Revista Um a Um

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REVISTA UNIVERSITÁRIA EDIÇÃO JUNHO 2021

UM

A UM

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ENTREVISTA COM CELSO UNZELTE E GIOVANA PINHEIRO PARTICIPAÇÃO DE JÚLIO OLIVEIRA

POLÍTICA

"Quando eu era jogador, minhas pernas amplificavam a minha voz." - Sócrates (1954 - 2011) Imagem retirada do site https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-a-democracia-corintiana/


Se há pessoas envolvidas, então existem questões sociais a serem discutidas. E no futebol não é diferente. O esporte tem um importante papel de servir não apenas como entretenimento, mas como palco central de questões que envolvem o ‘ser político', o que traz à tona discussões sobre machismo, homofobia, liberdade de expressão e até democracia.

Vimos várias vezes os jogadores abordarem problemas sociais nos campo, como faixas de apoio ou outras estratégias de marketing, e fora dele, nas redes sociais. Alguns são mais engajados e demonstram isso em ações extra clube e extra campo, como o Igor Julião, que utiliza sua posição para dar voz a assuntos importantes.

Futebol como símbolo e identidade nacional página 3

Atos políticos, partidários ou não, atuais página 16

A chegada do esporte e sua popularização página 3

Felipe Melo e o apoio ao presidente página 17

Racismo e futebol - página 4

A manifestação contrária de Paulo André - página 17

A profissionalização do futebol - página 6 O futebol como ferramenta política página 7 O modo de ser brasileiro e o "mulatismo" página 8 Os entraves do machismo. Decreto-lei 3199 de 14 de abril de 1941: criminalização da prática do futebol feminino - página 8

Copa América 2020 - página 18 Assédio não - página 21 Homofobia no futebol - página 22 Conclusão - página 24 Entrevistas - páginas 26 e 35

AUTORES:

Fato curioso - Maracanazzo - página 10

Angélica Maria Neiva Rosa - 12011JOR038

O início do rei - página 11

Sofia Cunha Souza - 12011JOR023

A Ditadura militar e o futebol - página 11

Vitoria Freitas Bernardes - 12011JOR059

"Ninguém segura esse país" - página 11

Gabriel Rodrigues da Mota Iole - 12011JOR003

Ame-o ou Deixe-o (Copa de 70) - página 12 A Ditadura militar e o futebol - página 13 Democracia Corinthiana - página 14 "Ganhar ou perder, mas sempre com democracia" - página 14

Pedro Resende Bueno - 12011JOR037 Giovanna Abelha Rodrigues - 11012JOR033 Referências no link: https://docs.google.com/document/d/1Iu7367BwtaBxIl7e3v4On y7KlroApzLwI8kUOyE9fek/edit?usp=sharing


FUTEBOL COMO SÍMBOLO NACIONAL E SUAS IMPLICAÇÕES NA POLÍTICA 1.1 Futebol como símbolo e identidade nacional O sentimento em torno do futebol, até pouco tempo, unia os brasileiros. Todos se preparavam para o jogo da seleção; as escolas paralisavam para que os alunos vissem o Brasil entrar em quadra; as ruas eram invadidas pelo verde e amarelo. Durante as copas mundiais, o clima era de festa, alegria e esperança. Por diversos motivos, desde a colonização, nunca houve outro sentimento tão intenso de nacionalismo quanto o que era causado pelo futebol. Isso, de fato, não é pura alienação, é sentimento de pertencimento.

Eu enxergo o futebol como um meio, não como um fim em si. Se o futebol é ferramenta de alguma coisa, é ferramenta de cidadania. Num país como o Brasil, futebol é um traço cultural antes de tudo, então ele tem um poder muito grande. É uma ferramenta eficaz de - Celso Unzelte comunicação.

1.2 A chegada do esporte e sua popularização O “pai do futebol” no Brasil é Charles Miller. O paulista-britânico trouxe ao país, após uma viagem à Inglaterra, regras, bolas e uniformes. Foi, também, o primeiro craque e artilheiro do Brasil atuou no primeiro jogo considerado “oficial” -, e, ainda, foi de suma importância para a criação do primeiro time e do primeiro campeonato brasileiros. Charles foi o primeiro jogador brasileiro a jogar profissionalmente na Europa e o primeiro técnico de uma seleção brasileira primitiva. O esporte envolvendo uma bola encantou os brasileiros e foi facilmente difundido. Reservado à elite, era considerado uma prática nobre, usada como forma de diferenciação social.

A disseminação de atividades pelos governos era, também, uma forma de abrandar as tensões políticas. Por ser um esporte simples de ser jogado, que necessita apenas de uma bola e um terreno, ganhou enorme aprovação e logo se popularizou. Alguns grupos maginalizados socialmente, como pobres e negros, tomaram gosto pelo futebol e o massificaram. E, com o passar do tempo, os responsáveis pelos clubes perceberam que, para obter sucesso no jogo, não era interessante que ele fosse parte apenas da realidade de uma elite. Foi, então, um dos responsáveis por quebrar barreiras sociais.


1.3 Racismo e Futebol

A maioria dos primeiros clubes não aceitava negros e aqueles que aceitavam, dispitavam campeonatos isolados. Dentro dessa realidade, a Liga de Amadores de Futebol (LAF), mesmo mantendo laços com o elitismo do futebol, criou o jogo “Preto x Branco”, no qual duas equipes, uma composta por atletas negros e outra por brancos, competiam. Mais tarde, a LAF foi encerrada e o jogo “Preto x Branco” passou a ser organizado pelo movimento negro da época. Havia, também, as disputas pela taça “Princesa Izabel”, realizadas dia 13 de maio, em comemoração à abolição da escravidão. Em um país onde o Rei do Futebol é um homem negro, é de se admirar que o esporte ainda admita tanto racismo. Casos como o do jogador Tinga, que era insultado com sons de macaco sempre que chutava a bola em partida; de Daniel Alves, quando torcedores jogaram uma banana no campo e o jogador a comeu em resposta; e de tantos outros que sofrem intimidação dentro de campo, e até mesmo em suas redes sociais, têm um gosto amargo de derrota. Mas não é de se admirar que no Brasil, país no qual 75,5% dos homicídios em 2018 eram referentes a pessoas pretas e pardas (Atlas da Violência, 2020), o racismo ainda seja tão presente na sociedade.

As estatística de violência contra a parcela de pretos e pardos, que chega a quase 56% da população total de brasileiros (IBGE, 2018), só aumentam. E muitos fatores sociais acabam por corroborar com essa realidade, seja a abolição da escravidão tardia, a não inserção dessas pessoas na sociedade após a liberdade, a falta de políticas públicas efetivas que sirvam de repação histórica ou então a presença de governantes preconceituosos no poder. Por esse motivo, é amplamente divulgado que o país possui um racismo estrutural, ou seja, quando existe um preconceito racial na sociedade que está mascarado por ações, costumes e desigualdades. E dentro de campo essa realidade é refletida. Mesmo com uma maior representatividade no esporte, uma vez que o futebol se tornou um grande mecanismo para tirar jovens da pobreza, ainda assim é difícil encontrar nomes que tenham tanto impacto quanto o de Pelé. O racismo age de forma tão danosa que jogadores negros entram em um apagamento que não vem de hoje. Em 1921, por exemplo, o então presidente Epitácio Pessoa pedia que apenas jogadores brancos compusessem a seleção brasileiro na Copa América, em vias de causar boa impressão internacionalmente.


Demba Ba e o juiz Ovidiu Hategan. Foto: Ian Langsdon/EFE.

FUTEBOL COMO SÍMBOLO NACIONAL E SUAS IMPLICAÇÕES NA POLÍTICA

Felizmente, as pessoas dentro dos estádios têm cada vez mais se manifestado contra atos racistas. Em dezembro de 2020, os jogadores do PSG e do Istanbul Basaksehir se recusaram a continuar a partida válida pela Champions League e deixaram o gramado após ofensa racista feita pelo quarto árbitro em direção ao camaronês Pierre Webó, membro da comissão técnica do Istanbul Basaksehir. O quarto árbitro disse ao juiz "aquele preto ali. Vá lá e verifique quem é. Aquele preto ali. Não dá para agir assim". Demba Ba, atacante do Instanbul, disse ao quarto árbitro: "você nunca diz ‘esse cara branco’, você diz ‘esse cara’. Então por que você está mencionando ‘cara preto’? Você tem que dizer ‘esse cara preto’? Por quê?!".

O confronto foi remarcado e a equipe de arbitragem, substituída. A UEFA suspendeu o quarto árbitro da partida até o fim da temporada 2020/2021.

Se há um exemplo de racismo e os jogadores em campo não ficam indignados, então, para mim, eles são parte do - Megan Rapinoe problema.


1.4 A profissionalização do futebol Em 1933, a Confederação Brasileira de Desportos formalizou a atividade e a nova fase do futebol era quase concomitante à nova fase na política brasileira - Getúlio Vargas subiu ao poder em 1930 e, mais tarde, em 1937, instaurou a ditadura do Estado Novo, marcado por intensa opressão e privação da liberdade de opinião. Apesar disso, também foi marcado pelo memorável populismo varguista e sua incessante tentativa em incentivar um nacionalismo que legitimasse seu autoritarismo. O Estado Novo desenvolveu um processo de construção de uma nova identidade nacional e o futebol era artefato de Vargas.

O futebol teve seu crescimento acentuado nos anos 30, devido a sua profissionalização, em um cenário de intensa movimentação política no país. Os principais movimentos foram a Revolução de 30, a Revolta Constitucionalista de 32 e a instauração do Estado Novo. Em cima: Nicolino, Mingote, Nelson, Leitão, Artur, Claudionor. Embaixo: Paschoal, Torterolli, Arlindo, Cecy e Negrito | Arquivo CRVG

Adhemar de Barros, Getúlio Vargas e Prestes Maia durante uma vistoria às obras do Pacaembu | Acervo Iconographia

A LAF rejeitava a profissionalização do futebol, pois, caso acontecesse, não conseguiria distinguir as elites das camadas populares. A profissionalização correspondia tanto a uma tensão que existia entre a tradição elitista e amadora dos primórdios da prática esportiva quanto a necessidade de regulamentação nos clubes - que possibilitava, na popularização do futebol, uma crescente participação remunerada de jogadores de origem pobre e negra. O futebol refletia, assim, as tensões sociais que percorriam o país. A conquista do campeonato carioca pelo Vasco da Gama, em 1923, foi simbólica. O time rompeu, de certa forma, alguns preconceitos e também ajudou a expandir o futebol no país. O time composto por negros e mulatos passou por cima dos favoritos Flamengo, Fluminense, Botafogo e América, compostos somente por jogadores brancos.


