RAUL CÓRDULA mesopotâmia

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RAUL CÓRDULA MESOPOTÂMIA

curadoria JomardMunizdeBritto

CÓRDULA MESOPOTÂMIA 05/05/2010 -06/06/2010
RAUL
VistadoRecifecomcatarata fotografia ∙ 2010

CIDADE

nas

de

DUPLA
INSTAURAÇÕES
RAUL CÓRDULA JomardMunizdeBritto Recife, abril de 2010.

Talvez a mais difícil escolha seja evitar a citação de nomes. Por que?

Pela indecisão ou vastidão do mundo das nomenclaturas?

A trajetória singularmente plural de Raul Córdula nos confunde de tal modo com a sucessão e sobretudo a sincronicidade de gerações e personagens que se torna quase impossível a tentativa de selecionar pessoas, instituições e acontecimentos de suas e nossas MEMÓRIAS DO OLHAR. Difícil é dizer pouco: raríssima tarefa em processo. Muito além das celebrações e dolorosos esquecimentos. Arrisquemo-nos. Vamos de mãos dadas aos desacatos. Mais adiantemos algumas de nossas estratégias e cumplicidades. Dentro e fora, tão perto longe dos empoderamentos e precariedades. Desafios que se desdobram desde que sua obra continua sendo, por abrangência e abordagens, uma obra sempre em dobras, perspectivas, autosuperações. Luzes e sombras caleidoscópicas. Espelhos e especulações sobre imagens em transe de concreções, correspondências, concretudes. Palavras escavando territórios e nomadismos. Além dos modismos e modulações etiquetadas.

Memórias nada vaidosamente secretas e já redefinidas por ele mesmo, talvez o melhor intérprete de suas concepções, relendo-se em diálogo com os outros e outras, afins e até dissonantes. Por isso lancemos a hipótese de que sua idéia nucleadora esteja na PAISAGEM ZERO.→

- “Uma pintura filosófica com os ornatos das catedrais góticas, mas uma pintura contemporânea do seu futuro, o eterno agora da arte: uma pintura de 1922 que nos faz pensar, ainda hoje, no amanhã.”

O que RC escreve sobre Vicente do Rego Monteiro pode ser revertido e transcriado por ele, além dele e de nós, enquanto marco demarcador da melhor empatia no poema fundante de João Cabral de Melo Neto:

a paisagem

zero pintura de Monteiro, V. do R.

A luz de três sóis ilumina as três luas girando sobre a terra varrida de defuntos. Varrida de defuntos mas pesada de morte: como ág ua parada, a fruta madura. Morte a nosso uso aplicadamente sofrida na luz desses sóis (frios sóis de cego); nas luas de borracha pintadas de branco e preto; nos três eclipses condenando o muro; no duro tempo mineral que afugentou as floras. E a morte ainda no objeto (sem história, substancia, sem nome ou lembrança) abismando a paisagem, janela aberta sobre o sonho dos mortos.

A integral transcrição do poema nos sugere mais do que a interação das artes, um dialogismo de semioticidades, além do duplo e múltiplo: um pensamento pensante no abismo das literacidades.

Percebe-se um clamor apocalíptico sem misericórdia. Um tremor de barbárie no presente do indicativo. O peso da morte instaurando-se em fruta madura tão luminosa quanto opaca em sonhos. Ou vice-versa: tão decifrável em pesadelos quanto enigmática nos frutos terrestres. Uma fulguração imaginária com certeza es barrando no real: duro tempo mineral. Mortos sem sepultura percorrendo sons cósmicos na agonia dos eclipses. Vislumbremos: urubus sobrevoando no mais alto da Sé de Olinda ao Marco Zero reciferido em mares, mangues, marés. Náufragos de azuis rasos e profundos. Abismando-se em paisagens.

Sob o signo terciário, quando João Cabral aponta imageticamente para três sóis iluminando três luas, paira no ar das letras e palavrações a sugestão de que o poema – a obra de arte em sentido mais latente – intenciona um pensar além das dualidades, dicotomias, sístoles/diástoles.

