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Impactos introduzidos pelo processo de Integração Europeia no Sistema Político Português
Para compreender os possíveis efeitos da integração europeia no sistema político português, foi imprescindível analisar a Constituição, que serve sempre como ponto de partida para analisar qualquer sistema político. Por isso, foi necessário examinar o texto original da Constituição, juntamente com suas sucessivas revisões, que estiveram intimamente ligadas ao processo de integração. Somente assim poderíamos entender os impactos que a integração trouxe para o sistema político português.
A governação nacional foi uma das áreas mais afetadas pelo processo de integração europeu, devido à partilha de responsabilidades a nível supranacional, o que gerou debates sobre a soberania do país, em que nas palavras de Peter Hall “a soberania tem pouco significado num contexto em que a União Europeia tem autoridade para impor regulações aos seus Estados membros sem a anuência dos seus governos nacionais”38
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Acreditamos que o processo de integração europeu teve impactos em todos os órgãos de soberania português, tendo como principal vítima a Assembleia da República, que após a ratificação do Tratado de Maastricht e os aprofundamentos introduzidos pelos Tratados de Amesterdão e Nice, vieram alterar, de forma significativa, a dinâmica das suas competências.
Uma das formas que veio alterar essa dinâmica foi com a transferência de poderes nacionais para as instituições europeias, resultando numa “diminuição dos poderes parlamentares nacionais face aos respetivos governos”39 . Essa situação decorre do facto que é o Governo a representar Portugal na União Europeia, competindo agora a este uma espécie de participação sobre matérias que normalmente pertenciam à Assembleia da República. Essa transferência resultou num défice democrático, pois há agora um
38 Hall, PA. Institutions and the Evolution of European Democracy, Oxford University Press, 2003
39 (Guedes & Coutinho, 2006, p. 100)
“desequilíbrio no exercício de competências entre o Governo e a Assembleia da República”40 .
O processo de integração teve um grande impacto na redistribuição de poderes executivos, favorecendo a posição do Governo, que é o único órgão representativo de Portugal na UE. No entanto, é importante destacar que o governo não ganhou uma autonomia total em relação aos demais órgãos do Estado Português. Como vemos pelo dever de informar a Assembleia da República sobre a sua atuação no quadro europeu Apesar disso, permitiu-lhe superar problemas causados pelas oposições nacionais e escapar ao poder de veto doméstico, além de uma transferência de responsabilidades políticas para as instituições europeias41 , o que proporciona mais espaço de manobra, embora não uma autonomia plena.
Além de um desequilíbrio de poderes perante o governo, também houve uma limitação na capacidade legislativa da Assembleia da República. Isso ocorreu porque a sua esfera de competência foi restringida face às normas provenientes das instituições da União Europeia, as quais são obrigatórias e diretamente aplicáveis na ordem jurídica portuguesa, conforme estabelecido pelo artigo 8, nº4, introduzido pela revisão constitucional 2004. A não conformidade com essas normas pode resultar em recurso por incumprimento no Tribunal de Justiça da União Europeia.
Essa diminuição de poderes levou a que, em revisões constitucionais, como a de 1992 e 1997, fossem incluídas disposições que visavam fortalecer o papel da Assembleia da República em relação ao processo de integração europeia, buscando reivindicar “um poder de controlo as posições assumidas pelos governos nas instituições europeias. Essas medidas foram uma resposta à falta de responsabilização política do Governo perante a Assembleia da República.
Essas revisões introduziram a possibilidade de a Assembleia da República acompanhar a participação de Portugal na construção da União Europeia (artigo 166º), exigindo que o governo prestasse informações sobre o processo (artigo 200º, nº1, al. i)
40 Filipe, António. (2005) A União Europeia e os Parlamentos Nacionais, p. 62 (Filipe, 2005, p. 62)
41 Como curiosidade, relativamente à responsabilização das instituições europeias, observamos que os Portugueses confiam mais nessas do que depositam no governo nacional.