A profissionalização passou a ser vista pelos governantes como uma ferramenta disciplinar. Portanto, a profissionalização do jogador correspondia a um movimento político e cultural, envolvendo disciplina social e a representação de uma identidade nacional forte. Foi, também, uma alternativa às camadas mais pobres, que viam no esporte uma possibilidade de ascensão social. Leônidas da Silva e Domingos da Guia, negros, são ídolos fruto dessa profissionalização. Usar do futebol como ferramenta política, como fez Vargas, se tornou estratégia para outros governantes e foi usado, inclusive, durante a Ditadura Militar. E cada novo presidente, quando assumia o poder, buscava relacionar seu nome à Seleção com o objetivo de atrelar o governo ao sucesso do futebol, que representaria o suposto reflexo de uma gestão bem sucedida. Ou seja, se o futebol vai bem, o governo vai bem e a população parece se acalmar. É a partir daí que o futebol passou a ser visto como ferramenta de alienação para distrair as camadas populares. Por outro lado, futebol e política, desde o princípio, estão em uma via de mão dupla: o que acontece em campo e nas arquibancadas é impactado pela política do país e também ajuda a conduzir o caminho da política. E como política, entendemos não apenas ideologia.

.Carlos alberto Torres na Copa de 1970 | Foto: AP/Globo Esporte

1.5 O futebol como ferramenta política

Médici cumprimenta os atletas da Seleção Brasileira no embarque para o México em 1970 (Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo)


1.6 O modo de ser brasileiro e o mulatismo Além de estratégia política, foi aí que o futebol começou a ser atribuído ao modo de ser do brasileiro. No livro “Sociologia”, Gilberto Freyre organizou seus pensamentos a respeito do mulatismo brasileiro. A brasilidade foi por ele considerada “‘dionisíaca’, individualista, emocional, impulsiva, típica da índole mulata”. Os jogos e outras práticas refletiam tal denominação. De acordo com Freyre, o mestiço brasileiro jogava um futebol que não era mais o jogo apolíneo (uma cultura formal, racional e ponderada) dos britânicos, mas uma dança dionisíaca. O “mulatismo”, aliado à malandragem e a agilidade, era o ser brasileiro. A influência negra e indígena, considerada a negação na identidade Brasil, é agora vista como a brasilidade. Consequentemente, ideias racistas passaram a ser substituídas.

A campanha na Copa de 1938 acendeu ainda mais a paixão do brasileiro pelo futebol. Neste mundial, se iniciaram as transmissões de partidas. Desde então, as partidas paravam o Brasil. Tal cobertura jornalística propiciou grande alcance ao futebol, levando a seleção para grande parte dos brasileiros, antes restrita ao eixo Rio-São Paulo. A seleção, comandada por Leônidas da Silva, o Diamante Negro, ficou em terceiro lugar. Em alusão ao resultado e ao jogador, a Lacta criou o chocolate “Diamante Negro”. Na volta dos jogadores, torcedores e políticos aguardavam o desembarque. Torcedores esses que ajudaram a financiar a viagem comprando selos comemorativos. Já os políticos, faziam questão de aparecer ao lado dos jogadores.

1.7 Os entraves do machismo. Decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941: criminalização da prática do futebol feminino No dia 14 de abril de 1941, foi promulgado por Vargas o decreto-lei que criou o Conselho Nacional de Desportos: “Art. 1º Fica instituído, no Ministério da Educação e Saúde, o Conselho Nacional de Desportos, destinado a orientar, fiscalizar e incentivar a prática, dos desportos em todo o país”. Também neste decreto, as mulheres foram proibidas de jogar futebol - lei revogada apenas em 1983.

“Art. 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. É sabido que o Brasil, assim como vários outros países ao redor do mundo, possui, de forma enraizada e estrutural – tal qual o racismo, a homofobia e outras mazelas sociais -, o machismo e a misoginia predominantes na sociedade brasileira.


E é claro que dentro do futebol isso não seria diferente, pois, como tratado anteriormente, este é mais um reflexo da sociedade. É preciso retornar à história, quando em 14 de abril de 1941, o futebol feminino sofreu um atentado e, assinado pelo até então presidente Getúlio Vargas, passou a valer o decreto-lei 3.199, que proibia mulheres de praticarem “esportes incompatíveis com as condições de sua natureza” – ou seja, força e esporte não combinavam com o papel reprodutivo que as mulheres tinham (e ainda têm) em sociedade, segundo os cidadãos conservadores da época. O grande erro que envolve esse decreto é que mulheres não só podem praticar esportes intensos como futebol, como devem e são mestras nisso. Não é à toa que temos inúmeros nomes reconhecidos no futebol feminino – Marta Vieira da Silva, Cristiane Rozeira, Megan Rapinoe, Pernille Harder, Alex Morgan, Miraildes Maciel Mota (mais conhecida como Formiga), Dzsenifer Marozsán e Julie Ertz são apenas algumas delas. A proibição da prática do futebol feminino no Brasil causou danos difíceis de serem reparados, sendo um dos mais polêmicos a desigualdade salarial entre homens e mulheres no esporte (não que esse fato exista somente nos esportes). São questões que ainda perduram, principalmente pelas próprias autoridades do país, que com seus pensamentos retrógrados e fechados não dão o devido valor à ilustre e premiada presença feminina no futebol.É o caso do atual presidente Jair Bolsonaro que, ao criticar uma questão do ENEM –

Exame Nacional do Ensino Médio -, afirmou: “futebol feminino ainda não é uma realidade no Brasil”. Mas foi em 2019 quando Marta, camisa 10 da seleção brasileira de futebol feminino, após realizar um gol, apontou para sua chuteira que, ao invés de marcas patrocinadoras estampadas, havia uma bandeira simbólica a favor da igualdade de gênero dentro dos esportes em geral. A bandeira é do movimento GoEqual, que reivindica “Bola igual. Campo igual. Regras iguais”. O movimento diz que “se as mulheres jogam futebol da mesma forma que os homens, por que elas não recebem o devido reconhecimento? O devido apoio? A devida remuneração?...”. O gesto praticado pela jogadora embaixadora global da ONU Mulheres (Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres) chamou atenção, afinal, o cenário contextual era – nada mais e nada menos – a Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2019. A camisa 10 está desde julho de 2018 sem acordo com patrocinador de material esportivo. Mesmo recebendo propostas, recusou, pois, de acordo com ela, estavam abaixo do contrato anterior e “muito abaixo do que a gente vê no futebol masculino”. Para Marta, as recusas foram “mais uma oportunidade de lutar pelos nossos direitos. Há uma diferença muito grande em relação a salários, e a gente tem que estar sempre lutando para provar que é capaz”. Exibir sua chuteira vazia, não só representou igualdade para si e suas companheiras de trabalho – o ato foi maior e mais à fundo;


Marta conquista Copa América com a Seleção Brasileira em 2018 | Foto: Reprodução / Instagram

A FORÇA INIGUALÁVEL DE UMA VOZ QUE SE POSICIONA

Vale frisar que Marta é, entre homens e mulheres, a maior artilheira da Copa de todos os tempos e a única a marcar gols em cinco edições diferentes. O jornalista e pesquisador Celso Unzelte vai ainda mais longe e reforça que não só o decreto de Getúlio Vargas prejudicou o desenvolvimento do futebol feminino, como também o “pensamento de uma época”. Complementa que “seria bom se o tempo perdido pela mulher fosse só no futebol feminino. O problema é que não é só no futebol feminino, é na sociedade. E muita coisa ainda há de ser conquistada”.

Em 1950, o futebol brasileiro causou uma desolação em massa dos torcedores, após sua derrota na final da Copa, contra a seleção do Uruguai. Toda a expectativa criada acerca da seleção foi tragicamente destruída na final. Havia um clima de campeonato ganho, mas a derrota na final e toda a frustração deixou 200 mil pessoas caladas no Maracanã, fato que ficou conhecido como Maracanazo. Sem ter a quem culpar, alguns jogadores negros foram responsabilizados pela derrota, como o goleiro Barbosa, o que alimentou algumas superstições nos brasileiros, dentre elas, evitar goleiros negros e trocar a camisa branca da seleção - foi aí que surgiu a camisa amarela.

Foto: Pascal Guyot / AFP

1.8 FATO CURIOSO - Maracanazzo

“O Pelé do futebol feminino”? Não para Giovana Pinheiro, que acredita que precisamos permitir que existam ‘ídolas’ mulheres e parar de ligar ao homem as referências femininas. Para a jornalista, não tem ninguém como a Marta e ninguém com a longevidade da Formiga, por exemplo.


Pelé e Garrinha em foto de Luiz Carlos Barreto

1.9 O início do rei

Aos 17 anos, a seleção brasileira mostrou ao mundo quem viria ser o maior nome do futebol: Pelé. Em seu jogo de estreia, contra a União Soviética, Pelé e Garrincha encantaram os telespectadores. A dupla foi, de certa forma, responsável pela vitória da seleção brasileira no mundial de 1958. O mineiro de três corações foi considerado o melhor jogador jovem do mundial. Pelé, jovem negro, e Garrinha, o craque das pernas tortas, de descendência indígena, representavam o “mulatismo” brasileiro.Na Copa de 62, a dupla de 58 era esperança. Porém, logo no segundo jogo da competição, Pelé sofreu uma lesão muscular, teve que ser substituído e ficou de fora do restante do campeonato. Mesmo com a ausência do craque, a seleção conseguiu superar os adversários e levantou a taça do bicampeonato. O elenco, mais uma vez, contou com o anjo das pernas

tortas. Considerado o herói daquele ano, Garrincha jogou a final mesmo com 38º de febre.

1.10 A Ditadura Militar e o futebol Em 1964, o presidente do Brasil era João Goulart. Jango tinha fama de comunista por sua ligação com sindicalistas e propostas de transformações sociais que objetivavam reduzir a desigualdade social e trazer desenvolvimento ao país. Vários setores, insatisfeitos com o presidente, se articularam para retirá-lo do poder. Nesse momento, é alimentado no país uma ideologia conservadora e nacionalista. As rebeliões cresceram e os parlamentares declararam a presidência vaga, consolidando o golpe de 64 e iniciando uma nova etapa autoritária, a Ditadura Militar (1964-1985).

1.11 "Ninguém segura esse país" Ao longo da ditadura, cinco Copas do Mundo foram disputadas, e apenas uma vencida pela seleção brasileira, a de 1970. A propaganda política, assim como o sentimento de invencibilidade, era forte. O slogan mais famoso da época era "ninguém segura esse país”. O presidente Médici tinha o futebol como principal meio para manter a estabilidade do regime militar e fazia questão de associar seu nome com a seleção, ligando para os atletas ou assistindo às partidas. Essa relação o deixava mais próximo do brasileiro e relacionava ditadura com a Seleção, realçando o papel da disciplina e da hierarquia. O caminho para o sucesso: controlar os ânimos.


