo prestando serviço sob comando” (DELEUZE, 1997a: 45). Esse parece ser o frequente desafio dos coletivos. Quando um sai da curva, ou se torna o um desgarrado do múltiplo, é preciso inventar estratégias para que sua força pessoal retorne ao coletivo e a narrativa de um não se sobreponha ao todo. Cada linha reta, cada narrativa forte é atingida para logo ser abandonada, virar comédia no coletivo sem que a linha reta precise ser quebrada. Que o sucesso e o dinheiro não nos abandonem! Assim, quando um coletivo se dissolve, não há fracasso, a menos que a dissolução seja pela adesão a ordens que escapam às invenções do coletivo, às práticas dominantes que impossibilitarão tanto seu movimento quanto a existência dos indivíduos sós e associados, simultaneamente. O fracasso é a hipérbole da linha reta. O coletivo pode ser formado por uma série de indivíduos que, olhando para o fogo, para alguma centralidade, trazem todo um mundo nas costas. Diferentemente das pirâmides, não é na acumulação de blocos iguais que se dará a construção de algo, mas no encontro não hierarquizado dos mundos que trazemos nas costas. E são esses mundos que nos coletivos são mediados. Quando a filtragem dos mundos se dá de maneira dura e exterior aos coletivos, ele perde o sentido.

Atualizações Há uma pragmática dos coletivos. Eles se efetivam em ato, nas atualizações dos encontros que podem se dar das mais diversas formas: obras, filmes, seminários, livros, invenções simbólicas e econômicas. Quando destacamos o caráter processual de muitas obras feitas por coletivos, tal característica não se deve ao fato de serem eles grupos ou produtoras que se forjam apenas para a execução de algo, mas ao fato de haver, nessas obras, uma parte da intensidade de estar junto, com evidentes consequências para a estética das obras. Trabalho e vida se atualizam em obras, fundamentais em vários sentidos, mas nunca tomadas como o fim do coletivo. Estar junto, fazer, conectar, assim as obras são também contaminadas pela força do coletivo. Uma produtora produz filmes. No limite, um coletivo pode ou não produzir filmes, e se produz hoje pode deixar de produzir adiante. Quando a lógica dos coletivos ganha intensidade, para além da pura retórica conectivista ou coletivista, parece ser justamente o momento em que artistas, cineastas e documentaristas mais exploraram a ideia da obra como disparador de encontros, apostando em uma intensificação da comunidade por meio de instalações fílmicas, site specific, espacialização da música, desespecificação das artes e invenção de maneiras de ocupação do espaço. As obras são atravessadas por uma investigação em torno da


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organização entre corpos e imagens, normalmente não pautada por uma centralidade – roteiro, autor, artista. Jacques Rancière (2003) faz uma crítica veemente à grande parte da produção contemporânea em artes plásticas que opta por dispositivos relacionais e é tratada como arte essencialmente política. Rancière critica a falta de conflito e a tendência enfaticamente consensual das obras que se fiam em um “estar junto” da comunidade e em pequenos rearranjos do grupo. Assim, ele dirá que essas obras operam dentro de um regime ético – ou seja, meramente prolongando o ethos, as formas de ser da comunidade, sem comprometer a organização das partes da comunidade, aqueles que têm direito à fala e ao sensível. A revolução, que fica como um pano de fundo dessa crítica, efetivamente não tem lugar. Mas seria excessivamente redutor desconsiderar os efeitos micropolíticos de obras que não operam por amplas rupturas, mas são agregadoras e ao colocarem junto podem, sim, tocar o limite das harmonias possíveis quando se está em tensão com o real. Para isso, não basta estar junto, mas é preciso atualizar o contato: diferença que se encontra com a diferença. Nesse sentido, um coletivo se forja entre obras e pessoas com um braço estendido para o caos – um outro potencial.

Espaços Como os sistemas hidráulicos, os coletivos existem atravessados por fluidez e abertura, disponíveis a novas conexões, mas ao mesmo tempo dependem de pontos fixos de convergência. Caso contrário, a dispersão impede a configuração de um ponto de tensão, de um irradiador de intensidade. Esse ponto de convergência pode ser um espaço, um ambiente em que sujeitos, ideias e dispersões – de todas as naturezas – sexuais, alucinógenas ou depressivas – encontram a possibilidade de coexistir. O espaço se constitui frequentemente como catalisador e como razão para a manutenção do coletivo, mesmo quando nada se conecta, mesmo quando as redes não se fazem ou quando pouco se materializa. O espaço de um coletivo não é um ateliê nem um centro de negócios, mas tende a contemplar as dimensões econômicas, produtivas, criativas e festivas dos sujeitos que o constituem. Atravessado por várias ordens e presente em configurações de trabalho que não estão preestabelecidas, o espaço tende a ser ponto de convergência mas, no seu interior, a fluidez também é grande: novas paredes aparecem, outras caem; mudanças de sala, cadeiras que se deslocam de um lugar para outro, paredes abrigam ora uma imagem, ora outra, e o telhado ganha novos contornos para evitar o excesso de calor. Mesmo o espaço de convergência e consumo de comida, café e drogas tende a ser móvel, apesar de frequentemente ser aquele que resiste mais à transformação. E, claro, em algum lugar sempre há alguma infiltração ou goteira, ambas com sua beleza.

Redes Finalmente, os últimos anos nos apresentaram um tipo de mobilização em torno do cinema e do audiovisual que traz singularidades para a

história dos coletivos. Por questões tecnológicas, políticas, econômicas e subjetivas, vimos novas redes de produção e consumo se forjarem. Essas redes produziram muito e barato, baixaram filmes de todas as épocas, transformaram as políticas públicas, tensionaram o Estado, inventaram cursos de cinema e audiovisual em muitas cidades, multiplicaram os cineclubes e festivais, fizeram o audiovisual muito presente em ONGs, escolas e associações as mais diversas, inventaram revistas de crítica etc. Não se trata de valorar aqui esse processo, mas de perceber que a noção de coletivo reaparece em um contexto inalienável dessa configuração que atravessa as vidas e essas várias redes sociotécnicas. Diria, então, que uma das características dessas redes é estabelecer a conexão entre coletivos e que os coletivos aparecem como uma tentativa micropolítica de sincronia com movimentos de redes que os ultrapassam e para as quais eles são fundamentais. O coletivo é um ponto na rede e, também, ele próprio uma rede. Na construção de redes, acentradas, entre múltiplos atores em um espaço ilimitado, os coletivos aparecem como centros de concentração de ideias, pessoas, criação, forças de onde novas conexões podem sair para compor outras redes. Uma rede não é por princípio um valor, mas é difícil pensarmos um cinema, uma arte ou uma comunicação que se forje de maneira potente e democrática e não passe pela ampliação dessas redes de pessoas, tecnologias, políticas e criações. Ser afetado por um filme, como espectador ou como produtor, é passar a fazer parte de um mundo, de uma comunidade, dessas redes sociais e técnicas. Nesse sentido, sempre houve coletivos na história das artes, mas eles existem enquanto se diferenciam no tempo, enquanto estão engajados com o que varia no presente e com as possibilidades de atualização criativa, política e subjetiva que não se repetem no tempo. Coletivos existem nos atos que afirmam o presente, em operações que não encontram resposta em outro lugar, mas nas próprias práticas.

Referências CANETTI, Elias. Masse et puissance. Paris : Gallimard, 1966. Clastres Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo: Francisco Alves, 1978. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997a. v. 1. ____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997b. v. 5. RANCIÈRE, Jacques. Le destin des images. Paris: La Fabrique, 2003. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.


