Incorporações: Imagem e materialidade de arquiteturas populares contemporâneas em sertões da Bahia

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IMAGEM & MATERIALIDADE DE ARQUITETURAS POPULARES CONTEMPORÂNEAS EM SERTÕES DA BAHIA


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INCORPORAÇÕES: IMAGEM & MATERIALIDADE DE ARQUITETURAS POPULARES CONTEMPORÂNEAS EM SERTÕES DA BAHIA


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Associação Escola da Cidade São Paulo, 2020 pesquisa teórica, visual e projeto gráfico pedro levorin orientação profa. dra. marianna boghosian al assal

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca composta pela orientadora Marianna Boghosian Al Assal e os professores pesquisadores convidados Yuri Formin Quevedo (Escola da Cidade) e Marcia Sant'Anna (UFBA), para obtenção do título de Graduação em Arquitetura e Urbanismo.

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

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LEVORIN, Pedro. Incorporações: imagem e materialidade de arquiteturas populares contemporâneas em sertões da Bahia. / Pedro Levorin — São Paulo, 2020. 254 p..: il.; 29 cm. Orientadora: Marianna Boghosian Al Assal. TC (Trabalho de Curso) - Associação Escola da Cidade Arquitetura e Urbanismo, 2020. 1. Sertão. 2. Nordeste. 3. Arquitetura popular. 4. Partido dos Trabalhadores. I Título.

CDD 728.10981


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IMAGEM & MATERIALIDADE DE ARQUITETURAS POPULARES CONTEMPORÂNEAS EM SERTÕES DA BAHIA


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13-29 INTRODUÇÃO 31-85 CAPÍTULO UM TRANÇA HISTORIOGRÁFICA —Sertão 35 —Nordeste 55 —Cultura popular 71 87-197 CAPÍTULO DOIS DIMENSÕES ESTÉTICAS E SIMBÓLICAS DAS FACHADAS DE PLATIBANDA EM SERTÕES


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199-249 CAPÍTULO TRÊS O GOVERNO LULA E A CONSTRUÇÃO CIVIL: —Percepção histórica & consolidação de uma base 199 —Construção: a convergência de um plano 217 251-252 CONSIDERAÇÕES FINAIS 255-258 AGRADECIMENTOS 231-267 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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Para Neyde, minha avó, que me fez ter gosto por longas histórias. Para Raimundo Nonato, meu avô, que nasceu no Norte e trabalhou no Sul. Em memória.


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Você corta um verso, eu escrevo outro Você me prende vivo, eu escapo morto De repente, olha eu de novo Perturbando a paz, exigindo troco Vamos por aí, eu e meu cachorro Olha um verso, olha o outro Olha o velho, olha o moço chegando Que medo você tem de nós? Olha aí… Pesadelo, Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro


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introdução

Este trabalho se inicia com minha ida a sertões da Bahia, em janeiro de 2017. As primeiras relações visuais que estabeleci com o espaço, nesse primeiro momento, foram entre os municípios de Monte Santo, Uauá e Canudos. Uma hipótese tímida, porém embrionária, surgiu a respeito da condição imagética e material das paisagens urbanas. Os três municípios, que levam os nomes de suas cidades-sede, se ampliam ao redor delas e são compostos por diversos distritos, povoados e propriedades rurais. Localizam-se na Mesorregião do Nordeste Baiano, na região do Semiárido brasileiro, em pleno bioma da caatinga. O grande apoio político manifestado pelo eleitorado nordestino ao Partido dos Trabalhadores era frequente na rotina das eleições brasileiras desde 2006 (singer, 2012). Foi com a reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva que isso se deu, assinalando um comportamento eleitoral e regional inédito (singer, 2012). As pesquisas sobre intenção de voto da população divulgadas semanalmente pelos grandes veículos da mídia nacional, a cada quatro anos, apontavam a relevância que as grandes transformações sociais na região ganharam no cenário eleitoral.


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O recente ciclo político parecia algo imanente às paisagens urbanas e rurais, que naquela ocasião ainda me eram desconhecidas. Meus referenciais apenas se balizavam, por exemplo, por uma relação superficial com aquilo que me chegava sobre “o sertão”. Os trabalhos que me aproximavam deste espaço e a maneira como eram recebidos foram responsáveis por limitar meu imaginário a seu respeito. O universo que previa a seca, o barro, a escassez, o típico, o pitoresco, o tradicional etc., foi confrontado de forma tanto material quanto estética pelo que conheci das cidades e do campo. A realidade local, que se projetava muito além da minha expectativa, me convocou uma intensa empatia ao perceber tudo o que aquele espaço narrava através de suas paisagens, especificamente por meio de um tipo de arquitetura. Enquanto estudante de arquitetura e urbanismo, determinadas tipologias de casas chamaram minha atenção - à luz do que havia conhecido pelo trabalho de Anna Mariani em seu livro Pinturas e Platibandas (2010) - não somente pelos aspectos que, de certa forma, se aproximavam das casas registradas pela fotógrafa soteropolitana, mas por outros, que delas se distanciavam consideravelmente. Eram casas cujas fachadas possuíam platibandas, e essas extensas superfícies eram revestidas pelos mais diversos tipos de módulos cerâmicos, ilustrados por variados padrões impressos. Sugeriam não só a ampla disponibilidade destes materiais e a possibilidade de adquiri-los, mas jeitos específicos de serem combinados, que lembravam uma intenção estética também observada nas fachadas fotografadas por Mariani. Além destes módulos, era considerável a presença de blocos cerâmicos, telhas cerâmicas e gradis de ferro galvanizado, materiais constituintes de tais arquiteturas, que se espalhavam pelas cidades. Essas informações passaram a mobilizar meu pensamento a respeito de quais seriam as condições que tornavam possíveis que estes materiais constituíssem tão amplamente as paisagens urbanas. Estas arquiteturas não compunham os conjuntos de moradia popular presentes nas cidades, elas eram autogeridas pelos construtores. A imagem das cidades atravessadas por diversos processos de construção era tão ostensiva, que tornou vago o interesse pela imagem “natural” e “pitoresca”, tão sublinhada por livros, filmes e músicas que falam de sertão.


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A condição opulenta da construção civil nestes municípios trouxe reflexões sobre a conjuntura política do país dos últimos 14 anos, à época. As fachadas revestidas de porcelanato despertaram o interesse sobre quais seriam as articulações sociais, econômicas e políticas presentes naquele tipo de arquitetura, além de direcionar o olhar para transformações, diante das condições recentes naquele momento, no trabalho plástico e compositivo de pedreiros. A inquietação despertada pela imagem de cidades sertanejas, baseada principalmente nessas casas, me conduziu àqueles sertões novamente em 2019. De março a junho daquele ano, residi em Monte Santo e Uauá, cidades já conhecidas. O período que reservei para adentrar naquela região me permitiu chegar até a cidade de Curaçá, completando a tríade de espaços rurais e urbanos em que vivi para produzir este trabalho. Esta última cidade é distrito-sede do município homônimo, que se localiza na beira do Rio São Francisco, Mesorregião do Vale São-Franciscano. Os três municípios são limítrofes na sequência em que aqui estão apresentados, formando uma grande área contínua. Aquele período foi imprescindível para a estruturação desta pesquisa, que muito se baseia nas relações que criei com pessoas e lugares destes três municípios. A partir de ideias trocadas a respeito da região, de sua cultura, do Partido dos Trabalhadores, da construção civil foi que produzi as imagens que constam nesta monografia e, sem dúvida, os laços afetivos estabelecidos foram cruciais para o aprendizado que tive durante minha estadia. A ruptura entre a expectativa sobre as paisagens e a própria realidade física e material delas me trouxe a obrigatoriedade de pensar qual seria a posição de alteridade necessária para desenvolver esta pesquisa. Seria necessário confrontar, então, o que consagrava tal expectativa. Independentemente de qualquer julgamento estético sobre as fachadas, seria preciso construir uma lente de análise para compreender a legitimidade das construções simplesmente por elas existirem. Desta forma, passaram a ser analisadas enquanto um tipo de expressão cultural e material de uma população e de uma região, e sem dúvida reforçada pelo fato de o espaço inegavelmente ter passado por mudanças sociais e econômicas tão expressivas. Para, então, observar tal realidade arquitetônica como um contraponto necessário aos estigmas que imobilizam as ideias constituídas sobre sertões, Nordeste e a própria noção de cultura popular.


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Estas arquiteturas mostraram-se como ferramenta interessante de debate, indo de encontro aos arquétipos que limitam as complexas realidades de culturas populares. São aspectos historicamente construídos, difundidos e assimilados por um imaginário social. São reconhecidos como estigmas pela força que os animam, já que insistem em sobrepor noções poéticas e estéticas frente a questões iminentemente históricas e sociais, fundamentais para a construção de um pensamento crítico sobre estes sertões, especificamente. A bibliografia que compõe esta pesquisa recorre a diversos campos do conhecimento e tipos de fontes, justamente porque o viés de investigação proposto mobiliza assuntos de diversas áreas. Já de antemão, assumo a responsabilidade sobre algumas relações que possam soar desarticuladas. Todavia, seria impossível escrevê-la sem adentrar, mesmo que de maneira primária, assuntos que escapam à historiografia da arquitetura clássica e hegemônica. Para que seja possível abordar o objeto em questão, será necessário apresentar alguns conceitos relativos às construções das ideias de sertão e Nordeste. Rondinelly Gomes Medeiros, em seu artigo Mundo Quase-Árido1 (2019), é quem dispara a percepção sobre estes espaços, ao lembrar na paisagem tradicionalmente estabelecida sentidos da colonialidade que a compõe. Cultura popular é o prisma que levou os estudos principalmente à filosofia, geografia social, história e sociologia. Isto posto, pelo esforço de encadear certas leituras e estudos, julgo que este trabalho é um ensaio inicial de conexões que, para amadurecer, deve prosseguir. Os diversos campos de ideias mobilizados pelas fachadas merecem ser discutidos e aprofundados. Articulações e bibliografias fundamentais deste trabalho foram trabalhadas em conjunto, no contexto de um grupo de estudos. Em associação com outros graduandos pesquisadores – Antonio Zellmeister, Beatriz Sallowicz, Beatriz Hinkelmann, Carolina Dentes, Fernanda Vaindergorn e Luara Macari – e com o 1

O autor propõe sua perspectiva crítica em função de “três lugares que estão na mesma região geográfica”. Seriam eles sertão, Nordeste e semiárido. Medeiros introduz sertão como imagem e conceito, “e para quem mora lá, até um afeto”. O entendimento de Nordeste se daria “enquanto um conceito sociopolítico recentemente inventado, ou seja, uma arma-de-guerra, um conceito bélico”, e semiárido como “o nome da região constituída pelo bioma, mas que foi apropriado por vários grupos de agricultores”, com um sentido profundamente próprio. Informações verbais fornecidas por Rondinelly Gomes Medeiros na exposição do artigo Mundo Quase-Árido, no colóquio Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra, à Casa de Ruy Barbosa, ocorrido entre 15 a 19 de setembro de 2014, no Rio de Janeiro.


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professor Yuri Quevedo foram produzidas discussões a respeito das questões que envolvem o popular enquanto categoria e nomenclatura. A partir da perspectiva de Lina Bo Bardi, o termo se ramificou para outros contextos teóricos, que não só o da arquitetura, em que foi historicamente discutido. Esta pesquisa orienta-se, assim, por três diretrizes principais. A primeira enfatiza a necessidade de se ampliar o tema dentro do debate acadêmico, de modo que arquiteturas populares não sejam apenas um sinônimo de construções cujas técnicas são tradicionais e vernaculares, como são comumente tratadas. O esforço aqui realizado se dá em função de que seja possível alargar as perspectivas e o interesse sobre suas diversas manifestações. E, assim, acompanhar o movimento das culturas de classes populares, que recentemente passaram por substanciais transformações socioeconômicas. É este o motivo que faz com que seja necessário ampliar o olhar para o que se chama de popular. A segunda orientação, por tocar em questões específicas da região em que essas casas se encontram, procura também colocar o caráter imagético dessas arquiteturas populares frente às históricas construções estéticas, culturais, poéticas, artísticas etc. que estigmatizam noções de sertão e Nordeste.2 Por fim, desejo de alguma forma contribuir com a discussão dessas realidades urbanas cujas bases são particulares, mas que integram uma realidade de transformação expressiva em dimensão nacional, e que se estendem muito provavelmente a interiores de outros estados brasileiros – principalmente nas regiões Norte e Nordeste. A arquitetura, concentrada nas imagens das fachadas de platibanda3, se encontra num ponto de gravidade essencial. É mediadora entre o espaço da cidade, heterogêneo, comum, e o doméstico, individual. É o que articula a técnica do trabalho de pedreiros, suas expressões estéticas, com as condições históricas, sociais e econômicas de seu tempo. As fachadas, enquanto 2   Regiões onde transformações socioeconômicas foram observadas de maneira mais intensa ao longo dos dois primeiros governos petistas. SINGER, André. Os sentidos do lulismo. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Fachada de platibanda é como Maria de Bethânia Uchôa Cavalcanti Brandle (1996) se refere às fachadas das tipologias que aqui são estudadas. Assim será usado ao longo de todo o texto.

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receptáculos ativos, elaboram as interações sociais, econômicas, políticas, culturais e simbólicas. Possibilitam o reconhecimento de especificidades de determinados grupos, tempo e espaço. Em 2017, o itinerário da primeira ida a sertões da Bahia muito se baseou em cidades por onde o percurso militar da Guerra de Canudos havia marcado presença. Foi um percurso claramente orientado por “um sertão” histórico, documentado. Depois de exatamente dois anos, após o período de intercâmbio acadêmico que me levou a estagiar na cidade de Cachoeira, na região do Recôncavo Baiano, havia me programado para permanecer alguns meses naqueles sertões. As cidades de Monte Santo e Uauá e seus arredores, preliminarmente conhecidas, já faziam parte do destino. Não estava certo de que o município de Canudos seria contemplado pelo caminho, mas um terceiro município haveria de integrar a pesquisa. O município de Monte Santo tem sua população estimada em 49.278 habitantes (ibge, 2020). Segundo dados do ibge de 2010, menos de 10% de sua população viva no meio urbano, e mais de 90% estava baseado no meio rural4. O município possui sua centralidade administrativa no distrito-sede homônimo. Possui também outro distrito, Pedra Vermelha, e dezenas de povoados. Os percorridos por este trabalho foram: Curral Falso, Gameleira, Jenipapo, Itapicuru, Lagoa de Cima, Lagoa do Meio, Lagoa do Pimentel, Lagoa do Saco, Laje, Mandaçaia, Poço Dantas, Riacho da Onça, Salgado, Serra da Bahia, Sítio da Naninha, Tapera, Várzea dos Bois, Vila Nova e Vila Torta. Monte Santo faz fronteira com os municípios de Cansanção, Euclides da Cunha, Quijingue, Uauá, Canudos, Itiúba e Andorinha. José Calasans (1983)5 oferece um breve recorte histórico da transformação do que se chamava de Serra de Piquaraçá, ao que hoje se entende como o município de Monte Santo6. O historiador sergipano, e um dos principais nomes da bibliografia 4  O Censo Demográfico de 2010 aponta que 10.761 pessoas viviam no meio urbano e 13.533 no meio rural, totalizando 24.294 habitantes no município. 5   SILVA, José Calasans Brandão da. Subsídios à história das capelas de Monte Santo. Salvador: 1983. Trabalho lido na Câmara de Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Natural do Conselho Estadual do Estado da Bahia, 1983. Editado pela Empreendimentos Turísticos (EMTUR), Salvador, 1983.

Ver também FILHO, Raimundo Pinheiro Venâncio. O sagrado e o profano no sertão da Bahia: a religiosidade em Monte Santo. 191 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Territorial e 6


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canudense, destaca a chegada inesperada em 1785 do Frei Apolônio de Todi na região. Intrigado pela semelhança entre a Serra de Piquaraçá com o Calvário de Jerusalém, Apolônio de Todi fundou uma Santa Missão. O intuito era transformar os três quilômetros rumo ao topo de Piquaraçá em uma via-sacra adornada por 25 capelas. A missão foi cumprida por fiéis sertanejos no Dia de Todos os Santos, e o local seria rebatizado como Monte Santo. É importante dizer que tanto Uauá como Canudos pertenciam ao antigo território do município de Monte Santo quando a recém-criada República do Brasil se lançou em campanha de extermínio contra os seguidores de Antônio Vicente Mendes Maciel, também conhecido como o Conselheiro. Foi nas periferias do município de Monte Santo onde Antônio transformou a antiga fazenda de Canudos no breve Arraial do Belo Monte, que prosperou entre os anos de 1893 e 1896, sob um regimento social e religioso alternativo, tanto ao poder federal quanto às oligarquias regionais (calasans, 1983). Conselheiro havia peregrinado por 25 anos por sertões da Bahia e de Sergipe, construindo e reformando aguadas, cemitérios e igrejas. Ele já conhecia Monte Santo e havia, inclusive, ajudado na restauração de algumas partes da via-sacra em 1892, pouco antes de fundar Belo Monte. Quatro anos depois, Monte Santo se tornaria uma base militar da campanha contra Canudos. Sua sede seria passagem e hospedaria para soldados, jornalistas, médicos e negociantes levados às caatingas em nome do morticínio conselheirista (calasans, 1983). Dentro destas circunstâncias, Euclides da Cunha seria um dos homens sudestinos a conhecer Monte Santo. Engenheiro, jornalista e militar, Euclides desembarcou ali no 6 de setembro de 1897, pouco antes da destruição final da comunidade belomontense. Assim como Antônio Conselheiro e, anos depois, Glauber Rocha, Euclides da Cunha cumpriria o rito da via-sacra e registraria sua passagem pela serra santa, descrita como um “prodígio de engenharia rude e audaciosa” (calasans, 1983, pp.3-4) em Os Sertões. O município de Uauá divide fronteira ao sul com o norte de Monte Santo e tem sua população estimada em 24.133 habitantes (ibge, 2020). Os dados do Desenvolvimento Social) – Superintendência de Pesquisa e Pós-graduação. Salvador, 2014.


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ibge de 2010 apontam pouca disparidade entre os números da população urbana com relação aos da rural7. O município possui alguns povoados no meio rural. Os que foram percorridos por este trabalho são: Caldeirão do Almeida, Caldeirão da Serra, Lagoa do Pires, Riacho das Pedras, Serra da Canabrava e Testa Branca. Uauá também faz fronteira com os municípios de Canudos, Chorrochó e Curaçá. Uauá tem início por meio da fazenda estabelecida Francisco Ribeiro, no século xviii (ibge, 2020). Desmembrou-se do município de Monte Santo em 1933, tornando-se sede do município homônimo (ibge, 2020). Ficou registrada por Euclides da Cunha como “o ponto mais animado daquele trecho de sertão” (cunha, 1967, p.207). O vilarejo seria citado algumas vezes pelo autor, pois foi na sede atual deste município onde se deu o primeiro confronto armado entre tropas do Estado e habitantes do Arraial de Belo Monte. Em Os Sertões (1967), encontramos a descrição do “episódio da madeira”, quando 104 praças de linha da Bahia foram enviados até Juazeiro para defendê-la de uma possível invasão conselheirista. Conta-se que Antônio Conselheiro enviava um grupo de homens para buscar a madeira comprada de um coronel juazeirense para a construção da Igreja do Bom Jesus. A notícia teria sido distorcida por autoridades locais, que a transformaram em ameaça de ataque e pediriam proteção militar ao Governo da Bahia. No 7 de novembro de 1896, alguns soldados chegariam em Juazeiro para proteger a cidade. E cruzariam, dias depois, 200 quilômetros de caatinga rumo ao Arraial do Belo Monte (cunha, 1967). A tropa baiana se encontrou com o grupo conselheirista ainda a caminho, na sede de Uauá, onde contariam 10 mortos e 16 feridos no final deste primeiro combate. Cunha (1967) narra que as baixas conselheiristas seriam de 150 homens sertanejos. Ainda segundo o autor, os militares voltariam às pressas para Juazeiro, com aparência de derrota, legitimando o alarme nacional lançado contra Canudos: pois foi quando “as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja” (p.212). Eis que surge das conversas trocadas no tempo em que estive nesta cidade a terceira e última localidade a ser pesquisada. O artista juazeirense Gildemar Sena    O Censo Demográfico de 2010 (IBGE) aponta que 10.761 pessoas viviam no meio urbano e 13.533 no meio rural, totalizando 24.294 habitantes no município. 7


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conta que a cidade em que vive há décadas, Uauá, era ponto médio da ligação entre Monte Santo e Curaçá, os povoamentos mais antigos da região. Naquela época, a fazenda Uauá acabou por se tornar entreposto comercial. Os tropeiros que rumavam do norte ao sul, e vice-versa, se demoravam sob um pé de tamarineiro vendendo mercadorias. Sena retoma que traziam rapadura, carne seca, cobertas e tecidos para fazer roupas. Ao contar sobre a estreita ligação histórica entre as antigas localidades sertanejas, completava-se a tríade: Monte Santo, Uauá e Curaçá. Os três municípios formam uma grande área contínua: dos interiores da caatinga, onde se situa o Piquaraçá, a Serra do Monte Santo, até a beira do Rio São Francisco. Curaçá é o município que faz limite ao sul com o norte de Uauá. Possui uma outra situação geográfica, já que parte de seu território toca as margens do Rio São Francisco. As invasões ao lugar que deram origem ao que hoje é cidade são mais antigas do que Monte Santo e Uauá. Em 1562, a primeira investida colonial se deu com o intuito de escravizar e catequizar os indígenas que ali estavam estabelecidos, sob o comando do Padre Luís de Grã. Belchior Dias Moréia (lopes, 2000) liderou invasões à procura de metais durante o século xvii. Noutra missão de catequese foi fundado o povoado de Pambu, ainda no século xvii. Foi elevado à categoria de distrito em 1714. No século xix passou a ser porto e sítio. A localidade já possuía outras nominações mais: Porto do Capim Grosso, Sítio Bom Jesus e Curaçá. O historiador Esmeraldo Lopes, autor do livro Caminhos de Curaçá (2000) atribui o nome atual à antiga expressão usada para se referir à região: “sertão de corassá”. Em 1832, o lugar foi elevado à condição de vila, e à condição município em 1834. Nesta época, fazia limite com os outros dois municípios existentes, Jeremoabo e Monte Santo (lopes, 2000). Movimentos fizeram a centralidade esmaecer, retornando às condições anteriores em termos administrativos. Novamente enquanto vila, Pambu é chamada de Capim Grosso em 1853. Em 1890 é elevada à condição de cidade com o nome de Curaçá. Antônio Conselheiro também passou por aqueles sertões, onde realizou obras ligadas ao sentido religioso e social de sua peregrinação (lopes, 2000). Lopes (2000) assinala que desde o início da ocupação este espaço era uma confluência entre vaqueiros que trabalhavam adentrados nos sertões da caatinga, dos beradeiros ali estabelecidos e daqueles que chegavam por meio do Rio, tanto colonizadores quanto negros escravizados.


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Habitam o município de Curaçá 34.866 pessoas, segundo dados do ibge (2020). Sua população se divide entre os 13.719 que habitam as áreas urbanas e 18.449 que vivem no meio rural. O município, além do distrito-sede homônimo, núcleo da ocupação colonial, divide-se em outros distritos: Barro Vermelho, Patamuté, Poço de Fora e Riacho Seco. Além das aglomerações urbanas que dão origem a estes distritos, foram visitados os povoados de Pedra Branca, Mundo Novo e São Bento. Além destes, ainda se inserem no município os povoados de Jatobá e Agrovilas (lopes, 2000). Fazem divisa com Curaçá os municípios de Abaré, Juazeiro, Jaguarari, Uauá e Chorrochó (ibge, 2020). O primeiro capítulo do trabalho propõe um pequeno mergulho nas questões historiográficas que constroem a ideia e imagem nacional de sertão, cujos sentidos originalmente são criados por uma perspectiva colonial. O desenvolvimento da discussão se dá principalmente a partir das leituras de Rios e Fronteiras: conquista e ocupação do sertão baiano (2017), de Márcio Roberto Alves dos Santos; de Manuel Correia de Andrade, A Terra e o Homem no Nordeste (1980), e da tese de doutorado de Anália Amorim, Habitar o Sertão (1999). Rondinelly Gomes Medeiros é um autor cujas colocações são cruciais, pois contam com vitalidade para transitar entre perspectivas historiográficas do espaço, criando certa vertigem fundamental entre aspectos do passado que são vistos no presente. O autor paraibano reitera a violência dos processos coloniais em sertões como algo fundante da condição física e visual de sua paisagem. É quem amplia a discussão crítica sobre o retrato que é nacionalmente difundido a partir do início do século xx, construído sobre seu clima e geografia. Assim como as percepções do autor, que entrecortam a historiografia em questão, minhas imagens de paisagens contemporâneas atravessam a exposição conceitual, dando forma às ideias de paisagem constantemente interferida. A tese de mestrado de Carolina Sacconi, A Transposição do Rio São Francisco: contradições da presença-ausência da obra ao longo de seus eixos (2012), é cara por sua cronologia a respeito da ideia de transposição. Sistematiza as continuidades de um processo de intervenção na paisagem pelo poder oficial, originado no período colonial, e que atravessa o Império, estendendo-se até a atualidade. Plano de desenvolvimento econômico para o Nordeste (1967), de Celso Furtado, situa os novos tratamentos


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oficiais relativos à questão das secas. Contribui com o reconhecimento formal de que o fenômeno se constrói por fatores também políticos e sociais. Ambas as obras são necessárias para o enlace com a discussão sobre o “Nordeste”, elaborada com o que expõe Durval Muniz de Albuquerque Júnior em A invenção do Nordeste e outras artes (2011). Elas fornecem balizas fundamentais para que rapidamente se desenhe o tratamento que a ideia dessa região ganha ao longo do século xx, e não só enquanto um traçado. Os textos Cultura Popular: um conceito e várias histórias (2003), de Martha Abreu; Conformismo e Resistência (1986), de Marilena Chauí; e As culturas populares no capitalismo (1983), de Néstor García Canclini, orientam noções de cultura popular das quais este trabalho se aproxima para poder olhar as fachadas de platibandas contemporâneas. O gancho é feito por meio de como sertões e Nordeste passam a existir dentro de um imaginário social, balizado essencialmente por uma postura e um olhar folclóricos. A ideia de distância se faz presente como um aspecto inerente aos três conceitos discutidos, sugerindo a alteridade daqueles que produziram e produzem seus sentidos. Este primeiro capítulo oferece parâmetros conceituais para caminhar com as outras análises, contribuindo para construir as dimensões das paisagens tratadas por esta pesquisa. Procura lançar bases para as análises das fachadas, entendendo o território do ponto de vista histórico, sociológico, político e geográfico. No segundo capítulo, a discussão se aproxima das antigas fachadas de platibanda pelo que traz o trabalho de Maria de Betânia Brendle (1996) e as fotografias de Anna Mariani (2010). A primeira, arquiteta pernambucana, estudou esta produção entre os anos de 1994 e 1996 em sertões de seu estado, e contribui com uma base teórica sólida para a discussão de especificidades deste elemento arquitetônico. Junto, algumas fotografias e textos publicados por Mariani em Pinturas e Platibandas (2010) compõem o olhar sobre estas arquiteturas. Suas imagens possibilitam falar sobre as fachadas atuais com mais propriedade, já que permitem analisar sentidos desta tipologia. Além das fotos de Mariani, imagens produzidas para esta pesquisa sobre resquícios de antigas construções – análogas às retratadas pela fotógrafa - aproximam percepções sobre o objeto e os conceitos que com ele se relacionam.


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Tão fundamentais quanto o livro de Mariani (2010) e as percepções de Brendle (1996) são as falas de Sr. João Ferreira8, pedreiro curaçaense de longa atuação profissional. Trazem elucidações essenciais com descrições sobre seu ofício, já propondo relações com as transformações sociais e econômicas observadas ao longo do período dos governos petistas. Levantando breves hipóteses sobre historiografia de tipologias, Quadro da arquitetura no Brasil (2000), de Nestor Goulart Reis Filho, encaminha percepções sobre primórdios das platibandas enquanto elementos que foram absorvidos pelas produções de arquiteturas populares9. Dessa maneira, sublinha-se a produção desse tipo de arquitetura nesse espaço do país enquanto fato cultural a partir de recorrentes manifestações estéticas e materiais. Deseja-se compreender tais fachadas de platibandas para além dos recortes históricos trazidos e de linguagens já sistematizadas e organizadas por uma historiografia clássica. O olhar sobre tais casas não se inicia e tampouco se encerra nas passagens e nos recortes históricos trazidos, já que são usadas outras ferramentas para a análise de linguagens e parâmetros já referenciados pela historiografia da arquitetura. Lina Bo Bardi (1994) e Milton Santos (1999) entram na discussão em virtude da condição socioeconômica dos agentes que produzem as fachadas e as relações que podem ser percebidas a partir desta perspectiva. São colocados pontos de vista a respeito da mudança do tipo de trabalho realizado frente às novas particularidades econômicas e sociais desta população, assim como suas

8   João Ferreira é um nome fictício, já que alegou não querer ter sua identidade revelada. Além de Ferreira, mais outros dois pedreiros foram entrevistados; Rodrigo Sena e Domingos, ambos residentes da cidade de Uauá. A escolha de inserir apenas a entrevista de um dos pedreiros se deu pelo fato de apresentar maior articulação com os temas propostos pela discussão aqui construída. De todo modo, é preciso sublinhar que existiu muita confluência nas perspectivas dos profissionais a respeito das questões históricas, políticas e técnicas que envolvem a produção de arquiteturas populares nestes sertões estudados. 9  Neste momento são levantadas algumas linhas historiográficas de autores sobre a construção de edificações com platibandas. Procura-se olhar para diversos vetores responsáveis por constituir estas arquiteturas enquanto fato cultural não isolado, que possui tanto suas especificidades quanto relações e influências de outras movimentações sociais, culturais e históricas sobre o território. De todo modo, não se propõe uma cronologia oficial, e sim uma investigação sobre a assimilação da fachada de platibanda enquanto um fazer reconhecidamente popular.


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relações com as dinâmicas das culturas de massa. É chamado de incorporações10 o processo que rege a produção das fachadas de platibandas contemporâneas trazidas por esta pesquisa. O termo é recorrentemente empregado dentro das descrições de arquiteturas populares, ou mesmo dentro de discussões sobre cultura popular. No caso desta pesquisa, propõe nomear as relações entre: 1) permanências das fachadas de platibanda e de sua agência; 2) os materiais industrializados da construção civil disponíveis no mercado; 3) a inserção socioeconômica de classes populares neste mercado através de sua nova capacidade de consumo; 4) as transformações no trabalho dos pedreiros neste outro contexto do construir popular; 5) o contexto político que possibilitou todos os pontos anteriores, que aponta a recorrência da produção destas fachadas neste período.

O terceiro e último capítulo relaciona as transformações destes espaços e da produção destas arquiteturas aos dois primeiros mandatos do ex-presidente Lula. André Singer, em Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador (2012), traz questões-chave para a compreensão da postura dos governos petistas. O autor, cientista político e ex-porta-voz deste governo (2003-2007), estabelece as diretrizes políticas do plano de crescimento econômico aliado à redução da pobreza no país. Discursos do ex-presidente são articulados com as falas de Sr. João Ferreira, criando uma base documental do período político e suas reverberações sociais e na área da construção. Ferreira e Lula parecem responder um ao outro sobre aspectos do período histórico. Essa relação entre falas sublinha a ampliação do setor da construção civil como principal alicerce do crescimento econômico nacional com ênfase nos estados nordestinos. O capítulo encerra com a ideia de casa como um dos principais símbolos da articulação política, social, econômica e produtiva nacional que a partir de 2003 se torna mais explícita e incentivada. É o objeto fomentado enquanto articulador de uma   “Incorporações” é uma palavra muito usada dentro do debate das culturas populares, justamente por sublinhar o processo de assimilação e apropriação simbólica de visualidades e de materiais por diferentes grupos sociais. Não deixa de narrar procedimentos que marcam questões sociais, econômicas e políticas dos processos culturais de uma sociedade de classes (CHAUÍ, 1986). Mariani (2010) coloca em seu texto que as fachadas fotografadas por ela apresentariam “incorporações incessantes de formar novas” (p.234). 10


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série de transformações propostas pelas diretrizes dos governos petistas. Aparece desde os primórdios do primeiro mandato enquanto discurso, desencadeando diretrizes econômicas e produtivas em compasso com os programas sociais aplicados. Todavia, entende-se que a existência de fachadas de platibanda construídas com materiais industrializados e revestidas de cerâmica é algo anterior ao início dos governos petistas. Mariani (2010, p.231), a partir de suas viagens aos interiores nordestinos, já assinalava que a cada ano se observava a gradual inserção de materiais desta natureza na composição das fachadas. Porém, o que se nota é uma intensificação deste tipo de fachadas a partir das especificidades daquele momento, como veremos aqui. Neste trabalho, as fachadas de platibanda passaram a exigir o estudo de um campo ampliado de conceitos e assuntos. As bibliografias sobre o caso de arquiteturas populares contemporâneas no Brasil são escassas e marcadas por estratégias de abordagem que são comumente observadas. Sobre o tema específico, a única publicação encontrada é Desvios (2018), do arquiteto e designer gráfico Gustavo Piqueira, que fotografa as fachadas de platibandas e muros com revestimento cerâmico em sertões do Piauí. A publicação traz um ponto de partida muito semelhante ao do trabalho aqui apresentado, mas se encaminha para uma reflexão do julgamento estético a partir do gosto, elaborando aí sua postura de alteridade. O autor continua sua breve análise a partir das relações que se estabelecem entre os conceitos de popular e erudito na história da arte. O tema já possui suas reverberações acadêmicas, ainda que esparsas.

Nos últimos meses, pela mediação do colega Gabriel Dutra, soube de Maria Clara Calado, estudante de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Ciências Humanas - esuda da Universidade Católica do Recife. Calado também produzia seu Trabalho Final de Graduação a respeito das fachadas com revestimentos industrializados. Seu recorte de campo é a cidade de Itaparica, distrito de Jatobá, sertão do estado de Pernambuco. Tive a oportunidade de conversar com ela sobre a dificuldade de elaborar a discussão, pelos aspectos já expostos e sobretudo por ser um fenômeno recente nos espaços urbanos. A única publicação que discute objetivamente o amplo tema de arquiteturas populares no Brasil é o livro Arquitetura Popular Brasileira, de Günter Weimer (2005).


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Nele se encontram diversos exemplos de arquiteturas em variados contextos regionais brasileiros. O autor parte de um processo etnográfico com colocações sobre diferenças inter-raciais que compõem a sociedade brasileira. Relaciona as arquiteturas populares estudadas com matrizes vernaculares estrangeiras e suas origens étnicas. Suas análises se baseiam em percepções sobre a formação cultural do país, através de aspectos como a sociabilidade e o intercâmbio de práticas sob o trinômio racial da população brasileira. Apresenta variadas relações entre fatos históricos e um olhar crítico sobre o processo colonial, suas reverberações na sociabilidade e em diversas práticas do construir. São também trazidas questões da ordem social e econômica, ainda que de maneira pouco específica. De todo modo, ainda que não seja a maneira como aqui se olha para a questão - o autor denomina, no singular, “arquitetura popular brasileira” -, Weimer sistematiza alguns aspectos que julga “características gerais” da “arquitetura popular brasileira”, e que podem ser observados nos exemplos aqui estudados. Mais do que observar a “arquitetura popular brasileira”11 enquanto um único conceito que possui “funcionamentos” aplicáveis em diversas situações, prefere-se entender aqui a particularidade do fato estudado. E, partindo deste olhar, observar as fachadas de platibanda como elaboração material que se constrói por relações culturais, sociais, econômicas e políticas específicas, produzindo sentidos técnicos, plásticos e estéticos particulares. De todo modo, compreendem-se nesta obra avanços nas discussões sobre as arquiteturas populares, possibilitando um afinamento crítico a respeito do assunto.