Em Portugal, contudo, é aplicado um sistema de mera informação que depende da boa vontade do governo em fornecer informações, não permitindo uma intervenção decisiva do parlamento, mesmo em questões de sua competência exclusiva42 Além disto permitiramqueaAssembleiapronunciassesobrematériaspendentesdedecisãodeórgãos da União Europeia, que incidissem sobre a sua competência legislativa (artigo 161º, al. n), apesar deste direito de pronuncia não ser vinculativo. As revisões constitucionais foram umatentativademitigarainfluênciadoprocesso deintegraçãoeuropeianosistema de governo de Portugal, buscando diminuir o desequilíbrio e o aumento dos poderes do executivo43, como previamente alertado por Jorge Miranda44 ou do Marcelo Rebelo de Sousa45
Para concluir os impactos que a Assembleia sofreu, é importante mencionar o Tratado de Lisboa e a implementação da lei de escrutínio dos assuntos europeus46, os quais ampliaram o seu papel na esfera legislativa europeia, em que antes da ratificação, a Assembleia não tinha qualquer envolvimento.
A implementação do mecanismo de alerta prévio, consagrado no Tratado de Lisboa, tem permitido uma maior troca de informações entre as instituições nacionais e europeias, o que tem resultado em um reforço da relação entre os parlamentos nacionais e as instituições europeias.
A adoção da lei de escrutínio dos assuntos europeus representou uma evolução no processo deconsultaentreo parlamentoeogoverno em relação aos processos legislativos da União Europeia. A lei oferece ao parlamento ferramentas para avaliar previamente as posições do governo em questões europeias47 , com o objetivo de permitir que a Assembleia responsabilize e influencia a atuação do governo nas instituições europeias.
42 Filipe, António. (2005) ob cit., p. 71
43 Tentaram reduzir o pendor governamental do sistema político português
44 Afirmavaaexistênciadeuma“evasãolegislativaquebeneficiaoGoverno – (Miranda,ManualdeDireito Constitucional, V, 2ª Ed., Coimbra, p.181)
45 Avisa esse que “o parlamento, sem uma profunda reforma orgânica e procedimental, não conseguirá enfrentar os desafios de mais intensa integração europeia – Sousa, M.R. (1992). A Integração Europeia Pós-Maastricht e o Sistema de Governo dos Estados Membros, Análise Social, 118/119, Vol. XXVII, 1992, pp. 798 e 799)
46 Lei nº43/2006 regula o acompanhamento, apreciação e pronúncia pela Assembleia da República no âmbito do processo de construção da União Europeia.
47 (Teixeira & Pinto, 2017, p. 78)
A lei também impõe ao governo a obrigação de fornecer informações e consultar o parlamento.
O processo de integração também afetou as competências do Presidente da República, estabelecendo limitações quanto ao poder de veto e promulgação. O presidente não pode vetar matérias que estejam reservadas à competência legislativa europeia, uma vez que os Estados membros transferiram parte da sua soberania para as instituições legislativas europeias. No entanto, ele ainda pode vetar e promulgar leis que transpõem diretivas europeias, de acordo com o artigo 112º, nº8.
O papel político do Presidente também foi limitado, já que o Governo é responsável por representar Portugal nas instituições europeias, por exemplo, nas reuniões do Conselho48. Apesar de ser o Governo a representar Portugal, competirá ao Primeiro-Ministro, informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país49 . Essas mudanças mostram uma tendência do crescente pendor governamental no sistema político português.
De notar, que o processo de integração também afetou o poder judicial e administrativo, que adquiriram uma veste europeia, tornando-se mais independentes face aos poderes nacionais. Um exemplo desse impacto é a possibilidade de os Estados membros serem responsabilizados caso não cumpriram com o Direito da União Europeia Além deste exemplo, vemos agora a possibilidade de os juízes poderem afastar normas nacionais que estejam em conflito com as normas europeias, o que evidencia o primado do direito europeu face ao direito nacional.
