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Integração Europeia de Portugal
Durante o período entre 1945 e 1974, Portugal não seguiu a tendência europeia de unificação que se verificava após a segunda guerra mundial, devido à natureza autoritária do regime de Salazar e a sua resistência à descolonização. Porém, com a transição democrática após a Revolução de 1974, esses fatores deixaram de ser um obstáculo, não podendo de deixar seguir a ideia de Samuel P. Huntington, em que via Portugal como um dos primeiros países a “passar por um processo de transição e consolidação democrática na terceira vaga de democratização”4 .
A Revolução de 1974, atraiu muito interesse internacional devido ao clima de incerteza e instabilidade política que se vivia na época. Surgindo o receio de que o país pudesse regressar a um sistema autoritário que viria a pôr em causa, não só a democratização de Portugal, mas também o processo de integração europeu que viria a ocorrer nos anos seguintes.
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Propomo-nos dizer que o risco de regressão autoritária reforçou o sentimento pela necessidade de se cumprir com o processo de integração europeu de Portugal, pois era visto como umaespéciedegarantiademocrática,impedindo assim um retornoautoritário. Esta teste é partilha por Lawrence Whitehead que salientava a importância que a Comunidade Europeia detinha na transição de países como os do Sul da Europa, para a democracia, conferindo à Comunidade um processo de convergência na democratização dessas nações. Contudo, devemos mencionar que a adesão à Comunidade estava condicionada à existência de uma democracia estável, como afirmou Birkelback5 em 1962, quando rejeitou o pedido de adesão da Espanha franquista à CEE enfatizando que “apenas os estados que garantam nos seus territórios uma completa prática democrática e respeito pelos direitos e liberdades fundamentais poderão ser membros da nossa comunidade”.
Mesmo vivendo-se tempos incertos, uma coisa parecia certa, o interesse que Portugal tinha sobre a CEE Desde do início, foram realizados vários contactos entre as
4 José Magone, A Integração Europeia e a Construção da Democracia Portuguesa, pág. 128 (Magone) duas partes, um exemplo desses contactos é a ida de Mario Soares, Ministro dos Negócios Estrangeiros, a Bruxelas no dia 3 de maio de 1974, com a esperança de aprofundar os laços económicos entre Portugal e a Comunidade e iniciar o caminho para a adesão que viria a ocorrer em 1986. Apesar de haver uma aproximação às instituições europeias após a revolução “as dificuldades sociais e económicas e a luta pelo poder que logo desencadeada desviaram a atenção dos cidadãos e dos sucessivos governos provisórios para os problemas diversos”6
5 Foi um político alemão, autor do “Relatório Birkelback”, que incidia sobre os aspetos políticos e institucionais da adesão ou associação à CEE.
Apesar dos esforços de democratização, o sistema ainda é ferido de instabilidade que nem com as primeiras eleições livre de 19757, conseguiu-se estabelecer uma coerência política. Isso pode ser observado pela formação de 8 governos durante o períodode1976a19878,quesejuntavajáaos 6governosprovisórios quetiveram o poder entre 1974 a 1976.
A instabilidade política, que resultou em múltiplos governos provisórios e ainda uma alegada tentativa de golpe de estado, foi sempre acompanhada de perto pela Comunidade Europeia, principalmente quando se deu lugar às primeiras eleições, tendo o Vice-Presidente da Comissão, Sir Christopher Soames visitado Portugal, meses antes das primeiras eleições livres. Um dos principais objetivos dessa visita era discutir as relações entre Portugal e as Comunidades Europeias, no contexto de transição democrática do país, com esperanças que Portugal viesse a estabelecer um governo democrático estável e concedesse independência aos seus territórios ultramarinos. Decorridas as eleições, as negociações entre a CEE e Portugal continuaram tendo como objetivo a celebração de um Acordo de Comércio Livre, desde que Portugal estabelecesse uma democracia pluralista, que era uma condição necessária para a concessão dessa ajuda. Essa ajuda económica foi considerada crucial para a estabilização democrática do país e, posteriormente, para permitir a adesão à Comunidade.