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Poesia foto: Caio Meira

Alberto Pucheu

O “Poema Ungulado (Poema em vão)”, de Alberto Pucheu, já se tornou um pequeno clássico da poesia contemporânea brasileira. Publicado originalmente em 1997, foi conquistando grandes admiradores, entre eles Ferreira Gullar, que realizou uma colagem especialmente para o poema, reproduzida aqui como pôster. Pucheu é autor de diversos livros de poesia, entre eles Na cidade aberta (1993), A fronteira desguarnecida (1997), Ecometria do silêncio (1999) e A vida é assim (2001), todos eles reunidos no volume A fronteira desguarnecida, de 2007. A sua poesia explora as fronteiras da poesia com o ensaio e a filosofia, e mais recentemente com as artes visuais. Como diz o poeta Caio Meira, “Indiscernibilidade é mais do que um leitmotiv tanto da poética quanto da ensaística pucheana: sua escrita, que aos poucos foi se tornando híbrida, é agora concebida, formal e intimamente, a partir de seu aspecto indiscernível. Ao intitular um livro de Escritos da indiscernibilidade, Pucheu já demarcava uma escrita em direção ao espaço da fronteira desguarnecida, não mais para escolher um dos lados da fronteira, mas para habitá-la, ou habitar essa terceira margem. Indiscernível deve ser lido no sentido mais forte do termo, o de coisas ou objetos cuja indiscernibilidade deriva do fato de serem intrínsecos, isto é, que só possam se dar de forma conjunta – quando um não pode ser concebido sem o outro. O poeta, aqui, não faz sentido sem o ensaísta e vice-versa”.


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Ferreira Gullar criou uma colagem de rinoceronte especialmente para o “Poema em vão (Poema ungulado)”. Como foi que isso aconteceu? No lançamento de Alguma parte alguma, do Gullar, encontrei sua companheira, a poeta Claudia Ahimsa, amiga que não via há muitos anos. Ela me disse gostar muito do “Poema em vão”, mas que não tinha o livro em que ele estava. Enviei para ela A fronteira desguarnecida. Semanas depois, ela me escreve contando que o Gullar ligou no momento em que ela acabava de ler o poema e, percebendo que ela estava chorando, perguntou o motivo. Cláudia leu o “Poema em vão” para ele ao telefone, chorando de novo. Gullar fez um longo silêncio e disse: “É bonito. De quem é?”. Ela contou, então, o encontro marcante que teve com um rinoceronte livre, num safári na selva nepalesa antes de se conhecerem. Dias depois, Gullar aparece com uma colagem de surpresa. Encantada, ela disse: “Faz um Rino pro Beto?” Dias depois, me convidaram para ir ao apartamento do Gullar e depois jantarmos. Quando chego lá, muita emoção, ao receber o lindo rinoceronte de presente e ver que ele tinha feito vários outros – era o livro A menina Cláudia e o rinoceronte se fazendo. Estar no meio do amor da Cláudia pelos rinocerontes, da emoção da Cláudia ao ler o poema, do amor entre a Cláudia e o Gullar, da amizade entre mim e a Cláudia, de tudo isso ter feito o “Poema em vão” causar um impacto no Gullar (poeta importantíssimo para mim, por quem nutro uma imensa admiração), de ter ganhado a maravilhosa colagem do Gullar e de ter, dessa forma, participado da eclosão de seu último livro é o maior presente que minha poesia já recebeu na vida. A sua poesia é marcada pela experiência das fronteiras. Como você vê a poesia hoje? A poesia é um lugar em que as forças estão lançadas: as da vida pessoal, da coletiva, da

natural, da vida simplesmente vida, do pensamento, dos afetos, das nuances entre o que pode e o que não pode ser dito, do cotidiano, do urbano, do arquivo, da tradição em potência, das ruas, do que a princípio nada tem a ver com a arte, dos restos, do inesperado, mas também dos clichês... Todas essas forças são de grande importância para se chegar à intensidade da poesia. Você está publicando um livro novo de poesia este ano, após um período longo sem publicar. Poderia falar um pouco sobre ele e o que difere dos livros anteriores? Apesar de a poesia reunida ser de 2007, o último poema havia sido escrito em 2002. O novo livro começou a se fazer após oito anos sem escrever uma linha do que se chama de poema. Nele, a cidade, presença marcante desde o começo de minha trajetória, ganha um contorno mais decisivamente político. Um dos poemas de que mais gosto tanto deste livro inédito quanto de toda a minha produção é “Poema para ser lido na posse do presidente”, publicado no “Prosa & Verso” no dia anterior ao primeiro turno da última eleição para presidente. Ele requeria essa dimensão pública no momento oportuno. Dele, se desdobraram três outros, partindo do terrorismo contemporâneo para desmontá-lo. Se a poesia reunida terminava com cinco poemas do universo do boxe, agora, cinco são oriundos do surfe de ondas gigantes, paradigmático para questões limítrofes da vida e da poesia. De modo para mim até então original, poemas que buscam dar voz à experiência amorosa de nossos dias se sobressaem. E os escritos no Vale do Socavão, onde tenho passado a maior parte do meu tempo. Penso que características habituais de minha poesia (como os poemas cada vez mais longos) estão ainda mais intensificadas do que anteriormente e abrindo novos campos.

dois poemas A fronteira desguarnecida Pela primeira vez, uma perna quer sair por minha boca, espremida. Um braço quer sair por minha boca. E o que ainda há de genitália, e o que ainda há de intestino, e o que ainda... Quer sair por minha boca. Uma parede, uma hélice, um vidro de janela querem sair por minha boca. Um carro acelerado, um pedaço de mar, um fuzil. Sob o testemunho pânico de alguns, uma desordem no corpo e nas coisas, uma fronteira desguarnecida entre a pessoa e a cidade.

Poema Ungulado, n° 2 Nenhuma gordura empanturra o corpo do rinoceronte, varando suas cercas. Nenhum couro escorrega em torno da carne. Nenhuma dúvida quanto a seu peso, quanto à coragem ou a sua tranquilidade. A armadura talhada nos músculos, os chifres, o rabo espanando qualquer súplica. Olhos para ver. Boca para comer. Patas para pisar. Orelhas para ouvir. O corpo... na medida exata do corpo. E o meu, tão distante, perdido pela multidão, pelos cantos das palavras alojadas, angaria faltas e excessos por onde anda: um guindaste se apropria de meu sexo, o combustível escasso para mais alguns quilômetros, o chifre crescendo pelo nariz. Quando o queixo começa a se empinar, guincho o que nunca escutei: a voz anginosa do rinoceronte.


poema de

Alberto Pucheu e colagem de Ferreira Gullar


poema em vão (ou poema ungulado)

O que dele me aproxima, me afasta. Anterior a mim e a Adão. Chifres alinhados do mistério perfurando desde o couro até a lua. Saco de cimento. Lama embrutecida. Trator. Tanque de guerra. Navio encalhado em terra seca. Nunca escutei sua voz, que do silêncio anuncia estrondos. Se vós pudésseis me escutar, ó santos, por dentro dos adornos das paredes, pediria a salvação. Não a minha. Não a do amor. Nem a da humanidade: fazei com que os rinocerontes vivam (com sua maravilhosa estranheza) ainda depois de o mundo acabar.



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guilherme wisnik entrevista por Afonso Luz e Sergio Cohn

[Afonso] Guile, você é, junto com a Lígia Nobre, o curador da edição de 2013 da Bienal de Arquitetura de São Paulo. Como foi o convite e como está sendo a experiência de curadoria? Eu recebi o convite através do presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, que é o responsável pela Bienal de Arquitetura. Até o começo dos anos 2000, havia uma parceria com a Fundação Bienal de São Paulo, mas depois houve um desentendimento, e agora a Bienal de Arquitetura é uma atribuição só da IAB já há algumas edições, embora ela tenha nascido dentro da Bienal de Artes. Desde a primeira Bienal, em 1951, existia arquitetura misturada com as artes, e em 1973 houve uma separação e foi criada a Bienal de Arquitetura, com organização simultânea da fundação Bienal e IAB. O mandato de presidência da IAB é de dois anos, então cada presidente é responsável por uma Bienal, caso se consiga manter a periodicidade. O presidente atual, Armênio Brito Cruz, foi quem me convidou. Quando aceitei o convite, carregava comigo a crítica a todas as Bienais anteriores que eu vi, sobretudo as últimas, muito decepcionantes. Mas quase todas tinham um problema básico, que era falta de diálogo com a sociedade. Eram exposições muito herméticas dentro dos vícios que existem na linguagem dos arquitetos. O que eu queria era expandir isso para um diálogo muito maior, trazer a discussão da arquitetura para um público amplo. E fazer isso significa expandir o interesse da arquitetura para a cidade, porque a cidade é interesse de todos, é onde todos vivem, e suscita questões como a cidadania, como melhorar a vida na cidade, o que implica a situação do bairro ou das ruas, as dinâmicas de exclusão