1.12 AME-O ou DEIXE-O (Copa de 70)

Para os brasileiros do fim da década de 60 e início da de 70, era muito complicado não amar a Seleção Brasileira. Segundo a opinião de diversos especialistas, a equipe que venceu o mundial de 1970 no México pode ser, tranquilamente, tratada como o melhor esquadrão da história do futebol. Com cinco craques, incluindo Pelé, municiando Jairzinho, o Brasil fez uma campanha impecável e despertou o sentimento de amor à pátria. E foi esta qualidade indiscutível daquele time que potencializou uma arma política importante da Ditadura Militar no Brasil. Logo um ano e meio após o mais cruel ato da Ditadura, o AI-5, o qual foi instituído em 13 de dezembro de 1968, o Brasil entrava em uma Copa do Mundo buscando o tricampeonato, enquanto era governado por um dos mais cruéis líderes do país. Emílio Garrastazu Médici foi presidente do Brasil entre 1969 e 1974 e foi responsável por um dos momentos mais aterrorizantes da história da nação. Mesmo assim, em junho de 1970, boa parte dos brasileiros estavam felizes com o governo, com o país e com a vida por causa do título mundial. Por estar em uma ditadura que escondia, silenciava e manipulava várias questões importantes, a população ficava sabendo apenas do que o presidente permitia que fosse divulgado. Por isso, a alienação era recorrente e, quando Médici tentava vender uma imagem positiva para a população, ele conseguia.

Portanto, ao notar o grande futebol apresentado pelo esquadrão de 70, Médici se apropriou das cores, exalou sentimento pela seleção e pelo país, e destacou várias vezes que era um homem do povo, apaixonado por futebol.A fim de evidenciar ainda a importância de estar ao lado do seu país para estar junto à seleção de futebol, um dos mais importantes lemas da Ditadura Militar foram usados: ame-o ou deixe-o. Era claro a imposição da ideia que se você amasse o futebol brasileiro, o qual era, praticamente, unanimidade e despertava amor em todos, você deveria amar o seu país. Tratava-se de uma clara imposição de uma linha de pensamento extremista e nacionalista, ao passo que era um evidente abuso à imagem dos atletas campeões mundiais. Ele sabia da importância cultural do esporte no país e se apropriou da força daquela Seleção. Além de conectar a imagem da seleção ao governo, Médici controlava a própria equipe que representava o país. Um dos casos mais emblemáticos desta interferência do ditador brasileiro no futebol aconteceu em março de 1970, menos de três meses antes do mundial daquele ano. Médici tentou interferir na escalação do técnico João Saldanha e o treinador não aceitou que o presidente escalasse o seu time. O famoso ‘João Sem Medo’ ainda destacou uma frase marcante: “nem eu escalo ministério, nem o presidente escala time”. Saldanha, militante de esquerda e completamente opositor ao governo, se impôs contra o ditador e pagou caro por não se curvar à postura de Médici:


1.13 A Ditadura Militar e o Futebol Vencer uma de cinco Copas, porém, não era satisfatório para o regime militar. Com tantos fracassos, criou-se um clima de crise no futebol brasileiro. A Copa de 74 foi o fim da era Pelé. O "carrossel" holandês se destacou naquele período com uma ideia tática de disciplina. Aqui, a ideia de mulatismo foi deixada para trás em detrimento à hierarquia e à disciplina. Porém, a ascensão de tantos ídolos com os elementos do “mulatismo” manteve a identidade brasileira marcada por esse conceito. A Copa de 78 foi encarada com clima de obrigação. Naquele ano, a pressão sobre o futebol era enorme. Não havia mais o clima de leveza, de “futebol arte”

João Saldanha comanda o Botafogo no jogo final do campeonato carioca de 1957 contra o Fluminense | Reprodução: ACERJ

foi demitido, ainda que estivesse indo muito bem com a Seleção - ficou claro que as ideias políticas do treinador foram a motivação. Depois da saída de Saldanha, a Seleção contratou Zagallo, foi campeã do mundo com um time de gênios, mas, infelizmente, contava com a presença de militares em todos os treinamentos, com repassavam as informações diretamente para Médici. Enfim, o futebol foi o famoso “pão e circo”, como na Roma antiga, onde o futebol era fomentado a fim de mascarar todos os problemas ditatoriais. Com a “obrigação” de amar ou deixar o país, o sentimento de pertencimento à pátria por causa do alto nível da seleção colocava o povo ao lado do governo daquela época. A Copa passou e o Brasil foi tricampeão mundial. A Ditadura continuou e muitas vítimas deste regime sequer viram o tetra ou penta campeonato.

na seleção, visto agora como improvisado e desorganizado. A malandragem e a irracionalidade passaram de fórmula do sucesso para empecilhos. A fim de conquistar a taça, o comando da seleção, inclusive técnico, foi alterado pelos militares. Cláudio Coutinho era o responsável técnico da seleção e tinha a tarefa de racionalizar e disciplinar o esquema de jogo. Mesmo invicto, o Brasil terminou a competição em terceiro lugar. Por ficar com menos saldo de gols que a Argentina, a campeã, a seleção não foi à final. A seleção brasileira só voltaria a vencer uma Copa do Mundo em 1994. Até lá, a hegemonia da seleção foi colocada à postos.


Nos anos 80, começa o processo de redemocratização do país. Na política, há a criação de novos partidos e o surgimento de novos líderes. Atos em protestos, como a democracia corinthiana, exigiam o fim da ditadura militar.

Nós temos cada vez menos atletas interessados nisso (manifestações políticas). Toda vez que a gente fala de participação, principalmente de jogadores de futebol brasileiros, apelamos pros velhos ícones de um passado que está cada vez mais distante, como Sócrates e Reinaldo.

- Celso Unzelte

1.15 "Ganhar ou perder, mas sempre com democracia" “Eles nunca trabalharam tão felizes”, disse o jornalista, professor e historiador Celso Unzelte ao ser perguntado sobre os remanescentes da democracia corinthiana. O movimento que dominou um dos clubes mais populares do futebol brasileiro, o Sport Club Corinthians Paulista, é tratado como a maior revolução dentro de uma equipe futebolística do Brasil e fez parte de uma ação importantíssima na década de 80. A democracia corinthiana foi um processo revolucionário liderado por jogadores do Corinthians a partir de 1982, em um momento que o Brasil começava a pedir pelo fim da ditadura militar e gritavam por “diretas já”. Casagrande, Wladimir, Zenon e, principalmente, Sócrates comandaram um movimento que incendiou questões sociais externamente, além de conseguirem impor uma democracia única internamente no futebol.

Democracia corinthiana. Foto: Trecho do filme “Democracia em Preto e Branco”/Reprodução.

1.14 Democracia Corinthiana


Dentro do próprio clube, estes jogadores conseguiram quebrar a hierarquia existente. Todos os funcionários tinham direito de optar sobre assuntos da equipe, ou seja, desde o roupeiro até o presidente, passando pelos jogadores, todos tinham a mesma importância: eles chegaram a escolher o próprio técnico. A democracia, tão sonhada fora do clube, foi instaurada internamente. Até por isso, como destacado por Celso Unzelte em entrevista exclusiva, os funcionários daquela época afirmavam que nunca haviam trabalhado com tanta felicidade. Um ambiente conquistado dentro do Corinthians e sonhado para o país. Com a consciência do momento vivido e ao entender a sua importância na sociedade, Sócrates e companhia se manifestaram de forma direta pela redemocratização, tema que estava começando a ganhar notoriedade em meio à população. Após quase 20 anos de Ditadura, os atletas do Corinthians encabeçaram um movimento histórico. Segundo Celso Unzelte, a democracia corinthiana não derrubou a ditadura, mas foi parte importante daquele momento histórico. Naquela década, a redemocratização estava presente em diversos lugares como escolas, fábricas e tomou conta do Corinthians. Além dos jogadores politizados, o time paulista contava com um jovem sociólogo: Adílson Monteiro Alves era o diretor de futebol e deu muita força à revolução pretendida pelos atletas, visto que a movimentação era consentida pelo patrão, como afirmou o jornalista Celso Unzelte.

O apoio foi crucial à integração do próprio clube na tentativa dos jogadores, pois era um sociólogo pensando em uma mudança social juntamente a atletas politizados. Exatamente por isso, a democracia corinthiana foi tão marcante. Mesmo em meio a uma época tão tenebrosa como a ditadura, os atletas se movimentaram, mudaram a estrutura interna do clube por uma época conseguiram bons resultados esportivos durante a democracia dentro da equipe - e estimularam uma parte da população. Com ídolos nacionais como Sócrates, jogador que esteve na Copa de 1982 e era um dos craques da época, o Corinthians conseguiu expor a sua posição em diversos jogos. Com frases no uniforme como “Diretas Já” e “Eu quero votar para presidente”, o objetivo da democracia corinthiana ganhou muita exposição e seguiu conquistando força nas ruas que já suplicavam pelo fim da ditadura. É incalculável o impacto de ver um time em campo com a escrita “Democracia Corinthiana” nas costas. As “diretas já” não ocorreram somente por causa da movimentação do clube paulista, mas a manifestação política do clube foi parte de uma mudança histórica do Brasil. Com o slogan “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”, o Corinthians da década de 80 entrou em campo com amor à camisa, ao esporte e, principalmente, à sociedade.


O viés esportista, competitivo e de disputa permaneceu no time corinthiano, ao mesmo tempo que eles sabiam da importância de retomar a democracia. Independentemente da vitória ou derrota, o Corinthians queria poder para o povo Isso foi um movimento único e revolucionário da política no esporte mais popular do Brasil. Ao ser perguntado sobre qual o gatilho para a atual geração de jogadores se posicionarem desta forma, Celso Unzelte foi enfático ao afirmar que o país teria que chegar ao “fundo do poço” para que estes atletas atuais entendessem a sua importância no momento político. Mesmo quase 40 anos depois, a democracia corinthiana merece ser destacada e faz parte da história do Brasil. O futebol esteve junto à luta contra a ditadura militar. Mesmo após o seu falecimento, Sócrates segue sendo um dos personagens mais marcantes contra governos extremistas do Brasil. Casagrande segue como articulador contra este extremismo, pois, após deixar o campo de jogo, se tornou comentarista da TV Globo e não hesita ao fazer comentários políticos. São vozes eternas de uma revolução marcante do Corinthians!

1.16 Atos políticos, partidários ou não, atuais Entendemos como política a arte ou ciência da organização, direção e administração de nações ou Estados. Sendo assim, política diz respeito à participação na comunidade, e não se restringe ao partidarismo e ao ato de trabalhar com política.