6 (Miranda, O Tratado de Maastricht e a Constituiçao Portuguesa, 1996, p. 17)
7 Resultados: PS 37,9%; PPD 26,4%; PCP 12,5%; e CDS 7,6%.
8 “Dois partidos – o PS e o PSD – revelaram-se, desde início, dominantes na cena política portuguesa e ambos com vocação política maioritária. De 1975 a 1987, nenhum deles adquiriu, porém, a maioria absoluta. Os governos que estiveram à frente dos destinos do País ou eram minoritários ou resultavam de coligações partidárias. O Pluralismo tem caracterizado a política portuguesa.” (Fernandes, Sistema Político e a Sociedade Global em Portugal: Conexões e conflitos, 1989, p. 19)
Após a crise de 25 de novembro, o processo revolucionário culminou com a promulgação da Constituição Portuguesa de 1976, que fortaleceu a democracia em Portugal e estreitou a sua relação com a Comunidade Europeia. Ainda que alguma instabilidadepolíticapersistisse,aConstituiçãocolocouotravãoàsintençõesautocráticas que antes eram predominantes É importante lembrar que o sistema político português era relativamente jovem, tendo sido formado após um golpe militar e não derivado de um sistema estável anterior, não podendo afirmar que essa instabilidade era algo de anormal, pois presenciou-se uma rutura completa do antigo regime (Estado novo), que introduziu em Portugal novos valores com tendências democráticas.
Essa mesma instabilidade, causada em parte pelo pluralismo político9, resultou no agravamento da situação social e económica, terminando com a primeira maioria absoluta, conquista por Aníbal Cavaco Silva10, em 1987, vimos criada as condições para assegurar um governo de legislatura.
A situação económica do país e a instabilidade política impossibilitavam qualquer avanço na frente europeia, dificultando o caminho de adesão à CEE. No entanto, desde do I Governo Provisório Constitucional11 , o processo de integração europeu já havia sido definido como um objetivo da política externa portuguesa, procurando assim garantir a consolidação democrática do país e obter os apoios financeiros para modernização da economia portuguesa
A institucionalização democrática de Portugal na sua Constituição de 197612 e a entrada no Conselho da Europa representou um “reconhecimento internacional do novo regime democrático”13, constituindo uma fase preliminar do processo de adesão, que em
9O PS e o PSD consolidaram-se como os principais atores políticos em Portugal, formando um bipartidismo imperfeito, na qual estes dois partidos competem pelo poder, embora sem excluir a presença de partidos minoritários, como o PCP.
10 Resultados das eleições de 1987: PSD – 50.22%; PS – 22.24%; CDU – 12.14%, PRD – 4.91%; CDS
4.44%
11 Liderado por Mário Soares, tomando posse a 23/09/1976
12 Apesar de ainda ser dominada com um discurso socialista, atendo aos autores políticos da altura, Portugal passava agora a ser considerado como um país com uma democracia liberal, aproximando-se das democracias europeias.
13 (Teixeira & Pinto, 2017, p. 23)
1977, Portugal viria submeter a sua candidatura formal de adesão à CEE, iniciando as negociações pouco tempo depois, que se prolongaram entre 1978 e 198514 .
Como motivo desse prolongamento era o facto de ainda existir obstáculos à integração de Portugal na Europa. Em primeiro lugar, Portugal tinha uma situação económica enfraquecida, onde a CEE estava preocupada com as possíveis consequências que poderia decorrer de uma adesão precoce para o mercado comum e as próprias finanças da comunidade. Em segundo lugar, tínhamos um problema democrático, uma vez que, embora Portugal fosse um país democrático com um regime multipartidário, a Constituição de 1976, estabelecia o Conselho de Revolução15, como órgão soberano, sendo um órgão não democraticamente eleito, composto por militares e presidido pelo Presidente da República, consagrava assim uma espécie de democracia militar. A primeira revisão constitucional, ocorrida em 1982, veio pôr fim a isto, extinguindo o Conselho e terminando as funções políticas das forças armadas, juntamente, foi feito uma série de alterações que vieram preparar o caminho para a adesão de Portugal
Finalmente em 1983, Portugal conseguiu superar os obstáculos que estavam em seu caminho e estava pronto para aderir à CEE. A revisão constitucional de 1982 foi crucial para a remoção de entraves, como a extinção do Conselho de Revolução e outros impedimentos que foram agora afastados para abrir caminho para a adesão. Faltava-lhe apenas superar um fator externo, pois a adesão de Portugal viria a ocorrer conjuntamente com Espanha, estando a Comunidade Europeia ainda em negociações, pois enfrentava problemas diversos Além de ser uma economia muito maior do que a de Portugal, iria concorrer logo com países como a França, Alemanha, e além disso Espanha “não tinha partilhado a mesma experiência histórica de relações com as instituições económicas europeias”16 que tinha Portugal, tendo este de esperar pelo sucesso das negociações do seu país vizinho.