e de democracia. Então, uma das premissas era expandir da arquitetura para a cidade. A outra era tirar a exposição de um só lugar, específico e concentrado, e colocá-la em rede também na cidade. A cidade passaria a ser tema, conteúdo e forma, em uma exposição que se proponha a discussão sobre a cidade, mas também a experiência da cidade, simultaneamente. São Paulo é uma cidade muito interessante para isso, porque é muito agressiva e ao mesmo tempo muito rica, cheia de desafios que são também potencialidades. Havia o risco evidente de, ao fazer isso, criar um evento disperso. Tentamos combatê-lo escolhendo lugares conectados ao sistema de transporte de massa público da cidade, que é o metrô. Ao invés de uma exposição espalhada na cidade, passa a ser uma exposição em rede, que funciona em vários lugares que estão interligados pelo transporte de massa, tanto que será possível visitá-la de maneira articulada. Todo mundo tem dificuldade de circular em São Paulo, mas se fizermos esse roteiro através do metrô, conseguimos furar esse a priori que existe na mente das pessoas. E também tem uma crítica aos megaeventos que estão se tornando cada vez mais impraticáveis. Um evento do tamanho da Bienal de São Paulo é muito massacrante, difícil de dar conta. Mesmo se visitamos a Bienal de São Paulo em vários dias, pelo menos três, não conseguimos ver tudo. Qual diferença de ter que voltar três vezes para o mesmo lugar ou ir para quatro lugares diferentes? É até melhor ir para outros lugares, pois em um prédio só, por mais que você saiba que vai voltar outro dia, sai com uma sensação de derrota. Tem aquela coisa enorme e você não

deu conta de ver tudo. Ao passo que se você passeia pela cidade, é diferente. [Sergio] O uso da cidade como espaço expositivo já havia ocorrido anteriormente, recentemente na exposição de Hélio Oiticica, Museu é o mundo, e antes no ArteCidade, por exemplo. Essas experiências serviram de referência para você? Com certeza. Estive no evento que o Nelson Brissac está fazendo, chamado ZL Vórtice, e comecei minha fala rendendo a homenagem à cidade nesse sentido. Boa parte do trabalho que eu faço, do interesse que eu tenho no cruzamento entre arte e arquitetura no espaço urbano, vem do fato de ter sido alguém da nossa geração, para a qual o ArteCidade foi fundamental. Foi um paradigma muito forte num momento em que estávamos no processo de formação. Com certeza eu tenho vontade de fazer com a Bienal de Arquitetura algo que ficou de útil do ArteCidade. É uma experiência de mais de dez anos atrás, de uma época heroica da cena cultural de São Paulo, que não era tão expressiva como é hoje. Os estrangeiros não vinham para São Paulo como vêm hoje. A autoestima de São Paulo não era como é hoje, estávamos acostumados a pensar São Paulo como um lugar no qual a gente vivia um pouco por destino, mas que com certa vergonha, da falta de civilidade, mas também de beleza. [Afonso] E a experiência da arte era idealizada como realização subjetiva, não de emancipação urbana. Era realizada como espaço fechado da arte, das quatro paredes brancas, o cubo. É no momento da ArteCidade em


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que a experiência da vida começa a se cruzar com a experiência da arte. Até ali a experiência mais radical do Brasil ainda ficava submetida a uma lógica de galerias. Não é à toa que quero incluir muitas intervenções artísticas, porque a fronteira entre arte, arquitetura e cidade já não faz sentido. E, além disso, a arte puxa para a extroversão e extravasamento do cubo branco. O problema da exposição de arquitetura é que se está diante de uma mediação, uma representação, não da coisa. Numa situação de arquitetura ficamos diante de uma coisa que está em outro lugar. Isso é muito aborrecido. Como mostrar isso já é um desafio. Os técnicos são sempre algo muito especializado, o vídeo é sempre uma maneira interessante, maquetes também, mas se pudermos fazer escala 1:1, ambientações, fica mais instigante. Uma das exposições pensadas será realizada no MASP, e reunirá artistas visuais como Hélio Oiticica e Cildo Meireles e arquitetos como Paulo Mendes da Rocha, Artigas e Lina Bo Bardi. Será no Hall Cívico, o espaço debaixo que tem o pé direito alto com as rampas vermelhas. E ali tentaremos reconstruir a topografia do Pavilhão de Osaka do Paulo Mendes da Rocha, uma topografia artificial que ele fez na Bienal de Osaka, com um chão de asfalto com colinas, e o pavilhão era uma grande laje de concreto, como a da FAU, com clarabóias, que apoiava diretamente no solo natural. Imagina isso em 1970, super pós-moderno, construir um solo que não existia. Não tem nenhuma razão funcionalista para isso, o que é mais interessante. Nossa arquitetura é tida como muito modernista, mas encontramos projetos absolutamente experimentais. Queremos refazer esse piso, parte dele, pois a altura desse espaço tem exatamente a altura que seria a laje do pavilhão. Com isso poderemos mostrar obras do Hélio Oiticica em cima de um piso ondulado do Paulo Mendes da Rocha, dentro de um espaço da Lina. E aquilo é superlúdico, de asfalto. Isso que quero conseguir colocar em contato. Essa exposição é em cima da minha tese,

que é sobre arte e arquitetura contemporânea, mas mais voltada para o circuito internacional. Mas há um capítulo de Brasil em que é difícil enxergar a relação entre arte e arquitetura mais recente. Onde dá para ver com mais clareza essa relação é ali, na passagem nos anos 1960 para os 1970, que é o momento mais explosivo na cultura brasileira. É o momento em que temos as casas mais radicais

infraestrutura. E é a mesma época que o Oiticica faz Whitechapel, a maior exposição dele em vida, onde ele monta os Penetráveis, e tem toda a mística de que ele e Torquato estavam vivendo dentro da galeria. Quando eu estava escrevendo e me dei conta de que tudo isso era simultâneo, acendeu essa luz da oposição, os arquitetos criando espaços domésticos como se fossem urbanos, e os artistas tratan-

Isso é muito expressivo, tanto para a discussão da arte e da arquitetura do fim dos anos 1960, quanto de uma particularidade brasileira, que é o esgarçamento da fronteira do público e do privado, levar um ao limite do outro. do Paulo Mendes da Rocha e do Artigas, que inclusive estão à beira de ser presos e por isso fazem casas totalmente fechadas, nada aberto para fora. Os materiais são concreto e às vezes até asfalto. Casa de chão de asfalto. Imagina o bebê da família engatinhando, como seria a vida doméstica? E muitas das casas do Paulo as paredes não chegam até o teto, são para isolar apenas visualmente, mas a partir de certa altura não tem isolamento para som, como em casa caipira, do interior. Se o casal está trepando no quarto os filhos ouvem, alguém vai ao banheiro e faz cocô, empesteia a casa inteira. Tudo isso era uma ideia forte e contundente. Artigas fala disso, que era para criar vida coletiva, urbana, contra o intimismo da vida doméstica. Sem segredos da vida privada. Todas essas casas afrontam esse modo de vida privada para criar uma vida coletiva e compartilhada o tempo inteiro. No limite da maior radicalidade, o discurso é: as casas são imóveis urbanos. Por isso fazem rampas, todos os signos de urbanidade, de

do o espaço público como se fosse doméstico, usando materiais totalmente opostos, asfalto e concreto de um lado, e areia, tecido, palha do outro. O Vito Acconci diz isso em um vídeo na Bienal da Lisette Lagnado, “quando vi os ninhos do Hélio no MoMA, me dei conta do quanto era radical expor a sua vida subjetiva ao público”. Porque tem a famosa história do casal que estava trepando dentro de um ninho quando os Rockfellers passaram. Isso é muito expressivo, tanto para a discussão da arte e da arquitetura naquele período, quanto de uma particularidade brasileira, que é o esgarçamento da fronteira do público e do privado, levar um ao limite do outro. Apesar de artista e arquiteto estarem opostos, também são semelhantes. O que eles estão fazendo no fundo também é dissolver essa fronteira. [Sergio] Há a partir dos anos 2000 a tentativa de alguns coletivos brasileiros, como a Usina, de pensar a propriedade coletiva na arquitetura. Casas que possuem espaços hí-