O futebol é político por ser usado como cenário para qualquer manifestação, partidária ou não, ou por refletir o que acontece fora dos gramados. Foram mencionadas ao longo do texto participações políticas no futebol. Para alguns, o gramado é o local perfeito para se ter visibilidade em certas questões. Para outros, o tema não é tão interessante. De acordo com Celso Unzelte, os jogadores que temos como referência hoje não têm essa preocupação e dão prioridade para outros assuntos, como a rede social e as brincadeiras. Ele completa dizendo que “o atleta que faz do futebol um meio e não um fim ganha muitos pontos como cidadão. Não é uma obrigação [se manifestar]. Não vejo a obrigação de todo mundo ter que fazer isso. Mas fico chateado quando vejo que poucos ou quase ninguém faz isso”. Além disso, ele destaca que os jogadores que se ascenderam socialmente pelo futebol não veem motivos para ir contra aquilo que os fez conseguir conquistar algo.

Ato político é toda manifestação de vontade do poder público que, por sua condição toda especial, escapa à revisão do Poder Judiciário, constituindo esse tipo de ação não uma exceção ao princípio da legalidade, mas à competência do juíz, o qual não tem possibilidades de fiscalizá-lo, se a isso for provocado. - J. Cretella Júnior


Foto: Eduardo Camim/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

Felipe Melo, volante do Palmeiras, já se manifestou diversas vezes a favor do atual Presidente da República, Jair Bolsonaro. A mais recente delas foi em um clássico contra o São Paulo, onde o jogador gestou uma “arminha” durante o hino nacional. Mesmo antes das eleições de 2018, o jogador já se posicionava. Em entrevista retirada do site UOL, Felipe diz que admira “a maneira com que ele fala com a imprensa, o jeito sincero, é um cara que responde a tudo. E no Brasil não estamos acostumados a isso, estamos acostumados ao politicamente correto, que falem o que querem ouvir. Gosto que seja um cara transparente, correto e verdadeiro". Em 2018, Bolsonaro participou da festa do título do campeonato brasileiro do Palmeiras.

1.18 A manifestação contrária de Paulo André

Em outubro de 2018, os jogadores do Athletico Paranaense entraram em campo com uma camisa amarela com os seguintes dizeres em verde: "Vamos todos juntos por amor ao Brasil” - frase utilizada pelos eleitores do atual Presidente. Em oposição ao ato, Paulo André, naquela época zagueiro, e hoje atual diretor de futebol do Athletico Paranaense, se recusou a exibir a camiseta e entrou em campo com uma jaqueta do clube. Paulo André, até então, havia sido o único jogador a assinar o manifesto “Democracia sim, contra Bolsonaro”. A política também interfere nos rumos do futebol. Em 2019, a final da Copa Libertadores estava marcada para ser disputada em Santiago, no Chile. Porém, uma onda de protestos no país impossibilitou a realização da final da Libertadores.

Foto: estadão conteúdo

1.17 Felipe Melo e o apoio ao presidente


1.19 Copa América 2020 A Copa América 2020 foi adiada para o ano de 2021 por causa da pandemia do novo coronavírus. Estava prevista a realização da competição em dois países-sede, pela primeira vez: Argentina e Colômbia. Mesmo com a pandemia a todo vapor na América do Sul, a CONMEBOL não abriu mão de realizar o torneio, principalmente por questões financeiras. Em maio, começou uma série de protestos na Colômbia em reação, principalmente, à reforma tributária proposta pelo governo do presidente Iván Duque que aumentaria os impostos

na pandemia. Mesmo após o presidente derrubar a proposta e demitir o Ministro da Economia, os protestos continuaram e se intensificaram. Até hoje, junho de 2021, os protestos acontecem e a população colombiana se mostra bastante insatisfeita, frente às consequências da repressão policial e aos mortos e feridos. No dia 20 de maio de 2021, o presidente Ivan Duque pediu o adiamento da competição e a CONMEBOL publicou que, “Por motivos relacionados ao calendário internacional de competições e à logística do torneio, é impossível transferir a Copa América 2021 para o mês de novembro”. A situação da pandemia no país também foi motivo para os protestantes. Sendo assim, devido a agitação nacional na Colômbia - por questões sociais e de saúde -, o país deixou de ser sede da Copa América. Menos de um mês antes do início da competição, o presidente da Argentina Alberto Fernandez anunciou que a Argentina vivia o pior momento da pandemia.

Manifestantes contra Copa América na Colômbia. Foto: Getty Images

O aumento da tarifa do metrô foi o estopim para o início das manifestações no Chile, que levou às ruas mais de um milhão de pessoas, provocou anúncio do estado de emergência, toque de recolher, mortos e detidos. No início de novembro, a Confederação SulAmericana de Futebol anunciou que a final da competição ocorreria em Lima, no Peru, devido aos protestos que tomaram o país.


Entre medidas de lockdown em algumas regiões e restrições, a realização do evento ainda parecia continuar na Argentina. Porém, no dia 30 de maio, duas semanas antes do início da Copa América, a CONMEBOL anunciou que a Argentina não seria mais a sede do campeonato. Um dia depois, o Brasil foi anunciado como a única sede da competição. Mesmo com a reprovação da população, o governo de Jair Bolsonaro manteve a realização do evento no país. “De fato, é uma aberração fazer Copa América num país onde a gente está batendo 500 mil mortos” - Celso Unzelte. Segundo Celso, pior que a Copa América, é todo o contexto restante. É a hora de pensar que o espetáculo pode parar. Depois do anúncio oficial da CONMEBOL sobre a realização da Copa América no Brasil, a imprensa começou a tratar da possibilidade dos jogadores brasileiros e de outras seleções não disputarem a Copa América - os jogadores que atuam em clubes europeus faziam a ponte com jogadores de outras seleções para um possível boicote à competição. Aparentemente, por motivos financeiros, o boicote não foi aprovado por seleções que têm a maioria dos jogadores atuando em solo nacional. Aos poucos, as seleções foram se manifestando como garantidas no torneio. Os jogadores do Brasil não gostaram da forma como ficaram sabendo, por meio da imprensa, que a Copa América ocorreria aqui. Os convocados para as eliminatórias, que haviam estado na presença do agora licenciado presidente Rogério Caboclo, se decepcionaram por

não saberem da boca dele que o Brasil seria sede. De acordo com o GE, parte do elenco se reuniu com Rogério Caboclo exigindo que ocorressem as Eliminatórias nas datas da Copa América, e que a questão técnica pesou para a decisão ser favorável a disputar a competição. No dia 4 de junho, após vitória do Brasil sobre o Equador pelas Eliminatórias, o capitão Casemiro deu a entender, em uma entrevista, que os jogadores se manifestariam contra a participação deles na Copa América. O volante disse que iriam se pronunciar sobre os bastidores no “momento oportuno” e que se posicionariam politicamente. “Nosso posicionamento todo mundo sabe, mais claro impossível. Tite deixou claro nosso posicionamento e o que nós pensamos da Copa América. Existe respeito e uma hierarquia que temos que respeitar, e claro que queremos dar nossa posição.” O tal posicionamento, agora em forma de manifesto, seria no dia do jogo do Brasil contra o Paraguai, terça-feira, 08/06, pelas Eliminatórias. Se parte da população brasileira esperava algo grande dos jogadores, fosse um posicionamento forte ou até a desistência da participação no torneio, se decepcionou. Antes da partida, os atletas da seleção postaram em seus perfis no Instagram, mais especificamente nos “stories” do Instagram, que tem o tempo de 24 horas para visualização, uma breve mensagem aos torcedores.


O manifesto na íntegra: "Quando nasce um brasileiro nasce um torcedor. E para os mais de 200 milhões de torcedores escrevemos essa carta para expor nossa opinião quanto à realização da Copa América. Somos um grupo coeso, porém com ideias distintas. Por diversas razões, sejam elas humanitárias ou de cunho profissional, estamos insatisfeitos com a condução da Copa América pela Conmebol, fosse ela sediada tardiamente no Chile ou mesmo no Brasil. Todos os fatos recentes nos levam a acreditar em um processo inadequado em sua realização. É importante frisar que em nenhum momento quisemos tornar essa discussão política. Somos conscientes da importância da nossa posição, acompanhamos o que é veiculado pela e estamos presentes nas redes sociais. Nos manifestamos, também, para evitar que mais notícias falsas envolvendo nossos nomes circulem à revelia dos fatos verdadeiros. Por fim, lembramos que somos trabalhadores, profissionais do futebol. Temos uma missão a cumprir com a histórica camisa verde amarela pentacampeã do mundo. Somos contra a organização da Copa América, mas nunca diremos não à seleção brasileira."

Torcedor após goleada na semifinal: Alemanha 7 x 1 Brasil (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Torcida brasileira lotou o Allianz Parque, que registrou recorde de público no futebol brasileiro (Foto: Reprodução/TV Globo)

Após o jogo contra o Paraguai, Marquinhos, zagueiro da seleção, disse em entrevista que “existe uma hierarquia. Somos cientes do nosso papel importante, mas em momento nenhum negamos vestir essa camisa”. Na sala de imprensa, o zagueiro reafirmou o posicionamento dos atletas em relação a jogar ou não a Copa América: “Mas quem falou que o momento era de não jogar? A gente entende o trabalho de jornalistas e repórteres, mas eles têm

que ter muito cuidado com as informações que eles passam, principalmente porque depois a gente é julgado por coisas que não são os fatos verdadeiros. Isso aqui é nosso sonho de criança(...). Em momento algum a gente disse que se recusaria a vestir essa camisa(...). A gente respeita muito o trabalho, mas eles não podem afirmar uma coisa assim, onde nem sabem se é verdade ou não”.


Marquinhos negou a existência de qualquer posicionamento político. Para ele, “cada um tem sua opinião. Todos têm liberdade de se expressarem politicamente. Não vem ao caso nesse momento, ainda mais com a camisa da seleção brasileira” e completou com: "se cada um quiser se expressar politicamente, que faça isso no momento em que estiver em sua casa, no seu momento pessoal". A fala de Casemiro e a procura de apoio dos jogadores brasileiros para um possível boicote não condiz nem com o manifesto publicado, que critica a CONMEBOL, nem com a fala do zagueiro Marquinhos. Quando circulou a ideia de que os jogadores e o técnico Tite estariam dispostos a não jogarem a Copa América, baseadas em entrevistas de Tite e de Casemiro, o presidente, agora licenciado - afastado da presidência da CBF após denúncia por assédio moral e sexual -, Rogério Caboclo, disse ao governo federal, de acordo com André Rizek, que a seleção teria um novo técnico. O nome cogitado por Caboclo era o de Renato Gaúcho, apoiador de Jair Bolsonaro. Tite, após as suspeitas de ser contra a Copa América, recebeu inúmeras ofensas dos eleitores do Presidente da República. Para o governo federal, a vitória do Brasil na presença do presidente da república seria favorável ao presidente J. Bolsonaro. Júlio de Oliveira e Celso Unzelte concordam que o fato de terem se manifestado, mesmo de maneira branda, já é algo positivo.