Cada processo merece atenção por suas inúmeras especificidades, tornando-se distante de uma ideia total de “arquitetura popular brasileira”, e aqui se adota o que Néstor Garcia Canclini (1983) propõe com o uso da nomenclatura no plural, ampliando as percepções acerca da heterogeneidade do que se entende enquanto culturas populares. As arquiteturas populares, como aqui escolhemos chamar através do que propõe Canclini, seria um dos exemplos manifestados destas práticas culturais: “As culturas populares (termo que consideramos mais adequado do que cultura popular) se constituem por um processo de apropriação desigual dos bens econômicos e culturais de uma nação ou etnia por parte dos seus setores subalternos, e pela compreensão, reprodução e transformação real e simbólica das condições gerais e específicas do trabalho e da vida.” CANCLINI, Néstor García. As culturas populares no capitalismo, São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. p.42. 11


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A planície iluminada do sertão de Monte Santo. BA-220, em direção à cidade de Euclides da Cunha. Fotografia tirada do Alto da Serra que dá origem a cidade, no Santuário da Santa Cruz.


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capítulo 1: trança historiográfica

Contrapor uma neutralidade e uma objetividade dos termos. (FIGUEIREDO, 2020)1

Este trabalho desenvolve-se a partir de termos que pedem uma atenção preliminar em relação aos seus usos. Sendo os objetos fundamentais desta análise exemplos de arquiteturas populares contemporâneas em sertões da Bahia, o esforço preliminar consiste em tratar questões conceituais para compreender os sentidos da escolha de nomenclatura do objeto em questão. “Sertão”, “Nordeste” e “cultura popular” são termos que motivaram um número considerável de trabalhos, de diversas matrizes do conhecimento, na academia, na arte, na indústria cultural, e em outras esferas. Articulam diversas produções nas áreas de história, ciências sociais, antropologia, sociologia, geografia, literatura, poesia, pintura, cinema, fotografia, entre outras. A significação destes conceitos se desenha com certa elasticidade pelos usos que passaram a ter principalmente ao longo do século xx (albuquerque 1   Colocação da antropóloga Profª. Dra. Angela Figueiredo, docente de curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), integrante do Fórum Marielle Franco e do Coletivo Angela Davis. O trecho extraído de sua fala se refere a perspectivas decoloniais na produção acadêmica, e que se deu no dia 20 de agosto de 2020 por meio de uma transmissão ao vivo via Instagram, dentro da programação do III Webinar, promovido pela Associação Brasileira do Anunciantes (ABA), sob o tema Epistemologia, etnografia e práticas de pesquisadoras negras.


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júnior, 2011; alves dos santos, 2017; medeiros, 2019). Possuem, assim, uma vasta apropriação que capilariza seus sentidos. Por isso, reitera-se a necessidade de explicitar por onde tais conceitos aqui se animam. Sobretudo pelo fato de a língua ser efetivamente um aparelho de reprodução de heranças e condicionamentos sobretudo coloniais (kilomba, 2019, p.14), como é o caso nacional. Grada Kilomba propõe uma contextualização de palavras específicas que integram sua obra Memórias da Plantação (2019), pela qual aborda criticamente o racismo estrutural presente nas lógicas sociais: “a língua, por mais poética que possa ser, tem também sua dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade”. A respeito da assimetria de poderes, que constitui a relação entre classes da sociedade brasileira, Marilena Chauí (2019) expõe o quanto na linguagem cotidiana se revela a verticalização, o autoritarismo e a desigualdade, reforçando as posições de dominação e subordinação entre segmentos sociais.2 Os três termos, que se encontram justamente nesse lugar, herdam sentidos históricos que necessariamente merecem ser investigados, pois passaram a designar espaços, populações e aquilo que pode ser produzido especificamente por elas, em termos materiais e imateriais. Entretanto, seus sentidos foram construídos “oficialmente”, ou seja, são nomenclaturas que partem de dentro da tradicionalmente chamada cultura erudita – que é hegemônica, nos termos que propõe Chauí (1986). Eles são estabelecidos por meio de uma posição de alteridade, já que designam outras coisas, que não são constitutivas do lugar de quem fala. Este processo pode se dar em âmbitos diferentes, seja por medidas institucionais, atividade política, pesquisas, ou diferentes áreas do conhecimento, como na literatura e nas artes visuais. Veremos que sertão, Nordeste e cultura popular são termos que se tornam comuns no vocabulário que descreve a história do país, e passam a integrar as discussões e produções acerca da construção de uma identidade nacional (albuquerque júnior, 2011). No entanto, antes da objetividade 2   Marilena Chauí em sua aula “Breve história da Democracia”, dentro do Seminário Internacional Democracia em Colapso?, realizado pelo SESC Pinheiros, São Paulo, em outubro de 2019. Link: <https:// www.youtube.com/watch?v=k1MIsK5D0LQ&ab_channel=TVBoitempo>. Acesso em 10 de nov. 2020.


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que podem sugerir pelo uso recorrente, trazem em si, entre outros sentidos, violências históricas. Os dois primeiros termos aqui referidos se formam a partir de um projeto de dominação que conta com o “progresso” e o “desenvolvimento nacional” do período colonial até a atualidade. São palavras que trazem em si a identidade (kilomba, 2019), o lugar social, racial e cultural dos agentes e poderes responsáveis por cristalizar seus sentidos e usos. Muitas produções que envolvem estes temas resultam quase em postulados, pelas relações de poder que mediam e autorizam este conhecimento a ser disseminado e consumido. Acabam, muitas vezes, por se tornar unânimes, atribuindo formas rígidas àquilo que designam. De todo modo, não se exclui a possibilidade de que também tenham sido reapropriados ao longo do tempo pelos próprios indivíduos dos espaços e culturas que dão sentido a estas nomenclaturas instituídas.3 A instituição de ideias, formas e imagens relacionadas às diferentes regiões do país foi uma postura recorrente, manifestada desde o início do século xx. A necessidade de que se criasse uma sólida identidade nacional orientou a intensidade com que foram escolhidos os elementos responsáveis por dar corpo e imagem a estas representações. Esse ímpeto foi movimentado tanto por setores intelectuais e artísticos como pelo próprio Estado – ao longo do tempo, os dois se misturam, já que os agentes culturais integraram ativamente o corpo de instituições ligadas ao poder federal, principalmente nos anos 19304. A criação dessa identidade, pela explícita heterogeneidade cultural do país, esteve baseada em reconhecer aspectos regionais, específicos das macrorregiões nacionais (albuquerque júnior, 2011). Esta procura e a escolha de símbolos que potencialmente concentrassem características nacionais, no entanto, são responsáveis também por uma redução das complexidades de cada espaço específico do país. Sobre o assunto, Durval Muniz de Albuquerque Júnior propõe:

3   Termo que pode ser compreendido a partir de como é usado por Durval Muniz de Albuquerque Júnior em A invenção do Nordeste e outras artes (2011), como será visto a seguir.

4   Sobre este contexto, ver: SANT’ANNA, Marcia, O patrimônio urbano no Brasil. In: SANT’ANNA, Marcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a norma de preservação de áreas urbanas no Brasil - 1937-1990. Salvador: Oiti Editora, 2014.


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A formação discursiva nacional-popular pensava a nação por meio de uma conceituação que a via como homogênea e que buscava a construção de uma identidade, para o Brasil e para os brasileiros, que suprimisse as diferenças, que homogeneizasse estas realidades. Esta conceituação leva, no entanto, a que se revele a fragmentação do país, a que seus regionalismos explodam e tornem-se mais visíveis. (…) O discurso regionalista não mascara a verdade da região, ele a institui. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011. pp.61-2)

Sertão, Nordeste e cultura popular se atravessam, se incluem, podem habitar os mesmos espaços e nomear aspectos comuns – embora os dois primeiros se relacionem à ideia de lugar e o último a práticas e características de classes populares. De todo modo, se trançam. É proposto neste primeiro momento um exercício de dissecação através de uma leitura historiográfica de como estes termos se constituem. Sobre sertões nordestinos deseja-se acoplar na imagem que é culturalmente construída de sua paisagem a violenta invasão e uso dos espaços durante o período colonial, enquanto fator fundamental para a alteração de seu meio físico. Colocase em jogo o caráter de documento conferido às obras de cunho artístico-literário, a partir da perspectiva historiográfica sobre o espaço. A respeito de Nordeste, pretende-se observar a construção da nomenclatura a partir da postura do Estado em combater as secas. Baseando-se na nomenclatura instituída para esta região específica do antigo Norte, se investiga como sua construção cultural se dá, balizada em regionalismos e pela subordinação política e econômica em relação ao Sudeste. Com isso, são expostos alguns procedimentos responsáveis por consolidar uma imagem que se perpetua de Nordeste. Sobre cultura popular, o esforço se dá em desvincular o termo de um olhar folclórico, como manifestações apenas tradicionais ou vinculadas a um tempo que não o presente e suas dinâmicas. Propõe-se entender o valor dessas culturas produzidas por classes populares, inseridas em dinâmicas capitalistas contemporâneas. Desse modo, cultura popular estaria relacionada a uma maneira de produzir aspectos materiais e imateriais que respira dentro do sistema, e que se elabora pela posição de classes populares a partir de sua condição socioeconômica (canclini, 1983; chauí, 1986). Deseja-se olhar para as arquiteturas populares tomando como base a posição de seus agentes inseridos em dinâmicas do


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mercado, dentro de uma lógica de consumo de massas – pelos materiais, produtos e referências –, para produzir uma cultura ainda específica. Estes termos previamente se trançam pelas próprias interrelações que serão expostas. E que aqui são novamente trançados, sem a rigidez de pilares ou tripés, mas pelos sentidos que produzem juntos dentro desta discussão, indissociáveis e vitalizados por este vínculo. O esforço de passar por essas ideias soa necessário, pois as fachadas de platibanda de arquiteturas populares contemporâneas observadas em sertões podem soar como prismas. Enquanto imagem, atualmente parecem poder contribuir com debates que envolvam sertão, Nordeste – dentro da especificidade desta pesquisa, o estado da Bahia – e cultura popular. Em sua imagem existem contrapontos interessantes a ideias fixas a respeito destes espaços e sua cultura. Traz estas realidades culturais, materiais e regionais para um debate contemporâneo, em virtude de reconhecer a dimensão dos recentes processos históricos e políticos que transformaram profundamente dinâmicas locais.

sertão Sertão: o nome do perigoso indeterminado, do que não se pode medir objetivamente, o temor do subtropical, o depois do tropical, o hipertropical, o real do mundo. (MEDEIROS, 2019, p.27)

O reconhecimento historiográfico da ideia de sertão é necessário por uma questão de imagem. Aqui se propõe um olhar sobre sua paisagem contemporânea – composta também pelo que se constrói em cidades, distritos e povoados – que não esteja baseado somente em valores simbólicos e poéticos. A “paisagem natural”, ligada historicamente à ideia de seu clima, foi tratada como principal baliza do que se pensou e se produziu sobre “o sertão” (albuquerque júnior, 2011; medeiros, 2019). Esta lente se consolidou enquanto uma


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perspectiva rígida, responsável por consagrar sentidos desse espaço dentro de um imaginário social. A “adversidade climática” como característica reveladora das complexidades regionais nos âmbitos sociais, econômicos e culturais ainda é um grande disparador de percepções sobre o que sertões nordestinos envolvem. O papel da historiografia possibilita uma reorientação do que pode ser visto e compreendido através de sertões nordestinos.5 Para entender estes sertões como espaço, ideia e imagem ao longo da história, é fundamental concebê-los como territórios que foram nomeados, invadidos e conquistados, em função das necessidades econômicas e mercantis do período colonial (medeiros, 2019). Tanto quanto sua especificidade climática e geográfica, os aspectos políticos, econômicos e sociais importam como forças essenciais para a consolidação de sua paisagem e, assim, de sua imagem. Márcio Roberto Alves dos Santos, em seu livro Rios e fronteiras: conquista e ocupação do sertão baiano (2017), propõe uma abordagem sobre espaços sertanejos diferente do “sertão simbólico e filosófico, na realidade o não-lugar, de Guimarães Rosa, e tampouco com o sertão como metáfora social de Euclides da Cunha e Graciliano Ramos” (alves dos santos, 2017, p.354). Seguindo esta linha do historiador, procura-se tratar tal espaço como ultraespecífico, que é capaz de elaborar as incisões do período colonial através da ruína que também é a caatinga. Rondinelly Gomes Medeiros (2019) traz outro olhar importante sobre o espaço: Vamos chamá-lo, para contemplar sua vastidão conceitual, de projeto colonial, considerando com isso aquele agenciamento político que caracteriza a faixa de ações, que, para ficar no caso do semiárido brasileiro, vão das entradas e da conquista armada do século XVII até a recente imposição da transposição do Rio São Francisco e que obedecem ao princípio legislador da determinação unilateral, antropocêntrica do espaço: no semiárido, o projeto colonial – o fundamento axiológico do mercado e de sua governamentalidade – baseia-se na pretensão política de ocupação do espaço para determinar materialmente e de forma unidirecional a constituição da paisagem. Dada a frequência de sua aparição nas narrativas do sertão, de fato é de paisagem que a colonização quer tratar. (MEDEIROS, 2019, p.24). [grifos meus]

Escolheu-se aqui tratar “sertões” no plural, sem a unanimidade trazida pela palavra no singular. Entendem-se os diversos sertões que existem no interior do estado da Bahia e em outros estados do Nordeste. 5


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É contraposta, assim, a concepção de sertões como espaço natural, virgem, desprovido de manipulações decisivas para a configuração de sua paisagem. Alves dos Santos (2017) coloca que uma das grandes dificuldades para que o espaço seja abordado por esta lente se relaciona com o fato de haver uma grande carga simbólica e cultural a partir do que se produz no âmbito artístico e literário sobre ele (alves dos santos, 2019). Desde o final do século xix um expressivo número de autores constituiu uma noção de sertão como espaço geográfico, social e cultural diferenciado no interior do Brasil (alves dos santos, 2017). Estas perspectivas foram assimiladas, alargadas e disseminadas no início do século xx, de modo que sertões nordestinos passassem a ser apropriados através desses olhares específicos. Portanto, as investidas colonizadoras em direção a estes sertões – nos três séculos que antecedem o início desta produção mais ativa sobre as regiões –, devem ser inseridas na concepção de paisagem como coautora de sua forma. A paisagem como resultado essencialmente climático é falha e reduzida, assim como os sentidos simbólicos e poéticos produzidos a partir desta perspectiva quando usados como documentos ou retratos. Além das lacunas históricas que se subtraem do espaço por estas produções, através delas é possível perceber justamente a identidade de quem o observa (kilomba, 2019) e em função do que o fazem. Alves dos Santos (2017) orienta sua análise através de documentos produzidos sobre sertões da Bahia por indivíduos contemporâneos à época estudada por ele, os séculos xvii e xviii. Seu olhar para os registros que fundam esse espaço é vital para entender como fala Rondinelly Gomes Medeiros, que escolhe, dentro da pluralidade de sentidos presentes em “sertão”, o sentido também historiográfico para produzir impressões nas instâncias imagéticas, simbólicas e políticas. Medeiros coloca luz sobre a colonialidade que envolve o espaço e atravessa a história, fazendo com que sejam reconhecidas nos processos contemporâneos intenções semelhantes. Alves dos Santos (2017) propõe olhar para quem produziu os documentos mais remotos e quais foram os motivos, sublinhando a origem administrativoburocrática como uma das orientações primárias para nomear o espaço. A posição dos responsáveis por produzir tais documentações estavam vinculadas às questões


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Trecho da rodovia federal BR-116. Trecho em obras, já em sertões baianos. Fotografia tirada durante o trajeto iniciado em Feira de Santana em direção a Monte Santo.


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do território em função de sua invasão e ocupação. Tal postura é explícita na produção escrita colonial, através de relatos, leis, diligências e encaminhamentos estudados pelo historiador (alves dos santos, 2017). Por meio destes documentos são elencados os sentidos natural, geográfico, administrativo, político e econômico que constroem os sentidos da palavra sertão. O primeiro sentido é notado como “uma rudimentar percepção do sertão como espaço natural. Realçam-se características em grande parte ligadas ao clima e ao solo” (alves dos santos, 2017, p.355). Aparece tanto da maneira “abundante de terras férteis, que escondem as almejadas jazidas de minerais preciosos”, como de maneira mais corriqueira, dos espaços “ásperos, agrestes, estéreis, secos”, vista como “mais enfática quanto mais próximo o autor está do sertão” (alves dos santos, 2019, p.356). Por mais que sejam leituras como estas que marcaram o imaginário social brasileiro da ideia árida de sertão, “descrevem um entre muitos sertões coloniais e veiculam uma entre muitas leituras possíveis dos espaços sertanejos.” (alves dos santos, 2019, p.356). Enquanto espaço geográfico, “o sertão” passa a ser compreendido como interior da capitania da Bahia. É observado em documentos primordiais, como o regimento de Thomé de Souza, do ano de 1549 (alves dos santos, 2019). Sertão passa a ser o desígnio de tudo “o que corria para o ocidente”6 além da área do Recôncavo7. Nesse sentido colonial de territorialização, percebe-se que existe em “sertão” uma conotação imanente de distância. Há sempre uma lonjura entre o espaço que pouco se conhece ou pouco se domina e a localidade minimamente “estabelecida”, onde está quem o observa. Inicialmente, “sertão” também fala sobre o ponto de vista de quem mira o que desconhece, e que pouco pode aferir a seu respeito. A palavra traz o lugar social e político de quem o descreveu, de quem o procurou, de quem o registrou. Segundo Alves dos Santos, esta informação aparece no ano de 1675 na “ ‘Carta do Desembargador Sebastião Cardoso Sampaio’, em ‘Consulta ao Conselho Ultramarino sobre o que escreve o desembargador sindicante Sebastião Cardoso de Sampaio’, que estava na Bahia, do excesso com que se tem dado terras de sesmaria a várias pessoas”. SANTOS, Márcio Roberto Alves dos. Rios e fronteiras: conquista e ocupação do Sertão Baiano. 1ª Edição: São Paulo, Edusp, 2017. p.357. 6

7   Milton Santos assinala que esta região foi a importante extensão territorial econômica da capital, Salvador, e da colônia, até o fim do século XVIII. SANTOS; Milton. A urbanização brasileira. 5ª Edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018.


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O olhar geográfico sobre sertões amplia a percepção sobre o processo colonial, justamente a partir da posição de alteridade que se estabelece. “O sertão” vem da falta de domínio ou de dimensão sobre o desconhecido da colônia (medeiros, 2019). Por mais contornos que a palavra estivesse ganhando, ainda no século xviii era tratada como a parcela interior da América (alves dos santos, 2017, p.357). Era utilizada também em outros lugares além da capitania da Bahia de Todos os Santos, originando seu sentido transestadual, como até hoje se observa. A instância administrativa decorre da falta de capacidade de estabelecer limites e dimensões específicas, pela amplitude e pela generalidade das primeiras designações. Este sentido é alinhado com a lógica militar de preparar o espaço para uma lida prática e incisiva, que integra os movimentos coloniais no território (alves dos santos, 2017; amorim, 1999; andrade, 1980). Este aspecto é trazido através de patentes militares e de ações de ocupação (alves dos santos, 2017). O sentido político é visto pelo que se propõe a partir da ausência de controle governamental, em “textos produzidos em situação de confronto político ou militar entre autoridades e os potentados coloniais” (alves dos santos, 2017, p.358). Há postura de oficialização de localidades e poderes, reiterando a ideia de domínio como formalização espacial e social, através da “formação de novas povoações que agregassem os moradores espalhados pelos sertões; a elevação de arraiais à categoria de vila; a ampliação de cargos judiciários como o de juiz; a realização periódica de correições pelos corregedores e ouvidores das comarcas sertanejas” (alves dos santos, 2017, p.358). O julgamento econômico retoma o que expõe Manuel Correia de Andrade (1980) sobre “os sertões”. Sublinha seu potencial para o desenvolvimento de atividades ligadas à pecuária, que visavam o abastecimento de centros econômicos da colônia brasileira. Estes atributos estariam ligados às condições geográficas do espaço, pelas amplas planícies entrecortadas por rios (andrade, 1980). A partir do que descreve o autor, é reforçada a ideia de transformação da paisagem. Assinala de maneira objetiva que a integração do “Sertão nordestino” dentro da economia colonial portuguesa ocorrera em função da concentração da produção de açúcar proveniente da Zona da Mata pernambucana e do Recôncavo


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Baiano (andrade, 1980). Este movimento se deu atrás da “terra onde se fizesse a criação de gado indispensável ao fornecimento de animais de trabalho (…) aos engenhos e ao abastecimento dos centros urbanos em desenvolvimento” (andrade, 1980, p.161). Atividades relativas à pecuária extensiva nesses territórios, e que atravessaram séculos, foram predominantes como fator primário de ocupação (amorim, 1999). É possível dimensionar os impactos físicos ocasionados por tais atividades sobre a paisagem, que foi gradualmente modificada. Anália Amorim (1999, p.4), ao indagar-se sobre o que seria o sertão antes do gado, afirma: “era sem dúvida uma terra mais fértil que hoje”. A ideia defendida por cientistas ambientais é que o semiárido não era uma condição natural da paisagem do interior nordestino.8 Evidências apontam que a região era possuidora de uma rica e vasta rede de drenagem hidrográfica, com uma quantidade bastante significativa de rios perenes, os quais compunham um meio ecologicamente mais equilibrado, convivendo com uma mata regional, uma floresta primitiva, rica em biomassa e muito mais extensa que sua vegetação atual. Supõe-se, e não sem argumentação científica, que num passado não tão remoto, esta cobertura vegetal alimentasse um regime pluviométrico, com chuvas mais regulares e mais abundantes. Numerosas tribos [sic] ocupavam, sobreviviam dos produtos da mata. E se esses índios [sic] foram dizimados, não o foram pelos rigores do clima, pela existência da seca, mas pela ação dos colonizadores. (AMORIM, 1999, p.11)

Esse uso do espaço, inclusive, sugere a diagramação das próprias distâncias entre as aglomerações urbanas de sertões vistas até hoje, já que os animais eram “criados soltos nas pastagens e pela fragilidade do solo”, o que “demandava grandes áreas. Assim sendo, os currais eram mais afastados uns dos outros e a ocupação do sertão passou a ser dispersa na paisagem e cada vez mais distante das cidades litorâneas” (amorim, 1999, p.7). É possível notar que até os dias de hoje são percebidas as heranças desta disposição inicial que ordena a ocupação e o desenho Coimbra Filho, Ademar F.; Câmara, Ibsen de Gusmão. “Os Limites originais do Bioma da Mata Atlântica na Região do Nordeste Brasileiro”. FBCNN, 1996. 8


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do território. De acordo com o mapa que ilustra o sistema rodoviário (1995)9 dos estados nordestinos, conforme se interioriza o estado da Bahia, a malha viária torna-se cada vez menos densa (amorim, 1999). Os processos de territorialização decorrentes da invasão e do uso do espaço podem ser compreendidos através das disposições das aglomerações urbanas e rurais vistas até os dias de hoje. Entretanto, será esta pecuária em regime ultraextensivo de criação, que vai do Brasil colônia aos nossos dias, uma das principais responsáveis pela dizimação da caatinga, a mata nativa do semiárido brasileiro. Pisoteando a terra e se alimentando desta vegetação, o gado foi livrando o solo de sua cobertura vegetal e o expondo à ação do sol e do vento. Foi comendo as espécies mais tenras e fazendo uma seleção natural das espécies mais indigestas. E são elas as que vão prevalecer atualmente. (AMORIM, 1999, p.9) [grifos meus]

Além da pecuária extensiva como base da alteração da paisagem no período colonial, Amorim também aponta que as ações ligadas a uma ideia de progresso podem ser observadas até o fim do século xx. Foram elas “os desmatamentos provenientes dos processos de urbanização, a ampliação de povoados, vilas, cidades, a construção de estradas, de hidroelétricas, de barragens, o aumento das áreas de cultivo e pecuária, as explorações minerais…” (amorim, 1999, p.12). Segundo Medeiros (2017), há uma herança no modo que intervenções passam a ser projetadas e produzidas pelo poder, reconhecidas através de posturas do governo desde o Império até o Estado contemporâneo, sob o signo do desenvolvimento. Nitidamente os processos de alteração da paisagem e, consequentemente, do clima, foram catalisados pelo uso colonial do espaço. Portanto, o sentido econômico que tensiona e caracteriza sertões nordestinos permanece para além do período colonial, a todo momento reconfigurando seu jeito de alterar a paisagem. Essa seta dupla, uma ponta para fora extraindo as riquezas, e outra para a terra determinando-lhe violentamente a forma, ilustra bem o caráter interminável do projeto colonizador – a cada necessidade de acoplamento, a qualquer sistema 9  Mapa presente em: AMORIM, Anália Maria Marinho de Carvalho. Habitar o Sertão. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Universidade de São Paulo, São Paulo. 1999, 133p.. Mapa 9.


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econômico, a cada acumulação primitiva em curso, surgirá uma paisagem a ser configurada: isso está no engenho e na fazenda de gado da colônia, assim como nas hidrelétricas da Amazônia e nos investimentos em commodities com que hoje em dia o mesmo projeto se apresenta sob o nome de desenvolvimento. (MEDEIROS, 1999, p.25)

O que motivou as primeiras aproximações de intervenções federais em sertões foram os expressivos períodos de estiagem, que supostamente seriam a razão principal de um antigo processo de subdesenvolvimento regional (medeiros, 2019; sacconi, 2019). A dificuldade de introdução de sertões dentro de uma métrica produtiva, macroeconômica e nacional inaugura oficialmente uma postura embrionária de combate às secas (medeiros, 2019). Além disso, retoma diretamente a ideia de que as proporções das secas só responderiam exclusivamente às especificidades climáticas “originais” do espaço, dissolvendo tanto o reconhecimento de todo o processo colonial sobre sertões nordestinos, quanto o funcionamento de seu regimento político e social. Estes dois últimos fatores, articulados por uma estrutura de poder oligárquica e latifundiária10, somam-se à condição climática e passam a compor um ambiente tencionado pela situação miserável à qual grande parte da população esteve submetida (SACCONI, 2019).  Sobre a estrutura do latifúndio nos sertões nordestinos, Manoel Correia de Andrade assinala: “Garcia d’Ávila e seus descendentes, porém, estabelecidos na casa-forte da baía de Tapera – a famosa casa da Torre –, embora não desdenhassem as possibilidades de riquezas minerais, deram maior importância ao gado e, desde o governo de Tomé de Sousa, trataram de conseguir doações de terras, sesmarias, que cada vez mais penetravam o Sertão, subindo o Itapicuru e o Rio Real, para alcançarem o São Francisco. Nem este grande rio deteve a ambição, a fome de terras dos homens da Casa da Torre que, através de seus vaqueiros e prepostos, estabeleceram currais na margem esquerda, pernambucana portanto, do Rio São Francisco e ocuparam grande parte dos sertões de Pernambuco e do Piauí. Até no Cariri cearense pleitearam os homens da Casa da Torre o recebimento de sesmarias. Construíram, assim, os maiores latifúndios do Brasil, tornando-se senhores de uma extensão territorial maior do que muitos reinos europeus, pois possuíam, em 1710, em nossos sertões, mais de 340 léguas de terra nas margens do Rio São Francisco e de seus afluentes. […] Não eram estes, porém, os únicos grandes latifundiários; outros havia, cujas posses eram bem inferiores, mas que viviam como grão-senhores por possuírem sesmarias de grandes extensões esparsas pelas mais diversas áreas dos sertões nordestinos.” ANDRADE, Manoel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. pp.161-2. Estas considerações se fazem necessárias para que se entenda a dimensão do poder político que exerciam os latifundiários sobre as dinâmicas econômicas e sociais nos sertões. 10


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Combinava-se o vigor oligárquico das relações políticas e sociais aos períodos de estio da seguinte maneira: “Atuava-se nas situações de ‘emergência’, ou seja, quando os magros recursos dos pequenos sitiantes haviam se esgotado à espera das chuvas nas grandes secas nordestinas, de maneira que essa população mais pobre era empregada em troca de alimentação para a construção das barragens feitas nas propriedades dos grandes fazendeiros e nas estradas, às vezes estradas privadas no interior dos grandes latifúndios” (oliveira, 1985, apud. sacconi, 2019, p.26). As secas, portanto, devem ser compreendidas também como um fenômeno político e econômico. Sobre como se organizavam as relações sociais e políticas nos interiores da colônia, Fábio Wanderley Reis (2009) traz um trecho do que escreve Oliveira Vianna sobre a situação: Algumas das conhecidas análises de Oliveira Vianna descrevem vividamente o que parece ter sido a forma típica assumida pelas relações de poder no Brasil colonial: (...) os próprios caudilhos locais, insulados nos seus latifúndios, nas solidões dos altos sertões, eximem-se, pela sua mesma inacessibilidade, à pressão disciplinar da autoridade pública; e se fazem centros de autoridade efetiva, monopolizando a autoridade política, a autoridade judiciária e a autoridade militar dos poderes constituídos. São eles que governam, são eles que legislam, são eles que justificam, são eles que guerreiam contra as tribos bárbaras [sic] do interior, em defesa das populações que habitam as covizinhanças das suas casas fazendeiras, que são como que os seus castelos feudais e as cortes dos seus senhorios. (REIS, 2009, p.265)

A postura oficial do Estado, instância mobilizada para resolver “o problema das secas”, baseou-se em resoluções projetuais, essencialmente mecânicas, manipuladoras de aspectos físicos do espaço. As proporções das secas, socialmente calamitosas, fizeram com que surgissem as primeiras ideias de intervenção no espaço, no ano de 1818, mas sem resultados concretos (sacconi, 2019). Nasce, nesse instante, o embrião de estudos e projetos que vieram a ser formalizados pelo Estado em função das secas. Desde então, a solução pensada seria a de transpor as águas do Rio São Francisco para outras bacias fluviais11.   “A primeira ideia de transpor as águas do Rio São Francisco foi de autoria do primeiro Ouvidor do Crato (VILLA, 2000, p. 37) e consistia na abertura de um canal para deslocar água do rio São Francisco 11


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Obras federais na cidade de Monte Santo. Pedaço aberto na planície sertaneja, ao extremo norte da cidade, em função da construção de uma creche. Obra integra a expansão urbana iniciada com um


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conjunto do programa Minha Casa Minha Vida.

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Em razão da seca de 1845, a ideia é retomada em 1847, e foi conduzida com outro vigor, no contexto imperial de D. Pedro II (sacconi, 2019). O projeto, apresentado ao imperador pelo engenheiro e deputado cearense Marcos de Macedo, gerou levantamentos cartográficos, geográficos e técnicos (sacconi, 2019). À frente do registro do espaço em questão estava o engenheiro alemão Henrique Guilherme Fernando Halfeld, que os organizou no Atlas e Relatório Concernente à Exploração do Rio de S. Francisco desde a Cachoeira da Pirapora até ao Oceano Atlântico, publicado em 186012. A partir desta encomenda de D. Pedro II, outras expedições e estudos foram realizados, ainda que o projeto seguisse sem ter sido executado (sacconi, 2019). Uma extensa documentação foi produzida enquanto se fortalecia essa postura oficial em intervir fisicamente nas paisagens de sertões por conta das secas. ao rio Jaguaribe pelo leito do rio Salgado, (…) com o objetivo de alimentar os rios e promover a irrigação na região (FILHO, 1969, p. 136; MAMEDE, s/d., p. 5). SACCONI, Carolina Jéssica Domshke. A Transposição do Rio São Francisco: contradições da presença-ausência da obra ao longo de seus eixos. 123 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. p.30.