14 Gostaríamos de referir a importância que a coligação do bloco central, entre PS e o PSD (1983-85), teve no processo de integração europeu, demonstrando “a necessidade de uma pacificação social e de desenvolvimento económico em ordem à entrada na CEE” (Fernandes, Sistema Político e a Sociedade Global em Portugal: Conexões e conflitos, 1989, pp. 25-26).
15 Era um órgão consultivo do Chefe de Estado e funcionava como garante da Constituição e do funcionamento das instituições democráticas, era um verdadeiro órgão de tutela militar do poder político, exercendo poderes paralelos aos do Parlamento, constituído pelo Presidente da República, pelos Chefe e Vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, pelos Chefes de Estado Maior do Exército, Armada e Força Aérea e por mais 14 militares.
Quase uma década depois de Portugal ter apresentado a sua candidatura oficial, que foi marcada por enumeres problemas ao longo do caminho, só em 1985, com a assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à CEE, é que a candidatura foi finalmente concluída, tornando-se membro oficial a 1 de janeiro de 1986, juntamente com Espanha.
A entrada de Portugal para a CEE forçou o país a se adaptar às regras da Comunidade, o que resultou em mudanças significativas tanto no plano interno como no plano internacional. Essas mudanças foram impulsionadas não apenas pela entrada na CEE, mas também pelas alterações institucionais introduzidas pela assinatura do Ato Único Europeu e de outros tratados europeus.
Aadesãofoi vistacomo umanovaoportunidadeparaopaís, uma vez quepermitiu o acesso a fundos estruturais, como é o caso do pacto Delores I (1988), que apesar de trazer transformações necessárias para o país, uma grande parte desses fundos foram gastos em projetos duvidosos, acompanhado com uma centralização em determinadas áreas do país. Independentemente, a rápida mudança nas infraestruturas e um boom económico em 1989 e 1990, tornaram claras as vantagens da integração europeia.
O sucesso da presidência portuguesa trouxe um ponto de viragem para a “europeização do governo português”, tendência continuada com o governo de António Guterres, que a define a europa como a “prioridade das prioridades”. É importante salientar que isso não impediu Portugal de manter uma política de proximidade com países de comunidades portuguesas, mas a política externa portuguesa demonstrou uma clara prioridade pela integração europeia.
Nos anos seguintes, houve um aprofundamento dos poderes das instituições da União Europeia17, forçando uma nova adaptação do sistema político português, tendo de conciliar novamente os poderes nacionais e os poderes europeus.
16 (Teixeira & Pinto, 2017, p. 25)
17 Por exemplo, com a ratificação do Tratado de Maastricht.
Portanto, para analisarmos o impacto da integração europeia no sistema político português, iremos no próximo momento estudar a Constituição de 1976 e a sua evolução constitucional, destacando em cada uma das revisões as modificações introduzidas pela influência Europeia.
Evolução Constitucional
A CEE/UE tem vindo a evoluir rapidamente nos últimos anos, como podemos verificar pela celebração de vários tratados e a sua ratificação pelos Estados-Membros, trazendo enormes transformações, não só ao nível europeu, mas também no quadro político nacional. Propomo-nos num segundo momento do nosso artigo, analisar o impacto que o processo de integração europeu de Portugal teve na evolução da Constituição de 1976. Apresentando uma conclusão prévia, é possível afirmar que o sistema político português foi substancialmente moldado pela Comunidade Europeia, o que levou à sua consolidação com o sistema europeu, reforçando não só a democracia, mas também as suas instituições políticas, económicas e legais.
O primeiro texto da nova constituição representava uma sociedade que tinha saído de uma revolução militar, na qual a Assembleia Constituinte que a aprovou não foi esta uma assembleia europeia, focava-se em fatores mais internos do que propriamente europeus. Nessa altura, não havia nenhuma referência ao processo de integração que viria aparecer em futuras revisões constitucionais. Era um compromisso entre os partidos e os militares, que só se vinha a desfazer com a revisão constitucional de 1982, ocupando-se essa com uma função de democratização plena da sociedade portuguesa
Ao contrário de outras constituições europeias que já estavam em vigor na altura da aprovação da CRP, como a versão originaria da constituição italiana (1947)18 ou da alemã (1949)19, que já continham referências ao futuro processo de integração europeu do país, a Constituição Portuguesa de 1976 não continha nenhuma cláusula europeia20
18 Artigo 11º da Constituição Italiana (1947)
19 Artigo 23º da Constituição da República Federal Alemã (1949), estabelecia uma cláusula europeia
20 Existia já Constituições que autorizavam a restrição ou a delegação de poderes soberanos para possíveis Instituições Internacionais.