O locutor acredita que pode ser o começo para que outras situações em que eles possam se manifestar aconteçam e que, para ter representatividade, a classe de jogadores precisa se unir mais. O comentarista da ESPN não viu muita coesão no movimento, que teve desfecho decepcionante, mas que, pelo menos, fez barulho.

1.20 Assédio não! No dia 4 de junho, uma matéria publicada no GE pela jornalista Gabriela Moreira e pelo jornalista Martín Fernandes tornou pública uma denúncia de assédio sexual e moral por uma funcionária da CBF contra o presidente da entidade Rogério Caboclo. O Conselho de Ética da CBF optou por afastar Caboclo por, pelo menos, 30 dias. Os jogadores da seleção brasileira, mesmo insatisfeitos com o presidente por não terem sido avisados sobre a realização da Copa América no Brasil, não se pronunciaram sobre as acusações. Por outro lado, no dia 11 de junho, as jogadoras da Seleção feminina entraram em campo com uma faixa escrita “assédio não!” “As mulheres sentem na pele, muito mais que os homens, algumas questões, como o assédio, a desvalorização profissional, a maneira com que são tratadas no próprio futebol feminino, que agora está conseguindo um espaço de respeito, muito tardio. Então é natural que as mulheres se posicionem com muito mais ênfase, porque elas são agentes desse processo de uma maneira que os homens não são.


Foto: Richard Callis/SPP/CBF

Tem também o lado que os homens têm muito mais a perder - perder patrocínio, perder visibilidade. É difícil cobrar dos jogadores de futebol de irem contra ‘a galinha dos ovos de ouro’, principalmente quando tem uma origem mais humilde. A ênfase com que as mulheres encaram esses assuntos é louvável” - Celso Unzelte.

1.21 Homofobia no futebol Infelizmente, a homofobia é extremamente enraizada no futebol, assim como na sociedade, e é sustentada por muitos daqueles que consomem o esporte. É comum encontrarmos declarações como a do juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, da 9ª Vara Criminal de São Paulo, que diz que “futebol é jogo viril, varonil, não homossexual”. Um caso emblemático ocorreu em 2012, quando a organizada Mancha Alviverde promoveu, em frente ao portão da Academia de Futebol do Palmeiras, uma faixa com a seguinte frase: “A homofobia veste verde”, como ato de desaprovação à contratação do jogador Richarlyson, ex-São Paulo. A diretoria do Palmeiras desistiu da contratação. O assunto praticamente não repercutiu na mídia esportiva e a história não teve um desfecho digno.

Os atos homofóbicos são recorrentes, como o grito de “ô bixa” que as torcidas ecoavam nos estádios, até muito recentemente, quando o goleiro adversário batia os tiros de meta. Este se trata de um ato escancarado, que torna ainda mais raro os jogadores que se assumem gays justamente pela humilhação em campo e pelo medo das consequências para a carreira. Felizmente, as cantigas homofóbicas presentes nas músicas das arquibancadas e até mesmo os gritos homofóbicos começaram a ser, recentemente, questionados. Em agosto de 2019, o STJD determinou punições aos clubes com gritos homofóbicos cantados nos estádios. A orientação é para que árbitros e auxiliares relatem qualquer ofensa homofóbica, que será enquadrada como atitude indisciplinar. Em março de 2020, o São Paulo foi multado pelo Tribunal de Justiça Des-


Giovana Pinheiro acredita que é necessário os/as atletas se posicionarem para que, dessa forma, movimentem toda a estrutura ao seu redor, e entende tanto quem se posiciona quanto quem se mantém calado para não ser punido - as punições afastam e deixam os/as atletas com medo -, já que a sociedade não está pronta para aceitar opiniões diferentes da dela. Megan Rapinoe. Foto: Reuters

portiva por causa dos gritos de “bicha” ecoados pela torcida em clássico contra o Corinthians. O assunto é cada vez mais abordado dentro do futebol e a sociedade exige cada vez mais medidas punitivas para frear práticas homofóbicas. No dia internacional contra a LGBTfobia, por exemplo, vários clubes se manifestaram contra a homofobia e exigiram respeito. Celso Unzelte destacou o papel do Esporte Clube Bahia em suas redes sociais pelos seus posicionamentos de cidadania. Em entrevista exclusiva, ele disse que o futebol ainda continua um meio retrógrado, que não evoluiu tanto quanto a sociedade. A norte-americana Megan Rapinoe, uma das melhores futebolistas da história, é assumidamente lésbica. Por não sentir que tenha sua liberdade protegida pela bandeira dos EUA, a jogadora se recusa a cantar o hino nacional. Enérgica em suas falas, fez um belo discurso em 2019, durante prêmio FIFA de melhor jogadora da temporada, dando mais palco à questão da homofobia. Entre suas falas, deixou claro sua esperança de que todos se posicionem contra a homofobia : “Se todos se posicionassem contra a homofobia como as jogadoras LGBT fazem para jogar futebol...”. Completou com: “temos grandes oportunidades, temos grande sucesso, uma grande plataforma. Temos a oportunidade de usar esse jogo lindo para realmente mudar esse mundo para melhor”.


1.22 Conclusão

O futebol, especificamente, foi fundamental na construção da identidade brasileira. Uniu o país, gerou um sentimento de nacionalismo, determinou a miscigenação como fundamental na cultura do país e, de certa forma, possibilitou alguma inclusão aos negros, indígenas e mestiços. As alegrias aos brasileiros com as vitórias nas Copas Mundiais, o futebol como propaganda de governos e como oportunidade de ascensão social geraram uma sensação de pertencimento à nação. Desde então, o futebol faz parte do patrimônio cultural do país. Atualmente, por outro lado, diversos fatores distanciaram o torcedor brasileiro do futebol e, principalmente, da seleção brasileira. Dentre eles, está a (re)elitização do esporte, que impede o acesso dos mais pobres devido ao preço dos ingressos e ao preço dos materiais oficiais dos times, por exemplo; a desesperança no futebol da seleção; a queda do nível dos campeonatos, que faz do Brasil uma grande peneira de jogadores para outros continentes, principalmente para a Europa; e a polêmica data FIFA - por comum acordo, os campeonatos nacionais não param durante jogos da seleção, o que desfalca os times que têm jogadores convocados. Além dos fatores destacados acima, uma lei promulgada em 14/04/1941, pelo governo Vargas, proibiu as mulheres de jogarem futebol - se tornou crime. Tal legislação afastou as mulheres do esporte e retardou o desenvolvimento/crescimento delas no mesmo.

Portanto, é possível concluir que o futebol não está à margem dos acontecimentos políticos. O futebol, assim como qualquer outro esporte, é política. Seja pela forma com que se deu seu desenvolvimento, por ser usado como palco para qualquer manifestação, seja partidária ou apenas política, ou por refletir, em campo, o que acontece fora dele. Para Júlio de Oliveira, locutor do Grupo Globo, “Qualquer lugar pode ser de manifestações políticas ou partidárias. Como isso vai ser colocado, como isso vai ser usado, em que momento vai ser usado, quem vai usar e se vai ser bem aceito, aí já é outro ponto, porque passa pelo direito de quem acompanha, de quem assiste. Objetivamente, sim (o futebol pode ser um espaço para manifestações). Se vai ter resultado, é outro ponto”.


FUTEBOL&POLÍTICA: DOIS LADOS DE UMA MESMA MOEDA?

Memorável comemoração de Sócrates aos gols | Reprodução: Trivela

As duas coisas não podem ser vendidas separadamente. O futebol não está fora do mundo, ele faz parte. E política não é só a política partidária. Política é posicionamento. Inclusive, você faz política quando tá dizendo que futebol e política não podem se misturar. É um tipo de política. Alguma coisa você quer com isso: ou você quer a manutenção da política do jeito que ela é ou você quer a manutenção do futebol do jeito que ele é, mas alguma mensagem você está passando com isso. Então não existe essa condição do futebol e da política estarem separados. É tudo junto. O futebol não é um mundo à parte. E nem a política é um mundo à parte. Só que a política é um mundo mais abrangente. São coisas indissociáveis. Com a força do futebol nesse país, é uma covardia você não colocar o futebol a serviço de outras questões. Se é a língua que as pessoas entendem, então vamos, através do futebol, passar mensagens. Eu acho que é uma responsabilidade da qual, sejam os jogadores, sejam os jornalistas, enfim, todos que estão envolvidos nessa prática não podem fugir. Futebol é uma linguagem do país. É um traço cultural do brasileiro. É um traço de expressão. Então ele precisa, sim, ser um canal para expressão, inclusive para expressão política. - Celso Unzelte


ENTREVISTA

COM CELSO UNZELTE

Celso Dario Unselt é um jornalista, escritor e pesquisador paulistano, especialista na área de esportes. Atualmente, atua como comentarista de importantes canais de televisão, como ESPN e Tv Cultura, além de lecionar no curso de jornalismo da Universidade Cásper Líbero.

UM A UM: Você enxerga o futebol como ferramenta de alienação? Celso Unzelte: Não, eu não enxergo não! Se o futebol é ferramenta de alguma coisa, é ferramenta de cidadania. O futebol é um meio, não é um fim. Num país como o Brasil, o futebol é um traço cultural antes de tudo, então, ele tem um poder muito grande. É uma ferramenta eficaz de comunicação com várias classes sociais, várias faixas etárias. É por isso que é tão importante que a gente não dissocie o futebol dos tais outros assuntos - da política, no caso. Em algum momento da história até havia motivos pra isso, né?! O futebol, o esporte, em geral, é usado desde a roma antiga na política de pão e circo, para anestesiar as massas. Então, quando bem administrado, é um meio abençoado de passar outras mensagens, de abrir a mente das pessoas para outros interesses e como uma maneira de motivar o interesse das pessoas, principalmente dos jovens ou das classes menos privilegiadas UM A UM: Na sua opinião, os atletas dentro do futebol, devem usar o palco que tem para se manifestarem politicamente? E, quando eu digo politicamente, não estou me restringindo a questões partidárias e ideológicas.

Celso Unzelte: É, eu acho que isso vai de cada um, né? O grande problema é que nós temos cada vez menos atletas interessados nisso. Toda vez que a gente fala de participação, especificamente de jogadores de futebol brasileiros, apelamos pros velhos ícones de um passado cada vez mais distante: Sócrates, Reinaldo. Quando muito tivemos mais recentemente a participação do Paulo André, ali no “Bom Senso”, mesmo o “Bom Senso'' não propunha uma ruptura; ele propunha um consenso. E mesmo assim foi rechaçado pela CBF, né? Eu acho que a gente tem um problema estrutural aqui no Brasil que os jogadores que conseguem a ascensão social pelo futebol, a maioria deles, infelizmente, não se vê nessa condição de ir contra o status quo, né? Muitos deles não veem motivos para contestação porque se enxergam e, de fato, são privilegiados. Aí fica muito difícil a gente pedir pras pessoas tomarem essa iniciativa, né? Só temos a lamentar que, em outras gerações, nós tínhamos mais pessoas. Mas, respondendo diretamente à sua pergunta: sim, sem dúvida, eu acho que o atleta que faz do futebol um meio e não um fim, ganha muitos pontos como cidadão. Não é uma obrigação, mas fico chateado quando vejo que poucos ou quase ninguém faz isso.