Dessa forma, as expedições que eram realizadas no rio São Francisco tinham sempre a navegação como perspectiva. Para realizar a primeira, Dom Pedro II contratou o engenheiro alemão Henrique Guilherme Fernando Halfeld, que percorreu o rio São Francisco da cachoeira de Pirapora até a Foz, no Oceano Atlântico, nos anos de 1852, 1853 e 1854, em uma expedição chefiada pelo Barão de Capanema (FIORAVANTI, 2016, s/p; CASTRO, 2011, p.9; LEITE, 2005, p.7). Ao voltar, o engenheiro publicou em 1860 um relato de cinquenta e sete páginas pela Lithographia Imperial, intitulado “Atlas e Relatório Concernente à Exploração do Rio de S. Francisco desde a Cachoeira da Pirapora até ao Oceano Atlântico” (HALFELD, 1860), em que ele levantava em texto e cartografia légua por légua do rio, identificando as vias livres e os empecilhos à franca navegação, bem como sugerindo as possíveis soluções para os obstáculos encontrados. Os mapas que acompanham o relatório representam toda a extensão do rio, fornecendo a localização das vilas e províncias, cachoeiras, afluentes, as profundidades de cada trecho do rio e os locais das possíveis intervenções de maior porte. Nesse mesmo relatório, Halfeld retomou a proposta de Marcos Macedo, abordando o tema da transposição das águas do rio São Francisco para a bacia do rio Jaguaribe, com o intuito de combater os efeitos da seca do Nordeste setentrional e beneficiar os Estados do Ceará, Pernambuco e Piauí (HALFELD, 1860, p. 36; COSTA, 2013, pp. 132-5; HENKES, 2008, p. 303; FIORAVANTI, 2016). No mapa apresentado, o engenheiro aponta onde seria o local de retirada da água para essa transposição, na altura de Boa Vista, próximo à Villa de Cabrobó, em um trecho do rio em que a navegação se tornava mais difícil, entre as cachoeiras de Sobradinho e Paulo Afonso.” SACCONI, Carolina Jéssica Domshke, A Transposição do Rio São Francisco: contradições da presença-ausência da obra ao longo de seus eixos. 123 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. p.30. 12


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Retomando a ideia de que sertões são consecutivamente atravessados e alterados por poderes oficiais, Medeiros (2019) reconhece nos períodos de estio uma virtude. Um sentido de resistência às investidas do Estado, pois foram essas mesmas especificidades das regiões que não permitiram facilidade aos projetos de invasão e às obras, encabeçados pelas instâncias do poder político enquanto colônia, império ou república13. O autor percebe, dessa forma, o espaço também sob um caráter de indocilidade. Como se sertões se valessem de suas características próprias como uma barreira considerável, responsável por atordoar as investidas externas do poder sobre o espaço (medeiros, 2019). Entre os diversos elementos indomáveis do sertão do semiárido, o mais maldito, o cangaço da terra, aquele que mais ofende as pretensões de capitalização é o fenômeno da estiagem – o aumento vertiginoso da temperatura média, da evapotranspiração e a ausência de chuva durante pelo menos seis meses do ano. Frente à necessidade de uma estabilidade climática e da abundância perene dos assim chamados recursos naturais para a promoção do seu crescimento econômico, o projeto colonizador encontra aí uma limitação intransponível. (MEDEIROS, 2019, p.30)

As colocações de Medeiros (2019) vão além de sua perspectiva crítica a respeito da colonialidade que origina a ideia de sertões nordestinos. A ideia de indocilidade também está para além de uma dimensão simbólica. Indocilidade seria uma característica profundamente própria, adequada por aqueles que ali habitam,  Com relação a isto, fatos sociais também podem se somar a este sentido de resistência, historicamente marcada pela Guerra de Canudos (1896-1897). Dentro desta perspectiva, Marilena Chauí (1986) pontua a respeito do caráter religioso que consolidou a instituição do arraial de Belo Monte “No que concerne à resistência, a situação das chamadas religiões populares é delicada e ambígua. Não só porque a Sociologia da Religião nos habituou às ideias de sincretismo, superstição, sectarismo e irracionalidade, mas também porque o populismo procurou nos convencer de que as religiões populares, por serem populares, são boas em si, expressões da alma de um povo combatente. (…) Como se sabe, a religiosidade frequente se encontra na base dos grandes movimentos populares de contestação política (No Brasil e noutros lugares), como foi o caso de Canudos e do Contestado. Frequentemente, também, esses movimentos brasileiros são interpretados como produto do fanatismo de populações isoladas e carentes. No entanto, como assinalaram os estudos de Ralph della Cava, Douglas Monteiro e Marli Auras, os movimentos religiosos populares de Canudos, Juazeiro, e Contestado não são resultado de isolamento sociopolítico redundando em fanatismo, mas são uma resposta concreta, de caráter religioso, articulada a transformações políticas na sociedade brasileira”. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência. São Paulo, Editora Brasiliense. 1986. pp.74-5. 13


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sertanejos, em seu favor. Este olhar propõe uma saída endógena para os sentidos coloniais que influenciam as relações estabelecidas com o espaço, com a terra, com sua forma e as diversas relações de poder ali estabelecidas. O autor coloca como este contraponto a postura de agricultores que “(re)inventam e (re)descobrem e multiplicam práticas de agriculturas alternativas em relação à monocultura latifundiária, baseadas no que eles chamam de princípio da convivência com o semiárido, uma relação de reciprocidade radical com as diversas condições do bioma”. Medeiros vê, nas particularidades da caatinga, grande empecilho histórico do Estado em se estabelecer sobre o espaço, como potência fundante de uma postura que pode ser entendida como resistência14. Portanto, esta indocilidade é algo que também se estende a uma postura social, cultural e, por isso, política. A seca, no entanto, passa também a ser concebida enquanto elemento de um projeto estético, emplacada enquanto sinônimo visual do espaço. A seca orienta a criação de uma imagem forte, já que, em fins do século xix e início do xx, é o que “chama atenção dos veículos de comunicação, especialmente dos jornais do Sul do país, para a existência do Norte e seus “problemas”. (albuquerque júnior, 2011, p.81) Medeiros (2019) sublinha a percepção que Euclides da Cunha teve em Os Sertões (1906), marco jornalístico literário do olhar que passa a se ter nacionalmente sobre o espaço. A escrita do autor explicita o problema da paisagem, que é retratada por sua distância cultural e pelo olhar naturalista (albuquerque júnior, 2011). A obra seria tomada enquanto “o início da procura pelo verdadeiro país”, como um símbolo possível para a constituição de uma identidade nacional (albuquerque júnior, 2011), embora o olhar de Euclides trouxesse um sertão cujo clima e geografia prevaleceram enquanto adjetivo do espaço e de suas idiossincrasias: A respeito da postura de convivência com a seca, durante o tempo que passei em sertões da Bahia, pude tomar contato com lideranças de movimentos sociais ligados à educação e a terra. É necessário mencionar a existência da Escola Familiar Agrícola do Sertão (EFASE) no sertão de Monte Santo, que condensa em pedagogia esta postura. A escola pratica a pedagogia de alternância, em que estudantes transitam entre o internato escolar e as próprias localidades em que residem, promovendo um ensino que mescla os saberes próprios com uma educação formalizada pela EFASE. Propõe uma formação específica, baseada no campo e nas condições históricas, sociais, políticas e econômicas da região, muito relacionada ao conflito de terras. Para ver mais sobre a EFASE: SILVA, Leila Santana da, Escola Familiar Agrícola do Sertão: espaço de formação da classe trabalhadora e suas implicações na praxis educativa. Entrelaçando, Bahia. nº6, v.1, pp.75-93, Set-Dez, 2012. 14


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No final do século XIX, Euclides da Cunha, repórter da primeira guerra de colonização da recém-instaurada República, dedicou mais de 60 páginas de suas crônicas a um relato geo-histórico do semiárido, recheado por um clamor martelar diante do “aspecto estranho e atormentado da terra”, deste lugar onde “não se podia fixar” – aspecto que é, na mais bela de suas formulações, “o traço melancólico das paisagens”. (MEDEIROS, 2019, p.27)15

As distâncias, que eram muitas, trouxeram consigo a indeterminação e arbitrariedade de um relato. O que é visto neste “registro” sobre sertões da Bahia é contextualizado por Medeiros: A paisagem do sertão amedronta porque a constituição da paisagem é a ação de guerra própria da história da colonização moderna, e o sertão confunde a divisão molar entre natureza e cultura em que ela se baseia. (MEDEIROS, 2019, pp.27-8)

As percepções sobre os sertões que tivera Euclides da Cunha foram as que reverberaram enquanto imagem oficial sobre estes espaços (albuquerque júnior, 2011). Isso pela consagração que a obra do autor fluminense passou a ter sobre uma leitura de sertões da Bahia, que aqueceu a movimentação intelectual e artística em função do estabelecimento de uma identidade nacional nas décadas que seguiram. Com ele [Os Sertões] teríamos iniciado a busca de nossa origem, do nosso passado, da nossa gente, da nossa terra, dos nossos costumes, das nossas tradições. Teríamos ficado conhecendo, com ele, a influência do ambiente sobre nosso caráter e a nossa raça [sic] em formação. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.66). Albuquerque Júnior lembra de passagens descritas por viajantes em relatos jornalísticos a mesma maneira em observar a adversidade na paisagem, associando a imagem que via a sentidos pejorativos, ainda que mesclados, como eram chamados pelo autor, por “confrontos euclidianos”: “Chiquinha Rodrigues [articulista de O Estado de S. Paulo, em publicação da década de 1940] pergunta pela vegetação enfezada, pelas flores cor de sangue das palmatórias e dos cactos. (…) Podemos flagrar frases inteiras de Os Sertões em sua descrição da paisagem: “O tapete de cordas duras e agressivas impede que seja real o contato entre a criatura e a terra” ou “Como senhora em sua crueldade, surge em lugares esverdeados, em atitudes agressivas. Tudo nela queima, fere e penetra em nossa mão”, mas, “às primeiras chuvas, tudo se transforma; são as mil flores, as variedades de pássaros e borboletas”. ALBUQUERQUE JÚNIOR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5ª Edição. São Paulo, Cortez Editora, 2011. p.58. 15


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Planície da caatinga no município de Uauá. Vista da Serra do Sobrado.


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As considerações que encerram este primeiro momento percebem sertões enquanto paisagem composta, onde o que prevalece é sua constante alteração física. A percepção histórica do espaço torna possível localizar o problema construído sobre sertões nordestinos. É uma imagem que se cria, tornando-se nacional no século xx, através das lentes específicas do Sudeste (albuquerque júnior, 2011). Por isso, parece necessário relativizar o caráter de documento que passam a ter as produções literárias sobre estes espaços do país. A perspectiva de Medeiros (2019) olha como estes espaços existem dentro da história nacional. Dá a chance de serem lidos enquanto marcas da incessante exploração sobre terras e populações historicamente periféricas. Soa como um contraponto necessário a imagem poética, filosófica e artística construída, que passa a constituir e consolidar dentro de um imaginário social. Torna-se explícito que a paisagem, como situação física, exerce uma importância fundamental na narrativa historiográfica e cultural sobre sertões nordestinos. Integrar passagens da história à imagem desses sertões corrobora para que as marcas dos processos coloniais deixem sua latência e passem a ser notados e identificados. Heidegger consagra a natureza como aquela “que se precipita sobre nós e nos cativa como paisagem” (HEIDEGGER, 1993, p. 388), que é histórica porque é paisagem, isto é, uma porção de espaço passível de ser historicizada. Por isso mesmo, a violência das técnicas de colonização (extração, escrituração, desmatamento/ desindianamento, escravização, título de propriedade, remoção de comunidades, soberania nacional, geoengenharia, subordinação científica) está no próprio movimento de impressão no novo mundo das formas do velho mundo, cuja autotitulação lhe concede a autoridade pedagógica: “A floresta é reserva, a montanha, pedreira, o rio, represa” (HEIDEGGER, 1993, p. 70). (MEDEIROS, 2019, p.26)


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nordeste

Estar contra a seca foi um estado institucional que passou a reverberar também em dimensões culturais. Este mote político e técnico, que atravessou todo o século xx, cruzou o milênio e se faz presente dentro das práticas de governos até os dias de hoje. Serão observadas as relações entre a política que funda o traçado de Nordeste em conjunto com a disseminação do espaço por meio da construção de um ideário cultural específico. Não se pretende dar conta de como o termo se constrói ao longo de todo o século xx, dada sua complexidade e extensão, mas sim buscar oferecer uma base de como o Nordeste é criado nesses moldes, tendo sido apropriado para além de sua dimensão cartográfica e instituído como um símbolo (albuquerque júnior, 2011). Durval Muniz de Albuquerque Júnior considera que, pelo menos desde o final do século XIX, já havia medidas sendo movimentadas com relação às secas no âmbito da política nacional: A seca de 1877, a primeira a ter grande repercussão nacional pela imprensa e a atingir setores médios dos proprietários de terra, trouxe um volume considerável de recursos para as ‘vítimas do flagelo’ e fez com que as bancadas ‘nortistas’ no Parlamento descobrissem a poderosa arma que tinham nas mãos, para clamar tratamento igual dado ao ‘Sul’. A seca torna-se a partir daí o problema de todas as províncias e, depois, dos estados do Norte. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.83)

No governo de Afonso Pena (1906-1909), já durante a República, são retomadas as medidas oficiais do Estado em relação ao problema do estio em sertões (sacconi, 2019). Em 1909 é criada a Inspetoria de Obras Contra as Secas (iocs)16, origem do atual Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (dnocs) (sacconi, 2019, p.36). Em 1919, a transposição passou a ser pauta prioritária enquanto projeto do governo federal, assim como a construção de açudes, sob o Sobre este momento histórico, Sacconi pontua que “A Transposição do rio São Francisco então foi cogitada pelo primeiro presidente do IOCS, Miguel Arrojado Ribeiro Lisboa, no governo republicano 16


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regimento do presidente Epitácio Pessoa (1919-1922). Nesse momento, o projeto amplia as proposições para a região; e somente essas obras em menor escala, paralelas ao enfoque central, foram realizadas (sacconi, 2019). Em 1919, a iocs é renomeada como Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (ifocs) e tem seu regulamento reformulado. Junto com esta mudança, se institui um perímetro oficial de uma grande região ao qual a Inspetoria direcionou todo seu trabalho. A partir de então, é oficialmente instituída uma diferenciada parcela do antigo Norte do país, batizada de Nordeste (albuquerque júnior, 2011; medeiros, 2019; sacconi, 2019). Neste discurso institucional, o Nordeste surge como parte do Norte sujeita às estiagens e, por essa razão, merecedora de especial atenção do poder público federal. O Nordeste é, em grande medida, filho das secas; produto imagético-discursivo de toda uma série de imagens e textos produzidos a respeito deste fenômeno, desde que a grande seca de 1877 veio colocá-la como o problema mais importante desta área. Estes discursos, bem como todas as práticas que este fenômeno suscita, paulatinamente instituem-no como um recorte espacial específico no país. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.81)

Sacconi (2019) aponta que a preocupação com aspectos para além do clima passaram a integrar as discussões a respeito das obras contra as secas. Passaram a ser observados pensamentos que ampliavam a percepção sobre a região além das soluções apenas técnicas produzidas pelo Estado17. A pesquisadora observa que, no contexto de 1909, com a criação da iocs: de Hermes da Fonseca (1910-1914). A proposta foi descartada, sendo indicada como uma das razões da recusa a inexistência de bombas de água capazes de superar o relevo da Chapada do Araripe, superiores a 160 metros (HENKES, 2008, p. 304; DEMENTSHUK, 2014). Para além da questão técnica, conforme vimos anteriormente, a proposta pode ainda ter sido abandonada frente à outra alternativa então esboçada como relação ao semiárido, que previa, ao invés de seu desenvolvimento, seu abandono e esvaziamento populacional. Um ponto muito interessante desse momento está no fato de que embora Miguel Arrojado Ribeiro Lisboa fosse presidente da IOCS, um órgão especializado em executar obras hídricas contra as secas, ele foi um dos primeiros gestores, pelo menos de que se tenha registro, a pensar na solução para a pobreza e para a seca nordestina que fosse além das obras em si.” SACCONI, Carolina Jéssica Domshke, A Transposição do Rio São Francisco: contradições da presença-ausência da obra ao longo de seus eixos. 123 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. p.36. 17

“Segundo Francisco de Oliveira (1985, pp. 75-6), Arrojado Lisboa, como pensador de políticas pú-


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(...) um ponto muito interessante desse momento está no fato de que embora Miguel Arrojado Ribeiro Lisboa fosse presidente da IOCS”, foi “um dos primeiros gestores, pelo menos de que se tenha registro, a pensar na solução para a pobreza e para a seca nordestina que fosse além das obras em si. (SACCONI, 2019, p.36).

Neste momento, “este tipo de pensamento, assim como o de Euclides da Cunha (1904) por ter visão crítica à ação do governo da época, era bastante ousado para a época, já que apenas no meio do século iria se pensar em desenvolvimento do Nordeste a partir do planejamento regional, que considerasse outras características da região que não apenas a questão hídrica.” (sacconi, 2019, p.36). De todo modo, a maneira de lidar com a seca refletia um descaso do poder em efetivamente solucionar a complexidade socioeconômica dos espaços em questão. Em termos práticos, não se propunha nada além de remediar a situação, que ecoava nacionalmente em momentos críticos. O fenômeno, então, continuou a ser tratado como motivo de atenção somente quando se estendia por longos períodos. Decorrente da seca de 1931, o projeto da transposição passa a ser novamente estudado pelo governo de Getúlio Vargas, quando se observa a adoção de medidas pontuais e paliativas em relação às populações que sofriam nesses períodos18. Em 1984, durante a ditadura militar, o projeto é retomado blicas, delineou as ideias que prevaleceram durante várias décadas, revelando-se para Oliveira como o primeiro grande pensador da formulação e aplicação da construção da infraestrutura hidráulica a compreender a complexidade do problema da seca: “Seca, no rigor léxico, significa estiagem, falta de umidade, da chuva que provém a água necessária à vida na terra. O problema das secas, assim encarado, seria simplesmente o problema da água, isto é, do seu suprimento. Mas a palavra seca, referida a uma porção de território habitado pelo homem, tem significação muito mais compreensiva. Com efeito, o fenômeno físico da escassez de chuva influi no homem pela alteração profunda que dela decorre para as condições econômicas da região, que por sua vez se refletem na ordem social. Assim encarada, a seca é um fenômeno muito vasto, tanto de natureza física quanto econômica e social. O problema das secas é, portanto, um problema múltiplo. Verdadeiramente não há um problema, há problemas” (LISBOA, 1984, p.12). SACCONI, Carolina Jéssica Domshke, A Transposição do Rio São Francisco: contradições da presença-ausência da obra ao longo de seus eixos. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019, 123p., p.36.   Sobre as medidas superficiais em relação ao problema das secas, Sacconi aponta: “Nesse mesmo momento, o ministro José Américo de Almeida reabre o campo de concentração de Fortaleza, locais onde se conduziam e onde emergencialmente se atendiam os flagelados das secas, retomando com isso as frentes de trabalho que apoiavam as migrações para outras regiões do país, ação padrão governamental para 18


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O mesmo trecho da rodovia federal BR-116 com obras de escavação e terraplanagem em sua beira.


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durante o governo de João Figueiredo, em função da seca ocorrida entre 1979 e 198319. O plano é revisitado durante o governo de Itamar Franco (19921995), diante da seca que assolou regiões do semiárido entre 1991 e 1993. Até o começo das obras, rebatizadas de Integração do Rio São Francisco durante o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2007, o projeto também passou por elaborações durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) (sacconi, 2019). Dentro da cronologia de políticas federais que se desdobravam em ações sobre os sertões, não se pode deixar de mencionar a criação da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Nordeste (Sudene), no ano de 1959, pelo economista paraibano Celso Furtado. Cabe observar seu caráter crítico, que integra mais uma manifestação oficial do poder estatal sobre a intenção de desenvolvimento econômico do Nordeste. O documento que inaugura as diretrizes do órgão, publicado no Rio de Janeiro pelo departamento de Imprensa Nacional, traz a razão de sua postura institucional no parágrafo que o introduz. Nordeste, de pronto, é identificado como a região semiárida que ocorria em especial desde o século XIX. O mesmo ministro denunciou casos de corrupção e manipulação de envio de mantimentos e a forma de inscrição nas frentes de trabalho (SARMENTO, 2005, pp. 21-4). Para Sarmento, essa realidade decorria da inadequação da abordagem e alimentava preconceitos em relação à destinação dos escassos recursos alocados. Ações governamentais – como o estímulo à migração para outras regiões; as chamadas frentes de trabalho, que consistiam no emprego, por parte do governo imperial ou republicano, de população local em obras com remuneração via fornecimento de alimentos – foram reincidentes no combate à seca ao longo dos séculos, sendo a primeira frente de emergência registrada em 1721. Em 1941, o governo federal retoma o transporte de impactados pela seca ao Sul e a Amazônia, onde a produção de borracha para o governo estadunidense estava em franca atividade (SARMENTO, 2005, pp. 15, 25, 29). Estas soluções imediatistas, que se repetem ao longo dos séculos, demonstram que essa reincidência foi fruto de falta de vontade política para um verdadeiro desenvolvimento, que implicaria em romper a complexa estrutura social e política brasileira.”. SACCONI, Carolina Jéssica Domshke. A Transposição do Rio São Francisco: contradições da presença-ausência da obra ao longo de seus eixos. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019, 123p., p.36. 19  Segundo Sacconi, “essa versão foi considerada a primeira que ultrapassou o nível de estudo e articulou-se em projeto, projeto este que apesar de receber pequenas modificações ao longo dos anos, se manteria até a versão que foi executada, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.” SACCONI, Carolina Jéssica Domshke. A Transposição do Rio São Francisco: contradições da presença-ausência da obra ao longo de seus eixos. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019, 123p., p.39.


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um problema dentro das estruturas macroeconômicas do país (furtado, 1967). No entanto, a leitura que Furtado (1967) propõe, retoma objetivamente que a razão do subdesenvolvimento econômico regional não se limitava ao fenômeno da estiagem. Segundo Furtado (1967), as questões a serem resolvidas também não eram restritas a particularidades dos estados nordestinos, mas sim ampliadas pela relação de interdependência para com o desenvolvimento da região Sudeste do país. Os pontos que abrem o documento dizem respeito a uma leitura das estruturas econômicas e sociais da região e que não se encerram em si, articulando-se nacionalmente: A disparidade de níveis de renda existente entre o Nordeste e o Centro-Sul do país constitui, sem lugar a dúvida, o mais grave problema a enfrentar na etapa presente do desenvolvimento econômico nacional. (…) A renda média do nordestino é menos de uma terça parte da do habitante do Centro-Sul. Sendo a renda muito mais concentrada no Nordeste, a disparidade de níveis de vida da massa populacional ainda é bem maior.20 (FURTADO, 1967, p.9)

Esse olhar sistêmico sobre o subdesenvolvimento regional é construído por intelectuais brasileiros a partir da segunda metade do século xx, à luz de A questão meridional (1966), obra fundamental de Antonio Gramsci.21 O passado recente do país mostra uma recondução de como politicamente lidar com a região, por meio dos planos de governos petistas. As ações interventoras, como a transposição, não deixam de perpetuar uma disposição histórica do Estado Furtado coloca também como diretriz fundamental da Sudene o seguinte ponto: “A experiência do último decênio constitui clara indicação de que a ausência de uma compreensão adequada dos problemas decorrentes da disparidade regional de níveis de renda tem contribuído para que a própria política de desenvolvimento agrave o problema. Às causas profundas que respondem pela tendência secular ao atraso da economia nordestina – escassez relativa de terras aráveis, inadequada precipitação pluviométrica, extrema concentração de renda na economia açucareira, predominância do setor de subsistência na pecuária do hinterland do semiárido – vieram adicionar-se outras, de tipo circunstancial, decorrentes da própria política de industrialização do último decênio. A escassez de divisas, criada pela política de desenvolvimento, e os maciços subsídios aos investimentos industriais, decorrentes da política de controle das importações, favorecem amplamente a região Centro-Sul, cujas possibilidades de industrialização eram mais imediatas”. FURTADO, Celso. Uma política de desenvolvimento regional para o Nordeste. 2ª Edição. Recife: Sudene, 1967. 20

Ver GRAMSCI, Antonio. A questão meridional. Rio de Janeiro: Editora Terra e Paz, 1987.

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com relação aos sertões. As contínuas obras estatais que manipulam a paisagem e o território em virtude do desenvolvimento econômico nacional assinalam uma tradicional agência do poder. De todo modo, há uma retomada crítica de como o Nordeste foi tratado politicamente em termos sociais, de modo essencial a partir de 2003, como será visto no Capítulo 3. Se o processo colonial é coautor da paisagem e imagem de sertões, a identidade e o poder daqueles e daquilo que instituem Nordeste são coautores do que este termo passa a significar. Antes de qualquer relação com identidade ou cultura, se reconhece que a nomenclatura nasce subordinada a questões de origens cartográficas e técnicas, fruto do plano de obras da antiga ideia de transposição fluvial (albuquerque júnior, 2011; medeiros, 2019; sacconi, 2019). Dentro da tensão das nomenclaturas, o surgimento do termo passou a estabelecer limites, corroborando para que uma série de traços culturais fossem instituídos como identidade regional (albuquerque júnior, 2011). E, como observa Furtado (1969), dá corpo e título para a relação de subdesenvolvimento regional em relação ao Sudeste do país, consolidada ao longo do século xx. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, em seu livro A Invenção do Nordeste e Outras Artes (2011), aponta: “O Nordeste brasileiro só foi divulgado com tal designação após a última calamidade que o assolou em 1919, determinando a fase decisiva das grandes obras contra as secas” (albuquerque júnior, 2011, p.55). Nordeste enquanto nomenclatura, então, não deixa de ser uma perspectiva externa sobre uma região. É o nome do espaço, novamente, dado por aquele que o observa e o rege de longe: A partir daí [seca de 1877], a fim de redomesticar a região – porque o desenvolvimento não para – foi se construindo um objeto político para definir esse grande Outro avesso ao projeto colonial, cuja metrópole agora era nacional. Engendrado para fins bélicos, Nordeste é o nome que se dá para a região onde atuará, a partir de 1909, o órgão criado para evitar desastres como aquele, com o curioso nome de Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, que depois se assumiu Departamento Nacional de Obras de Combate às Secas. O espaço Nordeste é, portanto, inventado como uma arma cartograficamente sobreposta e em combate contra o bioma do semiárido; depois do Nordeste, o sertão, lugar condenado por sua indocilidade, se torna, pelo combate à terra, passível de salvação. (MEDEIROS, 2019, p.30) [grifo meu]


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Observa-se a confluência dos diversos sentidos que já caracterizavam os sertões que integram a região para a caracterização de Nordeste (albuquerque júnior, 2011). Aquele que vinha de fora, muitas vezes, foi agente responsável pela produção de relatos e produções sobre o espaço, como é o caso de Euclides da Cunha. A invenção do Nordeste muito se baseou em relatos que chegavam até o Sudeste e eram disseminados e oficializados por diversos veículos difusores, como a Imprensa Nacional (albuquerque júnior, 2011). Os vícios que acometem a leitura desta região do país estão fundamentados em um momento crucial na história brasileira. Como visto, o Sudeste consagrava-se enquanto potência econômica nacional e o recémnomeado Nordeste esmaecia, em decadência, marcado por profundas disparidades sociais e uma economia em declínio em decorrência de suas tradicionais atividades de produção (albuquerque júnior, 2011). A Bahia, por exemplo, já vinha passando por um processo específico de decadência, bem antes da virada para o século xx. O artista visual baiano Ayrson Heráclito (2016) localiza esta passagem histórica através do olhar de Antonio Risério: A mudança da capital da colônia da Bahia para nova sede administrativa imperial do Rio de Janeiro no século XIX, atesta o surgimento de uma nova ordem na economia e na política brasileira. Nas palavras de Antônio Risério sobre as consequências que também perpassam pelos processos culturais: “(…) A Bahia vai mergulhar, por bem mais de cem anos, num período de relativo isolamento e solidão, antes que aconteça sua inserção periférica na expansão nordestina do capitalismo brasileiro.” (FERREIRA, 2016, p.26) 22

Neste sentido, o estado da Bahia já se inseria, em meados do século xx, em uma dinâmica periférica nacional, situação fundamental para o dimensionamento também cultural do território. A concentração do poder político e do crescimento econômico do Sudeste torna possível a diagramação de uma subordinação de uma região em relação à outra. Sendo política e econômica, a dominação passou a ser consequentemente 22  Ver FERREIRA, Ayrson Heráclito. Além dos baihunos: tensões nas artes baianas e poéticas visuais à margem. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016, 129p.


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cultural. Albuquerque Júnior propõe, então, que a ideia de Nordeste seria “formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente, em relação a uma dada área do país. É a tal consistência desta formulação discursiva e imagética que dificulta, até hoje, a produção de uma nova configuração de ‘verdades’ sobre espaço” (albuquerque júnior, 2011, p.62). Para esta dinâmica que se articula entre Sudeste e Nordeste, o conceito de hegemonia mostra como se dá o processo de dominação cultural. Marilena Chauí (1986) considera hegemonia, pela perspectiva de Antonio Gramsci, como: Um complexo de experiências, relações e atividades cujos limites estão fixados e interiorizados, mas que, por ser mais do que ideologia, tem capacidade para controlar mudanças sociais. Numa palavra, é uma práxis e processo, pois se altera todas as vezes que as condições históricas se transformam, alteração indispensável para que a dominação seja mantida. (CHAUÍ, 1986, pp.21-2)

A dificuldade apontada por Albuquerque Júnior explicita a existência de agentes responsáveis direta ou indiretamente por uma série de elementos que passaram a ser atribuídos ao Nordeste. O termo hegemonia, portanto, é caro dentro desta pesquisa por balizar as relações políticas, econômicas, sociais e culturais em que sertões, Nordeste e cultura popular se inserem. Hegemonia descreve o que se observa tanto por esta relação interregional, quanto pelo que orienta a construção de noções culturais no país. Chauí, ao descrever hegemonia, facilita a compreensão de que não necessariamente há uma doutrinação oficial sendo colocada em prática de modo formal. A autora ilumina: Como cultura numa sociedade de classes, a hegemonia não é apenas conjunto de representações, nem doutrinação e manipulação. É um corpo de práticas e de expectativas sobre o todo social existente e sobre o todo da existência social: constitui e é constituída pela sociedade sob a forma da subordinação interiorizada e imperceptível. (CHAUÍ, 1986, p.22)

É possível reconhecer alinhamentos que ocorreram na primeira metade de século xx, que se enquadram nessas relações. As elites culturais, a postura


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nacionalista de Estado a partir de 1930 e o crescimento econômico (albuquerque júnior, 2011) somam-se suficientemente fortes para a construção de uma identidade nacional para o país. São forças que foram oportunas para a construção de uma ideia de Nordeste, junto das produções literárias, poéticas e jornalísticas sobre sertões que começaram a ser publicadas na virada do século xix para o xx, como já observado por Alves dos Santos (2017)23. Torna-se comum a visita de “especialistas e curiosos” a outras áreas do país. Como a centralização do poder no Rio de Janeiro obrigava a vinda dos políticos dos Estados do Norte pelo menos para esta cidade, o desconhecimento do restante do país era mais acentuado entre populações dos Estados do Sul, que, em sua maioria, apenas ouviam falar do Norte pela imprensa, sobretudo daquilo que os discursos de seus representantes, no Parlamento, diziam e faziam ver.(…) Esses relatos do estranhamento funcionam também no sentido de criar uma identidade para a região de quem fala, em oposição à área de que se fala. Inventa-se o paulista ou o nordestino, por exemplo, atentando para as diferenças entre o espaço do sujeito do discurso e o que ele está visando, ao qual, quase sempre, se impõe uma imagem e um texto homogêneo, não atentando para suas diferenças internas. Muitas vezes, o que se descreve são aspectos, costumes encontrados em um Estado ou uma área que são apresentados e descritos como “costumes do Norte ou Nordeste”, ou “costumes de São Paulo”. [grifos meus] (ALBUQUERQUE JÚNIOR, pp.54-5)

Através dos mecanismos oficiais de propagação de informação, um ponto de vista unilateral passava a ganhar força. Para além disso, as disparidades também se acentuavam a partir de uma postura de superioridade cultural e étnica

Segundo Márcio Roberto Alves dos Santos (2017), o sertão vinha sendo o foco de certas produções a partir dos seus sentidos geográficos, sociais e culturais,e supõe-se que o primeiro artigo publicado tenha sido escrito por Teodoro Sampaio, entre 1899 e 1900. “O sertão antes da conquista (século XVII)”, inaugura um momento em que “dezenas de historiadores, cientistas sociais e ensaístas (…) consolidaram a profusa produção bibliográfica sobre o sertanismo, característica da primeira metade do século XX. SANTOS, Márcio Roberto Alves dos. Rios e fronteiras: conquista e ocupação do Sertão Baiano. 1ª Edição: São Paulo, Edusp, 2017. p.353. 23


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Chuva na cidade de Monte Santo. Vista para a Rua Quinze de Novembro, já no pé da Serra.


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por parte do Sudeste24. A grande herança colonial da escravidão25 consolidou o racismo estrutural na lente pela qual se concebia o olhar para o Nordeste. Estavam constituindo-se os principais estigmas que enrijeceram uma ideia sobre a região, por se conformar fora dos novos padrões sulistas (albuquerque júnior, 2011). Estes eixos pelos quais se basearam inúmeras obras e relatos, dariam o tom do atraso da região como signo máximo para descrevê-la (albuquerque júnior, 2011). A ação de figuras políticas, intelectuais e artísticas que contribuíram para a constituição do que se formava como Nordeste não vieram apenas de indivíduos sudestinos. Para Albuquerque Júnior (2011), a modernidade materializada em aspectos urbanísticos no Recife do início do século 20 teria sido um dos disparadores para a articulação da intelectualidade pernambucana consolidar sua postura regionalista. Passaram a trabalhar em reconstituir uma identidade regional, através de obras e publicações, baseada sobretudo em uma ideia de “raízes profundas do país”, ali localizadas (albuquerque júnior, 2011). À frente desta produção, destacam-se nomes como José Lins do Rego e Gilberto Freyre através de um novo regionalismo pautado pela “busca da unidade do todo, a partir da observação profunda de suas partes fragmentadas. Ele surge das práticas políticas que levaram à descoberta da região como uma arma contra a excessiva centralização política e econômica, uma reação aos processos centralizadores do desenvolvimento capitalista” (albuquerque júnior, 2011, p.102). Segundo Albuquerque Júnior, o posicionamento de Freyre com seu regionalismo “radica

24  “O regionalismo paulista se configura, pois, como um ‘regionalismo de superioridade’, que se sustenta no desprezo pelos outros nacionais e no orgulho de sua ascendência europeia e branca. São Paulo seria para este discurso regionalista, o berço de uma nação ‘civilizada, progressista e desenvolvimentista’.” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.57). 25  Albuquerque Júnior escreve: “intelectuais como Oliveira Vianna e Dionísio Cerqueira veem no nordestino o próprio exemplo de degeneração racial, seja do ponto de vista físico ou intelectual. Eles consideram a miséria uma consequência do encontro entre um hábitat desfavorável e uma raça, fruto do ‘cruzamento de indivíduos de raças extremas e da submestiçagem’. Comparando a situação econômica de São Paulo com a dos Estados do Norte do país, eles atribuem ao maior eugenismo da raça ‘paulista’, à superioridade como meio e como povo, a ascendência econômica e política no seio da nação. A superioridade de São Paulo era natural, e não historicamente construída. O Nordeste era inferior por sua própria natureza, sendo o ‘bairrismo paulista’ uma lenda.” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.62).


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a nacionalidade na tradição”,26 em oposição à postura dos modernistas de São Paulo, por exemplo. O modernismo do Sudeste seria, para Freyre, um movimento desnacionalizador, por estar balizado pela ideia de modernidade e progresso, oposto ao regaste que o autor pernambucano propunha. A concepção sociológica do Nordeste não foi feita apenas por seus intelectuais, mas se elabora a partir de um discurso sobre, e do seu outro, o Sul. O Nordeste é uma invenção não apenas nortista, mas, em grande parte, uma invenção do Sul, de seus intelectuais que disputam com intelectuais nortistas a hegemonia no interior do discurso histórico e sociológico. (albuquerque júnior, 1999, p.117) Há, no fim da década de 1920, uma recolocação da literatura regionalista enquanto literatura nacional, a cargo da “emergência da análise sociológica do homem brasileiro” (albuquerque júnior, 2011), pela preocupação intelectual colocada principalmente por uma elite cultural nordestina em relação a ideia de “povo”. Esses movimentos acabam por influenciar produções que extrapolam as manifestações artísticas, aproximando-se tanto dos campos da sociologia e antropologia, a exemplo de Casa Grande e Senzala (1933) e Nordeste (1937) de Gilberto Freyre; ou mesmo os sudestinos Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda (1936) e O turista aprendiz (1943), de Mário de Andrade27. Dentro dessa intensa produção literária e sociológica, a partir da primeira metade do século xx, sertões nordestinos ganham contornos simbólicos que os trazem ao presente enquanto imagem, quando a “literatura passa a ser vista como destinada a oferecer sentido às realidades do país, a desvendar a essência do Brasil real” (albuquerque júnior, 1999, p.123). Segundo Albuquerque Júnior 26  É interessante pontuar que o olhar de Gilberto Freyre, segundo Albuquerque Júnior (2011), procurava uma tradição em “uma paisagem enobrecida pela capela, pelo cruzeiro, pela casa-grande, pelo cavalo de raça, pela palmeira imperial, mas ao mesmo tempo deformado pela monocultura latifundiária e escravocrata, esterilizada em suas fontes de vida, devastada em suas matas, degradadas em suas águas. Um Nordeste em que a fuga da terra pela erosão das matas e pelas queimadas parecia macular aquele que aparentava ser o único aspecto de permanência: a natureza, o espaço.” ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5ª Edição. São Paulo, Cortez Editora, 2011. p.115.

O livro concentra as percepções de Mário de Andrade sobre suas viagens ao Norte e Nordeste do país. Concentra o relato de duas viagens, uma em 1924, outra entre 1927 e 1928. 27


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(1999), a partir da obra de Euclides da Cunha, algumas posturas em relação aos sertões nordestinos são fixadas: O sertão aparece como um lugar onde a nacionalidade se esconde, livre das influências estrangeiras. O sertão é aí muito mais um espaço substancial, emocional, do que um recorte territorial preciso; é uma imagem-força que procura conjugar elementos geográficos, linguísticos, como as bandeiras, as entradas, a mineração, a garimpagem, o cangaço, o latifúndio, o messianismo, as pequenas cidades, as secas, os êxodos etc. O sertão surge como a colagem dessas imagens, sempre vistas como exóticas, distantes da civilização litorânea. É uma ideia que remete ao interior, à alma, à essência do país, onde estariam escondidas suas raízes. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p.67) [grifos meus]

A partir da década de 1930, a literatura ganha outra conotação pela produção do “romance de trinta”, absorvendo necessidades sociológicas, colocadas pela força que tomava o crescente caráter urbano e industrial em regiões do país (albuquerque júnior, 2011). A partir deste momento, “o homem do interior deixa de ser visto como um ser exótico, pitoresco, que não se encaixava nos padrões emanados das cidades, e passa a ser abordado na sua constituição sociológica e psicológica, denotando seu pertencimento a um todo social e não mais um ser estranho, apartado da realidade da civilização” (albuquerque júnior, 2011, p.127). Com isso, cria-se base para uma série de obras que atravessam o século 20, propondo outro direcionamento das produções literárias, musicais, cinematográficas etc. De Graciliano Ramos, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto até o Cinema Novo e o próprio movimento Tropicalista, são propostas lentes que, de certa forma, emancipam-se das ciências sociais. São orientados por questões estéticas alinhadas a ideários revolucionários, ligadas com maior ou menor intensidade ao pensamento marxista dentro da complexidade cultural do Brasil. Produziram obras em que surge um Nordeste centralizando a revolta contra a opressão das classes populares e a miséria regional (albuquerque júnior, 2010). Nordeste como ideia e imagem passa a se consolidar durante o século xx através de uma condição muito específica, deflagrando uma controversa maneira de como passaria a ser compreendido, representado e tratado.