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bridos entre privado e coletivo, o que muitas vezes esbarra em questões legais do que é propriedade coletiva. Como você vê essas iniciativas? Conheço pouco. O Pedro Arantes, que faz parte da Usina, já me contou a respeito do trabalho deles com o Movimento Sem Terra que envolve novas comunas. Essa busca do coletivo é o grande projeto da arquitetura moderna, o espaço da cidade como espaço coletivo e a redução da propriedade privada. E pelo que a gente vê a patologia que é a cidade constituída pelo mercado imobiliário, casos como Los Angeles, os casos mais graves, é o contrário disso, cada lote com a sua piscininha, isolada, todos repetindo os mesmo equipamentos que poderiam ser um só, uma piscina enorme, maravilhosa, onde todos se encontrassem. [Sergio] O que lembra aquele filme do Frank Perry, do final dos anos 1960, The Swimmer, que foi traduzido por Enigma de uma vida, onde o Burt Lancaster decide voltar para a sua casa no subúrbio não pela estrada, mas nadando de piscina em piscina pelas casas dos vizinhos... É um espaço marcado pelo ultraindividualismo. Quando falo dos projetos do Paulo Mendes e do Artigas, o objeto de fundo é a falta de esfera pública no Brasil, que leva no limite a um arquiteto fazer uma casa com chão de asfalto. Falta tanto ao domínio público, que é preciso constituir a esfera pública dentro de uma casa. Por trás disso está o discurso de trabalhos como “Inserções em Circuitos Ideológicos”, do Cildo Meireles. Esse trabalho é fenomenal porque fala sobre isso. Quando ele decide que um trabalho de arte pública não era um trabalho numa praça, mas sim a colonização de um signo de consumo, ele está colocando muito contundentemente esse discurso, porque não adianta colocar uma escultura numa praça. No EUA adianta, o Richard Serra pôs e a escultura foi destruída depois de sete anos, e a sociedade inteira discutiu aquilo. Pró ou contra, uma

escultura ressoa, e ressoam todas as dimensões do que é um valor público. No Brasil não, põe-se uma escultura em uma praça, ela fica ali se deteriorando, sem que traga marca ou valor, inclusive nem praças. Que praças? Um negócio gradeado, inacessível, que tem cocô e gente dormindo. As apropriações privadas dos espaços públicos, tanto o cerceamento quanto a pessoa que dorme, como as relações com o poder público entre as pessoas que vão usá-los, fazem com que esses espaços públicos não sejam públicos. Então um trabalho eficiente nesse sentido é aquele que coloniza uma nota de dinheiro ou uma garrafa de Coca-Cola. Pois a esfera pública se deslocou para o consumo e isso, igualmente em outros países da América Latina, acontece em países patrimonialistas, onde relações privadas tomam a esfera pública. E uma cidade toda compartimentada, individualizada também é um produto disso.

de se considerar a especificidade do contexto de cada país, a sua relevância. Acho que ainda operamos nessa chave, mas também com o pensamento de novas tecnologias, de dissoluções de fronteiras, que já são próprias da nossa geração em diante. Mas é uma geração de pegou e tem pegado na situação profissional um país muito diferente de hoje. As gerações que vieram antes foram muito massacradas pela falta de perspectivas profissionais e pelo encurtamento ideológico. A falta de vitalidade pós-moderna, uma ortodoxia moderna, que não conseguiu trazer as informações críticas. E as pessoas ficaram num pragmatismo sem horizontes. Quem tinha mais inquietação não conseguia se ligar no discurso modernista, que tinha virado ortodoxo, e não sabia que outros caminhos havia, e acabou ficando uma prática profissional sem reflexão. Foram muitas poucas pessoas dessas gerações que faziam coisas que têm relevância.

[Afonso] Você usou a palavra geração. O que é a nossa geração?

[Sergio] Ao menos muito pouco nos era dado. O Brasil era um malabarista de uma bola só.

Quando falo dos projetos do Paulo Mendes e do Artigas, o objeto de fundo é a falta de esfera pública no Brasil, que leva no limite a um arquiteto fazer uma casa com chão de asfalto. Falta tanto ao domínio público, que é preciso constituir a esfera pública dentro de uma casa. Uma geração de fronteira, talvez a última que pegou certos ideais ligados à ideia de formação no Brasil. O ideal que vem ainda dos mestres da formação chega até nós, logo abaixo já não tem mais. Por alguns motivos. Um é o declínio do peso da formação intelectual, outro a globalização, que tem diminuído o sentido

Em cada área, havia apenas um expoente escolhido. No cinema, se falava de Glauber Rocha, mas não de Sganzerla ou de Carlão Reichenbach. Na música, de Caetano Veloso, mas não de Jards Macalé. E assim por diante. A nossa geração teve um papel de ampliar, de refazer essa cartografia da cultura brasileira...


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A nossa geração ainda está organizando esse patrimônio. A geração mais nova, de 2000 em diante, já joga num campo mais livre. [Afonso] O que era a FAU que você encontrou? E que outros espaços ou passagens tiveram importância para a sua formação? Como acabei de prestar um concurso para lecionar na USP, tive que escrever algo que se chama Memorial Circunstanciado, que é uma experiência psicanalítica. Venho de uma família de intelectuais, meu pai é professor na USP de literatura brasileira, depois também um compositor de canções, e sempre foi presente para mim como crítico cultural. A partir dessas transversalidades, sempre foi familiar e natural essa abordagem interdisciplinar entre as artes. Eu tinha uma inclinação para as visualidades, sempre desenhei, pintei, achei que seria artista plástico. Era por aí que me guiava, e claro que a arquitetura é uma boa saída para uma pessoa assim. Tinha um registro dentro do mundo visual, mas não inteiramente solto para ser um artista, por funcionar mais junto com pensamentos e articulações da esfera social e dos outros campos. E a FAU foi um lugar muito bom para isso. Por lá passou muita gente que foi ser todo tipo de profissional na vida. Mas entrar na USP é complicado. A USP é um lugar muito disperso, aquelas longas distâncias, toda a dificuldade em criar novas amizades. Eu estudei no Colégio Equipe, onde eu tinha uma vida social muito intensa, muito integrada, então aquilo criou uma crise em mim, aqueles espaços amplos onde as pessoas se dissolvem dentro. O que me fez encontrar com alguma possibilidade de diálogo, um meio, foi a revista Caramelo, que já existia. No meu primeiro ano tinha acabado de ser fundada, estava no número 2. Eu gostei muito, e tinha cartazes para as pessoas mandarem artigos, então mandei um artigo para o número 3, um texto que não era sobre nada, era uma elaboração psicológica do estado de depressão em que eu estava naquele lugar, só que para descrever isso eu inventava autores,

com citações supereruditas. O texto foi selecionado, publicaram, acreditaram piamente naquilo, e isso foi muito bom, me deu inserção ao grupo, imediatamente fui chamado para participar da revista. Meu artigo dividiu o grupo, uns gostaram, outros ficaram passados, os mais sérios não gostaram muito. Era gente mais velha, gente do terceiro e quarto ano, eu estava no primeiro. Fiquei lá até o oitavo número. A minha turma, depois que esse grupo se formou, assumiu o comando e toda a minha rede de sociabilidade na FAU caminhou por causa disso. E acabou que eu virei alguém que trabalha com crítica e escreve a partir daí. Tem muitas outras coisas que foram importantes, mas uma que acho importante destacar é o Paulo Mendes da Rocha. Ele era nosso professor, mas estava longe de ser o Paulo Mendes da Rocha que ganhou o Prêmio Pritzker em 2006. No início dos anos 1990, tinha gente que ao ouvir falar dele perguntava se ele ainda estava vivo, porque a cultura moderna havia entrado no ostracismo sem que nenhuma arquitetura pós-moderna viesse ocupar o seu lugar. Como não havia pós-modernismo, quem polarizava era o grupo mais engajado, ligado ao PT, que foi fazer urbanização de favela, mutirão, e que tensionava com os arquitetos modernos do Partido Comunista a visão que eles tinham de cidade. O Paulo Mendes e o Artigas tinham feito, por exemplo, o Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães, em Guarulhos, ao lado do Aeroporto de Cumbica, um conjunto que é muito bom como projeto, uma série de soluções interessante, mas é paradigma modernista. É igual ao da Cohab, um monte de unidades iguais, reunidas, sobre pilotis, que acabam virando garagem. A favela não existe como discurso lá, ela é simplesmente uma excrescência, um produto da dinâmica perversa do capitalismo na cidade. Mas não há o que fazer com ela, precisa ser removida. Quando uma nova geração surge, que é a da Raquel Rolnik, ela traz outra posição e que está na gênese da formação do PT, que está