UM A UM: O futebol, a gente sabe, pode ser visto como uma ferramenta política, já que é por meio dele que muitas crianças e adolescentes veem um um futuro. Então, eu queria saber se você, enquanto jornalista, já presenciou algum caso de um jogador ou jogadora, sendo famoso ou não, que se ascendeu socialmente e não esqueceu de suas raízes? Celso Unzelte: É, a gente tem casos recentíssimos, né? O Richarlison na seleção brasileira se posicionou até mais socialmente do que politicamente. Quando a gente fala politicamente, não tô dizendo pro cara escolher um partido, ou se dizer de esquerda ou de direita, não é esse tipo de coisa, embora isso também seja significativo. O David Luiz, na seleção brasileira, é outro que nunca esqueceu das suas raízes, inclusive na relação com o público. O próprio Romário, que chegou à senador. Você pode gostar ou não das ideias políticas dele, mas é um jogador que se colocou e muitas vezes se colocou contra a cartolagem. O que é muito raro, né? Jogadores de futebol que têm cargos públicos, políticos e se colocam da maneira como o Romário colocou. Desde o Sócrates, nós não temos no Brasil um jogador do peso. Nós temos essas atitudes individuais que eu citei.

UM A UM: Celso, só completando um pouco seu raciocínio, sobre esse problema estrutural que você falou. As pessoas que se tornam jogadoras estão dentro de um clube desde os treze, doze anos, e a educação é completamente defasada. Cobrar um posicionamento deles com dezoito, vinte, vinte e dois, também é uma falha da própria estrutura de proporcionar a eles uma consciência maior de tudo, né? Celso Unzelte: É, infelizmente, sim, você tem razão. É um círculo vicioso, né? Se a pessoa recebeu menos condições de formação - eu digo a própria formação escolar, né? Não foi estimulada a pensar em outros momentos na vida, é muito difícil que você tenha uma coletividade de jogadores. E também, o jogador de futebol não consegue estudar praticando a sua profissão. É muito sacrificado. Eles não param pra pensar nisso. Então você tem que trabalhar mesmo com as exceções. Por isso que eu valorizo casos como o do Richarlyson. É um jogador que não tem uma formação escolar muito acima dos demais, mas tem essa consciência. Se não há um sistema educacional que permita isso, a gente passa a trabalhar sempre com as exceções. São as honrosas exceções das pessoas que veem a luz. Mas, realmente, no que depender do nosso sistema educacional, essa falha se perpetuará por muito tempo, porque o sistema é esse.

SÓCRATES - COPA DO MUNDO 1982 CRÉDITOS: FIFA

Quantos conseguem? Eu vim de Escola pública, e quando eu era criança, meus pais nem cogitavam pagar estudo pra mim. Hoje, com os meus filhos, eu jamais cogitei não pagar. Porque há, realmente, essa falha, essa defasagem no sistema educacional brasileiro e a maioria dos jogadores de futebol, do pessoal do futebol, vêm mesmo das classes menos favorecidas da população. Então é esse ciclo vicioso e a gente vai vivendo das honrosas exceções.


UM A UM: Celso, você falou de referências das gerações passadas. Na minha opinião, a nossa geração é muito carente de ídolos nacionais. Você acha que a falta de ídolos tem relação com a ausência em manifestações de outras áreas da sociedade? Celso Unzelte: Eu acho que, antes de tudo, não há muito essa preocupação, né? Vamos colocar o maior ídolo nacional do futebol hoje, o Neymar. As preocupações do Neymar são outras. rede social, é brincadeirinha, é aquela coisa do eterno menino Ney. É algo muito diferente, por exemplo, do que era um ídolo. Quando eu tinha dezessete anos, meu ídolo era o Sócrates indo pra campanha das Diretas Já, dizendo que, se a se a emenda Dante de Oliveira passasse, ele não iria embora do país, ele continuaria jogando aqui. Então, são dois jeitos de enxergar a vida, né?! Eu diria até que a própria juventude também é muito diferente hoje, o canal pra você se comunicar é esse, essa coisa do Tik-Tok, da comunicação rápida, do Instagram. Mas, mesmo isso poderia ser um pouco mais bem direcionado nesse sentido que a gente tá discutindo. É muito raro você ver um ídolo esportivo do Brasil se manifestando sobre questões outras que não sejam do esporte. É mais comum você ver o cara falando que esporte e política não se misturam, que ele não quer se comprometer. Infelizmente, eu vejo essa diferença.

UM A UM: Recentemente, a gente estava esperando uma posição política dos jogadores da seleção brasileira. Mas chegou no dia do jogo e eles lançaram um manifesto no Instagram, que você pode ver vinte e quatro horas e some e ficou por isso mesmo. O que você pensa a respeito desse manifesto? Você acha que os jogadores deixaram a desejar ou que eles se manifestaram na medida certa? Celso Unzelte: Não. Na medida certa não foi, porque foi um desfecho decepcionante. Agora eu também não sou daqueles que fica falando: “está vendo? Ilusão dizer que o jogador de futebol estava preocupado”. Eu acho que ainda é melhor que nada. Qualquer tipo de manifestação ainda é melhor que nada. A gente vive dizendo pra jogador se manifestar e, quando acontece alguma coisa, a gente vem com esse papo de bombeiro, né? Não gosto também dessa conversa. Acho que eles foram até o limite. Na verdade, também não havia muita coesão nesse movimento, tinha muita coisa envolvida, né? Falavam que, antes da questão da COVID, tinha a questão dos jogadores; uma possível reação contra o presidente da CBF, que se mostrou a pessoa que é através daqueles áudios, na mesma semana. Então, há várias outras coisas envolvidas. Agora, seja qual for o motivo, pelo menos ainda é algum barulho.

SSIMON STACPOOLE/OFFSIDE/OFFSIDE VIA GETTY IMAGES

Passou tanto Marco Polo Del Nero, tanto Marim, tanto Ricardo Teixeira e os jogadores não se manifestavam nem de uma maneira decepcionante, então acho que, ainda que tenha sido decepcionante, foi melhor que nada, foi algum movimento. Eu não, não me sinto bem indo contra esse tipo de movimento, não. Sim, foi muito menos do que se pensava, mas, pelo menos, houve uma semana de barulho, uma semana de contestação, uma semana de reflexão. Na parte final, os jogadores perderam a chance de tirar um dez.


Eu não me sinto à vontade em ficar cobrando postura, e, quando os jogadores tomam uma atitude, ficar colocando reparo, senão.. É uma atitude, que seja. Talvez que seja a ponta de um iceberg, um início de outras reflexões. Eu sei que a gente teria que passar por outras que, infelizmente, não temos aqui: uma postura do sindicato, dos atletas, que existe até em países vizinhos aqui. Não precisa ir à Europa, não. No Uruguai, na Argentina, os jogadores de futebol têm muito mais consciência do que o jogador brasileiro, são muito mais unidos. E falou-se muito da questão da Copa América. De fato, é uma aberração fazer Copa América num país onde a gente tá batendo quinhentos mil mortes por causa do que o presidente um dia chamou de “gripezinha” e nega, né, que chamou. Por isso que é negacionista, que nega o inegável, né? Então, é claro que é um absurdo fazer a Copa América neste cenário. Mas pior que Copa América é todo resto. É o Atlético Mineiro jogando na Colômbia outro dia com gás lacrimogêneo entrando no campo e o pau comendo do lado de fora do estádio. É o jogo do Corinthians em que um garoto em 2013, na Bolívia, morreu por causa de um sinalizador e o jogo continuou. Nós tivemos o jogo da Eurocopa no sábado em que o jogador da Dinamarca, o Ericksen, teve um mal súbito, e a gente falava que, se fosse na CONMEBOL, talvez o jogo seguisse. Então, acho que está na hora de pensar um pouquinho que o espetáculo pode parar, sim. Tem que parar.

O futebol feminino agora que está conseguindo um espaço de respeito - muito tardio. Então, é natural que as mulheres se posicionem com muito mais ênfase, porque elas são agentes desse processo de uma maneira que os homens não são. Agora, tentar ver o lado de que os homens têm muito mais a perder, né? Perder em patrocínio, perder em visibilidade, e é por isso que eu até entendo algumas posturas, porque, realmente, é difícil cobrar dos jogadores de futebol de irem contra a galinha dos ovos de ouro, principalmente quando eles têm uma origem mais humilde. E a gente sabe que o futebol masculino movimenta muito mais dinheiro que o futebol feminino, tem mais visibilidade, é muito maior que a do futebol feminino. Então, é natural que os caras tenham muito mais a perder que as mulheres, né? Mas a ênfase com que as mulheres encaram esses assuntos é louvável. Você tem, por exemplo, a Marta se posicionando sobre certas questões - e a Marta é o Pelé do futebol feminino, ou o Neymar, se você quiser comparar com o hoje - de uma maneira muito mais incisiva do que os homens.

LOIC VENANCE / AFP)(FOTO: AFP)

UM A UM: Os jogadores também não se manifestaram em relação aos áudios, as denúncias de assédio contra o Rogério Caboclo. E, logo depois, quando as mulheres entraram em campo, entraram com uma faixa “assédio não!” e também publicaram nas redes sociais. Você vê uma diferença no comportamento das mulheres e dos homens? Por que acha que isso acontece?

Celso Unzelte: Primeiro que as mulheres sentem na pele muito mais que os homens, né? Algumas questões, como o assédio, como a desvalorização profissional em relação a salários menores, a maneira como as mulheres são tratadas no próprio futebol feminino.


UM A UM: Aproveitando a deixa sobre o futebol feminino: em 1941, o Getúlio Vargas decretou a lei que proibia as mulheres de jogarem bola. Você acha que essa proibição atrapalhou o desenvolvimento do futebol feminino? Gerou um atraso? Em que nível?

UM A UM: Foram quarenta anos de proibição. Enquanto isso, a Seleção masculina já era tricampeã mundial. Celso Unzelte: E mesmo com o futebol feminino já um pouco mais próximo do que a gente conhece hoje, em 1996, na participação nas primeiras olimpíadas, tá aí a Formiga pra contar. As mulheres tinham que jogar com camisa da seleção pra criança, porque não tinha uniforme próprio para a seleção feminina de futebol. São coisas que podem parecer pequenos detalhes, mas não são. É condição mínima para você exercer a sua atividade.