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A procura por uma identidade regional nasce da reação a dois processos de universalização que se cruzam: a globalização do mundo pelas relações sociais e econômicas capitalistas, pelos fluxos culturais globais, provenientes da modernidade, e a nacionalização das relações de poder, sua centralização nas mãos de um Estado cada vez mais burocratizado. A identidade nacional permite costurar uma memória, inventar tradições, encontrar uma origem que religa os homens [sic] do presente a um passado. O “Nordeste tradicional” é um produto da modernidade que só é possível pensar neste momento. (…) O fim do caráter regional da estrutura econômica, política e social do país e a crise dos códigos culturais desse espaço fazem pensar e descobrir a região. Um lugar criado de lirismo e saudade. Retrato fantasioso de um lugar que não existe mais, uma fábula espacial. Não é à toa que as pretensas tradições nordestinas são sempre buscadas por fragmentos de um passado rural e pré-capitalista; são buscadas em padrões de sociabilidade e sensibilidade patriarcais, quando não escravistas. Uma verdadeira idealização do popular, da experiência folclórica, da produção artesanal, tidas sempre como mais próximas da terra. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, pp.90-1)

cultura popular

Há um vínculo que se estabelece entre as ideias de “Sertões” e “Nordeste” com manifestações da cultura chamada de popular. A historiografia do termo “cultura popular” no Brasil se mistura com a criação das imagens desses dois recortes espaciais, que passam a ser veiculados como elementos da cultura nacional no século xx. Segundo Martha Abreu, em Cultura Popular: um conceito e várias histórias (2003), manifestações entendidas sob esta nomenclatura no Brasil já eram produzidas desde o século xix por estudiosos folcloristas. Passaram a ser elaboradas depois por “antropólogos, sociólogos, educadores e artistas”, justamente implicados em discutir a concepção de uma identidade cultural do país (abreu, 2003). Há, dentro da produção dos folcloristas, uma inegável busca pelos sentidos que tinham as populações dos interiores do país, em contraposição aos grandes centros urbanos em transformação (abreu, 2003). Eram interessados por


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uma integração cultural através do sentido nacional, propondo que os elementos encontrados nestes espaços fossem usados como símbolos para esse processo (abreu, 2003). A autora aponta como algo que se perseguia como produtos desta cultura, no caso de uma literatura popular, o que produziam sertanejos e caboclos, por exemplo. Essas posturas muito se assemelham às colocações de Albuquerque Júnior (2011) sobre a busca pelo sertão como espaço-redoma de uma raiz e costumes colocados como essencialmente nacionais. É reconhecido neste processo o olhar que procura o “outro” nacional, aquele elaborado também de longe, num sentido espacial mas também social e cultural. E que, pelos adventos da modernidade, estaria sujeito a alterações súbitas de suas existências, pelos processos em que o país adentrou durante o século xx (albuquerque júnior, 2011; abreu, 2003). Este é o tratamento dado de maneira primária à “cultura popular”, que funda e perpetua-se como entendimento do termo. Esta postura foi adotada por folcloristas e mesmo pelos intelectuais regionalistas de Pernambuco (abreu, 2003; albuquerque júnior, 2011). Conceitualmente, este tratamento a manifestações culturais materiais e imateriais pode ser vinculado a uma perspectiva romântica (chauí, 1986), originária do que se entende por folclore, justamente. Marilena Chauí (1986) observa este tratamento, historicamente observado e perpetuado: “O povo romântico – sensível, simples, iletrado, puro, natural, enraizado na tradição – nasce de motivos estéticos intelectuais e políticos” (p.19). A respeito desta postura, a autora assinala os principais aspectos que passa a ter “cultura popular” através desta lente: o primitivismo (isto é, a ideia de que a cultura popular é retomada e preservação de tradições que, sem o povo, teriam sido perdidas), comunitarismo (isto é, a criação popular nunca é individual, mas coletiva e anônima, pois é a manifestação espontânea da Natureza e do Espírito do Povo) e purismo (isto é, o povo por excelência é o povo pré-capitalista, que não foi contaminado pelos hábitos da vida urbana – na Europa, são os camponeses que, vivendo próximos da Natureza e sem contatos com estranhos, preservaram os costumes primitivos em sua pureza original; na América Latina, são os índios, “raíces de America”). Compreende-se, então, por que o romantismo será fonte inesgotável dos populismos. Afirmando a bondade natural e a pureza sentimental do povo anônimo e orgânico, o romantismo localiza a cultura popular: é guardiã da tradição, isto é, do passado. (CHAUÍ, 1986, pp.19-20)


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Abreu (2003) retoma que na Europa, a partir do século xix, o folclore é uma postura intelectual e cultural que se vincula profundamente ao sentido da procura e instituição de aspectos nacionais, em oposição a certo cosmopolitismo de alguns países europeus. “Camponeses e indivíduos comuns” (sic), tidos como ingênuos, incultos, “os subalternos do mundo rural”, passaram a ter suas práticas e costumes procurados, documentados e, assim, disseminados (abreu, 2003, p.86). Os fundamentos da prática folclórica, ou como coloca Abreu, desta disciplina, baseiam-se na relação de oposição entre termos “Cultura” e “Civilização”. Chauí (1986), em função de compreender cultura popular, observou que a partir do século xviii, segundo Raymond Williams, passa a existir uma articulação entre os conceitos, “ora positiva, ora negativamente” (p.11). De todo modo, aqui será observada a relação de oposição, que orienta os primeiros sentidos que o termo “cultura popular” assume. A autora propõe a perspectiva etimológica para a compreensão dos termos, sendo que o primeiro vem do latim colere, “ligado ao cultivo e o cuidado das plantas, os animais e tudo que se relacionava com a terra; donde, agricultura. (…) O vocábulo estendia-se, ainda, ao cuidado com os deuses; donde, culto. (…) A cultura, escreve Hannah Arendt, era o cuidado com a terra para torná-la habitável e agradável aos homens. (…) Em latim, cultura animi era o espírito cultivado para a verdade e a beleza, inseparáveis da Natureza e do Sagrado” (p.11). O segundo, do latim civitas, “referia-se ao civil, como homem educado, polido e à ordem social (donde o surgimento da expressão Sociedade Civil). (…) Significava, por um lado, o ponto final de uma situação histórica, seu acabamento ou perfeição, e, por outro lado, um estágio ou uma etapa do desenvolvimento histórico-social, pressupondo, assim, a noção de progresso” (p.12). E é neste mesmo momento, século xviii, em que Herder, segundo Martha Abreu (2003), teria pela primeira vez usado o termo “cultura popular, com o sentido de alteridade”. A produção de folcloristas é desenvolvida, inicialmente, como um contraponto às transformações de um tempo, da mesma forma em que passam a confrontar-se os conceitos de “Cultura” e “Civilização” na perspectiva romântica, à maneira que Rosseau elabora a oposição28 (chauí, 1986).   “Todavia, a Ilustração relaciona Cultura e Civilização de maneiras opostas. Alguns, como Rosseau, consideram os dois termos antitéticos. Civilização é artifício, cultivo da exterioridade, sujeição da 28


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Abreu (2003) acrescenta que folcloristas europeus eram “desinteressados dos reais problemas sociais do campesinato e dos trabalhadores das cidades, ambos profundamente afetados com as transformações da Revolução Industrial” e “valorizaram as continuidades, as sobrevivências e as tradições que pareciam teimar em permanecer nas áreas rurais” (p.86). Há, portanto, uma desarticulação entre os elementos perseguidos por estes agentes e as questões políticas, sociais e econômicas destes espaços. Herda-se dessa postura uma produção simbólica destas outras culturas, consagrando suas imagens a partir de percepções reduzidas sobre tais realidades. Há, dentro do estabelecimento do termo “cultura popular” no Brasil, a percepção de que aquilo que fosse produzido fora do escopo que envolve a “não-modernidade, o atraso, o interior, o local, o retrógrado, o entrave à evolução”, ainda que por classes populares, não seria legítimo à régua deste entendimento. As modificações proporcionadas pelas especificidades do presente seriam vistas como algo descaracterizado, com menor valor. Este modo de entender culturas populares certamente não se enquadra dentro deste trabalho, por reconhecer as limitações que este pensamento propõe sobre o tema29. Para que se entenda melhor o sentido de culturas populares escolhido nesta pesquisa, é preciso compreender seu lugar dentro de sociedade e suas relações com a cultura dominante, como propõe Chauí (1984).

sensibilidade e do ‘bom natural’ aos espartilhos de uma razão artificiosa, decadente. Civilização seria o término da barbárie. Em contrapartida, Cultura é bondade natural, interioridade espiritual, sentimento e imaginação, vida comunitária espontânea. Assim, enquanto Civilização designa convenção e instituições sociopolíticas, Cultura se refere à religião natural, às artes nascidas dos afetos, à família e à personalidade ou à subjetividade como expressões imediatas e naturais do espírito humano nãopervertido. Civilização é a sociedade política.” CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo, Editora Brasiliense. 1986. p.12.

29  Folclore, portanto, é colocado sob esta perspectiva do modo de pensar, distanciando-se da que aqui se adotou ao olhar para as culturas populares. Reconhece-se que há, de fato, uma reconsideração sobre o valor dos registros produzidos por folcloristas recentemente. São atribuídos valores antropológicos que possibilitam ampliar discussões acerca de temas variados. A oposição teórica construída por esta pesquisa ao que se entende por folclore procura evidenciar a orientação destas práticas e as fissuras deste discurso, muito em função das questões nacionais a partir da tarefa de construção de uma identidade.


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Em sentido amplo, Cultura é o campo simbólico e material das atividades humanas, estudadas pela etnografia, etnologia e antropologia, além da filosofia. Em sentido restrito, isto é, articulada à divisão social do trabalho, tende a identificar-se com a posse de conhecimentos, habilidades e gostos específicos, com privilégios de classe, e leva à distinção entre cultos e incultos de onde partirá a diferença entre cultura letrada-erudita e cultura popular. (CHAUÍ, 1986, p.14) [grifos meus]

Chauí (1986) reconhece que o termo “Cultura Popular” é de difícil definição, por uma série de questões, mas que seria primordial considerálo enquanto uma nomenclatura que nasce de uma perspectiva de alteridade. Cultura popular, segundo a autora, traz em si, essencialmente, a relação de um grupo social dominante sobre outro. De pronto, é posto, então, o lugar dos agentes que estabelecem e nomeiam a cultura popular: o de uma classe social dominante, e que por ser portadora de um capital cultural específico, consegue eleger e apropriar-se desses outros símbolos em função de suas necessidades políticas, estéticas e ideológicas. A autora inicia: “A dificuldade, porém, é maior se nos lembrarmos de que os produtores dessa cultura – as chamadas classes “populares” – não a designam com o adjetivo ‘popular’, designação empregada por membros de outras classes sociais para definir as manifestações culturais das classes ditas ‘subalternas’” (1986, p.10). Mesmo que distante da cultura erudita das classes dominantes, cultura popular “não estaria desta maneira apartada, em termos do que produz enquanto seus elementos” (chauí, 1986). Seria algo que viria simplesmente “do interior” desta mesma sociedade sob tal hierarquização de poder, e não como algo externo a ela (chauí, 1986). Posto isto, a autora não considera “a Cultura Popular como uma outra cultura ao lado (ou ao fundo) da cultura dominante, mas como algo que se efetua por dentro dessa mesma cultura, ainda que para resistir a ela” (1986, p.24). Nestor Canclini (1982) enfatiza que a visão romântica sobre cultura popular, nos termos do folclore, teria como princípio prezar por certo isolamento do que é periférico por um suposto distanciamento da ordem capitalista, “como se as culturas populares não fossem o resultado da absorção das ideologias dominantes e das contradições entre as próprias classes dominadas”. A


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Concentração para a Festa dos Vaqueiros na praça principal do povoado de Riacho Seco, no município de Curaçá.


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perspectiva das relações entre classes, nesse sentido, é um fator decisivo para a elaboração das expressões populares enquanto cultura (canclini, 1983; chauí, 1986). Ainda sobre os folcloristas europeus, afirma Abreu (2003): Não se preocupavam em conhecer os problemas e a situação das classes populares em foco. Idealizavam um autêntico “povo rural” que não ameaçava a ordem social. Preferiam pensar as culturas populares como diferentes e não como partes que também eram (e são) de um sistema de dominação. (ABREU, 2003, p.88) [grifos meus]

A pretensão do folclore motiva-se pela imutabilidade de atividades “tradicionais” das classes populares, que são naturalmente sujeitas a interferências e transformações. O olhar folclórico torna-se frágil pelo ponto de vista que procura reconhecer as relações de poder entre classes sociais sob a ordem capitalista. Ordem essa responsável por transformar as maneiras de expressão tanto materiais como imateriais de classes populares, por interferir na condição material de seus agentes. A redoma estimada pelo folclore nada tem a ver com a própria necessidade de tais grupos conservarem suas práticas tradicionais, mas sim com a necessidade do que oficialmente se julga importante, através de um crivo social, político e estético específico, como já visto a partir de Chauí (1986). O folclore esteve vinculado e subserviente a noções hegemônicas de como se tratar as manifestações produzidas pelas classes populares. Esteve sob a condição de docilidade e graça, palatáveis e de acordo com os interesses das classes e cultura dominantes. Retomando Chauí (1986), a perspectiva romântica, folclórica, integra um olhar em que culturas são tratadas como uma “totalidade orgânica, fechada sobre si mesma, e perdem o essencial: as diferenças culturais postas pelo movimento histórico-social de uma sociedade de classes” (p.24). São esses os motivos que dificultam a compreensão de serem consideradas culturas populares quaisquer manifestações que fujam a uma estética que varia entre o “tradicional”, ou mesmo o “pré-industrial”. Nesse sentido, tanto a ideia de Nordeste construída ao longo do século xx, quanto o uso do termo cultura popular sob a perspectiva folclórica confundem-se: encontram um no outro motivos para andarem juntos.


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Chauí (1986) continua a desenvolver a ideia hegemonia, sob a perspectiva de Gramsci: “Todo processo hegemônico precisa ser especialmente atento e capaz de responder às alternativas e oposições que questionam e desafiam sua dominação” (p.23). Este processo retoma a maneira como aspectos de culturas populares são veiculados através de uma elite cultural. Por meio de ações específicas, manifestações populares se enquadram dentro dos interesses deste segmento social específico. A partir desta apropriação, as manifestações esvaziam-se de um sentido primário e passam a ser compreendidas pelo que cabe dentro do interesse das classes dominantes. Procurando compreender qual seria uma postura frente a esta dominação cultural das classes superiores, é que a autora coloca o conceito, também gramsciano, de contra-hegemonia. Para além do seu sentido de resistência claro à postura que pasteuriza as culturas populares, Chauí procura dar conta de observar que processos de mediação cultural são intrínsecos mesmo no que seria contra-hegemônico, por fazer parte deste mesmo sistema (1986, p.23). Ou seja, a contra-hegemonia pressupõe certas conciliações com instâncias hegemônicas, mesmo com seus sentidos de resistência. O que se deseja reconhecer aqui é o sentido de popular vinculado também ao tempo presente e específico. Podendo, assim, tratar como popular as manifestações que adentram dinâmicas que as tornem sujeitas ao que é visto pejorativamente como “descaracterização” ou “perda”. Frente a esta questão, Abreu (2003) coloca o ponto de vista de Canclini, que ajuda a compreender culturas populares no século xx e suas relações com o capitalismo. São perceptíveis em sua fala as relações que se estabelecem com diversos setores da sociedade civil, do mercado, da política: O popular não é monopólio dos populares, não se pode mais buscar uma idade de ouro da cultura popular no sentido de ter estado independente, sem contato de espécie alguma. (…) Nos fenômenos culturais populares, vistos como folclóricos ou tradicionais, intervêm os ministérios, as fundações privadas, empresas de bebidas, rádios e televisão, agentes populares e hegemônicos, rurais e urbanos, locais, regionais e transnacionais. Enfim, eles são multideterminados. (…) Segundo Canclini, é necessário desconstruir a divisão entre o culto, o popular e a cultura de massa, e investigar o que denominou de hibridismo. Em sua perspectiva, nada é puro, as culturas são híbridas. (ABREU, 2003, p.94)30   Ver o curta-metragem 20 01 (2020), de Manuela Makhoul, a respeito da Festa do Pau, em Cumuruxatiba, Bahia. 30


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As noções consolidadas acerca de Folclore foram tensionadas a partir das décadas de 1950 e 1960 por intelectuais da Universidade de São Paulo (abreu, 2003, p.87), dando espaço para a discussão de cultura popular dentro de perspectivas históricas e sociológicas. Neste momento, as classes populares passaram a ser vistas pelo “âmbito da modernização, da mudança social e das desigualdades sociais” (abreu, 2003, p.87). Esta disposição intelectual somava-se à crescente urbanização e industrialização no país, quando emergiram novas complexidades das classes populares no que diz respeito ao seu lugar de consumo e produção. O entendimento de Néstor García Canclini acerca do termo “popular” o coloca como adjetivo que corresponde às mudanças socioeconômicas de classes populares e as reverberações em suas produções. O autor considera que a inserção econômica e social em dinâmicas mais articuladas do capitalismo explicita o quanto tais classes respondem com vigor às dinâmicas de um sistema, mesmo que de forma ultra periférica. E “uma vez que todas as manifestações da cultura popular ocorrem no interior do sistema capitalista, deve-se encontrar uma maneira de compreendê-los juntos.” (canclini, 1982, p.12). Outro termo que complementa a tentativa de desenhar a forma pela qual se concebe o popular nas arquiteturas aqui estudadas é o entendimento de cultura de massas. Se faz necessário considerar o reconhecimento de mudanças estruturais no lugar que ocupam as classes populares enquanto agentes consumidores frente a um mercado e o que pode ser produzido a partir disso. A respeito do termo, Chauí (1986), coloca: A noção de “massa” permitiria demonstrar o término das classes sociais, das contradições e da luta sociopolítica e, consequentemente, com o fim da luta de classes, o fim das ideologias. A “massa” torna real o sonho da democracia liberal, onde as divisões sociais podem ser reduzidas a divergências de interesses entre grupos e indivíduos, capazes de chegar ao consenso político à maneira que o mercado que se autorregula, regulando os interesses particulares. Na trilha da “sociedade de massa” vinha a “cultura de massa”, expressão da democracia cultural criada pelos meios de comunicação, símbolos vivos da liberdade de pensamento e de expressão e da plena transparência da informação. No polo oposto a esse otimismo teórico-político, encontravam-se os frankfurtianos, Adorno, Horkheimer e Marcuse, trazendo os conceitos de “indústria


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cultural” e de “cultura administrada”. O pano de fundo das reflexões de Adorno e Horkheimer era a massa nazifascista, a massa totalitária com seu cortejo terrorista e irracional. O pano de fundo de Marcuse era a barbárie da sociedade de abundância e desperdício, redigida pelo princípio do rendimento (ou da super-repressão) e pela pulsão de morte, criando o homem unidimensional, a massa homogênea anônima, manipulável e sem relevo interno. Se, na perspectiva otimista dos liberais da “massa”, reinava a crença de que o avanço tecnológico e o nivelamento da informação, em si e por si mesmo, eram responsáveis pelo progresso e pela paz – o que se costuma chamar de “modernidade” –, na perspectiva dos frankfurtianos chegava-se à ideia do Eclipse da Razão, à razão meramente instrumental e acrítica, à reificação das relações sociais e dos indivíduos, ao cumprimento da barbárie antes vista pela Dialética da Ilustração. Curiosamente, porém, com exceção de Marcuse, as duas perspectivas tendiam a concordar num ponto: a identificação entre o popular e a massa. (…) A Cultura Popular é identificada com a Cultura de Massa – Popcult e Masscult tornaram-se sinônimos. (CHAUÍ, 1986, p.28) [grifos meus]

Chauí (1986) compreende, a partir desta exposição conceitual, que os dois termos não sejam reconhecidos como o mesmo, por nomearem manifestações que se distanciam pelos processos que as compõem. No entanto, a oposição é conceitual, já que a autora reconhece, assim como Canclini (1982), uma relação de conexão que passa a ser profunda entre ambas e que é de grande importância que seja observada (chauí, 1986). A autora vai reconhecer os modos como expressões de culturas populares se relacionam com as expressões e os “meios de Massa”, podendo se aproximar ou se distanciar deles, assim como absorvê-los ou não (chauí, 1986). Tal colocação retoma a ideia de que classes populares respondem materialmente à sua posição dentro das dinâmicas capitalistas, mais ou menos inseridas. E que estas dinâmicas necessitariam também destas classes para acontecer. A autora entende que as expressões de culturas populares seriam aquilo que a “ideologia dominante tem por finalidade ocultar”, reiterando aí seu reconhecido sentido de resistência frente à dominação em diversas instâncias. Este ponto seria oposto à noção de “Cultura de Massa”, que tenderia a “ocultar diferenças sociais, conflitos e contradições” (chauí, 1986, p.28). Ainda dentro desta questão, “massa” denominaria uma condição social e política oposta a “elite”,


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Cento da cidade de Uauá no mês de Junho, quando estava sendo montada a cenografia urbana para festejos de São João.


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descomplexificando uma série de características que estruturam a relação de poder na sociedade de classes (chauí, 1986, p.28). Segundo a autora, a massa seria tratada como um “agregado amorfo de indivíduos anônimos”, e a elite constituída “por indivíduos que se distinguem dos demais pelas capacidades extraordinárias” (chauí, 1986, p.29). A ideia de homogeneidade social contida em “massas” teria relação íntima com a constituição do poder hegemônico das elites e, por isso, de subordinação a elas (chauí, 1986, p.28). Quando a elite detém o saber, os níveis de subordinação podem ser lidos através da relação de conhecimento, instantaneamente assumindo a massa como “vazia, passiva, inculta, ignorante, incompetente, precisando ser guiada, dirigida e ‘educada’ (o que seria feito por uma Cultura de e para a Massa, forma menor da cultura dominante outorgada pela elite)” (chauí, 1986, p.29). Ao mesmo tempo que “Massa” – e justamente por isso também – seria tida como perigosa, exigindo disciplina e controle constantes sobre ela (chauí, 1986, p.29). Podem ser lidos por esta exposição pontos interessantes que caracterizam a cultura de massas e que passam a se integrar dentro das dinâmicas de culturas populares, uma vez inseridas dentro das lógicas do consumo. No entanto, fica tensa a relação entre o “controle”, colocado por Chauí, e uma expressão de resistência contra-hegemônica, colocada pela ação das classes populares. Entende-se aqui que muito se perde nos dualismos, de modo que enxergar outros diversos sentidos disparados por essas relações, e que habitam as manifestações de culturas populares, seria algo imprescindível para entender sua complexidade. Dentro desta pesquisa, o termo popular pretende abarcar o constante movimento de interação das classes populares nos esquemas em que se inserem. Movimento este que interage com outros setores sociais, com setores de produção e com o próprio mercado em que se inserem enquanto agentes. Tal nomenclatura é entendida, sobretudo, por seus vínculos com o presente e pelo que se elabora em termos de importância histórico-cultural a partir desta condição. Além de permitir o resgate ou a reconstrução da possível autonomia de essas pessoas pensarem e agirem no mundo que vivem (ou que viveram), a expressão cultura popular mantém aberta, no meu modo de ver, a possibilidade de se


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pensar em um campo de lutas e conflitos sociais em torno de questões culturais. (...) Desta forma, a expressão pode servir para se enfrentar a globalização, não no sentido de valorização das pretensas identidades nacionais, mas reforçando a perspectiva de existência de diferentes significados sociais em torno das manifestações culturais coletivas. (ABREU, 2003, p.95)


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capítulo 2: dimensões estéticas e simbólicas das fachadas de platibandas em sertões

Por razões culturais e também econômicas, percebe-se a continuidade da produção cultural dos setores populares. O importante, então, diferentemente da perspectiva do folclorista, não seria buscar o que não muda; mas por que muda, como muda e interage com a modernidade. (ABREU, 2003, p.93)

Neste primeiro momento será revisitada uma tipologia produzida no passado. A partir dela será possível ter uma base de compreensão formal para observar exemplos que foram registrados em sertões baianos no ano de 2019. A base de análise se faz pelo reconhecimento de procedimentos construtivos e plásticos que caracterizam fachadas de platibandas antigas. As principais imagens utilizadas são de casas documentadas por Anna Mariani, desde a década de 1970 até o período próximo da virada do século. Pelos registros de Mariani (2010), compreende-se a fachada de platibanda como um elemento cultural, amplamente absorvido por diversas construções, em diversas regiões de estados nordestinos. Nota-se, atualmente, a permanência da fachada enquanto prática construtiva e, por meio de um uso similar de sua superfície, de sua agência previamente estabelecida no passado. Os exemplos contemporâneos sugerem a permanência das características próprias, em que são percebidas a expressividade plástica e a imagética. Ao mesmo tempo, também são observadas alterações plásticas e visuais em função de novos materiais que passam a integrá-los.


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A conversa entre as temporalidades dessas arquiteturas vistas em sertões é necessária, pois também se explicita o redimensionamento do trabalho dos pedreiros. São estes agentes e os próprios moradores que trazem ao presente as fachadas com platibandas como fato cultural (mariani, 2010; brendle, 1996), e sob uma nova condição, junto das transformações políticas, econômicas e sociais pelas quais as regiões e suas populações passaram nas últimas décadas. As fachadas, que continuam dotadas de grande pulsão visual e compositiva, estruturam sua imagem a partir da linguagem proposta por materiais industrializados, em módulos de porcelanato. A recorrência de casas sob uma nova linguagem material difere das construções remanescentes, o que demonstra uma transformação ampla na maneira de se relacionar com a construção nas cidades e povoados percorridos. Estes processos frequentes são aqui chamados de incorporações. Não apenas trazem consigo a permanência da platibanda como prática popular dentro da construção em sertões, mas a fachada enquanto corpo ativo, que passa a elaborar em si: 1) a atividade de uma indústria; 2) uma série de programas sociais que recolocaram a possibilidade de consumo de classes populares; 3) a transformação de um tipo de trabalho realizado sobre a fachada; 4) a intencionalidade plástica das fachadas que permanecem. Em suma, negociam com diversos setores e instâncias simbólicas para acontecer. A fachada, portanto, é a elaboração de um processo histórico; uma permanência que incorpora transformações de um tempo, explicitando-as. Ao olhar para arquitetura como objeto de estudo, está posta em questão a matéria que a constitui e toda ação dedicada a conferir sua forma específica. É um objeto histórico que não é estanque, que continua acontecendo e variando ao longo do tempo. Adjetivá-la tradicionalmente como popular implicaria colocá-la em oposição aos moldes da arquitetura acadêmica e erudita, circunscrevendo-a em determinado segmento social, econômico e, portanto, cultural. De todo modo, a dualidade erudito/popular não nos serve aqui para pensar em oposição ou mesmo em blocos impermeáveis (chauí, 1986). O termo popular, aqui, pode se aplicar a uma variedade que permanece fora da zona de apropriação desta hegemônica forma de cultura e dominação. De todo modo, não exclui as intensas interações dimensionadas pelas relações


Aliança, Pernambuco. [Anna Mariani, 1981] 09

Bola, Paraíba. [Anna Mariani, 1985]

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de poder entre classes sociais. Estudar estes exemplos de arquiteturas populares diz respeito à compreensão das práticas de classes populares em movimento.1 Entre 1994 e 1996, Maria de Bethânia Uchôa Cavalcanti Brendle, arquiteta e pesquisadora pernambucana, foi responsável por um grande e aprofundado levantamento a respeito das fachadas com platibanda no interior de seu estado. A tipologia estudada pela autora é a mesma que este trabalho traz como base para que seja possível entender esses tipos de arquiteturas no presente. Na investigação da autora sobre essa arquitetura popular em Pernambuco são elencadas características fundamentais para que se inicie a discussão, em texto publicado no ano de 1996: a arquitetura popular [sic] é uma resposta imediata à necessidade de morar e sua escala modesta e mínima reflete as possibilidades financeiras de proprietários e usuários. (BRENDLE, 1996, p.93)

Os sentidos de “popular” dessas arquiteturas, trazidos por Brendle, podem ser entendidos por uma série de características. Podem ser compreendidos, por exemplo, pelo fato de as casas não se vincularem necessariamente a um nicho de mercado ou consumo, ou que esta arquitetura em questão seja “produzida basicamente para o morar”, em oposição a uma arquitetura acadêmico-erudita (brendle, 1996, p.95). Essas casas são uma manifestação material que transcende a dimensão do objeto, da escala do manuseio, embora ela seja produzida pelas mãos de trabalhadores e esse fato seja perceptível através de sua imagem. Por isso, pode assumir características profundamente individuais dentro de uma prática comum. É o espaço onde se dimensiona certa domesticidade tanto interna quanto externamente. Trata de reverberar certa intimidade pelas escolhas materiais, plásticas e estéticas que o constituem em relação ao conjunto urbano, heterogêneo. A casa, enquanto espaço privado e unidade formal, desempenha   Chauí propõe olhar para as manifestações de culturas populares “como expressão dos dominados, buscando as formas pelas quais a cultura dominante é aceita, interiorizada, reproduzida e transformada, tanto quanto as formas pelas quais é recusada, negada, afastada, implícita ou explicitamente, pelos dominados”. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. 1


Ingá, Paraíba. [Anna Mariani, 1985] 11

Belo Jardim, Pernambuco. [Anna Mariani, 1985]

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um papel fundamental sobre o aspecto físico de uma cidade. Entende-se que a possibilidade de um espaço urbano está baseada na relação estabelecida entre rua e construção. Nestor Goulart Reis Filho retoma uma característica primordial da formação de cidades coloniais brasileiras: Numa época na qual as ruas, com raras exceções, ainda não tinham calçamento, nem eram conhecidos passeios (…), não seria possível pensar em ruas sem prédios; ruas sem edificações, definidas por cercas, eram as estradas. A rua existia sempre como um traço de união entre conjuntos de prédios e por eles era definida espacialmente. (REIS FILHO, 2000, p. 24)

Enquanto volume, a casa desenha a condição do espaço externo. Carrega informações a partir do trabalho que a compõe. A parte pública da casa, sua fachada, pode ser entendida como um suporte de gestos. É na fachada que se estabelece a mediação entre o privado, individual, e o público, coletivo. A fachada é a superfície que possibilita e produz concretamente a relação entre estes dois âmbitos fundamentais de uma cidade. É, portanto, peça que dialoga com a realidade de maneira porosa, pelo que a constitui e pelos sentidos que passa a produzir enquanto matéria e imagem em um espaço. As arquiteturas aqui estudadas passam a ser, então, esse objeto-limite, arautos de uma situação e disposição individual em relação ao espaço público, que concentra uma série de ações específicas. A recorrência e a diversidade de formatos que as casas tomam, autorizam a pensar sobre aspectos comuns da prática do construir. Ainda mais no caso de construções autônomas em sua feitura, isto é, que não integram diretamente qualquer tipo de escola estilística erudita ou mesmo qualquer ação projetual prévia, a exemplo dos conjuntos habitacionais e das construções projetadas por arquitetos acadêmicos. O olhar sobre seus materiais pode traduzir outros sentidos, quando se questiona qual seria a razão das escolhas presentes neste construir. Para além do trabalho manual e plástico, há uma leitura social que pode ser feita. Desse modo, a casa absorve e fornece sentidos. Herda da condição de quem a constrói uma série de aspectos formais e simbólicos e fornece ao espaço urbano sentidos que o caracterizam e o estabelecem.


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A variedade de construções que integram a paisagem pode sugerir também uma perspectiva coletiva de interações socioeconômicas daqueles agentes que constroem esses espaços. Como Brendle (1996) constata, além dos seus atributos plásticos e estéticos, desde os exemplos antigos, a fachada é entendida como espaço “onde a população expressa sua individualidade e simboliza valores e padrões estéticos e ascendência econômica” (p.94). De todo modo, as casas aqui não são vistas como consequência ou resultados de processos. Interessa observar como Brendle (1996) as compreende enquanto objeto que concentra uma série de informações de diversas ordens. As fotografias produzidas por Mariani (2010) funcionam como um

extenso acervo sobre essas práticas populares no âmbito da construção, em regiões de estados do Nordeste. Entre os anos de 1974 e 1997, a fotógrafa produziu uma série de imagens que contém exemplos de arquiteturas populares, reunindo-as no livro intitulado Pinturas e Platibandas.2 Aqui, considero dois fatores primordiais que dimensionam o trabalho da fotógrafa, caros a esta pesquisa: a abrangência territorial do registro e a quantidade de construções retratadas3. Sobre esse tipo de arquitetura, Brendle (1996) aponta sua relação com o padrão morfológico herdado do urbanismo colonial, de lotes compridos e estreitos, sendo as casas o próprio limite das ruas e dos terrenos. Esta fisionomia traz consigo características “da arquitetura doméstica brasileira dos primeiros séculos de colonização portuguesa – casas pequenas, geminadas e contínuas, sem recuo frontal e com telhados de cumeeira paralela à rua” (p.93). Até a primeira versão do livro de Mariani, editado em 1987, já haviam sido produzidas, aproximadamente, 1200 fotografias em mais de 100 localidades, que variam entre povoados e cidades espalhados por estados do Nordeste do 2   O livro, publicado em 1987, possui uma segunda edição do ano de 2010. Para evitar confusões relativas às datas das fontes, sublinho que nesta versão mais recente do trabalho de Anna Mariani, além de fotografias inéditas incluídas na sequência já existente, há um texto escrito à época pela fotógrafa, usado dentro desta pesquisa como fonte. Serão referenciados os textos pelo ano de 2010, de acordo com última versão da publicação do livro, que contém os textos publicados em 1987.

As localidades percorridas por Mariani estão espalhadas pelos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. 3


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país. Dentre todos os registros, mais de 200 foram publicados. Nos dez anos que seguiram da primeira edição, Mariani tratou de ampliar ainda mais sua pesquisa, que totalizou 26 viagens “ao Sertão”4 (mariani, 2010, p.234). No breve texto em que a artista descreve as casas que fotografou, fica claro o amplo recorte territorial no qual se encontram: Fachadas pintadas a cal pigmentada, com platibandas e enfeites, são constantes nas moradas populares do Nordeste, tanto no litoral como no sertão. Formam faixas nas ruas e praças dos vilarejos, cidades e periferias das capitais. (MARIANI, 2010, p. 230)

Brendle observa características do trabalho plástico que aparecem nessa mesma tipologia: No design das fachadas de platibanda são elaborados desenhos em alto-relevo em massa, de configuração geométrica ou figurativa, denotando uma releitura de estilos eruditos como o art-déco, de elementos do vocabulário clássico, do modernismo. Utilizam-se ainda elementos da iconografia popular [sic] (fauna, flora, conchas, lua estrela etc.) e uma composição cromática que enfatiza o uso de cores vibrantes. (BRENDLE, 1996, p.94)

Outro ponto importante é o que Mariani destaca, ainda em um momento embrionário do projeto do livro, quando expõe questões que tocam a ideia de território, imprescindíveis para esta discussão: Nossas primeiras decisões: expandir ainda mais os trajetos para marcar a amplitude e a extensão geográfica do fato cultural; apresentar as fachadas sem fronteiras políticas ou mesmo regional-geográficas (Litoral, Recôncavo, Zona da Mata, Agreste, Sertão etc.) (MARIANI, 2010, p.231). [grifos meus]

4  Existem diversas localidades dentro da pesquisa visual de Mariani que não estão propriamente dentro do que se entende como sertão. No entanto, a autora se refere desta maneira ao rumo que toma em suas viagens em função da produção do livro Pinturas e Platibandas. Logo, é explícita a circunscrição territorial do que se desejava fotografar.