Por exemplo, o artigo 11º da Constituição Italiana afirmava que a “Itália acede, em condições de igualdade com os demais Estados, às limitações de soberania necessárias para um ordenamento que assegure a paz e a justiça entre as nações e promoverá as organizações internacionais dirigidas a esse fim.”21, apesar de na época ainda não existir nenhuma instituição semelhante. Funcionava como uma antevisão da transferência de soberania para uma futura organização supranacional, como viria a ocorrer com a fundação da CEE, em 1957 e a participação de Itália como membro fundador, essa cláusula já indicava a disposição da Itália em participar em organizações internacionais que visavam promover a paz e a justiça entre as nações. A inclusão de uma clausula europeia nas constituições da Alemanha e Itália deve-se, em grande parte, ao facto de ambos os países terem saído como os países vencidos durante a segunda guerra mundial e de haver uma necessidade de garantir a cooperação europeia sendo vista como uma forma de evitar conflitos, promovendo a paz e a estabilidade na Europa.
Portugal também não seguiu o modelo Espanhol, na versão originária da sua primeira constituição, depois da Época Franquista. A Constituição Espanhola de 1978, estabeleceu no artigo 93º uma autorização a celebrar contratos que atribuíssem, a organizações ou instituições internacionais o exercício de competências derivadas da Constituição e, reforçou no artigo 96º, que os tratados internacionais validamente celebrados formarão parte do ordenamento interno, demonstrando assim a clara intenção espanhola pela escolha de um caminho europeu.
Porém, não podemos dizer de todo que o texto originário da Constituição estava imune à influência internacional, pois vemos o papel da Constituição Alemã teve relativamente ao catálogo dos direitos fundamentais, ou mesmo, a influência de algumas declarações e convenções internacionais (v.g. o artigo 16º, nº2, referindo a Declaração Universal dos Direito do Homem), todavia não incluía nenhuma referência às comunidades europeias, igual à que encontrávamos na Constituição Alemã e Italiana
A nossa Constituição em 1976, fruto de um compromisso entre as forças políticas da época, como o Prof. Armando Guedes diz, adotou “um sistema económico misto, mas com forte pendor colectivizante (v.g. artigo 92º, nº1 da CRP76), a que
21 Amaral, M.L. Quarenta anos de Constituição, trinta anos de Integração Europeia. UNIO EU Law Journal, 2017, p.35 (Amaral, 2017, p. 35) acresciam reivindicações soberanistas (v.g. artigo 7º) dificilmente harmonizáveis com a adesão a uma entidade de matriz supranacional”22 . Surgindo a questão se a Constituição de 1976 seria compatível com o Tratado de Roma, que fundou a CEE, suscitando uma divergência doutrinária, tendo de um lado opiniões, como a de Paulo de Pitta e Cunha como de Fausto Quadros, que defendiam a necessidade de rever a constituição para fazer a necessária adaptação ao regime europeu, como pelo outro lado, temos a voz de Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa que sustentavam a desnecessidade de fazer uma alteração à constituição entendendo que esta e o Tratado de Roma eram compatíveis.
Independentemente da visão que se escolhesse a Constituição foi revista em 1982, introduzindo alterações no texto constitucional que permitissem a Portugal, mais tarde, aderir à CEE. Essa revisão teve como objetivo eliminar potenciais obstáculos, afastando as normas que poderiam servir de impedimentos à adesão, tais como a extinção do Conselho de Revolução, bem como reduzir a carga ideológica da Constituição, flexibilizar o sistema económico e redefinir as estruturas do poder político Juntamente aditou o nº3 ao artigo 8º, relativamente ao Direito Internacional, permitindo agora a vigência automática na ordem jurídica portuguesa das normas emanadas pelos órgãos competentes das organizações internacionais, consentindo que as normas da Comunidade vigorassem no ordenamento jurídico português de forma automática, não necessitando de “interposição, ou transformação, legislativa”23
Esta revisão serviu de forma a antecipar a adesão que viria a ocorrer em 1986, procurando garantir a compatibilidade entre o direito nacional com o direito europeu. Porém não afastou a lógica económica socialista, que viria a ser retirada com a revisão de 1989, observando essa ainda na redação do Artigo 2º da CRP82 e o princípio da organização económica, presente no artigo 80º, alínea c) “apropriação coletiva dos principais meios de produção.