O três indicaria um analógico pensamento a partir de uma luz que não se reprime em duas direções, multiplicando-se em perspectivas, horizontes de possibilidade da memória enquanto duração e inventividade. Jamais anulando-se na mera cronologia da linearidade, começo-meio-fim-recomeço, antes-depois, amoródio, passado-futuro.

Memória-duração onde a paisagem zero nos remete e compromete com o grau zero da escritura, o texto-telainstauração dentro e fora do contexto, pela mutação do T em D: escridura, o eterno agora da arte transfigurado por Raul Córdula. Paisagem zero: da fome ao desarmamento nuclear zero.

ESCRIDURA: escrevivendo na tela, no texto, no corpo, na página em branco.

Na corporalidade instaurando a dureza que se conjuga com duração, finitude que se dispõe e prolonga indefinidamente. Em particípio presente: perdurando. Utopia concreta? Laboratório de criticidades?

Sem a escrita automática dos sonhos, lapsos, chistes, livres associações, sem a escrita metalingüística enovelando-se por si mesma, quando a metalinguagem pode recair no mais fascinante dos solipsismos ou na mais obsessiva das erudições. Duas polarizações que os três sóis e três luas desejam erradicar, transcender, transfigurar.

Nessa terra varrida de defuntos, clamor de tantas barbáries e apartações, empoderamentos do cínico pragmatismo, a escridura luta pela intencionalidade das INSTAURAÇÕES.

Cidade dupla, múltiplas linguagens. Sem a miragem de paraísos perdidos em cidades dilaceradas. Abismando-se, interrogando-se, reinscrevendo-se na PAISAGEM ZERO além da mimese figurativa e do imaginário abstracionista, a escridura na tela-texto-instauração continua apostando na janela aberta das concreções além e aquém das dualidades. Párias brasilíricos pelo mangueterno de fissuradas e reinventadas Mesopotâmias. Tudo é paisagem sem decorativismo: do lodo à lama na farda do soldado. Pela presença dos ícones da politicidade na travessia de nossas admirações: Arraes, Gregório Bezerra, Humberto Costa. Pela visão panorâmica do Reciferido em catarata. Mistérios gozosos sem donatários. Desmitificação dos levianos empoderamentos.

Eternos bossanovistas, Raul Córdula e Amelinha Couto cantarolando Nietzsche em João Gilberto, relembrando Vanildo

Brito e Jomar Moraes de Souto, símbolos reencarnando gerações...59, Sanhauá, tropicalista, pós quase tudo em modernidades: Porque te amo eternidade...

Todos os rótulos, escolas, manifestos, radicalidades programáticas, dissipações cognitivas, todas as dissertações analítico-universitárias, cartografias desejantes, todos os excluídos, sem esquecermos o sentimento trágico do mundo nem o indispensável senso de humor. Todas e todos percorrendo a MEMÓRIA-DURAÇÃO-instauradora na história das artes implodindo em contemporaneidades. Perduração do olhar nas poeticidades.

Tudo isso e aquilo e muito mais revisitados por uma antropofagia aglutinadora de perspectivismos antropológicos. Tentando ultrapassar as bossas e boçalidades do intelectualismo. Leque aberto e fechado para os hermetismos que nos apavoram e deliciam. Fecundas contradições da lei do desejo no corpo mutante dessas e outras INSTAURAÇÕES.

EXPOSIÇÃO

PRODUÇÃO

Tereza Menezes, Gabriela Fiúzia e Bárbara Collier

CURADORIA

Jomard Muniz de Britto

FOTOGRAFIAS

Raul Kawamura

PROJETOGRÁFICO

Pedro Alb Xavier

ORGANIZAÇÃOGERAL

Fernando Neves e Luciana Carvalho

Recife, maio de 2010

apoiorealização cultural
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