Bola, Paraíba. [Anna Mariani, 1985] 13

Jatiúca, Pernambuco. [Anna Mariani, 1982]

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Observamos que a maioria das localidades é interiorizada em relação às capitais dos estados. No entanto, as platibandas caiadas e com enfeites5 (mariani, 2010) não são uma exclusividade regional de sertões de estados nordestinos. Podem, inclusive, ser vistas em cidades de outras regiões do país, como em interiores do estado de São Paulo. Aqui, são colocadas como arquiteturas que também ocorrem em sertões nordestinos e, como visto, transcendem fronteiras culturais, regionais, políticas e climáticas, com suas características próprias. Brendle (2020), todavia, tratando do estado de Pernambuco, propõe que a “frequência e a originalidade” eram muito maiores, “pelas distâncias dos grandes centros urbanos, pela carência dos materiais e por um distanciamento relativo dos meios de comunicação”.6 A platibanda pode ser vista como elemento que catalisa e concentra a feitura de formas e composições sobre a fachada. As fotografias de Mariani (2010) mostram a variedade do trabalho plástico-compositivo realizado por pedreiros. São formas orgânicas, geométricas, pequenos traços, texturas, molduras, evidenciados pelos contrastes entre os tons vivos aplicados sobre a superfície. Pelas diversas possibilidades plásticas que as fachadas assumem, pedem um olhar atento sobre suas variações e semelhanças. De todo modo, o entendimento simbólico do trabalho que compõe a construção dessa tipologia não é uma exclusividade de seu frontispício. Esse olhar se estende a todos os seus aspectos: fundação, paredes, telhado, piso, portas, janelas etc. Compromete-se aqui, no entanto, com a discussão focada na fachada com platibanda e no trabalho que é realizado sobre ela. É o elemento que, inicialmente, nos é intensamente revelado a partir de como Mariani o fotografa. Caetano Veloso (2010), ao escrever sobre os registros da fotógrafa soteropolitana, destaca um ponto importante ao indagar: “O que dizem essas casas?”. Coloca o caráter comunicativo que os variados arranjos formais sobre suas fachadas apresentam. É como se fachada de platibanda passasse a estabelecer um compromisso vital com o que se pode elaborar sobre sua superfície.  Enfeite é um termo usado por pedreiros e moradores para caracterizar o trabalho realizado sobre estas fachadas. É trazido por Anna Mariani em seu livro. 5

Informação presente em mensagens trocadas com a autora, via e-mail, em novembro de 2020.

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Uauá, Bahia. [Anna Mariani, 1986] 15

Coração de Maria, Bahia. [Anna Mariani, 1983]

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Condado, Perbambuco. [Anna Mariani, 1987] 17

Caratacá, Bahia, [Anna Mariani, 1986]

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Cabedelo, Paraíba. [Anna Mariani, 1985] 19

Irará, Bahia. [Anna Mariani, 1983]

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Itapicuru, Monte Santo.


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José Marconi Bezerra de Sousa e Lia Monica Rossi (2013)7 são responsáveis por produções acadêmicas acerca do tema. Seus trabalhos trazem uma leitura sistemática de atributos gráficos e formais. Os autores propõem ler fachadas análogas por meio das ideias de morfologia e sintaxe, ao identificarem uma recorrência de formas e construções plásticas. Criam seu método de análise pelas formas de platibandas e pelas figuras em alto-relevo sobre elas. A partir de uma sistematização de ocorrências, procuram compreender a associação de possibilidades formais como uma análise semântica da arquitetura. Distante de uma normatização dessa produção, mas partindo deste disparador, aqui se observa que as composições formais destas fachadas podem ser entendidas como fala. Seria algo que tem consistência sensível, física, mas que se insere em modos específicos de variar8. Reconhece-se que no conjunto dessas arquiteturas se apresentam condições de legibilidade da matéria trabalhada, mas que não pretendem ser sistematizadas por suas características. Essa lente procura perceber certa fluência das fachadas, ou seja, manifestações que são identificadas através de uma matriz comum – em termos de cor e formas – e que se apresentam de diversas maneiras sob uma lógica comum. Não se prevêm normas, mas bases para que sejam produzidas diversas possibilidades formais e plásticas. A ideia de fala cabe aqui como algo que pressupõe criações e mutações. A palavra “prosódia” contribui para maior compreensão sobre as imagens que tais arquiteturas populares constroem. Prosódia pode ser entendida como a característica de um discurso falado ou escrito que diz respeito ao ritmo ou ao uso da sonoridade para produzir efeito. Podem ser notadas entonações específicas das formas geométricas em baixo-relevo; sonoridades de um sotaque das cores da pintura com cal, aplicada nas superfícies; e o ritmo dado pela fachada de platibanda enquanto suporte comum. Cruzando as imagens de Mariani e registros produzidos para este

trabalho sobre as casas remanescentes, observa-se o caráter gráfico que essa tipologia possui antes de qualquer intervenção plástica ou aplicação de cor. 7   Ver Art Déco Sertanejo: proposta de análise morfológica e sintática de elemento geométrico das fachadas populares nordestinas. José Marconi Bezerra de Souza, Lia Monica Rossi. Anais do Congresso Brasileiro de Design da Informação. Recife: SBDI, 2013.

Agradeço ao amigo Pedro Koberle pelas conversas preliminares sobre aspectos da linguística.

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Existe, antes do acabamento, uma pulsão visual já estabelecida nas fachadas como uma característica prévia, pelas formas regulares de seus aspectos básicos. Antes de serem concebidos desenhos, pinturas e enfeites, ela já se apresenta como um plano marcado, interrompido pontualmente pelas aberturas que ali cabem acontecer: janelas, portas e, em alguns casos, um rasgo maior que dá lugar ao alpendre. De todo modo, passam a existir sobre a fachada outras características que eventualmente enfraquecem a ideia de “gráfico” a partir do que é feito de forma manual. Assim, a agência plástica e expressiva da fachada é intensificada por três fatores: a dimensão da superfície, expandida pela platibanda; a presença de portas e janelas, que atravessam essa área; a relação compositiva que automaticamente se estabelece entre as áreas cheias ou esvaziadas de matéria. Esta percepção faz com que qualquer tipo de ação que aconteça dentro da área de superfície se destaque, como numa tela. A abertura da fachada (portas e janelas) são decorrentes do layout da edificação, mas a composição das fachadas tira partido dessas aberturas e da platibanda, e usa diversos artifícios, como texturas, cores, desenhos geométricos e figurativos que denotam uma grande preocupação com o efeito plástico e visual da edificação. (BRENDLE, 1996, p.95)

Assim como as fotos de Mariani, a casa representada pela imagem 20, localizada em uma das bordas do povoado de Itapicuru, Monte Santo, traduz essa colocação. Não havia indícios de que sua fachada estivesse por receber qualquer outra cor ou aplicação de volumes em baixo-relevo. Pelo contrário, seu proprietário se mostrava satisfeito ao se referir à condição de acabamentos de seu imóvel. Fachada, porta e janela já estavam pintadas. Pintada de branco, com duas janelas azuis, intercaladas pelo vão de uma porta que estava aberta. O vão era escuro, atravessado por uma claridade pontual. A pausa escura entre os azuis colocados pelas duas janelas adiciona mais um tom à superfície. Tais aberturas, ao mesmo tempo que rompem com a continuidade da superfície, passam a marcar os primeiros indícios da


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composição estabelecida entre as formas presentes no plano. Com a inserção de uma porta e duas janelas, então, o retângulo branco possui mais três outros retângulos dentro de si. Veloso (2010) retoma, do íntimo de sua memória, o tratamento semelhante que as casas de sua cidade natal, Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo da Bahia, eram submetidas: “As pessoas pintam suas casas a cada fevereiro para as festas da padroeira: é como comprar um vestido novo”. Pouco se sabe se eventos e periodicidades deflagraram as pinturas das casas fotografadas e quais foram eles. De todo modo, o sentido de roupagem trazido por Veloso às fachadas, que anunciam e enunciam cada casa, faz com que se perceba uma maneira despretensiosa, mas cerimonial, de se apresentarem. O sentido de roupa, ainda mais em contexto festivo de uma cidade, retoma também uma ideia relativa ao papel socializante da unidade de habitação, por meio da diversidade de símbolos e cores. A colocação de Veloso também ajuda a compreender uma intenção que a fachada passa a ter: ilustrar a presença individual em função de um sentido coletivo de exposição e apreensão de como e o que se escolhe mostrar. Não à toa as elaborações gráficas das fachadas são chamadas de pinturas ou desenhos9 por seus produtores e moradores, sugerindo conotação plástica e autoral para sua feitura. Torna-se, então, mais intensa a analogia que as fachadas passam a ter com uma tela ou mesmo com uma folha de desenho. Mariani, ao comentar o título dado ao seu livro, sinaliza que pinturas e platibandas são atribuições locais, relativas ao que se desenvolve enquanto ação e objeto, respectivamente, dentro desta prática da construção popular. É a maneira como os moradores designam as fachadas trabalhadas em cores, formas e relevos, “e que platibanda seria uma palavra de uso corrente no Nordeste [sic].” (mariani, 2010, p.223). Há, simbolicamente, um sentido latente de bidimensionalidade no trabalho sobre as fachadas. Observa-se constantemente a produção de faixas e contornos que são feitos nas bordas do 9  Segundo a autora, ela própria conheceu como “pintura” o termo que significa a técnica empregada na caracterização e composição das fachadas. Um dos pedreiros entrevistados para esta pesquisa, Sr. João Ferreira, refere-se ao tratamento da fachada como “desenho”, conforme será exposto adiante.


Xique-Xique, Bahia. [Anna Mariani, 1979] 22

Xique-Xique, Bahia. [Anna Mariani, 1979]

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plano, como molduras. Esta ação, além de se parecer com a delimitação clássica do suporte tela, estabelece a área de criação e enfatiza sua dimensão unitária. O vocabulário expõe o caráter das ações, ajudando a compreender o que está contido na feitura destas arquiteturas. Esse vocabulário é decisivo, pois transforma o sentido das imagens trazidas a este trabalho, acrescentando camadas até então invisíveis, que imagens não dão conta de traduzir sozinhas. Sr. João Ferreira10 é pedreiro curaçaense11, profissional cuja percepção tornou-se necessária para uma maior compreensão do universo da construção nessa região. Com mais de 30 anos de atuação no ramo, pode-se entender que parte da cidade passou por suas mãos. Traz consigo, também, a transformação do próprio ofício, sendo verdadeira ponte entre a arquitetura que Mariani e Brendler trazem e o que se constrói atualmente. Nesse caso, a informação oral é fonte valiosa pela precisão em nomear processos, objetos, situações12. P: E a ornamentação? Quando se fazia a fachada grande, com platibanda, eu vejo que algumas têm um triângulo, um quadrado, um risco… João Ferreira: Chamava desenho! As pessoas criavam alguma coisa, que chamava desenho. Ó o desenho da fachada! P: E o senhor fazia isso? JF: Às vezes a gente fazia. O pessoal dizia, “Invente alguma coisa pra não ficar liso!”. Tipo essa pintura que tá aqui, né? A pessoa dividiu aí pra não ficar aquela tinta só. Aí o pessoal fazia: “invente aí alguma coisa”. Aí a gente inventava aqueles cordão assim, fazia uma cor, criava alguma coisa na mente e fazia.

Há um sentido comum que existe no emprego dos termos “pintura” e “desenho”. A palavra “pintura”, trazida por Mariani, está além de preencher determinada superfície com tinta. “Desenho” também propõe a fachada como tela, 10   É importante sublinhar que todas as transcrições das conversas procuram se manter fiéis à carga de oralidade e especificidade da fala de cada um dos profissionais, fontes imprescindíveis para o encaminhamento dos pensamentos aqui em desenvolvimento.

Gentílico da cidade de Curaçá.

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Sobre a oralidade, Marieta de Moraes Ferreira sugere: “Essas discussões [acerca da memória e de suas relações com a história] estimularam o abandono de uma visão determinista que limita a liberdade dos homens, e levaram ao reconhecimento de que os atores constroem sua própria identidade” (MORAES, 1998, p. 4). 12


Belo Jardim, Pernambuco [Anna Mariani, 1982] 24

Belo Jardim, Pernambuco [Anna Mariani, 1985]

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suporte. “Desenho”, no vocabulário tradicional da arquitetura acadêmica, seria o meio que viabiliza a ação construtiva; o gesto de onde parte tudo o que será edificado, o veículo que conduz a ideia até a sua concretização. A mesma natureza de indissociabilidade contida entre “desenho” e “produção de arquitetura” — dentro de uma concepção acadêmica da prática, claro — parece, neste contexto de produção de arquiteturas populares, existir entre a ideia de “fachada” e sua função legada a uma expressividade própria. A conversa entre o proprietário e o pedreiro é imprescindível para a orientação da postura ativa e criativa. De acordo com Ferreira, parece haver uma urgência simples, através da qual o pedreiro é solicitado e encaminhado a colocar sua elaboração da superfície. É ação que existe de alterar um estado primário da tipologia. Esta ação é entendida como algo que vem existir em função de não deixar tal espaço cru, destituído de qualquer informação que pudesse distingui-lo. No momento em que Ferreira explicava essa etapa de seu trabalho, referiu-se dessa maneira a uma casa que ficava logo em frente à sua, cuja fachada possuía platibanda e era pintada com duas cores. Formavam dois grandes retângulos verticais no plano, um bege e outro roxo. O trabalho foi compreendido pelo pedreiro como um acréscimo necessário à fachada. Estaria, assim, distanciado do que foi sugerido como “liso”, como coloca Sr. Ferreira, lido como ausência. O trabalho sobre as fachadas de platibanda acontece no sentido de contrapor a ausência – ou a falta de arrojo – enxergada nas fachadas lisas. Brendle (1996) identifica no pedreiro a posição de autor do trabalho plástico sobre a fachada. Ainda coloca: “Há uma intenção declarada do ‘fazer diferente’, da originalidade, do sobressair-se em relação ao ambiente construído existente” (brendle, 1996, p.93), conforme também diz Ferreira. Assim, a posição dos pedreiros é dotada de autonomia expressiva, de acordo com eventuais orientações dos moradores do imóvel. O imaginário desses profissionais, além de se orientar pelos encaminhamentos dos proprietários, dialogava com um referencial de exemplos de casas dispostos pela cidade. Em uma mesma cidade, as imagens 21, 22, 23 e 24 mostram diferentes casas com formalizações muito similares em suas fachadas. Se não tiverem sido produzidas pelo mesmo profissional reconhecido por seu traço, confirmam a situação da própria cidade enquanto um disparador de referências compositivas e plásticas.


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P: E aqui na cidade tinha alguém que era a pessoa que fazia os detalhes, os desenhos na fachada? Tinha o pedreiro que era especialista nisso? JF: Tinha, a maioria gostava. Mas não tinha aquela pessoa pra dizer “ah, é fulano”, não. Tinha assim, como é comum, sempre tem as pessoas que são mais experientes. Em todo setor você tem. E também tinha alguém que mesmo sem ser arquiteto mas às vezes desenhava, como hoje também tem pessoas que desenha projetos, mas desenha pela mente deles, mas não tem CREA, não tem nada. P: Sim, claro. Eu pergunto isso porque, lá em Uauá, eu encontrei com um pedreiro que adorava fazer esses detalhes; na beirada da janela, na beirada de porta. Quando pediam por isso, era ele quem fazia. JF: Vamos dizer que era aquele pedreiro de acabamento, que chamava. P: Pode ser! Aqui você tem colegas assim? JF: Tem a gente tem, só que hoje essa função assim o povo não usa. Tantos detalhes como essas casas. Se você for ali no centro, perto do teatro, da prefeitura, por ali, você vê muito essas coisas, vê muitas coisas detalhadas mesmo. Então naquela época ali, ali tinha, não era todo pedreiro que fazia aquilo. Vamos supor, o teatro, a prefeitura, apesar que as coisas dali não serem feitas aqui, terem vindo de fora, tem fachadas feitas aqui mesmo. Ali perto da igreja, aquelas casa mais antigas. Então tinha os pedreiros que já eram mesmo pra isso. “Não, quem vai fazer é fulano de tal que trabalha bem.”, o pessoal fazia assim.

Brendle (1996), sobre a produção das arquiteturas populares nos interiores de Pernambuco, reafirma que a questão do anonimato sobre a autoria das fachadas não era uma condição. A autora retoma que os pedreiros, ou o que chama de “habitantes construtores”, eram conhecidos nas cidades e eventualmente nas regiões próximas pelas características de seu trabalho. Segundo a autora: O autor da arquitetura popular [sic] é em geral um pedreiro que atende as solicitações do “dono da casa”, mas que tem total liberdade na criação dos elementos decorativos das fachadas. Não é prática comum o desenho em papel. A ideia da grande maioria dos desenhos das platibandas (frontões) é dos próprios autores. (BRENDLE, 1996, p.93)

` A fala de Ferreira assinala o desuso desse tipo de trabalho sobre a fachada, mas que não impede que ela se mantenha como suporte de expressividade – hoje


Barro Vermelho, Curaçá.

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Carataçá, Uauá. 26

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Poço de Fora, Curaçá.

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Poço de Fora, Curaçá. 28

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Sítio do Tomás, Uauá

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Riacho Seco, Curaçá 30

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Barro Vermelho, Curaçá

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Serra da Canabrava, Uauá 32

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sob outra linguagem material e estética. Reconhece-se, por isso, a transformação dentro da prática da construção ao longo das últimas décadas. Brende (1996), a respeito de uma compreensão física das casas, coloca: Essa arquitetura reflete um padrão morfológico visível nas vilas e cidades do interior do estado, e que reflete a herança do urbanismo colonial: a trama urbana das primeiras vilas formadas por lotes estreitos e compridos, com casas sobre os limites das ruas e sobre a divisa dos terrenos, visível traçado de vilas e cidades do interior do estado. (BRENDLE, 1996, p.93)

Ao longo dos municípios retratados, percebeu-se um considerável número de construções com platibandas remanescentes, como visto. Aparecem nos mais variados modos, tanto em construções antigas como nas mais recentes, como uma tipologia consagrada dentro do repertório de construções populares. Outros materiais fotográficos e audiovisuais13, produzidos ao longo de século xx, alargam a perspectiva de tempo sobre a existência de tais tipologias arquitetônicas. Em algumas das paisagens urbanas que estive, observei que existem novos acoplamentos de platibandas a fachadas já existentes, marcados como um procedimento mais recente, a julgar pelo contraste dos tipos de materiais. É possível perceber, assim, a presença da platibanda como elemento arquitetônico que ainda integra essa prática da construção popular contemporânea e que ainda mantém sua agência de expressividade e comunicação. Há, no entanto, um hiato entre o momento em que esse elemento arquitetônico é instituído dentro das práticas construtivas no Brasil e sua absorção e reelaboração pelas práticas populares em construções: A platibanda foi introduzida no Brasil pela Missão Francesa na onda do classicismo romântico. A Lei da Bica, em realidade uma postura municipal de Salvador de 1850, instituiu obrigatoriedade de calhas que recolhessem a água dos telhados, protegendo com isso as calçadas. As calhas passaram a ser oculta  Através do filme Deus e o Diabo da terra do sol (1964), de Glauber Rocha, é possível identificar as fachadas com platibanda nos planos a partir da minutagem 11’43”, quando são exibidas sequências que retratam a área central da cidade de Monte Santo e sua atividade. O fotógrafo Thomaz Farkas possui poucos registros semelhantes aos de Mariani, produzidos durante os anos de 1970. Estas fotografias se encontram no acervo digital de fotografia do Instituto Moreira Salles. Acesso em 07 set. 2020. Link: <http://acervos.ims.com.br/portals/#/detailpage/6126>. 13


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das por platibandas, e os beirais tornaram-se inadequados às construções urbanas. No início do século XX, o seu uso já estava bastante difundido por todo o Nordeste. [sic] (MARIANI, 2010, p.233)

A fotógrafa aponta um referencial de tempo e espaço interessantes. Retoma o contexto urbano da cidade de Salvador do século xix, já que a capital pode ser vista como ponto de irradiação de práticas arquitetônicas “oficiais” para os interiores do estado. Embora qualquer documento que situe essa medida legislativa não tenha sido encontrado14, nos valemos de seu raciocínio para investigar os movimentos presentes dentro do universo da construção. Mariani coloca que o uso da platibanda teria se iniciado como uma prática “oficial”, “erudita”, mas que seu uso recorrente teria sido instituído por uma medida legislativa. Compreende-se, assim, que o elemento arquitetônico tenha sido apropriado por um fazer popular difuso, para além de regimentos oficiais, outorgados por medidas municipais da Salvador oitocentista15. Brendle (1996) observa o mesmo movimento da absorção de platibandas pelas práticas populares na construção: A partir do século XIX, com a proibição de descarregar sobre as ruas as águas das chuvas, surge a platibanda, elemento de composição de fachada predominantemente neoclássica, que se incorpora à arquitetura popular em substituição aos beirais, na maioria do casario das vilas e cidades nordestinas. Dos componentes e formas da arquitetura erudita ou de estilo que permanecem e são absorvidos e reintegrados pelas classes populares, a platibanda é o elemento mais marcante, mais específico, e definidor de uma tipologia da arquitetura popular nordestina” (BRENDLE, 1996, p.93)

Tratando-se da cidade de Salvador do século xix, presume-se a abundância de um molde tipológico constante: a construção colonial com beirais. Considerando a hipótese de que a platibanda tenha sido instituída como elemento 14  Agradeço o empenho das professoras Anna Beatriz Ayrosa Galvão, Marcia Sant’Anna e Sílvia D’Affonseca. Colaboraram de maneira atenciosa com a pesquisade bibliografias que tratam deste assunto com precisão, mesmo que não tenham sido encontradas.

Para compreensão das medidas urbanas como atividade frequente na cidade de Salvador desde o período colonial, ver: MARINS, Paulo Garcez. Através da rótula: sociedade e arquitetura no Brasil, séculos XVII a XX. São Paulo: FFLCH/USP, 2001. 15


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arquitetônico por lei em função de demandas sanitaristas da cidade, foi necessário que as construções coloniais se adaptassem à nova maneira. No século xix, novas casas térreas e sobrados passaram a integrar o casario dos principais centros urbanos brasileiros (reis filho, 2000). Receberam tímidas mudanças em suas fachadas, mas, ainda assim, muito se assemelhavam às antigas casas coloniais por conta de sua implantação, que conformava as vias públicas (reis filho, 2000). Com a introdução da platibanda no construir, independentemente de qual a influência, as casas existentes eram adaptadas; tinham adicionadas aos próprios corpos o novo elemento, e com ele sua tecnologia de recolhimento de águas pluviais. Eram modificações pontuais, mas que alteravam o sentido de imagem das casas, proposto por suas novas fachadas. Reis Filho aponta permanências tipológicas que atravessaram o tempo e as novas influências arquitetônicas vindas com a chegada da Corte Portuguesa no Brasil (1808) e da Missão Artística Francesa (1816): O século XIX, herdeiro direto das tradições arquitetônicas e urbanísticas do período colonial, assistiria à elaboração de novos esquemas (…). As edificações dos começos do século 19 avançavam sobre os limites laterais e sobre o alinhamento das ruas, como as casas coloniais. (REIS FILHO, 2000, p.34)

Em contextos urbanos coloniais, pela proporção de seu casario, é possível observar os casos em que as platibandas foram um acréscimo construtivo às casas coloniais preexistentes. Essa constatação pode ser notada, por exemplo, através de proporções de aberturas nas fachadas, tanto de portas como janelas, por conta de suas dimensões e disposições. Sobre o padrão construtivo do casario colonial, modificado pelas construções do século xix: O sistema de cobertura, em telhado de duas águas, procurava lançar uma parte da chuva recebida sobre a rua e a outra sobre o quintal, cuja extensão garantia, de modo geral, a sua absorção pelo terreno. Evitava-se, desse modo, o emprego de calhas ou quaisquer sistemas de captação e condução das águas pluviais, os quais constituíam verdadeira raridade. (REIS FILHO, p. 26)

A construção de platibandas passou a suprimir o avanço do telhado em direção à rua, tratando de sobrepor sua visualização por quem transitava pela


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via pública. Esta adição à tipologia colonial sugere a conciliação das soluções arquitetônicas. Aproveita-se o declive frontal do telhado que vai ao encontro da linha da fachada, tendo seu limite conformado, então, pela calha e pela platibanda. Há um alinhamento entre a forma prévia do edifício e o sentido técnico da platibanda, enquanto elemento vinculado ao recolhimento de águas pluviais pela calha. A cumeeira paralela à fachada dialoga com a profundidade que um lote assumia em meio à malha urbana, de modo que o caimento das águas pudesse acompanhar a extensão da construção, evitando o uso de calhas (reis filho, 2000). Passa, então, a existir uma nova conformação arquitetônica recorrente. Como visto, José Menezes Bezerra de Sousa e Lia Monica Rossi (2012) conduzem um olhar sobre as fachadas análogas às tratadas por Mariani e Brendle. Foram por eles chamadas, no contexto acadêmico, de “art-déco sertanejo”16. É caro o entendimento desta denominação para compreender a difusão e a reprodução popular das fachadas de platibanda, que adicionam questões à investigação dos processos de

Riacho Seco, Curaçá, 1987 (Anna Mariani)

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16   Ver Art Déco Sertanejo: uma inspiração para um design brasileiro?, José Marconi B. de Souza e Lia Monica Rossi. Anais do Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design. São Luís:


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assimilações estéticas. Para além da análise através de um olhar sintático sobre as casas, os autores oferecem uma observação sobre quais seriam as influências arquitetônicas e de estilos que integram o gesto formal neste construir popular. Sousa e Rossi (2012) reconhecem no art-déco uma força essencial para esse tipo de produção de arquitetura popular. Um primeiro contraponto a esta ideia está no que Brendle (1996) aponta, em que não só eram somente os ornamentos art-déco que influenciavam a produção das fachadas. Segundo a autora, existiam “elementos do vocabulário clássico”, “do modernismo” e mesmo o que chamou de “iconografia popular” (p.94). Assim como Brendle, Mariani (2010, p.232) descreve o que observou nas casas fotografadas: “enfeites, como são chamados os detalhes decorativos: representações da paisagem tais como flora, cristais, malacachetas, sóis, crescentes, estrelas, faixas, laços, listas e quadrados (…); recortes de platibandas; (…) estilos, entre os quais predomina o chamado ‘moderno’, (…) absorvido pelo art déco, que foi muito utilizado no Nordeste na década de 30 do século passado pelos serviços públicos”. Caracterizar esse fazer pelo estilo seria como reduzir esta prática complexa exclusivamente a uma de suas influências visuais. Para entender a importância do art-déco para essas arquiteturas não é preciso nomeá-las sob seu entendimento. Isso é dito por se reconhecer no art-déco um possível propulsor dessa específica produção de fachadas de platibanda no âmbito popular da construção. De todo modo, esta apropriação passa a ter suas propriedades, muitas vezes distanciandose das resoluções plásticas deste estilo. A respeito deste caminho de popularização da tipologia, Brendle (1996) também assinala que as fachadas com platibandas recortadas em degraus17 passam a ser encontradas em exemplos de arquiteturas populares a partir da década de 1930, momento em que edifícios públicos18 eram construídos sob a lente do EDUFMA, 2012. Ver também CORREIA, Telma de Barros. Art déco e indústria: Brasil, décadas de 1930 e 1940. Anais do Museu Paulista., São Paulo, v.16, n.2, pp. 47-104, Dez. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142008000200003&lng=en&nrm=i so>. Acesso em 12 nov. 2020. 17   A autora diz que “Platibandas recortadas em forma de degrau são encontradas nas casas típicas da classe média holandesa da cidade de Maurícea, no século XVII, no Recife. Mas estão praticamente ausentes de toda a arquitetura luso-brasileira produzida no período colonial”. (BRENDLE, 1996, p.94)

Esses edifícios eram cinemas, escolas, mercados, agências de correios, prédios do poder público, etc.

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art-déco, em cidades dos estados nordestinos. A autora considera que muito da disseminação do estilo tenha se dado pelos meios de comunicação (a revista O Cruzeiro, filmes hollywoodianos, etc.), passando a ser comum também entre as classes populares (brendle, 1996). A produção dessas arquiteturas em sertões nordestinos – num contexto periférico em termos sociais, econômicos e regionais do país (brendle, 1996) – fala sobre assimilação de referenciais da arquitetura art-déco, originalmente distantes destes interiores. De todo modo, considera-se que ela era realizada por meio do que era possível ser construído dentro daqueles padrões econômicos, técnicos e materiais. Os produtores dessas arquiteturas integravam classes sociais marcadas pela pobreza, como aponta Brendle (1996). Em 1981, Paul Singer chamou o enorme contingente populacional, do qual grande parte se concentrava nos interiores dos estados nordestinos, de subproletariado (singer, 2012). Era um segmento social que vivia com baixíssimo padrão de consumo e sem oportunidades de ingresso dentro de lógicas econômicas nacionais (singer, 2012). As origens deste grande e, até então, permanente grupo devem ser procuradas “na escravidão, que ao longo do século xx não consegue incorporar-se à condição proletária, reproduzindo massa miserável permanente e regionalmente concentrada”(singer, 2012, pp.20-1). O subproletariado foi considerado um segmento social que constituía 48% da população economicamente ativa (pea), enquanto o proletariado conformava 28%, conforme as estatísticas revelavam no ano de 1976 (singer, 2012). Segundo André Singer (2012), a grande inserção socioeconômica dessa extensa parcela da população nas grandes dinâmicas da economia e do mercado se deu a partir de 2003 (singer, 2012). Até então, seus indivíduos não tinham meios para participar de maneira efetiva dos processos de massa, sobretudo regidos pelo consumo – nas diversas instâncias que ele pode existir. Ou seja, havia concentrada no Nordeste uma parcela expressiva da população que historicamente não possuía uma inserção formal na economia nacional, sem a possibilidade de ser reconhecida enquanto consumidora dentro das principais dinâmicas econômicas nacionais (singer, 2012). Milton Santos, em seu livro Por uma outra globalização (1999), considera o mercado um fundamental instrumento para o que se entende como cultura de massas. Segundo o autor, a cultura de massas seria dotada de “um empenho vertical


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unificador, homogeneizador, conduzido por um mercado cego, indiferente às heranças e às realidades atuais dos lugares e das sociedades” (p.143). No caso desse tipo de arquitetura popular, é possível identificar que o caráter homogeneizante não se aplica completamente. Seus produtores não se inseriam nas dinâmicas de mercado que previam tais reverberações. De todo modo, pode ser compreendida a absorção de símbolos que integravam outras manifestações culturais, como a arquitetura art-déco encontrada em cidades nordestinas, principalmente nas capitais. Segundo essa lógica, a diversidade formal e a singularidade plástica das fachadas de platibanda estariam vinculadas à possibilidade socioeconômica de seus moradores, de modo que o referencial passou apenas a catalisar uma forma de criação específica. A homogeneização era impossível por uma questão prática, pelo fato de que a arquitetura produzida nesse contexto estaria necessariamente atrelada de maneira técnica e prática às possibilidades de produção local. As fachadas de platibanda ainda teriam de passar pelas mãos dos pedreiros, sendo executadas a partir das possibilidades materiais específicas. Não necessariamente estavam atreladas aos parâmetros nacionais do mercado da construção, o que configurou um tipo de trabalho específico. Por isso, ainda era possível se observar características próprias em suas formalizações. Pôde ser construído todo um universo sintático próprio de formas utilizadas sobre as fachadas, mesmo que com influências estilísticas reconhecidas. Neste sentido, a assimilação da arquitetura art-déco pode ser compreendida como um fenômeno que acontecia por meio de uma apropriação apenas na instância imagética. Propõe-se, aqui, um exercício que procura observar como prevalecem os sentidos das platibandas, tanto em construções preexistentes quanto nas casas que foram recentemente construídas. Foram testadas outras angulações para os registros fotográficos desta pesquisa em relação à maneira que Mariani (2010) o fez. Colocar as casas em perspectiva contribuiu para tornar visível outras características que são impossibilitadas pela imagem frontal das fachadas. As novas fotografias ajudam a visualizar noções materiais e volumétricas que a platibanda eventualmente esconde, trazendo mais informações sobre esse elemento arquitetônico em seu uso popular.


Barro Vermelho, Curaçá 34

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A distinção entre as fachadas e as outras partes das construções comunica uma diferença de tratamento pelo trabalho que recebem. Isso pode ser percebido por meio do acabamento aplicado ou não sobre as superfícies externas das edificações. No resto do corpo das construções, os materiais costumam aparecer aparentes ou rebocados. A diferença estabelecida entre as partes é tamanha: os materiais primários, estruturais, possuem cores mais terrosas e escuras; as fachadas, por sua vez, trazem tons mais claros e fortes. A intensa luminosidade diurna também contribui para que se destaquem19 as cores vivas aplicadas. A imagem 34 traz uma casa central. Mesmo que destacada do contexto de uma quadra, ainda assim é próxima da construção ao seu lado. A câmera centraliza a quina da casa, que divide as faces frontal e lateral. Este ponto de observação possibilita que o máximo da área externa da construção seja capturada pela fotografia, de modo que seja viável relativizar a platibanda enquanto parte do todo. Colocar as casas em ângulo é um procedimento que procura quase que desmontar um aspecto incontestável da fachada quando vista de frente, recolocando-a como parte de um todo. A fachada tem sua superfície pintada com tinta à base de cal, num tom de um rosa claro, com nuances alaranjadas ocasionadas talvez pela poeira da terra que a cerca. Não há outro tratamento tonal na superfície, exceto o que escapa às mãos de quem pinta: manchas que provavelmente resultam da relação da matéria com o tempo. O que passa a compor graficamente a fachada são elementos em alto-relevo sobre as extremidades superiores dela, bem como nos limites superiores de suas aberturas: as três janelas frontais. Há uma distinção clara entre as faces externas da casa; sua face frontal, muito pela luminosidade proposta por sua tonalidade, é o aspecto mais aceso na imagem. Outros elementos aparecem para além de sua pintura: o conjunto de linhas em alto-relevo. No canto superior direito, sobre a platibanda, a fiação elétrica vinda do meio público escora-se e adentra na construção, que são elementos constantes em praticamente todas as fotografias. 19   A palavra “destaque” é aqui usada a partir de uma fala do pedreiro João Ferreira. Foi utilizada para caracterizar o que se realiza sobre as fachadas com platibandas. Esta fala direta é colocada a seguir, onde se insere com precisão.


Patamuté, Curaçá 35

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O plano lateral não possui aberturas e é acabado em reboco cimentício cinza, com um telhado que pousa sobre ele. A condição deste plano é assumidamente diferente da fachada rosa. São vistas telhas, madeiras, tijolos e cimento. Ficam explícitos os diferentes tratamentos dos processos de trabalho sobre cada parte da casa. Tais diferenças não se colocam como oposição, mas como contrastes. É possível ver a diferença de trabalho que existe entre a parte frontal da casa e o resto da volumetria. A imagem 35 traz em seu centro duas das faces de uma edificação que se julga pública, por sua dimensão e pelo que anuncia em sua fachada: “Sociedade 13 de Junho”. Há uma particularidade interessante nesta casa: sua implantação é isolada da ideia de quarteirão ou sequenciamento de casas. Desse modo, sua inserção no contexto urbano propicia uma apreensão externa de todas as suas faces. As áreas ao seu redor funcionam como vias de trânsito de pessoas, motocicletas, animais e carros. Sem exceção, todas as faces comunicam-se constantemente com o meio urbano, mas não são apenas finalizadas com uma camada de cimento. Sua fachada não é composta por formas em alto-relevo e apresenta somente pintura. A partir de uma sequência de linhas, cheios e vazios são orientados pela diferença das cores aplicadas. A pintura da fachada se dá por uma concepção ortogonal, ainda que se perceba o caráter manual da composição. Não se enquadram em uma rigidez de se repetir sob o mesmo intervalo. Esse aspecto relaciona tais gestos à ideia de traço, uma vez que fogem às expectativas de uma exatidão ou padrão. Vê-se a mão de quem faz. Sua fachada de platibanda, um comprido retângulo, apresenta aberturas que criam comunicação direta com os espaços exteriores, as portas e janelas. Além destas, existem pequenas superfícies marcadas através de módulos industriais vazados. A face lateral, pintada do mesmo tom predominante que a fachada, também é atravessada por cinco pequenas superfícies vazadas, equidistantes, e numa altura superior à de uma janela. Há uma redução na possibilidade de se relacionar com o ambiente externo. Existe certa hierarquia de tratamento sobre estas faces. São reveladas diferentes disposições de manutenção, a julgar pelo estado físico das faces laterais em relação à fachada. Há manchas e superfícies descascadas que percorrem a extensão da parede lateral até pelo menos sua altura média.