contra a escola paulista e a ideia de arquitetura do Partido Comunista. É um pessoal que começou a trabalhar com a gestão da Luiza Erundina, e que trouxe uma ênfase na periferia, criou transições importantes e guiou uma nova discussão. Isso era implícito da FAU quando entrei. A primeira atitude dessa nova geração foi a seguinte: a favela existe e tem que ser melhorada, é um dado real, não vai sumir e tem-se que trabalhar sobre aquilo. É a referência teórica. A grande referência sobre isso é Learning from Las Vegas, que é um manifesto pós-moderno, de 1972, escrito por Robert Venturi, Steven Izenour e Denise Scott Brown. É a primeira vez em que alguém fala: “Senhores arquitetos, saiam do seu castelo de cristal, ou o que vocês imaginam que é o mundo do futuro, todo de bom gosto e que é o que vocês querem impor à sociedade de cima para baixo, e desçam para o mundo desencantado real para ver no fundo o que as pessoas gostam”. É um grande manifesto chamado de populista porque dá legitimidade ao povo, que é no fundo o vernacular norte-americano, que é a paisagem comercial. Não o nosso vernacular, que é nordestino, ou qualquer que seja. Aí começa uma visão pós-modernista, dar crédito ao real. O real tem uma visão e temos que partir dele, não de uma projeção futura idealizada. Isso demora para chegar ao Brasil. Apenas em 1988, na época da Erundina. Mas chega muito politizado e traduzido dessa maneira: “Vamos melhorar a favela, construir habitação para pessoas que não tem como pagar, então que eles mesmos construam com as próprias mãos”. É o mutirão, por exemplo. Uma série de operações que se opõem aos arquitetos modernistas. Mas não é nenhuma arquitetura pós-moderna historicista, coisa que não temos no Brasil. Eu só fui descobrir isso aos poucos, quando percebi o que significava a pergunta feita pelas pessoas se o Paulo Mendes da Rocha ainda estava vivo, que isso demonstrava que naquele momento aquele discurso do Partido Comunista parecia estar datado e não ter mais futuro. Até que o Paulo Mendes se


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reinventou na minha geração, na FAU. Essa geração, que também era um pouco a que estava em torno da Caramelo, estava vivendo um mundo em que a cultura moderna estava sendo recuperada. Havia um esgotamento do pós-modernismo, a ideia de um novo mais racional, mais estandardizado, com certos princípios de coletivização, estava voltando a ser considerado um paradigma, reencontra essa

seguia atingir certo nível, mas havia outros muito melhores. E todo mundo é competitivo, num sentido positivo. Você sempre busca um lugar onde consiga se colocar melhor. Mas mesmo assim eu fiz o exercício de ter um escritório, de trabalhar em projetos durante alguns anos, de 1999 até 2006. Não é pouco. Sem contar o tempo de estudante, em que eu já tinha trabalhado no escritório do Paulo. Eu

A música foi o lugar em que consegui ir mais longe como artista. Essa é uma questão que todos têm em algum nível. Ser artista, ao mesmo tempo que pensar, articular coisas, refletir, é quando você coloca a sua subjetividade de maneira mais contundente. cultura que fica hibernando um tempo e volta a ser uma referência no mundo de novo. E o prêmio Pritzker para o Paulo nos anos 2000 é fruto disso, porque o mundo inteiro descobriu que em um lugar onde tudo tinha ficado parado no tempo, no hemisfério sul, havia manifestações muito fortes daquele ideal que tinha sido abandonado. E o Paulo nunca fez concessões, nunca ficou maneirista. Muitos da sua geração depois ficaram dogmáticos, maneiristas, e para o Paulo aquilo tudo nunca foi linguagem, sempre foi modo de vida. Ele era um professor muito crível, porque o atendimento dele não era sobre projetos, ele estava sempre falando sobre a cidade, a sociedade. Ele estava sempre em crise, deixava todo mundo em crise. Isso é muito bom para um aluno de graduação, saber que a vida é muito mais difícil do que a gente pensa. [Sergio] Saindo da FAU, você chegou a trabalhar com arquitetura? Sim, mas no fundo sempre soube que não seria arquiteto. Até fazia alguns projetos, mas tinha senso crítico para saber que eu até con-

me formei em 1999, abri o escritório em 2000, chamado Metro Arquitetos, com dois amigos de faculdade. Mas já em 2001 eu publiquei um livro sobre o Lucio Costa. Foi um convite do Rodrigo Naves. Na época, eu tinha 28 anos e apenas a revista Caramelo e um artigo no Jornal da Tarde no currículo. Mas eu tinha claro para mim que queria começar a trabalhar com crítica, queria escrever, e foi bem naquela época que o Rodrigo começou a formar um grupo de críticos que eu participei. Foi no escritório dele, e participamos eu, o Afonso Luz, o Alberto Tassinari, o Lorenzo Mammi e alguns outros. O Rodrigo era editor de uma coleção de livros chamada Espaço da Arte Brasileira, na Cosac Naify. Eram livros monográficos sobre artistas ou arquitetos. Aí ele me convidou para fazer um, o que foi um grande apoio. O Rodrigo é dessas pessoas que são fundamentais na vida de muita gente, porque ele apadrinha as pessoas e cria meios de as coisas se desenvolverem, como foi o meu caso. Eu ali com menos de trinta anos, e ele me deu esse enorme poder, falou: “Escolhe um arquiteto e faz!” Eu

escolhi o Lucio Costa, o que foi uma coisa ousada, mas ao mesmo tempo muito precisa. Porque eu trabalhava com o Paulo Mendes da Rocha, eu tinha uma bagagem da arquitetura paulista, mas eu estava muito próximo também do Pedro Arantes, e de outros grupos da FAU que eram mais do outro lado, do lado da politização via crítica do projeto moderno, e lia muito os livros da Otília Arantes, ao mesmo tempo os textos da Sofia Teles. Então na minha formação houve essa tensão de uma abordagem via luta de classes dentro da arte, e uma abordagem mais formalista. O tempo inteiro minha formação ficou operando na dualidade sem me preocupar em escolher um caminho ou outro. E o Lucio Costa foi fundamental também por isso, porque o Lucio Costa era o arquiteto que se inseria no sentido da formação. Dá para pensar o Lucio Costa em paralelo ao Mário de Andrade, mas também ao Sérgio Buarque de Holanda, ao Caio Prado ou ao Antonio Candido. Eu não queria fazer de cara um texto que fosse direto de arquitetos de projeto, ficar só dentro da área, eu queria pensar o Brasil. Eu estava me armando para isso. Escrevi sobre o Lucio Costa, depois sobre o Caetano Veloso, porque eram os modos, os meios que encontrei de me formar enquanto eu mesmo escrevia e formava leitores. Eu trabalhava dentro da formação que era a que eu queria ter, que era essa, da nossa geração. E para mim, muito claramente no livro que eu fiz, o Lucio Costa é a expressão da dúvida. O texto que fiz se chama “Entre o empenho e a reserva”, porque o Lucio é o arquiteto que puxa toda a cultura moderna brasileira, que toma as iniciativas para que ela acontecesse, mas ele mesmo recua o tempo inteiro. Então se revelam os impasses do processo, ao mesmo tempo em que a necessidade de que ele se realize. É isso que eu queria de certa maneira entender naquele momento, porque se eu fosse seguir a Otília strictu sensu, iria ficar só com um lado do recuo. Eu queria trazer também a outra dimensão, que era a necessidade de fazer e levar a diante que o Lucio Costa


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sempre teve, e que era sempre rechaçada por essa visão de que os processos sempre envolvem pecados originais da formação. Com o livro me tornei decididamente um crítico, um ensaísta. Só precisou passar alguns anos para tomar a decisão de parar de fazer projeto. Não só isso contou, mas condições materiais, para poder largar a arquitetura.

sim mesmo. Não estou dizendo que tem que ser bonzinho, mas falando que para mim é muito difícil, e quando se é um intelectual, não precisa disso, faz sua coisa, é dono do seu tempo, é autônomo sobre o que se faz. Os outros gostem ou não, os meios de produção estão sempre à sua mão. Isso é uma grande diferença, tenho prazer em trabalhar em casa,