Não podemos dizer que esta revisão, nem as futuras pretenderam eliminar o sistema semipresidencial. No entanto, a eliminação do Conselho de Revolução, no qual o Presidente da República presidia, implicou uma serie de alterações no estatuto e poder do presidente, que ainda define o sistema político português até aos dias de hoje. Ao eliminar
22 Guedes & Coutinho, O Processo de Integração Europeia e a Constituição Portuguesa, 2006, p.89.
23 Guedes & Coutinho, ob cit., p.90 o Conselho de Revolução foi necessário delegar as suas funções, sendo algumas delas atribuídas ao Conselho de Estado24 e ao Tribunal Constitucional25 . Com esta revisão, os poderes do Presidente sofreram grandes modificações, com destaque para a possibilidade do Presidente da República dissolver o parlamento, que aumentou a sua esfera, permitindoagoradissolver26quasequesem esforçonenhum,necessitandoapenasdeouvir a Assembleia da República e o Conselho de Estado. Ao mesmo tempo restringiu-se o poder de demissão do governo27 , que até altura o presidente podia demitir o governo por motivos políticos, equilibrando os dois grandes poderes do Presidente da República, que resultou, como sustenta António Filipe, numa estabilização dos poderes presidenciais. Outro poder alterado foi o da promulgação e do veto, porém a própria assembleia poderá impedir o veto, através de uma maioria absoluta.
Como resultado desta revisão, verificou-se uma diminuição da responsabilidade política do Governo perante o Presidente28, resultando numa mudança do pendor presidencial para um pendor parlamentar, havendo uma clara introdução de normas que proporcionam a independência do Governo face ao Presidente da República. Não compartilhando este das funções governativas, como acontece no sistema francês. FuncionandoemPortugalmaiscomoumaespéciedemoderador,optando,aConstituição, nem por um presidente meramente representativo, nem por um presidente chefe do poder executivo, como acontece em França, havendo agora um claro afastamento com esse sistema semipresidencial, na medida em que se reforçou a separação entre o presidente e o governo.
24 É um órgão consultivo do Presidente da República, que tem como função o aconselhamento das suas funções.
25 Perante este o Presidente ganha o poder de pedir a fiscalização constitucional de diplomas Exemplo deste poder, foi a emissão para o Tribunal Constitucional do diploma que viria a aprovar a Eutanásia em Portugal.
26 Utilizado por exemplo em 1979; 1983; 1985; 1987; 2002; 2004; 2011;
27 “Só pode ser demitido quando tal se toner necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas” (Miranda, A originalidade e as principais características da Constituição Portuguesa, p. 9)
28 Até 1982, o governo era responsável perante o Parlamento como perante o presidente da República, contudo, após a revisão, o governo passa agora a ser responsável perante o Presidente e responsável politicamente perante a Assembleia da República
A revisão de 1982 teve uma extrema importância não só a preparar o caminho para a adesão de 1982, mas também na classificação do sistema político português, que ainda se mantem até aos dias de hoje.
Com a adesão de Portugal à CEE, no dia 1 de janeiro de 1986, não houve a necessidade de qualquer revisão constitucional, devendo-se em parte ao trabalho preparatório realizado na revisão de 1986. Contudo, não podemos deixar de abordar que a revisão de 1982, apesar de ter preparado o caminho para a adesão, não retirou todas as possíveis normas que entrariam em conflito com a Comunidade, principalmente as de natureza económica.
Nocontexto daparticipação portuguesana CEE,serianecessário em 1989,uma nova revisão, com o intuito de reorganizar a economia portuguesa, afastando-se da lógica socialista, eliminando o objetivo de assegurar a transição para o socialismo (artigo 2º da CRP82), e suprimiram-se as das menções ideológicas que ainda restava da Constituição de 1982. As novas alterações passaram a permitir a privatização de empresas públicas; introduzindo a ideia da livre concorrência no mercado português, encorajaram a competição entre empresas e a criação de um ambiente mais favorável aos negócios Além disso, a reforma agrária e a nacionalização de terras, prevista na constituição de 1976,foram revertidas, permitindo agora alivrecomprae venda deterras.Foram também introduzidas uma série de medidas de desregulamentação, incluindo a eliminação de restrições à importação e exportação, incentivando ainda o investimento estrangeiro em Portugal, criando agora um ambiente mais favorável aos negócios. Estas alterações ao nível económico, permitiram modernizar e liberalizar a economia portuguesa, abrindo-a ao mercado livre da Comunidade Europeia.