Celso Unzelte: Muito, muito grande, mas a gente não pode esquecer que aquilo não foi só um decreto do Getúlio Vargas. Aquele era o pensamento de uma época. Se você pegar os jornais e revistas da época, você vai ver publicações de arrepiar o cabelo. Pergunte qual era o posicionamento de sua avó e de sua bisavó sobre os direitos da mulher. Claro que elas eram, também, um produto disso, mas o que eu quero dizer é que não foi só um decreto que o Getúlio Vargas tirou da gaveta, foi um decreto que tinha o endosso da sociedade da época.

Felizmente, hoje, eu até vejo a FIFA muito mais preocupada com o futebol feminino do que propriamente aqui dentro do Brasil. A FIFA faz uma força para equiparação ao menos no seu site, entre Copa do Mundo feminina, Copa do Mundo masculina, recordes envolvendo a Copa do Mundo em geral. Tudo isso são passos importantes pro reconhecimento do futebol feminino e do passo que ele vai conquistando e que merece conquistar FOTO: ACERVO MUSEU DO FUTEBOL / SUZANA CAVALHEIRO

Então, não foi só o decreto que atrasou. O que atrasou foi a sociedade da época. Foram os pais que tinham os preconceitos, foram as próprias filhas que se limitavam ao papel da mulher, e isso até recentemente. A gente estava falando em 1940, mas isso vai mudar na virada dos 60 pros 70. Basta você ver o que era uma revista feminina. Revista Cláudia, por exemplo. Então, felizmente, acelerou-se esse processo. E, para casos específicos, como o futebol feminino, claro, perdeu-se muito tempo. Mas ainda seria bom se o tempo perdido pela mulher fosse só no futebol feminino, né? O problema é que não é só no futebol feminino, é na sociedade em que muita coisa ainda há de ser conquistada. FOTO DIVULGAÇÃO/CBF

ANCHETE DE JORNAL DE 1941, ANO EM QUE DECRETO PROIBINDO FUTEBOL FEMININO FOI ASSINADO NO BRASIL. - ARQUIVO PÚBLICO/MUSEU DO FUTEBOL


UM A UM: Em um aspecto geral, o que você acha dessa interferência da política no futebol. Como isso afeta o esporte? Celso Unzelte: As duas coisas não podem ser vendidas separadamente. O futebol não está fora do mundo, ele faz parte. E política não é só a política partidária. Política é posicionamento. Inclusive, você faz política quando tá dizendo que futebol e política não podem se misturar. É um tipo de política. Alguma coisa você quer com isso: ou você quer a manutenção da política do jeito que ela é ou você quer a manutenção do futebol do jeito que ele é. Mas alguma mensagem você está passando com isso. Então não existe essa condição do futebol e da política estarem separados. É tudo junto. O futebol não é um mundo à parte. E nem a política é um mundo à parte. Só que a política é um mundo mais abrangente. São coisas indissociáveis. Com a força do futebol nesse país, é uma covardia você não colocar o futebol a serviço de outras questões. Se é a língua que as pessoas entendem, então vamos, através do futebol, passar mensagens. Eu acho que é uma responsabilidade da qual, sejam os jogadores, sejam os jornalistas, todos que estão envolvidos nessa prática não podem fugir. Futebol é uma linguagem do país. É um traço cultural do brasileiro. É um traço de expressão. Então ele precisa, sim, ser um canal para expressão, inclusive para expressão política.

Quando o Cantillo veio para o Corinthians surgiu aquela piadinha “vinte e quatro que não pode”. Ali, rapidamente, já teve uma reação dizendo “não, ele vai usar vinte e quatro, é a camisa que ele gosta de usar”. Você acha que evoluímos de alguma forma nessa questão?

Alguns clubes como o Esporte Clube Bahia tem feito um trabalho interessante nas suas redes sociais, com posicionamentos de cidadania. Outros clubes, infelizmente, ainda perdem essa oportunidade. Todos os clubes dão um passo atrás quando se veem questionados, pressionados, por esse machismo, por essa homofobia. Infelizmente, ainda é isso. E a torcida também é conservadora. Você falou em evolução, acho que o único remédio é o tempo. Vamos torcer para que se acelere para o dia em que acabem essas brincadeiras homofóbicas, que não são brincadeiras, né? Eu acho que isso não cabe mais na sociedade, mas ainda há uma coisa velada, há uma resistência das instituições, porque elas sabem que ainda perdem muita venda, muito torcedor, porque ainda tem muita gente que pensa assim, infelizmente essa é a verdade. Então, o futebol vai ter que amadurecer muito, muito, muito, pra gente ver algumas coisas desaparecerem de vez.

FOTO: MARCOS RIBOLLI

UM A UM: Em 2012, teve aquele caso do Richarlyson no Palmeiras. Ele foi especulado e acabou que não foi contratado. Foi uma questão puramente homofóbica e não repercutiu tanto quanto deveria.

Celso Unzelte: Evoluiu muito pouco. Eu acho que a gente evoluiu mais como sociedade do que dentro do futebol. O futebol, infelizmente, continua um meio retrógrado, homofóbico, em alguns aspectos até racista. Aquilo tudo que o Sócrates denunciava há trinta anos quando fazia seus discursos. E eu acho que isso tem que partir dos clubes.


UM A UM: Voltando um pouco para a Democracia Corinthiana, como a democracia funcionou dentro do time? Eram decisões sempre compartilhadas? Celso Unzelte: Olha, primeiro que a Democracia Corinthiana foi dentro de um contexto em que se falava de democracia e de redemocratização no país em vários lugares; nas escolas, nas fábricas. E aí, o Corinthians Paulista teve, principalmente, a sorte de ter escolhido como diretor de futebol um jovem sociólogo, chamado Adilson Monteiro Alves. O Adilson, naquele momento, permitiu a discussão. Isso foi fundamental, quase uma revolução consentida pelo patrão. Era o Adilson e alguns jogadores politizados, principalmente o Vladimir, o Sócrates e o Casagrande, que conseguiram uma experiência inédita no futebol. Em um primeiro momento, votava-se tudo: por concentração, por dia, por horário de treino. Num segundo momento, já não tanto assim. Isso também causou o fim da democracia. Só alguns passaram a votar, em alguns casos. A contratação do goleiro Leão foi um exemplo disso. Nem todo mundo votou diretamente nisso. Os jogadores chegaram a escolher o seu próprio técnico, o Zé Maria, um companheiro deles que estava encerrando a carreira. E foi uma experiência válida. Há quem diga que a democracia nunca existiu, mas é claro que existiu. Se nós estamo falando disso quase quarenta anos depois, é porque alguma coisa diferente teve, né? UM A UM: E a intenção era passar esse recado de 'todo mundo escolhe junto' para o mundo, ou porque achavam que era mais benéfico para eles? Celso Unzelte: As duas coisas. O recado era pra sociedade, mas o objetivo era trabalhar melhor e mais feliz. Os remanescentes da democracia corinthiana sempre falam isso, que nunca trabalharam com tanta alegria. Foi um movimento muito saudável nesse sentido.

UM A UM: E tem outro exemplo aqui no Brasil ou fora do Brasil de algo parecido? Uma movimentação dos jogadores que eles conseguiram algo grande. Celso Unzelte: Não, porque aquilo foi muito dentro de uma época, né? Dentro de uma época de democratização do Brasil; período pré discussão das eleições diretas. Então, costumo dizer que a Democracia Corinthiana foi o produto de uma época e de um lugar, que era o Brasil, muito específicos. Você não tinha aquela especificidade em nenhum outro lugar do mundo e, mesmo aqui, nunca floresceram movimentos assim, nem antes, nem depois. Isso tudo está muito atrelado a uma geração, como Sócrates, Vladmir, Casa Grande, como o Reinaldo, no Atlético Mineiro; tinha jogadores de outros clubes que eram simpáticos ao movimento, como o Zico, no Flamengo. Mas foi algo muito particular, não é algo que você possa replicar em outro tempo, em outro lugar. UM A UM: O caso do Reinaldo. Ele fez o gol, comemorou como ele sempre comemorou e no jogo seguinte ele foi pro banco. Celso Unzelte: É, é, foi por outros motivos também. Ele não estava bem fisicamente. O Brasil precisava ganhar da Áustria e o Roberto Dinamite era um centroavante mais 'fazedor' de gol, né? Mais ou menos, né? Tudo bem, o presidente da CBD era o almirante Heleno Nunes, militar, vascaíno, então preferia Roberto Dinamite. Mas, de fato, a posição política não só do Reinaldo, mas de jogadores, como o Falcão, por exemplo, prejudicou muito a carreira deles, porque eles eram vistos como inimigos do status quo. É um risco que esses heróis que a gente citou aqui, correm.


UM A UM: É muito marcante o Corinthians, o Sócrates entrando em campo com o escrito de democracia corintiana. Atualmente, qual o máximo que teria que chegar, na sua opinião, para os atletas se posicionarem assim novamente?

Eu acho que o Corinthians sempre teve grande torcida e continua tendo grande torcida. E tem também uma grande rejeição. O Corinthians se tornou um time mais simpático, mais nacional. Eu acho que, do ponto de vista da torcida, esse foi o legado da democracia corintiana.

Celso Unzelte: Bom, parece que os atletas atuais só se movem pelo fundo do poço, não é? Esse caso da CBF foi um pouco. Então, eu te diria que a única coisa que parece envolver as pessoas no momento, e não só jogadores de futebol, é um absoluto fundo do poço. A hora que não der mais pra aguentar, a gente vai ver pipocarem movimentos por aí. Fora isso, eu não vejo muita perspectiva.

UM A UM: Pra você, qual foi o tamanho da Democracia Corinthiana pro movimento que teve depois, quando teve a Direta Já?

UM A UM: Aí você já falou um pouco do Richarlison, mas nenhum chega próximo do que foi o Sócrates, né? Tem o Igor Julião que se posiciona muito bem, mas... Celso Unzelte: É, mas, com todo respeito a ele, que tem o tamanho de um Sócrates, né? E mesmo a repercussão, porque é importante você estar na mídia, você ser um cara conhecido, como foi a Maradona na Argentina. O Richarlison é o que a gente tem de mais próximo hoje. Vamos cuidar bem desse menino. Ele merece.

Celso Unzelte: Eu acho que tem uma confusão que as pessoas fazem aí. Às vezes, até gente do exterior fica mandando pergunta se é verdade que a democracia corintiana derrubou a Ditadura. Isso é um grande exagero, né? Ela é parte de todo aquele processo. Democracia Corintiana tá no caldo das Diretas Já, mas atribuir à Democracia Corinthiana a responsabilidade pela redemocratização do país. Eu acho um exagero. A Democracia Corinthiana foi algo muito importante, tanto que a gente tá falando disso aqui quarenta anos depois, mas não podemos cometer esse exagero. Aquele foi um de muitos movimentos no país. A Democracia Corinthiana vai atrás de uma onda de redemocratização que tomava conta do país. Acho que é mais correto afirmar isso. Ela é parte de uma coisa maior, verdade seja dita.