Giulio Argan e Mário Pedrosa são autores que admiro por terem conseguido olhar para o mundo de uma perspectiva marxista e fenomenológica, conseguindo incluir uma visão da história como conflito e como potências, sem perder o sentido do que pode ser libertador do ponto de vista da experiência. [Sergio] O que tem sido um desafio de toda a nossa geração, a criação dessas condições materiais. Se eu fosse dar um quit do escritório, eu precisaria ter o básico do básico. Em 2005 pude começar a dar aulas da Faculdade Anhembi Morumbi, daquele jeito, com carga alta de horas, porque ganhava por hora, mas foi muito bom, libertador. Algumas pessoas se chocam quando perguntam se não sinto falta dos projetos, às vezes sinto, mas é raro. Eu me sinto muito melhor sendo mais dono do meu tempo, das minhas questões. Porque algumas coisas me faziam sofrer, como a compulsão que os arquitetos têm de trabalhar infinitamente, tarde da noite, fim de semana, sem outras coisas, outros prazeres da vida comum, e também a relação de canteiro de obra. Quando tenho que lidar com isso é sempre sofrido. Por exemplo, fiz a reforma do meu apartamento recentemente, e tive que lidar com o pedreiro, o marceneiro, o serralheiro. Todo mundo faz cagada, e você tem que ficar em cima, mandar corrigir, e sofro muito com isso, prefiro dizer para deixar as-

agora ainda mais que tenho filhos com quem estou sempre próximo por trabalhar em casa. [Sergio] Você tinha um pé na música também esse tempo todo. Cheguei a escrever e pensar sobre música, compor. Sempre foi importante na minha vida. A música foi o lugar em que consegui ir mais longe como artista. Essa é uma questão que todos têm em algum nível. Ser artista, ao mesmo tempo que pensar, articular coisas, refletir, é quando você coloca a sua subjetividade de maneira mais contundente. Tenho muitas composições com o Chico Pinheiro, outras com o Mário Sérgio, um compositor do Rio, do Aquarela Carioca, coisas nos discos da Jussara Silveira e da Mônica Salmaso. Mas a partir de certo momento isso foi secando, fui deixando, não sei explicar o motivo, mas foi se assentando mais o lado da reflexão. Talvez tenha ido refreando a angústia do estar no mundo, o que é um pouco triste. [Afonso] E não existia uma relação entre essa sua reflexão teórica e a criação artística?

No meu exercício não. Nunca pensei sobre temas sobre os quais queria compor, eram coisas que vinham de uma questão subjetiva minha. Talvez, se eu tivesse continuado a compor, teria que fazer um pensamento mais amplo, uma vontade mais contundente de atuação disso como linguagem. Mas não cheguei a fazer essa passagem, eram canções de amor. Algumas são mais líricas, outras mais pessoais, como uma que se chama “Mãe”, que vai para o reino dos mortos, como para reencontrar a minha mãe que morreu quando eu tinha dez anos. Outras até trazem algumas questões mais filosóficas, mas não se conectam ao Brasil. Existiam elementos que ficavam mal resolvidos para mim. Por exemplo, todo o meu gosto pelo tropicalismo, e pelo Caetano em especial, não se juntava com a minha formação na arquitetura, que tinha tons mais sociológicos, seguiam a linhagem de Otília Arantes e Roberto Schwarz. Eu tinha esse conflito, e a minha própria ida ao Teatro Oficina, onde fiz o cenário das Bacantes, então atuei concretamente no desdobramento dessa vanguarda nos anos 1990, foi significativa nesse sentido. Eu precisava acertar contas com essas diferenças. Teve uma vez até em que a gente foi falar na Faculdade de Filosofia, eu e o Pedro Arantes, e fizemos um texto muito crítico, e o Afonso estava na plateia e fez críticas duras a nós. [Afonso] Foi o momento mais marxista que você teve na vida. Ainda bem que o Afonso estava lá para puxar um pouco para outros lados, porque de fato aquilo para mim era um momento decisivo de escolhas. Hoje vejo que meu livro sobre o Lucio Costa tem muito essa visão. Isso me desagrada um pouco hoje, gostaria que tivesse menos. Ter feito o livro sobre o Caetano foi muito importante para encontrar um trilho mais ao lado da vanguarda crítica, comportamental. E depois que fiz isso em 2005 não me deixei mais perder esse valor. Eu estava precisando orientar minhas coisas mais dentro disso, onde o marxismo faz parte


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e muito, afinal é minha formação mais sólida, mas sem fazer concessões. Recentemente, fui convidado pelo Adauto Novaes para fazer parte do grupo de seminário dele, o que para mim foi uma grande honra, porque as minhas grandes referências intelectuais, assim como de muitos da nossa geração, passaram pelo momento glorioso dos seminários do Adauto, como foram o “Ética” e o “Tempo e História”. Hoje fazer parte desse grupo, embora seja já diferente, já em outro contexto, tem um sentido simbólico forte. Todo ano, antes do seminário acontecer, o Adauto reúne as pessoas que farão o seminário num hotel em Tiradentes em Minas e todo mundo discute intensamente durante dois ou três dias as perspectivas de cada um sobre o tema que será tratado. Foi interessante, porque quando você está em confronto com filósofos, gente de formação muita sólida, você acaba descobrindo melhor qual é a sua formação de verdade, qual o instrumental que você tem que botar em ação ali na hora, e o meu é o marxismo. Quando eu tinha que conversar com essas pessoas e os pontos nos quais eu conseguia desenvolver mais as minhas questões são dentro do materialismo dialético, claro, unido com a crítica estética. Fiquei um pouco mais apaziguado quando percebi isso. [Sergio] E o que é esse materialismo dialético? Entender a história como conflito. No fundo, sempre as questões são forças em oposição, que se negam, que estão lutando por uma espécie de resolução. Isso para mim vem muito através do Giulio Argan. Ele e Mário Pedrosa são os autores que admiro nesse sentido de terem conseguido olhar para o mundo de uma perspectiva marxista, mas ao mesmo tempo fenomenológica, conseguindo incluir uma visão da história como conflito e como potências, sem perder o sentido do que pode ser libertador do ponto de vista da experiência. [Afonso] E nunca descartar uma delas.

Exatamente. Por exemplo, quando entram na discussão sobre forma, o que é construção da forma, o que é um processo formal, esse embate moderno do eu com o mundo é uma questão filosófica que pode levar à origem da filosofia. Mas uma das questões mais interessantes que aparecem na modernidade, e o Argan mostra bem isso, é trazer uma modernidade que opera no mundo sempre tendo que lidar com a resistência dele. A subjetividade moderna já não pode ser a subjetividade romântica que dobra o mundo pelo seu próprio ato criador, nem é a platônica, que era uma forma que já estava pronta, e que só precisava se conformar nela. Nenhuma delas funciona mais no mundo moderno, que é onde a matéria ganha razão de ser, maturidade, maioridade. Todo o processo da arte moderna é formalizar um mundo que resiste, e esse embate é a opacidade do mundo, que tem um travo. O travo da história é o travo da matéria. Toda formalização envolve um conflito dialético, envolve negociação. O Jackson Pollock estendendo uma tela enorme, jogando tinta sobre aquilo e tendo que lidar com um campo que responde o tempo inteiro é o grande desafio da experiência moderna. E isso é marxista e ao mesmo tempo é uma perspectiva da arte que o marxismo rasteiro não enxerga. E é filosófico em alto nível, é uma chave para pensar muita coisa. A perspectiva do trabalho na arquitetura também passa por aí, porque isso se atualiza hoje nos seguintes termos: a minha tese, que é sobre arte arquitetura contemporânea, chama-se Dentro do nevoeiro – diálogos cruzados entre arte e arquitetura, e eu acho que hoje uma das grandes questões do mundo contemporâneo, essa imagem do nevoeiro, que é esse campo meio enevoado e indistinto, está ligado à ideia do capital financeiro, onde a perda do trabalho é a perda do valor, a falta de lastro das coisas. Tudo como que flutua sem nenhum lastro de dimensão concreta. Esse embate moderno, que era a grande questão, foi desaparecendo, e o mundo deixou de ter a resistência que se opunha à uma subjetivida-