Embora tivesse foco nas alterações económicas, esta revisão foi mais longe, fazendo também uma reorganização no plano das relações internacionais, que vieram a facilitar o processo de integração. Como exemplo dessa reorganização, temos a adesão do nº5 ao artigo 7º, no qual “Portugal empenha-se no reforça da identidade europeia e no fortalecimento da ação dos Estados europeus a favor da democracia, da paz, do progresso económico e da justiça nas relações entre os povos.”. Sobre o mesmo plano, ira alterar o nº3 do artigo 8º, introduzido na revisão de 1982, retirando o advérbio “expressamente”, com o “objetivo de permitir a aplicação direta das diretivas comunitárias”. Alterou também o artigo 15º, atribuindo aos cidadãos da CEE de capacidade eleitoral para as eleições dos titulares deórgãos deautarquiaslocais, juntando-seaos cidadãos dos Estados de língua portuguesa com residência em Portugal, que já possuíam esse direito. Simultaneamente, foram feitas alterações no âmbito político “desenvolvendo os laços de identificação com o processo de integração, operou a constitucionalização do Parlamento Europeu”29, ganhando pela primeira um órgão de uma organização internacional relevância na constituição de um país, sendo referenciado nos artigos 118º, nº5 CRP89, art. 136º, al. b) CRP89, e art. 139º, nº3, al. c)
Realizada três anos após a adesão, a revisão teve assim como objetivo adaptar a Constituição Portuguesa às demandas e desafios da integração europeia, permitindo participar nas instituições europeias e reconhecendo competências e a importância da cooperação europeia.
A terceira revisão constitucional viria a ter como fundamento a assinatura do Tratado de Maastricht, a 7 de fevereiro de 1992, entrando em vigor a 1 de novembro de 1993. Esta revisão foi necessária devido à incompatibilidade de algumas normas constitucionais com o Tratado. Também conhecido como Tratado da União Europeia, este tratado propunha novas formas de cooperação e integração, bem como uma maior unificação política. Embora não se assumisse como proposta federal, reforçou os poderes da nova União Europeia, envolvendo a partilha de poderes soberanos dos Estados para a União, que deixa de ser apenas uma mera organização internacional, passando agora a poder-se classificar como uma figura sui generis
O facto de se transferir certas competências nacionais, por exemplo, nas áreas da política e da legislação, implicava assim uma nova revisão constitucional, pretendendose “efetuar um controlo de constitucionalidade sistémico, empreendido com o fito de afastar preceitos constitucionais que pudessem contrariar este Tratado e possibilitando, dessaforma,nãosó asuaratificaçãocomotambémaprevençãodeconflitosentreaordem jurídica nacional e a europeia”30 .
29 Guedes & Coutinho, O Processo de Integração Europeia e a Constituição Portuguesa, 2006, p.92
30 (Guedes & Coutinho, 2006, p. 92)
Alterando de novo o plano das relações externas, aditou um nº6 ao artigo 7º, dizendo “Portugal pode, em condição de reciprocidade, com respeito pelo principio da subsidiariedade e tendo em vista a realização do principio da coesão económica e social, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da União Europeia”, incorporou o processo de integração europeia nos “objetivos constitucionais de internacionalização do Estado português, sugerindo o exercício em comum de poderes soberanos”31, verificamos a primeira vez uma norma que atribuía poderes nacionais para a U.E32 Pela revisão foi também modificado o artigo 15º, aditando o nº5 atribuindo “em condições de reciprocidade, aos cidadãos de Estados membros da União Europeia residentes em Portugal, o direito de elegerem e serem eleitos Deputados ao Parlamento Europeu”.
Ainda no nível político, introduziu normas que regiam a relação entre a Assembleia da República e o Governo, competindo agora à Assembleia “acompanhar e apreciar, nos termos da lei, a participação de Portugal no processo de construção da união europeia;” (artigo 166º CRP92), impondo ao Governo atarefadeapresentar àAssembleia da República, informações referentes ao processo de construção da união europeia, conforme o artigo 200, nº1, alínea i) da CRP92. Em outras palavras, a Assembleia passou a ter um papel mais ativo na monitorização e avaliação da participação de Portugal na UE, enquanto o Governo passou agora a ter de prestar contas sobre as suas ações neste processo.