Curaçá [distrito-sede] 36

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No plano frontal, as manchas se concentram nas áreas em que a água é recolhida pela calha, que escorre pelos canos. A deterioração dessa face decorre de um processo pontual. A deterioração da face lateral, por sua vez, parece se relacionar com um processo de erosão geral, apontando menos empenho de sua conservação. Isso se torna mais evidente quando se observa que a cor predominante se encontra em melhor estado na frente da casa. A fachada com platibanda, independentemente do tipo de trabalho que se realiza sobre ela, parece despertar um cuidado principal em relação às outras faces da casa. A imagem 36 mostra a sobreposição contrastante entre um volume preexistente e a construção posterior de uma platibanda sobre ele. A fachada existe sem acabamento que uniformize a marcação dos diferentes tempos das ações. Revela com precisão o frescor do processo de adição e, por que não, de edição sobre a tipologia existente. Além disso, a pilha de blocos cerâmicos sugere como se a casa estivesse ainda em obras. O formato anterior da construção é destacado pelo que indica a orientação das águas do telhado, sugerindo que a platibanda pouco teria a ver com seu sentido técnico, neste caso. A platibanda coroa a face rosa. Existem casas que retomam a tipologia discutida, cuja banda frontal do telhado desce na direção da fachada. Porém, algumas construções possuem sua cumeeira perpendicular à fachada, como mostra a imagem 36, diferente da tipologia herdada do período colonial. As bandas do telhado são direcionadas às laterais do corpo da casa, para onde a água é escoada. A escolha da construção da platibanda parece se afastar de sua necessidade técnica. Sua reprodução popular contemporânea revela que talvez seja outra intencionalidade que faz dela um elemento comumente reproduzido até o presente. A fachada de platibanda passa a ser o que conjuga práticas construtivas do passado com as do presente. A distância temporal entre os exemplos de Mariani e os que aqui aparecem confirmam o vigor das platibandas enquanto um gesto arquitetônico. A tradução dessa outra vocação pode ser reconhecida pelo que se vê na imagem 37. A casa possui duas de suas faces voltadas para a rua, ambas com platibanda. A fachada pintada na cor bege atende perfeitamente ao uso entendido como técnico. Podem ser vistos os canos que conduzem o conteúdo captado pelas calhas à calçada. O que se mostra curioso é o fato da outra face da construção


Curaçá [distrito-sede] 37

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também apresentar uma platibanda que, por sua vez, supera a altura da primeira, alcançando o gabarito da cumeeira do telhado, escondendo-a. Essa face não possui detalhes plásticos além da pintura lisa, que se destaca pela escolha da cor, colocando em segundo plano a face menor. O verde água salta em relação ao bege, assumindo um protagonismo de “frente” do estabelecimento. Brendle, ao concluir sua reflexão sobre as antigas fachadas, aponta que “há uma intenção estética declarada e uma busca de beleza, status e prazer expressa no design das fachadas. A casa tem, sem dúvida, um caráter utilitário, mas a fachada é tratada especialmente através de desenhos, materiais, texturas e cores que transmitem os ideais estéticos e de beleza do autor, que busca a originalidade e a diferenciação de sua moradia no ambiente construído existente” (brendle, 1996, p.95). A arquiteta narra o contexto das casas sertanejas antes dos anos 2000. No entanto, essa percepção pode ser aplicada ao que anima as fachadas e sua ativa presença na atividade da construção civil contemporânea, mesmo que as características técnicas e estéticas tenham se transformado. Nos diversos processos de construção que integram as paisagens urbanas é visível a ampla adesão da população aos materiais industrializados. Se a partir das antigas fachadas já era possível relacioná-las à ascendência social de seus moradores (brendle, 1996), torna-se nítida uma nova condição financeira entre as populações destes espaços. Pela recorrência da platibanda em construções recentes, é como se o elemento pairasse sobre casas, como um próximo passo a ser realizado, à medida que pudesse ser empreitado por seus moradores. As fachadas de platibandas podem ser lidas aqui como permanência cultural específica, que segue acontecendo sob outro contexto material daqueles que as produzem. Dessa forma, os acoplamentos conduzem em si diversos sentidos: os gestos construtivos prioritários de quem constrói; a condição financeira individual e coletiva, pela recorrência; o considerável escoamento de materiais de construção industrializados nesses espaços; a significativa produção do setor industrial da construção civil. Os materiais industrializados trazem consigo, por suas questões técnicas, a rigidez do padrão modular. São responsáveis por estipular de maneira específica as formas que o que for construído pode assumir, por seu caráter ortogonal. Esse aspecto


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pode ser visto nas paisagens urbanas por meio do uso das mesmas peças, que se repetem constantemente nas construções, entre as cidades, distritos e povoados sertanejos. No caso das fachadas de platibanda, o material que passa a ser aplicado sobre sua superfície é o módulo de revestimento cerâmico. Para além de suas características físicas, é um material que possui uma diversidade de variações visuais impressas sobre sua superfície. A partir do momento em que passam a ser aplicados com frequência nas fachadas, o teor visual contido no material parece se relacionar com o tratamento ligado à plasticidade que essa tipologia teve historicamente. As fachadas de platibanda passam a ter sua expressividade não mais ligadas às formas em alto-relevo e às cores da pintura a cal. Tomam a frente as texturas, imagens e cores impressas sobre as placas quadradas e retangulares. A partir do momento em que se alteram os materiais usados para elaborar as superfícies das fachadas, o tipo de trabalho também se altera. Logo, é preciso pontuar outros aspectos ainda sobre as fachadas antigas, a respeito das relações entre materiais, estética e tipo de trabalho. Chega-se a um ponto interessante, no qual se entende que o trabalho aplicado sobre as antigas fachadas, a princípio, transcenderia um sentido fundamental da construção, isto é, fundação, laje, paredes e telhado. De todo modo, não caberia julgá-lo como algo supérfluo. Há uma importância em reconhecer que as fachadas catalisam um trabalho específico de pedreiros, em termos técnicos e estéticos. É uma prática que só tem vazão por três fatores igualmente importantes. Primeiro, por conta dessa tipologia arquitetônica trazer culturalmente em si a necessidade de um trabalho plástico e expressivo sobre sua fachada. Segundo, pelas possibilidades dos materiais disponíveis, balizadas pela condição socioeconômica dos moradores dessas casas. Terceiro, por questões técnicas, relativa ao tipo de trabalho manual desenvolvido pelos pedreiros. Percepções de Lina Bo Bardi (1994) são interessantes neste ponto da análise. A arquiteta se propôs a observar a produção de objetos de diversas regiões de estados do Nordeste, sob a ideia de “arte popular”, entre as décadas de 1950 e 196020. Sua postura frente a essa complexa produção ampliou o debate desta categorização, adicionando camadas críticas ao termo “popular”. Insere nesse  Lina Bo Bardi (1994) julgou “criativa” e “original” parte de objetos produzidos em diversas regiões de estados do Nordeste. Sua aproximação para com estas produções específicas acontecera em função da 20


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debate a perspectiva social e econômica dos produtores como filtro imprescindível para a percepção do fato. O valor conferido por ela aos objetos que encontrou nesta região21 foi pontuado por importantes ressalvas. Segundo a arquiteta, seria necessário observar a produção “com frieza crítica e objetividade histórica” (bardi, 1994, p.25), embora sua relação com tais objetos seja controversa ao longo de sua carreira. Bardi (1994) coloca como valor dessas produções populares o fato de estarem baseadas nas “necessidades de cada dia”, ligadas ao contexto de grande pobreza (bardi, 1994, pp.25-6). Seria essa condição o fator decisivo que geraria uma produção entendida como não-alienada, oposta à ideia de “Arte pela Arte” (bardi, 1994). Brendle (1996), numa chave de entendimento semelhante à de Bardi, escreve que as casas que estudou “refletem as necessidades do seu dia a dia e utilizam a sabedoria popular nos métodos de construção, na escolha dos materiais de acordo com a disponibilidade e soluções técnicas empregadas” (p.92). Esta não-alienação é um atributo que se adequa ao sentido de resistência22 dessa produção material popular. De todo modo, a arquiteta ítalo-brasileira reconhece que estaria vinculada “com a mais miserável das condições humanas”, e que, portanto, não seria “a apologia da arte popular que cumpre fazer se esta arte, para sobreviver, necessita da conservação do status-quo” (bardi, 1994, p.25). Bardi (1994) escreve que os produtores dos objetos estudados seriam “obrigados pela miséria a este tipo de trabalho, e criação de um projeto de desenho industrial para o país. É por esta perspectiva que Bardi teoricamente distanciaria-se de uma perspectiva romântica, uma vez que entende que a “Cultura” engendraria o progresso da “Civilização”, maneira como se referia à sociedade brasileira. Pois, segundo a arquiteta: “O levantamento cultural do pré-artesanato brasileiro poderia ter sido feito antes de o país enveredar pelo caminho do capitalismo dependente, quando uma revolução democrático-burguesa ainda era possível. Neste caso, as opções culturais no campo do Desenho Industrial poderiam ter sido outras, mais aderentes às necessidades reais do país (mesmo se pobres, bem mais pobres que as opções culturais da China e da Finlândia)”. Ver BARDI, Lina Bo. Um balanço dezesseis anos depois; Arte popular e préartesanato nordestino. In: BARDI, Lina Bo. Tempos de grossura: o design do impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994.   Resistência aqui possui o significado que Marilena Chauí constrói em Conformismo e Resistência (1986), já exposto. 21

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A palavra “piso” é muito usada para se referir ao revestimento empregado na composição das fachadas.


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que os traços e gestos vistos nos objetos desapareceriam logo com a necessária elevação das rendas do trabalho rural” (p.28). Então, no caso de Bardi, conceitualmente não há um pacto com este tipo de produção, já que a arquiteta compreendia o desaparecimento deste tipo de trabalho a partir de transformações sociais e econômicas, que julgou necessárias. O que existe é um reconhecimento cultural desse fazer específico que só pôde existir sob uma condição de pobreza, assim como o reconhecimento de que seria necessária a alteração da condição socioeconômica de seus produtores. O pacto com a perpetuação de uma produção material sob essa condição social e econômica também seria um pacto com marcas históricas que condicionam aquelas regiões e suas populações. A condição socioeconômica dos produtores destas arquiteturas é entendida, pelas chaves de Bardi (1994) e de Brendle (1996), como baliza fundamental para caracterizá-las formalmente. Como observa a arquiteta italiana, seriam lógicas as mudanças materiais, técnicas e estéticas frente a uma melhoria econômica e social. Fato este observado justamente entre as antigas fachadas de platibanda e os exemplos contemporâneos. As marcas, inclusive autorais, do trabalho de pedreiros não estão mais impressas sobre a matéria. A mão que moldava as formas passa a produzir outro movimento. Mas, não é porque não se reconhecem mais as marcas da mão do trabalhador sobre o que ele manipula e formaliza que, nestas arquiteturas, os indícios de um trabalho específico deixam de aparecer. P: Mas assim, você sabe me estimar quanto tempo o povo passou a usar essa cerâmica na fachada? JF: Rapaz, tem mais ou menos uns vinte anos quando pessoal começou a usar a cerâmica na frente. É claro que em capitais chega mais cedo, né? A gente andando por aí a gente vê construções bem antiga com cerâmica bem antiga […]. Mas cidade assim menores que nem aqui, faz uns vinte pouco anos pra cá que o pessoal começou. P: Mas e as casas periféricas usando essa cerâmica? Quando popularizou? JF: Menos tempo. Vamos supor, de uns dez anos pra cá. O pessoal ousou em dizer assim: “Não, eu vou conservar aqui minha casa, eu ponho cerâmica e fico livre. Não tem aquele negócio de tá mudando de tinta todo ano.”. Um diz isso, né? O outro diz: “Eu não quero, porque eu não posso mudar”. Mas só hoje já


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pega mais a pessoa falar assim: “Não, eu vou pôr cerâmica porque evito problema, não vou mais mexer. Já tá perdendo nada em questão de mudar, né? Aqui em Curaçá a gente já vê muitas casas já, tem muitas sem, mas a gente vê muitas já. Se você olha aqui essa rua, só esse pedaço de rua já tem umas três ou mais.

Pode-se considerar que, a partir de 2003, houve transformações sociais e econômicas mais intensas no contexto regional, não só desses sertões, mas em todo o Nordeste, depois que o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder (singer, 2012). Como visto, o subproletariado concentrava-se em grande parte nos estados nordestinos. Depois de 2003, este grande segmento passou a ocupar um outro espaço econômico e social dentro de uma perspectiva nacional. Essa grande maioria, historicamente marginalizada dentro das noções de mercado, é ativada enquanto corpo, conformando um grande mercado consumidor (singer, 2012). Assim, as fachadas mais recentes trazem, por meio do uso de materiais industrializados, a experiência ativa de seus moradores nas estruturas do mercado nacional. A agência da fachada ligada à expressividade passa a existir sob novos tipos de materiais e procedimentos. A partir da lida com materiais específicos, há uma transformação na maneira de trabalhar dos pedreiros. Se antes o profissional moldava em massa as figuras em alto-relevo, hoje combina, dispõe e assenta os módulos cerâmicos em malhas, orientadas pela ortogonalidade da peça – mas não só. A imagem das fachadas traz um impacto inicial, causado diretamente pelo que trazem: são intensas as diversas imagens impressas industrialmente pelos módulos de revestimento e pela maneira como são instalados nas fachadas. Esta arquitetura passa a ser possível por alguns motivos principais: a permanência da fachada de platibanda enquanto elemento que prevê um trabalho expressivo sobre sua superfície; a vontade de moradores e o trabalho de pedreiros sobre a fachada; a situação material do presente. Fica explícita, em um único corpo, a articulação da sobrevivência de uma tradição em novos materiais, elaborando: o novo trabalho pelas particularidades técnicas dos revestimentos, as condições atuais de moradores, do mercado e do setor industrial da construção civil nestes espaços específicos. Através da fachada se concentra a coexistência destes dois tempos: passado e presente mediados pelo trabalho. Passam a ter forma por meio das imagens, texturas ou cores industrializadas e/ou simplesmente pela rigidez visível da malha


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ortogonal criada pela colocação das unidades de cerâmicas. Sob este regimento, casas são construídas, reformadas ou simplesmente continuadas. A tradição elabora essa materialidade industrializada, e segue acontecendo. As fachadas contemporâneas podem ser entendidas sob o processo de incorporações. Manifestam uma relação com o passado através das condições de como e com o que se constrói o corpo contemporâneo das casas. São observadas temporalidades sobrepostas que, juntas, dão forma e sentido a esse corpo no presente. É reconhecida a presença do passado que abertamente possibilita o presente, potencializado de acordo com suas características. Marca-se, assim, um fazer que possui características particulares. Aparentemente, a rigidez industrial proposta pelos módulos regulares e sua padronagem imagética seriam fatores decisivos para que fossem apagadas as marcas do trabalho que se baseava em uma feitura exclusivamente manual, artesanal. Fato é que a rigidez dos materiais industrializados orienta um tipo de formalização; mas, tais materiais são igualmente adequados pelas especificidades destas arquiteturas e do trabalho que dão forma a ela. Santos (1999) narrou a relação que se dá entre a cultura popular e cultura de massas, e que parece poder ser entendida por este processo. Mas há também – e felizmente – a possibilidade, cada vez mais frequente, de uma revanche da cultura popular sobre a cultura de massa, quando, por exemplo, ela se difunde mediante o uso dos instrumentos que na origem são próprios da cultura de massas. Nesse caso, a cultura popular exerce sua qualidade de discurso dos “de baixo”, pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias. Se aqui os instrumentos da cultura de massa são reutilizados, o conteúdo não é, todavia, global, já que sua base se encontra no território e na cultura local herdada. (SANTOS, 1999, p.130) [grifos meus]

Pela constatação de Santos (1999), o signo de massa constrói a imagem destas arquiteturas, assim como o caráter popular, “não-global”. O autor descreve que “o mercado vai impondo, com maior ou menor força, aqui e ali, elementos mais ou menos maciços da cultura de massa, indispensável, como ela é, ao reino do mercado, e à expansão paralela de globalização econômica,


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financeira, técnica e cultural. Essa conquista, mais ou menos eficaz, segundo os lugares e as sociedades, jamais é completa, pois encontra a resistência da cultura preexistente.” (pp.142-4). A elaboração de todos estes sentidos produz uma intensidade de expressão dessas fachadas contemporâneas. Combinamse as disposições plásticas e compositiva prévias do trabalho de pedreiros com o caráter profundamente gráfico das características técnicas e visuais trazidas pelos módulos de revestimento. As ideias de fala e fluência também são readequadas, podendo ser compreendidas pelo que Santos (1999) considera sobre os símbolos de culturas populares, em que “os símbolos de baixo”, produtos da cultura popular, são “reveladores do próprio movimento da sociedade”, ao passo que, na predominância da cultura de massas, estes estariam “direta ou indiretamente a serviço do poder e do mercado”, tornando-se “a cada vez, fixos” (santos, 1999, p.144). Ao contrário do que permanece somente refém de moldes propostos pela industrialização, esta expressão arquitetônica ofereceu seu contraponto, baseada em suas maneiras de variar. De toda forma, é nítida a natureza desses materiais, já que a origem industrial não é apagada. É visualmente forte a repetição dos mesmos módulos, pelas texturas visuais contínuas, pelas faixas que permanecem sublinhando as extensões do plano e suas aberturas, ou pela combinação específica de diversos tipos de material. Sr. Ferreira, entre o passado e o presente, oferece pistas sobre o processo de composição da imagem das fachadas: Aí quando pintava, você pintava com duas cores, a gente chamava assim “o destaque”, essas coisas assim. É como quem usa piso hoje na frente, as pessoas usam, é difícil ter um piso só, sempre tem um diferente que é um destaque. Na área da construção chamam destaque. Hoje existe muito em cozinha e em banheiro. Existe muito mesmo: “Não, eu quero isso aqui em destaque!”23

A intencionalidade que historicamente há sobre fachada de platibanda é algo que rege sua composição no presente, que permanece. As marcas de um trabalho manual não se encontram mais no procedimento de dar forma à matéria   Foram coletadas do site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) as informações mais detalhadas a respeito de populações e domicílios – os dados mais recentes são do ano 23


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que vai compor a fachada. O trabalho do pedreiro está, então, no jeito com que esses materiais são introduzidos às fachadas. A ideia de destaque trazida por Ferreira ilustra este pensamento, em que a necessidade de produzir algo diferente ainda é evocada pela superfície. Isso é notado pela ação que produz esses destaques, que escolhe e diagrama as peças modulares. É quando se choca o caráter homogeneizante dos materiais industrializados, quando se percebe que o trabalho de composição sobre as fachadas pode ser reconhecido. Portanto, o novo trabalho executado passa a ser visto na medida em que os pedreiros se apropriam desses materiais e imagens. A planificação do ornamento em imagem traduz a planificação do trabalho manual em indústria, esvaziando-o de uma expressividade artesanal. Dessa maneira, fica explícito o sentido popular destas arquiteturas: não enquanto algo que preveja características fixas a respeito de condições sociais, econômicas, estéticas e simbólicas de suas manifestações, mas como algo que está sempre sob a possibilidade de variar de acordo com as condições sociais, econômicas e técnicas de classes populares (canclini, 1982; chauí, 1986). A fachada, assim, apresenta-se como um texto visual, como interlocutor de uma situação regional, política e socioeconômica, que elabora o tempo histórico em que se insere, produzindo, também, a própria imagem deste tempo. Frente a isso, existem certas recorrências destas composições com porcelanato que podem ser agrupadas. Em todos os casos há uma constante técnica, que aparece com mais ou menos intensidade: a malha ortogonal. De todo modo, ela se torna mais ou menos evidente de acordo com o padrão impresso na superfície dos revestimentos. Há uma outra constante tão importante quanto, que reafirma a potência gráfica das superfícies: suas aberturas ortogonais. A ortogonalidade é algo que se integra às formas quadradas e retangulares dos módulos cerâmicos. Os gradis de ferro que acompanham esses vãos passam a compor também a fachada enquanto elemento gráfico, já que se apresentam em formatos variados. Não se limitam somente a janelas, são vistos nos vãos de portões e alpendres frontais. Os portões, recorrentes em garagens ou estabelecimentos comerciais, geralmente são metálicos, de enrolar. Ou seja, são constituídos por muitos módulos de 2010. Embora muito contribuísse para esta pesquisa um gabarito do ano 2000 a respeito da condição física das construções, estes tópicos são exclusivos desta edição de 2010.


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horizontais de ferro, que trazem também uma carga gráfica, de linhas horizontais, para a fachada. Alpendres e janelas podem aparecer gradeados, as linhas das barras de ferro sugerem também mais uma camada gráfica à fachada. Podem ser barras e superfícies verticais, horizontais, tramadas, diagonais, curvas e peças que mesclam esses atributos. Na cidade de Uauá foram observados portões que possuem um trabalho visível de composição em sua feitura. De todo modo, pela variedade de formas com que aparecem em portas e janelas metálicas, também se atribui a esse trabalho o sentido de composição. Há também a recorrência de portões mais antigos, em que o trabalho com o ferro se propõe mais figurativo. Foram elencadas cinco variáveis a partir da maneira como o trabalho de composição com o porcelanato se realiza, e se organizam de acordo com dois fatores principais: o conteúdo impresso nos módulos de revestimento e o modo como são colocados nas fachadas. O primeiro agrupamento possui fachadas que apareceram com mais frequência nos locais visitados, presentes na maioria das fotografias. São fachadas cujos padrões não possuem texturas, apenas cores. Os módulos têm cores neutras e, por isso, a trama ortogonal que é produzida pelas particularidades do material é destacada. A grande maioria apresenta uma malha paralela ao chão e às extremidades laterais. Apenas uma fachada vista na cidade de Curaçá apresentava o módulo rotacionado a 45º, formando uma trama de linhas diagonais. Essas casas, portanto, apresentam-se tanto pela força desta malha quanto pela informação integral de um tom de cor. Existem outras fachadas que também são inteiramente revestidas com módulos cerâmicos, mas que os módulos escolhidos possuem outro tipo de informação visual. São texturas e cores das mais variadas formas, geralmente muito intensas pela concentração de grafismos e pelo contraste entre os tons que aparecem. De todo modo, também existem imagens impressas sobre o porcelanato mais esmaecidas, quando comparadas aos padrões mais texturizados e coloridos. Por meio da superfície preenchida, ainda é possível reconhecer a malha ortogonal. Mas, por vezes, ela pode ser dissolvida pela eloquência das imagens impressas nos revestimentos. Quando prevalece a textura, a área da fachada parece tomar para si a incumbência de significar uma imagem única, oposta à


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noção fracionária das partes que a compõem. Nestes dois primeiros grupos, ora é reconhecida a unidade modular, ora a fachada é tida enquanto textura constante em toda a sua extensão, como um padrão sem distinções. Outro agrupamento é aquele em que o módulo possui desenhos no lugar de texturas. Aparecem linhas curvas, formas geométricas preenchidas, ou mesmo texturas com mais contrastes. Através das imagens impressas nos módulos e do encontro dessas unidades dentro do padrão da malha, são criados desenhos e formas. O plano fica marcado por núcleos de imagens ao longo de sua extensão. São os que mais se “aproximam” de uma reprodução dos desenhos, enfeites e pinturas vistos no passado – mas com o alto-relevo completamente planificado – e reproduzidos em toda extensão da superfície. Existem casas nas quais o trabalho expressivo remete ao que Brendle (1996) coloca como “cercaduras de massa nos vãos da fachada: formam um friso contínuo sobre os vãos de porta e janelas em toda a testada frontal da fachada” (p.94). São fachadas nas quais se dá o emolduramento de seu perímetro e/ou de seus vãos, pelo uso de dois materiais cujas cores, texturas ou desenhos são diferentes. A maior área da fachada é preenchida com um dos tipos de revestimento, enquanto o outro é empregado ao redor de suas extremidades, janelas e portas. Por último, ficam as casas em que os módulos dividem espaços com áreas não revestidas, somente rebocadas ou pintadas. Talvez sejam os exemplos nos quais o sentido de composição seja mais explícito, dado que a disposição das unidades de porcelanato não se pauta pela rígida malha em toda a extensão da superfície. Estão dispersas pelas paredes, organizados em formas específicas ou apenas ocupando parte do plano. Nesse último caso, dividem a superfície com a cor proveniente da dessa outra área. Podem ser observadas algumas diferenças no modo como a fachada com platibanda aparece nos três distritos-sede. Em Monte Santo, muitas das fachadas com revestimentos parecem ser preexistentes. A imagem 72 mostra uma casa localizada em uma rua da cidade em que a maioria das casas são remanescentes, e que de maneira geral não foram tão transformadas. A maioria das fachadas de platibandas aqui presentes foram vistas nos interiores deste município. Segundo o


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Censo Demográfico de 2010, o município possuía 14.505 domicílios particulares permanentes, conforme categoria adotada pelo ibge. Desses, 2.633 situavam-se no meio urbano e 11.872 no campo. No mesmo Censo, passou a constar uma nova categoria de dados: “Tipo de material da parede externa”. As variáveis eram: alvenaria com revestimento; alvenaria sem revestimento; taipa revestida; taipa não revestida; e outros. Do número total, 11.231 das residências eram construídas em alvenaria com revestimento, e 1.325 eram apenas de alvenaria. Em Uauá parece ter havido uma transferência do elemento que separa a rua do espaço doméstico. No lugar das fachadas, hoje os muros também aparecem enquanto superfície disponível para a composição visual com os módulos cerâmicos. Em maioria, estes muros parecem ser mais recentes, pois estão localizados de modo periférico ao núcleo original da cidade, onde são vistas em maioria as fachadas de platibanda. Na área central existem algumas casas cujas fachadas são revestidas com azulejos24, que apresentam dimensões e conteúdos visuais diferentes dos recentes materiais industrializados. Em 2010, o município contabilizava 7.055 domicílios. No meio urbano estavam estabelecidos 3.115 domicílios, e na área rural, 3.951. Do número total de residências, 5.952 apresentavam sua face externa de alvenaria com revestimento. Em Curaçá foi vista a maior concentração de fachadas de platibandas construídas ou reformadas recentemente, a julgar pelo estado dos materiais que as compõem. Não só se localizavam no centro da cidade pelas casas remanescentes de outros tempos, mas também apareciam constantemente nas áreas periféricas. Algumas fachadas extensas apresentam não só o uso de porcelanato enquanto elemento de composição, mas ainda a cor e, marcadamente, os gradis metálicos. No município, em 2010, havia 3.776 domicílios no meio urbano e 4.914 no meio rural. Do total de 8.690 residências, 6.522 possuíam sua face externa feita em alvenaria com revestimento (ibge, 2010). As centralidades urbanas dos municípios eram naturalmente mais heterogêneas em termos de tipologias. Nos povoados e outros distritos, as 24  Importante notar a diferença entre azulejo e os módulos industrializados: são menores e possuem outra resolução visual e material; carregam em si outra temporalidade, anterior ao uso do porcelanato. Vale registrar que também é visto em fachadas do centro histórico de Curaçá.


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fachadas de platibandas – tanto remanescentes quanto com novos materiais – eram vistas com mais recorrência, também em conjunto com outras tipologias. O povoado de Caratacá, no município de Uauá, tem casas que pouco foram transformadas nos últimos tempos, e em sua maioria suas fachadas são de platibanda. Inclusive uma das casas fotografas por Mariani nesse povoado ainda é existente, porém com uma nova abertura em sua fachada. Onde antes havia duas portas, existe hoje um vão maior com um portão de ferro. Assim como Caratacá, é o caso dos povoados de Patamuté, Barro Vermelho e Poço de Fora, no município de Curaçá, com exemplos pontuais de novas construções. Além destes, os povoados de Mundo Novo, também em Curaçá, Caldeirão do Almeida, Caldeirão da Serra, Lagoa do Pires, Riacho das Pedras, Serra da Canabrava e Testa Branca, em Uauá, ainda possuem um número considerável das antigas fachadas de platibanda.25 O Instituto de Brasileiro de Geografia e Estatística (ibge) passou a notar as casas por suas características físicas mais específicas a partir do ano de 2010. O órgão informa que passou a contar com “inúmeras inovações metodológicas de conteúdo temático e tecnológicas”26. Começaram a ser registradas características específicas relativas tanto à habitação quanto aos bens da população. O levantamento passou a trazer dados relativos à aquisição de bens, como automóveis, geladeiras, televisores, celulares, máquina de lavar 25   O acesso por rodovias é um elemento primordial para se entender a tamanha difusão e absorção dos novos materiais de construção. A alta incidência de tipologias arquitetônicas com pouca interferência dos materiais industrializados confirma esta afirmação. Os três municípios, dentre todos os visitados, apresentam a maior variedades de fachadas – de platibanda ou não — com pouca ou nenhuma alteração. São povoados que tampouco tiveram sua mancha urbana expandida, diferentemente das cidades-sede dos municípios e de outros distritos. Patamuté e Barro Vermelho são municípios em que o acesso se dá estritamente por meio de estradas de terra. Eles se localizam no interior do município, praticamente equidistantes das principais rodovias da região, tanto estaduais quanto federais. A rodovia federal mais próxima destas localidades é a BR-235, e cujo asfaltamento só existe nos trechos que correspondem ao estados de Sergipe, Bahia e parte do Piauí. Na região estudada, a rodovia corta os municípios de Uauá e Curaçá. Até o ano de 2014, toda a extensão baiana não era asfaltada. Em 2015 foi concluído o trecho que conecta Pinhões até Uauá, passando por Juazeiro. Informações retiradas do site: <http://br235.com. br/>. Acesso em 31 out. 2020.

Informações retiradas do link: <http://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/notas_metodologicas. html?loc=0>. Acesso em 20 out. 2019. 26


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roupas, microcomputador, entre outros (ibge, 2020). Segundo informações do endereço eletrônico do Instituto: O objetivo principal da base territorial do Censo Demográfico 2010 foi possibilitar a cobertura integrada de todo o território e ampliar as possibilidades de disseminação de informações à sociedade. Sua preparação levou em conta a oferta de infraestrutura cadastral e de mapeamento para a coleta dos dados do Censo Demográfico, e a necessidade de atender às demandas dos setores público e privado por informações georreferenciadas no nível de setor censitário. (...) A base territorial do Censo Demográfico 2010 foi elaborada de forma a integrar a representação espacial das áreas urbana e rural do Território Nacional.27 (IBGE, 2010)

O que teria ampliado as ferramentas e os índices da “principal fonte para o conhecimento das condições de vida da população em todos os municípios do País”28 (ibge) no ano de 2010? Quais seriam as necessidades de complexificar as informações a serem colhidas pelas pesquisas em todo o país? Em 2010 se encerrava o ciclo de oito anos de mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. André Singer, em Os sentidos do lulismo (2012), escreve: O crescimento caiu de 2,7% nos últimos 12 meses de Fernando Henrique Cardoso para 1,3% do PIB nos primeiros doze no PT. O desemprego aumentou, passando de 10,5% do derradeiro dezembro tucano para 10,9% no primeiro dezembro petista (2003). As instituições financeiras tiveram um resultado 6,3% maior. (...) Entretanto, passados oito anos, o cenário era outro. Em dezembro de 2010 os juros tinham caído para 10,75% ao ano, com taxa real de 4,5%. O superávit primário fora reduzido para 2,8% do PIB e, “descontando os efeitos contábeis”, para 1,2%. O salário mínimo, aumentado em 6% acima da inflação naquele ano, totalizava 50% de acréscimo, além dos reajustes inflacionários entre 2003 e 2010. Cerca de 12 milhões de famílias de baixíssima renda recebiam auxílio entre 22 e duzentos reais por mês do Programa Bolsa Família (PBF). O crédito havia se expandido de 25% para 45% do PIB, permi27   Informações retiradas do link: <http://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25089censo-1991-6.html?=&t=o-que-e>. Acesso em 3 dez. 2020.

Ver Estatísticas de gênero. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/notas_metodologicas. html?loc=0>. Acesso em 15 set. 2019.

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tindo o aumento do padrão de consumo dos estratos menos favorecidos, em particular mediante o crédito consignado. (…) [Maria da] Conceição [Tavares] assinalava que o governo Lula estava “tocando três coisas importantes: crescimento, distribuição de renda e incorporação social”. (SINGER, 2012, pp.11-2)


Lagoa do Saco, Monte Santo

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Lagoa de Cima, Monte Santo 45

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Lagoa do Meio, Monte Santo

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Curaçá [distrito-sede] 47

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Genipapo, Monte Santo

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Lagoa de Cima, Monte Santo 49

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Lagoa de Cima

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Riacho Seco, Curaçá 51

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Curaçá [distrito-sede]

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Curaçá [distrito-sede] 53

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Curaçá [distrito-sede]

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Curaçá [distrito-sede] 55

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Genipapo, Monte Santo

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Curaçá [distrito-sede] 57

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Curaçá [distrito-sede]

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Curaçá [distrito-sede] 59

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Curaçá [distrito-sede]

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Itapicuru, Monte Santo 61

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Itapicuru, Monte Santo

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Itapicuru, Monte Santo 63

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Riacho da Onça, Monte Santo

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Riacho da Onça, Monte Santo 65

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Riacho da Onça, Monte Santo

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Genipapo, Monte Santo 67

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Lagoa de Cima, Monte Santo

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Lagoa de Cima, Monte Santo 69

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Lagoa de CIma, Monte Santo

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Lagoa de CIma, Monte Santo 71

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Monte Santo [distrito-sede]

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Lagoa do Pires, Uauá 73

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Pedra Vermelha, Monte Santo

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Pedra Vermelha, Monte Santo 75

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Pedra Vermelha, Monte Santo

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Gameleira, Monte Santo 77

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Mandaçaia, Monte Santo

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Pedra Vermelha, Monte Santo 79

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Uauá [distrito-sede]

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Lagoa de Cima, Monte Santo 81

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Gameleira, Monte Santo

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Riacho Seco, Curaçá 83

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Itapicuru, Monte Santo

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Riacho Seco, Curaçá 85

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Monte Santo [distrito-sede]

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Riacho da Onça, Monte Santo 87

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Itapicuru, Monte Santo [distrito-sede]

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Curaçá [distrito-sede] 89

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capítulo 3: os governos lula e a construção civil: percepção histórica e consolidação de uma base

Teria havido, a partir de 2003, uma orientação que permitiu, contando com a mudança da conjuntura política internacional, a adoção de medidas para reduzir a pobreza — com destaque para o combate à miséria — e para ativação do mercado interno, sem confronto com o capital. (SINGER, 2012, p. 13)

Em algumas imagens cujo plano de enquadramento se abre são mostrados pedaços de cidade em que diversos materiais dessa natureza industrial aparecem absolutamente integrados na construção do espaço. São blocos cerâmicos, areia, brita, azulejos, placas de porcelanato, janelas, portas e grades metálicas, caixas d’água de polietileno, postes e fiações de energia elétrica, antenas, canos de pvc. Passaram a ser parte fundamental da paisagem contemporânea de aglomerações urbanas sertanejas. Chamam a atenção os diferentes materiais que dão forma à realidade material e, portanto, imagética dessas regiões. Na imagem 90, as construções ao lado do novo vão são porta-vozes de outra época, de acordo com sua fisionomia. O volume de materiais construtivos que se sobrepõe à área vazia tensiona um tipo de paisagem que as arquiteturas em segundo plano sugerem. Desautoriza, de certa forma, uma unanimidade de tempo e trabalho que é sugerida pelas duas casas. A maneira que se constrói atualmente está posta ainda em pilhas: tijolos cerâmicos, telhas cerâmicas, vergalhões, perfis de cimento.