de criadora. Hoje ninguém sabe mais muito como operar, porque nada tem valor, o trabalho não existe mais como concretude. A própria arquitetura contemporânea é isso, dobrar a matéria a torto e a direito como quiser. Pode-se fazer qualquer coisa com chapas de titânio, com o que quer que seja. E para mim uma leitura que marcou muito para isso tudo é Hannah Arendt, A condição humana, porque ela organiza o pensamento em torno de três categorias: ação, trabalho e labor. E basicamente nesse livro ela está dialogando com o marxismo, platonismo e cristianismo, que são três entidades fundamentais do mundo moderno. Essa ideia me fez muito a cabeça. A ação é muito difícil manter, é o ideal político grego, que está em Habermas também. Ela supõe uma esfera pública que quase já não existe mais. Mas a diferença entre trabalho e labor é muito interessante, porque o trabalho é o que converte as coisas em objetos duráveis, como a mesa, ou a arte, coisas que são feitas para durar e são a materialidade do nosso mundo, o que nos separa, a materialidade das relações, o mundo da concretude, que no fundo é o grande mundo do artesanato que chega na indústria, da durabilidade. E o labor, ao contrário, é o trabalho que se esgota em si mesmo, subsistência, o mundo da aldeia, o mundo pré-neolítico, colher, comer e transformar isso em energia, comer de novo, e não criar o mundo da durabilidade, o da vida social. É a subsistência, é o labor que estava lá. O que é interessante da perspectiva dela, esse labor volta com a sociedade de consumo, porque ela cria objetos que não são feitos para durar mais. O nosso mundo vai virando não o mundo do trabalho, mas o do labor, da descartabilidade, da subsistência transformada em sociabilidade. O nosso mundo contemporâneo que sacrificou a esfera pública sacrificou também o mundo da durabilidade do trabalho em nome da coisa mais antipública que existe que é o labor, que é a necessidade. Isso casa muito com a perda da opacidade do mundo, em uma perspectiva mais arganiana, ou marxista.


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por um contra-mercado editorial

Circula no meio literário carioca a história sobre uma briga entre um poeta da geração marginal e o editor de uma das mais prestigiosas casas do Brasil. O poeta, que já havia sido publicado pelo editor quando este trabalhava em outra empresa, foi procurá-lo com um livro novo, e ouviu deste a justificativa para a recusa de edição: “você tem que entender, meu caro, que uma edição custa tanto, e precisa vender tanto para se pagar, o que demora tantos anos no caso de poesia, e portanto é preciso de tanto de investimento”... A conversa foi por aí, até que o poeta, cansado, respondeu: “Estranho, achei que o nome da sua editora continha a palavra ‘Letras’, e não ‘Números’”. Essa história é exemplar para falar sobre o nosso mercado editorial, e o quanto relevante é o aparecimento, de tempos em tempos, de propostas corajosas por microeditoras, capazes de arejar o circuito com títulos e táticas inovadoras. É o caso de duas editoras em atividade no Brasil atualmente: Cultura e Barbárie e Sol Negro. As duas trabalham com livros artesanais e pequenas tiragens, e se destacam pela qualidade do catálogo. As editoras possuem trajetórias paralelas. Cultura e Barbárie foi criada em Florianópolis. Alexandre Nodari, um dos editores, conta como nasceu: “A ideia surgiu muitos anos atrás, dentro de um projeto maior. Éramos (somos) cinco colegas e amigos que compartilhávamos uma concepção semelhante sobre a pesquisa e a necessidade do trânsito entre disciplinas, e queríamos criar um núcleo ou instituto onde pudéssemos desenvolver nossas investigações, com uma editora que difundisse discursos pouco conhecidos no Brasil, textos de importância político-cultural que contribuem para o debate contemporâneo, mesmo que não sejam eles próprios atuais no sentido cronológico. O nome que escolhemos, tanto para o instituto (que ainda não existe formalmente), quanto para a editora, foi Cultura e Barbárie, de acordo

com a premissa benjaminiana de que não há documento de cultura que não seja ao mesmo tempo documento da barbárie. Publicamos uma revista estudantil, a Recrie, em meados dos anos 2000, e em 2009 passamos a publicar o panfleto político-cultural Sopro, que se aproxima agora do número 100. No começo de 2010, publicamos nossos primeiros livros, aproveitando as oportunidades dos novos meios (impressão digital, por exemplo). Fomos publicando outros títulos, a princípio em torno de duas coleções – Parrhesia, de ensaios de humanidades, e Arquivos, de textos de arquivos com estudos introdutórios. Em 2012, decidimos ampliar o projeto, com a criação de novas coleções (pseudo-coleção de literatura e anima, voltada à psicanálise e psicologia em sentido filosófico), e adquirimos alguns equipamentos gráficos (impressora à cera sólida, guilhotina) para fazermos nós mesmos alguns dos livros”. Já a Sol Negro foi criada por Marcio Simões em Teresina: “A editora surgiu em 2010, inicialmente para veicular uma Antologia Poética homônima do coletivo Sol Negro, que saiu em tiragem limitada e também na Internet. Não havia interesse em levar a coisa adiante em termos editoriais. Mas eu tinha a vontade de aprender a fazer livros, e certo


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gosto pelo trabalho de edição (preparação, revisão, editoração eletrônica etc.), bem como por atividades artesanais. A partir disso, a ideia de uma editora foi se consolidando aos poucos, em decorrência de certos encontros e acontecimentos. Através da Antologia conheci Camilo Prado, das Edições Nephelibata, que havia inventado um modo extremamente bem acabado de fazer livros artesanais, possível de ser realizado por uma pessoa só, o qual ele me ensinou pacientemente. Foi ele, também, quem na mesma época me colocou em contato com o pernambucano Fernando Monteiro, de quem vim a editar o livro Mattinata, que contém o belo poema homônimo e trouxe uma visibilidade (ao menos localmente) que nunca havia pensado nem planejado para a Sol Negro. A partir daí resolvi levar a coisa adiante de forma mais consistente, e comecei a trabalhar para constituir um catálogo pensado sobretudo em títulos que para mim eram completamente relevantes e representativos de autores e ideias que estavam fora do consenso e dos interesses dos grandes conglomerados de informação e capital, que fossem discordantes ou independentes de alguma maneira. Como meu foco literário sempre foi a poesia, era natural que essa fosse a área central de atuação da editora, ao menos inicialmente”. Os catálogos vistosos, com autores como Thomas Rain Crowe, William Blake, Aldo Pellegrini, Vicente Huidobro & Hans Arp e Yvan Goll (Sol Negro) e Fábian Ludueña, Cesar Aira, Gabriel Tarde, Veronica Stigger e Emanuele Coccia, além da reedição da revista Acéphale, de Georges Battaile, Pierre Klossowski e Andre Masson (Cultura e Barbárie), atualmente só podem ser adquiridos nas páginas digitais das próprias editoras – culturaebarbarie.org

e solnegroeditora.blogspot.com.br. Explica Marcio Simões: “Como as tiragens são limitadas e artesanais, os livros não são distribuídos para livrarias. A vantagem de vender diretamente aos leitores é que posso vender mais barato do que se tivesse que enviá-los às livrarias, que ficam com uma boa parte do valor de cada exemplar, o que aumenta o custo do livro”. “Estamos estudando vender os títulos da Cultura e Barbárie em livrarias, mas o problema é que elas propõem acordos draconianos, que encareceriam demais os livros (e uma de nossas políticas é que nossos livros não sejam exorbitantemente caros como são muitos dos livros no Brasil). Acho que faz muita falta um site agregador, como a Estante Virtual, das editoras independentes e universitárias do Brasil. Creio que facilitaria (mas não resolveria, claro) a vida das editoras pequenas”, completa Nodari. Outra questão importante é como pensar a sustentabilidade das editoras em médio e longo prazo, sem perder o seu projeto inicial. Segundo Simões, “Os desafios para manter uma linha editorial própria são inúmeros, desde processos burocráticos até falta de incentivos. Mas, sobretudo, creio que faltam leitores. Falta-nos educação e informação, bem como democratização do poder aquisitivo, isso em todas as áreas. É um problema de base, estrutural, e que parece se verificar no país de maneira geral. De certa forma, a Sol Negro atua ‘fora do mercado’, já que os livros são limitados e não têm distribuição. Por isso não sou o mais indicado para falar sobre as especificidades de uma editora face à incontornável viabilidade financeira para sua existência. Mas mesmo na escala em que venho operando, se os livros não vendem, fica difícil continuar fazendo. E só o faço, no momento, porque me permito ‘não me pagar’ pela maior parte do trabalho que realizo. Restringindo bastante a questão à minha realidade, o maior desafio no momento é encontrar leitores afins ao que venho veiculando em catálogo, e que tenham interesse (e possibilidade) de adquirir os livros”. Se os desafios são múltiplos, ao menos, podemos apostar na persistência dos projetos e na alegria, como expõe Nodari: “Eu sou otimista: acredito que há, por assim dizer, uma demanda de contra-mercado grande. O problema, claro, reside em conseguir viabilizar financeiramente um projeto independente como a Cultura e Barbárie. Creio que cada editora deve achar sua solução própria, seja o financiamento por editais, seja o trabalho artesanal, seja a aposta em textos e autores novos, mas com muita paciência: publicar livros é dar vida a mundos, e estes não nascem em sete dias como certa lenda nos faz crer”.