Um dos objetivos do Tratado de Maastricht foi a introdução de uma moeda única, que Portugal adotou em 2002. Depois de se ter comprometido, em 1998, a cumprir com os critérios estabelecidos pelo Tratado para adotar a moeda única. Foi necessário alterar de novo a Constituição, em particular a competência do Banco de Portugal, com a
31 Ibidem, p.92
32 Esta questão gerou um debate sobre o conflito entre o primado da Constituição ou o primado do direito europeu, que nos leva a optar pelo primado da Constituição. Caso contrário, o Tratado vincularia logo os Estados, entrando em vigor independentemente de ratificação, estando as normas constitucionais em desconformidade com o Tratado, porém não é essa visão que a prática demonstra, pois foi necessário modificar as normas constitucionais para cumprirem com o disposto do tratado reformulação do artigo 105º da CRP9233 , que limitou o seu papel de emissor de moeda, que agora sofreria restrições face à criação de uma moeda única europeia.
Prosseguindo a nossa análise das revisões constitucionais, a quarta ocorreu em 1997, e apesar de não ter sido diretamente impulsionada pelo processo de integração europeu de Portugal, introduziu alterações na lei fundamental portuguesa que veria a conciliar a Constituição com a participação de Portugal, na nova União Europeia.
Ao analisarmos o impacto da quarta revisão constitucional no âmbito das fontes internas e na conciliação com as fontes normativas da UE, observamos a alteração do artigo 112º (antigo artigo 115º), aditando o nº9, que impõem “a transposição de directivas comunitárias para a ordem jurídica interna assume a forma de lei ou de decreto-lei, conforme os casos”, que, na nossa opinião, foi uma das mais importantes alterações nesta revisão, tendo em consideração a dimensão que essas diretivas ocupam, no nosso ordenamento jurídico.
Uma outra modificação ocorrida na revisão de 1997 diz respeito ao instituto do referendo, o qual passou a estar contemplado no artigo 115º34. Esta revisão permitiu que o referendo pudesse ser utilizado em casos de “questões de relevante interesse nacional que devam ser objeto de convenção internacional”.
O cerne desta revisão é o reforço dos poderes parlamentares em resposta ao processodeintegraçãonormativaeuropeia.Comoresultado,aAssembleia adquiriumaior capacidade para controlar o processo de decisão dos órgãos da UE, permitindo pronunciar-se “ nos termos da lei, sobre as matérias pendentes de decisão em órgãos no âmbito da União Europeia que incidam na esfera da sua competência legislativa reservada”, conforme estabelecido na alínea n) do artigo 161º. Além disto, ganhou como competência exclusiva o “regime de designação dos membros de órgãos da União Europeia, com excepção da Comissão”, segundo o artigo 164º, al. p). Tudo isso sugere
33 Tendo como novo texto, “O Banco de Portugal, como banco central nacional, colabora na definição e execução das políticas monetária e financeira e emite moeda, nos termos da lei”, parecendo que também antecipou a criação do Banco Central Europeu (Tratado de Amesterdão estabeleceu-o comouma instituição da União Europeia)
34 Anterior artigo 118º da CRP92 uma tentativa de limitar os poderes que o governo havia adquirido com processo de integração.
A revisão não apenas aumentou os poderes da Assembleia da República, mas também alterou os poderes regionais em relação à participação de Portugal na União Europeia. Agora, as regiões podem se pronunciar sobre “matérias do seu interesse específico, na definição das posições do Estado Português no âmbito do processo de construção europeia” (artigo 227º, nº1, alínea v), 2ª Parte). Além disso, as regiões têm agora o direito de participar “no processo de construção europeia mediante representação nas respetivas instituições regionais”, bem como o direito de participar “nas delegações envolvidas em processos de decisão comunitária quando estejam em causa matérias do seu interesse específico”, conforme o artigo 227º, nº1, al. x). Essas mudanças têm como objeto dar às regiões autónomas uma voz no processo de participação de Portugal na União Europeia.
A revisão de 2001 foi estabelecida com o objetivo de promover a proteção dos direitos humanos permitindo a ratificação do Tratado de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional. Embora não seja consequência direta do processo de Portugal na União Europeia, não deixou de ser influenciada por ele.