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Processo de obra autogerida no povoado de Patamuté, município de Curaçá. É possível ver partes de uma antiga platibanda amarela, destruída em função da nova casa que viria a ser erguida com novos


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materiais.

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Mariani, em uma de suas considerações, já apontava que, enquanto produzia as imagens para seu livro, existiam casas em que materiais industrializados já integravam as casas. Eram portas, venezianas, basculantes e pinturas com látex, vistos com mais frequência a cada ano que passava (mariani, 2010, p. 231). Os novos padrões introduzidos pelo progresso necessário são assimilados e utilizados enquanto persistem aspectos absorvidos de estilos tradicionais, ao sabor da vontade dos mestres-pedreiros e dos moradores. (...) As fachadas mostradas no livro possuem semelhanças e, ao mesmo tempo, são profundamente singulares. Não defendo que sejam modelos para novas construções nem que este padrão deva ser mantido para sempre, posto que vivemos numa era de transformações nunca vistas e cabe às populações a decisão de manter a tradição ou atender a novos anseios e propostas oferecidas a cada dia.1 (MARIANI, 2010, p. 231) [grifos meus]

É colocada em perspectiva, então, uma questão socioeconômica que abre o debate em relação às condições que estão para além da construção simbólica e estética das fachadas. Elementos de matrizes de produção diferentes passam a integrar o mesmo sistema, o mesmo corpo, gerando um ruído importante. A ampliação da situação econômica individual, que possibilita o consumo desses materiais, marca a intencionalidade que permanece na ação sobre a fachada. A absorção dos materiais não é caso isolado, esparso; diversas fachadas passam a reverberar uma nova conjuntura social. O progresso necessário, lido por Mariani frente à situação daquelas paisagens, se relaciona com outras dinâmicas que possibilitam a chegada de tais materiais aos lugares e sua absorção pelas práticas construtivas observadas. As escolhas – tanto dos materiais escolhidos quanto da forma de sua utilização – que orientam a autoexpressão são elemento-chave da transformação da imagem total de uma cidade a partir do que é individual. Essas escolhas, portanto, falam sobre transformações que envolvem a disponibilidade dos materiais, a capacidade de consumo e o tipo de trabalho executado, que também é transformado. É possível identificar, assim, mudanças tecnológicas dentro do universo da construção, como as próprias dinâmicas sociais, relacionadas à instituição de programas sociais. As casas   Texto adicionado à reedição do livro, em 2010.

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auto exibem a variedade dos padrões de porcelanato que podem ser consumidos pela vocação do suporte fachada, que permanece. As interferências que parecem graduais e sutis aos olhos de Mariani são diferentes das vistas ao longo dos municípios Monte Santo, Uauá e Curaçá em 2017 e 2019. Necessariamente todos os aglomerados urbanos atravessados por esta pesquisa possuíam a inserção destes recursos em seu casario. Aqui não falo somente da tipologia estudada, mas das diversas manifestações construtivas. Esta condição não é uma exclusividade das cidades maiores e centrais. Nos povoados mais distantes das cidades maiores e com acesso por estradas de terra, a presença dos artigos industrializados é observada com frequência, como é o caso da imagem 20, em Patamuté, e em tantos outros povoados. No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006) houve medidas que tocaram de maneira prática grande parte da população historicamente empobrecida, o subproletariado (singer, 2012). Essas dinâmicas não estiveram desvinculadas do desenvolvimento de diversos setores industriais – essa ligação por meio tanto da ampliação de sua produção, como pela expansão do mercado consumidor. Há, dentro de sertões, uma correlação entre a performance socioeconômica a partir de 2003, do que se compreende por subproletariado, e a atividade da construção civil. Nesses espaços, a construção produziu os objetos que em si articularam o impacto de programas sociais, a cadeia de uma produção industrial e as ações do agente consumidor sob novas condições e proporções. Desse modo, as fachadas são elementos que elaboram diretamente esse tempo histórico através de seus materiais e, consequentemente, por meio de sua imagem. A massiva adesão eleitoral da região Nordeste que se observou a partir de 2006 com a reeleição do ex-presidente Lula é fator crucial que confirma a aprovação e popularidade das medidas colocadas em prática nos primeiros anos de governo. É a partir desse fato que há a consolidação de um fenômeno nomeado por André Singer (2012) de lulismo2. Como grande parcela da população beneficiária de significativas melhorias estava historicamente regionalizada, as regiões do Norte e Nordeste do país se tornaram centrais para a compreensão desse fenômeno.   Singer completa que a definição do lulismo compreende para além desta perspectiva social, porque em termos políticos promoveu “um reformismo suficientemente fraco para desestimular conflitos”, de 2


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Propriedade de Sr. Selé: a casa principal construída em alvenaria ligada à uma sisterna. Eduardo Tolentino e o proprietário falam sobre o terreno. Povoado de Poço Dantas, Monte Santo.


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Para isso, André Singer (2012) retoma ideias colocadas por Gramsci, em A questão meridional. O pensamento baseia-se na seguinte dinâmica: uma região dotada de uma aproximação maior com o capitalismo industrial se vale dos moldes oligárquicos, latifundiários e rurais de outra – e de toda a herança do sistema colonial observada nas estruturas sociais dos interiores do Nordeste – para seu desenvolvimento, impedindo esta segunda de qualquer resolução de autonomia. Às vistas do desenvolvimento do Centro-Sul do Brasil ao longo do século xx, o enorme contingente populacional vinculado a terra desenvolve social e economicamente uma função de manutenção de um status quo capitalista. Mantém o próprio grupo social sustentando seu posto de miséria em função do desenvolvimento econômico de outra região nacional, bem como de outras classes sociais. Quando a economia nordestina é tocada e articulada em âmbito nacional, juntamente com a inserção desta massa agrária, o “efeito poderoso” pode ser observado nas reverberações diretas de dinâmicas da economia (singer, 2012). O lulismo partiu de um grau tão elevado de miséria e desigualdade, em país cujo mercado interno potencial é expressivo, que as mudanças estruturais introduzidas, embora tênues em face das expectativas radicais, tiveram efeito poderoso, especialmente quando vistas da perspectiva dos que foram beneficiados por elas: o próprio subproletariado. (singer, 2012, p.21)

A visita que inaugurou o trabalho de campo foi ao entorno rural imediato da cidade de Monte Santo, distrito-sede do município homônimo, no povoado de Poço Dantas. Era a propriedade do Sr. Selé. Havia duas casas no terreno, localizadas um pouco antes da área destinada ao cultivo de cabras, palma e frutas silvestres. A mais antiga era construída com barro, de taipa. O telhamento, também de barro, havia sido feito manualmente. Uma casa com pé direito baixo e com telhado de duas águas. A estrutura de madeira, tanto do telhado quanto das paredes, era feita com a flecha modo que se “estende no tempo a redução da tremenda desigualdade nacional, a qual decai de modo muito lento diante do seu tamanho, em compasso típico dos andamentos dilatados da história brasileira (escravatura no Império, política oligárquica na República, coronelismo e modernização pós-1930)”. Dessa maneira, o autor observa que “o realinhamento provocou uma repolarização e uma repolitização da disputa partidária”. SINGER, André. Os setidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. pp.22-8.


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do sisal, espécie vegetal amplamente cultivada no município de Monte Santo e seus arredores. A construção já não era usada cotidianamente, apesar de ainda conter objetos de um passado recente. Mais próximo da estrada estavam as outras construções: outra construção de barro, a partir da mesma técnica descrita da primeira casa, que funcionava como apoio aos serviços da roça; e a casa principal, habitada pelos que ali moravam, construída com telhas e blocos cerâmicos industrializados e com algumas de suas faces rebocadas e pintadas. Na imagem 91, a situação é apresentada pelo proprietário e por Dum do Manuelito, agente de combate a endemias da prefeitura do município. Pode-se observar a face posterior da casa com o bloco cerâmico aparente3. A fotografia propõe um enlace fundamental: uma cisterna de alvenaria é articulada por meio de uma tubulação às calhas do telhado da construção mais recente. As duas construções recentes da propriedade do Sr. Selé parecem ressoar para além da condição mecânica do funcionamento das calhas em relação ao armazenamento de água pela cisterna. É como se nos deparássemos com um exemplo concreto de uma articulação entre signos das transformações técnicas, sociais e econômicas que passaram a compor a paisagens daquela região. Na propriedade do Sr. Selé estavam dispostos, em relação, elementos-chave dos investimentos federais no desenvolvimento da região do Semiárido4 e no setor da construção civil. A parte reconhecidamente construída das paisagens apontava relações com programas sociais, que eram frequentemente mencionados por sertanejos. A fala do pedreiro João Ferreira exemplifica tais percepções: Esses governos anteriores, teve uns governos que se preocupou muito. O Nordeste foi bem desenvolvido aqui. O nosso município foi desenvolvido nessa questão de projetos sociais. A gente aqui nunca imaginou que você tá lá no sertão, vamos supor, quando você foi lá por Patamuté. Você atravessa essa caatinga e em algumas casa já tomar um copo de água gelada! Ninguém 3  O fato de apenas a face posterior da casa ter seu material estrutural aparente me lembrou uma atenção à fachada, constituída por uma intencionalidade específica, em relação às outras superfícies da construção, já que eram as mais avistadas por quem percorre a estrada. 4   Sobre a construção de cisternas e as questões relativas ao abastecimento de água para as populações que habitam o Semiárido, ver MALVEZZI, Roberto, Semi-árido: uma visão holística. Brasília: Confea, 2007.


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esperava! Isso pra mim era um sonho. Então foi um desenvolvimento assim: projetos sociais, cisternas, que tem bastante. Desenvolveu muito projeto social. Quer dizer, foi coisa que modernizou bastante e deu também custo e meio de vida para muitos. O pessoal desenvolveu aqui mesmo nesse município, muitas pessoas desenvolveram a arte de fazer cisterna e ganharam até uns truques. Já vinha o projeto, já vinha lá: “tantas cisterna”. Aqui como, acho que no Nordeste todo, lá tinha os preços tabelados, cada cisterna por tanto. Mas o pessoal pegou prática porque pagava um troco razoável. Pessoas que montavam cisternas boas dentro de até três dias. Tinha delas que custava até 500 contos, 600 real, o cara fazia em três dias. Não criticando, mas a gente vê que esses projetos hoje, em nossa região, deixou falta. Esse centro de caatinga aí, você chega lá, você assiste o jornal, você bebe uma água gelada. Isso pra muita dessas pessoas era um sonho, nunca imaginaram na vida, né, um desenvolvimento desse! A água daqui [da cidade de Curaçá] hoje já chega lá no [povoado de] Poço de Fora, água aqui do São Francisco. Então tudo isso foi algo assim. E desenvolveu muito. Questão também do Minha Casa Minha Vida desenvolveu muito o Nordeste. A classe baixa, a classe média baixa, ajudou muito. E é claro que houve… todos nós deixamos a desejar, os governos não é diferente também…

A partir das reflexões de André Singer5, é possível observar fatores que compuseram o primeiro mandato de Lula e que culminaram no realinhamento massivo de eleitores que o reelegeram em 20066. Estruturou-se um quadro de ações, em que políticas de desenvolvimento social, portanto, também regional, se aliavam ao crescimento econômico, de maneira que não confrontassem os interesses do capital, articulado com setores conservadores da sociedade e da política brasileira (singer, 2012). Identifica-se, portanto, uma postura reformista, não revolucionária, que paulatinamente promoveu uma grande inserção social e econômica de classes historicamente subalternizadas. A respeito de como Luiz Werneck Vianna observa a contradição instaurada pela condução política dos governos petistas, Singer coloca:

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André Singer foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência da República entre 2003 e 2007.

6  O autor considera estes fatores responsáveis por garantir “a vitória de Dilma em 2010 e a continuidade do projeto ao menos até 2014”. SINGER, André. Os setidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.21.


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Aqui, as forças da antítese (leia-se o PT) “não quiseram assumir os riscos de sua vitória”, optando por assumir o programa da tese (leia-se PSDB), contra o qual haviam construído a sua identidade. Então, foi “o elemento de extração jacobina” quem acionou “os freios”. Ou seja, em lugar de o partido conservador cooptar quadros revolucionários para executar de maneira controlada as alterações renovadoras, na prática lulista os elementos conservadores é que foram cooptados pelos dirigentes de origem progressista, corroborando o diagnóstico de Oliveira, para quem “parece que os dominados dominam, pois fornecem a ‘direção moral’, e fisicamente até, pois estão à testa de organizações do Estado”. (SINGER, 2012, p.38)

Por uma questão conceitual, retoma-se a ideia de desenvolvimentismo para caracterizar estruturalmente a forma de governança observada nos dois primeiros quadriênios dos governos de Lula. O termo é complexo e amplamente utilizado para se referir a planos políticos em diferentes momentos da história do Brasil. Nesse caso, não será discutida sua significação e ambiguidade na história e dentro dos governos petistas. Ao que nos cabe, Leila Maria Bedeschi Costa (2015) assinala que tradicionalmente o desenvolvimentismo conta com uma política industrializante. No caso do Brasil, ao falar sobre a sequência que a ex-presidente Dilma Rousseff deu ao que Lula construiu em seus mandatos, Singer aponta premissas básicas, adaptadas do que Ricardo Bielshowsky considera sobre a escola desenvolvimentista: 1. A reindustrialização integral seria o caminho de superação da pobreza. 2. Não há como alcançar uma reindustrialização no Brasil por meio das forças espontâneas do mercado. 3. É necessário que o Estado planeje o processo. 4. O planejamento deve coordenar a expansão desejada dos setores econômicos, os instrumentos de promoção dessa expansão e a sua execução. (BIELSHOWSKY, Ricardo apud. SINGER, 2018. p.25)

A situação de pobreza e o plano de crescimento econômico nacional eram as principais balizas do que se estruturaria enquanto uma política de Estado do governo petista. O esforço de investir e ampliar industrialmente setores da produção nacional viabilizaria, por meio da aliança com setores conservadores da sociedade civil, a principal bandeira do governo Lula. Sua gestão propunha que o fomento do


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crescimento econômico se daria através da redução da pobreza, gerando a inclusão social e econômica de uma parcela considerável da população brasileira (singer, 2012). Dessa maneira, observa-se uma postura do Estado em articular sua ação e efetivação em conjunto com grupos sociais que não se alinhavam com a maneira progressista do governo. Era explícita a conciliação com o capital pela postura de cunho reformista em face das expectativas radicais, dada a orientação original do Partido dos Trabalhadores (singer, 2012). Para que a redução da pobreza fosse viabilizada como um plano de governo, é nítida a compreensão de um condicionamento histórico estrutural das camadas mais baixas da sociedade brasileira. Essa compreensão é trazida por Singer, que convoca as elaborações de Caio Prado Jr. e Celso Furtado. Eles enxergavam que a impossibilidade do país de subverter o ciclo vicioso do atraso estaria vinculada a dinâmicas de um grande contingente populacional, historicamente na condição de miséria (singer, 2012). A herança colonial brasileira ainda faz sentir, no essencial, todos ou pelo menos seus principais efeitos. Constituímos ainda, numa perspectiva ampla e geral (…), um aglomerado humano heterogêneo e inorgânico, sem estruturação econômica adequada, e em que as atividades produtivas de grande significação e expressão não se acham devidamente entrosadas com as necessidades próprias da massa da população. E como consequência desse estado de coisas (…), vai a economia brasileira incidir no ciclo vicioso a que já referimos: os baixos padrões e nível de vida da grande massa da população brasileira não dão margem para as atividades produtivas em proporções suficientes absorverem a força de trabalho disponível e assegurarem com isso ocupação e recursos adequados àquela população. (JÚNIOR apud. SINGER. 2012, p.17) [grifos meus]

É principal, então, o entendimento dos governos petistas tanto sobre a situação da classe quanto ao seu potencial dentro de um plano de crescimento econômico. Nesse sentido, a dimensão de tal segmento é crucial para que se entenda a virtude de sua projeção econômica nas engrenagens do sistema capitalista nacional: a possibilidade de desenvolvimento de um amplo mercado interno e de setores de produção industrial. Mas essa posição só poderia ser


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assumida por tal população se ela estivesse apta a consumir, situação distante da realidade econômica da classe, por conta de seu baixíssimo padrão de consumo (singer, 2012). Nesse sentido é que se estabelece a dinâmica entendida como contradição brasileira, em que “a grande massa empobrecida abria e fechava as perspectivas de desenvolvimento autônomo do país” (singer, 2012. p.17). A situação de pobreza de grande parte da população inviabilizava a possibilidade de existência de um setor industrial e sua disponibilidade econômica para um mercado interno ativo. Singer trata de tal contingente populacional como “sobrepopulação trabalhadora superempobrecida”, um sinônimo do que Paul Singer (1976) chamou de subproletariado. Desse modo, a importância de tal segmento social foi estrutural para que se propusesse qualquer alteração do quadro de pobreza do país e uma consequente expansão das dimensões do funcionamento da economia nacional. A pobreza, no entanto, não é uma realidade homogênea no extenso território nacional. O país é marcado por sintomas históricos relacionados ao povoamento e interferências no espaço decorrentes dos processos de invasão, dominação, exploração do trabalho através de negros escravizados, em função da produção interna tanto no período colonial como nos que se seguiram7. A leitura de Prado Jr., portanto, encaminha uma compreensão que torna possível regionalizar grande parte do subproletariado, ao sublinhar que a situação social é marca direta do que se institui em termos territoriais, políticos, econômicos e sociais durante o processo colonial no Brasil. É mister, portanto, reconhecer que o conflito de classes está condicionado no Brasil pela existência de uma vasta fração de classe que luta por aceder ao mundo do trabalho formal em regime capitalista, com todos os defeitos que 7   Em A urbanização brasileira (2002), Milton Santos compreende que a constituição urbana do território nacional deve ser entendida “como processo, como forma, e como conteúdo dessa forma. O nível de urbanização, o desenho urbano, as manifestações das carências da população são realidade a ser analisada à luz dos subprocessos econômicos, políticos e socioculturais, assim como das realizações técnicas e das modalidades de uso do território nos diversos momentos históricos”. Sua leitura pode confluir com a abordagem sociológica de Singer, dado que o autor assinala a constituição dos espaços urbanos a partir dos subprocessos como marcas importantes sobre o território, alinhando-se aos processos desenvolvidos por classes subalternizadas nos diferentes momentos históricos do país.


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ele possui, tendo estado historicamente dele excluída. Daí a relevância do que poderíamos chamar de a nossa “questão setentrional”, se considerarmos que o epicentro dessa fração de classe está no Nordeste. Como lembra Sonia Rocha, “a pobreza no Brasil tem um forte componente regional”, sendo que “o Nordeste permanece como a região mais pobre do país”. (SINGER, 2012. p.44)

Portanto, mudanças sociais da grande massa empobrecida não poderiam estar dissociadas de uma transformação de uma condição também espacial e regional, visto que parte expressiva do subproletariado se encontrava regionalizado especificamente no Nordeste (singer, 2012). Para além da percepção de Paul Singer, em 1976, colocações feitas por Celso Furtado no ano de 1999 traziam para aquele momento uma imagem do país não muito diferente8. Os meios de reduzir a pobreza e, necessariamente, de gerar um crescimento econômico nacional, passariam por consolidar o lugar do subproletariado enquanto consumidor. Nesse sentido, fica explícita a compreensão da chamada “contradição social brasileira” (singer, 2012) pelos governos petistas quando se opta por reduzir a pobreza por meio de ações que fomentassem o crescimento econômico, inserindo na engrenagem justamente essa grande massa historicamente desarticulada das estruturas formais da economia. Priorizar a classe em questão como consumidora e para a geração de empregos foi o vínculo fundamental para a expansão de setores de produção. Essa população específica, a partir de então, seria agente econômico indispensável para o que se sucedeu. Essa inserção produziu grandes reverberações. Seria peça importante da equação do plano de desenvolvimento nacional a partir de 2003. A economista Maria da Conceição Tavares (singer, 2012. p. 12), observando o início da composição de projetos do primeiro mandato de Lula, sublinha três principais pilares observados: o crescimento econômico, a distribuição de renda e a incorporação social (singer, 2012). Os programas 8   “Nosso país se singulariza por dispor de considerável potencial de solos aráveis não aproveitados, fontes de energia e mão de obra subutilizadas, elementos que dificilmente se encontram reunidos em outras partes do planeta. Por outro lado, abriga dezenas de milhões de pessoas subnutridas e mesmo famintas. (...) O cerne da questão é definir que modelo de desenvolvimento vai se propor ao Brasil para os próximos anos. É fundamental solucionar o problema da criação de empregos”. FURTADO, Celso. apud. SINGER, André. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.20.


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sociais também representaram a materialização de um plano político de desenvolvimento nacional e da formalização do que Conceição Tavares coloca como força geratriz de crescimento de campos econômicos e transformações sociais no Brasil, a partir de 2003. Inicialmente, as medidas tomadas foram: [Lula] Aumentou o valor real do salário mínimo, criou o Bolsa Família (BF), o crédito consignado, as Farmácias Populares, a extensão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Programa Universidade Para Todos (Prouni), (…) promoveu a ampliação do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), a construção de cisternas no semiárido, o reconhecimento dos territórios dos quilombolas e o incentivo à agricultura familiar, entre outras coisas. Embora mais de 90% dos empregos criados fossem de baixa remuneração, a renda média do trabalho se elevou em cerca de um terço entre 2003 e 2014. (SINGER, 2018, p. 25) [grifos meus]

A fala de Singer constrói uma paisagem precisa: compõe um panorama de investimentos federais nas áreas de base para a constituição de infraestrutura. Saúde, educação, moradia e renda passaram a não soar como privilégios econômicos e sociais, historicamente característicos da sociedade brasileira; a matriz industrializante dessa condução política fez com que o acesso a essas infraestruturas passasse a ser socialmente amplo e, por isso, espraiado em direção aos interiores do território nacional – em especial nas áreas tradicionalmente miseráveis do país em termos socioeconômicos: as regiões Nordeste e Norte (singer, 2012). A incidência dos programas sociais sobre as condições de vida do subproletariado teria contribuído para a aprovação do governo, a partir do sentimento que passou a existir em relação, por exemplo, ao aumento do poder de consumo, “seja sobre produtos tradicionais (alimentos, material de construção), seja em novos (celulares, dvds, passagens aéreas)” (coimbra, apud. singer. p 63). O Lulismo, que emerge junto com o realinhamento, é, do meu ponto de vista, o encontro de uma liderança, a de Lula, com uma fração de classe, o subproletariado, por meio do programas cujos pontos principais foram delineados entre 2003 e 2005: combater a pobreza, sobretudo onde ela é mais excruciante tanto social quanto regionalmente, por meio de ativação do mercado interno,


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melhorando o padrão de consumo da metade mais pobre da sociedade, que se concentra no Norte e Nordeste do país, sem confrontar os interesses do capital (SINGER, 2012. p.15).

A ação que tocou incisivamente o subproletariado que se localiza em estados nordestinos alterou, de maneira decisiva, a tendência político-eleitoral da região9. O que se conquistou em termos eleitorais no primeiro mandato petista é substancialmente o que se estende para os próximos pleitos como comportamento eleitoral nesta região. Passou, portanto, a caracterizar uma nova conformação política de classes populares que habitam os estados nordestinos (singer, 2012). Para além dos programas específicos, houve certas medidas executadas durante o período de 2003 a 2005 fundamentais para que realmente a economia nacional pudesse apresentar um movimento crescente, através de certa estabilidade vinculada ao aumento do mercado interno nacional (singer, 2012). Tomadas em conjunto, as iniciativas do primeiro mandato foram muito além de simples “ajuda” aos pobres. Sem falar nos programas específicos, o aumento do salário mínimo, a expansão do crédito popular, o aumento da formalização do trabalho (o desemprego caiu de 10,5% em dezembro de 2002 para 8,3% em dezembro de 2005) e a transferência de renda pelo PBF [Programa Bolsa Família], aliados à contenção de preços, sobretudo da cesta básica (e em alguns casos deflação, como decorrência da desoneração fiscal), constituem uma plataforma no sentido de lançar uma direção política para os anseios de uma certa fração de classe. Não apenas porque objetivamente foram capazes de aumentar a capacidade de consumo de pessoas de baixa renda, como atesta o acesso de 29 milhões à “classe C”, entre 2003 e 2009. (SINGER, 2012, p.69)

Há, também, a conformação de uma situação regional muito específica, na qual se alinhava o investimento em infraestruturas básicas, como água (Um Milhão de Cisternas), eletricidade (Luz Para Todos) a programas de renda básica (Programa Bolsa Família) e de crédito consignado. Foram essas as medidas 9  Singer aponta que “a contar de 2005-06, o setor ‘atrasado’ da sociedade brasileira, a saber, a massa rural e semirrural do Nordeste, que não encontrava lugar nas relações de mercado capitalistas ‘normais’, se desliga do bloco histórico ao qual sempre esteve vinculada, ultimamente representado pelo PFL-DEM, aderindo ao lulismo.” FURTADO, Celso. apud. SINGER, André. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.39.


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responsáveis pelo maior impacto socioeconômico, apontadas por Dona Glória – líder comunitária uauaense10 moradora da cidade de Monte Santo desde a década de 1980 –, que chama o período pré-Lula como “época do atraso”. Em sua visão, a potência das medidas federais que incidiram na realidade socioeconômica da região se fortaleceu ainda mais pela implementação de cursos técnicos que visavam, por exemplo, a autonomia para a construção de cisternas por locais. A renda básica, sem dúvidas, se apresenta como principal fator de ampliação do subproletariado enquanto consumidor. A expressividade do auxílio de renda à população é colocada por Singer, que aponta: [O Programa Bolsa Família, setembro 2003] No princípio era apenas unificação de programas de transferência de renda herdados da administração Fernando Henrique, o qual, por sua vez, copiara a fórmula de governos locais petistas; o PBF foi aos poucos convertido, pela quantidade de recursos a ele destinados, numa espécie de pré-renda mínima para as famílias que comprovassem situação de extrema necessidade. Em 2004, o programa recebeu verba 64% maior e, em 2005, quando explode o mensalão, teve um aumento de outros 26%, mais que duplicando em dois anos o número de famílias atendidas, de 3,6 milhões para 8,7 milhões. Entre 2003 e 2006, o Bolsa Família viu o seu orçamento multiplicado por treze, pulando de 570 milhões de reais para 7,5 bilhões de reais, e atendia cerca de 11,4 milhões de famílias perto da eleição de 2006. (SINGER, 2012, p.64)

Um fator caro a esta análise é considerar que existiram alguns programas sociais pré-existentes, elaborados pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mas que foram expressivamente ampliados em termos de orçamento e do ponto de vista social (SINGER, 2012). O pedreiro João Ferreira, em nossa conversa, aponta justamente a continuidade: O Nordeste sempre foi discriminado, esquecido. Lula melhorou de FHC, porque Lula foi inteligente porque tudo que FHC deixou iniciado que ia dar certo e que era bom, Lula só ampliou. (…) Lula não é o padrinho do Bolsa Família, foi FHC! Lula ampliou ela. Viu que ia ajudar muita gente e ampliou ela.   Nomenclatura do gentílico da cidade de Uauá, Bahia.

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E ajuntou muitos projetos sociais que quem desenvolveu foi FHC… “Vamos ampliar, vai dar certo!”. E foi isso que no Nordeste deu um bom avanço.

Outra medida que catalisou a movimentação socioeconômica foi o investimento nas linhas de crédito consignado, que se direcionavam sobretudo para o consumo popular. Foi essa medida que, em 2005, gerou a “circulação de dezenas de milhões de reais”, quando o crédito marcava um crescimento de 80% desde o começo da gestão política de Lula (singer, 2012). Além da renda líquida do Bolsa Família, o crédito ampliou as possibilidades destes consumidores, além de fomentar setores específicos do mercado, como foi o caso da indústria da construção. Mas, além do acréscimo de renda obtido por milhões de brasileiros que receberam um salário mínimo da Previdência Social, outra possibilidade aberta aos aposentados, às vezes fonte de recursos em pequenas comunidades, foi o uso do crédito consignado. O crédito consignado fez parte de uma série de iniciativas oficiais que tinha por objetivo expandir o financiamento popular, incluindo uma multiplicação expressiva do empréstimo à agricultura familiar (sobretudo no Nordeste), do microcrédito e da bancarização de pessoas de baixíssima renda. Em resumo, o tripé formado pelo Bolsa Família, pelo salário mínimo e pela expansão de crédito, somado aos referidos programas específicos e com o pano de fundo da diminuição de preços da cesta básica, resultou em diminuição da pobreza a partir de 2004, quando a economia voltou a crescer e o emprego a aumentar. (SINGER, 2012, pp.67-8)


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construção civil: a convergência de um plano político

O mercado interno expandia seus limites e, para que se completasse este ciclo específico, investimentos também deveriam ser direcionados à produção industrial. Os investimentos nos setores industriais foram imprescindíveis para que se atendesse a nova demanda dos recém-capacitados consumidores. A indústria da construção, compreendida por fábricas, lojas de materiais e pequenas construtoras, tornou-se um dos setores de maior investimento nacional, como um alicerce do desenvolvimento e do crescimento11. O setor não foi apenas responsável pelos materiais que integram a construção autônoma de casas, mas também por ter proporcionado que projetos de diversas escalas infraestruturais, em conformidade com a dimensão do território, fossem executados. Neste sentido, enfatiza contemporaneamente o Estado enquanto propositor e interventor no meio físico através de grandes obras, postura historicamente reconhecida12. Não à toa, a Associação Brasileira da Indústria de Materiais da Construção (abramat), foi fundada em 200413. O órgão se autodefine “referência institucional na defesa dos interesses e da visão de um setor que, por sua profunda inserção na vida do país, reflete e expressa o próprio ritmo do progresso nacional”, configurando hoje um grande banco de dados técnicos articulados com setores acadêmicos ligados a esta cadeia produtiva.14 No âmbito da construção de casas, foi o setor que, através de grandes  Ideli registra crescimento do setor da construção civil do governo Lula. Agência Senado. Link: <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2008/08/05/ideli-registra-crescimento-do-setor-daconstrucao-civil-no-governo-lula>. Acesso em 10 jul. 2020. 11

12  A primeira categoria de obras que articulam a indústria da construção civil é colocada por um relatório da Associação Brasileira da Indústria de Materiais de Construção (ABRAMAT) como “Preparação de terreno”, que incluiria “obras de demolição e preparação de área, sondagem e fundações destinadas à construção e grandes movimentações de terra”. Disponível em: <http://www.abramat.org.br/datafiles/ publicacoes/estudo-cadeiaprodutiva.pdf>. Acesso em 10 nov. 2020.

Informações disponíveis em: <http://www.abramat.org.br/quem-somos>. Acesso em 10 nov. 2020.

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Retoma-se, aqui, o olhar de Rondinelly Medeiros sobre uma fundante postura do Estado brasileiro

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Bordas da cidade de Monte Santo. Novas ruas e quarteirões sendo construídos, em especial ao norte, nordeste e oeste do distrito sede do município.


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Um dos galpões de comércio de materiais de construção civil na cidade de Juazeiro, Bahia. Imagem feita pela manhã, momento em que diversas mercadorias eram descarregadas neste descampado.


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O acesso pelo norte da cidade de Monte Santo.


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investimentos, mais tarde, em 2009, seria peça fundamental para viabilizar o programa Minha Casa Minha Vida (mcmv) – que até março de 2015 já havia entregue 2,169 milhões de unidades residenciais e planejava construir mais de 1,688 milhão de casas e apartamentos15. O ex-presidente, em seu discurso de abertura da 18ª Feira da Indústria da Construção e Iluminação, em abril de 2010, sinalizou a reverberação e o investimento econômico destinado ao setor: em 2003, a quantidade destinada pela Caixa Econômica Federal era de 5 bilhões de reais, passando, em seis anos, para 45 bilhões. Outro aspecto que fomentou a possibilidade do consumo foram os valores crediários, essenciais para a expansão do setor. De 380 bilhões de reais em 2003, passaram a ser 1,4 trilhão no ano de 201516, expressando o alargamento considerável dos meios de acesso ao que era produzido com direcionamento ao mercado interno. Em 2008, o setor cresceu mais que o Produto Interno Bruto (pib), e nos anos de 2004, 2006 e 2007 foi a atividade da construção disseminada por todo país: “no comércio de materiais, na pequena indústria ou em obras individuais”, era uma atividade “responsável por um grande número de empregos que beneficiam, principalmente, pessoas de baixa renda”17. Nesse ano, o comércio de materiais de construção já era muito pulverizado regionalmente pelo segmento varejista, constituído por micro e pequenas empresas, como explicita a abramat em seu relatório “A Cadeia produtiva da construção e o mercado de materiais” (2007)18. Além disso, o documento enfatiza “o elevado grau no varejo, que atende principalmente aos segmentos informais da construção”. Em sendo atualizada, que interfere justamente no desenho da paisagem enquanto imagem e lugar de interesse da expressão de poder.  Ver Minha Casa Minha Vida atinge 3,857 milhões de moradias, em: <http://legado.brasil.gov.br/ noticias/infraestrutura/2015/05/minha-casa-minha-vida-atinge-3-857-milhoes-de-moradias>. Acesso em 10 out. 2019. 15

Ver Ideli registra crescimento do setor da construção civil do governo Lula em: <http://www12.senado. leg.br/noticias/materias/2008/08/05/ideli-registra-crescimento-do-setor-da-construcao-civil-nogoverno-lula>. Acesso em 10 jul. 2020. 16

Idem.

17

Ver “A Cadeia produtiva da construção e o mercado de materiais” (2007) em: <http://www.abramat. org.br/datafiles/publicacoes/estudo-cadeiaprodutiva.pdf>. Acesso em 10 out. 2020. 18


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outro momento de sua fala, o Sr. João Ferreira assinala: JF: E essa questão das lojas de material de construção depois do Lula foi que teve esse boom. Foi depois dele que elas começaram a aparecer mais por aí, né… Teve pessoas aqui em Curaçá que chegou a abrir lojinhas pequena por causa dos projetos. Por exemplo, aquele projeto, “Um Milhão de Cisternas”, parece que era durante um ano ou dois. Desenvolveu associações. (…) Então teve pessoas que se credenciaram com material, que abriu a lojinha pra vender material e deu certo. Quer dizer, ajudou muito. Foi um desenvolvimento muito grande. Teve outra loja também que se credenciaram com a Caixa Econômica, que aí venderam bastante. A facilidade de você construir pela Caixa foi maior e a pessoa ia lá, fazia lá o projeto de tudo, e aí tinha a loja que credenciava. Então isso ajudou, você comprava o material todo nessa loja. Se fosse gastar 20 mil, aquela loja vendia aqueles 20 mil. P: E quantas lojas o senhor acha que tem aqui em Curaçá, de construção? JF: De construção hoje a gente tem umas 10, por aí. P: E antes desse movimento todo? JF: Antigamente a gente dependia muito é de Juazeiro. Tudo comprava em Juazeiro. Hoje a gente temos aqui uma, duas, três, quatro… Nós temos hoje aqui, mais ou menos, umas cinco lojas bem razoável. (…) Antigamente, vamos supor, há uns uns vinte anos atrás você não comprava cerâmica aqui, porque não tinha. Não tinha. Cimento também era difícil. Difícil! Ferragem, se fosse fazer construção… A maioria aqui quando começou a trabalhar com ferragem, a fazer esses prediozinhos de primeiro andar, o pessoal comprava ferragem em Juazeiro. Depois começou a desenvolver.