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Editora paratodos

por Sergio Cohn

Em 1930, o sempre inventivo Mário de An-

grama do Livro Popular, criado pela Biblioteca Nacional em 2011. Mas

drade inovou nas políticas de fomento à lei-

um olhar mais atento permite perceber grandes diferenças estruturais.

tura, ao criar o ônibus biblioteca. O lema era

Os dois projetos pensavam livros em preços baixos, menos de dez re-

“em vez de esperar em casa pelo seu público,

ais o exemplar. E estimulavam uma ampliação dos pontos de venda

vai em busca do seu público onde ele estiver”.

no território nacional, para além das livrarias tradicionais. Mas o Livro

Nos últimos 80 anos, o ônibus biblioteca tem

Popular proposto pela Biblioteca Nacional tinha como base a compra

sido retomado assiduamente, mas sempre re-

de estoques já prontos de editoras, o que acabou resultando na acusa-

produzindo a ideia original, sem se atualizar

ção de virar apenas uma forma dessas empresas se livrarem dos seus

pelas novas questões sociais e possibilidades

encalhes. Trazia outro problema: o projeto da BN deixava na respon-

tecnológicas.

sabilidade de cada editora a negociação e distribuição dos livros para

Na verdade, não foi apenas esse projeto

cada ponto de venda. Acontece que o custo de distribuição é um dos

que ficou parado no tempo nas propostas de

principais fatores de encarecimento dos preços de capa no Brasil. Não

fomento à leitura. Esta é uma das áreas mais

apenas pelas dimensões continentais do nosso país, mas pela ausência

conservadoras e ineficientes das políticas pú-

de políticas públicas na área.

blicas de cultura no Brasil. Quando se fala no

A proposta da Editora Genérica seguia um caminho totalmente

tema, acaba se pensando apenas em compra

diverso. Inspirada nos medicamentos genéricos, propunha a centrali-

de livros para bibliotecas, ou no máximo em

zação de produção e distribuição dos livros em uma organização par-

oficinas com autores.

ceira do Ministério da Cultura. Esta organização ficaria responsável

Comecei a me debruçar sobre a questão

pela contratação junto com as editoras do “princípio ativo” de livros

com mais afinco em 2010, quando, a partir

em catálogo, ou seja seu conteúdo, e os adequaria para um formato

de conversas com a Secretaria de Políticas

padrão de livro de bolso. O formato unificado permite o dimensiona-

Culturais do Ministério da Cultura (então na

mento de custos de estocagem e envio, além da criação de displays

excelente gestão de Juca Ferreira), elaborei em

para divulgação e venda. A centralidade de produção permitiria a

parceria com a Heloísa Buarque de Hollanda

negociação com gráficas de tiragens mais altas, reduzindo drastica-

um projeto de incentivo à leitura, denomina-

mente o preço de impressão, e o custo de distribuição também se-

do “Editora Genérica”. Após alguns meses de

ria reduzido, por conta do envio ser realizado do mesmo ponto e em

trabalho, apresentamos uma proposta, que

maiores quantidades.

foi encaminhada também para a Secretaria

As editoras e os autores receberiam remunerações pelos exempla-

do Livro e Leitura do Ministério da Cultura.

res vendidos, em lugares alternativos aos pontos tradicionais de ven-

Infelizmente, com a mudança de governo e a

da e chegando a um público mais amplo. A preocupação do Ministé-

demolição dos projetos na gestão seguinte, a

rio da Cultura na época, de possibilitar que os futuros beneficiários

proposta não seguiu adiante.

do Vale Cultura pudessem ter acesso a livros de qualidade, poderia

À primeira vista, o projeto da Editora Ge-

ser sanada com negociações para transformar espaços como as lojas

nérica trazia algumas semelhanças com o Pro-

dos Correios e as Farmácias Populares em possíveis pontos de venda,


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o que permitiria o alcance desses livros em todo território nacional.

de impressão muito mais compactos. Já exis-

Assim, o projeto da Editora Genérica visava possibilitar preços acessí-

tem experiências de gráficas digitais instala-

veis a partir do aumento de escala da edição, da diminuição de custos

das em vans e microônibus.

de distribuição e do pagamento justo de todas as partes envolvidas no negócio do livro.

Concebi então um projeto de um ônibus -editora, que circulasse por pontos estratégi-

Para defender o projeto, escrevi algo em que acredito profunda-

cos da cidade (comunidades, centros cultu-

mente: que a relação do leitor com o livro não é passiva. Como leitor

rais, etc.), oferecendo um catálogo de livros

apaixonado, sei o quanto muitas vezes é preciso retornar continua-

e também o serviço para edição de livros de

mente ao livro, rabiscá-lo, interagir com ele, possuí-lo, para realmen-

pessoas desses lugares. Acredito que tal pro-

Em 1930, o sempre inventivo Mário de Andrade inovou nas políticas de fomento à leitura, ao criar o ônibus biblioteca. O lema do projeto era “em vez de esperar em casa pelo seu público, vai em busca do seu público onde ele estiver”. Nos últimos 80 anos, o projeto tem sido retomado assiduamente, mas sempre reproduzindo a ideia original, sem se atualizar pelas novas questões sociais e possibilidades tecnológicas. te acessar o seu conteúdo. Portanto, a política pública que restringe o

jeto seria inovador como forma de criação

leitor que tem menos renda a só poder utilizar livros em bibliotecas

e difusão de cultura. O ônibus traria dentro

para mim sempre será deficitária, já que o obriga a uma relação de con-

dele o equipamento gráfico, compacto e de

servação com o objeto livro, e de não poder usufruir desse objeto por

qualidade (já existem impressoras digitais que

tempos mais duradouros. Em outras palavras, acredito que são neces-

realizam não apenas a impressão do miolo e

sárias políticas que permitam que o usuário constitua a sua própria

da capa dos livros, mas o acabamento destes

biblioteca, caso assim deseje.

com qualidade), e um pequeno bureau que

Mas, com o correr do projeto, fui percebendo que mesmo assim faltava algo nele: ele ainda seguia uma concepção analógica, do século

possibilitaria a criação de livros inéditos, com um designer e um revisor.

XX. Estava centrado na ideia de existir um produtor de conteúdos (o

Ao parar em cada lugar, os profissionais

autor e a editora) e um receptor (o leitor). Vivemos em outro tempo.

receberiam os originais de pessoas da comu-

Agora, é necessária uma relação de mão dupla. De um lado, é preciso

nidade, ao mesmo tempo que ofertariam o

dar voz à sociedade, permitir que ela se expresse. De outro, estar atento

catálogo da editora, por preços acessíveis. Os

para saber que, sem criar diálogos com outros agentes da sociedade e

livros realizados em um local seriam adicio-

com outras culturas, essa voz não será efetiva.

nados ao catálogo, possibilitando a troca de

Foi então que comecei a repensar o projeto do ônibus biblioteca de Mário de Andrade, dentro de outra dimensão. As novas tecnologias digitais de impressão permitem não apenas a diminuição de escala de tiragem (os livros sob demanda), mas também criaram equipamentos

saberes entre as comunidades e a disponibilização deles para a sociedade. Mantendo o significado da palavra “ônibus” em latim, seria a Editora Paratodos.


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Rafael Campos Rocha




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