Em conclusão, podemos afirmar que a integração europeia trouxe importantes mudanças para o sistema político, judicial e administrativo português. O processo de consulta entre o parlamento e o governo em relação às questões europeias teve que ser reforçado, pelas revisões constitucionais, ou por outros mecanismos como é o caso da lei de escrutínio e do mecanismo de alerta prévio. Porém, essa integração além de limitar os poderes da Assembleia, também limitou algumas competências do Presidente da
48 Ao contrário de França, que mesmo tendo um sistema semipresidencial, idêntico ao nosso, será o Presidente República a participar no Conselho Europeu, por ser ao mesmo tempo o Chefe de Estado e o Chefe do Executivo.
49 Artigo 201º da Constituição Portuguesa
República, que não pode vetar matérias que estejam reservadas à competência legislativa europeia. Adicionalmente, o poder judicial como o administrativo ganharam uma veste europeia, vindo a introduzir a possibilidade de se afastar normas nacionais que estejam em conflito com as normas europeias, e mesmo, a possibilidade de os estados virem a ser responsabilizados pelo incumprimento do Direitoda União Europeia. Podendo-se mesmo afirmar que o grande vencedor do processo de integração europeu de Portugal, foi o governo, que viu a sua esfera de poder aumentar significativamente.
Considerações Finais
A integração europeia desempenhou um papel importante na consolidação da democracia recente, em Portugal, permitindo, ao mesmo tempo, modernizar e desenvolver a economia, por meio da implementação de reformas institucionais e legislativas que aproximaram os padrões democráticos e econômicos de Portugal aos da União Europeia.
Ao longo da nossa apresentação, pôde-se perceber que o processo de integração europeu exerceu uma influência profunda no sistema político português. Esse processo foi uma das principais forças motivadoras que conduziram às mudanças constitucionais, as quais, por sua vez, resultaram em alterações nas competências dos órgãos nacionais.
Além disso, o processo demandou ajustes na estrutura constitucional de Portugal, a fim de atender às exigências da União Europeia. A evolução constitucional portuguesa precisou de se ajustar a novas realidades, atendendo a uma maior dependência em relação às políticas e decisões tomadas em Bruxelas, o que pode ter reduzido a autonomia e a soberania nacional, como foi suscitado por Jorge Miranda, ao indagar “se as alterações ao artigo 7º e aditamento ao artigo 8º, não ultrapassam os limites da soberania do Estado e do primado da Constituição e do poder constituinte nacional”50
50 (Miranda, A Constituição e a Democracia Portuguesa, 2009, p. 96)
Ao mesmo tempo, a integração europeia impôs limitações e desafios ao sistema político português, tais como a necessidade de harmonizar a legislação nacional com a legislação europeia e a perda de alguma autonomia política, principalmente perante as competências da Assembleia da República. Essa foi o órgão nacional mais sacrificado após a ratificação do tratado de Maastricht, porém as revisões constitucionais tentaram atenuar essa tendência vindo a introduzir novos preceitos que permitiram aumentar o controlo da Assembleia perante o processo de integração Isso resultou em uma europeização dos sistemas políticos nacionais, que veio a introduzir uma crescente governamentalização do sistema político.
Também se viu a necessidade de conciliar as competências do Presidente e dos Tribunais. Perante o primeiro, ocorreu uma limitação de certos poderes que resultou na perda de vetar sobre matérias da competência europeia, restringindo-se ainda o seu poder de representação de Portugal, perante a EU, que é agora exercido pelo Governo. O processo também trouxe a introdução do Direito Comunitário no ordenamento jurídico português, vindo afetar as competências dos tribunais, que lhes foi assim introduzido uma veste europeia.
Portanto, é fundamental que Portugal continue a monitorizar os impactos do processo de integração europeu no seu sistema político e avaliar a sua posição na União Europeia, visando o estabelecimento de um equilíbrio entre as obrigações europeias e a soberania nacional. O futuro de Portugal e da União Europeia está interligado, e é importante trabalhar juntos para enfrentar os desafios que se apresentam.
Em suma, a adesão à EU trouxe avanços importantes para o sistema político português, mas também desafios e questionamentos que precisam ser abordados e debatidos continuamente. A participação de Portugal na EU é parte integral do seu presente e futuro, e requer uma abordagem cuidadosa e responsável para garantir que os seus benefícios sejam maximizados e os seus desafios sejam superados de forma adequada.
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