É nítido, então, o vínculo que se estabelece entre a produção deste setor e os mecanismos de consumo relacionados ao crédito, disponibilizados pelo Estado, como apontado pelo Sr. Ferreira. Observa-se de uma forma cada vez mais explícita a correlação das medidas executadas pelo governo federal, fomentando dinâmicas socioeconômicas nacionais, em alinhamento, na percepção do pedreiro, com as mudanças pelas quais passou seu ofício, e que estiveram diretamente relacionadas ao período do governo Lula. São colocadas nesta fala duas perspectivas de autonomia: tanto a financeira, a partir das possibilidades de compra que eram oferecidas aos consumidores, quanto a regional, pelo acesso aos materiais básicos para o construir em cidades menores e mais interiorizadas.


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Logo, é possível reconhecer que a partir dessas dinâmicas propostas houve efetivamente um processo de transformação física de tais espaços. O setor da construção é responsável pela produção de elementos básicos que constituem aspectos técnicos e, consequentemente, estéticos das arquiteturas observadas neste trabalho. As cidades e os povoados sertanejos do início da década de 2000 – assim como as cidades de todo o país – passaram por mudanças proporcionais ao tamanho do investimento direcionado para o segmento industrial. Lula, no discurso de abertura do 82º Encontro Nacional da Indústria da Construção (enic), em 2010, apresenta: Nós fazemos aquilo que está ao nosso alcance, e a construção civil brasileira – seja a construção civil leve, seja a construção civil pesada – vive um momento mágico neste país, em todas as cidades, em todos os estados, na cidade pequena ou na cidade grande. Isso porque nós arrumamos a casa e o Brasil agora está colhendo os frutos daquilo que plantou. […] O dado concreto é que nós estamos vivendo este momento e não vai poder parar mais, porque agora nós nos comprometemos a fazer a Copa do Mundo de 2014. São 14 cidades com estádios novos, são políticas de mobilidade urbana que nós temos que fazer, são hotéis para as pessoas virem para cá. E ainda mais: ganhamos as Olimpíadas para 2016. É mais um megaevento internacional que vai precisar de mais mobilidade urbana, de mais metrô, de mais corredor de transportes, de mais hotéis. Nós precisamos aproveitar essa oportunidade. (…) Este país, em 1989, tinha praticamente 48 ou 50 mil escritórios de projetos. Este país chegou em 2002 apenas com oito mil porque as pessoas se formavam engenheiras e iam trabalhar como analistas no sistema financeiro, iam trabalhar como qualquer coisa, porque não tinha emprego, e as escolas pararam de investir em Engenharia. Agora nós estamos retomando isso, estamos formando engenheiros nas universidades públicas, e estamos formando muito. A nossa reitora que está aqui sabe a revolução que tem na educação brasileira. Saímos de 20 bilhões para 60 bilhões no orçamento da educação. Já construímos 12 universidades federais novas, 105 extensões universitárias, 706 mil alunos pelo ProUni, e o Reuni duplicou, em apenas dois anos, o número de renovação de vagas nas universidades federais, que era de 113 e passou para 227 mil vagas.19 19   Trecho retirado de Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de abertura do 82º Encontro Nacional da Indústria da Construção (ENIC), em: <http://www.biblioteca. presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/luiz-inacio-lula-da-silva/discursos/2o-mandato/2010/0906-2010-discurso-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-na-cerimonia-de-abertura-do-


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Antes dos valores entusiasmados que são trazidos pelo ex-presidente, interessa compreender a capilaridade do setor da construção civil dentro da ação do governo. Além da construção de casas, outras diversas áreas eram mobilizadas em cadeia. Dessa maneira, houve, no encadeamento político de Lula, proposições que se alinhavam com a necessidade de produtividade e expansão do setor industrial. O bloco cerâmico, célula básica das atividades relacionadas à construção civil, surgiu quase como uma regra construtiva, dos distritos-sede aos povoados mais remotos dos municípios. Além de prevalecerem visualmente no espaço por seu aspecto tonal, a claridade dos dias insistia em saturar sua imagem, destacando ainda mais sua presença20. Novamente a fala do Sr. João Ferreira propõe uma leitura do espaço e de seus componentes técnicos e materiais, vinda do seu exercício profissional enquanto pedreiro, capaz de descrever o uso de materiais em tempos distintos: JF: Aí pronto, tô até hoje trabalhando nessa profissão, 35 anos atrás, até hoje. P: 35 anos… JF: É… P: Sim, e aí me diga uma coisa. Você viu muita mudança de como se construía pra como se constrói hoje, assim, em relação aos tipos de materiais que são usados? JF: Ah, muita! muita! (risos) Muita, em todo setor, né? A construção não foi diferente. Novas tecnologias. Muito mesmo, modernizou bastante. Antigamente a coisa mais difícil era a gente trabalhar com engenharia. Vamos supor: você pegava uma obra, vamos dizer assim… Você é da região? P: Se eu sou? Não, não sou daqui não. JF: Então talvez você não conheça os limite daqui, assim, dos palavreados que a gente pode dizer… P: Em termos de construção eu tenho estudado um pouco, quem sabe… JF: O pessoal aqui, antigamente, falava assim: isso aqui é construção a oito 82o-encontro-nacional-da-industria-da-construcao>. Acesso em 20 out. 2020. 20   Período de tempo que duravam as idas aos interiores dos municípios em que morei. A escolha do horário priorizava os momentos mais altos do sol, em função da possibilidade de uma luz cheia e direta, que pudesse iluminar o máximo de casas e espaços urbanos. Evitei, dessa forma, a saturada tonalização alaranjada de uma paisagem no fim do dia, assim como a impossibilidade de fotografar com luz direta partes da cidade por conta de eventuais orientações solares dos quarteirões. Entre o fim da manhã e o começo da tarde, a maior parte das casas podia ser fotografada com a luz direta do sol.


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Camadas de diferentes tijolos que demonstram múltiplas temporalidades técnicas e econômicas que constituem certas casas. Cidade de Monte Santo.


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Outro exemplo da variedade de materiais que se relacionam com distintos períodos históricos e que compõe o corpo da casa. Cidade de Monte Santo.


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Na cidade de Curaçá também se observa a platibanda enquanto um acréscimo posterior, a julgar pela diferença de materiais.


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machados. P: Eu não sei o que significa. Como? JF: A oito machado. Você pegava uma construção, você não tinha projeto, você não tinha nada. Você fazia conforme o dono dizia e de sua mente, né? Aí foi chegando, a gente já trabalha com projeto, com arquiteto, essas coisas. Um negócio mais bem elaborado, o pessoal civilizou bastante. No entanto, se a gente anda pelo centro [da cidade de Curaçá], a gente vê as casa antigas que ainda estão aí, e é estranho. A mudança foi muita e o material nem se fala. P: Material, quando você começou a trabalhar, era o quê? Assim, para erguer parede. Era o quê? Adobão ainda, não? JF: Era adobão, massa de cal… Conhece cal? P: Conheço. JF: Massa de cal batido, o pessoal passava, às vezes tinha gente que passava um dia, dois dias assim pra bater duas latas de cal. Lata dessas de 18 litros. Cacete mesmo! Fazia aquele montão de massa do cal, deixava… O pessoal chama assim, “deixa curtir”. Passava aí era uma semana, depois era só quebrando, e a gente ia trabalhando. Usava para pra assentar o bloco, o reboco, entendeu? O bloco era o tijolão, eu cheguei a trabalhar com ele. Depois veio o tijolinho desse menor. E aí ele tinha duas formas: tinha o tijolo pequeno, menor, e tinha o tijolo que era maior, mas não era tijolão. O tijolão era feito de barro feito, mas não era queimado. Lá no centro ainda se acha casas assim. Mas hoje já mudou. Aqui em Curaçá, o povo ninguém ouvia falar em bloco. Muito difícil, ó! Depois foi que aí começou. As cidades maiores já trabalhavam há muito tempo, aí começou estendendo para as cidades menores.

As nomenclaturas expandem especificidades materiais, em que se elenca o tijolão, tijolo, tijolinho e, separadamente, o bloco cerâmico. Fica marcada em sua fala uma diferença entre os primeiros materiais citados e o bloco cerâmico. Os primeiros se agrupam com certa distância do último, que se afasta de um passado construtivo e integra até hoje as atividades da construção. Na grande maioria dos povoados e cidades atravessados, era facilmente identificado o uso de materiais diferentes de, por exemplo, adobe, tijolos produzidos em olarias, janelas e portas em madeira, etc. Para além do que se observava pontualmente nas construções, destacavam-se também alguns elementos da ordem infraestrutural, a começar pela materialidade de postes de iluminação elétrica como elemento pré-fabricado. Mesmo nos povoados mais distantes das sedes dos municípios, era constante o circuito de iluminação pública. Quando não eram postes, eram, comumente, cisternas.


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Fica nítido um processo de substituição material dentro das lógicas do construir, de maneira geral. E se reconhece dentro da fala de Ferreira que tais transformações estão marcadas por quebras temporais explícitas. P: E quando você acha que começou a vir o bloco pra cá? JF: Rapaz, já tem uns anos. Hoje que o tijolinho já tá extinto, não tem mais. P: É mais aqueles blocos cerâmicos mesmo, né? JF: É, isso mesmo. P: Mas o senhor não tem nem ideia de quanto tempo faz isso? JF: Pode ter que seja aí uns 20 anos atrás, por aí… que começou. P: E como está essa parte do custo da construção? JF: Tem simbolizado muito com a questão da arquitetura, modernização. Antigamente, vamos supor, a gente fazia uma construção aqui, um predinho desses aí, a gente às vezes desperdiçava muito material, no sentido de que usava ferro demais, preocupação pra problemas, usava ferro demais, outras vezes usava cimento demais… Não sei, a gente fazia tudo, né? Isso aí a tecnologia ajudou muito. É como eu falei, quando a gente pega um projeto o engenheiro já passa tudo, já o material que você vai usar. Então, às vezes você ia fazer certo tipo de coluna, de viga que você usava ferro demais. Outras vezes usava um ferro que não precisava. Que onde vai muito dinheiro é nessas áreas. Hoje não. Hoje em dia o engenheiro: “Não, não precisa esse tipo de ferro, esse aqui resolve. Não, não precisa usar tanto ferro, tantas peça de ferro nessa coluna aqui tá bom”. Então isso ajudou muito, muitas coisas. Tudo a tecnologia ajuda. P: Por que o senhor acha que se tem preferido usar o bloco cerâmico em vez do tijolo? JF: O bloco cerâmico em vez do tijolo foi uma das coisas que modernizou muito a questão do custo. Pra você ter uma ideia o tijolinho aqui na nossa região, o tijolo era 20x06[cm] de altura, do pequeno que a gente tá falando. O que você fazia com um saco de cimento numa parede de tijolinho, você faz o triplo dela com saco usando o bloco. Porque o bloco ele é 18x18, ele é quadrado, de 8 furos que a gente chama. Por exemplo, uma fiada de blocos corresponde a 3 do tijolinho. além do tempo da mão de obra, o material, né? Modernizou bastante, muito mesmo. P: Essa questão do custo, da dimensão… JF: Exatamente, da mão de obra ser mais rápida. A mão de obra é bem mais rápida. P: Você lembra quando tempo você demorava pra subir as paredes de uma casa de tijolo em comparação com a casa de bloco? JF: Ah, lembro… A gente cansava de dizer que a gente se batia o dia todinho


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e não via nada feito. Você ia fazer uma casa se ela fosse como aquela ali, você começava de manhã e uma hora dessa você tava com ela aqui [demonstra com a mão cerca de um metro de altura]. Assentando as fiada de tijolo, mesmo você andando rápido. O bloco não, o bloco rapidão você tá… O bloco hoje é uma casa mais simples, média pra nível de classe média-baixa, né… É a média de 18 dias, 20 dias a pessoa já tem uma casa, pra levantar, né. Tijolinho você passava 30, 30 e tantos dias, depende, passava um tempão… Bem mais diferente. P: Recentemente o senhor fez alguma casa de tijolo, ou faz tempo que não faz? JF: Faz muito tempo que não faço, muito tempo, Pedro. Aqui, às vezes tem gente que usa pra fazer a base, tem gente que ainda usa. Mas a maioria tá usando o próprio bloco. Mas parede mesmo você não vê de jeito nenhum. Não tem mesmo.

Em concordância com a fala do pedreiro, as últimas quatro imagens se juntam à ideia de diferentes temporalidades presentes nos componentes construtivos das casas, visualizadas através do uso específico do bloco cerâmico aparente. Por meio das faces que possuem seus materiais expostos, observamos uma espécie de corpo de prova, em escala. Essas paredes expostas das casas funcionam como cortes geológicos dos tempos dessas arquiteturas, percebidos por suas camadas de informações sobre sua composição. Têm ao menos dois tipos de tijolos diferentes nessas faces. Na imagem 95, uma das casas chega a ter quatro variações do material. O bloco cerâmico é o último acoplamento, sempre associado à expansão mais recente da casa. As camadas de materiais, neste caso, formalizam um pacto das casas com os tempos específicos que as constituem. P: E você vê diferença da época em que Lula estava no poder em relação ao incentivo da construção, barateamento de materiais? JF: Melhorou muito. E desenvolvendo também o material. Eu trabalho, inclusive, com um rapaz que trabalhou muito tempo, ele é daqui, parece que morou 16 anos em Salvador. E ele trabalhou muito nessa área de construção. Ele conta um bocado de coisa, fala muito da Odebrecht, da OAS: “Na época de Lula era assim, a gente trabalhava 6 meses numa construção e a gente já saía, a gente sabia que não não ficava parado. Saía da construção, outra já tava ali.”. Quando uns encarregados, aqueles engenheiros, conhecia uma turma de trabalhador já botava, o cara botava era banca. A construção não parava. Na área de construção civil o impacto foi muito grande, e aí foi onde surgiu muito trabalho.


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Dados que caracterizam o funcionamento da economia nacional e suas reverberações sociais, organizados por Marcio Pochmann em seu livro Nova classe média?: O trabalho na base da pirâmide social brasileira (2012), mostram a proporção do setor da construção pela quantidade de trabalhadores empregados no ramo. O número líquido de ocupações geradas por trabalhadores de base, segundo a posição profissional na área da indústria extrativa e da construção civil era de 1.998.033 nos anos 2000. Era a terceira maior quantidade dentre as atividades estudadas, que se posicionava somente abaixo ao dos trabalhadores dos serviços, em um total de 6.119.193, e ao dos vendedores e prestadores de serviços do comércio, em 2.153.691. É expressivo o aumento do índice em relação à década anterior, em que o número líquido de trabalhadores do setor da construção e extração totalizava 18.016 (pochmann, 2012, p. 33). O considerável aumento de pouco mais de 11.000% do número de trabalhadores da categoria nos anos 1990 é mais um indicativo das proporções que assumia o setor. No início da década de 2000, o setor da construção civil passava por uma situação de retração de investimentos federais, com um contingenciamento de 85%. José Carlos de Oliveira Lima21 sinaliza, logo no início do Governo Lula, suas expetativas em relação às promessas colocadas pelo presidente, comprometidas em desenvolver o segmento através do investimento de 5,3 bilhões de reais para a construção e reformas de moradias. Segundo Oliveira Lima, o orçamento ainda seria inferior ao valor necessário para solucionar o déficit habitacional no Brasil, que expôs uma posição de dúvida do sindicato em relação ao desenvolvimento do setor, pelo que propunha Lula antes de se eleger. É importante lembrar que aqui não se trata de moradias financiadas pelo governo, mas do livre exercício da construção civil, a partir da disponibilidade de materiais produzidos pelo setor da construção no mercado. Mesmo assim, a partir desses dados é possível visualizar, por meio do volume de investimentos inicialmente movimentado pelo Estado em direção à indústria da construção, qual era a proporção dada ao setor. 21   Presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos de Cimento (Sinaprocim), Sindicato da Indústria de Produtos de Cimento do Estado de São Paulo (Sinprocim) e Vice-Presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Para o artigo completo, ver o link: <http://www. sinaprocim.org.br/imprensa/artigo_26.htm>. Acesso em 20 jul. 2020.


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A cidade de Monte Santo e sua malha urbana em crescimento, devido tanto às obras federais quanto à movimentação particular nas bordas da cidade.


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A paisagem sertaneja enquadrada pelas constantes obras da cidade de Monte Santo.


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Anos antes do grande investimento destinado ao mcmv, os números indicavam prosperidade do segmento industrial. Em 2008, a venda anual de materiais de construção totalizava 101,8 bilhões de reais, segundo o relatório da abramat publicado em 200922. Dois anos antes do lançamento do grande programa de habitação social, em março de 2007, em discurso durante a abertura da 15ª edição da Feira Internacional da Construção (Feicon)23 em São Paulo, Lula narrou os caminhos do segmento industrial, que já representava uma base substanciosa da economia nacional da primeira década do milênio: Os produtos e lançamentos aqui reunidos reafirmam as dimensões de uma indústria que contribui com 60% do investimento brasileiro; uma indústria que impulsiona oito cadeias produtivas; emprega mais de um milhão e trezentas mil pessoas e deve crescer – já ouvi aqui 9%, 12% –, nos meus números está por volta de 6% este ano – eu prefiro ser pessimista –, depois de já ter registrado uma expansão de 4,5% em 2006. (SILVA, 2007)

Para além dos grandes empreendimentos imobiliários e obras públicas, que mobilizam uma intensa produção do setor, outra grande atividade da construção foi aquela que não passa pela criação e crivo de arquitetos ou engenheiros. Como fenômeno geral, não são exclusivas dos sertões as transformações do construir aqui estudadas. É, até hoje, a categoria que possui a produção mais expressiva dentro do percentual do que é construído no país24. Muitos casos das arquiteturas aqui estudadas se inserem exatamente nesses espaços de produção, embora exista a 22  Cenário Macroeconômico 2009-2016 (ABRAMAT, 2009) Em: <http://www.abramat.org.br/datafiles/ publicacoes/cenario-macro2009-2016.pdf>. Acesso em 10 set. 2020.

23  Ver “Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na solenidade de abertura da 15ª edição da Feira Internacional da Construção (Feicon)” em: <http://www.biblioteca.presidencia. gov.br/presidencia/ex-presidentes/luiz-inacio-lula-da-silva/discursos/2o-mandato/2007/13-03-2007discurso-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-na-solenidade-de-abertura-da-15aedicao-da-feira-internacional-da-construcao-2013-feicon>. Acesso em 15 set. 2019. 24  No artigo 75% de informalidade nas cidades brasileiras, os arquitetos Beatriz Vanzolini Moretti e Vinícius Andrade apresentam um esboço da situação que observam a partir de uma visão dicotômica entre cidade formal e cidade informal. Este trabalho não se alinha com essa rígida divisão entre os territórios de uma cidade, compreendendo que os espaços podem ser híbridos, condensando características das duas modalidade que balizam a análise dos autores. De todo modo, oferecem dados


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compreensão de que esse nicho esteja também passando por transformações desde os últimos anos25. As cidades passam a ser o palco que produz a formalização individual de arquiteturas populares, autoconstruídas ou não. Portanto, nós temos que levantar a cabeça. Nós estamos fazendo a nossa parte. Numa reunião em que eu estive com mais de dois mil prefeitos, anunciei a liberação, pela Caixa Econômica Federal, de 1 bilhão e 400 milhões de reais para o setor da construção civil. O Ministério das Cidades está discutindo não apenas com a Caixa, mas com todos os setores que podem ajudar a financiar, como retomar a construção de casas no nosso país. E vocês sabem que a construção pode dinamizar os setores que produzem para as habitações brasileiras, e isso requer disposição política, isso requer vontade. O que nós não poderemos mais ficar assistindo é ao crescimento espraiado da miséria no nosso país. Cheguei a Santos em 1952 e a São Paulo em 1956. São Paulo tinha a favela da Vila Prudente e a favela do Ipiranga, favela da Vergueiro, a famosa favela da Vergueiro, que hoje virou um bairro de classe média alta. Hoje, 20% da população de São Paulo mora em favelas, 28% da população de Belo Horizonte mora em favelas, quase 50% da população de Belém mora em favelas, 33% da população de Salvador mora em favelas, e nós sabemos: se continuarmos a a respeito da cidade que é construída para além de uma centralidade econômica próspera, do que chamam de “ilha de riqueza”. O que estaria fora desta contexto específico seria a cidade construída pelos próprios moradores, que não necessariamente têm na construção sua atuação profissional. Dessa maneira, é curioso pensar que a parte da cidade que em termos proporcionais é responsável por sua maior área poderia ser chamada de informal, já que concentra em si a maior parte da população e, consequentemente, a maior parte das relações humanas. Disponível em: <http://arqfuturo.com.br/ post/75--de-informalidade-nas-cidades-brasileiras>. Acesso em 17 set. 2020. 25   Sr. João Ferreira aponta outros aspectos de transformação que atravessam sua área profissional, caracterizando mais precisamente sua perspectiva atual como pedreiro: “Aí foi chegando, a gente já trabalha com projeto, com arquiteto, essas coisas. Um negócio mais bem elaborado, o pessoal civilizou bastante. (…) Aí depois é como eu te falei, com a modernização, a pessoa pega projeto. Muita gente aqui trabalha com projeto mesmo, feito a mão. Ou seja, pela área de engenheiro, arquiteto. E já tem uns que pega muito pelo menos na questão da internet. “Ah, não quero gastar esse dinheiro”. Que a gente aqui, assim, em cidade pequena, assim, a maioria das pessoas trabalham no setor de construção avulsa, quer dizer, por conta própria. Às vezes a gente constrói e não vai nem na prefeitura pedir uma licença, precisa o fiscal vir bater em cima. (…) Às vezes acontece muito isso. E tem outros, às vezes, que mete o pé na parede, acha que é roubo, que não deveria ter. Mas já tá bem moderna essa situação. Até na maioria dos pedreiros a gente já incentiva: “Você já pegou uma licença de construção na prefeitura? Pegue lá!”. Se você vai, vamos supor, você vai fazer uma casa, uma estrutura, vai fazer um andarzinho. A gente já incentiva. “Pega a assinatura de um engenheiro, pega uma pessoa que tenha CREA para assinar…”. Incentiva muito isso. E também se evita certos problemas, até em quem tiver construindo. Porque se você trabalha com projeto é bem diferente de você trabalhar avulso.”


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permitir que as favelas cresçam neste país, menos cerâmicas, menos azulejos, menos torneiras, menos produtos as pessoas vão poder comprar. Então, cabe ao Estado brasileiro, em parceria com os governos estaduais e municipais, ser o indutor para que a construção civil tenha, efetivamente, o espaço que precisa para gerar os empregos que nós queremos e precisamos.26 [grifos meus]

Já no ano de 2004, “excluídas as despesas com serviços de mão-de-obra em atividades de construção, reforma e manutenção, a análise dos dois grandes grupos de despesas para os valores nacionais mostra a importância do grupo de produtos cimento, laje e amianto, que responde por 17,4%, ou R$ 5,3 bilhões, do total de gastos das famílias com material de construção”27. No discurso de abertura da 11ª Feira Internacional da Indústria da Construção (Feicon), foram colocados pelo ex-presidente alguns sinônimos do bem-morar, exemplificados pelos materiais mais produzidos no setor da construção. Sua abundância no mercado e a disposição para seu consumo configuraria, segundo Lula, a situação ideal dentro da perspectiva de crescimento e prosperidade da indústria. O investimento na construção seria a antítese do “crescimento da miséria espraiada nesse país”. Dessa maneira, passamos a entender como socialmente se esperava que os impactos dos processos de produção e consumo em larga escala fossem recebidos: o investimento no setor e a possibilidade da absorção cotidiana das mercadorias por classes baixas no processo da construção popular e periférica – não só pelas periferias dos centros urbanos, mas também por outras periferias regionais do país. Com base nessa investida, observou-se a notável apropriação dos produtos industrializados que vieram a ser introduzidos na construção popular também nas regiões mais pobres do Brasil, distantes dos grandes eixos econômicos do Sudeste e das capitais dos estados, onde existem maiores concentrações de fluxos econômicos. 26  Ver “Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura da 11ª Feira Internacional da Indústria da Construção (Feicon)”, em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov. br/presidencia/ex-presidentes/luiz-inacio-lula-da-silva/discursos/1o-mandato/2003/08-04-2003discurso-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-na-abertura-da-xi-feicon.pdf>. Acesso em 17 set. 2020. 27 Informações retiradas da pesquisa A Cadeia produtiva da construção e o mercado de materiais (2007), em: <http://www.abramat.org.br/datafiles/publicacoes/estudo-cadeiaprodutiva.pdf>. Acesso em 10 out. 2020.


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A região Nordeste, como o projeto político propunha, foi atravessada por essa aproximação com os produtos industriais do setor da construção. Estes materiais passam, assim, a constituir um traço cultural, a partir das apropriações a que são submetidos pelo que foi e é produzido pelas camadas populares da sociedade brasileira. Para além de um discurso que está a serviço de seu plano político, Lula atribuiu, inclusive, os aspectos estéticos que as casas, incluídas na perspectiva de prosperidade e crescimento econômico, teriam. Para além de uma ilustração de um tipo de construção, neste discurso se construiu uma orientação dos materiais que circulariam em grandes escalas, que seriam as cerâmicas, azulejos e pias. Esse discurso não gravita no que é estrutural para as construções que passariam a ser construídas. Lula insiste em elencar três elementos ligados às etapas “finais” de uma obra, ligados às superfícies e detalhes. São materiais vinculados ao que se vê quando se pode construir além do que é fundamental em termos construtivos. É retomada nessa fala do ex-presidente a associação entre o consumo destes materiais específicos para construção de casas e os sentidos de crescimento socioeconômico nacional. Alinha categoricamente uma postura de consumo e geração de empregos com um direcionamento do que seria positivo em termos de moradia. Sendo as favelas organismos autônomos e periféricos, o ex-presidente parece se esforçar em demonstrar que o movimento do setor da construção civil ofereceria o que materialmente pudesse “qualificar” a construção que se enquadra nestes termos. Desse modo, a casa, enquanto um dos objetos de seu projeto político, parece assumir mais uma camada simbólica. Estariam nela condensados os sentidos de uma economia em movimento e todas as articulações que isso prevê. A casa, ao ser construída a partir deste contexto histórico, pôde elaborar em si as relações propostas pela conjuntura política, alinhando perspectivas econômicas, sociais e regionais. A casa, enquanto ponto convergente do projeto político, antes mesmo de as proporções da indústria da construção civil terem se expandido de maneira absoluta com o mcmv, já era cantada como um objeto que teria a capacidade de articular. Apresenta em si tanto os sentidos do crescimento econômico do país, elaborando concretamente um específico momento da história nacional. A casa é o governo, a casa é a indústria,


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a casa é o mercado. Todos eles formalizados especificamente, pois também é seu morador. A casa construída de maneira autônoma e dentro de territorialidades periféricas no Brasil, antes de constar como estatística de crescimento, também traz em si características próprias. Concilia forças rigorosas: a ortogonalidade modular de um projeto industrial com expressividades culturais específicas.


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Trabalhador erguendo casa nos limites da cidade de Monte Santo.


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considerações finais

Aqui se tem um primeiro esforço de organizar uma série de pensamentos e procedimentos a respeito do assunto e das imagens, complexos e recentes. Faz deste trabalho um momento inicial de concentração, para que esta discussão possa seguir em expansão. A extensão dos temas aqui trabalhados pede, sem dúvida, que venham os próximos passos, atentos e abertos. Essas fachadas de platibandas permanecem, ainda que produzidas sob o esquema dos materiais industrializados, previamente dotadas de aspectos expressivos e próprios de uma maneira de construir. Se reconhece que há o agenciamento dos materiais pelos procedimentos reconhecidos nas práticas populares de antigas arquiteturas destes sertões. São casas que dizem sobre um passado recente e específico dos sertões de Monte Santo, Uauá e Curaçá. Enquanto elementos da cultura material contemporânea desta região, elaboram em si outro regimento socioeconômico das populações destes espaços: as novas possibilidades sociais e econômicas; a atividade de um nicho de mercado específico; a produção de um setor industrial; e o plano político que possibilitou a integração destas esferas, referente a um período recente da história nacional.


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A contribuição de Rondinelly Gomes Medeiros a respeito da indocilidade é preciosa para pensar sobre as imagens das fachadas de platibandas. Mesmo sendo um termo que fale sobre perspectivas endógenas, parece caber na instância simbólica em que se inserem as imagens dessas casas. Concentram em si a contradição: tanto este outro lugar social e econômico de uma população historicamente empobrecida quanto aspectos viciosos do desenvolvimentismo e do progresso nacional enquanto símbolos históricos do poder político. De todo modo, alguma parte das imagens dessas fachadas pode reverberar certa indocilidade frente às noções cristalizadas de sertão, Nordeste e cultura popular. Alinha a performance socioeconômica das classes populares e placas de porcelanato como um contraponto às imagens que culturalmente construíram estes espaços ao longo do último século. São casas que vibram com seus padrões texturizados, visualmente fortes. Elaboram o vigor de uma outra conjuntura não só nacional, mas globalmente regional.


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agradecimentos

A Leo e Mamé, pai e mãe, pelo amor em todos os lugares. A Luisa, irmã-total, pela intimidade e coragem que me lançam. A Laura, por sempre e por tudo, juntos. A Gabriela, pela transformação no caminho. Agradeço a Manuela pelas diversas danças com a vida. Agradeço aos companheiros de primeiros passos na arquitetura: Gabriel César, Giovana Tozzi, Guilherme Paschoal, Julia Daudén, Luciana Ligeiro, Marina Coccaro, Marina Secaf, Tali Caldas. Este trabalho é também sobre nossas experiências juntos. Agradeço, em especial, a Julia pelas trocas sobre imagem e às duas Marinas pela proximidade do último um ano e meio, vitais. Agradeço à minha querida orientadora, Marianna, por tamanha generosidade intelectual e por ter, desde o início, acreditado neste trabalho. Agradeço a confiança e o rigor no olhar. Agradeço a Marcia Sant’Anna por ter sido, mesmo que pontualmente, grande entusiasta desta pesquisa. Fez o embrião destes papéis percorrer lugares.


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Agradeço também por fazer parte do momento de avaliação final. A Yuri, por acompanhar os movimentos da minha cabeça no último ano, por sua leitura do trabalho que trouxe perspectivas cirúrgicas. Pela vontade do estudo e pelas articulações essenciais para esta pesquisa. Junto, agradeço também aos meus colegas que, em grupo, deram corpo ao mergulho nas extensas discussões a respeito do popular: Antonio Zellmeister, Beatriz Hinkelmann, Beatriz Sallowicz, Carolina Dentes, Fernanda Vaindergorn e Luara Macari. Vocês estão aqui. Agradeço a pesquisadora Maria de Betânia Brendle pela inesperada troca e generosa contribuição ao tema das fachadas de platibandas. Ao casal de amigos do coração, Bianca Laurino e Caetano Patta, pela disponibilidade intelectual e tudo o que vem antes dela. Esta pesquisa não existiria sem a generosidade de vocês. A Clara Amarante, amiga-irmã de muitos momentos. Pelas horas todas de conversas importantes. Ao meu amigo Pedro Koberle, pelo ouvido absoluto para as relações que vieram a ser formuladas. Agradeço a Sabrina Sinelli por toda companhia durante o processo de feitura deste trabalho. Agradeço ao querido Caio Nigro pela lente que capturou cada imagem aqui presente. Agradeço a Thiago Benucci por ter me apresentado o trabalho de Rondinelly Medeiros, dos feixes mais importantes desta trança. Agradeço o próprio Rondinelly pelas preciosas indicações de leituras essenciais, além de seus próprios pensamentos. Agradeço às mães do caminho, Keka, Kátia, Jane, Anelise, Nalva, que abriram as portas com amor e força. E continuam abrindo. Aos amigos que fiz na cidade de Cachoeira: Andressa Prazeres, Danilo Amaral, Dico Punk, Edelsio Júnior, Eduarda Gama, Ema Ribeiro, Felipe Maluf, Gustavo Menezes, Letícia Catete, Meire Dórea, Nathália Araújo, Nathália Luz, Nega, Rosemary, Silvia Leme, Tianalva Silva. Pela expansão do olhar, do pensar e dos lugares do coração. Fundamental prelúdio de sertões.


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Agradeço à própria cidade de Cachoeira, pelo chacoalhar absoluto do mundo que ali acontece a todo instante. Agradeço ao preparar das andanças, na beira no Rio Paraguaçú, junto com tantas forças que ali habitam. Só posso agradecer a todos aqueles que cruzaram meu caminho nos sertões que estive. A Dona Elenita, Ivaney e Suely agradeço o dia a dia da vida em Monte Santo e todas as gentilezas. A Ivan Santanna por todos os caminhos abertos aos espaços e às histórias, e pelas noites boêmias no pé da Serra. Agradeço a Cristiano Tolentino, Dum do Manuelito, por fazer os caminhos e pela companhia de longas horas de estrada sertões adentro. Agradeço também pelas pinhas de Dona Bertulina, as melhores. Agradeço a Eduardo Tolentino, pelas ricas trocas e pela disponibilidade de grande professor. Agradeço a Matheus Raj, pelas deliciosas voltas de moto por Monte Santo. A Juliana Bicudo, agradeço a companhia-presente no momento que foi necessário, entre chapatis e licuris. Fica meu carinho pela companhia essencial. A Gildemar Sena, Maria Perpétua Peixinho e Daniel Sena agradeço pelo carinho grande; pela casa, pela Serra, pelas redes, pelas trocas e pelo entusiasmo uauaense do mês de junho. Agradeço a Lia Rezende, amiga que a feira de Uauá me deu – e depois pelos caminhos que fizemos juntos. Agradeço pela linda parceria naqueles sertões e pela ajuda em elaborar pensamentos aqui presentes. A Pedrinho Bode Véi agradeço as viagens-vertigens de moto pelos interiores de Uauá nos fins de tarde ou antes da chuva. A Adriana, Robson, Álvaro e Olavo, que me apresentaram uma das partes mais lindas daqueles sertões de Uauá, com imensa atenção e gentileza. A Edilma, Silvanda e Edenilde, minhas mães beradeiras de Curaçá, agradeço por coroarem o tempo de caatinga com tanto amor. Aos meus irmãos Andrey, Gustavo, Ana Maria e Biel, agradeço por me deixarem ser da família. Agradeço ao caminho que se fez, possibilitando que as impressões ganhassem corpo e existissem enquanto ideias. Caminho esse divisor absoluto


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de águas, mais da escuta do que do falar. Agradeço ao Tempo pela preciosa maneira de encaminhar as coisas. Pela imensa precisão de gestar. Agradeço àqueles que me tornam possíveis as trilhas, que fazem precisas e prósperas as direções. Àqueles que tornam possíveis os espaços e encontros essenciais, que fertilizam as possibilidades. Àquele que ilumina o caminho que não se conhece.


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referências bibliográficas

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crédito das imagens

Introdução [p.26-7] Foto: Pedro Levorin, 2019. Capítulo 1 Todas as imagens: Pedro Levorin, 2019. Capítulo 2 [p.29-83] Todas as imagens: Anna Mariani © Instituto Moreira Salles. [p.87-97] Todas as imagens: Anna Mariani © Instituto Moreira Salles [pp.98-9] Foto: Pedro Levorin, 2019. [pp.103-5] Todas as imagens: Anna Mariani © Instituto Moreira Salles. [p.108-115] Todas as imagens: Pedro Levorin, 2019. [p.123-195] Todas as imagens: Pedro Levorin, 2019. Capítulo 3 [p.198-241] Todas as imagens: Pedro Levorin, 2019.


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fontes

Founders Grotesk e Minion Pro miolo

Alta Alvura 120g impressão

Gráfica Arrisca tiragem

10 exemplares


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