Pedro Bueno: E o movimento democrático no Corinthians trouxe muita torcida, aumentou a popularidade? Celso Unzelte: Eu acho que tornou o Corinthians um time mais simpático, claro, a quem tinha simpatia pela causa. Tornou o time mais nacional. A Rede Globo colocou o Corinthians da democracia na novela “Vereda Tropical”. José Bonifácio Sobrinho, que era o Todo Poderoso da Globo, fazia parte de um comitê de notáveis que dava ideias. Eu acho que tudo isso ajudou, mas eu não faria uma ligação direta entre as duas coisas. IMAGEM RETIRADA DO SITE: HTTPS://WWW.VOZDAFIEL.COM.BR/NOTICIAS-DOCORINTHIANS/CASAGRANDE-DEFENDE-A-DEMOCRACIA-CORINTHIANA-E-CHAMALUGANO-DE-DESPREPARADO.HTML


ENTREVISTA

COM GIOVANA PINHEIRO

Giovana Pinheiro, 27 anos, é jornalista formada pela Universidade Cásper Líbero e apaixonada pelo esporte. Já passou por grandes meios de comunicação, como TV Globo, TV Gazeta, UOL Esporte e Rádio Gazeta AM. Apesar de ter começado pelo futebol, hoje o foco do seu trabalho é o Esporte Olímpico e Paralímpico no portal 'Olimíada Todo Dia'.

UM A UM: Giovana, qual a sua jornada no esporte, o que representa pra você? Giovana Pinheiro: Eu falo que eu escolhi primeiro o esporte, depois o jornalismo. O esporte, pra mim, representa o que eu escolhi pra vida e eu acho que o esporte é uma grande ferramenta de transformação de sociedade. Minha relação com o futebol sempre foi muito próxima. Meu pai me levava no estádio desde que eu tinha seis anos de idade, e foi por conta do futebol que eu encontrei o jornalismo. Eu falei: “ah, quero ser essa pessoa que tá aí na beira do gramado, quero fazer isso da minha vida”. E foi através disso que eu encontrei o jornalismo e procurei sempre trabalhar com o esporte relacionado ao futebol e ao esporte como um todo. Primeiro com o futebol e depois, obviamente, focando no que eu trabalho hoje, que é o esporte olímpico e paralímpico, na Olimpíada Todo Dia. UM A UM: Para você, o desenvolvimento do futebol feminino tem algum entrave político? Giovana Pinheiro: Eu acho que todos os entraves políticos possíveis, né? A gente não pode dissociar o esporte. A gente precisa lembrar que o esporte faz parte da sociedade. É uma discussão muito importante a gente falar, também, da parte política.

A gente precisa lembrar que o futebol feminino foi proibido no Brasil não faz tanto tempo assim. Então, quando a gente fala de esporte, na verdade, a gente também tá falando de política. Porque a sociedade tem um reflexo no esporte. Então, o esporte como um todo nasce racista, machista, homofóbico; todas as questões presentes na sociedade também estão presentes no esporte. Quando a gente fala de futebol feminino, tem todos os entraves políticos e sociais no desenvolvimento da sociedade e também do machismo. A gente não pode descolar o futebol feminino do machismo, que, até hoje em dia, é muito presente. UM A UM: Você já presenciou algum caso em que o futebol feminino e a questão de gênero se ligaram com a política? Giovana Pinheiro: Lógico que a gente não pode esquecer dessas manifestações que aconteceram recentemente das meninas do futebol feminino contra o assédio e tudo que está acontecendo nesse julgamento do caboclo da CBF. Quando a gente fala dessa questão de gênero e do futebol feminino, eles estão ligados com a política e é muito bom ver atletas que têm essa consciência. Não só no futebol feminino, mas no esporte olímpico e paralímpico. Quando você vê os atletas se posicionando, é muito importante.


UM A UM: E é possível que o futebol seja um espaço para manifestações políticas e manifestações partidárias? Ela são passíveis de punição ou significam liberdade de expressão? Giovana Pinheiro: Eu acho que é muito importante que os atletas se sintam seguros e saibam o que eles estão falando e se manifestem, falem sua opinião. Os atletas não são máquinas, né? Eles também são seres humanos e eles também têm opiniões sobre, enfim, N temas da sociedade. Acho que, no mundo polarizado como a gente tá vivendo aqui no Brasil, eles acabam sendo punidos. Então, é muito complicado, né? Você teria que educar toda a base esportiva, muito antes de aceitar tudo isso. Hoje, qualquer atleta que se manifeste pode ser punido, e aí muitos atletas não se posicionam também por medo de retaliação. Então, é um terreno bem complexo de se transitar e eu acho que é muito importante que se debata o tema, que atletas falem, porque essas manifestações vão puxando outros atletas. Um a Um: E sobre a manifestação da Marta na Copa de 2019, você sente que fez efeito? Acha que foi uma ação necessária? Giovana Pinheiro: Fez efeito, é uma ação necessária que tem um impacto em tudo que a gente está vivendo hoje. Eu acho que todas essas ações, eu acho que se posicionar, faz parte do que a gente tá vivendo hoje.

UM A UM: E você acredita que machismo enraizado na nossa sociedade impede o desenvolvimento do futebol feminino?

O futebol feminino tem ganhado cada vez mais visibilidade e o desenvolvimento acaba sendo natural. Acho que todos os apoios financeiros e a criação de clubes são necessários e é necessário muita gente que brigue pelo futebol feminino, que mostre, sim, que é atrativo. Estamos indo aos poucos, mas está chegando num momento que o machismo não pode e nem vai impedir o desenvolvimento do futebol feminino. Esse patamar que a gente chegou é daqui pra cima e eu acredito muito no sucesso da modalidade. UM A UM: E lembrando daquela lei que proibia as mulheres de jogarem futebol, quão impactante aquilo foi para o desenvolvimento do futebol feminino? Giovana Pinheiro: Ela foi impactante e acho que ela respinga até hoje, né? Nós, mulheres, fomos criadas de uma maneira diferente, nossa estrutura corporal, nossa iniciação no esporte, ela foi muito mais tardia e eu acho que essa lei que proibia mulheres de jogarem no futebol feminino é uma coisa que tem impactos até hoje. Tem muita gente que que não quer que a filha participe e tudo mais. Mas é o que eu sempre falo, a gente não pode esquecer o que aconteceu no passado pra fazer diferente e não permitir que isso aconteça mais. SELEÇÃO FEMININA X CANADÁ - TERCEIRA RODADA TORNEIO DA FRANÇA 2020 | CRÉDITOS: A2M/CBF

Desde a Copa do Mundo de 2019, o futebol feminino vive um outro patamar e é muito bom a gente ver as atletas com holofotes nessa véspera de Olimpíada, nessa reta final. É muito diferente do que a gente já passou. Ainda tem muito pela frente, mas eu acho que é um caminho e essa manifestação foi super necessária.

Giovana Pinheiro: Eu acho que ele atrapalha, como eu falei no começo. Mas ele não impede, porque a gente, nós mulheres, estamos vindo quer nos aceitem ou não. Então, acho que não posso falar que impede o desenvolvimento. Ele atrapalha, ele tá ali, mas eu acho que a gente tá conquistando o espaço.


UM A UM: O que você pensa da expressão “a Marta é o Pelé do futebol feminino”? Giovana Pinheiro: Eu acho que a gente precisa permitir que existam ídolas e referências mulheres, principalmente na véspera de jogos olímpicos que vai permitir, talvez, a primeira mulher, grande atleta - a gente fala de Phelps, Bolt. Todas as referências com mulheres a gente sempre quer ligar ao homem, né? Eu acho que isso é um resquício de machismo. A Marta é a Marta. Não tem ninguém como a Marta, assim como a Formiga é a Formiga, e não tem nenhuma comparação para a longevidade da Formiga, por exemplo. Então, eu acho que a gente precisa criar e consolidar as nossas referências femininas porque elas são muito importantes e eu acho que você ficar comparando e ancorando sempre na figura masculina é muito desnecessário. UM A UM: Megan Rapinoe, a melhor jogadora do Copa do Mundo de 2019, ficou conhecida por seu posicionamento além das quatro linhas. Durante os jogos da Copa, ela se recusou a cantar o hino nacional por não se sentir representada. Qual sua opinião sobre ela se manter calada e, anteriormente, ser punida?

Giovana Pinheiro: É muito difícil responder essa questão porque eu sou uma pessoa muito empática. Eu entendo tanto quem se posiciona, como quem se mantém calado para não ser punido. Porque, como eu estava falando, eu acho que a sociedade não está pronta para aceitar pessoas com opiniões diferentes da dela. E seja posição ou oposição. É um território muito complicado de falar mesmo. Eu, como jornalista, sempre me coloco na pele do atleta. Eu realmente entendo desde a pessoa que aceita se posicionar até a pessoa que se mantém calada. Sou totalmente contra qualquer tipo de punição. Eu acho que os atletas não podem ser

punidos por expressarem a sua opinião. Ao mesmo tempo, o fato dessas punições acontecerem é o que afasta e deixa os atletas com medo. Enfim, tô quase em cima do muro nessa pergunta, eu não sei muito responder. UM A UM: Mas no geral, o que você pensa sobre a Megan e sobre as suas atitudes? Giovana Pinheiro: Eu sou grande admiradora do trabalho dela e de todo o discurso que ela fez e quão importante ela é pro desenvolvimento do futebol feminino. Sou fã dos posicionamentos dela e de tudo que ela representa e do esporte que ela, enfim, desempenha em campo também. UM A UM: E trabalhando e vivenciando o contato com esse meio esportivo, você já presenciou algum caso de machismo velado ou lesbofobia? Giovana Pinheiro: Já. Nem um nem dois. O machismo e a lesbofobia estão muito presentes. O machismo velado, eu vejo com frequência. Eu já vivi em redação gente falando “volta pra cozinha; o que essa menina tá jogando?”. É lamentável que a gente ainda precise brigar e explicar, mas eu acho, também, que a gente tá caminhando para um lugar melhor. UM A UM: Então não deve ser nada fácil se ver dentro de uma profissão, o jornalismo esportivo, que segue ainda tão predominado por homens, certo? Cara, eu me vejo como uma figura importante nesse meio porque nós, mulheres, precisamos ocupar esse espaço. Precisamos, muitas vezes, ter paciência para explicar; precisamos, muitas vezes, ter paciência para dialogar sobre essas questões. Eu costumo falar que eu acho necessário porque é preciso dar voz, tanto para nós, jornalistas, como para as atletas. Eu digo que a bandeira do esporte feminino como um todo é a minha bandeira, então eu sempre busco trazer essas pautas e falar sobre esses temas.


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