Uma dessas influências foi o aditamento ao nº6 do artigo 7º, a expressão “e de um espaço de liberdade, segurança e justiça”, que por sua vez teve um impacto na revisão de outras normas constitucionais, como é o caso do artigo 33º, alterando preceitos relativos à extradição. A nova redação do nº5 do artigo 33º estabeleceu que “não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia”. Isso aprofundou a cooperação judiciária entre os Estados-Membros, agora prevista na Constituição, e levou à retirada de algumas garantias em relação à expulsão e extradição. Tudo isso ocorreu apesar de a revisão de 2001 não ter sido uma consequência direta do processo de integração de Portugal na União Europeia.
Diferentemente da revisão de 2001, a emenda constitucional de 2004, teve como origem o processo de integração, visando solucionar os problemas que haviam surgidos em outros estados-membros em relação à posição do direito da União Europeia perante o direito nacional, especialmente no âmbito constitucional.
A falta de resposta do Tribunal Constitucional sobre a questão da hierarquia e o aumento de conflitos entre as duas posições, principalmente com a vigência na ordem jurídica nacional de normas provenientes das instituições europeias, levaram à revisão do artigo 8º, aditando o nº4, com a seguinte redação: “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.” Parece que foi estabelecido o princípio da primazia das normas emanadas nas instituições europeias, porém não será um primado absoluto, pois foi estabelecido um contrapeso: as normas da união europeia são aplicáveis na ordem interna, mas devem respeitar os princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que são estabelecidos pela constituição. Dessa forma uma norma europeia não pode ser aplicada em Portugal se for incompatível com esses princípios fundamentais, que por sua vez, consideramos a probabilidade de uma norma europeia violar os nossos princípios ser baixa. No entanto, as normas só são válidas se não violarem esses princípios fundamentais do Estado de direito democrático.
Como não poderia ser deixado intocado, o artigo 7º sofreu nova redação: “espaço de liberdade, segurança e justiça e a definição e execução de uma política externa, de segurança e de defesa comuns” assim como uma menção ao aprofundamento da união europeia. Isso mostra mais uma vez o impacto do processo de integração, desta vez na área da política externa35 , que tradicionalmente era considerada como parte central da soberania dos Estados. Vemos outra vez, o processo de integração a influenciar as competências estatais, principalmente no domínio das competências dos parlamentos nacionais.
Juntamente com estas alterações, vimos outra modificação dos poderes regionais, agora relativamente ao poder de transposição dos atos jurídicos da União Europeia, através de decreto legislativo regional, na nova redação do artigo 112º, nº8, parte final “a transposição de actos jurídicos da União Europeia para a ordem jurídica interna assume a forma de lei, decreto-lei ou, nos termos do disposto no nº4, decreto legislativo regional”
35 Como exemplo de uma política externa, de segurança e de defesa comum, temos a reação da União Europeia à invasão da Rússia à Ucrânia, em 2022 e do artigo 227º, nº1, al. x), parte final “bem como transpor actos jurídicos da União, nos termos do artigo 112º”, em relação aos poderes regionais.
Porfim, aConstituição foinovamenterevista em 2005,com aintenção depermitir a realização de um referendo sobre o Tratado Constitucional Europeu. Essa revisão alterou novamente o regime do instituto36, que já havia sido modificado anteriormente37 Noentanto,oTratadoConstitucionalnuncafoiratificado atéaosdiasdehoje,masmesmo assim não impediu que a Assembleia da República revisse a constituição para permitir a realização de futuros referendos sobre tratados europeus.
Poderia suscitar a curiosidade se o Tratado de Lisboa não vinha causar uma nova revisão constitucional, como tinha acontecido com anteriores, tal como aconteceu com o de Maastricht Parece-nos que, ao contrário desses, o Tratado de Lisboa não trouxe uma mudança fundamental nas relações entre a União e os seus Estados-membros, sendo mais uma evolução. Além disso, o processo de integração europeia de Portugal já havia incorporado muitas das disposições do Tratado em anteriores revisões, por exemplo, o compromisso de respeitar o direito comunitário e a transferência de certos poderes para as instituições europeias, em determinadas áreas.
Para concluir esta parte do nosso trabalho, gostaria de mencionar que nenhuma das revisões constitucionais introduziu uma obrigação de pertença à União Europeia, o que significa que Portugal pode decidir retirar-se da União e todas as disposições introduzidas pelas revisões para promover o processo de integração simplesmente caducariam.
36 Adicionando o artigo 295º, que consagrava “O disposto no nº3 do artigo 115º não prejudica a possibilidadedeconvocaçãoedeefetivaçãodereferendosobreaaprovaçãodetratadoqueviseaconstrução e aprofundamento da união europeia.
37 Revisão Constitucional de 1997